Í N D I C E
AGRADECIMENTOS
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PREFÁCIO
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INTRODUÇÃO
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CAPÍTULO I
Porque estamos privados de nós próprios, dos nossos sentimentos ou das nossas necessidades Preâmbulo 1. O espaço mental 2. Os sentimentos 3. As necessidades 4 . 0 pedido
....
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CAPÍTULO II
Tomar consciência do que realmente vivemos 1. Estafar-se a fazer tudo como deve ser 2. Observar sem julgar nem interpretar Do pingue-pongue à espiral Deixas sempre tudo espalhado Um conto chinês 3. Sentir sem julgar nem interpretar Sinto que / Sinto-me Falar verdadeiro, escutar verdadeiro Comunicar é também dar sentido Escutar sem julgar Atacar, fugir ou encontrar A propósito dos nossos sentimentos
55 55 61 61 63 73 74 74 81 86 88 89 90
CAPÍTULO IV
O encontro 4. Identificar as nossas necessidades sem projectá-las sobre o outro O medo, a culpa e a vergonha como ferramentas para se obter o que se quer? E pela liberdade que damos a nós próprios que nos ligamos um ao outro Como permanecer eu próprio estando com os outros? Como estar com os outros sem deixar de ser eu próprio? . Renunciar ao pensamento binário A necessidade não é desejo nem vontade Primeiro a relação! A intendência virá depois Duas expressões cruciais As nossas necessidades precisam mais de reconhecimento do que de satisfação A propósito das nossas necessidades 5. Formular um pedido concreto, realista, positivo e negociável Encarnar a necessidade aqui e agora Criar o espaço do encontro
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CAPÍTULO III
Tomar consciência do que o outro realmente vive 1. Comunicar é exprimir e receber u m a mensagem Dizer tudo um ao outro, escutar tudo um do outro Tirano, vítima, ou os dois Renunciar ao medo e caminhar para a confiança Caminhar muito devagar até à fonte 2. A empatia: estar presente a si próprio e aos outros Karim, ou caminhar para a confiança Empatia é escutar no sítio certo Kathy, ou a alergia à empatia As nossas necessidades precisam mais de reconhecimento do que satisfação Sobre o poder condicionador dos juízos 3. Não temos tempo para nos entender, mas arranjamos tempo para nos desentender
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1. Frente a frente 2. Fachada a fachada 3. D u m poço ao 4. Dançar devagar em direcção ao outro 5. Alimentar a relação 6. Espaços de diálogo
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outro
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CAPÍTULO V
Segurança afectiva e sentido, duas chaves para a paz
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Amar-te-ei se 157 1. Ensinaram-nos a fazer, não a estar 157 Consciência ou contabilidade 159 Cuidar não é responsabilizar-se por 159 2. Não aprendemos a ser amados como somos, mas como os outros gostariam que fôssemos 162 Gosto mais do meu projecto de filho do que do meu filho... 163 3. A diferença é vivida como algo ameaçador 166 4. O sentimento mais comum: medo! 166 5. Deixemos de ser boas pessoas, sejamos verdadeiros! 167 Tiremos as máscaras! 168 Uma mentira? Sim, para ser boa pessoa! 170 6. Como dizer não? 172 Obediência automática ou adesão responsável? 173 Por detrás do não, a que é que dizemos sim? 175 7. Tenho medo dos conflitos 176 8. Como viver a ira? 177 Enterrar a própria ira, é enterrar uma mina 178 Cuidar das nossas iras 179 CAPÍTULO VI
Informar-se mutuamente e partilhar valores 1. É preciso, Deves, É assim, Não tens alternativa Do constrangimento à liberdade: É preciso ou Eu gostaria? A liberdade assusta mais do que o constrangimento Tens que calçar os chinelos!
183 183 184 185 188
É preciso levar o lixo à rua! Não tenho alternativa, Não tenho tempo! 2. Quebra-mar ou baliza, pastor ou arame farpado? Respeitar uma regra implica que a compreendamos Despacha-te, despacha-te! Não temos tempo! Prioridade às cadeiras ou à escuta? A violência é a explosão de uma bomba de vida impedida 3. Sentido e sensação «A margem dá sentido ao rio» Precisamos de sentido como de pão para a boca Celebrar a intensidade da vida E o uso da força e do castigo? Castigo ou sanção?
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CAPÍTULO VII
Método
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1. Três minutos, três vezes por dia 2. Uma higiene da consciência 3. A consciência de convívio
211 213 213
EPÍLOGO
Jardinar a paz A violência não está na nossa natureza A violência, velho hábito Jardinar a paz
215 215 216 217
LISTA DE NECESSIDADES 219 LISTA DE SENTIMENTOS 222 LISTA DOS SENTIMENTOS QUE INCLUEM INTERPRETAÇÕES E JUÍZOS .. 227 NOTAS DA TRADUTORA 228 NOTAS DO AUTOR 228 OBRAS CITADAS 230 O CENTRO PARA A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA 231
PREFÁCIO
DEIXAR DE SER BOA PESSOA PARA SE SER VERDADEIRO
Exprimir a sua própria verdade respeitando os outros e respeitando o que verdadeiramente somos, eis o projecto ao qual Thomas d'Ansembourg nos introduz. Eis o convite que ele nos dirige através deste livro ao propor-nos uma autêntica descida às profundezas do nosso modo de dialogar connosco e com os outros. Neste livro aprendemos a reprogramar a nossa maneira de nos exprimirmos, o nosso modo de nos dizermos. No final do processo iremos encontrar a alegria de estar mais próximos do outro e de nós próprios, e a felicidade de nos abrirmos aos outros. E em pleno processo surgirá a oportunidade de renunciarmos aos mal-entendidos comodistas com os quais tantas vezes nos contentamos, em vez de acedermos a um universo de escolha e liberdade. Que belo projecto e que programa!, poder-se-ia acrescentar. Dando a impressão de que não ultrapassa a superfície das coisas, isto é, aquilo que comunicamos exteriormente, o método proposto por Thomas d Ansembourg vem questionar o próprio edifício psicológico de cada um. É um desafio exigente, pois para conseguirmos enunciar claramente o que em nós vive, precisamos de desenterrar muitos condicionalismos inconscientes. É um desafio revolucionário, pois ao longo do percurso iremos descobrindo que o projecto de nos exprimirmos claramente expõe toda a nossa vulnerabilidade e põe à prova o nosso orgulho. É um projecto desestabilizador, pois mostra com bastante evidência a nossa propensão para deixarmos as coisas como estão, com medo de incomodar os outros, e também com medo que os outros nos incomodem se nos atrevermos a falar a sério. Por fim,
é um projecto provocador e estimulante, pois desafia cada um de nós a empenhar-se na sua própria transformação em vez de ficar à espera que seja o outro a mudar. Apercebi-me de todo o potencial da comunicação não violenta numa viagem pelo deserto do Saara. Assistido por Jean-Marie Delacroix, eu era o guia dum grupo de vinte e quatro homens no âmbito de um workshop intitulado A chama interior. Por sugestão de Thomas d'Ansembourg, eu aceitara a ideia de contratarmos jovens da associação Flics et Voyous e alguns dos seus animadores para nos darem assistência técnica durante essa aventura. Eu já conhecia há alguns anos essa associação dedicada aos jovens da rua. O seu instigador, Pierre-Bernard Velge, e o seu braço direito Thomas d'Ansembourg, propuseram que eu me juntasse a eles, na qualidade de conselheiro psicológico, nessa expedição pelo deserto com jovens em dificuldades. Contratei-os para o workshop e deixei-me levar pela aventura, que visava a reintegração social desses mesmos jovens. Deixei-me levar, mas comecei logo a arrepender-me quando um jovem da equipa técnica resolveu ameaçar um adulto com uma faca. A horas de estrada de qualquer início de civilização, eu era confrontado com o horror . Não querendo de maneira nenhuma que as pessoas do meu grupo corressem qualquer perigo, só vislumbrei uma solução: mandar para casa os desordeiros o mais depressa possível. No fundo, era uma maneira fácil de me livrar do problema. Pus Thomas a par das minhas intenções. Sem rejeitar a minha proposta, ele pediu-me que aguardasse algumas horas. Houve longas conversas sobre a duna, a alguma distância do acampamento. Para meu grande espanto, quando elas terminaram, a equipa de assistência estava de novo unida e mais nenhum problema veio perturbar viagem, que correu depois tranquilamente. Admirando a paciência de Thomas, achei que a sua técnica da comunicação não violenta merecia ser estudada. Depois desse episódio, Thomas d'Ansembourg tornou-se meu assistente e um colaborador regular nos meus workshops. Através da associação Cceur.com, ainda hoje me dirijo muitas vezes a ele para resolver situações delicadas. Assisti ao seu workshop de introdução à comunicação não violenta e os princípios de base da disciplina passaram a fundamentar todos os meus seminários. Porquê? Porque me apercebi que muitos de nós, a começar por mim próprio, ainda mal começámos a articular as primeiras palavras em matéria de comunicação. Estamos habituados a avaliar os outros,
a julgá-los e a categorizá-los sem lhes revelarmos os nossos sentimentos, sem nos atrevermos a dizermo-nos. Qual de nós se pode gabar de ser capaz de enunciar todos os sentimentos que existem por detrás dos seus juízos antes de os pronunciar? Quem é que se dá ao trabalho de identificar e nomear as necessidades recalcadas e disfarçadas por detrás das palavras que pronuncia? Quem é que tenta dirigir pedidos realistas e negociáveis na sua relação com os outros? Este modo de comunicar, baseado em pedidos realistas e negociáveis, é ainda mais interessante, a meu ver, pelo facto de vir completar o que outros métodos, nomeadamente os de Salomé e de Gordon, já tinham proposto. Todos eles salientam com razão que precisamos de aprender a falar «na primeira pessoa» a partir da nossa experiência de vida, e de admitir que as nossas necessidades são em si legítimas. No entanto, essa legitimidade tem os seus limites e deverá encontrar a sua expressão na formulação de pedidos negociáveis dirigidos ao outro, evitando-se a reclusão numa bolha de egocentrismo. Porque se todas as nossas necessidades são justas em si, nem todas poderão encontrar satisfação. Temos que descobrir soluções de meio termo aceitáveis para cada lado. E é precisamente nesse aspecto que, a meu ver, a comunicação não violenta mostra toda a sua força. Essa técnica faria milagres em política. Deveria mesmo ser ensinada às crianças mal começassem a frequentar a escola primária, para não adquirirem o mau hábito de se afastarem de si mesmas e do modo de expressão que lhes é próprio. No âmbito da vida de casal, onde os choques entre os conjugues ocorrem com uma dolorosa e perigosa frequência, a sua eficácia encontra um campo de acção por excelência. A comunicação não violenta parece-me ser ao mesmo tempo uma antecâmara da psicologia, e um método capaz de proporcionar à compreensão psicológica das questões humanas uma aplicação extremamente prática no dia-a-dia. Mas a verdade é que se os princípios de qualquer método de comunicação são geralmente de fácil compreensão, a componente prática costuma encerrar bastantes dificuldades. Nesse sentido, este livro constitui um autêntico manual de referência. Revela todo o talento e a abertura de espírito de um autor que, ao abordar o mundo dos sentimentos e das necessidades, revela dois grandes trunfos oriundos de uma longa experiência de jurista: o rigor da análise e a preocupação muito concreta de eficácia. De entre todas as pessoas que têm a ousadia de se dizer, Thomas d'Ansembourg é para mim aquela que o consegue com maior perí-
cia. Poeta da comunicação, explorador de desertos interiores e exteriores, ele percebeu que para atingirmos uma comunicação autêntica entre os seres, é preciso renunciarmos às relações de poder e arriscarmos a nossa própria verdade. Eu assisti à sua própria transformação, vendo-o transformar-se em poucos anos de bom rapaz simpático assustado com a ideia do compromisso, num marido apaixonado e pai dedicado. Vi-o afastar-se progressivamente das suas ocupações como advogado e consultor bancário para se manter fiel a si próprio e para ajudar os outros a manterem-se também fiéis a si próprios. Assisto agora com alegria à sua plena afirmação neste livro escrito para nos ensinar que, no fundo, não existe intimidade com o outro sem haver intimidade consigo próprio, e que não existe intimidade consigo próprio sem haver intimidade com o outro. Com a ternura e a elegância do Principezinho de Saint-Exupéry, Thomas d'Ansembourg recorda-nos que é possível encontrarmos o outro sem deixarmos de ser nós próprios.
INTRODUÇÃO
Não tenho esperanças em conseguir sair sozinho da minha solidão. A pedra não tem esperanças em ser algo mais que pedra, mas ao colaborar com as suas semelhantes agrupa-se efaz-se Templo. ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
Guy Corneau Eu era um advogado simpático e muito educado, embora vivesse deprimido e desanimado. Hoje em dia modero com entusiasmo conferências, seminários e consultas de acompanhamento. Era um homem solteiro aterrorizado com compromissos emocionais, que se envolvia em múltiplas actividades para vencer a solidão. Hoje em dia sou casado, pai de família e sinto-me preenchido. Vivia impregnado por uma tristeza interior bem dissimulada mas constante, agora transbordo de confiança e de alegria. O que é que aconteceu? Tomei consciência de que, ao ignorar durante tanto tempo as minhas necessidades, eu estava a violentar-me e que tinha a tendência para descarregar essa violência para cima dos outros. Aceitei que tenho necessidades próprias e que sou capaz de escutá-las, diferenciá-las, estabelecer prioridades entre elas e eu próprio cuidar delas, em vez de me queixar de que ninguém lhes dá atenção. Fui tentando reunir aos poucos toda a energia que eu antes dedicava ao queixume, à revolta e à nostalgia, e fui canalizando-a no sentido da transformação interior, da criatividade e do relacionamento. Do mesmo modo, tomei consciência e aceitei a ideia de que o outro também tem necessidades e que não sou necessariamente a única pessoa competente e disponível para as satisfazer. O processo de comunicação não violenta foi, e continua a ser pa-
ra mim, um guia esclarecedor e tranquilizante na transformação que empreendi, e desejo que possa esclarecer e tranquilizar o leitor levando-o a compreender os seus relacionamentos, a começar por aquele que mantém consigo próprio. Pretendo assim com este livro ilustrar o processo que Marshall Rosenberga) desenvolveu com base no espírito e na linha de pensamento dos trabalhos de Cari Rogers. Quem está a par da obra de Thomas Gordon irá também reconhecer algumas noções familiares. Pretendo mostrar que confio na ideia de que se cada um de nós aceitasse observar a sua própria violência, aquela que muitas vezes exerce inconsciente e muito subtilmente sobre si próprio e sobre os outros - tantas vezes até com as melhores intenções do mundo - e de que se cada um tentasse compreender como é que essa violência se desencadeia, então teríamos oportunidade de a refrear e de a extinguir. Cada um poderia assim contribuir para a criação de relacionamentos mais satisfatórios entre seres humanos simultaneamente mais livres e mais responsáveis. Marshall Rosenberg designa esse processo por «comunicação não violenta» (CNV). Eu próprio refíro-me a ele com a expressão «comunicação consciente e não violenta». A violência resulta da ausência de consciência. Se fôssemos interiormente mais conscientes de tudo o que realmente vivemos, ser-nos-ia mais fácil exprimir a nossa força sem termos de nos agredir uns aos outros. Creio que existe violência sempre que usamos a nossa força não para criar, estimular ou proteger mas para constranger, seja o constrangimento exercido sobre nós próprios ou sobre os outros. Essa força pode ser afectiva, psicológica, moral, hierárquica, institucional. Deste modo, a violência subtil, a violência «com pezinhos de lã», em especial a violência afectiva, é extraordinariamente mais frequente do que a violência que se manifesta por pancadas, crimes e insultos, e pode considerar-se ainda mais perigosa pelo facto de não surgir designada como tal. Ora, essa violência não surge denominada como tal precisamente por se insinuar nas próprias palavras que inocentemente utilizamos todos os dias. Ela é veiculada pelo nosso vocabulário. De facto, traduzimos o nosso pensamento, logo a nossa consciência, antes do mais através de palavras. Podemos à partida optar por veicular o nosso pensamento e a nossa consciência através de palavras que dividem, opõem, separam, comparam, categorizam ou condenam, ou através de palavras que reúnem, propõem, reconciliam e estimulam. Ao trabalharmos sobre a nossa consciência e a nossa linguagem,
poderemos desparasitá-las de tudo o que vem turvar a comunicação e gerar a violência quotidiana. Os princípios da comunicação não violenta não são novidade. Há séculos que pertencem à sabedoria do mundo, uma sabedoria muito pouco posta em prática, provavelmente por parecer tão pouco prática. O que me parece ser novo, tendo eu vindo a verificar o seu aspecto extremamente prático, é a articulação do processo proposto por Marshall Rosenberg. Por um lado existe a articulação na linguagem das duas noções, já conhecidas, de comunicação e de não violência. Essas duas noções e os valores que elas implicam, por muito atractivos que sejam, dei-' xam muitas vezes uma sensação de impotência: será possível comunicarmos sempre sem violência? Como poderemos tornar concretos, palpáveis e eficazes nas nossas interacções esses valores a que todos nós aderimos mentalmente - o respeito, a liberdade, a cordialidade, a responsabilidade? Por outro lado existe a articulação na nossa consciência das componentes e implicações da comunicação. Através de um processo em quatro fases, somos levados a tomar consciência de que reagimos sempre a qualquer coisa, a uma situação qualquer (é a fase 1, a da observação), que essa observação desperta sempre em nós um sentimento (é a fase 2), que esse sentimento corresponde a uma necessidade (fase 3) que por sua vez leva à formulação de um pedido (fase 4). O método baseia-se numa verificação, a de que a pessoa se sente melhor quando é capaz de identificar claramente aquilo a que está a reagir, quando manifesta uma boa compreensão dos seus sentimentos e das suas necessidades e quando sabe formular pedidos negociáveis estando segura de que será capaz de acolher a reacção do outro, qualquer que ela seja. Também se baseia na verificação de que a pessoa se sente melhor quando percebe claramente aquilo a que o outro se está a referir ou a reagir, quando manifesta uma boa compreensão dos sentimentos e das necessidades do outro, e quando é capaz de acolher um pedido negociável sentindo a liberdade de não concordar e de procurar em conjunto uma solução que satisfaça as necessidades das duas partes, sem prejuízo de uma, nem da outra. Assim, para além de ser um método de comunicação, a comunicação não violenta também possibilita a arte de se viverem os relacionamentos com o máximo de respeito por si próprio, pelo outro e pelo mundo. Na era da informática, há cada vez mais pessoas que comunicam cada vez mais depressa e cada vez pior! Há cada vez mais pessoas
que sofrem de solidão, de incompreensão, de perda de referências e de falta de sentido. As preocupações com a organização e o bom funcionamento das coisas ainda pesam demasiado sobre a qualidade das relações. E urgente explorarmos outros modos de relacionamento. Muitos de nós sentimo-nos fartos desta incapacidade de nos exprimirmos verdadeiramente e de sermos verdadeiramente ouvidos e entendidos. Trocamos grandes quantidades de informação através dos meios de comunicação actuais e, ao mesmo tempo, temos a sensação de que somos deficientes da verdadeira expressão e escuta. Dessa impotência nascem muitos medos, que por sua vez geram reflexos clássicos de recuo: fundamentalismos, nacionalismos, racismos. Na apaixonante conquista da tecnologia, em especial na conquista dos meios de comunicação mundiais, e no contexto radicalmente novo do cruzamento e mestiçagem das etnias, das raças, das religiões, das modas, e dos modelos políticos e económicos que esses meios induzem, não estará secretamente a faltar-nos algo íntimo e verdadeiro, tão precioso que qualquer outra busca acabará sempre por parecer desesperada: o encontro, o encontro real entre dois seres humanos, sem jogos, sem máscaras, sem a contaminação dos nossos receios, hábitos e clichés, sem o peso dos nossos velhos reflexos e condicionalismos, e que nos arranque ao isolamento dos telefones, dos ecrãs e das imagens virtuais? Parece haver um novo continente por conquistar, muito mal explorado até hoje e que assusta muita gente: a relação verdadeira entre pessoas livres e responsáveis. Se essa exploração assusta, é precisamente porque muitas vezes receamos perder-nos no relacionamento. A verdade é que aprendemos a privar-nos de nós próprios para estarmos com o outro. Proponho que se explore uma pista na direcção do relacionamento verdadeiro entre seres livres e responsáveis, pista que irei evocar através de uma dupla questão tantas vezes no centro nas nossas «dificuldades de estar»: como ser eu próprio sem deixar de estar com o outro, como estar com o outro sem deixar de ser eu próprio? Ao escrever este livro, tive uma constante preocupação. Eu sei que os livros informam e podem contribuir para a nossa evolução. Mas também sei que a simples compreensão intelectual não chega para levarmos a cabo a transformação do coração. Esta nasce com a compreensão emocional, isto é, com a experiência e uma prática duradoura. Este livro é de resto um exemplo disso, pois baseia-se essencialmente na experiência e na prática. 22
Desde o meu primeiro contacto com a comunicação não violenta, fiz questão de integrar a prática no conhecimento, desconfiando precisamente dessa faceta do conhecimento livresco que muitas vezes nos leva a achar que percebemos tudo - o que pode ser verdade do ponto de vista mental - quando no fundo não assimilámos rigorosamente nada. Essa ilusão só adia a oportunidade de nos transformarmos de um modo verdadeiro e duradouro. Isso explica nomeadamente que eu não indique obras de referência na bibliografia, a não ser o livro de Marshall Rosenberg - apesar de saber e me regozijar com o facto de essas noções por mim abordadas, e que não são novidade em si, também serem exploradas por outros autores. Desta forma, ao pôr no papel, através de palavras e noções necessariamente estáticas, o que no fundo se aprende vivendo, em workshops ou seminários, pela experiência dos jogos de simulação de personagens, pelos tempos de integração, pela escuta das emoções, pelas regressões, pelos silêncios e pela ressonância do grupo, arrisco-me a transmitir uma imagem ingenuamente utópica do processo. Assumo esse risco, pois trata-se precisamente de um processo e não de um truque, ou seja, é um estado de consciência que convém praticar como se pratica uma língua estrangeira. E todos nós sabemos que não é por termos lido o Aprenda inglês deAaZ que ficamos aptos a disputar um concurso de eloquência em Oxford, nem tão pouco a aventurarmo-nos numa conversa de salão! Pratiquemos primeiro umas escalas, modestamente. E já agora, é ou não verdade que a própria palavra «utopia» contém em si esse desejo de ir além, para outro lugar? Este livro dirige-se precisamente às pessoas que estão a caminho de outro lugar, um lugar de encontro verdadeiro entre os seres. O meu trabalho proporciona-me todos os dias a oportunidade de me encontrar com essas pessoas nos mais variados ambientes: no meio empresarial, na assistência social e na educação, entre casais e famílias de todas as origens sociais, no meio hospitalar, entre jovens desamparados ou executivos. E verifico todos os dias que esse lugar existe, se nós assim o desejarmos.
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CAPÍTULO I
PORQUE ESTAMOS PRIVADOS DE NÓS PRÓPRIOS, DOS NOSSOS SENTIMENTOS OU DAS NOSSAS NECESSIDADES
O nosso mundo intelectual efeito de categorias, é cercado por fronteiras arbitrárias e artificiais. É preciso construir pontes, mas para isso tem que haver um conhecimento, uma visão mais ampla do homem e do seu destino. Y E H U D I MENUHIN
Preâmbulo Não tenho palavras para exprimir a minha solidão, a minha tristeza ou a minha ira. Não tenho palavras para exprimir a minha necessidade de diálogo, de compreensão, de reconhecimento. Então critico, insulto ou bato. Então injecto-me, bebo ou entro em depressão. A violência, interiorizada ou exteriorizada, é o resultado de uma falta de vocabulário: é a expressão de uma frustração que não encontrou palavras para se exprimir. Pudera! A verdade é que nunca chegámos a adquirir o vocabulário da nossa vida interior. Não chegámos a aprender a descrever com precisão o que sentimos nem quais são as nossas necessidades. 25
grande parte da violência que exercemos sobre nós próprios ou que impomos aos outros. JUÍZOS,
rótulos e categorias
Nós julgamos. Julgamos o outro ou uma situação em função do pouco que dela vemos, e tomamos o pouco que dela vemos pela realidade completa. Por exemplo, vemos passar na rua um rapaz de cabelo cor de laranja penteado em crista, com a cara cheia de piercings. «Olha-me só para aquele punkl Lá vai mais um revoltado, um marginal, um parasita da sociedade.» Num ápice, julgámos. Mais depressa que a nossa sombra. Não sabemos nada da pessoa, que até pode estar apaixonadamente envolvida num movimento de juventude, num grupo de teatro ou na investigação informática, contribuindo assim com todo o seu talento e o seu coração para o progresso do mundo. Mas como algo no seu aspecto, na sua diferença, despertou em nós medo, desconfiança e certas necessidades que não sabemos descodificar (necessidade de acolher a diferença, necessidade de integração, necessidade de estarmos seguros de que a diferença não conduz à ruptura), optámos por julgar a pessoa. Repare na forma como o juízo violenta a beleza, a generosidade e a riqueza que certamente existe nessa pessoa, mas que não fomos capazes de ver. Outro exemplo. Vemos uma senhora elegante vestida de casaco de peles a passar num carro de luxo. «Deve ser podre de rica! Esta gente só pensa em exibir o dinheiro!» Mais uma vez estamos a julgar, tomando o pouco que vimos do outro pela sua realidade completa. Arrumamos o outro numa gavetinha, embrulhado em papel celofane. Novamente, violenta-se toda a beleza da pessoa, uma beleza que não se vê porque é interior. Talvez a senhora seja muito generosa com o seu tempo e o seu dinheiro (se é que o tem...) envolvendo-se em acções de solidariedade e de caridade, sabe-se lá! Mais uma vez, um certo aspecto da pessoa despertou em nós medo, desconfiança, ira ou tristeza, assim como necessidades que não sabemos descodificar (necessidade de diálogo, necessidade de partilha, necessidade de os seres humanos contribuírem activamente para o bem-estar comum). Então julgamos, reduzimos o outro a uma categoria, fechamo-lo dentro de uma gaveta. Tomamos a parte visível do gelo pela totalidade do icebergue, quando todos nós sabemos que noventa por cento desse icebergue se encontra por baixo do nível do mar, longe da vista. Recorde-se: «Só se
vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos», escrevia Saint-Exupéry. Será que olhamos mesmo para o outro com o coração? Preconceitos, ideias feitas, crenças e automatismos Aprende-se a funcionar por hábito, a integrar automatismos do pensamento, ideias feitas, preconceitos, aprende-se a viver num universo de conceitos e ideias, e a fabricar ou a difundir crenças por verificar - por exemplo: «Os homens são machistas. As mulheres não sabem conduzir. Os funcionários são todos uns preguiçosos. Os políticos são todos uns corruptos. É preciso lutar na vida. Há coisas que têm que ser feitas, com ou sem vontade. Sempre se fez assim. Uma boa mãe é supostamente..., um bom marido, um bom filho é supostamente... A minha mulher nunca vai suportar que eu fale assim como ela. Nesta família é impossível tocar no assunto. O meu pai é uma pessoa que...» Estas expressões são essencialmente um reflexo dos nossos medos. Ao usá-las, fechamo-nos e fechamos os outros numa crença, num hábito, num conceito. Mais uma vez, estamos a violentar aqueles homens que são tudo menos machistas, que se abriram à própria sensibilidade e delicadeza, à feminidade que neles existe. Violentamos aquelas mulheres que conduzem muito melhor que a maioria dos homens, com mais respeito pelos outros automobilistas e mais eficiência no seio do trânsito. Violentamos os funcionários que se entregam com generosidade e entusiasmo ao trabalho. Violentamos os políticos que exercem as suas funções com lealdade e integridade, ao serviço do interesse comum. Violentamo-nos a nós próprios por todas as coisas que não nos atrevemos a dizer ou a fazer quando realmente têm importância para nós, ou por tudo aquilo que «achamos ter que fazer», sem nunca pararmos para pensar se é mesmo algo prioritário ou se não deveríamos antes preocupar-nos com as verdadeiras necessidades das pessoas envolvidas (as dos outros, ou as nossas) de maneira diferente. O sistema binário ou a dualidade Por fim, adquirimos o hábito tranquilizante de formular tudo a preto e branco, em positivo ou negativo. Uma porta tem que estar aberta ou fechada, é justo ou não é justo, está-se certo ou está-se errado, faz-se ou não se faz, está na moda ou fora de moda, ele é espectacular ou completamente idiota. E com variações subtis: uma pessoa 29
é intelectual ou manual, matemática ou artista, pai de família responsável ou indivíduo fantasioso, viajante ou caseiro, poeta ou engenheiro, «homo» ou «hetero», «in» ou «out». É a armadilha da dualidade, do sistema binário. Como se não se pudesse ao mesmo tempo ser um intelectual brilhante e ter jeito para trabalhos manuais, ser um matemático rigoroso e um artista sonhador, ser uma pessoa responsável mas cheia de fantasia, ou um poeta delicado e engenheiro empenhado! Como se não pudéssemos amar-nos para além da dualidade sexual, ou sermos extremamente clássicos em certos aspectos e muito inovadores noutros. Como se a realidade não fosse sempre infinitamente mais rica e colorida do que as nossas pequenas categorias, pobres gavetinhas onde tentamos forçá-la a caber porque o seu movimento, a sua diversidade e a sua vitalidade multifacetada nos perturbam e assustam, sendo preferível, para ficarmos mais descansados, fechar tudo em frascos de boticário devidamente rotulados na estante do nosso intelecto! Praticamos essa lógica da exclusão e da divisão, baseada no «ou» e no «quer... quer». Brincamos ao «quem está certo, quem está errado», jogo trágico que estigmatiza tudo o que nos divide, em vez de valorizarmos tudo o que nos poderia aproximar uns dos outros. Veremos mais adiante o quanto nos deixamos enganar pelo sistema binário, e a violência que este exerce sobre nós próprios e sobre os outros. O exemplo mais frequente é este: ou cuidamos dos outros, ou cuidamos de nós próprios, com a respectiva consequência de nos privarmos de nós próprios, ou de nos privarmos dos outros. Como se não pudéssemos ao mesmo tempo cuidar dos outros e de nós próprios, ou estarmos próximos dos outros sem deixarmos de estar próximos de nós. A linguagem desresponsabilizante Utilizamos uma linguagem que nos desresponsabiliza do que estamos a viver ou a fazer. Em primeiro lugar, aprendemos a responsabilizar os outros, ou um qualquer factor externo, por aquilo que sentimos. «Estou zangado porque tu...» (o «tu assassino»(3) referido por Jacques Salomé.) «Estou triste porque os meus pais... Estou deprimido porque o mundo, a poluição, a camada de ozono...» Nunca se assume a responsabilidade do que se está a sentir. Muito pelo contrário, arranja-se um bode expiatório, corta-se uma cabeça, descarrega-se o próprio mal-estar para cima do outro, que passa a ser o pára-raios
das nossas frustrações! Também aprendemos a não nos responsabilizarmos pelos nossos actos. «São regras... São ordens... A tradição diz que... Não pude fazer de outra maneira... É preciso... Tens que... Não tenho hipótese... É tempo de... É (Não é) normal que...» Veremos o quanto essa linguagem nos desliga de nós próprios e dos outros, e nos escraviza com tanto mais subtileza quanto aparenta ser uma linguagem responsável. 2. Os sentimentos Nesse modo de funcionamento tradicional que privilegia o processo mental, estamos privados dos nossos sentimentos e das nossas emoções como que por uma placa de betão. Talvez o leitor se reconheça um pouco no que vem a seguir. Pessoalmente, aprendi a ser um rapazinho sensato e bem comportado, e a estar sempre à escuta dos outros. Quando eu era criança, falar de si
próprio ou das suas próprias emoções não parecia bem. Podíamos descrever com emoção um quadro ou um jardim, falar com emoção de uma música, de um livro ou de uma paisagem, mas falar de si próprio, ainda para mais com emoção, era logo um acto suspeito de egocentrismo, de narcisismo. «Não é bonito uma pessoa cuidar de si, é preciso cuidar dos outros», diziam-me então. Quando estava muito zangado e manifestava o meu mau humor, ouvia respostas do género: «Não é bonito uma pessoa estar zangada. Um menino bem comportado não se zanga. Vai já para o quarto e volta quando estiveres mais calmo.» E pronto, lá voltava eu à razão. Ia tentar acalmar-me com uma cabeça que rapidamente senten-
ciava a minha culpabilidade. Privava-me do meu coração ao engolir a ira e voltava a descer para a sala, comprando com um sorriso amarelo a reintegração familiar. Se por acaso me sentia triste e presa fácil das lágrimas, repentinamente abalado por uma daquelas terríveis crises que por vezes se abatem sobre nós sem uma razão aparente, diziam-me, em vez de me tranquilizarem ou reconfortarem: «Não me parece bem que estejas triste, com tudo o que temos feito por ti! Há quem seja muito mais infeliz. Vai já para o quarto e volta quando estiveres normal.» Lá ia eu outra vez! Subia para o quarto e o mecanismo racional voltava a vencer: «É verdade, não tenho o direito de estar triste, tenho um pai, uma mãe, irmãos e irmãs, livros para ir à escola e brinquedos, uma casa e comida, de que é que me estou a queixar? Que tristeza é esta? Sou um egoísta e um zero à esquerda!» Mais uma vez, condenava-me a mim próprio, sentia-me culpado, privava-me novamente do meu coração. Engolia a tristeza e lá voltava a descer para novamente ocupar, com um sorriso amarelo, o meu lugar na família. Assim se aprende desde cedo a se ser boa pessoa, em vez de se ser verdadeiro. Noutras alturas em que estava todo contente, a explodir de alegria, e em que exprimia o meu contentamento correndo de um lado para o outro com a música aos berros ou contando os motivos da minha felicidade, chegava a ouvir: «Não te ponhas muito feliz que a vida não é assim tão alegre!» Só me faltava esta! Nem sequer a alegria é bem-vinda no mundo dos adultos! Que mais podia fazer eu, miúdo de dez anos de idade? Registava no meu disco rígido interno duas informações: • Ser adulto é privar-se o mais possível das suas emoções, e só se lembrar delas assim de vez em quando, para preencher uma conversa de salão, sem querer incomodar ninguém.
que vivem zangadas há décadas e que mexem e remexem a sua ira sem nunca darem um único passo em frente. Ou noutras, tristes ou nostálgicas, que vivem enredadas na própria melancolia sem nunca se livrarem dela. Ou ainda naquelas pessoas revoltadas com tudo e todos e que ostentam a sua revolta por todo o lado, sem nunca encontrarem paz. De facto, andar às voltas com um sentimento como um peixe num aquário não leva a lado nenhum, e só dá náuseas. As nossas emoções são como ondas de sentimentos múltiplos, uns agradáveis, outros desagradáveis, e importa podermos identificá-los e diferenciá-los. E interessante identificarmos o nosso sentimento pois ele transmite-nos informações sobre nós próprios e convida-nos a identificarmos as nossas necessidades. O sentimento funciona como o sinal intermitente de um tablier, indicando que uma função está ou não a ser bem desempenhada, que uma necessidade está ou não está satisfeita. Vivendo muitas vezes privados dos nossos sentimentos, temos poucas palavras para os descrever: uma pessoa tanto pode sentir-se bem, feliz, aliviada, relaxada, como pode estar com medo, sentir-se feia, decepcionada, triste, zangada. Temos muito poucas palavras para nos conseguirmos descrever, mas é com elas que temos de lidar. Nas formações em comunicação não violenta, distribui-se aos participantes uma lista de mais de duzentos e cinquenta sentimentos para ajudá-los a enriquecer o seu vocabulário, e assim a expandir a consciência do que sentem. A lista não é extraída de nenhuma enciclopédia, mas sim de um vocabulário de palavras correntes que se podem ler nos jornais e ouvir na televisão. No entanto, um certo pudor e alguma circunspecção, transmitidos de geração em geração, impedem-nos de utilizá-las para falarmos de nós próprios. DESENVOLVER O NOSSOSS VOCABULÁRIO PARA EXPANDIRMOS
• Para ser amado e obter o meu lugar neste mundo, tenho que fazer não tanto o que sinto ou o que gostaria de fazer, mas sim o que os outros querem que eu faça. Ser verdadeiramente eu próprio, é arriscar-me a perder o amor dos outros. Deste tipo de «gravação» decorrem alguns condicionalismos que iremos abordar no capítulo V. Pois, dirá o leitor, mas será mesmo necessário uma pessoa acolher todas essas emoções? Não corremos o risco de ser manipulados pelas nossas próprias emoções? Estão certamente a pensar naquelas pessoas
A CONSCIÊNCIA DO QUE VIVEMOS
Toda a nossa aprendizagem, desde a infância, assenta no desenvolvimento da nossa consciência em matérias ou áreas que nos são exteriores: na escola aprende-se história, geografia, matemática e mais tarde pode-se estudar canalização, electricidade, informática ou medicina. Desenvolvemos o nosso vocabulário em todo o tipo de disciplinas, adquirindo assim uma certa mestria, um certo à-vontade para abordar esses assuntos. A aquisição do vocabulário acompanha o desenvolvimento da
consciência: é precisamente porque aprendemos a nomear os elementos e a diferenciá-los, que podemos compreender as suas interacções, e assim a modificá-las, se necessário. Pessoalmente, não percebo muito de canalização e quando o meu esquentador se avaria, chamo um canalizador e digo-lhe que há ali um problema. O meu nível de consciência dos elementos em causa e a minha capacidade de agir sobre eles estão próximos do zero. O canalizador, por seu lado, irá identificar o que está em causa e exprimi-lo em termos concretos: «O bico tem defeito», ou «O circuito está cheio de tártaro, a mangueira está velha». O canalizador detém assim um poder de acção e até mesmo, neste caso, um poder de reparação. Antigamente, quando eu exercia advocacia e recebia pessoas por vezes completamente baralhadas, confusas e impotentes face às suas dificuldades jurídicas, sentia o prazer de poder diferenciar as implicações da questão, discernir as suas interacções e definir prioridades no sentido de sugerir uma acção. O poder de acção está portanto relacionado com a consciência e a faculdade de nomear e diferenciar os elementos. Cada um de nós aprende assim a dispor de um certo poder de acção em diversas áreas que lhe são exteriores. Mas em que fase da nossa educação é que aprendemos a nomear as implicações da nossa vida interior? Em que momento é que aprendemos a discernir o que se passa dentro de nós, a diferenciar os nossos sentimentos e a distingui-los das nossas necessidades fundamentais, a nomear as nossas necessidades e a formular de um modo simples e flexível pedidos concretos e negociáveis, que tenham em consideração as necessidades dos outros? Quantas vezes nos sentimos impotentes e revoltados precisamente com a nossa impotência face à ira, à tristeza, à nostalgia que nos invade e nos envenena sem que possamos reagir? Ao mal-estar e ao sentimento de ira, de tristeza ou de nostalgia, vem então acrescentar-se o desconforto da impotência: «Não só estou infeliz ou zangado, mas ainda por cima não sei o que hei-de fazer para sair desta situação.» Então, muitas vezes, para «sair dessa situação», não temos outra solução senão voltarmo-nos contra alguém: o pai, a mãe, a escola, os amigos, as amigas, e mais tarde os colegas, os clientes, o trabalho, o Estado, a poluição, a crise. Sem a compreensão nem, por conseguinte, o domínio da nossa vida interior, arranjamos um responsável exterior para servir de bode expiatório do nossos males. «Estou zangado porque tu... Estou triste porque vocês... Estou revoltado porque o mundo...»
Exportamos a nossa dificuldade, descarregamo-la para cima dos outros, sendo incapazes de a resolver sozinhos. A ideia é portanto nomear para poder resolver, e nesse sentido precisamos de desenvolver o nosso vocabulário dos sentimentos e das necessidades até nos sentirmos à vontade com a matéria, dominando-a cada vez melhor. Dominar não é abafar, é disciplinar. O sentimento funciona portanto como o sinal luminoso de um tablier, transmitindo informações sobre a necessidade: um sentimento agradável indica que a necessidade foi preenchida, um sentimento desagradável indica que não foi. É fundamental eu estar a par dessa distinção crucial, para poder identificar aquilo de que preciso. Em vez de me queixar daquilo que já não quero e de muitas vezes transmitir essa informação a uma pessoa incompetente para me ajudar, serei capaz de esclarecer o que realmente quero (a minha necessidade, não a minha carência) e de o dizer à pessoa mais competente para me ajudar, sendo que essa pessoa na maioria das vezes sou eu próprio! O SENTIMENTO FUNCIONA COMO O SINAL LUMINOSO DE UM TABLFER, INDICANDO SE UMA FUNÇÃO INTERIOR ESTÁ A SER DESEMPENHADA OU NÃO.
Eis um exemplo que costumo apresentar em conferências. Estando a andar de carro numa estrada no meio do campo, posso deparar-me com as três situações seguintes: 1. Estou num carro antigo sem tablier, do género Ford modelo T do princípio do século XX. Guio com confiança, consumindo toda a reserva e sem me preocupar com a falta de gasolina (já que nenhum sinal o indica à minha consciência). Mais tarde ou mais cedo vou ficar sem gasolina, perdido no meio do nada. Sem sinal não há tomada de consciência da necessidade, e assim não há poder de acção. 2. A hipótese mais clássica. Estou num carro moderno com um tablier completo. A certa altura, o indicador do nível de gasolina dá sinal de entrada na reserva. Fico logo mal disposto: «Quem é que se esqueceu de meter gasolina? E incrível, calha sempre a mim! Nesta família ninguém é capaz de se lembrar de atestar o depósito.» Queixo-me cada vez mais, de tal forma que nem sequer reparo nas estações de serviço que vou deixando para trás,
até que acabo por ficar sem combustível, perdido no meio do nada. Havia de facto um sinal, tomei consciência da necessidade, mas não levei a cabo nenhuma acção no sentido de resolver a situação. Investi toda a minha energia a queixar-me, tentando encontrar um culpado ou alguém para cima de quem pudesse descarregar a minha frustração. 4. Hipótese para a qual a comunicação não violenta nos convida. Estou mais uma vez num carro moderno com um tablier completo. O indicador do nível de gasolina dá sinal de entrada na reserva. Identifico a minha necessidade: «Olha, vou ter que meter gasolina. Por enquanto não vejo nenhuma estação de serviço. O que é que eu posso fazer?» Inicio então uma acção concreta e positiva. Vou estar atento à próxima estação de serviço que aparecer, vou entrar nessa estação e cuidar da minha necessidade. Dou assistência a mim próprio. Estando consciente da necessidade que nomeei, fico alerta ao surgimento de uma solução. Esta não aparece de imediato mas como tomei consciência da necessidade, as hipóteses de a encontrar são bem maiores do que se não tivesse ocorrido uma tomada de consciência, como no primeiro caso. No entanto, não é por ter dado assistência a mim próprio ao atestar o depósito, que irei renunciar à minha necessidade de consideração ou de respeito. De regresso a casa, vou poder dizer ao meu cônjuge ou aos meus filhos: «Estou zangado porque tive de atestar o depósito depois de vocês terem utilizado o carro (Sentimento). Preciso de consideração pelo tempo que perdi e de respeito por vos ter emprestado o carro (Necessidade). Concordam em meterem vocês gasolina para a próxima (Pedido)?» Estamos muitas vezes, por educação ou por hábito, privados dos nossos sentimentos, mas estamo-lo ainda mais das nossas necessidades.
3. As necessidades
Já bastante privados dos nossos sentimentos, estamo-lo quase completamente das nossas necessidades. Ficamos por vezes com a sensação de que uma placa de betão nos mantém sem possibilidade de acesso às nossas necessidades. Aprendemos muito mais a tentar compreender e satisfazer as necessidades dos outros, do que a escutar as nossas. Escutar-se a si próprio foi durante muito tempo sinónimo de pecado mortal ou, na melhor das hipóteses, de egoísmo ou de egocentrismo: «É mau uma pessoa escutar-se assim. Olha! Esta passa a vida a escutar-se a si própria.» A própria ideia de que uma pessoa possa «ter necessidades» ainda é mal vista hoje em dia. Também é verdade que, muitas vezes, se entende mal a palavra «necessidade». Não estamos a falar de uma vontade momentânea, de um impulso passageiro ou de um desejo caprichoso. Estão em questão as nossas necessidades básicas, aquelas que são essenciais para nos mantermos vivos, aquelas que temos que satisfazer para encontrar um são equilíbrio, aquelas se prendem com os valores humanos mais difundidos: identidade, respeito, compreensão, responsabilidade, liberdade, entreajuda. À medida que vou adquirindo mais experiência nesta prática, cada vez mais reparo como uma melhor compreensão das nossas necessidades possibilita uma melhor compreensão dos nossos valores. Aprofundarei essa questão mais adiante. Uma vez, num workshop que moderei, uma mãe de família contou, cheia de desgosto, que não conseguia compreender os filhos. Vi37
viam sempre em guerra e ela sentia-se estafada por «ter que lhes impor mil coisas que eles pareciam não compreender, ou que lhes davam vontade de fazer exactamente o oposto». Quando lhe perguntei se era capaz de identificar as suas próprias necessidades relativamente a essa situação, ela explodiu literalmente e disse: «—Mas não estamos aqui para cuidar das nossas necessidades! Se toda a gente escutasse as suas próprias necessidades, viveríamos numa guerra interminável! O que nos está a sugerir é extremamente egoísta! — Será que a senhora está zangada (Sentimento) porque desejaria que os seres humanos estivessem atentos aos outros, à escuta uns dos outros (Necessidade) para poderem, em conjunto, encontrar soluções para as suas respectivas necessidades? — Sim. — Será que o seu desejo (Necessidade) é portanto que haja compreensão e harmonia entre os seres humanos? — Sim, claro. — Sabe, custa-me a acreditar que a senhora seja capaz de escutar adequadamente as necessidades dos seus filhos, se não começar por escutar adequadamente as suas próprias necessidades. Custa-me a acreditar que as possa compreender em toda a sua diversidade e com todas as suas contradições, se não levar o tempo necessário para se compreender e amar a si própria na sua multiplicidade e com as contradições que lhe são próprias. Como é que se sente ao ouvir-me dizer estas coisas?» Ficou calada, de lágrimas nos olhos. Depois, foi como se lentamente o seu coração despertasse. O grupo acompanhou-a em silêncio e com profunda empatia. A senhora rendeu-se então à evidência, rindo: «E incrível, estou a tomar consciência de que nunca aprendi a escutar-me a mim própria. E por isso que também não os escuto, só lhes imponho as minhas regras! E óbvio que eles acabam por se revoltar, também eu me revoltava naquela idade!» Será que podemos estar verdadeira e adequadamente à escuta dos outros sem estarmos verdadeira e adequadamente à escuta de nós próprios? Será que podemos estar disponíveis e abertos para com os outros, sem o estarmos para connosco próprios? Será que podemos amar os outros com todas as suas diferenças e contradições, sem primeiro amarmo-nos profundamente com as nossas?
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SE NOS AMPUTAMOS DAS NOSSAS NECESSIDADES ALGUÉM HÁ-DE PAGAR POR ISSO: NÓS PRÓPRIOS, OU OS OUTROS.
Essa amputação das nossas necessidades paga-se de várias maneiras. Eis as consequências mais frequentes. • Temos dificuldades em fazer escolhas que nos comprometam pessoalmente. Nos negócios, no trabalho, tudo bem. Mas na nossa vida afectiva, íntima, nas nossas escolhas mais pessoais, que grande complicação! Não sabemos para onde nos virar, o que escolher, ficando sempre à espera que os acontecimentos ou as pessoas decidam por nós. Ou então, impomos a nós próprios uma escolha (parece mais razoável, mais sensato) por sermos incapazes de escutar e compreender os nosso impulsos mais profundos. • Ficamos viciados no olhar do outro. Sendo incapazes de identificar as nossas verdadeiras necessidades, as que nos pertencem pessoalmente, acabamos muitas vezes por depender das opiniões alheias. «O que é que achas, o que é que farias no meu lugar?» Ou, pior ainda, moldamo-nos segundo as expectativas dos outros, tais como imaginamos que elas possam ser, sem verificar a sua veracidade e fazendo de tudo para nos adaptarmos a elas. «O que é que vão pensar de mim... Tenho mesmo que fazer isto ou aquilo... Tenho que adoptar tal comportamento, senão...» Entregamo-nos sem descanso a esse exercício de dependência do reconhecimento dos outros transformando-nos, em casos extremos, no cata-vento de uma moda, de uma tendência (toda a gente faz isso, por isso faço como toda a gente), no joguete de várias dependências (dinheiro, poder, sexo, televisão, jogo, álcool, medicamentos, drogas, e hoje em dia a internet) ou de instruções formais (submeto-me à autoridade de uma empresa exigente, de um movimento político autoritário ou de uma seita). Tenho conhecido muita gente que sofre consciente ou inconscientemente de dependências reconhecidas como tais. Na minha opinião, a dependência mais frequente e menos reconhecida é aquela que nos prende ao olhar dos outros. Não conhecemos as nossas necessidades: pudera! Não aprendemos a reconhecê-las! Ficamos então à espera que «algo» (as drogas, o álcool, as pessoas) nos dite essas necessidades. Ficamos «desapossados» de nós próprios.
viam sempre em guerra e ela sentia-se estafada por «ter que lhes impor mil coisas que eles pareciam não compreender, ou que lhes davam vontade de fazer exactamente o oposto». Quando lhe perguntei se era capaz de identificar as suas próprias necessidades relativamente a essa situação, ela explodiu literalmente e disse: «—Mas não estamos aqui para cuidar das nossas necessidades! Se toda a gente escutasse as suas próprias necessidades, viveríamos numa guerra interminável! O que nos está a sugerir é extremamente egoísta! — Será que a senhora está zangada (Sentimento) porque desejaria que os seres humanos estivessem atentos aos outros, à escuta uns dos outros (Necessidade) para poderem, em conjunto, encontrar soluções para as suas respectivas necessidades? — Sim. — Será que o seu desejo (Necessidade) é portanto que haja compreensão e harmonia entre os seres humanos? — Sim, claro. — Sabe, custa-me a acreditar que a senhora seja capaz de escutar adequadamente as necessidades dos seus filhos, se não começar por escutar adequadamente as suas próprias necessidades. Custa-me a acreditar que as possa compreender em toda a sua diversidade e com todas as suas contradições, se não levar o tempo necessário para se compreender e amar a si própria na sua multiplicidade e com as contradições que lhe são próprias. Como é que se sente ao ouvir-me dizer estas coisas?» Ficou calada, de lágrimas nos olhos. Depois, foi como se lentamente o seu coração despertasse. O grupo acompanhou-a em silêncio e com profunda empatia. A senhora rendeu-se então à evidência, rindo: «E incrível, estou a tomar consciência de que nunca aprendi a escutar-me a mim própria. E por isso que também não os escuto, só lhes imponho as minhas regras! E óbvio que eles acabam por se revoltar, também eu me revoltava naquela idade!» Será que podemos estar verdadeira e adequadamente à escuta dos outros sem estarmos verdadeira e adequadamente à escuta de nós próprios? Será que podemos estar disponíveis e abertos para com os outros, sem o estarmos para connosco próprios? Será que podemos amar os outros com todas as suas diferenças e contradições, sem primeiro amarmo-nos profundamente com as nossas?
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SE NOS AMPUTAMOS DAS NOSSAS NECESSIDADES ALGUÉM HÁ-DE PAGAR POR ISSO: NÓS PRÓPRIOS, OU OS OUTROS.
Essa amputação das nossas necessidades paga-se de várias maneiras. Eis as consequências mais frequentes. • Temos dificuldades em fazer escolhas que nos comprometam pessoalmente. Nos negócios, no trabalho, tudo bem. Mas na nossa vida afectiva, íntima, nas nossas escolhas mais pessoais, que grande complicação! Não sabemos para onde nos virar, o que escolher, ficando sempre à espera que os acontecimentos ou as pessoas decidam por nós. Ou então, impomos a nós próprios uma escolha (parece mais razoável, mais sensato) por sermos incapazes de escutar e compreender os nosso impulsos mais profundos. • Ficamos viciados no olhar do outro. Sendo incapazes de identificar as nossas verdadeiras necessidades, as que nos pertencem pessoalmente, acabamos muitas vezes por depender das opiniões alheias. «O que é que achas, o que é que farias no meu lugar?» Ou, pior ainda, moldamo-nos segundo as expectativas dos outros, tais como imaginamos que elas possam ser, sem verificar a sua veracidade e fazendo de tudo para nos adaptarmos a elas. «O que é que vão pensar de mim... Tenho mesmo que fazer isto ou aquilo... Tenho que adoptar tal comportamento, senão...» Entregamo-nos sem descanso a esse exercício de dependência do reconhecimento dos outros transformando-nos, em casos extremos, no cata-vento de uma moda, de uma tendência (toda a gente faz isso, por isso faço como toda a gente), no joguete de várias dependências (dinheiro, poder, sexo, televisão, jogo, álcool, medicamentos, drogas, e hoje em dia a internet) ou de instruções formais (submeto-me à autoridade de uma empresa exigente, de um movimento político autoritário ou de uma seita). Tenho conhecido muita gente que sofre consciente ou inconscientemente de dependências reconhecidas como tais. Na minha opinião, a dependência mais frequente e menos reconhecida é aquela que nos prende ao olhar dos outros. Não conhecemos as nossas necessidades: pudera! Não aprendemos a reconhecê-las! Ficamos então à espera que «algo» (as drogas, o álcool, as pessoas) nos dite essas necessidades. Ficamos «desapossados» de nós próprios. 39
• Depois de termos aprendido a satisfazer as necessidades dos outros, a ser um bom filho (ou boa filha) bem educado, amável e cortês, a ser «bom rapaz», segundo a expressão de Guy Corneau , sempre à escuta de todos menos de si próprio, se certo dia reparamos, algo indistintamente, que as nossas necessidades não estão satisfeitas, então terá de haver um culpado, alguém que não cuidou de nós. Entramos no processo de violência por agressão ou projecção que referi anteriormente, um processo que se define essencialmente pela crítica, pelo juízo, pelo insulto e pela censura. «Estou infeliz porque os meus pais... Estou triste porque o meu cônjuge... Estou desanimado porque o meu patrão... Estou deprimido porque a crise, a poluição...» • O mais frequente é sentirmo-nos tão dependentes das necessidades dos outros ou termos tanto medo de não conseguirmos fazer valer as nossas próprias necessidades, que acabamos por impô-las de um modo autoritário e sem apelo. «Comigo, é assim que as coisas funcionam! Vais-me arrumar esse quarto, e já!» Entra-se então num processo de violência por autoridade. • Estamos fartos de tentar fazer valer as nossas necessidades sem o mínimo sucesso, até que desistimos. «Estou a sufocar! Desisto de mim próprio. Fecho-me ou fujo.» Neste caso, exercemos a violência sobre nós próprios. Pois, dirá o leitor, mas de que serve conhecermos as nossas necessidades se é para vivermos numa constante frustração? Estarão certamente a pensar em certas pessoas que conseguiram identificar a sua necessidade de pertencer a algo ou de serem reconhecidas, e que passam a vida em busca dessa sensação de pertença ou de reconhecimento, sempre de um lado para o outro, de reuniões para vernissages, clubes de desporto ou acções de solidariedade, insaciavelmente. Ou noutras que estão loucas para ocuparem o seu lugar, para encontrarem a sua identidade e a sua solidez interior, e que fazem tudo ao mesmo tempo, correndo entre workshops e terapias, sem nunca encontrarem a tranquilidade. Veremos no próximo capítulo como o simples facto de se identificar a necessidade, sem necessariamente satisfazê-la, já traz um alívio e um bem-estar surpreendentes. Quando sofremos, o primeiro dos sofrimentos é não sabermos porque sofremos. Se formos capazes de identificar a causa interior do nosso mal-estar, sairemos da confu-
são. Do mesmo modo, se uma pessoa não se sente bem fisicamente, se sente dores suspeitas na barriga, na cabeça ou nas costas, entra em pânico: «O que é que se passa? Pode ser um cancro, um tumor...» Se for ao médico e ele identificar a causa, afirmando que é uma indigestão ou um mau jeito nas costas, a pessoa não deixa de sentir dores. Mas fica mais descansada por saber o que se passa, saindo da confusão. Com a necessidade acontece o mesmo: a identificação faz com que se saia da confusão, que só aumenta o mal-estar. Por outro lado, e é sobretudo aí que reside o interesse de identificarmos a necessidade, enquanto não conhecermos a nossa necessidade, não saberemos como satisfazê-la. Ficamos à espera que os outros (pais, cônjuge, filho) venham espontaneamente satisfazer as nossas necessidades adivinhando o que nos poderia agradar, quando nem sequer nós próprios somos capazes de nomear essas necessidades. Eis dois exemplos de casais que vieram à consulta por terem problemas de relacionamento. Nota prévia sobre os exemplos citados 1. Os exemplos reais mencionados neste livro foram voluntariamente abreviados para evitar que o relato das conversas se tornasse demasiado comprido e detalhado. Tentei conservar o essencial de cada interacção, mas a maioria das conversas foi naturalmente bem mais demorada em relação ao que aqui aparece. O tempo dedicado aos silêncios e à interioridade não aparece no texto, apesar de constituir uma dimensão fundamental do trabalho. 2. O tom ou o vocabulário pode parecer ingénuo. Eu utilizo-o voluntariamente nas minhas consultas para poder ir directamente ao essencial, evitando o mais possível considerações mentais ou qualquer tipo de compreensão intelectual dos problemas em causa que possa confundir a escuta e o despertar interior. Num clima de escuta e de profundo respeito mútuo, são muitas vezes as palavras e o tom mais simples que agem com a maior precisão. Tenho verificado que a simplicidade facilita a acuidade da consciência pois a atenção, não sendo praticamente solicitada pela compreensão intelectual, fica inteiramente disponível para o conhecimento emocional.
• Depois de termos aprendido a satisfazer as necessidades dos outros, a ser um bom filho (ou boa filha) bem educado, amável e cortês, a ser «bom rapaz», segundo a expressão de Guy Corneau(II), sempre à escuta de todos menos de si próprio, se certo dia reparamos, algo indistintamente, que as nossas necessidades não estão satisfeitas, então terá de haver um culpado, alguém que não cuidou de nós. Entramos no processo de violência por agressão ou projecção que referi anteriormente, um processo que se define essencialmente pela crítica, pelo juízo, pelo insulto e pela censura. «Estou infeliz porque os meus pais... Estou triste porque o meu cônjuge... Estou desanimado porque o meu patrão... Estou deprimido porque a crise, a poluição...» • O mais frequente é sentirmo-nos tão dependentes das necessidades dos outros ou termos tanto medo de não conseguirmos fazer valer as nossas próprias necessidades, que acabamos por impô-las de um modo autoritário e sem apelo. «Comigo, é assim que as coisas funcionam! Vais-me arrumar esse quarto, e já!» Entra-se então num processo de violência por autoridade. • Estamos fartos de tentar fazer valer as nossas necessidades sem o mínimo sucesso, até que desistimos. «Estou a sufocar! Desisto de mim próprio. Fecho-me ou fujo.» Neste caso, exercemos a violência sobre nós próprios. Pois, dirá o leitor, mas de que serve conhecermos as nossas necessidades se é para vivermos numa constante frustração? Estarão certamente a pensar em certas pessoas que conseguiram identificar a sua necessidade de pertencer a algo ou de serem reconhecidas, e que passam a vida em busca dessa sensação de pertença ou de reconhecimento, sempre de um lado para o outro, de reuniões para vernissages, clubes de desporto ou acções de solidariedade, insaciavelmente. Ou noutras que estão loucas para ocuparem o seu lugar, para encontrarem a sua identidade e a sua solidez interior, e que fazem tudo ao mesmo tempo, correndo entre workshops e terapias, sem nunca encontrarem a tranquilidade. Veremos no próximo capítulo como o simples facto de se identificar a necessidade, sem necessariamente satisfazê-la, já traz um alívio e um bem-estar surpreendentes. Quando sofremos, o primeiro dos sofrimentos é não sabermos porque sofremos. Se formos capazes de identificar a causa interior do nosso mal-estar, sairemos da confu-
são. Do mesmo modo, se uma pessoa não se sente bem fisicamente, se sente dores suspeitas na barriga, na cabeça ou nas costas, entra em pânico: «O que é que se passa? Pode ser um cancro, um tumor...» Se for ao médico e ele identificar a causa, afirmando que é uma indigestão ou um mau jeito nas costas, a pessoa não deixa de sentir dores. Mas fica mais descansada por saber o que se passa, saindo da confusão. Com a necessidade acontece o mesmo: a identificação faz com que se saia da confusão, que só aumenta o mal-estar. Por outro lado, e é sobretudo aí que reside o interesse de identificarmos a necessidade, enquanto não conhecermos a nossa necessidade, não saberemos como satisfazê-la. Ficamos à espera que os outros (pais, cônjuge, filho) venham espontaneamente satisfazer as nossas necessidades adivinhando o que nos poderia agradar, quando nem sequer nós próprios somos capazes de nomear essas necessidades. Eis dois exemplos de casais que vieram à consulta por terem problemas de relacionamento. Nota prévia sobre os exemplos citados 1. Os exemplos reais mencionados neste livro foram voluntariamente abreviados para evitar que o relato das conversas se tornasse demasiado comprido e detalhado. Tentei conservar o essencial de cada interacção, mas a maioria das conversas foi naturalmente bem mais demorada em relação ao que aqui aparece. O tempo dedicado aos silêncios e à interioridade não aparece no texto, apesar de constituir uma dimensão fundamental do trabalho. 2. O tom ou o vocabulário pode parecer ingénuo. Eu utilizo-o voluntariamente nas minhas consultas para poder ir directamente ao essencial, evitando o mais possível considerações mentais ou qualquer tipo de compreensão intelectual dos problemas em causa que possa confundir a escuta e o despertar interior. Num clima de escuta e de profundo respeito mútuo, são muitas vezes as palavras e o tom mais simples que agem com a maior precisão. Tenho verificado que a simplicidade facilita a acuidade da consciência pois a atenção, não sendo praticamente solicitada pela compreensão intelectual, fica inteiramente disponível para o conhecimento emocional. 41
3. Os nomes das pessoas foram alterados e os papéis estão por vezes invertidos, para respeitar a confidencialidade das situações. No primeiro exemplo, uma senhora queixa-se da incompreensão do marido. «— Ele não compreende as minhas necessidades. — Pode indicar-me, pergunto então, uma necessidade sua que gostaria que ele compreendesse? — Ora essa! Ele é meu marido ou não é? Ele é que tem que compreender as minhas necessidades! — Quer dizer com isso que está à espera que ele adivinhe as suas necessidades, quando até a senhora tem dificuldades em defini-las. — Exactamente. — E dedica-se a este jogo de adivinhas há muito tempo? — Estamos casados há trinta anos. — Deve sentir-se estafada. (Desfaz-se em lágrimas) — Pois estou! Estou exausta. — Sente-se exausta porque precisa da compreensão e do apoio dele, e já espera por isso há muito tempo. — É isso mesmo. — Pois bem, receio que a senhora tenha que esperar ainda muito mais tempo se não tentar, por si própria, clarificar as suas necessidades e exprimi-las ao seu marido.» Após um longo silêncio, diz, por entre lágrimas: «Tem razão, eu é que estou confusa. Sabe, na minha família, ninguém tinha o direito de ter necessidades. De maneira que não conheço as minhas necessidades, daí que censure o meu marido por interpretá-las sempre mal, sem que eu própria lhe consiga indicar o que realmente quero. Isto acontece quando no fundo estou convencida que ele faz o melhor que pode... E como é evidente, ele acaba sempre por se zangar, e eu por amuar. É infernal!» Com esse casal, iniciou-se um longo trabalho de compreensão e de clarificação das necessidades de cada um. Para uma pessoa que sempre esperou que os outros cuidassem dela sem que ela olhasse por si, o processo pode ser doloroso. No entanto é só através desse trabalho sobre a relação consigo próprio que a relação com o outro poderá melhorar. No segundo exemplo, quem se queixa é o marido.
«— A minha mulher não me reconhece minimamente! — O senhor está zangado porque precisa que ela o reconheça. — Exactamente. — Pode indicar-me o que gostaria que ela dissesse ou fizesse, que lhe mostrasse reconhecê-lo, conforme é seu desejo? — Não sei. — Pois, o problema é que ela também não! Repare: o senhor está desesperadamente à espera, ao que parece, que ela lhe dê um sinal de que o reconhece, só que não lhe indica como é que, concretamente, encara esse sinal. Para a sua mulher, deve ser muito cansativo sentir que existe um pedido de reconhecimento da sua parte, que ela vê como insaciável, e face ao qual se sente impotente. Deixe-me adivinhar: quanto mais o senhor lhe pede que o reconheça sem lhe indicar como fazer, mais ela foge. — É exactamente isso! — Então suponho que o senhor esteja cansado dessa busca sem fim. — Exausto. — Exausto porque precisa de partilhar emoções com a sua mulher e de se sentir mais próximo dela. — Sim. — Então sugiro-lhe que lhe mostre como, e em quê, gostaria concretamente de ser reconhecido.» Com esse casal, não se trabalhou a questão da necessidade mas sim a do pedido concreto. Esse homem sentia-se magoado por não receber a aprovação e o reconhecimento que esperava depois de se ter esforçado, ao longo de muitos anos, para garantir a estabilidade financeira do lar, ainda por cima estando sobrecarregado por penosas circunstâncias materiais e profissionais. Ele mantinha-se numa atitude de queixa em relação à mulher: «Não tens a noção dos esforços que fiz, não fazes ideia do quanto isso me custou.» Após cada reprimenda ela isolava-se, incapaz de o compreender na sua imensa amargura. Até que lhe propus o seguinte: «— O senhor gostaria de saber se a sua mulher faz ideia do esforço que fez, e se aprecia o seu profundo empenho? — Sim, é exactamente isso que eu gostaria de lhe perguntar. — A senhora ouviu que o seu marido precisa de ser reconhecido pelo esforço que fez. Mais concretamente, ele gostaria de saber se a senhora tem a noção desse esforço, e se o aprecia. — Claro que tenho a noção, claro que o aprecio. Já nem sei como lho hei de dizer, tenho medo que ele não oiça e é verdade que, com
o passar do tempo, acabei por deixar de lhe responder ou por fugir ao assunto, mudando de conversa. — Quer dizer que a senhora, por seu lado, gostaria que ele pudesse não só compreender que tem a noção, mas que ainda para mais se sente tocada por esse esforço. — Sim, claro! Muito tocada, comovida até. Mas ele está tão magoado que já nem repara nos meus sinais de reconhecimento. — Como é que o senhor se sente ao ouvir que a sua mulher se sente tocada, comovida até, com todo o seu esforço? — Também fico muito comovido, e aliviado. Tomo consciência de que tenho andado tão obcecado em queixar-me e em achar que não estou a ser reconhecido como queria, que deixei de reparar nos sinais de reconhecimento que no fundo ela sempre me mostrou. Fechei-me numa gaiola.» Essa tomada de consciência aliviou o casal de um peso que tinha anestesiado a sua relação. Este último exemplo permite esclarecer dois pontos.
exemplo, necessidade de reconhecimento: «Concordas em dizer-me se estás ou não ciente dos esforços que fiz ao longo de trinta anos?» - necessidade de intimidade ou de ternura: «Concordas em abraçar-me durante dez minutos e embalar-me suavemente?»), acabará muitas vezes por surgir como uma ameaça. O outro fica a pensar se conseguirá sobreviver a tanta expectativa, se continuará a ser ele próprio, se conservará a sua identidade sem ser «sugado» pelo outro. Recorde-se que somos vítimas frequentes do pensamento binário. Não sabendo como escutar a necessidade do outro sem deixar de escutar a nossa, nem como escutar a nossa necessidade sem deixar de escutar a do outro, é frequente interrompermos a relação, suspendermos a escuta do outro, para nossa protecção.
• Enquanto não indicarmos ao outro como é que desejamos ver concretamente a nossa necessidade satisfeita, arriscamo-nos a esmagá-lo com uma necessidade insaciável. E como se o fizéssemos carregar com toda a responsabilidade dessa necessidade. Face a tal ameaça, o outro entra em pânico e pensa: «Não posso responder sozinho a essa enorme necessidade (de amor, de reconhecimento, de escuta, de apoio, etc), logo fujo ou isolo-me (no silêncio ou no amuo).» É o que Guy Corneau descreve tão bem com a frase: «Persegues-me e eu fujo de ti, foges de mim e eu persigo-te .» O marido, desesperadamente, quer ser reconhecido. A mulher tenta desesperadamente esquivar-se ao pedido. E quanto mais ela se esquiva, mais ele insiste. Isso também acontece, claro, no outro sentido. Por exemplo, a mulher pede ternura e amizade de forma desesperada. O marido entra em pânico face a tanta expectativa e tenta fugir refugiando-se no trabalho, no desporto, nas suas papeladas. Quanto mais ele tenta fugir, mais ela pede. Quanto mais ela pede, mais ele tenta fugir. E tudo isso por ele recear ter que satisfazer uma necessidade de amor insatisfeita desde a infância. É muito para um só homem.
Ao indicar ao outro qual é o nosso pedido concreto (por exemplo: «Concordas em abraçar-me e embalar-me durante dez minutos?»), tornamos a necessidade menos ameaçadora para o outro (preciso de amor, de ternura, de intimidade, socorro!) porque a «encarnamos» no real, no dia a dia. Deixa de ser uma necessidade virtual e aparentemente insaciável, por conseguinte ameaçadora. Passa a ser um pedido concreto, bem definido no espaço e no tempo e relativamente ao qual nos podemos situar, isto é, adoptar uma atitude. Outra questão que o exemplo acima relatado vem esclarecer: enquanto estivermos obcecados com a ideia de que a nossa necessidade não está a ser reconhecida, não estaremos disponíveis para admitir o contrário. A mulher tinha-se esforçado por mostrar reconhecimento ao marido. Só que ele estava tão absorvido no seu sentimento de incompreensão que já não ouvia rigorosamente nada. E um fenómeno comum. De tanto repisar a sensação de incompreensão ou de falta de reconhecimento, de tanto repisar a impressão de se estar a ser vítima de uma injustiça ou de uma rejeição, acabamos por forjar uma nova identidade. «Eu sou aquele (ou aquela) que não é compreendido, que não é reconhecido, aquele (ou aquela) que é vítima de injustiças ou de rejeição.» Instalamo-nos de tal modo nessa crença que por muito que as
Moral da história: se a necessidade não se concretizar através de um pedido específico, identificável no espaço e no tempo (por
QUANDO A ESCUTA DA NECI SSIDADE DO OUTRO SURGE COMO UMA AMEAÇA, DESUGO-ME DELA E FUJO, OU FECHO-ME NO SILÊNCIO.
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pessoas à nossa volta nos enviem sinais de aceitação, de compreensão, de integração, não ouvimos nem vemos nada. Voltarei a essa questão no capítulo III. Torna-se então necessário trabalhar as necessidades fundamentais, perguntando-nos a nós próprios o seguinte: • Será que sou capaz de oferecer a mim próprio a estima, o reconhecimento, a aceitação e a compreensão que espero desesperadamente que os outros me ofereçam? • Será que sou capaz de eu próprio começar a preencher essas necessidades, em vez de ficar na dependência do olhar e da aprovação dos outros? E sobretudo... • Será que sou capaz de viver a minha identidade sem ser com uma atitude de queixa e de revolta? • Será que sou capaz de me sentir seguro sem ter que me apoiar em alguma coisa ou alguém, sem ter que me justificar ou entrar em conflito? • Será que sou capaz de sentir a minha segurança interior, a minha força interior, recorrendo unicamente a mim próprio e não às relações de poder ou de tensão? Estando a nossa necessidade identificada, poderemos formular um pedido concreto e negociável no sentido da sua satisfação.
4. O pedido
Ao formular um pedido, isto é, uma proposta de acção concreta e negociável, libertamo-nos da terceira placa de betão que nos retém e nos impede de empreender qualquer tentativa de satisfação da necessidade. Ao formular um pedido concreto, ultrapassamos a expectativa, muitas vezes desesperada, de que o outro compreenda a nossa necessidade e aceite satisfazê-la - expectativa que pode durar uma eternidade e revelar-se extremamente frustrante. Encarregamo-nos da gestão da nossa necessidade, e assim da responsabilidade da sua satisfação. No entanto, enganamo-nos muitas vezes a nós próprios ao confundirmos os nossos pedidos com necessidades fundamentais. O exemplo seguinte ilustra bem a diferença entre uma necessidade básica, que nos pertence em qualquer circunstância, e um pedido concreto que, por seu lado, é extremamente variável consoante as circunstâncias. O exemplo de Thierry e Andrée Durante um workshop, toquei certo dia na questão das necessidades salientando que, a meu ver, todos os seres humanos sentem fundamentalmente as mesmas necessidades. Com certeza não as exprimem todos da mesma maneira, nem as vivem do mesmo modo ao 47
mesmo tempo, sendo precisamente essa a causa dos desentendimentos conjugais, domésticos ou escolares, e não só dessas pequenas guerras do dia a dia mas também das guerras com mísseis e metralhadoras. Até ao dia de hoje, a montante de todos os comportamentos que tive a oportunidade de observar, inclusive os mais assustadores ou revoltantes, sempre identifiquei necessidades comuns a toda a humanidade. Esta é, naturalmente, a minha hipótese de trabalho, fundamentalmente baseada na minha própria experiência. Não pretendo de modo algum emitir uma verdade. Um participante chamado Thierry interrompeu-me, dizendo: «Não estou nada de acordo consigo. A minha mulher e eu não sentimos as mesmas necessidades e isso gera tensões tão grandes que estamos à beira do divórcio. Viemos juntos a este workshop para ficarmos de consciência limpa, para podermos dizer que tentámos tudo mas, se quer que lhe diga, não estamos nada convencidos com isto. Sobretudo ao ouvi-lo decretar, logo de entrada, que os seres humanos sentem todos fundamentalmente as mesmas necessidades.» Sugeri que me indicasse uma situação concreta em que teve a impressão de não sentir as mesmas necessidades que a mulher. Eis o que ele respondeu. «— Bem, isto foi há uns meses atrás, tivemos uma discussão horrível. Convém dizer que tanto eu como ela trabalhamos e que temos três filhos. Certo fim-de-semana, as crianças ficaram a dormir em casa dos primos. Cheguei a casa na sexta-feira à noite depois de um dia de trabalho e pfff... (longo suspiro), tinha mesmo necessidade de ir jantar fora com a minha mulher. Mas ela não, nada disso! Tinha necessidade de ficar em casa a ver um filme. Então eu disse-lhe que ela nunca percebia nada das minhas necessidades, e ela respondeu-me exactamente a mesma coisa. Zangámo-nos e acabei por dormir no quarto dos miúdos. Desde então, temos sempre essa sensação de não partilhar as mesmas necessidades. — Quando chegou a casa, nessa noite, o que é que estava a sentir? — Pfff... (novo suspiro), estava mesmo cansado. — Pelos vistos era um sentimento desagradável, indicando a existência de uma necessidade não satisfeita. Pode dizer-nos qual era essa necessidade? — Fácil: era uma necessidade de descanso, claro. Por isso é que me lembrei de ir jantar fora. Escusávamos de fazer o jantar, lavar loiça, etc! — Portanto, o seu sentimento de cansaço indicava uma necessi-
dade de descanso, de descontracção. Não deixei de observar o seu suspiro, ao referir esse cansaço: deu um enorme suspiro por duas vezes. Parece-me que isso traduz outro sentimento ainda. O que é que o suspiro traduz? Que outro sentimento possuía então?» Thierry parou pouco para pensar. «— Bem, acho que para além do cansaço da semana, era sexta-feira, eu já andava a correr de um lado para o outro desde segunda-feira, para além disso havia um cansaço mais antigo, porque faz meses, anos até, que andamos a correr de um lado para o outro, trabalho, miúdos, casa, e no fundo já não estamos um com o outro. — Um sentimento de prostração, de saturação? — Sim, prostração, uma profunda prostração. — Qual é a necessidade não satisfeita indicada por esse sentimento desagradável?» Mais uma vez, Thierry escutou-se interiormente. «Acho que o disse agora mesmo: a minha mulher e eu deixámos de estar um com o outro. Preciso de tempo para estar com ela, preciso de a reencontrar e de partilhar momentos de intimidade.» No preciso momento em que Thierry exprimia as suas necessidades, a sua mulher Andrée, sentada não muito longe dele no círculo, desfez-se em lágrimas e disse: «É incrível, eu estava a sentir exactamente a mesma necessidade! Tinha ido comprar um jantarzinho já cozinhado e aquele vinho de que gostamos tanto, tinha passado pelo clube de vídeo para alugar a cassete de um filme que não tínhamos tido tempo de ir ver ao cinema e, já que os miúdos não estavam, quis preparar um serão especial para podermos namorar. Precisamente para nos reencontrarmos num momento de intimidade!» Então o que terá acontecido? O que é que faz com que os membros de um casal com a sorte de sentir a mesma necessidade ao mesmo tempo entrem em guerra? O que aconteceu, foi que ambos confundiram os respectivos pedidos com necessidades fundamentais de que não quiseram abdicar. O marido tomou o seu pedido de ir jantar fora como se fosse uma necessidade básica, que a mulher não escutou. A mulher tomou o seu pedido de ficar em casa como uma necessidade básica que o marido não entendeu! Nenhum quis arredar pé, fecharam-se os dois inconscientemente nas suas gaiolas! E não foi tanto a mulher que não escutou o marido: foi mais o marido que não se escutou a si próprio antes de falar. Nem foi tanto o marido que não entendeu a mulher, foi mais a mulher que não levou o tempo necessário para compreender-se a si própria antes de falar.
Então sugeri que interpretassem novamente a cena, já que Thierry e Andrée tinham adquirido alguma prática ao tomarem consciência de que na origem dos seus respectivos pedidos, das vontades específicas do momento, existe sempre uma necessidade básica. Se escutarmos e compreendermos essa necessidade básica, ganhamos a liberdade de formular vários pedidos, de explorar várias vontades, evitando a armadilha para a qual nos arrasta essa confusão entre Necessidade e Pedido. Para facilitar a compreensão dos exemplos, passo a indicar entre parêntesis os elementos do processo: Observação (O), Sentimento (S), Necessidade (N), Pedido (P). «— Querida, começou então Thierry, hoje à noite estou cansado (S), preciso de estar sem fazer rigorosamente nada, nem sequer tenho paciência para cozinhar (N) e queria saber se te está a apetecer ir jantar fora (P). — Eu também estou estafada, querido. Fico feliz (S) por ver que estamos a sentir a mesma necessidade de não fazer nada (N). Mas ao mesmo tempo estou triste (S) por termos andado tão ocupados nos últimos tempos. Preciso de passar tempo contigo com calma, preciso de estar mesmo a sós contigo (N), e receio que (S) indo jantar fora, sejamos incomodados pelo empregado ou distraídos por amigos. Por isso preferia ficar sossegada em casa. A refeição está pronta, é só jantarmos os dois e depois, se te apetecer, aluguei a cassete daquele filme que não deu para irmos ver ao cinema (P). — Estás a fazer-me tomar consciência de que sinto exactamente a mesma necessidade: voltar a ter um pouco de intimidade contigo passando um serão juntos. Foi por isso que me lembrei de ir jantar fora. Ao mesmo tempo, ao ouvir a tua proposta de ficarmos em casa, fico um pouco desiludido (S) porque também sinto necessidade de mudar de ares, de estar um pouco fora de casa já que os miúdos não estão (N). E agora que já dominámos todos os parâmetros da questão (à qual anteriormente chamaríamos conflito), isto é: necessidade de sossego, de estarmos novamente juntos e de mudar de ares, que solução, que acção concreta iremos encontrar para preencher todas essas necessidades?« Em pleno zvorkshop, depois de terem repetido a cena e descodificado o seu próprio diálogo, Andrée e Thierry acabaram por perceber que o que mais lhes teria dado prazer nessa noite, era terem ido passear até ao lago que fica perto de casa deles, com uma merenda de piquenique e uma boa garrafa de vinho branco. Antigamente costu-
mavam dar esse passeio, quando eram namorados. Depois deixaram-se apanhar pela correria da vida activa e nunca mais se lembraram disso. Acontece que a ideia do passeio teria sido a melhor solução para ambos preencherem as respectivas necessidades de reencontro, sossego e mudança de ares! Este exemplo vem esclarecer principalmente quatro pontos. 1. Enganamo-nos a nós próprios e acabamos por enganar o outro sempre que não temos o cuidado de distinguir a nossa verdadeira necessidade do nosso pedido. Recuando à origem do pedido para identificar a necessidade, ganhamos liberdade. Podemos por exemplo verificar que existem variadíssimas maneiras de alimentarmos a nossa necessidade de intimidade e de reencontro com o cônjuge, ou a nossa necessidade de descanso (restaurante, passeio, vídeo, cinema). Libertamo-nos assim da ideia de que só existe uma solução. 2. Ao exprimirmos as nossas verdadeiras necessidades em vez de lutarmos pelos nossos pedidos, não só evitamos enganar-nos a nós próprios e ao outro como promovemos um espaço de reencontro e de criatividadel Andrée e Thierry, estafados pelo ritmo das suas vidas, não levaram o tempo necessário para se reencontrarem e serem criativos na programação de um serão verdadeiramente satisfatório. A solução por fim encontrada, depois de exprimirem as suas respectivas necessidades, revelou-se bem mais original e satisfatória do que todas as soluções anteriores, sugeridas à pressa. 3. Nesse âmbito, é útil verificarmos que muitas vezes optamos por uma solução do tipo «quanto mais depressa, pior». Trabalhei muito tempo como consultor jurídico para uma firma americana em que se usava a expressão quick and dirty<4> para designar a ideia de solução rápida, formulada em condições de urgência, quando não há tempo para encontrar outras mais adequadas. Da mesma maneira, ao voltar cansado do trabalho, Thierry decide «a correr» que vai levar a mulher a jantar fora e Andrée, chegando a casa já sem forças, precipita-se para comprar um jantar já cozinhado e alugar uma cassete. Ambas as iniciativas não deixam naturalmente de ter o seu valor. No entanto, nem o marido nem a mulher chegaram a parar para pensar: «No fundo, como é que eu me sinto esta noite, e o que é que realmente seria melhor para mim?« É uma das consequências da nossa educação: tentar resolver mentalmente e resolver depressa! Exercitar a nossa inteligência,
a nossa capacidade de desempenho, obter um resultado imediato, passar o mais depressa possível da observação do problema à solução do mesmo sem parar para escutar as verdadeiras implicações da questão. Há uns tempos atrás, estava eu em casa a tirar a loiça da máquina e a arrumar os talheres na gaveta da cozinha. Quando quis fechar a gaveta, esta emperrou a meio. Pum! Com um valente golpe de ancas tentei fechá-la brutalmente mas ela não deixou, e dei comigo com a anca dorida, com o canto da gaveta estragado e um pobre garfo todo torto! Quick and dirtyl Fiquei espantado. Seria possível estar a invadir-me o velho hábito de «forçar para resolver»? E eu convencido que já me tinha razoavelmente desfeito da minha própria violência. Pelos vistos ainda tinha muito caminho a percorrer em matéria de acolhimento e de escuta. Observar que a gaveta estava emperrada, removê-la, inclinar-me, tentar perceber o que é que a estava a travá-la, pedir ao garfo espetado que se fosse deitar para junto dos irmãos, voltar simplesmente a fechar a gaveta... Obrigado, ó garfo, por me ensinares a escutar e a acolher antes de procurar uma solução! Desde então, passei a acreditar cada vez mais firmemente que a violência é um hábito, um velho reflexo que poderemos vencer se realmente for esse o nosso desejo. Falarei mais especificamente sobre este assunto no último capítulo. 4. Os nossos mal-entendidos são no fundo «mal-escutados», resultando de uma «má expressão», de uma «má comunicação», e de factos silenciados. Apesar disso, podemos aprender a falar com sensibilidade, força e verdade. Comentários 1. Também é possível chegarmos à conclusão de que não sentimos as mesmas necessidades ao mesmo tempo. Thierry e Andrée eram cônjuges com a sorte de sentir a mesma necessidade ao mesmo tempo, o que obviamente facilitou a negociação dos pedidos e a adopção de uma solução comum satisfatória. Tendo esclarecido o mal-entendido de um modo que acabou por diverti-los, aprofundaram o trabalho de formação e reencontraram o prazer de estarem juntos na sua vida conjugal. Mas nem todos os desentendimentos são vividos assim! Posso
inclusivamente citar o exemplo de cônjuges que chegaram a atirar pratos à cara um do outro antes de empreenderem uma formação. Após algum tempo de prática, marido e mulher aprenderam a escutar-se um ao outro, e chegaram mesmo a combinar que na sala de estar passaria a haver dois «sofás da não violência». Quando rebentava uma discussão em casa, gritavam um ao outro «Alto! Todos para os sofás!», como nas brincadeiras de crianças, para poderem encontrar-se numa zona de comunicação não violenta com o lema: «neste espaço, as pessoas exprimem-se e escutam-se à vez». Passado algum tempo, chegaram à conclusão que decididamente não partilhavam o mesmo ritmo, que as suas respectivas necessidades eram provavelmente as mesmas mas que nunca as sentiam na mesma altura, o que tornava a sua vida comum insuportável. Decidiram separar-se e ir de braço dado à conservatória e ao juiz, como dois bons amigos que gostam um do outro e se respeitam mutuamente. Disseram-me um dia que costumavam estar juntos uma noite por semana no mínimo, e que estavam finalmente a desfrutar a amizade, a confiança e a transparência com que sempre tinham sonhado, mas que fora impossível alcançar debaixo do mesmo tecto. É muitas vezes difícil chegarmos calmamente à conclusão de que não estamos de acordo, num ambiente de estima e de cordialidade. A diferença e o consequente desacordo são frequentemente encarados como uma ameaça. 2. Observar a linguagem não verbal (a propósito do suspiro de Thierry no exemplo). Orgulhamo-nos muitas vezes, e com razão, da grande riqueza da nossa língua francesa. Contudo, ela constitui uma ínfima porção da linguagem que utilizamos. A linguagem não verbal representa, segundo os especialistas na matéria, cerca de noventa por cento da nossa comunicação, sobrando unicamente dez por cento para a linguagem verbal! Tomar consciência disso permite-nos dar mais atenção à nossa própria linguagem do corpo (o tom da voz, o débito da elocução, a expressão facial, a atitude corporal) assim como à linguagem do corpo dos outros. Para termos essa noção, bastar pensarmos no alcance, no impacto de um simples olhar de reprovação ou de aprovação de alguém mais chegado (parente, cônjuge, filho, superior hierárquico, professor)! No liceu, eu tinha um professor de Latim e de Francês muito 53
apreciado pela turma inteira, em especial pelo seu sentido de humor e pela eloquência que demonstrava. Sempre que nos avisava, uma vez por mês, que iria chegar dez minutos atrasado à primeira hora da tarde porque tinha uma reunião, costumava dizer com um ar cúmplice: «E quando eu voltar, espero bem não ouvir nada!» Adorávamos este seu trocadilho, que ajudava a despertar a nossa jovem massa cinzenta para o prazer das subtilezas da língua. Ao regressar da reunião - todos respeitávamos o seu pedido, por amor e respeito ao professor - ele entrava pelo fundo da sala e caminhava em direcção ao quadro sem proferir uma única palavra, olhando para nós com um ar de aprovação, com uma mão atrás da orelha para confirmar que não se ouvia barulho nenhum e a outra, de polegar e indicador juntos, indicando que estava a apreciar a qualidade do silêncio que tínhamos respeitado. Mal chegava à secretária, começava a aula. Não era preciso mais nenhum sinal de reconhecimento pelo nosso esforço. Esse pequeno ritual divertia-me bastante, mas o que mais me espantava era a força e a sobriedade daquela simples presença, despida de palavras.
CA P I TU LO 2
TOMAR CONSCIÊNCIA DO QUE REALMENTE VIVEMOS
1. Estafar-se afazer tudo como deve ser Não gosto daqueles que se acham merecedores por terem trabalhado penosamente. Pois se a tarefa era penosa, melhor seria que tivessem feito outra coisa. A alegria que o trabalho nos dá é sinal da apropriação do mesmo, e a sinceridade do meu prazer,Nathanaèl, épara mim o mais importante dos guias. ANDRÉ GIDE
Um homem chegou ao workshop e apresentou-se com estas palavras: «— Eu cá não tenho sentimentos, e muito menos necessidades. A minha mulher tem sentimentos e necessidades, os meus filhos também, o meu patrão também, mas eu nada. Deveres, isso sim, as obrigações conheço-as eu muito bem.» — E o que sente ao verificar isso? — Fico triste... — Está a ver, afinal sempre é capaz de reconhecer um sentimento: a tristeza. — Pois é! — E porque é que fica triste? — Porque gostaria de poder partilhar esse modo de vida, parece tudo tão mais vivo. — Está a ver, também é capaz de identificar necessidades fundamentais: a necessidade de partilhar e a necessidade de se sentir mais vivo. 55
— Tem razão, disse com lágrimas nos olhos, disseram-me tantas vezes que um homem não chora, que uma pessoa tem que abafar os sentimentos e cumprir o seu dever, que eu não era sequer capaz de me permitir pensar que realmente posso desejar algo, sentir uma vontade própria.» Mesmo que muitas vezes não estejamos cientes disso, não estamos de modo algum desprovidos de sentimentos. Mesmo que acreditemos que se vive exclusivamente para escutar os sentimentos dos outros, não podemos estar desprovidos de necessidades. E mais ainda: investimos o essencial, talvez até a totalidade do nosso tempo, a tentar satisfazer essas necessidades que não conhecemos. Se achamos que se vive unicamente para escutar as necessidades dos outros e não as nossas, é simplesmente por ignorarmos que estamos a satisfazer uma das necessidades mais importantes e mais comuns do ser humano: a necessidade de cuidar dos outros, de contribuir para o seu bem-estar. O velho e infeliz hábito do pensamento binário leva-nos a achar que cuidar de si próprio, é deixar de cuidar dos outros, e que para cuidar adequadamente dos outros, uma pessoa tem que «esquecer-se de si»! Porque é que há-de existir uma oposição entre o cuidar dos outros e o cuidar de si? Quando me ponho a pensar nas pessoas - e são tantas - que pagam ou fazem os outros pagar pelo seu esquecimento de si, sinto-me imensamente triste. A tristeza indica-me o quanto eu gostaria que os seres humanos compreendessem que, se não cuidam dos outros antes do mais para sua própria alegria e para o seu próprio bem-estar, então era melhor que fizessem outra coisa. Quantas pessoas, em especial nas áreas da assistência e da educação (professores, assistentes sociais, educadores, médicos, enfermeiros, terapeutas) se desgastaram e se desgastam até ao esgotamento total, até à depressão, de tanto cuidarem dos outros esquecendo-se de si próprias? Muitas vezes violentam-se de tal maneira ao tentar «fazer tudo como deve ser» que já nem são capazes de ficar «sem fazer nada». Privaram-se de tal maneira delas próprias que a sua energia, a sua vitalidade acabou por se esgotar, que a mola acabou por se quebrar - e é só através de um choque (depressão, acidente, luto, desemprego) que a vida faz com que, por vezes, essas pessoas voltem a si. As partes não escutadas de nós próprios manifestam-se então com toda a sua força, pois a violência engendrada con56
tra nós próprios - muitas vezes de um modo perfeitamente inconsciente - leva a uma reacção violenta da vida. Ao vivermos num estado de violência, sobre nós próprios, sobre a vida (exigência, controlo excesso de trabalho, culpabilidade), arriscamo-nos a suscitar uma reacção violenta da vida (acidente, doença, depressão, luto). Há também pessoas que, igualmente de modo inconsciente, fazem os outros pagar por esse esquecimento de si próprias. Quantas pessoas envolvidas em tarefas de assistência ficam tão sobrecarregadas de trabalho que acabam por perder a disponibilidade, o humor e a humanidade causando no final, apesar da preocupação de «fazerem tudo bem», mais mal do que bem? Na área da saúde, por exemplo, o cansaço extremo pode conduzir a atitudes de negligência nos cuidados ou na atenção; no meio escolar, a saturação provocada por demasiada solicitação pode causar rejeição ou falta de disponibilidade para com um aluno que necessite de uma atenção especial. Tendo praticado voluntariado durante cerca de dez anos numa associação dedicada aos jovens com problemas de dependência, delinquência, anorexia, depressão e prostituição, pude testemunhar duas coisas. • É essencial, para a própria sobrevivência de quem cuida, saber diferenciar claramente o «cuidar» do «responsabilizar-se por». Voltarei a esta questão mais adiante. • A única solução, a meu ver, para se conseguir cuidar de alguém de um modo duradouro e adequado, é retirar disso um profundo prazer, isto é, sentir em cada acto realizado pela outra pessoa um enorme bem-estar. Se uma parte de nós agir por dever, por sacrifício, porque «tem que ser», e sente o peso de uma obrigação, de um constrangimento ou de uma certa culpabilidade, essa parte «devora» toda a nossa energia e vitalidade acabando mais tarde ou mais cedo por se vingar, manifestando-se através da ira, da revolta ou da depressão. A esse propósito, recordo-me de certa afirmação proferida a respeito de uma caminhada no deserto do Saara que tínhamos organizado com cerca de trinta jovens em dificuldades. «— No fundo, você farta-se de se divertir durante essas viagens, portanto não tem mérito nenhum! —A senhora sente-se preocupada porque queria ter a certeza de que nós tomamos bem conta dos jovens que partem connosco? —Sinto. Se vocês vão, deve ser porque se divertem. 57
— É-lhe difícil imaginar que uma pessoa possa sentir prazer e fazer com que os outros sintam prazer, cuidar do seu próprio bem-estar e do bem-estar dos outros ao mesmo tempo? — Por acaso sempre achei que existia uma oposição; ou cuido de mim, ou cuido dos outros e esqueço-me de mim. — E como é que se sente se eu lhe disser que o que me dá alegria ao organizar essa viagem, é precisamente o facto de eu estar ao mesmo tempo a alimentar a minha necessidade de descoberta, de espaço e de exploração e a minha necessidade de partilhar aquilo de que gosto contribuindo para o bem-estar dos outros e levando-os à aventura? — Não tinha visto as coisas dessa maneira. Para mim isso é completamente novo e, no fundo, é um alívio poder-se fugir a essa oposição. — Não só é um alívio, como também mobiliza todas as minhas energias ao mesmo tempo. Todo o meu ser, e toda a minha vitalidade, são investidos nessa aventura. Não há uma parte de mim que diga «apetecia-me tanto ficar em casa a ler junto à lareira» ou «preferia ir à neve com os meus amigos». Não. Ciente de que as minhas necessidades não se opõem entre si, embrenho-me inteiramente no que estou a fazer e os jovens acabam por sentir a disponibilidade e a alegria transmitida por essa unidade interior, despertando a sua própria necessidade de unidade, de vitalidade, de envolvimento e de gosto pela vida.» Voltando agora à questão das necessidades. É verdade que podemos muitas vezes privarmo-nos totalmente dos nossos sentimentos e das nossas necessidades, isto é, proibirmos a nós próprios de os sentir, de os escutar, optando por «fechá-los a setes chaves». No entanto, é impossível estarmos desprovidos de sentimentos e de necessidades, apesar de muitas vezes não termos consciência deles. Acontece que essa consciência é preciosa, pois acredito cada vez mais que o sentir e o partilhar são o mais profundo alimento da natureza humana. O nosso bem-estar mais íntimo, o mais essencial, nasce da qualidade do nosso relacionamento connosco mesmos, com os outros e com tudo o que nos rodeia. Não será precisamente quando comunicamos claramente connosco mesmos e com os que nos rodeiam, quando estamos bem ligados a nós próprios e àqueles que amamos, quando as relações são vividas num ambiente de estima e de confiança, no que costumo chamar o «bem-estar-juntos», que sentimos as maiores alegrias? E
inversamente, não será quando deixamos de ver para dentro de nós próprios com lucidez, quando nos sentimos privados de nós mesmos e já não apreendemos com lucidez a nossa relação, sentindo-nos isolados da pessoa que amamos, não será então que sentimos as maiores tristezas? A nossa felicidade, o nosso bem-estar não provêm do que possuímos, nem do que fazemos, mas de como vivemos a nossa relação com as pessoas, as actividades e as coisas. Desde que comecei a tentar compreender e dar sentido à dificuldade de estar e de ser, reparei que as pessoas que gozam um bem-estar profundo, uma alegria de estar no mundo, são aquelas que privilegiam não tanto a multiplicação das actividades, das posses, dos encontros, mas sim a qualidade da relação que alimentam com as pessoas, com os objectos e com tudo o que tem que ser feito, a começar pela qualidade da relação que mantêm com elas próprias. Para essas pessoas o mais importante não é preencherem as suas vidas com tarefas a executar ou pessoas a encontrar, preferindo antes preencher de vida as relações que alimentam e as tarefas que executam. Parece-me portanto que a nossa verdadeira riqueza, o nosso verdadeiro património, a fonte das nossas alegrias profundas e duradouras está aí, na nossa faculdade de criar relações profundas, duradouras e férteis connosco próprios, com os outros e com o universo que nos rodeia. E isso é sem dúvida o mais óbvio mas também o mais difícil! Pudera! 1. De facto raramente estamos em contacto com a realidade tal como ela é. Muitas vezes, estamos em contacto com a realidade tal como acreditamos que ela seja ou, mais precisamente, tal como receamos que ela seja. Iremos ver como é que se pode entrar em contacto o mais objectivamente possível com a realidade tal como ela é, e não tal como nós a vemos (ver Observar sem julgar nem interpretar, pág. 61). 2. Baseamos muitas vezes as nossas reacções nas nossas impressões, crenças e preconceitos, em vez de as basearmos no que sentimos verdadeira e pessoalmente. O resultado é não nos escutarmos a nós próprios do modo mais adequado. Iremos ver como escutar os nossos sentimentos, aqueles que nos conduzem a nós próprios, aprendendo a distingui-los dos sentimentos que veiculam uma censura, uma reprovação ou uma crítica em relação aos outros (ver Sentir sem julgar nem interpretar, pág. 74). 3. Agimos em função de critérios exteriores : o hábito, a tradição, o dever imposto ou suposto («Acho que tenho que...»), o medo do
olhar do outro (pressão social), sendo que o outro representa aqui os pais, o cônjuge, os filhos, o meio socio-profissional ou, mais simplesmente, essa parte de nos próprios que não conhecemos bem, que não nos é familiar e cujo juízo ou culpabilidade receamos. Iremos ver como começar a escutar as nossas necessidades fundamentais, como identificá-las, como diferenciá-las, e como discernir as prioridades nelas implicadas (ver Identificar as nossas necessidades sem projectá-las sobre o outro, pág. 91). 4. Por fim, por não compreendermos as nossas próprias necessidades nem lidarmos com elas com à-vontade e flexibilidade e, consequentemente, por não compreendermos as necessidades dos outros nem lidarmos com elas com à-vontade e flexibilidade, acabamos muitas vezes por renunciar às nossas próprias necessidades para agradar aos outros, para «ser boa pessoa». Então, saturados de termos sido boa pessoa durante tanto tempo ou preocupados por não vermos as nossas necessidades serem reconhecidas, impomos as nossas necessidades aos outros ou ficamos à espera que os outros adivinhem necessidades nossas que ainda não formulámos ou que até nem sequer identificámos. E se por acaso eles não o fizerem, passam a ser objecto da nossa censura ou do nosso juízo. Veremos como formular pedidos claros e específicos possibilitando a concretização das nossas necessidades no dia a dia, mas sem perder de vista a questão das necessidades do outro (ver Formular um pedido concreto, realista e negociável, p. 107). Neste capítulo, pretende-se desenvolver o mais possível a consciência da diferenciação de cada um dos estados seguintes:
1. OBSERVAÇÃO. Reagimos a algo que observamos, que ouvimos ou que dizemos. 2. SENTIMENTO. Essa observação provoca em nós um ou vários sentimentos. 3. NECESSIDADE. Esses sentimentos informam-nos sobre as nossas necessidades. 4. PEDIDO. Tendo tomado consciência das nossas necessidades, podemos definir um pedido ou uma acção concreta. 50
Repare, a ideia não é perder a cabeça mas sim trazê-la de volta ao seu lugar! E dizer à nossa cabeça, ao nosso processo mental: «Obrigado pelos seus bons serviços, realmente preciso de si muitas vezes (para verificar a conta no restaurante, preencher a declaração de IRS, escrever um contrato, analisar uma situação, gerir o meu orçamento), mas sempre não. Não quero que mande em toda a minha vida, que dirija todas as minhas escolhas como uma torre de controlo. Também preciso de confiar na minha intuição, de escutar os meus sentimentos, de tratar as minhas necessidades com à-vontade e respeito. No fundo, preciso de me sentir integrado e reconciliado, não quero mais sentir-me dividido, dilacerado entre a cabeça e o coração. Não quero ser um cérebro com patas!» 2.
Observar sem julgar nem interpretar
Segundo o filósofo indiano Krishnamurti, saber distinguir a observação de um facto da sua interpretação é um dos estados mais elevados da inteligência humana. E sem dúvida uma das coisas mais difíceis e menos habituais: diferenciar o facto tal como ele se apresenta, da emoção que provoca em nós. Muitas vezes, «tingimos» completamente a nossa leitura dos factos. A nossa interpretação dos factos adquire a cor dos medos, das esperanças e das projecções que vivem em nós. Não estamos portanto em contacto com a realidade, isto é, com a verdade do facto, mas sim com as nossas preocupações, com a nossa interpretação, com os cenários mais ou menos fictícios que vamos construindo sobre essa realidade. E pode construir-se desta forma uma vida inteira, todas as nossas atitudes, todos os nossos pensamentos, tudo a partir de uma leitura subjectiva da realidade... sem se ter a noção da série de confusões e de mal-entendidos para os quais tal atitude nos pode arrastar. Quero convidar-vos, contrariando aquela atitude, a saírem dessa armadilha da interpretação-projecção, através da verificação dos factos. Do pingue-pongue a espiral Convenço-me de que estou a fazer a seguinte observação: «O meu amigo anda amuado comigo há dias.» É bem provável que eu reaja ficando ressentido com ele, ou irritando-me com ele ou até mesmo amuando também, fazendo disso, de qualquer modo, um bicho de sete cabeças, provavelmente sem a mínima razão. Estarei então a desen61
cadear um processo de violência a partir de uma interpretação. Mas no fundo, sei lá se ele está realmente amuado comigo! Talvez ande triste ou preocupado por uma data de motivos completamente diferentes, talvez tenha crises de enxaquecas. No entanto, porque essa atitude me deixa triste ou preocupado, meto na cabeça que ele anda amuado sem me dar ao trabalho de verificar isso mesmo com ele, e começo a construir cenários completamente desligados da realidade. Esses cenários comportam dois riscos: 1) apoquento-me inutilmente, queimando as minhas energias; 2) sujeito-me a agredir o outro, gerando eu próprio mais violência. E de facto bem possível que eu vá ter com ele e diga qualquer coisa do género: «Estou farto de te ver de trombas comigo.» Ao que ele poderá responder: «Mas eu não estou nada de trombas contigo.» «Estás.» «Não estou.» Ou então, outra reacção bastante habitual: «Claro que estou de trombas contigo, e só pode ser por tua culpa, claro» e arriscamo-nos a entrar num pingue-pongue de argumentação, do género: «Estás enganado, tenho razão» «É, sim» «Não é, não», que conduz muitas vezes à espiral da violência. A pedra angular do método passa portanto pela observação mais neutra possível: fazer um levantamento dos factos (palavras, atitudes do corpo, expressões da cara, tom da voz) como o faria uma câmara de filmar. Temos que estar muito atentos ao nosso modo de «entrar» em comunicação com o outro. Comentários Eis uma formulação simplificada das coisas, visando facilitar a compreensão do processo. 1. Observo que o meu amigo esteve calado durante a refeição e que saiu da sala sem dizer uma única palavra (O). 2. Essa observação gera em mim um sentimento: sinto-me preocupado, impotente (S). 3. Esse sentimento indica a minha necessidade: preciso de saber se alguma coisa está mal, preciso de compreender e talvez de ajudar (N). 4. Concretamente, o meu pedido, a minha acção, consistirá em verificar como é que ele se está a sentir, se tem tido preocupações e se eu posso fazer alguma coisa para o aliviar dessas preocupações (P). Só então vou ter com ele, dizendo: «Ao ver-te sair da sala a meio
da refeição sem dizer nada (O), fico apreensivo (S) e queria saber se estás preocupado com alguma coisa e se te posso ajudar (N + P).» Essa formulação pode parecer ingénua e pouco praticável no dia-a-dia. Podemos torná-la mais plausível e menos académica, dizendo por exemplo em linguagem corrente: «Estás tão calado, aconteceu alguma coisa?» Em todo o caso, tenho verificado que essa maneira de «abrir» o diálogo, de abordar o assunto sem julgar, sem interpretar, não só predispõe o nosso coração à escuta do outro, mas também predispõe o coração do outro a falar verdadeiramente do que está a sentir, sem se sentir criticado. Deixas sempre tudo espalhado Eis outro exemplo que costumo «testar» em crianças das escolas. Faz de conta que o leitor é uma criança de doze anos, que sai da escola pelas 16 horas, que está a chover, que ainda por cima o autocarro está atrasado, e que a sua mãe o recebe desta forma: «Cuidado! Deixas sempre os sapatos espalhados nas escadas, atiraste outra vez o casaco para cima do sofá e a pasta para o meio da sala! Até parece que vives sozinho nesta casa! Vai-me já arrumar isso tudo! E já agora, o teu quarto está um pandemónio, deixa-me tudo arrumado!» Veja agora como é que se está a sentir e qual é o seu estado de espírito. Com crianças, costumo obter as duas seguintes reacções: • «Bem, se ela se puser assim aos berros, não arrumo nada de certeza, fico irritado, e é uma chatice porque depois discutimos os dois pela noite fora.» • «Bem, não tenho por onde escolher, vou arrumar as minhas tralhas, mas podes crer que hei-de bater com as portas todas, fazer barulho a pisar cada degrau até ao meu quarto e pôr a música aos berros (a música que ela mais odeia) para me vingar.» Agora sugiro-lhes a seguinte formulação, em vez da anterior. As circunstâncias são as mesmas, são 16 horas, está a chover, o autocarro está atrasado, e a vossa mãe recebe-os desta forma: «Quando vejo os teus sapatos nas escadas e a rua pasta em cima do tapete da sala (Observação), sinto-me triste e desanimada (Sentimento) porque tive o cuidado de pôr tudo em ordem. Preciso de respeito pelo trabalho que isso me deu e preciso da vossa colaboração para ter a casa em condições (Necessidade). Queria saber se concordas em ir arrumar as ruas coisas agora (Pedido concreto e negociável)?» 63
Costumo obter duas reacções. • «Bem, se a minha mãe me pedisse sempre as coisas dessa maneira, eu fazia-as logo. Porquê? Porque não suporto que me obriguem a fazer coisas sem razão, mas quando me explicam porquê e me deixam escolher, costumo fazer as coisas com gosto. Também gosto que a casa esteja limpa e arrumada quando volto da escola.» • «Bem, sempre é mais agradável de se ouvir. É fixe ter a casa limpa e até nem me importo de ajudar. Só que quando volto da escola, gosto que me deixem um pouco em paz para eu poder lanchar à vontade.» Façamos agora uma simulação, comigo no papel da mãe. «— Queres dizer com isso que não te importas de arrumar as coisas, mas que tiveste um dia cansativo (S) e que te apetece descansar um pouco primeiro (N)? — Sim, primeiro quero lanchar e depois vou fazer as arrumações. — No fundo, eu só quero ter a certeza (S) que te vais lembrar disso depois, ou seja, que não sou a única a cuidar da arrumação desta casa (N). Es capaz de perceber isso? — Sou, sou. — Quando dizes «sou, sou» já a caminho da cozinha, não fico lá muito segura (S) de teres percebido as minhas necessidades (N). Queria saber se concordas em repeti-las (P). — Tá! Queres ter a certeza de que não me esqueço de deixar tudo arrumado e de que não és só tu a fazer tudo cá em casa, é isso? — E isso, obrigada.» Comentários 1. As crianças costumam ser particularmente sensíveis à maneira como se enceta um diálogo, pois ainda não possuem defesas contra a brutalidade das nossas relações habituais. Daí que, na primeira versão, quando a mãe utiliza expressões tais como «Deixas sempre os sapatos espalhados... Atiraste outra vez o casaco para cima do sofá...», apetece responder «Não é verdade, anteontem arrumei os sapatos e o casaco, nunca o tinha deixado aí antes!» Mais uma vez, somos arrastados para o «É, sim», «Não é, não» e sujeitamo-nos a entrar no pingue-pongue da argumentação («Contigo é sempre a mesma coisa», «Estás sempre contra mim», «A mana faz sempre
tudo o que quer», «Nunca vês o que não está bem!») A observação neutra da segunda versão («Quando vejo os teus sapatos em cima das escadas e a tua pasta em cima do sofá...») sem juízo, sem interpretação, sem reprimenda nem crítica no tom de voz ou na expressão facial (cuidado! é difícil, pois o não verbal tem muita força), permite encetar o diálogo de maneira a: • deixar-nos exprimir claramente os nossos sentimentos e as nossas necessidades de maneira a que o outro seja capaz de ouvir; • permitir que o outro esteja disponível para nos ouvir e compreender, para caminharmos juntos na direcção de uma solução aceitável para cada uma das partes: não só para a mãe (como seria o caso se ela tivesse imposto a sua necessidade de arrumação sem escutar a necessidade de descanso do filho), nem só para a criança (como seria o caso se a mãe tivesse silenciado a sua necessidade de ordem e de colaboração só para ser «boa pessoa» com o filho). Exprimirmos a nossa observação com neutralidade não significa portanto recalcar os nossos sentimentos. Significa, isso sim, encetar o diálogo de maneira a respeitar a realidade e o ponto de vista do outro (que pode ser muito diferente do nosso), permitindo-nos comunicar ao outro o nosso sentimento com toda a sua força, sem julgar nem agredir. 2. Quando faço este exercício com crianças, a resposta sobre a questão do constrangimento é quase constante. No fundo, quer sejamos adultos ou crianças, todos detestamos fazer coisas por obrigação. Precisamos de 1) compreender o seu sentido e 2) agir livremente. Aqui, o sentido é transmitido pela referência às necessidades: «Tive o cuidado de pôr tudo em ordem e preciso que me respeitem por isso.» A liberdade, por sua vez, é garantida pela formulação do pedido, sempre expresso de um modo negociável (senão deixaria de ser um pedido para se transformar numa exigência, e sairíamos do relacionamento de qualidade que desejamos atingir): «Queria saber se concordas em ir arrumar as tuas coisas agora.» Isso é o mais difícil: aceitar que o outro não concorde! Recorde-se que, muitas vezes, tendemos a impor as nossas necessidades quando estas não são reconhecidas: «Vai-me já arrumar o quarto!» Isto não é um pedido feito em aberto, é uma exigência que não deixa ao outro a mínima margem de liber-
tuas bandas desenhadas em cima do tapete da sala, os teus sapatos no tapete da entrada e os teus brinquedos nas escadas»), criamos uma oportunidade de informar o outro sobre a nossa necessidade. Depois, para ele não a entender como uma censura ou um constrangimento que lhe anule toda a liberdade de acção, temos que ter o cuidado de formular um pedido em aberto, negociável, como: «Estou triste e desanimada porque preciso de ordem e de ajuda na limpeza da casa (S - N). E queria saber se concordas em levar as tuas coisas para o quarto (P).» Neste tipo de abordagem, a nossa cabeça pensante é-nos extremamente preciosa, com toda a sua inteligência em acção, para podermos fazer uma leitura neutra dos factos, permitindo-nos chamar a atenção do outro para o que nos está a preocupar sem o irritar logo à partida, ou então colocar, para nosso próprio bem, cada coisa no seu devido lugar, evitando no entanto os delírios de interpretação já a meio caminho da «paranóia» - se me permitem este pequeno juízo! O simples acto de se fazer um levantamento dos factos como eles realmente se apresentam, o mais objectivamente possível, ajuda-nos muitas vezes a redimensionar as coisas, esvaziando esses balões que são os preconceitos, as crenças e as ideias feitas que tão depressa ocupam tudo, todo o nosso espaço mental e todas as nossas conversas. Quantas conversas, quantas reuniões, quantas refeições são passadas a comentarem-se factos não verificados, a partir de suposições ou de projecções, muitas vezes negativas, baseadas em simples hipóteses! Evitaríamos muitas preocupações e pouparíamos muita energia se aceitássemos falar mais sobre o que conhecemos por verificação própria, do que sobre o que receamos e está ainda por verificar.
Exercício Convido o leitor a fazer o seguinte exercício: observe sem julgar, e depois escute o que se passa dentro de si em matéria de sentimentos e de necessidades.
Não diga:
Diga antes:
«Estás atrasado. É sempre a mesma coisa! Não se pode contar contigo.»
«Tínhamos combinado encontrarmo-nos às 8 horas e são 10h30 (O). Estou zangado e preocupado (S). Preciso compreender o que é que se passa, preciso de ter a certeza que posso contar contigo no futuro (N). Concordas em falarmos sobre o assunto agora (P)?«
«Estou em m... até ao pescoço. Está-me tudo a correr mal. A minha vida está feita num oito, só me apetece atirar-me para a linha do comboio.»
«Acabei de perder o meu emprego, e o meu companheiro diz que se quer separar de mim (O). Estou em pân ico, sinto-me impotente e revoltada como nunca pensei que me pudesse sentir (S). Preciso de tempo para olhar para as coisas com calma, e sinto uma enorme necessidade de confiar em mim própria e de acreditar que sou capaz de ultrapassar esta fase difícil (N). Vou levar todo o tempo necessário para assimilar isto tudo antes de tomar qualquer decisão (P).»
«Sou um zero à esquerda. Não presto para nada. É falhanço atrás de falhanço. Nunca hei-de conseguir!»
«Não obtive os valores necessários para passar nos exames (O). Sinto-me desanimado e ao mesmo tempo zangado (S). Preciso que os meus esforços sejam reconhecidos, e preciso de ter a certeza de que tenho um valor próprio, apesar de não o ter identificado ainda muito bem (N). Vou levar todo o tempo necessário para pensar se estou realmente a tirar o curso que melhor me convém e que me permita desenvolver os meus talentos (P).»
«És um zero à esquerda! Nunca hás-de ter sucesso. Não prestas para nada!»
<Sou muito emotiva.»
«Ao ler o teu boletim escolar onde aparecem notas de 5/10 em matemática e de 6/10 em química (O)... fico muito preocupado (S). Preciso de me sentir mais descansado, de ter a certeza que percebes a importância de se estudarem essas disciplinas, que sentes prazer em aprender e que estás bem integrado na tua turma (N)... e queria saber se concordas em levarmos o tempo que for preciso para falares sobre os teus sentimentos e sobre o que queres na vida (P).»
«Quando estou a viver uma emoção forte (O)... sinto-me perturbada e pouco à vontade (S)... porque preciso de compreender melhor os meus sentimentos para ser capaz de usá-los de um modo mais satisfatório e de me dominar melhor (N). A próxima vez que sentir uma emoção forte, hei-de levar o tempo necessário para aceitá-la interiormente e escutar o que ela diz sobre mim própria e sobre as minhas necessidades (N)»
Para concluir esta parte sobre a importância de observar sem julgar, gostaria de partilhar três ideias. 1. Distinguir a narração dos factos da interpretação dos mesmos é uma prática corrente nas investigações policiais e nos processos jurídicos. Antes de se confrontarem os factos com os valores da socie70
dade expressos na lei, é preciso que todas as partes envolvidas (autoridades policiais, tribunais, agressores e vítimas, partes requerentes e requeridas, terceiros, etc.) antes do mais se entendam sobre os factos. Esta prática é idêntica no exército. Quando estive na tropa, tinha um curso de radio-comunicações que se chamava Observe and Report: observar e relatar. Para termos a certeza de que estamos a descrever os factos com absoluta objectividade, não pode haver sentimentalismos! v Imagine que em tempo de guerra um observador relata: «Esta- <^woj\ mos a ser atacados por todos os flancos, o inimigo avança sobre nós com os mais importantes meios, isto é uma invasão.» Não vai ser fácil reagir de modo adequado. Pelo contrário, se o observador indicar o que realmente está a observar («Uma coluna de 15 tanques "^ t^ dirige-se de sul para norte a 10 quilómetros da frente, uma tropa d e ^ V 'J U^s um centena de homens caminha rio acima junto à margem esquerda, três aviões do tipo XY sobrevoam a costa para leste»), haverá certamente melhores hipóteses de se adoptar uma atitude mais adequada à situação! Não quero de modo algum fazer aqui uma apologia da tropa. Trata-se simplesmente de apontar um princípio de segurança e de clareza fundamental para a eficácia da acção, isto é, de estabelecermos os factos e de nos entendermos sobre a sua evolução, para sabermos do que é que se está exactamente a falar antes da interpretação ou da reacção. No sentido de respeitarmos esses valores de segurança e eficácia, ser-nos-á bastante útil trabalharmos sobre o nosso modo de observar, não para nos privarmos dos nossos sentimentos e das nossas necessidades, mas para lhes conferir a sua verdadeira importância. 2. O juízo encarcera o outro, a realidade encarcera-nos a nós próprios. O juízo desliga-nos do outro, da realidade e de nós próprios, embalando o seu objecto em celofane como se fosse um alimento sob vácuo, um pacotinho hermeticamente fechado e já posto de lado, prestes a ser arrumado dentro do congelador das ideias feitas, das crenças e do preconceito. Quando julgo, não me estou a interrogar nem sobre mim nem sobre o outro. Pelo contrário, separo-me do meu ser profundo e do ser profundo do outro ao permanecer no meu espaço mental. O juízo congela a realidade. Fecha-a num só dos seus vários aspectos, e trava-a no seu curso. Só que a vida é movimento. Desde o movimento infinitamente grande dos planetas e do cosmos até ao movimento infinitamente 71
pequeno dos átomos e dos electrões, tudo está sempre em movimento. Foi o homem que inventou a única coisa fixa deste planeta: a ideia fixa! Na natureza, nada está fixo. Foi o homem que inventou os juízos definitivos! Na natureza, nada é definitivo. Tudo nela é estação, passagem e transformação. Até as montanhas caminham. No fundo o único elemento constante é a própria mudança; todo o resto é provisório, precário, sazonal. Tudo está integrado numa marcha progressiva, tudo é movimento: lua nova / quarto crescente / lua cheia / quarto minguante - maré alta / maré baixa - Primavera / Verão / Outono / Inverno - nascimento / vida / morte - abertura / movimento / fim (em música) - introdução / desenvolvimento / conclusão - infância / adolescência / idade adulta / terceira idade - principiante / amador / especialista / perito / prémio Nobel semente / rebento / rebentão / tanchão / planta / eclosão / maturidade / fruta / semente / rebento/ rebentão / tanchão / planta / eclosão / maturidade / fruta / semente... infinitamente. Repita umas vezes em voz alta: «semente / rebento / rebentão / tanchão / planta!» Para além do divertido exercício de elocução que a repetição permite, talvez o leitor sinta de maneira mais palpável o movimento a surgir, a rotação, o encadear das coisas e, através disso, a mestiçagem da própria vida, a amizade, o impulso da semente para ser rebento, do rebentão para ser planta. Repare na dinâmica a desencadear-se, no processo vivo a encaminhar-se: entre as duas leituras propostas para o exemplo anterior («Estou na m... até ao pescoço... só me apetece atirar-me para a linha do comboio» e «Vou levar o tempo que for preciso para assimilar tudo isto antes de tomar qualquer decisão»), não existirá a mesma diferença do que entre um ser apagado e um ser aceso, um ser anestesiado e um ser acordado, um morto e um vivo, a destruição e a criação, a rejeição e o acolhimento, a morte e o movimento? 3. No fundo, enquanto seres conscientes, sentimos uma profunda necessidade de nos situarmos em relação às coisas e às pessoas e de exercer o nosso discernimento. Por «situarmo-nos em relação às coisas», entendo o seguinte: saber em que ponto da situação nos encontramos, se apreciamos ou não apreciamos, se o que vivemos ou vemos corresponde ou não aos nossos valores, à nossa visão do mundo, se queremos continuar assim ou mudar, o que podemos fazer para mudar, etc. Sentimos a profunda necessidade de partilhar valores, principalmente o valor do sentido. Precisamos que a vida faça sentido. 70
Mas para satisfazer essas duas necessidades, adquirimos o velho e péssimo hábito de julgar mentalmente, em vez de aceitar as coisas com o coração. Desejo, através deste livro, mostrar de que forma nos podemos situar sem julgar; discernir implicações, valores e prioridades sem criticar, agredir ou impor; encontrar e partilhar sentido sem constranger nem rejeitar. A primeira etapa deste processo passará portanto, muitas vezes, pela verificação do que se está a passar: Qual é a realidade, quais são os factos? Um conto chinês Para ilustrar a ideia de que nos podemos enganar redondamente sempre que emitimos um juízo, proponho a leitura de um conto chinês. Este conto esclarece a primeira etapa do processo, a observação, isto é, a aceitação da realidade tal como ela é (sempre em movimento) e não tal como receio que ela seja ou acredito que ela seja. No entanto, o conto não contempla os aspectos do sentimento, da necessidade e do pedido, que constituem o modo de uma pessoa se situar em relação às coisas e aos eventos, sem os julgar. O velho chinês poderá parecer frio e sem emoções. Apesar de tudo, gosto de citar este conto porque trata-se de uma personagem que não aceita fechar-se numa visão congelada da realidade. Mantém-se sempre no movimento, na aceitação do que poderá vir, e a sua atitude, comparada com a dos aldeões barulhentos e agitados, é uma atitude de grande paz, silenciosa e confiante. Eis uma história que Lao Tsé gostava de contar ) . Um pobre Chinês metia inveja aos mais ricos da região porque tinha um cavalo branco extraordinário. Cada vez que lhe ofereciam uma fortuna pelo animal, o velho respondia: «Para mim, este cavalo é muito mais do que um animal, é um amigo. Não o posso vender.» Um dia, o cavalo desapareceu. Os vizinhos juntaram-se em frente ao estábulo vazio e deram a sua opinião: «Pobre idiota, era de esperar que te roubassem o animal. Porque é que não o vendeste? Que desgraçai» O camponês mostrou-se mais circunspecto: «Não exageremos, disse. Digamos que o cavalo já não se encontra dentro do estábulo. É um facto. Todo o resto não passa de uma interpretação vossa. Como iremos saber se é uma desgraça ou uma alegria? Só conhecemos um fragmento da história. Quem sabe o que irá acontecer?» As pessoas riram-se do velho. Sempre o tinham considerado um simples 73
de espírito. Quinze dias depois, o cavalo branco voltou. Não fora roubado, tinha-se simplesmente escapado e trazia de volta consigo uma dúzia de cavalos selvagens. Os aldeões formaram novamente um grupo: «Tinhas razão, não é uma desgraça, éuma benção. Eu não iria tão longe, disse o camponês. Contentemo-nos em dizer que o cavalo branco voltou. Como iremos saber se é sorte ou azar? Isto é só um episódio. Como conhecer todo o conteúdo de um livro quando se lê uma única frase?» Os aldeões dispersaram-se, convencidos de que o velho estava a perder a cabeça. Receber doze belos cavalos era sem dúvida um dom dos céus. Quem o iria negar? O filho do camponês começou a domar os cavalos selvagens. Mas um deles atirou-o ao chão e espezinhou-o. Mais uma vez os aldeões vieram dar a sua opinião: «Pobre amigo! Tinhas razão, os cavalos selvagens não te trouxeram sorte nenhuma. Agora tens um filho aleijado. Quem te irá ajudar mais tarde? Temos pena, muita pena de ti. — Ora, respondeu o camponês, não exagerem. O meu filho deixou de poder usar as pernas, foi só isso. Quem poderá dizer o que isso nos trouxe? A vida revela-se aos poucos, ninguém é capaz de prever o futuro.» Uns tempos depois, rebentou uma guerra e todos os jovens da aldeia tiveram que se alistar, excepto o inválido. «Ó velho, lamentaram-se os aldeões, tinhas razão, o teu filho já não pode andar mas fica contigo, enquanto os nossos se encaminham para o extermínio. — Por favor, respondeu o camponês, não julguem tão depressa. Os vossos filhos alistaram-se, o meu ficou em casa, é tudo o que se pode dizer. Só Deus sabe se é um bem ou se é um mal.» 3.
Sentir sem julgar nem interpretar
Mas de certeza que a pessoa ficou convencida de ter transmitido um sentimento, já que começou a frase por «sinto que». É, mais uma vez, o nosso velho hábito de pensar em vez de sentir a vir ao de cima. Pode ser um velho reflexo, mas é possível evitá-lo. Se quisermos saber mais sobre nós próprios, para sabermos o que realmente sentimos relativamente a uma situação, temos todo o interesse em ouvir o nosso sentimento formulando-o deste modo: «Sinto-me preocupado, triste, decepcionado, etc.» E o sentimento que nos vai ajudar a identificar a nossa necessidade e, através disso, permitir que nos situemos em relação a uma situação ou uma pessoa sem julgá-la nem criticá-la, e sem descarregarmos para cima dela a responsabilidade do que estamos a viver. Enquanto atribuirmos aos outros a responsabilidade do que sentimos, estaremos a desresponsabilizar-nos, enquanto lhes dermos a chave do nosso bem-estar (ou do nosso mal-estar), estaremos a cair na nossa própria armadilha. É portanto muito útil sabermos identificar, no vocabulário dos sentimentos, aqueles que contêm uma interpretação ou um juízo acerca do que os outros dizem, fazem ou são. De facto, convencidos de estarmos a assumir a responsabilidade do nosso sentimento só por falarmos na primeira pessoa, utilizamos muitas vezes palavras habitualmente consideradas como sentimentos, tais como «sinto-me traído, abandonado, manipulado, rejeitado». E verdade que essas palavras exprimem sentimentos mas, ao mesmo tempo, elas veiculam uma imagem por cima da outra, isto é, uma interpretação, um juízo. Em filigrana, subentende-se que «és um traidor, um manipulador, estás a abandonar-me, a rejeitar-me». O leitor encontrará no fim deste livro uma lista de palavras que se utilizam habitualmente para exprimir sentimentos, mas que incluem inevitavelmente uma apreciação sobre o outro. Qual a utilidade desta distinção?
Sinto que I Sinto-me A maior parte das vezes, se perguntar a uma pessoa «Como é que se sente?» em relação a uma situação preocupante, ela irá responder: «Sinto que é preciso fazer isto ou aquilo... Sinto que já é tempo que os responsáveis façam isto ou aquilo..., Sinto que está tudo perdido...» Ela responderá através de um pensamento, de um conceito, de um comentário, não através de um sentimento, quando a pergunta o incitava precisamente a se situar em relação aos seus sentimentos. 74
HÁ DUAS VANTAGENS EM DIFERENCIAR OS SENTIMENTOS VERDADEIROS DOS SENTIMENTOS QUE INCLUEM UMA INTERPRETAÇÃO
1. A primeira vantagem prende-se com o nosso desejo de caminharmos em direcção a nós próprios o mais seguramente possível, renunciando aos cenários de vitimização e de queixa. Quanto mais a nossa linguagem - portanto a nossa consciência que nela se exprime - se libertar dessa dependência em relação ao que o outro faz ou deixa de fazer, melhor poderemos tomar consciência das nossas ne75
cessidades e dos nossos valores, e melhor nos poderemos empenhar na sua valorização. Eis um exemplo. Pierre, trinta e seis anos, vem a uma consulta e queixa-se regularmente da relação com a companheira. «— Sinto-me sempre manipulado pela minha companheira. — Pode indicar-me o que é que, nas suas observações, lhe tem dado essa impressão de manipulação? — Ela diz-me: «Nunca percebes nada, não fomos feitos para nos entendermos.» — Se tentar escutar o sentimento existente por detrás dessa impressão de manipulação, o que é que sente? — Raiva e cansaço. Fico com a impressão de que sou sempre eu que tenho de a compreender, e que se não conseguir estar sempre a compreendê-la, deixo de ter valor. No fundo, só presto para alguma coisa, aos olhos dela, se estiver constantemente a compreendê-la. — E se escutar as necessidades que essa raiva e esse cansaço lhe indicam, o que é que sente? — Uma necessidade de respeito, de respeito por mim próprio, uma necessidade de ser tomado por quem realmente sou, e não pela pessoa que ela gostaria que eu fosse. — E uma impressão familiar, já vivida por si no passado, isto de não ser aceite pelo que realmente é? — Completamente, é como se estivesse em frente à minha mãe: tinha a impressão de que estava a ser injustamente acusado em frente a um juiz. Sentia-me indignado porque a minha identidade própria não estava a ser reconhecida e, ao mesmo tempo, impotente para a fazer valer. — E como é que se sente ao recordar essas memórias? — Cansado e decepcionado. — Será que esses sentimentos de cansaço e decepção indicam a necessidade do Pierre se aceitar mais a si próprio, de dar a si próprio mais espaço, de se permitir viver mais a sua própria identidade? (Emocionado.) — Sim, completamente. — Se de facto essas necessidades lhe parecem verdadeiras, sugiro que as repita em voz alta para dar a si próprio a oportunidade de as assimilar, de começar a vivê-las interiormente. (Após um tempo de silêncio.) — Tudo bem, preciso de me aceitar mais a mim próprio, de dar a mim próprio mais espaço, e de me permitir viver mais profundamente a minha própria identidade.»
Observação Sugiro muitas vezes às pessoas em trabalho de acompanhamento que formulem em voz alta as suas necessidades. A experiência mostra que a pessoa, ao ouvir a formulação de uma necessidade que corresponde realmente ao que ela tem vivido, tende a manifestar as duas reacções seguintes: 1) ou diz: «É isso mesmo, essa é que é a minha necessidade, vou ter que pensar no assunto depois da consulta, vou apontar a ideia», e a necessidade permanece virtual, como um método terapêutico que se lê num livro ou num artigo mas que nunca chega a ser integrado pela experiência; 2) ou responde muito depressa: «Pois, mas de qualquer maneira, sempre foi assim, não acho que as coisas possam mudar. Não existe solução, porque é que por isso hei-de identificar as minhas necessidades?» Ao reagir assim, a própria pessoa enterra com pensamentos negativos a necessidade que tentava emergir à tona da sua consciência. Nem sequer lhe dá tempo para existir e ser identificada, recalcando-a logo à partida. Por estar atento a esses dois riscos, incito muitas vezes a pessoa a levar todo o tempo que for preciso, com muita calma, para reformular a sua necessidade em voz alta após ter verificado que esta lhe parece corresponder à realidade. Para certas pessoas, trata-se de um exercício fácil e agradável ao qual aderem com todo o gosto, sentindo no final a alegria de identificar e exprimir claramente as suas necessidades. Na maioria das vezes, o sentimento por elas partilhado é de alívio, de bem-estar, e a necessidade preenchida é de clareza, de compreensão, de abertura para uma nova pista ainda por explorar. Para outras pessoas, é uma etapa muito difícil. O interdito que pesa sobre o facto de sentirem necessidades, e mais ainda de as exprimir em frente a alguém, é de tal ordem que elas nem sequer conseguem repetir a mais elementar das frases, como por exemplo: «Preciso de respeito pela minha identidade». É quase impossível, as palavras não saem. Torna-se então necessário levar a cabo um trabalho de «domesticação» que pode exigir algumas sessões, até que a pessoa se sinta à vontade para exprimir a sua necessidade, falar sobre ela, comentá-la, distingui-la das outras, isto é: compreendê-la. «Com-preender», é fazer seu. Vivo sempre esses momentos, sejam eles fáceis ou difíceis, como se fossem experiências sagradas. Vejo a pessoa a tomar conta da sua vida novamente, a redimensionar-se e reunir-se, a acolher-se e recolher-se. E não será de facto sagrado esse regresso à vida e ao 77
desejo, não será sagrado uma pessoa ver a vida a habitá-la e animá-la e verificar que finalmente é capaz de escutar essa vida, de se deixar guiar por ela? Iremos ver mais adiante de que modo, após a identificação da necessidade, se inicia a acção concreta, o pedido. Mas voltemos ao caso de Pierre, e à diferenciação-chave entre sentimento verdadeiro e sentimento tingido de interpretação. Enquanto a consciência de Pierre se formular através de expressões tais como «Sinto-me manipulado», ele permanecerá dependente ou tributário da atitude que está a atribuir ao outro. O outro é que se torna responsável pelo seu mal-estar. A palavra «manipulado» contém de facto uma interpretação, a de que o outro manipula. Talvez o comportamento do outro lhe dê efectivamente todas as razões de se sentir manipulado, mas a questão não é essa. O que aqui interessa, é observarmos que Pierre só começa a ultrapassar a atitude de queixa («Ela manipula-me, eu sou a vítima») no momento em que atinge o seu verdadeiro sentimento («Estou triste e zangado») e a sua própria necessidade («Preciso de respeito pela minha identidade»). É quando ele começa verdadeiramente - com verdade - a falar sobre ele próprio que se inicia o trabalho. Enquanto não ultrapassar o comentário mais ou menos indirecto sobre o que a companheira faz ou deixa de fazer, não anda para a frente. Mal comece a falar verdadeiramente sobre ele próprio, haverá progressos. Lacan disse um dia a uma paciente: «Quando me disser uma palavra que fale realmente de si, estará curada.» No trabalho de acompanhamento terapêutico, que se pode considerar como uma tentativa de resolução do conflito existente entre consciente e inconsciente, é essa a palavra que procuramos juntos, obviamente não pela palavra em si, mas pela consciência que esta ajuda a libertar. Assim, Pierre pôde adquirir uma maior consciência do que estava a viver, o que lhe permitiu empreender o trabalho necessário para se libertar de um complexo maternal negativo, abrindo-se finalmente à auto-aceitação e ao respeito por si próprio. Em dois anos de acompanhamento terapêutico, vi-o passar da vitimização e da dependência do álcool, ao sucesso junto das mulheres e na carreira profissional, à autonomia e à responsabilidade. Nas tentativas quotidianas de resolução de conflitos do dia-a-dia, a procura da palavra verdadeira trará a mesma vantagem: esclarecer a nossa consciência relativamente às verdadeiras implicações que existem por debaixo das implicações aparentes, e estimular a nossa responsabilização. 78
2. A segunda vantagem em diferenciar os sentimentos verdadeiros dos sentimentos tingidos de interpretação, é ajudar-nos a sermos bem compreendidos pelo outro graças ao uso de palavras que despertem o menos possível desconforto, medo, resistência, oposição, contradição, argumentação e fuga. Recorde-se que a nossa intenção é atingirmos a qualidade do encontro com o outro. Não desejamos unicamente que o outro entenda as nossas palavras, desejamos sim que ele escute o que se passa dentro de nós. Da mesma maneira que, ao escutá-lo, não desejaremos ouvir unicamente as palavras que ele pronuncia mas sim escutar o que se passa dentro dele. DEPURAR A NOSSA LINGUAGEM E A NOSSA CONSCIÊNCIA E)E TUDO O QUE GERA OPOSIÇÃO, DIVISÃO E SEPARAÇÃO
Ficaremos portanto atentos a esse trabalho sobre linguagem e consciência, para que as possamos depurar de tudo o que gera oposição, divisão, separação, para as limpar de tudo o que é - ou pode ser entendido como - juízo, interpretação, repreensão, crítica, preconceito, cliché, relação de forças ou de comparação. Porque sabemos, por experiência, que se outro entender algo que estamos a formular como um juízo, uma crítica, uma repreensão, um preconceito, ele simplesmente deixa de nos ouvir, tapa os ouvidos - por vezes com a maior das educações - preparando de imediato a sua resposta, a sua réplica. Ele não se liga a nós, ao que se passa dentro de nós, optando por preparar o seu contra-ataque ou a sua autodefesa. O exemplo de Pierre Numa conversa clássica, se Pierre disser à companheira «Quando dizes isso, sinto-me manipulado...», é provável que a companheira responda: «Não, não te estou nada a manipular. Tens a mania que estás sempre a ser manipulado, que coisa tão cansativa.» O que está ela a fazer? Está a justificar-se, a argumentar, a contradizer, daí que não esteja nem a ouvir Pierre, nem a escutar-se a si própria. Está fechada no seu espaço mental. Também poderá reagir assim: «Tu é que me estás a manipular, não vês a tua maneira de reagir...» O que está ela a fazer? Tendo considerado a atitude de Pierre como um ataque, ela contra-ataca, riposta. Daí que não escuta nem Pierre nem se escuta a si própria. Aplicando o método que proponho, Pierre poderia dizer à sua 79
companheira: «Quando me dizes que nunca me compreendes e que não fomos feitos para nos entendermos (Observação), sinto-me cansado e zangado (Sentimento) porque preciso de ser tomado por quem realmente sou e não pela pessoa que gostarias que eu fosse; também preciso de reconhecimento pela compreensão que regularmente tenho demonstrado por ti; por fim, preciso que haja mais segurança na nossa relação, preciso de ter a certeza de que não é por não te compreender todas as vezes, nem tão bem nem tão depressa quanto o desejarias, que deixo de gostar de ti e que deixas de ter importância para mim (Necessidade). Gostava de saber como é que te sentes ao ouvir-me dizer isso tudo (Pedido concreto e negociável).» Para a companheira, o facto de ouvir Pierre dizer que se sente cansado e zangado por ter três necessidades insatisfeitas que é capaz de apontar claramente, e relativamente às quais lhe pede um posicionamento sem juízo nem constrangimento, revelar-se-á menos ameaçador do que ser indirectamente tratada de manipuladora, como na primeira situação - o que, de resto, não trazia o mínimo esclarecimento sobre as verdadeiras questões inerentes à relação. A atitude de Pierre é mais convidativa do que no primeiro caso, sugerindo que se inicie uma conversa de fundo sobre as implicações profundas da relação: o respeito pela identidade de cada um, o reconhecimento e a estima mútua pelo ritmo e o modo com que cada um manifesta a sua atenção, e a segurança afectiva interior profunda, que passa a depender menos dos sinais exteriores de aprovação. Exercício Tente agora o leitor descodificar os verdadeiros sentimentos por detrás de alguns sentimentos-rótulos. Eis algumas afirmações. • «Sinto-me abandonado (por outras palavras: estás a abandonar-me).» Não será mais específico e verdadeiro dizermos: «Sinto-me só e triste, preciso de ter a certeza de que sou importante para ti, que tenho um lugar no teu coração, apesar de teres escolhido fazer outras coisas durante algum tempo em vez de estares comigo.» • «Sinto-me traída (por outras palavras: estás a trair-me).» Não será mais específico e verdadeiro dizermos: «Tenho medo, tenho muito medo, sinto uma enorme necessidade de poder contar com a nossa confiança mútua e a nossa franqueza, necessidade de saber que as coisas combinadas e os compromissos toma-
dos estão a ser respeitados e que, se assim não for, é possível falarmos abertamente sobre o assunto.» • «Sinto-me rejeitada (por outras palavras: estás a rejeitar-me).» Não será mais esclarecedor, mais informativo tanto para si como para o outro, ouvir-se: «Sinto-me infeliz, decepcionada e cansada (Sentimento), preciso de conseguir ocupar o meu lugar (no casal, na família, no grupo, na sociedade, no trabalho) e de me permitir ocupar o meu lugar; também preciso que os outros compreendam que isto é difícil para mim e que a ajuda ou o encorajamento deles ser-me-iam preciosos (Necessidade). Que posso dizer ou fazer, concretamente, para alimentar essas necessidades (procura de pedido)? Que posso eu própria fazer para mudar, como é meu desejo?« Como iremos ver mais adiante, no capítulo sobre o pedido, este tipo de tomada de consciência permite ultrapassar o cenário da «vítima sempre rejeitada», pois ajuda a definir o que se pode fazer concretamente para obter o apoio dos outros, e qual o passo (pedido, acção) concreto que poderá ser dado no sentido de mudar as coisas. • «Sinto-me excluído (por outras palavras: estás a excluir-me).» Não será mais responsabilizante e estimulante tomarmos consciência de sentimentos e necessidades tais como: «Sinto-me só, impotente e triste. Sinto uma profunda necessidade de integração, de partilha e de pertença. O que é que eu posso fazer concretamente para satisfazer estas necessidades? O que é que poderei eu próprio mudar para começar a alimentar essas necessidades?« Repare-se que, ao utilizarmos um sentimento verdadeiro, que realmente informe sobre o que se passa dentro de nós, temos mais hipóteses de nos concentrarmos sobre nós próprios e de começar a cuidar de nós próprios. Ao mesmo tempo, damos ao outro mais hipóteses de se concentrar sobre o que lhe estamos a dizer sobre nós próprios, e de realmente tomar em consideração o que estamos a viver. A nossa faculdade do «falar verdadeiro» estimula no outro a faculdade do «escutar verdadeiro». Falar verdadeiro, escutar verdadeiro Observe as conversas do costume, à mesa, em sociedade, no trabalho, em festas. É raro escutarmo-nos verdadeiramente: ficamos educadamente à espera da nossa vez de falar, preparando a nossa 81
intervenção. São monólogos atrás de monólogos. Não existe verdadeiro encontro e isso explica que as conversas férteis, estimulantes e energéticas sejam tão raras: não há falar verdadeiro nem escutar verdadeiro. Cruzamo-nos e não nos encontramos. Estou cada vez mais convencido de que essa é a carência fundamental de que tanto sofremos. Falta-nos a presença fértil que nasce do verdadeiro encontro. Falta-nos o encontro connosco mesmos e o encontro com os outros. Mas enquanto não soubermos que é isso que procuramos, tentamos preencher essa carência com todo o tipo de artifícios: inebriando-nos de trabalho, de conquistas amorosas, de hiperactividade, atordoando-nos em consumismo, posses, sedução, embrutecendo-nos com álcool, drogas, medicamentos, sexo ou jogo, dissimulando-nos por detrás das responsabilidades, dos deveres, dos conceitos e das ideias. Às vezes esperamos desesperadamente pelo milagre de um workshop terapêutico, de uma viagem ao fim do mundo, de uma experiência espiritual, antes de descobrirmos, como o alquimista de Paulo Coelho , que estamos sentados por cima do tesouro, que o tesouro está no âmago do encontro connosco próprios, que está em nós próprios e no outro, e que não existe outro bem que se possua, outro poder que se detenha, outra embriaguez que se prove, outra maravilha que se contemple, a não ser o encontro; que ele é que nos liga a nós próprios, aos outros, ao mundo, e que o único factor de exclusão e de separação existente encontra-se nas nossas próprias ideias que nos dividem. Tudo no universo se move e se encontra. E a natureza do movimento criador. Enquanto vivermos na consciência binária divisora (Deixo-te para poder estar comigo, deixo-me para poder estar contigo), experimentaremos a separação, a divisão, logo a carência. E trabalhando a consciência da complementaridade, a consciência unificada, que poderemos sentir cada vez mais o gosto da unidade na diversidade, e atingir o universal partindo do individual. Mas voltemos ao sentimento. Ao utilizar o sentimento, convido o leitor a tomar a máxima atenção à sua própria intenção. Qual é a minha intenção? Levar habilmente o outro a fazer o que eu quero, ou fazer com que cada um caminhe cordialmente em direcção ao outro? Cuidado com a manipulação afectiva! De facto, há outro velho e infeliz hábito que nos leva muitas vezes a usar sentimentos para controlarmos ou exercermos um certo poder
sobre o outro: «Fico triste quando tiras más notas na escola», «Fico zangado quando não arrumas o quarto», «Fiquei decepcionado ao ler o seu relatório» ou, pior ainda: «Decepcionas-me imenso», «Deixas-me completamente desanimado», «Dás-me cabo da paciência». Esta maneira de proceder não só não informa sobre as nossas necessidades, mas faz com que todo o peso do sentimento recaia sobre os ombros do outro: ele torna-se responsável, inteiramente responsável pelo nosso estado de espírito, e fazemo-lo pagar bem caro por isso. O nosso bem-estar passa a depender dele, e fazemos com que ele se sinta responsável pelo nosso bem-estar e culpado pelo nosso mal-estar. Nesse processo, desresponsabilizamo-nos do que estamos a viver, conferindo ao outro o incomensurável poder de determinar a nossa felicidade, ou infelicidade, e entregamos-lhe o controlo remoto do nosso bem-estar. E ele quem faz o «zapping», e nós vamos saltando de humor em humor consoante a sua vontade. Uma troca de palavras entre mãe e filho 1. Versão clássica. «Fico triste quando não deixas as tuas coisas arrumadas.» Para a mãe, isso significa que: • se o outro arrumar, fico contente; • se o outro não arrumar, continuo triste. Estou portanto a dar ao outro o poder de me manter na tristeza ou de me pôr contente, mas não a liberdade de fazer outra coisa. Por outras palavras, alimento um jogo de poder afectivo, uma relação de força desprovida de liberdade. A menos que ele compreenda e partilhe naquele momento a mesma necessidade de arrumação que a mãe, o filho não poderá deixar de pensar: «Coitada da mãe, está triste, vai sobrar para mim se eu deixar tudo na mesma. Quero que ela esteja contente. Por isso, vou fazer o que ela disse apesar de não compreender as suas razões, apesar de não apreciar as suas razões, apesar de ir agir contra a minha vontade.» No final desta cadeia de condicionalismos, ele terá aprendido a adaptar-se ao desejo do outro, esquecendo-se de si próprio. Também poderá pensar: «Quero lá saber, as coisas são minhas. Faço o que eu quero e nunca hei-de fazer arrumação nenhuma se for por obrigação.» E no final da cadeia de condicionalismos, terá aprendido a revoltar-se sistematicamente, a contestar automaticamente qualquer obrigação. 83
2. Versão não violenta. «Ao ver os teus cadernos em cima da mesa e a tua roupa no chão (Observação neutra para indicar ao outro, sem julgar, o tema da conversa) sinto-me contrariada (Sentimento) porque preciso de ajuda para pôr o jantar na mesa (Necessidade) e queria saber se concordas em ir arrumar as tuas coisas (Pedido concreto e negociável).» A mãe está contrariada por ter uma necessidade não satisfeita, e não especificamente por causa do filho. Ao indicar essa necessidade ao filho, ela dá-lhe a entender a sua contrariedade sem o oprimir, formulando logo de seguida um pedido negociável capaz de preservar a margem de liberdade do outro. A criança passa a ter a oportunidade ou a liberdade de se situar em relação ao pedido formulado, podendo responder: • sim, concordo em arrumar; • não, não concordo em arrumar agora porque prefiro fazê-lo mais logo, ou pedir ao meu irmão que o faça. Talvez o leitor duvide da eficácia deste diálogo, pensando por exemplo: «Oh! Com o meu filho é impossível, sem impor as coisas não se vai a lado nenhum...» Se assim for, verifique interiormente 1) o seu sentimento: não estará farto(a) dessa situação? e 2) a sua necessidade: não gostaria de partilhar os seus valores (a ordem, por exemplo) e as suas necessidades sem estar sistematicamente a criar resistências e a constranger o outro? Se se identifica com esse cansaço e com essa necessidade, alegre-se pois está a ler o livro certo! Partilhar, transmitir, permutar os nossos valores sem submetermos nem sermos submeter é de facto uma das vantagens da prática do método que tenho vindo a apresentar. OBEDECER É UMA COISA, RESPONSABILIZAR-SE É OUTRA.
Ao nomear uma necessidade específica, não só nos esclarecemos acerca de nós próprios assumindo claramente a responsabilidade do que vivemos, como também informamos o outro sobre o que se passa dentro de nós, respeitando a liberdade e a responsabilidade dele. Convidamo-lo a responsabilizar-se e não a obedecer. Convidamo-lo a estar em relação com ele próprio, mantendo a sua relação connosco. Um dia, em pleno estágio, ao reparar na minha insistência sobre a questão da importância de exprimirmos o sentimento verdadeiro e identificarmos a nossa necessidade, para podermos indicá-la ao ou-
tro sob a forma de um pedido não constrangedor, uma participante disse-me o seguinte: «Convenci-me de que me tinha formado em linguagem não directiva e que tinha aprendido a «falar na primeira pessoa» graças às minhas leituras e às minhas conversas, e achava que já sabia falar de mim própria simplesmente por dizer «eu» em vez de «tu» mas no fundo, o uso do «eu» não passava de um pretexto para eu descarregar para cima dos outros, de consciência leve, todo o meu lixo de frustrações. Afirmava por exemplo ao meu cônjuge: «Estou estafada porque não tratas das crianças... Já não aguento mais porque nunca me ajudas... Estou farta que nunca estejas em casa.» «Ele, que tinha feito as mesmas leituras que eu, respondia: «Mas querida, fala comigo na primeira pessoa, fala-me de ti, do que sentes, do que desejas.» «Então eu dizia: «É o que estou a fazer, estou a dizer que acho que te ausentas vezes demais, que me devias ajudar mais, que já é tempo que as coisas mudem...» «E ele: «Mas eu nunca deixei de te ajudar, e com este trabalho é mesmo assim. Estás sempre a queixar-te.» Nesta troca de palavras (não se pode sequer falar de diálogo, comigo a queixar-me e ele a argumentar e a contradizer-me), nenhum de nós tentava caminhar em direcção ao outro. Tentávamos desesperadamente trazer o outro a nós. Só agora sou capaz de medir o quão esclarecedor e responsabilizante é, no fundo, exprimirmos o sentimento juntamente com a necessidade.» Uma troca de palavras entre pai, ou mãe, e filho 1. Versão clássica. «Estou mesmo desanimado(a) e decepcionado(a) ao ver os teus resultados escolares deste mês. Se continuares assim, o ano lectivo não te vai correr nada bem. E mais tarde há-de ser difícil arranjares trabalho. Olha só para a tua irmã, é muito mais aplicada.» Estou a utilizar o sentimento para levar o outro a reagir por medo, culpa ou vergonha. Leia novamente esta versão assumindo o ponto de vista da criança, e veja qual é o seu estado de espírito, a que é que lhe sabe a vida, depois de ouvir os seus pais exprimirem-se desta maneira. 2. Versão não violenta. Observação: «Ao ver os teus resultados escolares deste mês, em especial o 6/10 em matemática e o 5/10 em 85
estatística (observação neutra e detalhada, para indicar ao outro o assunto ao qual estou a reagir)... Sentimento: fico pouco descansado^), fico preocupado(a)... Necessidade: e preciso que me tranquilizes acerca de duas coisas. Quero saber 1) se percebes a importância dessas disciplinas e a utilidade delas no teu futuro e 2) se te sentes bem na tua turma e com a professora, se te sentes integrado, se te sentes à vontade para lhe contar que tens tido dificuldades. Pedido: Concordas que deves dizer-me como é que tu te sentes em relação a isso tudo?« Mais uma vez, pergunte a si próprio como é que se sentiria se fosse uma criança e se os seus pais se exprimissem assim. Que lhe passaria pela cabeça, que sabor teria para si a vida? Quando faço este exercício com crianças, a reacção é clara. Na primeira versão, elas ficam com a impressão de estarem a ser julgadas, incompreendidas, rejeitadas. Para se libertarem do desconforto provocado por tais sentimentos, ora protestam e argumentam («A s'tora e a escola é que não prestam» ou «A culpa é do colega que me ficou com os apontamentos»), ora fingem indiferença («Oh, isso não interessa, é só um testezinho sem importância»), ora se mostram claramente confusas com o mundo que as rodeia («De qualquer maneira a escola não serve para nada, vamos todos parar à mesma ao desemprego.») Na segunda versão, as crianças sentem-se consideradas, acolhidas na sua dificuldade e no seu percurso. Sentem-se tocadas pelo desejo que os pais têm de compreender sem julgar. A proposta de se falar livremente sobre o assunto (sem recear qualquer constrangimento, expectativa a enfrentar, ou resultado a atingir) concede-lhes a liberdade de se exprimirem livremente. Nas duas partes seguintes, Comunicar é também dar sentido e Escutar sem julgar, proponho que o leitor observe e analise a forma como reagiram dois jovens, Jean e Isabelle, a esta segunda versão da troca de palavras entre pai ou mãe, e filho. Comunicar é também dar sentido Eis a reacção de Jean, um aluno de catorze anos. «— Gostava de dizer aos meus pais que não quero saber da matemática para nada. Bem queria eu que eles me explicassem para que é que serve estudar matemática, só que eles respondem sempre «Porque está no programa» ou «Porque é assim», ou «Não se faz tudo o que se quer na vida». Eu preciso de falar sobre o assunto e de perceber porquê.
— Queres dizer com isso que precisas de compreender o sentido do que estás a fazer, e que quando não compreendes esse sentido acabas por não fazer as coisas, ou por fazê-las mal feitas? — Sim, é isso. Quando não compreendo o sentido de uma coisa, preciso que mo expliquem. Comentários Este é para mim o aspecto mais fundamental da comunicação não violenta: dar sentido ao que faço ou ao que quero. Pessoas das gerações mais velhas, e certamente ainda da minha, chegaram de certeza a ouvir afirmações do género «É assim porque é», «Não estejas sempre a fazer perguntas», «Hás-de compreender mais tarde», «Há coisas que têm que ser feitas, quer queiras quer não». Sem contar, claro, com o trágico «É para teu bem» que tem feito tantos estragos e ao qual a psicanalista Alice Millervn) dedicou um livro famoso. Esse livro, precisamente intitulado É para teu bem, esclareceu-me acerca da mecânica subtil que, de um modo inconsciente dissimulado atrás de boas intenções, gera a violência desde a infância. Felizmente, essa atitude é cada vez mais rara, pois as gerações mais novas reclamam sentido e recusam as coisas cujo sentido não lhes é revelado. E uma situação nova: milhões de jovens a interpelar a geração anterior sobre questões de sentido, recusando-se a obedecer e a seguir cegamente instruções, hábitos e automatismos. Vejo nisso uma fantástica oportunidade de o ser humano se tornar mais responsável pelo que faz, para estar mais consciente dos porquês que o levam a agir. E óbvio que essa transformação não ocorre sem choques nem dor... No caso de o leitor ser pai ou simplesmente adulto, será que sabe sempre claramente qual é o sentido daquilo que faz? É capaz de apontar a cada instante e de explicar o valor ou a necessidade que o guia em todos os seus comportamentos? Cada um de nós é, mais tarde ou mais cedo, levado a rever a definição da sua vida, das suas prioridades, e a dar-lhes sentido. O motivo do actual desconforto de tantos pais, professores e educadores, tem muito que ver com o facto de eles próprios estarem a ser levados, pelos jovens, directa ou indirectamente, a reordenar as suas prioridades e a (re)definir o sentido dos seus actos e das suas vidas. A história que segue mostra isso mesmo. Certo dia um pai, homem de negócios, contou-me que o filho de doze anos lhe perguntou porque é que ele trabalhava dez horas por dia e nunca estava em casa. 87
«— Para ganhar a vida, respondeu o pai. — Sim, mas porquê? continuou a criança. — Pela nossa segurança e pelo nosso conforto, disse o pai. — Se é pela minha segurança e pelo meu conforto, preferia que me viesses buscar todos os dias à escola às 4 da tarde e que fôssemos juntos fazer desporto...» O pai reviu as suas prioridades e, depois de conversar com o filho sobre o assunto, combinaram ir juntos uma vez por semana fazer desporto depois da escola. Veja como a própria vida nos convida a mudarmos e a renovarmo-nos. Escutar sem julgar Eis a reacção de Isabelle, aluna de quinze anos. «— Há uma coisa sobre a qual eu gostaria de falar com os meus pais, mas se fossem eles a tocar primeiro no assunto, eu ia conversar com eles com mais à vontade. — Importas-te de me dizer do que é que se trata? — E que não me sinto nada bem nesta turma. Por causa dos programas e da repartição das aulas, sou a única da minha turma a frequentar uma aula de matemática com outro grupo de alunos que já se conhecem todos bem. Tenho tido dificuldades em integrar-me e em sentir-me à vontade para participar e tirar dúvidas. Mal digo que não percebi, começam todos a rir e a gozar comigo. Agora fico calada e já nem me atrevo a tentar tirar dúvidas. — Será que te sentes só (Sentimento) nessa situação e que precisarias da aceitação e da compreensão dos outros alunos (Necessidade)? — Sim, é isso. — Gostavas também de falar sobre o assunto com os teus pais para sentires a compreensão e talvez o apoio deles (Necessidade)? — Sim, só que eles não acreditam em mim. Acham que eu não estudo, que é tudo uma grande desculpa e que tenho que me esforçar mais... — Então sentes-te decepcionada e talvez zangada (Sentimento) porque precisas mesmo que eles percebam que não se trata de uma questão de estudos, mas sim de uma questão de ambiente na turma (Necessidade). — E isso mesmo. — Talvez te sintas cansada também por todos os esforços que
tens feito (Sentimento) e talvez precises simplesmente que eles dêem valor às tuas tentativas. — Sim (de lágrimas nos olhos). No fundo, só lhes peço que me escutem, que me deixem exprimir o que tenho vivido. Não quero que eles me ajudem ou façam alguma coisa. Só quero que me escutem sem me julgar.» Tenho ouvido muitas vezes essa simples necessidade: ser escutado sem ser julgado. Porque será assim tão difícil os pais escutarem um filho adolescente? Tenho verificado que muitas vezes é por acharem que devem fazer alguma coisa, agir, desempenhar, obter um resultado, uma solução, e quanto mais depressa melhor. Mas pode acontecer que eles não vejam solução nenhuma e se sintam impotentes, ou que estejam cansados de tentar encontrar soluções; consequentemente, para saírem dessa tensão provocada pela impotência, pelo medo ou pelo cansaço, ou fogem negando a existência do problema («Não é assim tão mau..., Estás a fazer um bicho de sete cabeças... Faz um esforço... A vida nem sempre é fácil...»), ou então atacam («A culpa é tua, não estudas o suficiente... Se lesses melhor os apontamentos...») em vez de simplesmente levarem o tempo necessário para ir ao encontro do filho e escutá-lo verdadeiramente. Repare que o próprio filho pode perfeitamente adoptar as mesmas atitudes: a agressão («Os meus pais não atingem nada..., São uma seca..., Estou farto...») ou a fuga («Desisti de lhes contar as coisas... Desapareço discretamente... Ponho-me a andar na desportiva...») por não conseguirem alcançar o encontro verdadeiro. Felizmente, é possível aprender a escutar. Atacar, fugir ou encontrar Numa peça de teatro que vi em Montreal em 1999 (cujo título e autor me esqueci, que ele me perdoe!) dizia-se o seguinte: «Ao saberem que a tribo vizinha entrou em pé de guerra contra a vossa, vocês têm três e só três possibilidades: fugir o mais depressa possível, pegar em armas para atacá-la, ou caminhar desarmados em direcção a ela na esperança de caírem todos nos braços uns dos outros.» Nas nossas pequenas guerras conjugais, familiares ou escolares, assim como nas nossas guerras étnicas, religiosas, políticas ou económicas, as mesmas opções são-nos oferecidas: atacar, fugir ou ir ao encontro do outro. Nas duas reacções-tipo acima relatadas, as de Jean e de Isabelle,
pode-se ver o quanto os resultados escolares nas disciplinas focadas não passam de um epifenómeno, de um sintoma. As verdadeiras necessidades estão por detrás, ou melhor, a montante. Atacar o sintoma sem recuar até à sua causa, é no melhor dos casos nada obter, ou então obter uma mudança de atitude exterior (Vou dizer que está tudo bem, ou vou passar a trabalhar como um mouro para compensar) que não resolve as questões de fundo (Como encontrar um sentido para o que faço? Como integrar-me num grupo apesar de parecer tão difícil?). No pior dos casos obtém-se um reforço do sintoma, do género: «Ah! não sou compreendido, o que hei-de fazer para ser verdadeiramente compreendido, talvez começando por faltar às aulas, depois desligando-me completamente da escola, e porque não uma depressãozita para rematar...» E assim se desencadeia a mecânica da violência em torno da não-comunicação: «Não te conto o que realmente tenho vivido. Não te pões à escuta do que realmente sinto. Fico irritado. Assustas-te. Revolto-me. Controlas. Revolto-me ainda mais. Reforças o controlo. Rebento. Reprimes. .. Ouve lá, não estás a ficar farto deste jogo tão bem combinado e que já dura há séculos? E se nos escutássemos um ao outro?» E claro que escutar-se e encontrar-se não é fácil. É uma prática que exige exercício, como a aprendizagem de uma língua ou de uma arte nova. A propósito dos nossos sentimentos Encontrará no fim deste livro uma lista de sentimentos. A lista não pretende ser exaustiva, sendo apenas o resultado da observação dos sentimentos habitualmente identificados nos workshops. A distinção clássica entre sentimentos positivos e sentimentos negativos não existe em comunicação consciente e não violenta, pois não é pertinente. Tanto a tristeza como a alegria têm a virtude de nos dizer algo sobre nós próprios. A fúria é um sinal extremamente precioso, já que indica a existência de muita vitalidade em nós ou no outro. As consequências dos sentimentos é que podem ser vistas como positivas ou negativas, não os próprios sentimentos. Sugerimos portanto que se faça, nos sentimentos, uma distinção que nos parece mais pertinente: • por um lado, os sentimentos agradáveis de se viver e que nos indicam que as necessidades estão satisfeitas,
• por outro, os sentimentos desagradáveis de se viver e que nos indicam que as necessidades não estão satisfeitas. Como já referi, também encontrará também uma lista dos sentimentos tingidos de avaliação que devem ser considerados como sendo impressões, imagens, sensações, e não como sentimentos propriamente ditos. A ideia é sermos capazes de escutar o sentimento verdadeiro que habita dentro de nós por detrás dessa primeira impressão, sentimento esse não contaminado pela atitude que se atribui ao outro. Nem sempre existe uma distinção absolutamente clara entre as palavras que designam sentimentos verdadeiros e aquelas que designam sentimentos tingidos de interpretação. Somos mais uma vez convidados a esclarecer a nossa intenção: esta é que nos indicará se estamos a comentar o que o outro faz ou deixa de fazer, ou se estamos a tentar compreender-nos a nós próprios. 4.
Identificar as nossas necessidades sem projectá-las sobre o outro
O medo, a culpa e a vergonha como ferramentas para se obter o que se quer? Recorde-se que todos nós, como bons rapazes ou boas raparigas, aprendemos antes do mais a escutar as necessidades do pai, da mãe, da avó, do irmão mais novo, da vizinha, do professor, etc, a escutar as necessidades de todos menos as nossas. Desta forma, habituámo-nos a acreditar que somos mais ou menos sempre e mais ou menos totalmente responsáveis pelo bem-estar do outro. No decorrer do processo, assimilámos uma impressão confusa e quase constante da nossa culpabilidade em relação ao outro, bem mais do que uma percepção esclarecedora da responsabilidade de cada um. Ao mesmo tempo, habituámo-nos a acreditar que o outro é mais ou menos sempre e mais ou menos totalmente responsável pelo nosso bem-estar. Integrados nesta alienação, acabámos por assimilar uma impressão confusa e quase constante da culpabilidade ou da dívida do outro em relação a nós, bem mais do que a percepção esclarecedora da responsabilidade de cada um.
INTEGRÁMOS UMA IMPRESSÃO CONFUSA E QUASE CONSTANTE DA CULPABILIDADE DE CADA UM EM RELAÇÃO AO OUTRO, MUITO MAIS DO QUE UMA PERCEPÇÃO ESCLARECEDORA DA RESPONSABILIDADE DE CADA UM
Esperamos assim muitas vezes que o outro cuide das nossas necessidades sem que as tenhamos sequer tentado identificar, ou dirigimo-lhe pedidos como se fossem exigências sem lhe explicarmos qual é a nossa necessidade, ou então sentimos necessidades «acerca do outro». Por exemplo, «Preciso: • que tu faças isto ou aquilo, • que tu mudes, • que tu sejas assim ou assado.» E se o outro não reagir no sentido que desejávamos, exprimimo-nos através de críticas, reprimendas ou juízos: «Podias esforçar-te mais... Com tudo o que tenho feito por ti... És mesmo egoísta... Se continuares assim, vou-me embora ou ponho-te de castigo.» Este tipo de formulação não nos revela rigorosamente nada sobre nós próprios, nem tão pouco esclarece o outro sobre o assunto. Mantém-nos, sim, na dependência do que o outro faz ou deixa de fazer: se fizer o que lhe dissermos para fazer, ficamos satisfeitos; se não fizer, não ficamos satisfeitos. E pronto! A verdade é que, muitas vezes, por não conhecermos as nossas necessidades nem conseguirmos exprimi-las de um modo negociável, utilizamos o medo, a culpa e a vergonha para obter o que queremos. O facto de tomarmos consciência da nossa necessidade ajuda-nos a compreender que esta realmente existe, independentemente da situação ou da pessoa com quem se possa estar. Estas, no fundo, só vêm activar a consciência da necessidade em causa, dando-nos uma oportunidade (entre tantas outras) de a satisfazer. De facto, as nossas necessidades são preexistentes a qualquer situação. Por exemplo, temos sempre necessidade de reconhecimento ou de compreensão, mesmo que estejamos a passear sozinhos no monte ou na praia. Talvez a necessidade não esteja obrigatoriamente «activada» nessa altura, ainda que esse momento de solidão possa precisamente proporcionar a oportunidade, consciente ou inconsciente, de alimentarmos a sós o reconhecimento ou a compreensão de que necessitávamos. Em todo o caso a necessidade faz sempre parte de nós, e tornar-se-á mais palpável quando nos reintegramos no grupo, na família, e na sociedade.
Quando era criança, a minha necessidade de afecto era sem dúvida em grande parte satisfeita pela atenção que me davam a minha mãe e o meu pai. Ao crescer, passei também a alimentar essa necessidade de afecto através da relação com os meus irmãos e as minhas irmãs, depois com os meus colegas de turma e, mais tarde, com a minha primeira namorada, com as relações amorosas e com os amigos. Durante vários anos de solidão afectiva, soube por experiência que essa necessidade existia mesmo que não estivesse satisfeita. Hoje em dia, sei que essa mesma necessidade é sem dúvida satisfeita em primeiro lugar pela minha relação com a minha mulher e com os meus filhos mas, ao mesmo tempo, também sei que existem na minha vida outras relações que a satisfazem: a família, os amigos, os colegas de trabalho, as pessoas em acompanhamento terapêutico. E também sei que a posso alimentar desfrutando uma música que goste muito, mergulhando nas profundezas de uma floresta de folhas sussurrantes ou ainda contemplando, maravilhado, o fim do dia ou a chegada da Primavera. Por isso, não espero que a minha mulher ou os meus filhos preencham toda a minha necessidade de afecto. Essa atitude traz duas vantagens. Por um lado, abro-me ao extraordinário potencial de amor do mundo, o que Rilke(VIII) descrevia pelo verso: «Uma bondade prestes a levantar voo sobre cada coisa velha.» Acredito profundamente que se estivéssemos prontos a saborear todo o amor que as mil facetas do mundo constantemente nos oferecem, viveríamos num clima de muito mais paz. Infelizmente, como refere Michèle Delaunay , «o (nosso) pessimismo faz-nos ver unicamente o que se vê, e a nossa distracção não nos deixa ver grande coisa». Por outro lado deixo o outro, neste caso a minha mulher, livre de me dar o que ela livremente me quiser dar. Ela não existe para aliviar a minha necessidade de afecto, nem é a metade que me vem consolar por eu ser só metade de mim mesmo, nem tão pouco a projecção de um amor materno incondicional que me teria faltado. Ela é ela mesma, plenamente, simultaneamente mulher, esposa e mãe. Juntos, não queremos jogos de simulação para nada, nem mesmo os mais bem ensaiados, queremos sim uma relação verdadeira entre pessoas livres e responsáveis. Tenho assim verificado que exprimir a nossa necessidade, diferenciando-a das nossas expectativas mais ou menos claras em relação ao outro, por um lado abre-nos a todo um potencial de soluções entre as quais pode existir a intervenção do outro, mas não só; e por
outro lado garante ao outro o seu espaço de liberdade, ou seja, a possibilidade de dizer: «Eu entendo a rua necessidade mas tenho outra necessidade. Que podemos fazer para cuidar das duas necessidades ao mesmo tempo, evitando satisfazer a tua com prejuízo da minha, e a minha com prejuízo da tua?» É essa liberdade que possibilita o encontro. E pela liberdade que damos a nós próprios, que nos ligamos um ao outro Para ilustrar a ideia de que o outro não existe para satisfazer as nossas necessidades, apesar de poder contribuir nesse sentido, referi-me à minha vida conjugal por duas razões. Em primeiro lugar porque fui durante muito tempo um homem solteiro que entrava em pânico com a ideia do compromisso afectivo, nomeadamente por receio de ter que preencher todas as necessidades do outro esquecendo-me completamente de mim. Nas minhas relações amorosas, sempre que o casal «ameaçava» constituir-se, eu arranjava maneira de o sabotar, deixando ao outro a decisão corajosa de partir. Era sistemático: nem decidia avançar, isto é comprometer-me, nem decidia acabar, «descomprometendo-me». Sei agora que o meu medo indicava as seguintes necessidades: • a necessidade de ter a certeza que iria permanecer eu próprio estando com o outro - não um ou o outro, mas sim um com o outro; • a necessidade de poder continuar a caminhar em direcção a mim próprio caminhando na direcção do outro - não um ou o outro, mas sim um com o outro; • a necessidade de poder partilhar afecto, compreensão e apoio sem ter que me responsabilizar pelo outro, nem correr o risco de o outro se responsabilizar por mim (entenda-se, de eu ser «mimado» por ele); • no fundo, a necessidade de me relacionar com uma pessoa que tivesse força interior e auto-estima suficientes para ser autónoma e responsável, que me amasse pelo que sou e não pelo que ela gostaria que eu fosse, e que eu amasse pelo que é e não pelo que eu sonharia que ela fosse. Eu não queria passar a minha vida a preencher as necessidades
de afecto, de segurança ou de reconhecimento do outro, nem que o outro existisse para preencher as minhas carências. Precisava portanto profundamente que cada um de nós tivesse devidamente identificado e experimentado essas necessidades (afecto, segurança, reconhecimento) para termos a certeza de que, se o outro pode naturalmente contribuir para a sua satisfação - e isso, sem dúvida, antes de qualquer outra pessoa - não é o único a poder fazê-lo. Esse espaço de liberdade, de respiração e de confiança era indispensável para o meu futuro compromisso, e hoje em dia dou um enorme valor à sorte de poder partilhar essa compreensão mútua com a minha mulher. Sei agora que é precisamente pela liberdade que damos a nós próprios que nos ligamos um ao outro. A segunda razão que me levou a referir a minha própria relação, é eu deparar-me tantas vezes com pessoas solteiras e casais que, nas consultas de acompanhamento, revelam dificuldades precisamente em torno dessas questões: «Deixo de existir para que ele/ela possa existir, para que ele/ela não tenha medo, para que ele/ela não se sinta abandonado(a)», «Proibi-me de ser eu próprio (aliás, nem sabia que uma pessoa podia ser ela própria) para não o/a incomodar, para não lhe dar insegurança», «Obriguei-me a mim próprio(a) a cuidar da casa, das limpezas, a agarrar-me ao meu emprego, à minha situação, com medo da reacção do outro, da sua insegurança, da sua necessidade de reconhecimento ou de integração social, familiar», «Fiz tudo por ele/ela, estava a ser sufocado por ele/ela », «Não me atrevo a ser eu próprio quando tenho uma relação, transformo-me no que o outro espera que eu seja (ou no que acho que o outro espera de mim) ou então afasto-me de tudo e todos». Essas dificuldades nas nossas relações poderiam resumir-se a uma questão, que cada vez mais me parece representar um dos desafios fundamentais da nossa realidade humana: como permanecer eu próprio estando com o outro, como estar com o outro sem deixar de ser eu próprio? Como permanecer eu próprio estando com os outros? Como estar com os outros sem deixar de ser eu próprio? Essa questão é muitas vezes resolvida através da violência, quer seja uma violência exteriorizada - obrigo o outro a fazer, ou a ser, o que eu quero - quer seja uma violência interiorizada - obrigo-me a fazer, ou a ser, o que o outro quer - em ambos os casos porque sou
vítima do pensamento binário. Recordemo-nos dos quatro mecanismos que referi no primeiro capítulo como sendo geradores de violência: os juízos, os rótulos, as categorias; as crenças, as ideias feitas, os preconceitos; o sistema ou pensamento binário: ora/ora, ou/ou; a linguagem desresponsabilizante. O que mais frequentemente ilustra, a meu ver, a violência do pensamento binário, é a crença trágica de que para se cuidar dos outros, é preciso privar-se de si próprio. Eis as duas consequências dessa crença: 1. Se cuidarmos de nós próprios, então privamo-nos dos outros. O resultado é uma impressionante contaminação dos corações com o sentimento de culpa, porque «Nunca se faz o suficiente pelos outros» mesmo que estejamos completamente esgotados. E mal paramos um pouco para descansar (uns minutos de sesta, umas horas da semana dedicadas só a nós próprios, uns dias de férias sem fazer nada) corrói-nos um peso na consciência. 2. Se quisermos, apesar do sentimento de culpa, cuidar de nós próprios, ficamos convencidos de que temos que nos desligar dos outros. O resultado são inúmeras rupturas, separações, divórcios e fugas porque «não consigo ser eu próprio quando estou com o outro, por isso afasto-me dele». Como se pudéssemos olhar adequadamente pelos outros, sem sermos capazes de olhar adequadamente por nós. Como se pudéssemos escutar adequadamente as necessidades dos outros, sem nunca pararmos um instante para escutar e compreender as nossas. Como se pudéssemos mostrar o respeito e a benevolência que temos pelo outro, em toda a diversidade dele e até mesmo nas suas contradições, sem mostrarmos também por nós próprios respeito e benevolência, e sem suportarmos as nossas próprias contradições. Uma vez mais, para se caminhar em direcção ao outro, não se pode dispensar o caminho em direcção a nós próprios. Renunciar ao pensamento binário Somos portanto levados a renunciar ao pensamento binário representado pelo uso dos «ou...ou...» e «ora...ora...», para entrar no pensamento complementar através do uso do «e»: Preciso de estar relacionado com o outro e preciso de estar relacionado comigo próprio. Não se trata de uma relação com um ou com o outro, mas sim de uma relação com um e o outro.
PARA CAMINHAR EM DIRECÇÃO AO OUTRO, NÃO POSSO DISPENSAR O CAMINHO EM DIRECÇÃO A MIM
Portanto, para escaparmos à violência do pensamento binário que nos mantém numa atitude de corte, de separação e de divisão, é do nosso interesse adquirirmos um bom conhecimento das nossas necessidades, distinguindo-as umas das outras e ordenando as prioridades que delas decorrem, de maneira a sermos cada vez mais capazes de compreender as necessidades do outro, aceitar as prioridades dele e ir adquirindo um maior à-vontade para abordar o assunto com a maior flexibilidade possível. Enquanto não estivermos cientes das nossas necessidades, estaremos pouco à-vontade para falar delas e custar-nos-á ainda mais negociá-las com o outro, e acabaremos por impor as nossas soluções, por nos submeter às soluções dos outros, ou ainda por adoptar qualquer tipo de meio termo entre estes dois extremos que são a dominação e a submissão. Poderemos por exemplo alimentar os tipos de relacionamento seguintes: • relação de sedução: metade de poder sobre o outro, metade de dependência em relação ao parecer dele; • relação de argumentação: quem está certo, quem está errado, quero sempre ter a última palavra; • relação de comparação: quem é ou faz melhor, quem é ou faz pior, atribuo aos outros o poder de determinarem o que está certo e o que está errado, ou então quem decide sou eu, sujeitando o outro à minha maneira de ser ou de fazer, ou então sujeito-me à maneira de ser ou de fazer do outro; • relação de cálculo: ele ou ela tem mais ou menos que eu; consigo, ganho mais ou menos; eu /tu faço /fazes mais ou menos que tu/eu, etc. Em qualquer um destes tipos de relacionamento, ainda não somos um ser livre e responsável: somos um ser dependente. Não agimos inteiramente pelo prazer de dar, de contribuir, de partilhar, mas sim com medo de falhar, de se romper a relação. Desta forma e de um modo cada vez mais óbvio, parece-me que a liberdade e a responsabilidade no âmbito das relações humanas, a começar pela relação que alimentamos connosco próprios, passam pela boa compreensão das nossas respectivas necessidades. 97
A necessidade não é desejo nem vontade Surge aqui uma nova distinção-chave. A necessidade não é desejo, nem vontade, nem tão pouco um impulso momentâneo. Muitas vezes caímos na nossa própria armadilha ao confundirmos uma vontade ou um desejo com uma necessidade básica. Esta distinção é importante por duas razões que o exemplo de Andrée e Thierry (ver capítulo I) ilustra muito bem. Primeira razão: sair da armadilha. Enquanto o marido achar que a sua vontade de ir jantar fora é uma das suas necessidades básicas, ele estará a cair na sua própria armadilha - e não na armadilha da mulher. Do mesmo modo, enquanto a mulher achar que a sua vontade de ficar em casa a ver um filme é uma das suas necessidades básicas, ela estará a cair na sua própria armadilha, e não na do marido. Quando o marido diz à mulher: «Não percebes nada das minhas necessidades», é no fundo a si próprio que deveria dirigir tal repreensão. E quando a mulher diz ao marido: «Tu é que não percebes nada das minhas necessidades», é a si própria que deveria dirigir tal repreensão. A perspectiva de um serão passado juntos e, de um modo geral, o próprio modo de funcionamento do casal só irão mudar para melhor quando cada um dos parceiros decidir percorrer interiormente nem que seja metade do caminho que espera que o outro percorra na sua direcção. O que os levaria ao seguinte diálogo: •O marido indica a sua necessidade à mulher sem lha impor (o pedido é negociável). •A mulher escuta a necessidade do marido sem se sentir obrigada a preenchê-la. •A mulher exprime a sua necessidade ao marido sem lha impor (o pedido é negociável). •O marido escuta a necessidade da mulher sem se sentir obrigado a preenchê-la. Eu preciso =£Eu preciso que tu... Essa liberdade ao se expressar a mensagem e ao recebê-la é que abre o caminho, sem constrangimento nem resistência, para uma solução capaz de satisfazer ambas as partes. Segunda razão: ser-se mais criativo. Enquanto marido e mulher se agarrarem desesperadamente às suas respectivas vontades sem
verificarem quais são as necessidades de origem, a solução encontrada (jantar fora ou noite passada a ver filmes) nunca será tão criativa nem tão plenamente satisfatória como a que tiver sido alcançada pelo casal após ter recomeçado o diálogo em comunicação não violenta. A ideia, encontrada pelos cônjuges em conjunto, de fazerem um piquenique à beira do lago revela-se de facto bem mais inovadora e agradável do que as duas propostas anteriores. É portanto conferenciando que se abre o caminho para a invenção de todo um leque de soluções. Mas não sejamos ingénuos! De um ponto de vista realista, é bem provável que a solução encontrada na maioria das vezes não «preencha» as duas pessoas a cem por cento. Tenho observado na vida de todos os dias uma enorme diversidade de sensibilidades, de personalidades, de ritmos, de expectativas, de prioridades, de sentidos de humor (e em especial do humor em relação a si próprio), assim como a preocupação das pessoas de darem sentido às coisas, e não acredito no sonho de podermos vir a encontrar soluções que tenham em conta, de um modo constante e completo, todas as necessidades de cada um. No entanto, a experiência mostrou-me que, na busca cordial de uma solução, se obtém uma qualidade de escuta e de respeito de tal ordem, que a solução concreta por fim encontrada acaba por ser acessória à própria relação, e não o contrário! Primeiro a relação! A intendência virá depois Quantas vezes, nos nossos relacionamentos, a qualidade da relação se torna acessória quando confrontada com os problemas concretos! Resolvem-se primeiro as questões de intendência, ou seja de organização material, e só depois tratamos de nos entender, se sobrar tempo... Como tantas outras crianças, também eu sofri as consequências dessa prioridade dada pelos adultos às questões de intendência, sempre com o pretexto de estarem sobrecarregados de responsabilidades: «Está bem, está bem, mais logo, ainda tenho roupa para dobrar», «Agora não, estou a pôr ordem nestas coisas», «Não estás a ver que estou ocupado?», «Estou mesmo cheio de trabalho, agora não dá, falamos mais tarde», «Vá, despacha-te, estou cheia de pressa», «Não temos tempo.» Não me lembro de ver a minha mãe sentada no sofá mais de três minutos por semana. Costumava ser ao domingo, antes do almoço. 99
Sentava-se num canto do sofá (não tinha tempo para se instalar confortavelmente), bebia um pouco de licor e dizia: «Sabe tão bem uma pessoa sentar-se um pouco» e upa! nem sequer quatro minutos depois, lá ia ela outra vez para a cozinha para servir o almoço! Depois tinha que arrumar tudo à pressa para poder fazer, sempre cheia de pressa, mil outras coisas... Quando eu queria passar um momento a sós com ela, tinha que inventar uma série de artimanhas: ajudá-la a dobrar a roupa, a arrumar a cozinha, a pôr ordem num quarto, ou, no melhor dos casos, aproveitava uma viagem de automóvel a qualquer lado. Só então, ainda que de modo acessório, podia existir uma relação. Quando hoje me lembro dessa correria frenética, não posso deixar de pensar que aprendi muito mais a «fazer» do que a «estar», isto é, a fazer coisas em vez de estar numa relação. Naturalmente, acabei eu próprio por reproduzir essa hiperactividade: acreditem, o conceito de «agenda sobrecarregada» não me é nada estranho! Essa prioridade dada à organização, e não à relação, voltou-se contra mim na altura em que Valérie e eu estávamos a preparar o nosso casamento, que iria ser celebrado na Holanda. Eu ainda me encontrava na Bélgica alguns dias antes do evento. Certo dia, Valérie telefonou-me da Holanda para resolvermos uma série de questões urgentes, precisamente questões de intendência. Apanhou-me no carro, pois eu estava na estrada entre duas reuniões. Fiquei um pouco irritado por não estar in loco a tratar de tudo, por sentir que não nos estávamos a compreender um ao outro, e tive medo que a sucessão de eventos que eu idealizara para a festa não se pudesse concretizar. Respondi-lhe de forma brusca e, com os nervos à flor da pele, dei a conversa por terminada. Só então compreendi que estava a reproduzir fielmente o cenário habitual, dando mais importância às questões de intendência do que à própria relação. De forma inesperada, a organização da festa de casamento tinha-se tornado numa prioridade, substituindo-se à qualidade da minha relação com a noiva! Liguei-lhe logo a seguir para lhe dizer que estava surpreendido e que lamentava a minha reacção (Sentimento), que realmente desejava, por um lado, acolher melhor as suas preocupações (Primeira necessidade) e, por outro lado, pôr em primeiro lugar a qualidade da nossa compreensão mútua e não as questões de intendência (Segunda necessidade). Concretamente, sugeri-lhe que nessa mesma noite levássemos todo o tempo necessário para resolver as questões pendentes (Pedido concreto). Mas voltemos à situação referida anteriormente, relativa ao meu
desejo de partilhar um momento de escuta com a minha mãe. Se eu e a minha mãe tivéssemos recebido nem que fosse rudimentos de comunicação consciente e não violenta, poderíamos ter tido o diálogo seguinte . «— Mãe, preciso de um momento de atenção e de escuta (Necessidade), concordas em sentar-te ao meu lado durante cinco minutos (Pedido)? — Sinto-me sensibilizada por queres conversar comigo (Sentimento) porque preciso de escutar cada um dos meus filhos (Necessidade) e ao mesmo tempo sinto-me preocupada (Sentimento) porque ainda tenho muito que fazer antes do fim do dia (Necessidade). Não te importas de conversar comigo e dar-me uma ajuda ao mesmo tempo? — Fico mesmo contente (Sentimento) por me dizeres que precisas de escutar cada um dos teus filhos, sinto-me mais descansado (Necessidade de segurança afectiva). Ao mesmo tempo, ao ouvir a tua proposta (Observação), não fico lá muito seguro (Sentimento) de estares realmente disponível para me ouvir enquanto fazes outras coisas (Necessidade de disponibilidade). Queres que eu te garanta que são mesmo só cinco minutos que te peço, e não meia hora, e que te vai sobrar tempo para fazeres o que tens a fazer? — Sim, preciso dessa garantia sobre o tempo que me vai sobrar (Necessidade). Fico grata por manifestares essa preocupação em relação ao meu tempo, e agora convido-te a passarmos cinco minutos juntos mal eu acabe de fazer isto, pode ser? — Pode ser, obrigado.» Comentários 1. Era a armadilha do sistema binário que fazia a minha mãe dizer: «Não tenho tempo», ou melhor, «Vocês são cinco (implicitamente: cinco filhos) e não tenho tempo (implicitamente: para dar ouvidos a cada um).» Estou plenamente convencido de que ela gostaria de ter dito, como no exemplo: «Preciso de escutar cada um dos meus cinco filhos mas também preciso de gerir a intendência da casa, e não estou bem a ver como hei-de poder cuidar dessas duas necessidades.» No entanto, por ser difícil identificarmos as nossas várias necessidades quando elas são muitas, em especial aquelas que não sabemos como satisfazer, a minha mãe só referia a necessidade que lhe parecia ser então a mais urgente ou a mais óbvia, sem nomear as outras. 101
2. É sempre esclarecedor tentar-se identificar e nomear as várias necessidades em causa ou em jogo, mesmo que não apareça nenhuma solução imediata. Porquê? Em primeiro lugar, porque isso faz-nos voltar a assumir o controlo do nosso veículo em plena consciência, em vez de nos deixarmos telecomandar pelo inconsciente. Faz com que cada um redefina as suas prioridades, para ser capaz de se abrir às mudanças tornadas necessárias. Enquanto eu não fizer o ponto da situação relativamente às minhas várias necessidades, sujeito-me a adoptar cegamente uma atitude que preencha uma única necessidade, pondo de parte todas as outras. O risco que se corre é a crispação na vida e, por fim, a anestesia. CRESCER É TAMBÉM DAR A SI PRÓPRIO UMA OPORTUNIDADE DE REDEFINIR AS SI AS PRIORIDADES
Em segundo lugar, ficamos mais esclarecidos ao identificarmos as nossas necessidades pois assim estamos predispostos a vislumbrar novas soluções precisamente onde estas não teriam a mínima hipótese de surgir, antes de a necessidade ser identificada. Trata-se do tal convite à criatividade que referi anteriormente. No nosso exemplo, enquanto a mãe se limitar a identificar as suas necessidades, digamos, de intendência (ordem, eficácia, organização harmoniosa do lar) sem nunca referir a sua necessidade de oferecer uma escuta imparcial aos filhos, as hipóteses de arranjar tempo para cada um são bem mais fracas do que se ela tiver consciência de que está dividida entre duas necessidades, a intendência e a escuta. Nesta última versão, apesar de ela não encontrar nenhuma solução imediata e plenamente satisfatória, já está a dar à necessidade de escuta uma oportunidade: pelo menos pode-se falar no assunto, e chegar-se por exemplo à conclusão de que longas horas de escuta não são obrigatoriamente necessárias, mas talvez só alguns minutos especificamente dedicados ao filho, após os quais ele sentir-se-á mais apaziguado com as questões de identidade que o apoquentavam. Em terceiro lugar, é importante que cada um esclareça as suas necessidades porque mesmo que não haja possibilidade de solução imediata, essa simples consciência permite pelo menos que a necessidade exista, isto é, autoriza uma parte de nós a viver, mesmo que seja de um modo apagado.
DAR VIDA À PARTE ABAFADA QUE HÁ EM NÓS, PARA SÓ ENTÃO NOS DESFAZERMOS DELA
Tenho observado que muitos pais silenciam ou recalcam a sua própria veia artística ou criativa: «Não tenho tempo para isso, primeiro vêm os meus filhos, o meu cônjuge, a minha família.» Como é óbvio, esse tipo de prioridade pode levar-nos a adiar a manifestação de um talento. O que me parece urgente, é a pessoa permitir que essa necessidade exista em si, ser capaz de acolher a existência dessa necessidade ao mesmo tempo que acolhe a impossibilidade provisória de a satisfazer. Portanto, em vez de a abafar através da atitude acima evocada («Não tenho tempo...»), é vital que a pessoa possa acolher essa necessidade para lhe dar vida e, simultaneamente, se desfazer dela: «Gostaria muito de poder desenvolver esta veia artística ou de alimentar o meu impulso criativo e arranjar disponibilidade para isso, mas ao mesmo tempo quero por enquanto dedicar o meu tempo e a minha energia ao meu filho e ao meu cônjuge, à minha família.» Admitir a existência de todas as partes presentes em nós em vez de recalcar uma delas, é começar realmente a viver. Se recalcarmos uma parte de nós sem nos darmos previamente ao trabalho de acolhê-la, arrastaremos para sempre connosco essa parte abandonada porque não lhe dedicámos o necessário tempo de luto - já que nem sequer a deixámos viver. Essa parte de nós deixada ao abandono irá então pesar intensamente sobre as partes realmente vivas, pondo em risco todo o nosso impulso vital. Duas expressões cruciais 1. «Por enquanto» Na frase acima referida («Quero por enquanto dedicar o meu tempo e a minha energia prioritariamente ao meu filho e ao meu cônjuge, à minha família»), é a própria noção de tempo que cria o espaço para respirar. Mantém-se viva a consciência de que tudo está constantemente em movimento. Deixa-se a porta aberta ao talento, para o qual mais tarde se poderá criar um lugar. Pense, por exemplo, em algo que é incapaz de fazer actualmente e diga-o deste modo: «Não percebo nada de informática, não sei cantar, sou incapaz de falar em público» e depois sinta como está a sua vitalidade interior. Agora, acrescente simplesmente: «por enquan103
to»: «Por enquanto, não percebo nada de informática. Por enquanto, não sei cantar. Por enquanto, sou incapaz de falar em público.» Como está agora a sua vitalidade interior? Como vê, podemos optar entre utilizar uma linguagem e uma consciência que fecham, ou uma linguagem e uma consciência que abrem. 2. «E ao mesmo tempo», em vez de «Mas». Não há oposição, mas sim duas necessidades simultâneas, sendo que uma é realizável e a outra não. A utilização do «mas» divide a consciência ao anular ou reduzir a primeira proposição gramatical. A utilização de «e ao mesmo tempo» coloca as duas proposições em perspectiva. Pegue em qualquer frase onde a tendência seria dizer, por exemplo: «Concordo contigo porque... mas...» Substitua o «mas» por «e ao mesmo tempo», e pergunte interiormente a si mesmo se o método oferece ou não uma percepção diferente. As nossas necessidades precisam mais de reconhecimento do que de satisfação Um amigo meu, um bancário que tinha participado numa formação moderada por mim, contou-me semanas depois que sentia grandes dificuldades de estar disponível para os filhos depois de voltar do trabalho, todos os dias pelas oito da noite. «Só me apetece ficar sem fazer nada, abrir o jornal ou ver televisão, mas não tenho energia para aguentar as solicitações dos meus três filhos. Mas também me apetece estar um pouco com eles todos os dias, de maneira que me esforço por brincar eles, mas no fundo sei que não estou disponível e fico logo irritado.» Reformulei a situação para me certificar que a tinha entendido e para permitir que identificássemos juntos as necessidades em causa. «— Sentes-te dividido entre uma parte de ti que está estafada e que precisa de sossego e de calma naquela altura do dia, e outra parte que se sente sensibilizada com a ânsia dos teus filhos e que gostaria de encontrar energia para lhe responder? — É exactamente isso. Preciso de tempo para mim, mas não consigo. E todas as noites, antes de sair do carro, já em frente de casa, sinto sempre a mesma tensão, uma tensão que dá cabo de mim. — Sugiro então que, antes de saíres do carro, dediques simplesmente três minutos a ti próprio, pode ser até um minuto, para escu-
tares as tuas necessidades e acolheres as várias partes de ti próprio: por um lado a tua necessidade de paz, de sossego e de tempo para ti e, por outro, a tua necessidade de disponibilidade e de receptividade para com os teus filhos. Pára simplesmente para dizeres a ti próprio, interiormente, ou até mesmo em voz alta para que tudo fique bem claro no teu coração: «Precisava tanto deste momento para me deitar no sofá a ler o jornal ou ficar a ver televisão, só isso. Preciso de me descontrair depois deste dia tão tenso, preciso de me instalar confortavelmente e descansar.» Leva todo o tempo que for necessário para apreciares o simples bem-estar provocado pela perspectiva do que te espera, e aprofunda esse bem-estar, de maneira a estares mais disponível para acolheres a outra parte de ti que diz interiormente: «E ao mesmo tempo, também preciso de acolher os meus filhos e dedicar-lhes algum tempo.» Só depois, abres a porta de casa.» Uns dias mais tarde, esse amigo telefonou-me para me agradecer: «Custou-me a acreditar que a tua sugestão fosse capaz de me ajudar. Mas fiquei surpreendido ao reparar que isto de tomar consciência do meu mundo interior, sem forçar uma parte nem recalcar a outra, pode ser extremamente tranquilizante. Antes, era como se deixasse uma parte de mim dentro do carro. Nestes últimos dias, senti que estava a chegar inteiro a casa.» Num workshop de vários dias separados por intervalos, um educador que trabalhava num centro para crianças em dificuldades contou-me que estava farto de ser o «banana» de serviço, sempre disponível para substituir os colegas quando estes não podiam ir trabalhar. «— Chamam-me sempre a mim à última hora. Sobretudo para levar os grupos à natação no fim do dia, porque eles sabem que eu nunca recuso. Acabo por ir, claro, porque os jovens precisam de um acompanhante, e se eu não for a saída pela qual tanto esperaram fica comprometida. Mas no fundo não estou assim tão disponível: passo o serão a refilar e irrito-me facilmente com os miúdos. Ao fim e ao cabo, eles é que acabam por pagar pela minha má disposição. — Sentes-te contrariado por uma parte de ti estar farta (S) que recorram sistematicamente a ti à última hora, porque querias poder recusar para aproveitares o serão e querias que os outros colegas se disponibilizassem também (N), e por outra parte de ti estar realmente preocupada (S) com a ideia de os jovens não poderem sair, como era seu desejo (N)? — Sinto, sinto-me dividido e isso impede-me de estar a cem por cento onde estou.
— Se escutares essas várias necessidades: necessidade de haver uma repartição das tarefas entre colegas, necessidade de respeito pelo teu tempo livre e pela tua vida privada, e por outro lado, a necessidade contribuir o mais possível para o bem-estar dos jovens de que tomas conta, como é que te sentes? — Sinto-me sensibilizado, porque tomo consciência de que ao aceitar essas substituições, estou a optar por uma necessidade prioritária: ajudar os jovens. Posso muito bem, um dias destes, fazer outra opção. — Sugiro que, para a próxima vez que te pedirem isso, pares para escutar as tuas várias necessidades, de maneira a estares completamente disponível para aquilo por que optares fazer.» Uma semana depois, contou-me que tinha novamente aceite fazer uma substituição para levar os jovens à natação no fim do dia: «Parei para escutar-me a mim próprio, como tinhas sugerido. A prioridade em relação aos jovens impôs-se claramente a mim e lá fui eu, alegremente. Até tinha planeado fazer uma série de coisas em casa naquela noite mas aceitei adiar os meus projectos, e senti-me plenamente disponível para estar com os jovens.» Tenho tentado por várias vezes compreender esta questão. O que frequentemente tenho notado é que enquanto não tivermos realmente feito o ponto da situação em relação às nossas necessidades, enquanto fizermos as coisas por hábito ou por dever, «porque tem que ser, não tenho hipótese», o outro ou o objecto da nossa actividade é visto como se nos impedisse de sermos nós próprios ou de vivermos a nossa vida. Então fazemo-lo pagar por isso aberta ou subtilmente, ou pagamos nós próprios por isso. A violência desencadeia-se aberta ou subtilmente. Mas ao pararmos para fazer interiormente o ponto da situação, temos a oportunidade de viver plenamente o que fazemos.
A propósito das nossas necessidades O leitor encontrará no fim deste livro uma lista de necessidades. Essa lista, como a dos sentimentos, não pretende ser exaustiva, resultou da observação das necessidades habitualmente focadas em workshops ou durante as consultas. A sua apresentação é uma mera proposta. Indicam-se primeiro as necessidades fisiológicas (comer, beber, dormir), depois as necessidades de ordem individual ou pessoal (sentido, espaço, identidade, autonomia, evolução), a seguir as necessidades de ordem social ou interpessoal (partilha, reconhecimento, dom, acolhimento) e por fim as necessidades de ordem espiritual (sentido, amor, confiança, bondade, alegria) e de celebração da vida (gratidão, comunhão, luto). 5. Formular um pedido concreto, realista, positivo e negociável Mesmo que algumas das nossas necessidades, como se viu anteriormente, precisem mais de reconhecimento do que de satisfação, não deixamos de querer preencher a maior parte delas. Se nos contentássemos com a simples consciência das nossas necessidades, sem saber concretamente o que fazer com elas, corríamos o risco de viver num mundo virtual pouco satisfatório, numa espécie de busca insaciável: «Preciso de amor, preciso de reconhecimento, de compreensão, mas nunca faço nada para o obter. Fico à espera que «alguém» cuide de mim.» Encarnar a necessidade aqui e agora
ESCOLHER SEM NADA NEGAR NEM RENECAR O QUE EM NÓS VIVE
Eis portanto as vantagens que decorrem da formulação de um pedido ou de uma proposta de acção concreta, realista, positiva e negociável.
Identificar a nossa necessidade de descanso, de dedicar algum tempo a nós próprios, de dispormos do nosso serão, etc, não significa necessariamente satisfazê-la. Pretende-se simplesmente tomar consciência dela, no sentido de não negarmos nada nem renegarmos o que em nós vive. Esse tipo de consciência é o preço a pagar para que haja uma escolha viva, que envolva toda a nossa vitalidade, e não só dez ou quinze por cento de nós próprios.
1. O pedido é concreto. Podemos até passar uma vida inteira mergulhados em ideias, ideais e conceitos magníficos, mas corremos o risco de nunca encontrar a realidade, de nunca encarnarmos completamente no aqui e agora. Eu, pessoalmente, passei muito tempo a alimentar esse complexo de Peter Pan, que se poderia resumir da seguinte forma: «Concordo em ver a realidade pelo vidro da janela, mas tenho medo de
entrar nela verdadeiramente, tenho medo de falhar, medo da imperfeição, medo da sombra e do incompleto. Adio a tomada de decisões.» Percorrendo um caminho aparentemente muito clássico, sonhei que tudo era possível. E durante muito tempo preferi assim manter todas as portas abertas sem nunca entrar por nenhuma, até perceber que na vida há de facto uma data de coisas possíveis umas atrás das outras, mas existe «um só possível» de cada vez. É o pedido que confere «um possível» à necessidade, permitindo que ela saia de detrás da janela. O pedido dá-lhe uma hipótese de se encarnar, manifestar. Em trabalho de acompanhamento, tenho verificado que a dificuldade de passar à fase do pedido ou da acção concreta está fortemente ligada a outra dificuldade, a de uma pessoa dar a si própria o direito de existir e de escolher uma verdadeira encarnação, independentemente das expectativas e do olhar do outro. Recordo-me de um homem, na casa dos sessenta, que chegou à consulta preocupado com a partilha de uma herança com as duas irmãs, depois de elas lhe dirigirem uma proposta que não lhe agradou. Conseguiu esclarecer bastante depressa a sua necessidade de equidade, mas quando lhe perguntei como é que «concretamente» ele iria obter mais equidade na partilha, foi incapaz de sugerir uma repartição prática dos bens. Estava sempre a tocar na mesma tecla da reivindicação e da sua necessidade: «Isto tem que ser justo, e o que elas me estão a propor não é justo.» Mas como não formulava nenhuma proposta relativamente à qual as irmãs se pudessem posicionar, estas tinham acabado por aborrecer-se com ele, o que certamente não contribuía para o entendimento de todos! DEFINIR É LIMITAR, É ACEII \it A l IMITAÇÃO
No fundo, era para ele extremamente difícil definir concretamente o seu pedido porque definir é limitar, aceitar a limitação. Esta frase tocou-lhe numa corda sensível: a ideia de ter que encontrar um limite concreto, uma medida específica, para a sua busca de equidade era para ele revoltante. Por várias razões que estudámos juntos, a sua necessidade de justiça nunca estava preenchida. Ele passava a vida a comparar e via em cada proposta uma inaceitável limitação à sua busca insaciável. No fundo, por detrás da necessidade de equidade, existiam necessidades de reconhecimento, de identidade e de estima que permaneciam insatisfeitas. Deste modo, ao trabalharmos sobre a dimensão concreta e por vezes puramente prática do pedido,
trabalhamos sobre a nossa integração na realidade, aceitando a nossa própria limitação. 2. O pedido é realista. O pedido considera a realidade como ela é, e não como se receia que ela seja ou como se sonha que ela seja. As pessoas que sentem uma necessidade de mudança, por exemplo, visam muitas vezes um objectivo de mudança tão radical que arranjam assim uma óptima desculpa para nunca mudarem: «É muito difícil, custa muito, implica muita coisa, envolve muita gente ou demasiados aspectos da minha vida, por isso não mudo nada!» PROCURAR PRIMEIRO A MAIS PEQUENA COISA QUE POSSAMOS FAZER; A MUDANÇA VIRÁ DEPOIS.
Por isso, é precioso levar o outro ou levar-se a si próprio a perguntar: «Qual é a mais pequena coisa, ou a coisa mais agradável mesmo que seja pequena, que eu possa dizer ou fazer e que vá no sentido da mudança que desejo, no sentido da necessidade que identifiquei.» Não a maior, mas sim a mais pequena, não a mais penosa, mas sim a mais agradável. Essa ideia surpreende muitas vezes as pessoas porque o nosso espírito, habituado ao desempenho máximo e treinado para atingir resultados, procura um desafio com o qual se possa medir, um desafio com implicações profundas e abrangentes. Como se a realidade não fosse feita de uma data de pequenas coisas entrelaçadas a uma data de outras pequenas coisas, capazes no entanto de formar, todas juntas, grandes coisas. Este aspecto modesto e realista do pedido é muitas vezes posto em causa, nesta época dominada pelo automatismo dos botões: telefones, televisores, electrodomésticos, automóveis, computadores... Muda-se de espectáculo, de canal, de interlocutor e de velocidade com um simples botão! Aceitar a humildade e a lentidão do processo vivo tornou-se um acto tão pouco habitual, que muita gente chega a achar que é uma atitude pouco natural. No entanto, não deixa de o ser! Uma mulher muito abalada pelo falecimento do marido veio ter comigo para iniciarmos um trabalho de acompanhamento. Após uma série de consultas, identificou que o sentimento que a dominava era o medo e que este indicava a sua necessidade de autoconfiança. Ficou surpreendida por chegar a essa conclusão, dizendo: «Nunca pensei 109
em confiar em mim mesma, essas palavras não existiam na minha cabeça. Sempre confiei nos meus pais e depois no meu marido, na minha família. Agora, parece-me que estou realmente a sentir essa necessidade, mas com a minha idade nunca hei-de conseguir.» Sugeri-lhe uma acção concreta: renunciar à «auto-sabotagem», induzida pelos pensamentos negativos e pelas considerações mentais obscuras do género «com a minha idade nunca hei-de conseguir», e simplesmente formular a sua necessidade em voz alta para lhe conferir o direito à existência. Então ela repetiu, hesitante: «Preciso de confiar em mim mesma, preciso de acreditar que posso confiar em mim mesma.» Deixei que se fizesse um silêncio e disse depois: «Sugiro-lhe simplesmente que acolha essa necessidade durante os próximos dias, sem se preocupar com o resultado. Concentre simplesmente a sua atenção na necessidade em causa e não procure nenhuma solução. Deixe essa ressonância instalar-se no seu coração.» Na sessão seguinte, uma semana depois, ela começou da seguinte forma: «Estou-lhe muito grata por me ter sugerido que não receasse acolher a necessidade de confiar em mim mesma. É incrível, esta sensação de não ter nada «que fazer» ou nada que procurar mas simplesmente deixar vir ao de cima o que, pelos vistos, estava em mim, fez com que eu começasse a sentir confiança. É ainda muito ténue, mas algo está diferente e sinto-me mais descansada só de pensar que já posso contar mais comigo própria.» Umas semanas mais tarde, a senhora já tinha começado a reorganizar a sua vida de um modo muito concreto. Neste caso, o princípio de realidade foi elementar: aceitar primeiro a simples noção de necessidade. As soluções vêm depois. 3. O pedido é positivo. Imagine que está a ouvir música enquanto o seu cônjuge trabalha no escritório da casa. Ele vem ter consigo e diz: «Estou a trabalhar, desligas-me essa música, se fazes favor?» Como é que se sente? Agora, imagine que ele se aproxima e diz: «Preciso de calma para poder trabalhar durante mais uma hora. Concordas em ouvir música daqui por uma hora, ou então em ir ouvi-la para outro quarto?» Agora como é que se sente? Quando faço este exercício em grupo, costumo ouvir: «Prefiro a segunda versão». Então porquê? «Porque não gosto que me impeçam de fazer o que estou a fazer. Na segunda versão, estão a sugerir-me que continue a fazer o que estou a fazer mais tarde, ou então noutro
sítio, e sempre é mais agradável do que ter que interromper.» De facto, nunca gostamos de ter que interromper algo, e com certeza já ouvimos vezes sem conta «Pára de te mexer dessa maneira, de fazer barulho, de brincar, etc.» Não gostamos que nos impeçam de fazer as coisas, preferimos que nos convidem a fazê-lo. É subtil, pensará o leitor. É mesmo, e é precisamente nisso que está, a meu ver, a subtil essência da comunicação que vos tenho vindo a apresentar: evitar na linguagem e na consciência tudo o que divide, compara, separa, refreia, fecha, resiste, entala, embaraça; e favorecer tudo o que abre, conjuga, reúne, permite, convida, estimula, facilita. Repare que ainda tenho velhos reflexos: o título* deste livro interpela, «deixe de ser boa pessoa», antes de convidar a ser-se verdadeiro. 4. O pedido é negociável. De nada serve termos cuidado com a observação dos factos para que o outro não sinta nenhum juízo ou repreensão (como no exemplo mãe-filho anteriormente citado: «Quando vejo os teus sapatos nas escadas e a tua pasta no sofá...»), nem termos cuidado com a expressão do sentimento para evitar qualquer interpretação ou juízo («Sinto-me triste ou desanimada...»), nem identificarmos adequadamente a nossa necessidade sem implicarmos o outro («Preciso de ordem e de respeito pelo meu trabalho...»), de nada servem todos estes cuidados se, ao chegarmos à fase do pedido, cairmos numa atitude de exigência sem apelo: «E agora vais arrumar isso tudo, e já!« Criar o espaço do encontro O carácter negociável do pedido é que cria o espaço do encontro. No fundo, as coisas acontecem mais ou menos assim: se não formularmos pedido nenhum, é como se não déssemos a nós próprios o direito de existir. Ficamos então num estado de necessidade virtual, desencarnada. Não ocupamos verdadeiramente o nosso lugar na relação. Por outro lado, se só formularmos ordens e exigências, é como se não déssemos ao outro o direito de existir. A capacidade de formular um pedido negociável, portanto de criar um espaço verdadeiro de encontro, está directamente relacionada com a nossa segurança e a nossa força interior, com a nossa *0 autor refere-se ao título original Cessez d'être gentil soyez vrail, que poderemos traduzir por Deixe de ser boa pessoa, seja verdadeiro'.. (N. do E.)
confiança em nós próprios. Essa capacidade implica que a pessoa saiba, intimamente, que é capaz de aceitar o desacordo do outro sem ter que desistir de si própria. Digo «intimamente» porque se trata muitas vezes de algo que sabemos intelectualmente, mas que não integrámos no conhecimento emocional que temos de nós próprios. Ficamos então fragilizados face à diferença e portanto pouco inclinados a acolhê-la verdadeira e totalmente. Ao praticar este método, aprendemos por experiência íntima que não é por exprimirmos a nossa necessidade e o nosso pedido que o outro irá obrigatoriamente renunciar à sua respectiva necessidade. Também aprendemos que não é por deixarmos o outro exprimir a sua necessidade, possivelmente diferente da nossa, que iremos ter que renunciar à nossa para satisfazer a dele. Sabemos que iremos tentar encontrar juntos uma solução que satisfaça as duas partes ou, pelo menos, que iremos concordar sobre o facto de não estarmos de acordo. Sabemos também, acima de tudo, que o nosso profundo bem-estar está menos na própria solução, do que na qualidade do encontro ocasionada pela busca dessa solução.
CAPITULO
3
TOMAR CONSCIÊNCIA DE QUE O OUTRO REALMENTE VIVE
Quando falamos por meias palavras, só nos entendemos pela metade. DITADO POPULAR
1. Comunicar é exprimir e receber uma mensagem Dizer tudo um ao outro, escutar tudo um do outro Verifico diariamente que, para muita gente, comunicar significa conseguir exprimir-se e deixar o outro exprimir-se. Todas as pessoas se exprimem e acham que estiveram a comunicar, e no entanto quantas delas não se queixam das suas dificuldades de relacionamento dizendo: «Mas eu e o meu cônjuge, ou eu e o meu filho, estamos sempre a comunicar, dizemos tudo um ao outro... Não percebo porque é que não nos entendemos melhor.» Dizemos tudo um ao outro talvez, mas será que escutamos tudo? A chave está muitas vezes aí: não nos entendemos porque não nos escutamos. O título do livro de Jacques Salomé, Se eu me escutasse eu entendia-méxm, é bastante eloquente nesse aspecto. Se por um lado aprendemos a exprimir-nos, nem que seja um pouco, na escola ou observando os outros, por outro lado raramente aprendemos a escutar, a escutar sem fazer nada, sem dizer nada. Não é nada fácil para as pessoas que vêem ter comigo e dizem «Eu comunico muito bem com o meu cônjuge, com os meus filhos...», tomarem consciência de que estão de facto muito à vontade
para dizer tudo, para falar do que sentem, para moralizar o outro ou aconselhá-lo, mas muito menos à vontade, sendo até mesmo incapazes, de escutar tudo, de simplesmente escutar o que o outro está a sentir, de perguntarem a si próprias quais são os sentimentos e as necessidades do outro, e de exprimirem por sua vez os seus próprios sentimentos e as suas necessidades sem julgar. Comunicar é exprimir e escutar; é exprimir-se e deixar o outro exprimir-se, é escutar-se a si, escutar o outro e muitas vezes verificar que realmente houve ali uma boa escuta mútua. Muitas dificuldades de relacionamento provêm de não nos darmos ao trabalho de verificar que realmente entendemos bem o outro e que o outro nos entendeu bem. Repetir ou, se necessário, reformular o que o outro nos disse ajudar-nos-á muitas vezes a termos a certeza de que de facto o entendemos bem. Da mesma forma, convidar o outro a repetir ou a reformular o que dissemos ajudar-nos-á muitas vezes a termos a certeza de que ele nos entendeu bem. Se quiséssemos representar a comunicação entre as pessoas através de um gráfico, poderíamos desenhá-lo da seguinte forma:
vulneráveis, para não revelarmos o quanto somos seres sensíveis e frágeis. No gráfico, situamo-nos em baixo à esquerda. Por outro lado, quando se trata de escutar o outro, de receber a sua mensagem, por termos aprendido a estar sempre à escuta das necessidades de todos menos das nossas, a nossa tendência será pensar: «Não me importo de te ouvir um pouco, mas muito não. Porque estou a ficar farto de estar sempre à escuta dos outros, e tenho mais que fazer.» No gráfico, a nossa faculdade de recepção da mensagem do outro irá também situar-se na zona à esquerda, em baixo. Depois existem os extremos. Há vezes em que já nem conseguimos sequer tentar escutar o outro, acabando por lhe impor a nossa visão. Exprimimo-nos a cem por cento, mas desactivamos a cem por cento o botão «Recepção». Agimos praticamente como um tirano, como um déspota. Impomos a nossa necessidade sem escutar a do outro. A atitude é então de autoridade, de poder sobre o outro, de controlo. No gráfico, o resultado é este:
EXPRESSÃO
4
I
M
RECEPÇÃO
A troca de uma mensagem contém estes dois aspectos: emissão e recepção. Muitas vezes, por termos aprendido a ser um bom rapaz ou uma boa rapariga que faz pouco barulho, que não incomoda, que não ocupa muito espaço, que «não aborrece os outros com os seus pequenos problemas», exprimimo-nos um pouco, claro, mas nunca demasiado, para não provocar críticas, para não nos mostrarmos
Outras vezes, ficamos tão cansados de em vão ter tentado fazer valer as nossas necessidades, de as ter exprimido sem obter reconhecimento nem a mínima consideração, que acabamos por desistir, por renunciar. Submetemo-nos à atitude do outro sem esboçarmos qualquer reacção. Demitimo-nos. Em casos extremos, agimos então como escravos, como vítimas. 115
A atitude é de submissão, de resignação, de demissão. No gráfico, o resultado é este:
Repare que a pessoa pode ser alternadamente um e outro: tirano em casa e escravo no trabalho, ou inversamente, ou um pouco dos dois, tirano e vítima, consoante as fases do dia ou as circunstâncias. Num mesmo instante, numa mesma frase, podemos ser ao mesmo tempo completamente tirânicos e totalmente vítimas: «Vai arrumar o teu quarto já sem discussões. Meu Deus, que fiz eu para merecer filhos assim?» Tirano, vítima, ou os dois Desta maneira, a pessoa pode passar frequentemente de um extremo ao outro, evoluindo muitas vezes numa «zona de desconfiança» que se pode representar da seguinte maneira:
Quando evoluímos nessa zona temos medo de nos exprimirmos, de nos revelarmos, de nos mostrarmos como realmente somos, com a nossa riqueza e a nossa pobreza, as nossas contradições, as nossas fraquezas, a nossa vulnerabilidade, o nosso medo de desenvolver os nossos talentos, a nossa identidade, a nossa criatividade, a nossa fantasia, a nossa multiplicidade. Usamos uma máscara para esconder tudo isso, para nos protegermos do olhar do outro. Também temos medo de escutar o outro, de ouvir as suas histórias e as suas dificuldades. Fechamos ou reduzimos ao mínimo a nossa capacidade de escuta e de acolhimento, porque a diferença ou o sofrimento do outro transmite-nos insegurança, fragilidade, assim como a impressão de que temos que deixar de ser nós próprios ou que devemos corresponder a expectativas exteriores, a um projecto que outros teriam sobre nós. Renunciar ao medo e caminhar para a confiança Fico pessoalmente impressionado ao pensar no quanto no meu passado o medo se imiscuiu na maioria dos relacionamentos que mantive, nas minhas relações humanas: medo do que o outro vai pensar, medo do que não vai pensar, medo do que o outro diz, medo 117
do que não diz, medo do excesso de palavras, medo dos silêncios longos demais, medo da falta de amor, medo do excesso de amor, medo de falar, medo de calar, medo de estar só, medo de iniciar uma relação, medo de estar sem fazer nada, medo de me afogar em trabalho, medo de agradar, medo de desagradar, medo de seduzir... Bolas, tantos medos! E tanta energia desperdiçada para combater esses medos! Precisei de muito tempo para perceber que toda essa energia consumida pelo medo deixava de estar disponível para a acção, para a criação, para eu simplesmente ser. Eu estava como que coagulado no meu medo, grudado, identificado com o meu medo na maior parte das vezes, sentindo só em raros instantes um impulso de confiança e criatividade. Recordo-me muito bem da sessão de análise em que essa «maneira de funcionar» (se assim se pode designar tal disfunção!) transpareceu no meu semblante, como uma «explosão»: todos esses pequenos medos, acumulados ao longo de tantos anos, surgiram-me de repente como um cancro que tinha estado oculto. Tinha-os explorado um a um, ingenuamente, durante anos de análise: «Tenho medo disto, estou preocupado com aquilo, tal coisa inquieta-me.» Examinados separadamente, pareciam benignos, inofensivos, acidentais. Mas de repente, como que num relâmpago, num feixe de consciência dentro da nebulosa do inconsciente - possibilitado pelo trabalho terapêutico - apreendi-os como um todo, como uma entidade pululante, uma rede tentacular. Apercebi-me nesse instante que eles não eram acidentais nem ocasionais mas sim estruturais, isto é, que representavam realmente a minha maneira de funcionar. Nesse momento, tomei consciência de que a minha vida estava em perigo. Oh! talvez não corresse risco de morte física imediata, mas sim risco de morte psíquica, risco de me tornar no que Marshall Rosenberg designa por nice dead person, uma boa pessoa morta, sorridente e bem-educada, mas morta por dentro, morta de medos. Essa tomada de consciência despertou o meu instinto de sobrevivência: tornara-se urgente mudar, renunciar ao medo e partir à conquista da confiança. Cansado do medo, quis testar a confiança. Era algo novo, algo desconhecido, e por isso metia medo! Mas paciência, aquilo tinha ido longe demais! Apostei na confiança, acalmando em mim todas as vozes interiores que protestavam: «Tem cuidado, isto vai correr mal, põe-te a pau» e repetindo a mim próprio: «Sê confiante, não tens nada
a perder, o medo não traz a mínima satisfação, no pior dos casos a confiança também não trará a mínima satisfação. Não há nada a perder. Nesta minha vida paralisada, estou a morrer de tédio.» A vida lança-nos este desafio: ficarmos num ambiente conhecido que nos pesa ou até que nos tortura, mas que é tranquilizante porque conhecido, familiar como um velho paletó ou umas calças de ganga de estimação; ou então mergulharmos em algo desconhecido que pode revelar-se infinitamente mais divertido, infinitamente mais rico, mas que implica uma passagem, uma mudança. Ah, mudar! Deixar de fazer sempre o mesmo, dizer o mesmo, pensar o mesmo, para fazer algo novo, dizer algo novo, pensar de outra maneira, rezar de outra maneira! Se eu não mudar, morro, se eu não me renovar, morro. Christian Bobin(XII ) exprime esse medo do desconhecido da seguinte forma: Três palavras que dão febre. Três palavras que o prendem à cama: mudar de vida. É esse o objectivo. É claro, simples. O caminho que conduz ao objectivo não se vê. A doença é a ausência de caminho, a incerteza das vias. Não estamos perante uma questão, estamos dentro dela. Nós é que somos a questão. Bem que queríamos uma vida nova mas a vontade, que pertence à vida antiga, não tem a mínima força. Ficamos como aquelas crianças que estendem um berlinde com a mão esquerda e só o largam depois de se certificarem que receberam uma moeda na mão direita: queríamos uma vida nova, mas sem perder a vida antiga. Sem ter que conhecer o instante da passagem, a hora da mão vazia. Quando decidi partir em busca da confiança e domesticar os meus medos, toda a minha energia mudou. Mais especificamente, toda essa energia que antes dedicava ao combate e à tentativa de gestão dos meus medos, passei a investi-la na própria mudança, no acolhimento da novidade. Em poucos anos, as minhas vidas profissional e afectiva mudaram radicalmente, de um modo que me tem preenchido muito para além do que eu poderia esperar. Em dois ou três anos, a minha vida evoluiu mais do que em trinta e cinco anos. Sinto muitas vezes aquela sensação que se tem ao velejar: após uma longa calmia em que o barco lentamente oscila, rodando sobre si mesmo com as velas a grivar, o que provoca um certo enjoo, o vento de repente levanta-se enchendo as velas, o barco inclina-se, orienta-se e abala de velas cheias para o mar alto. É esse sentimento de ser levado, alegremente empurrado para a frente, que possuo hoje em dia.
Assim como observei e vivi a experiência da minha própria desconfiança, também observo muito a dos outros no meu trabalho. Quer em workshops de grupo ou em consultas individuais, tenho reparado que o sentimento que mais domina as relações humanas é o medo, a desconfiança. EU AJO FOR ALEGRIA DE AMAR, OU POR MEDO DE NÃO SER AMADO?
Até mesmo no relacionamento de um casal onde se esperaria que houvesse confiança, segurança afectiva e entrega no amor, são tantos os medos! E tantas as dúvidas! «Se eu fizer isto, o que é que ele vai achar ou dizer? Se eu me envolver nisto, o que é que ela vai pensar? Tenho que fazer isto ou aquilo, senão ele ou ela vai ficar triste, zangado(a), decepcionado(a), etc.» Há tantos comportamentos ditados não pela alegria de amar, mas pelo medo de deixar de ser amado, não pela alegria de dar, mas pelo medo de nada receber em troca... Compra-se o amor, compra-se a integração, compra-se a pertença. Não se está perante uma partilha generosa de amor num espírito de abundância, mas sim perante uma economia de subsistência. Muita gente vive numa relação de projecção e de dependência: «Eu não posso viver sozinho, tu não podes viver sozinho. Eu morro se te fores embora, tu morres se eu me for embora. Apoio-me em ti, és o pai (ou a mãe) que nunca tive, sou o filho a quem precisas de dar todas as atenções que nunca recebeste. Espero que me protejas e me tranquilizes eternamente, esperas poder consolar-me eternamente. Juntos, tentamos preencher as nossas carências, insaciavelmente.» Parece-me que há poucos casais que vivam realmente uma relação de pessoa a pessoa, um relacionamento de responsabilidade, de autonomia e liberdade, no qual cada um sinta a força e a confiança de dizer: «Sou capaz de viver e de encontrar alegria sem ti, és capaz de viver e de encontrar alegria sem mim, temos os dois essa força e essa autonomia e, ao mesmo tempo, gostamos de estar juntos por se tornar tudo ainda mais alegre quando trocamos e partilhamos afectos. Juntos não tentamos preencher as nossas carências, mas sim partilhar a nossa plenitude!» A prática da comunicação não violenta convida-nos a viver em confiança, a entrar confiantes na relação. Convida-nos a encontrar segurança e solidez interior, confiança e auto-estima suficientes para ousarmos ocupar o nosso lugar sem medo de estarmos a ocupar o
lugar de outra pessoa, confiantes de que existe um lugar para cada um, para ousarmos dizer o que queremos dizer sem recear a crítica, o gozo, a rejeição ou o abandono. Permite-nos portanto ousar maximizar a nossa expressão de nós próprios. Do mesmo modo, ao ajudar-nos a encontrar mais confiança e solidez interior, a alimentar mais autoconfiança e auto-estima, ela dá~nos força para ousarmos escutar o outro da maneira mais completa possível, acolhendo-o com toda a sua complexidade ou no seu desespero, sem termos por isso de nos responsabilizar pelo que lhe está a acontecer nem pelo modo como ele irá resolver as coisas, sem termos de sentir que devemos «fazer algo mais» para além de simplesmente escutar e tentar compreender. Convida-nos a gostar de ver o outro ocupar o seu lugar sem recearmos que ele nos tire o nosso, confiantes de que somos capazes de impor os nossos limites e de que há lugar para toda a gente. No nosso gráfico, essa qualidade da presença a si próprio e da* presença ao outro, da escuta e da expressão de si, da escuta da expressão do outro, pode representar-se pela maximização da expressão e da recepção, indicada pela cruz em cima à direita na zona de confiança.
Tendemos portanto a maximizar a nossa capacidade de exprimirmos o que sentimos e o que desejamos, e a maximizar a nossa faculdade de recepção dos sentimentos e das necessidades dos outros. Vivemos assim cada vez mais confiantes de que podemos estar no mundo sem ter medo de «incomodar» o outro, e de que o outro pode 121
estar no mundo sem recear que sejamos «incomodados» por ele. Repare que desenhei uma seta entre a zona de desconfiança e a zona de confiança, e que essa seta não é recta. Ela representa o caminho que deveremos percorrer - partindo do princípio que é isso que queremos - para passar da zona de desconfiança para a zona de confiança. Caminhar muito devagar até à fonte A imagem que a meu ver ilustra melhor esse caminho, encontrei-a no Principezinho de Saint-Exupéry , leitura sempre refrescante em qualquer idade. Recorde-se: o Principezinho vai passeando de planeta em planeta. A dada altura, encontra um vendedor que descobriu uma pílula que faz as pessoas deixarem de ter sede. O vendedor, todo orgulhoso, gaba as virtudes da pílula dizendo: «Graças a ela, já não é preciso ir ao poço nem ir à fonte. Calculei que se pode poupar até cinquenta e três minutos por semana!» Ao ouvir isso, o Principezinho fica desanimado e responde: «Se eu tivesse cinquenta e três minutos, preferia caminhar muito devagar até à fonte.» Por outras palavras, eu levaria todo o tempo necessário para ir muito devagar em direcção ao que me vai saciar, revitalizar. Alegrar-me-ia com a frescura da água antes de a ter provado, refrescar-me-ia com a sua melodia antes de ter molhado nela as minhas mãos. Levaria todo o tempo necessário para estar onde a vida me alimenta e me sacia verdadeiramente. Acontece que vivemos numa época em que comunicamos todos cada vez mais depressa e cada vez pior. Temos telemóveis, atendedores de chamadas, correio electrónico, auto-estradas da informação... Trocamos muita informação, lá isso sim, mas será que nos encontramos? Será que alimentamos contactos férteis e plenamente satisfatórios? Passamos a vida a dar e a receber pílulas para deixarmos de ter sede. Trabalhei para uma empresa onde uma mulher, uma mãe de família que ocupava um lugar de responsabilidade, telefonava sempre ao filho por volta das 19 horas: «Meu querido, a mãe está com muito trabalho e ainda tem uma reunião esta noite, por isso vai chegar a casa mais tarde. Tens uma pizza deliciosa no congelador, é só pô-la cinco minutos no microondas, vais ver que é um óptimo jantar.» Pílula! Não tenho tempo para ti, meu querido, a pizza há-de substituir um jantar em família. Ou então: «Meu querido, o Pai tem uma reunião importante esta tarde. Tens duas cassetes de vídeo no armário da televisão, diverte-te, beijinho, até logo.» Pílula! Não tenho tempo para ti, meu querido, a minha partida de golfe, de ténis
ou a minha reunião de antigos alunos é mais importante. Diverte-te com os filmes, eles hão-de substituir um fim-de-semana em família! Ou então, ainda mais subtil: «Oh meu querido, sei que estás muito triste. Vê se consegues dormir e amanhã, quando acordares, vais ver que já passou.» Pílula! Escutar-te é cansativo e irritante, tenho mais que fazer, ainda por cima já é tarde e estou estafado. Esse conselho há-de substituir toda a minha escuta e a minha compreensão. E lá vamos nós a correr, de obrigação em obrigação, de pílula em pílula, e espantamo-nos de continuar com tanta sede nesta busca insaciável, sempre insatisfeitos, de garganta e alma secas! Estamos sentados sem o saber em cima do único poço realmente capaz de nos matar a sede. Chama-se presença a si próprio, presença ao outro, presença ao mundo. 2. A empatia: estar presente a si próprio e aos outros Karim, ou caminhar para a confiança Vou apresentar o seguinte exemplo para ilustrar a ideia de que é na nossa segurança interior, oriunda do nosso conhecimento de nós próprios e da nossa autoconfiança, que se enraíza a nossa capacidade de escuta, e a nossa faculdade de aceitar o outro tal como ele é. Karim era um rapaz na casa dos vinte anos com um grave problema de toxicodependência. Tinha entrado na associação dedicada aos jovens à qual eu pertencia. Não tinha nem trabalho nem planos para o futuro e vivia sozinho num pequeno quarto. Como eu tinha acabado de comprar uma casa que queria renovar, propus-lhe um salário pelo trabalho de pintura e de renovação da casa. Ele acabou por ficar a viver num dos quartos da casa durante quatro ou cinco meses. O trabalho agradava-lhe: ia vendo o resultado dos seus esforços dia após dia, e até mesmo hora após hora. De noite sentia-se satisfeito e cansado, o que ajudava a reduzir notoriamente o seu consumo de droga. Ao mesmo tempo, iam-se tecendo laços de amizade e de confiança entre nós. Um dia disse-me: «Estou-te profundamente agradecido, não só por me dares trabalho e uma oportunidade de ganhar a vida, e por me dares um tecto e eu ter deixado de estar sozinho, mas sobretudo por teres confiado em mim numa altura em que já nem eu confiava em mim próprio.» Tempos depois, apaixonou-se e foi viver para casa da namorada,
a duas horas de Bruxelas. Ficámos em contacto ainda durante algum tempo. Depois mudou-se sem me dar a nova morada, e fiquei quase dois anos sem saber dele. Num fim-de-semana em que eu estava no campo, em casa do meu pai, ele telefonou. Fiquei extremamente surpreendido: dois anos sem dizer nada e de repente aquele telefonema para um número cuja existência ele nem conhecia antes de se ir embora, que coisa estranha. Eis um resumo da nossa conversa que, em tempo real, deve ter durado cerca de uma hora. «Thomas, fala o Karim. Deves estar surpreendido por eu te estar a ligar, mas as coisas não estão nada bem com a minha namorada, estou outra vez sozinho, estou a dar em doido, vou dar um tiro na cabeça ou atirar-me ao canal. Ela é louca, eu sou louco. Isto não faz sentido, andamos à porrada, não pode ser! Es a última pessoa com quem falo antes de me matar!» Ele estava em pânico. As palavras jorravam para todo o lado, como se ele as tivesse contido durante tanto tempo que só uma explosão daquelas o poderia aliviar de tanto peso. Comecei por escutá-lo longamente sem o interromper. Quando o caudal de palavras diminuiu um pouco, indicando que o excesso de tensão estava a passar, tentei estabelecer uma ligação com ele exprimindo a minha empatia com os seus sentimentos e as suas necessidades: «— Karim, estás completamente desesperado (S) e já vi que não acreditas que a vossa relação possa melhorar (N). — Já disse que está tudo estragado, gritou novamente. Tudo estragado, já não acredito em nada. Vou é dar um tiro na cabeça... — Eu sei, estás mesmo no fundo do poço (S), ao ponto de a vida ter deixado de fazer sentido (N: que a vida faça sentido) e de preferires acabar com tudo (P ou Acção), é isso que estás a sentir? — E isso mesmo. — O sofrimento é tanto (S) ao veres que a tua relação não está a evoluir como desejarias (N: que a relação evolua de modo satisfatório) e tens tanto medo de ficar sozinho (S) que queres isolar-te ou proteger-te desse sofrimento (N: proteger-se do sofrimento), e neste momento a única solução que arranjaste foi dares um tiro na cabeça (P ou A)? — Pois, não vejo outra solução. — Estás a viver uma dor imensa (S) e está tudo a desmoronar-se, já não há nada que se aguente em pé, nada que valha a pena (N: que as coisas se aguentem em pé, que as coisas valham a pena). — Sim, é isso.»
Silêncio, muito longo. Ouço a respiração dele mais calma, faço alguns «hum, hum», todo eu à escuta do que ele está a viver e do que eu próprio estou a viver, para lhe manifestar que o meu silêncio é presença. E prossigo: «— Importas-te que eu te diga quais são os meus sentimentos em relação a isso? — Por mim, podes. — Olha, antes do mais, sinto-me profundamente sensibilizado por me teres telefonado (S), por teres feito tudo para me encontrar aqui este fim-de-semana. — Não estavas à espera desta, pois não? — Isso é que não estava! Como é que arranjaste este número de telefone? — Telefonei à secretária da associação, e ela disse-me que talvez estivesses aí, então tentei, e pronto! — Bem, estou-te muito grato (S) por confiares em mim (N), por teres insistido em falar comigo no meio de tanto desespero. — Grato? — Sim, recebo a tua confiança como uma prenda de amizade, uma amizade de coração que não se apagou lá por terem passado dois anos mas que, pelo contrário, continua bem viva entre nós, e isso é o que mais prezo neste mundo. (Silêncio) Estás um pouco surpreendido? — Sim, um pouco. Sinto-me tão inútil e de tal modo um zero à esquerda que não estou a ver o que te possa oferecer. — Sentes-te surpreendido (S) porque tens dificuldades em acreditar (N: necessidade de acreditar que partilhar a sua dor possa ser útil) que o facto de partilhares a tua mágoa possa ser uma fonte de alegria? — Pois sinto. — Para mim, trata-se da alegria de estarmos juntos, de encararmos o problema juntos e de procurarmos juntos uma solução. Dás-me a alegria de poder estar contigo, apesar de estarmos juntos na dor. Como é que te sentes ao ouvir-me dizer isso? — Melhor, gosto de ouvir isso. Sinto-me mais descontraído. — Agora presta atenção. Sei por experiência que nas relações muitas vezes se tropeça na mesma pedra, só que nenhum dos dois é capaz de o ver porque está demasiado envolvido. Importas-te que a gente fale no assunto, para ver se juntos podemos compreender melhor a situação? 125
Ficámos a conversar durante mais algum tempo. Ele voltou a sentir-se confiante, vendo portas a abrirem-se quando um quarto de hora antes elas lhe pareciam fechadas. Estava novamente a apostar na vida. Despedimo-nos mutuamente entusiasmados. Comentários 1. O perigo não está em atravessar-se uma fase suicidaria, mas sim em não se escutar o que essa fase indica. Por detrás da vontade de morrer, existe uma vontade de viver decepcionada. 2. Vi casos parecidos quando comecei a trabalhar com jovens. Como naquela altura ainda não tinha recebido nenhuma formação em escuta, cheguei muitas vezes a utilizar os métodos desastrados de «bom rapaz que faz tudo o que pode pelos outros»: • Denegação ou redução: «A coisa não está assim tão má, isto já passa, a vida é bela!« • Moralização: «Essa relação não presta para ti. Tens de acabar com isso.» • Conselho. «Vem fazer desporto, para arejares as ideias!« • Introspecção: «Sabes, eu também passei por uma fase difícil.» Ou negava o sofrimento do outro, ou tentava distraí-lo do seu próprio sofrimento, porque estava demasiadamente assustado com a ideia do suicídio, com a pequena parte suicidaria que existia em mim e que eu ainda não tinha tido paciência para escutar e domesticar. Portanto, eu não estava disponível para escutar a aflição do outro, para abordar plenamente com ele a sua mágoa, tentando esquivar-me dela. Incapaz de suportar a visão da ferida purulenta, tentava distrair o doente chamando a sua atenção para outra coisa, ou então tapava-lhe a ferida com pomada ou um grande penso. Todos nós sabemos que para curar uma ferida é preciso limpá-la, isto é, olhar bem para a origem da dor, penetrá-la, remexê-la, e só depois deixá-la arejar, descansar, cicatrizar. Dói, mas não faz mal. NEM TUDO O QUE DÓI FAZ MAL
Antes, eu nunca teria sentido a segurança interior, a confiança em mim próprio, nos outros e na vida, para fazer Karim ter a noção plena da sua própria mágoa, para tolerar aquele longo silêncio de
acolhimento e de presença depois de ter dito: «Não há portanto nada que valha a pena, nada que se aguente em pé.» Ter-lhe-ia imediatamente oferecido todo o tipo de soluções e bons conselhos para ficar eu próprio mais descansado e convencido de ter feito tudo o que era preciso, já que me tinham sobretudo ensinado a «fazer» em vez de «estar» e de «estar com». 3. Se hoje em dia sou capaz de acompanhar as pessoas até ao fundo do seu poço de um modo satisfatório, é por ter percebido que elas precisam antes do mais de presença, de deixarem de estar sozinhas. Karim estava já a ver-se (quem o disse foi ele) novamente sozinho, ou seja, abandonado e rejeitado, sendo precisamente esse o drama da sua história. Se eu lhe «desbobinar» todas as minhas soluções, todo o meu rol de conselhos tranquilizantes, não estarei a cuidar dele mas sim de mim próprio, da minha própria angústia, não estarei com ele mas sim comigo, com o meu pânico ou a minha culpabilidade só de pensar que posso falhar ao meu «dever de fazer tudo como deve ser». Ele vai sentir-se cada vez mais só e cada vez mais convencido de que ninguém é capaz de compreender a dimensão da sua aflição, e que a única solução é portanto o suicídio, a anestesia. Mas se eu conseguir tocá-lo com a minha empatia, se eu o acompanhar na sua aflição com toda a minha presença e benevolência, ele sentirá que está menos só, que está sem dúvida a viver uma grande dor mas, ao mesmo tempo, que estamos juntos. Poderemos então superar melhor a necessidade que está na base do drama de Karim, assim como de muitas outras pessoas que sofrem: a de ter importância para alguém, existir no coração de alguém, ter o seu lugar ao lado das outras pessoas, podendo encontrá-las. 4. Se hoje em dia sou capaz de praticar esse tipo de acompanhamento, é porque explorei muito bem a minha própria angústia e porque continuo a explorá-la assim que ela ressurge. Deixei de a afastar como dantes, quando ia a correr «fazer qualquer coisa», ter com fulano ou sicrano, seduzir alguém, mergulhando hiperactivo no que Blaise Pascal designava por «divertimento», e encarei-a frontalmente. Assim deixei-me envolver por ela muitas vezes, e cheguei à conclusão de que a única maneira de se sair da dor, é mergulhar nela plenamente. Enquanto eu estiver com rodeios tentando minimizá-la («Estou a exagerar. Isto não está assim tão mau. As coisas hão-de re127
solver-se») ou enquanto eu tentar ser forte («Não chores. Adiante. Pensa noutra coisa.»), convencido de que estou a vencê-la, estarei no fundo a colocá-la no centro e não conseguirei superá-la. É precisamente por ter conseguido domesticar a minha dor que me tornei capaz de escutar a dor de Karim sem sentir imediatamente a necessidade de me proteger. 5. Eu iria até mais longe, propondo que para além de estarmos disponíveis para acolher o sofrimento afectivo ou psíquico - nosso ou do outro - tentemos ainda encará-lo como uma oportunidade que nos é oferecida. Neste sentido, se realmente estivermos dispostos a acolher os ensinamentos do sofrimento, este poderá proporcionar uma oportunidade de crescimento, de aprendizagem de si próprio, do outro e do sentido da nossa vida. Por essa razão, e digo isto por experiência própria, o sofrimento antecede sempre (assumindo que aceitámos envolver-nos nele para o podermos superar) uma profunda alegria, renovada e inesperada. Não se pense que eu estou a desejar sofrimento às pessoas. Não haja aqui mal-entendidos: se pudermos dispensá-lo, melhor. Não estou de modo algum a sugerir que o procuremos, como o fizeram certas correntes religiosas que não conferem ao corpo, à encarnação, ao bem-estar e à vida sob todas as suas formas, o respeito e o amor que pessoalmente lhes tenho. Contudo, se o sofrimento afectivo ou psíquico um dia se nos impuser, então proponho que o encaremos como um estímulo para passar para um nível de consciência superior, para mudar de patamar. Estou de facto convencido que o nosso sofrimento é muitas vezes ignorância: ignoro certa dimensão da vida em mim, uma dimensão de sentido que está como que emparedada numa divisão perdida do meu palácio interior, numa sala esquecida. O sofrimento é que vem rachar esse muro, abrir a brecha ou destrancar a porta secreta, dando-me acesso a um novo espaço em mim, profundo e inesperado. Um lugar onde sentirei mais à-vontade e bem-estar, mais solidez e segurança interior, e a partir do qual poderei olhar para mim, para os outros e para o mundo com mais benevolência e ternura. A sala esquecida abrir-se-á então como um terraço com vista para o mundo. Este texto de Christian Bobin ilustra o desabamento e a abertura a que me refiro:
Por vezes uma pedra vacila em ti, e depois outras em redor. Um lanço de muro pelo qual já não costumavas passar rui ao sopro longínquo do vento. Observas as pedras dispersas: afastadas com apaixonada lentidão pelas ervas secas do esquecimento, cavadas pelas águas cinzentas dos cansaços, não iriam aguentar muito mais. Bastou um sopro para as devolver à diversidade original. Escutas os últimos ecos do desabamento. Escutas o que eles te dizem: alguém em ti partiu, alguém que nunca em ti entrara. Pouco a pouco se esvanece o fascínio pelas ruínas, se anula o seu derradeiro poder de convocar remorsos. Afastas-te, verificando o informulável de uma luz que te serve para medires a negligenciável imensidão das tuas perdas. Empatia é escutar no sítio certo Empatia ou compaixão, é a presença dedicada ao que eu vivo ou ao que o outro vive. Empatia para consigo ou para com o outro, é focalizar toda a atenção no que se está a viver no momento. Iremos ligar-nos aos sentimentos e às necessidades em quatro etapas: as etapas da empatia. PRIMEIRA ETAPA: NÃO FAZER NADA.
Disseram-nos tantas vezes na nossa infância «Não fiques aí especado, faz qualquer coisa», que acabamos por viver numa correria sempre para traz e para diante, tornando-nos incapazes de simplesmente ouvir sem fazer nada. Pois é isso mesmo que Buda propõe aos homens, numa expressão que a língua inglesa transmite melhor: Don t just do something, stand there . É de facto tão difícil, quando somos dominados pelo sofrimento, pela ira e pela tristeza, estarmos disponíveis para o sofrimento do outro, para a sua ira e a sua tristeza, aceitando simplesmente estar \á\ Conseguir escutar o outro sem fazer nada implica que tenhamos assimilado plenamente a confiança que existe em cada um de nós, e que sejamos capazes de invocar todos os recursos necessários à cura, ao despertar e ao desabrochar de uma pessoa. O que isola uma pessoa desses recursos, o que os oculta, o que os vela, é a incapacidade da pessoa se escutar no sítio certo e na medida certa. Os recursos interiores existem, o que lhes falta é visibilidade. Quantos jovens desorientados já me disseram muitas vezes: «Eu só queria que o meu pai (ou a minha mãe) me ouvisse um bocadinho quando quero falar das minhas dificuldades. Mas basta eu abrir a boca 129
para contar o que está mal, e ele começa a desbobinar-me uma data de conselhos, um monte de soluções, e não se cala com tudo o que eu devia fazer ou com tudo o que fez no tempo dele. Não me ouve...» E típico: provavelmente o pai ou a mãe, «atrapalhado» com a preocupação de fazer tudo como deve ser, com medo de não corresponder à imagem perfeccionista e paralisante do bom pai ou da boa mãe, com medo de ver o filho afogar-se em dificuldades imensuráveis, aterrorizado com a perspectiva de problemas como a falta de atenção na escola, a droga, a manipulação, não está disponível para escutar as necessidades do jovem. Toda a energia do pai ou da mãe está mobilizada - muitas vezes de um modo completamente inconsciente - pela sua própria necessidade de segurança, pela sua necessidade de ajudar ou pelo cuidado com a sua própria imagem de bom pai/boa mãe, isto é, pela sua necessidade de auto-estima, deixando de estar disponível para a escuta silenciosa do outro. Estar em empatia com o outro, sobretudo quando se trata de um ente próximo com o qual existem fortes laços afectivos, exige força e segurança interior. SEGUNDA ETAPA: FOCALIZAR A NOSSA ATENÇÃO NOS SENTIMENTOS E NAS NECESSIDADES DO OUTRO.
A vida que corre em nós manifesta-se através de sentimentos e de necessidades. O nosso coração deve portanto dar ouvidos ao que o outro sente e necessita, para além do que diz, do seu tom de voz ou da sua atitude. Nesse sentido, devemos levar todo o tempo necessário para conseguirmos entrar em ressonância: «Que estará ele a sentir tristeza, solidão, raiva, um pouco de tudo isso? E eu, que necessidades é que tenho, quando sou dominado por esses sentimentos?« Entramos juntos em eco, em vibração. De certeza que o leitor já teve oportunidade de observar o efeito de vibração entre vários pandeiros: se batermos no primeiro de uma série de pandeiros colocados lado a lado, com as telas paralelas, a vibração transmite-se até ao último pandeiro por simpatia. É exactamente a essa vibração por simpatia que a empatia nos convida. Mas cuidado, a ideia não é suportarmos o que o outro está a viver, pois isso só a ele pertence. A ideia é oferecermos a nossa presença. TERCEIRA ETAPA: REFLECTIR OS SENTIMENTOS e AS NECESSIDADES DO OUTRO.
Não se trata de interpretar mas sim de parafrasear, para se tentar tomar consciência dos sentimentos e das necessidades em causa.
É importantíssimo compreender que o facto de repetir, reformular as necessidades do outro, não significa aprovar nem tão pouco predispor-se a satisfazer essas necessidades. Eis um exemplo. «— O meu marido nunca me ajuda com as tarefas domésticas. É machista e egoísta. — Estou a ver. A senhora está zangada e precisa de respeito enquanto mulher.» Neste caso, o que está a alimentar o conflito «homem machista/mulher» não é um reflexo, mas sim uma interpretação. A ideia é portanto verificarmos se entendemos correctamente as necessidades em causa, evitando qualquer linguagem que engendre a divisão, a separação, a oposição. Também convém «acrescentar» ao sentimento uma necessidade. Se reflectirmos unicamente o sentimento, arriscamo-nos a ficar numa atitude de queixa e de agressão. «— Está zangada (reflexo do sentimento sem a necessidade)? — Isso é que estou! Porque ele é insuportável. Ainda no outro dia...» A pessoa que sofre prossegue a sua acusação sem caminhar em direcção a ela própria, sem descer para dentro do seu poço. Mas se acrescentarmos uma necessidade ao sentimento, convidamos a pessoa a descer para o seu interior, a empreender o trabalho de interioridade que vai possibilitar a expansão da consciência e o poder de acção. «Está zangada (S) porque precisa de reconhecimento e de respeito pelo seu trabalho (N)?« A resposta poderá ser: • «Sem dúvida, preciso de reconhecimento e de respeito.» ou • «Nada disso, até me sinto reconhecida e respeitada, aliás, nem estou zangada, mas sinto-me triste e desanimada, e preciso de apoio e de colaboração.» Indiquei estas duas respostas para mostrar que não é indispensável acertarmos logo à primeira nos sentimentos e nas necessidades da pessoa. O simples acto de se reflectir os sentimentos e as necessidades já proporciona ao outro uma abertura. É uma atitude que não só incita o outro a situar-se interiormente, descendo ao fundo de si próprio para observar o seu estado interior, mas que também lhe dá provas da escuta cordial tão necessária para ele ir em busca dos seus próprios recursos. Trata-se portanto de uma escuta activa. Não só esta131
mos presentes, como manifestamos essa presença acompanhando o outro na exploração dos seus próprios sentimentos e necessidades. A escuta será tanto mais activa quanto o outro tender a recuar mentalmente, no seu espaço mental, precisando talvez então de alguma ajuda para reencontrar os seus sentimentos e as suas necessidades. Se o outro disser: «De qualquer maneira, os homens são todos uns machistas, há-de ser sempre assim...», não se pode deixar escapar esse tipo de frase «mental», que representa ao mesmo tempo um juízo e uma categoria. Essa frase constitui, muito pelo contrário, uma oportunidade de identificarmos uma necessidade preciosa. Marshall Rosenberg mostra que, de facto, os nossos juízos são a expressão trágica das nossas necessidades.
— Quer dizer que também se está a identificar com essa ideia de estar a jogar um jogo com ele? — Sem dúvida, e como cada um está a jogar o seu jogo, nunca nos envolvemos numa verdadeira relação. (Silêncio) Tenho que mudar, tenho que tirar a máscara e revelar-me a ele como sou, e não como eu gostaria que ele me visse. — O que é que pode fazer concretamente nesse sentido? — (Silêncio) Perguntar-lhe se concorda em ouvir o que tenho para dizer, e depois atrever-me a contar-lhe o que acabei de partilhar consigo.»
OS NOSSOS JUÍZOS SÃO A 1 XfRLSSÃO TRÁGICA
1. A empatia consiste em ficar «colado» ao sentimento e à necessidade do outro. Isto significa por um lado que não se inventa nada, nem sentimentos nem necessidades, e que tentamos aproximar-nos o mais possível do que o outro está a sentir, transpondo para palavras os sentimentos e as necessidades dele; por outro lado que o convidamos a manter-se na escuta e exploração dos seus sentimentos e necessidades evitando apelar ao espaço mental dele, ao seu intelecto, com considerações culturais, psicológicas ou filosóficas. E o outro quem conduz, quem indica o caminho. Deste modo, no exemplo «Os homens são todos machistas...», eu não vou argumentar respondendo «Não são nada, todos não, até conheço alguns que...» ou «Tem razão, eles são impossíveis...», o que nos faria andar às voltas ou alimentar ainda mais divisão e confusão. Muito pelo contrário, aceito a proposta, acompanho-a, ficando no entanto «colado» ao que o outro sente e vive por detrás do que diz, como no exemplo «Sente-se desanimada porque gostaria que os seres humanos, e em especial os homens, fossem mais abertos e atentos para com as outras pessoas?» Desta forma, estarei a convidar o outro a deixar o mundo das imagens, das categorias pré-fabricadas, dos preconceitos veiculados por milhares de pessoas ao longo de séculos e séculos, para se relacionar com aquilo que o habita e o anima naquele preciso momento. Estarei a propor-lhe que dirija a sua consciência para aquilo que ela realmente quer, para a sua verdadeira necessidade por detrás do chavão, do tique de linguagem e, sobretudo, por detrás do queixume.
DAS NOSSAS NECESSIDADES **'
Pode-se então prosseguir deste modo: «— Ao dizer isso, sente-se desanimada (S) porque gostaria que os seres humanos, e em especial os homens, fossem mais abertos e atentos para com as outras pessoas (N)? — Oh! Com o meu, não me parece que isso vá acontecer! — Isso deixa-a triste (S) porque gostaria de poder confiar nele, acreditar que ele é capaz de mudar, que existem nele meios para mudar (N)? — Isso já eu sei. Claro que ele tem qualidades maravilhosas. Mas ele priva-se das qualidades que tem. Protege-se. — Ao dizer isso, está a sentir-se dividida (S) entre uma parte de si que fica muito sensibilizada (S) com as qualidades (N) do seu marido, e outra parte que está mesmo farta (S) que ele as manifeste (N) tão pouco? — Sim, é isso. Sinto-me por um lado extremamente atraída pela sua sensibilidade, tão fina, tão delicada, tão receosa de se revelar, de tal modo que ele gosta de se armar em macho... e por outro lado sinto-me muito triste por ele não me presentear com a sensibilidade que tem. (Silêncio.) Olhe, ainda há pouco estava a chamá-lo machista, e agora estou a ver que é um homem frágil e atento que anda a fazer um jogo. — Como é que se sente ao pensar nisso? — Comovida, mais sossegada (S). Porque compreendo melhor (N) que no fundo somos dois a jogar.
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E S T O U M U I T A S VEZES
CONSCIENTE
DO
QUE N Ã O Q U E R O
E QUEIXO-ME DISSO A ALGUÉM QUE NÃO É COMPETENTE PARA ME AJUDAR. POSSO TRABALHAR A CONSCIÊNCIA DO QUE QUERO, E DIRIGIR O MEU PEDIDO A UMA PESSOA COMPETENTE.
2. Ao queixarmo-nos, tendemos a identificar o que não queremos ou já não queremos mais e contá-lo a alguém que não é competente para nos ajudar. Desta forma, uma pessoa pode passar cento e cinquenta anos a queixar-se sem nunca mudar rigorosamente nada. A comunicação consciente e não violenta convida-nos a identificar e tomar consciência da necessidade que existe por detrás da carência, e a expô-la à pessoa competente para nos ajudar, sendo que esta corresponde muitas vezes a nós próprios. Assim, no exemplo, «Estou a tomar consciência de que todos nós desempenhamos papéis, incluindo eu. Quero mudar e, para isso, decidi abrir-me a ele», a pessoa deixou a atitude de queixa e decidiu encarregar-se de si própria. 3. A empatia é a chave da qualidade da relação que temos connosco e com os outros. E ela que cura, alivia, vivifica. Repare bem na tristeza, na aflição, na solidão que por vezes chega a sentir. Não serão elas oriundas de não terem sido acolhidas, escutadas, compreendidas e amadas como o leitor o teria desejado? Repare no sofrimento ocasionado pelo luto, por uma separação, pelo falhanço de um projecto: se for o único a suportar o sofrimento, torna-se tudo num inferno, mas se estiver em empatia com outra pessoa, com mais pessoas, com a família, tudo é completamente diferente pois poderá partilhar o que sente num ambiente de compreensão e de estima. A circunstância pode até proporcionar uma nova comunhão e um novo bem-estar, profundo e inesperado, se for aproveitada para se atingir um patamar de consciência superior. 4. No exemplo anterior, afirmei que não é necessário reconhecer-se logo à primeira os sentimentos e as necessidades, mas que é útil interpelar o outro para o ajudar a situar-se no seu próprio nível de interioridade. Tive, recentemente, a oportunidade de ilustrar esse ponto com um grupo de estudantes. Estávamos a trabalhar numa sala de aulas mal aquecida em pleno Inverno e a manhã estava a aproximar-se do fim. A certa altura, dirigi a uma jovem a pergunta habitual: «Como estás, como é que te estás a sentir neste momento?» Ela respondeu: «Estou bem.» Continuei: «Estás com sede?» Ela respon-
deu: «Sim.» «Estás com frio?» «Sim» «Estás com fome?» Respondeu «Sim», rindo. «Estás a ver, basta eu começar a fazer perguntas mais específicas, e percebes logo que não estás assim tão bem. Não te obriguei a ter fome, nem frio nem sede, mas convidei-te a perguntares a ti própria se estavas a sentir essas necessidades. Podias muito bem ter respondido que não às minhas três perguntas, ou ter acrescentado «mas sinto-me cansada», se fosse o caso. Dei-te uma abertura propondo que te escutasses a ti própria em vez de responderes por automatismo. E a isso que a empatia convida: a escutar-se no sítio certo.» QUARTA ETAPA: OBSERVAR O MOMENTO DE ALÍVIO DE TENSÃO, DE DESC O N T R A C Ç Ã O FÍSICA DO OUTRO, QUE MUITAS VEZES SE MANIFESTA ATRAVÉS DE UM SUSPIRO.
Muitas vezes, é dessa maneira que a nossa linguagem não verbal indica que nos estamos a sentir compreendidos e satisfeitos. E muito importante esperar por esse sinal para se perceber se o outro se está a sentir compreendido ou se está disposto a ouvir-nos. Na minha conversa com Karim, esse momento surge claramente. Karim não estava nada disponível para me ouvir enquanto ele próprio não tivesse sido ouvido. Kathy, ou a alergia à empatia Tenho verificado assim que muitas pessoas têm uma imensa sede de empatia e sentem um profundo bem-estar quando se escutam os seus sentimentos e suas necessidades, sem se recorrer à verborreia ou à conversa fútil. Ao mesmo tempo, vejo seres tão carentes de compreensão, de escuta cordial (livre de qualquer juízo) e de acolhimento não prepotente da sua pessoa, que de certa forma se tornaram alérgicos à empatia. É como se, ao serem acolhidos e compreendidos pelo outro, se sentissem privados do que construíram de mais precioso para si: a sua identidade rebelde e incompreendida, a sua solidão feroz e tenebrosa, o seu inconsolável mal-estar. Trata-se, uma vez mais, do medo do desconhecido, aqui sob a forma de pânico existencial: «Sempre lutei, sempre me protegi, sempre me fiz forte. Será que vou sobreviver se me abrir, se falar, se baixar as armas?» As pessoas feridas a esse ponto precisam de empatia silenciosa, por muitas vezes recusarem categoricamente as palavras. As reacções podem ir desde o «Cala a boca, Desaparece, Não te me-
tas» dos miúdos da rua a uma reacção do tipo «Não suporto essa linguagem de psicólogo e esses conceitos vagos, eu cá tenho ideias muito claras e uma lógica coerente, as coisas são assim e acabou» das pessoas que se definem como «bem pensantes». Só que de tanto pensar e bem pensar, já nem se atrevem a sentir, já nem se atrevem a existir. A força da rejeição traduz muitas vezes a força da necessidade, como se vê pelo exemplo de Kathy. Há uns anos atrás, organizámos um passeio de vários dias rio abaixo, numa região desértica e muito ensolarada, com cerca de vinte jovens da rua ou que viviam em lares de acolhimento. Kathy tinha sido abandonada pela mãe à nascença e fora acolhida num desses lares. Para uma miúda de catorze anos, ela possuía um vocabulário capaz de amedrontar um guarda prisional! Era impossível uma pessoa dirigir-se a ela sem receber em troca uma data de palavrões, imagens escabrosas e outras expressões da sua vitalidade... Logo nos primeiros dias, enquanto descíamos o rio sob um sol abrasador, sugeri-lhe que vestisse uma camisa de manga comprida por cima da T-shirt para não apanhar um escaldão. Mas era tão raro ela apanhar sol, que não lhe apetecia perder nem uma migalha. Compreende-se perfeitamente! Ao cair da noite, no acampamento, reparei nos braços dela todos queimados dos escaldões. «— Kathy, se quiseres tenho loção hidratante, não quero que isso te comece a arder. — Quero lá saber, vai mas é foder a tua mãe... — Tudo bem, Kathy, não faz mal, vou deixar aqui o frasco. Se quiseres, é só servires-te. Mesmo assim, recomendo que amanhã vistas uma camisa, senão vais ficar completamente assada. O sol aqui é muito mais forte do que lá em casa. — Cala a boca, já disse, deixa-me em paz... No dia seguinte, voltou a apanhar o máximo de sol que pôde sem proteger os braços. Ao cair da noite, estava toda vermelha e cheia de queimaduras. — O Kathy, isso deve estar mesmo a arder. O meu creme está por cima da pedra, atrás da minha mochila. Se quiseres ajuda para espalhar na nuca e nas costas... — Põe-te a milhas. Tira a pata, seu porco.... — Tudo bem, Kathy. Foi montar a tenda. Deixei-me estar a observá-la e vi que aquilo não lhe estava a correr nada bem. Ela apanhou-me a olhar e chamou-me.
— Hei! Ó meu cabrão! Importas-te de me ajudar a montar a tenda em vez de ficares para aí especado? — Com todo o gosto, Kathy. E, piscando o olho, acrescentei: — Já agora também me podias tratar por Thomas em vez de cabrão, não achas? Ela riu-se e montei-lhe a tenda. Ficámos um pouco a conversar. A sua doçura de menina transpareceu por detrás da máscara de rebelde. Fui até ao meu saco e esfreguei-me com loção. Ouvi então Kathy chamar-me pelo nome, exibindo os antebraços fluorescentes do escaldão: «Hei! Ó Thomas, podes pôr-me disso também?« Nesse noite, foram só os antebraços. Na noite seguinte, aceitou loção na nuca e nos ombros e nasceu assim um pequeno ritual entre nós. No fim de cada dia da nossa aventura, ela vinha pedir-me a massagem refrescante do costume, tendo assim a oportunidade de receber ternura sem dar muito nas vistas, e de fazer confidências. Tínhamo-nos cativado um ao outro. Recordem-se da raposa do Principezinho: «Eu queria que me cativasses», diz a raposa. «Cativar, o que é isso?», pergunta o Principezinho. «Repara, eu sou para ti uma raposa igual a mil outras raposas, e tu és para mim um rapazinho igual a mil outros rapazinhos, mas quando nos cativássemos um ao outro, então seremos únicos um para o outro.» Tornar-se único um para o outro, ser único ao olhar do outro, é certamente isso que Kathy tinha aguardado durante catorze anos: ter alicerces, ser identificada, ser acolhida como única. Ela carecia tanto de tudo isso que nem sequer tinha sido capaz de aceitar os meus passos na sua direcção, considerando-os uma intromissão. Ao regressar a casa, quando chegou a altura de ela pegar nas malas para as acomodar dentro do autocarro que a levaria de volta para o lar de acolhimento, Kathy largou os dois sacos e olhou para mim, piscando o olho: «Não me apetece voltar para N..., não me queres adoptar?» A alergia à empatia transparece muito nas relações conjugais e familiares. Há pessoas que acumularam tanto sofrimento ao longo de uma relação com outra pessoa que já não suportam uma única palavra, nem que seja de amor, vinda do outro. É uma situação extremamente penosa para os dois. A pessoa que mantém a relação fechada sofre por se estar a isolar, sem o saber, na sua aflição. Está presa numa armadilha da qual não acredita que se possa libertar. Os 137
sentimentos de impotência, revolta e solidão, são imensos. Aquela que mantém as portas abertas e tenta indicar a existência dessa abertura sofre terrivelmente pelo facto de as suas boas intenções e os seus esforços não serem acolhidos nem reconhecidos. Frequentemente, por despeito, ela acaba também por entrar numa atitude de revolta e agressão - o que dá razão ao outro por ter interrompido o diálogo, e lá entramos novamente no círculo vicioso ou espiral da violência. E isso às vezes durante séculos... Pense, por exemplo, naqueles ódios tribais ou familiares que atravessam gerações e gerações! O que fazer? 1. Para quem quiser manter a porta aberta: é preciso evitar a agressão que leva à agressão. No entanto, face a uma situação com tendência para durar, um saudável ataque de raiva expresso em comunicação não violenta ajuda a própria frustração a manifestar-se claramente sem, contudo, agredir o outro. Iremos ver mais adiante como exprimir a nossa ira com firmeza sem agredir o outro. No entanto, acontece muitas vezes que aquele que decidiu fechar as portas leve tudo a peito, sistematicamente. Se assim for, até um ataque de raiva que exprima necessidades sem agredir poderá ser interpretado com uma agressão. Resta então a empatia silenciosa: a empatia do coração. Esta exige previamente um trabalho interior de empatia connosco mesmos, evitando desse modo que sejamos arrastados também para uma atitude de agressão. Esta é, a meu ver, a única maneira de escaparmos ao círculo vicioso ou espiral da violência: cultivar uma atitude de cordialidade, acolher interiormente tanto o sofrimento do outro como o sofrimento que a atitude dele provoca em nós. Trabalhar para se reencontrar a paz interior através das circunstâncias. Cada um de nós é responsável pela guerra ou pela paz que alimenta no seu coração. Esse trabalho pode necessitar de ajuda exterior, no caso de a pessoa não sentir força para resistir sozinha à espiral da violência. Pessoalmente, já me aconteceu sentir uma necessidade de apoio e ter que apelar à escuta e empatia dos colegas. Fi-lo sempre que me senti a deslizar para a agressão precisamente quando queria ser cordial. Claro que eu poderia atingir certos resultados com um ataque de raiva: atirar um despertador ao chão pode ajudar a desencravar-lhe os ponteiros... Mas também pode parti-lo aos pedaços ou, pior ainda, fei8
rir-me o olho com um ressalto inesperado de fragmentos... Já não tenho gosto em resolver os conflitos assim, assusta-me demais o hipotético ressalto. E hoje em dia, dou menos importância à questão de o resultado ser ou não atingido, do que ao próprio clima criado para proporcionar o encontro. Conservar a empatia, mesmo que de um modo unilateral, agrada-me mais do que alimentar o ressentimento. «Muito bonito, dirá o leitor, e depois?» Pois bem, eis o que muitas vezes pode acontecer neste tipo de situação. Sabemos que não podemos mudar o outro, que só nos podemos mudar a nós próprios e à nossa maneira de ver o outro. Acontece que se nós mudarmos, o outro mudará também ou pelo menos haverá mais hipóteses de ele mudar; enquanto que se permanecermos inflexíveis, é muito provável que ele se mostre ainda mais inflexível. Da mesma maneira que são precisas duas pessoas para haver troca de agressividade (Eu agrido, tu respondes, eu agrido ainda mais... a menos que eu largue a raquete anunciando que já não quero jogar), também me parece serem precisas duas pessoas para haver um longo amuo. Já vi relações restabelecerem-se por um dos membros ter mantido constantemente abertas as portas que o outro se obstinava a fechar. No fundo, o que pretende aquele que fecha as portas e amua? Muitas vezes quer que o outro compreenda o quanto ele sofre, que o outro seja capaz de medir a sua aflição, e como já não tem nem palavras nem energia para se exprimir, acaba por «fechar a boca» e fechar-se a si próprio. Que poderá fazer aquele que, apesar de tudo, quer deixar as portas abertas? Pode manifestar (expressamente ou em silêncio) compaixão pelo sofrimento do outro, indicando através dessa atitude que o está a acolher sem juízo nem censura. A empatia é uma água capaz de abrir caminho por entre as rochas mais duras, pois está a ser chamada pela parte do coração que mais precisa de beber. Mas a empatia requer muita, muita, muita paciência e uma pessoa pode perfeitamente querer gastar o seu tempo e a sua energia de um modo mais satisfatório. 2. Para quem quer manter a porta fechada: a menos que a situação acabe por lhe parecer desconfortável ao ponto de querer acabar com ela, só posso recomendar a essa pessoa que se atreva a entrar na sua própria dor para poder sair dela, que abandone o conforto do queixume («a culpa é do pai, da mãe, do marido, da mulher, da professora, dos filhos»), que pare de regatear consigo própria e com a realidade («as coisas hão-de resolver-se, vou refazer a minha vida, mudar de casa ou viajar para fora, vai ser tudo diferente com o meu novo
companheiro»), que entre na sua ferida para a curar. Muitas vezes, esse trabalho irá também necessitar de ajuda se quisermos evitar andar aos círculos durante anos sucessivos. Infelizmente, raras são as pessoas nesta situação que aceitem a ideia de ajuda. Em vez disso, tendem a remoer a sua «orgulhosa inconsolabilidade», como Nerval no poema: Sou o viúvo, o tenebroso, o inconsolável, O Príncipe da Aquitânia de Torre abolida. A minha única estrela morreu e a minha Lira Constelada Traz o sol negro da minha melancolia.
uma jovem assistente. Esta tentava acalmar uma menina levada pela primeira vez à creche pela mãe. Enquanto a menina chorava, a jovem assistente tentava «resolver» o problema recorrendo a todos os meios clássicos. PRIMEIRA ATITUDE
«A menina não está triste, não está, não! Isto aqui é muito divertido, vais ver.» Denegação do sentimento do outro: o sentimento é vivido como algo que incomoda porque não nos sentimos capazes de «fazer alguma coisa», e por isso negamo-lo. SEGUNDA ATITUDE
Pedir ajuda significa oferecer a sua pobreza, a sua fragilidade. Mas é penetrarmos bastante na nossa ferida, portanto no conhecimento de nós próprios, o tomar simplesmente consciência de que a nossa fragilidade é a oportunidade de manifestarmos a nossa verdadeira força, a do coração, e que a nossa pobreza é a oportunidade de manifestarmos a nossa verdadeira riqueza, a da alma. Aquilo a que chamo «orgulhosa inconsolabilidade», é a imobilização num patamar de consciência: deixo-me ficar ali, envolto no meu sofrimento, convencido de que nunca serei compreendido, e, apesar de tudo, espero de um modo mais ou menos consciente que «alguém» cuide de mim. E talvez pareça justo à pessoa deixar-se ficar ali, talvez seja isso o melhor que ela pode fazer naquele momento, naquelas circunstâncias, talvez não exista nela mais energia para pedir ajuda ou simplesmente olhar para as coisas de outra maneira. Não emito nenhum juízo sobre o assunto, mas sinto uma grande tristeza ao observar o quanto o ser humano é capaz de se deixar penetrar pelo próprio sofrimento, ao ponto de não já não poder tirar partido da situação para crescer. Também receio que a pessoa paralisada nessa atitude e bloqueada nesse estado só regresse ao movimento e à vida sob o efeito do choque provocado por um acidente, uma ruptura, uma doença ou um desgosto. AS NOSSAS NECESSIDADES PRECISAM MAIS DE RECONHECIMENTO DO QUE SATISFAÇÃO
Uma senhora, directora de uma creche, participou durante um fim-de-semana num workshop de formação. Na segunda-feira seguinte, ao chegar ao trabalho pela manhã, reparou no comportamento de
«Não devias ficar assim tão triste, sabes que há muitas meninas que não têm a sorte de estar numa creche tão bonita, com brinquedos tão bonitos...» Culpabilização! Criticamo-la por viver o que vive, por ser o que é naquele momento. Damos-lhe a entender que o seu sentimento é um erro e que ela não tem razão para se sentir triste. Convidamo-la portanto a duvidar do seu sentimento, ou a reprimi-lo para se integrar! TERCEIRA ATITUDE
«Já não posso com este berreiro, és mesmo impossível. Vou-te deixar aqui sozinha e só volto quando fores boazinha.» Juízo e ira manipuladora. Ao ver isto, a directora ofereceu-se para ficar ela própria a tratar da menina que, entretanto, sentada no chão, ia chorando cada vez mais alto. A directora ajoelhou-se ao lado da criança e disse: «—Então, a menina está a sentir-se muito triste agora (S)? — Estou, respondeu a menina, soluçando. — Está triste e também está muito zangada, não está (S)? — Estou, disse a menina, fungando. — Queria ficar com a mamã hoje de manhã (N)? — Queria, disse a menina suspirando.» A directora também suspirou, olhando para ela com compaixão, e sugeriu: «—Queres vir brincar comigo agora? — Está bem, disse a criança.» O que aconteceu? A menina, que se estava a sentir tão só e abandonada, sentiu-se satisfeita e compreendida: «Ah, até que enfim que
r apareceu aqui um adulto capaz de me compreender sem me vir com histórias! Finalmente existo aqui, portanto não me importo de ir brincar.» A directora sabia que escutar a necessidade do outro o alivia da sua frustração, sem no entanto obrigar quem escuta a sentir-se responsável pela satisfação dessa necessidade. Ciente disso, ela foi capaz de enunciar a necessidade «Querias ficar com a mamã hoje de manhã», sem medo de piorar as coisas remexendo a faca na ferida, nem receio de ter que satisfazer essa necessidade pedindo à mãe que voltasse para trás. Este exemplo vem novamente mostrar que, muitas vezes, não há nada a fazer a não ser simplesmente estar, estar presente, e que essa atitude não é necessariamente demorada. Sobre o poder condicionador dos juízos A menina à qual por vezes chamam «impossível» terá boas razões para se colar a essa identidade e para se ufanar desse título: «Sou a menina impossível da creche, e hei-de vos dar razão por me terem colado esse rótulo! Já que não posso existir pela minha ira, vou existir pela vossa, já que a aflição não me é permitida, vou tratar de despertar a vossa...» Observei inúmeras vezes como funciona o poder condicionador, e até mesmo criador, dos juízos e dos rótulos. Quantos jovens em dificuldades considerados «reincidentes perigosos, toxicodependentes incuráveis, agressores natos, peritos do roubo por esticão...» não encontraram aí uma oportuna identidade capaz de preencher a sua deficiência identitária! Insistem então num certo tipo de comportamento que representa para eles, naquela altura, a única maneira de serem alguém em vez de ninguém. Recordo-me de Anto, um rapaz de dezoito anos que já tinha sido preso várias vezes e que, quando estava em liberdade, aparecia regularmente para participar nas nossas actividades. Anto sofrera de maus tratos do pai e tinha uma auto-estima de tal modo baixa que às vezes lacerava o corpo com um canivete para se castigar quando estava insatisfeito consigo próprio. Um dia disseram-me, antes de eu ter tido tempo de o voltar a ver, que não tinham sequer decorrido quarenta e oito horas após ele sair da prisão, e já tinha sido outra vez preso por um período de três meses. Passado esse tempo, perguntei-lhe o que tinha acontecido: «Olha, o juiz disse-me assim: «Você vai passar a vida na choça», e no fundo é verdade, tornei-me num presidiário. Quando 2
estou dentro, toda a gente me conhece, tenho lá amigos e quem manda sou eu. Quando volto para a rua, ninguém sabe quem eu sou. Não sou ninguém, não sou nada, é uma vergonha! Uma desgraça! De maneira que bati numa velha em frente a um polícia e consegui! Nesse mesmo dia voltei a estar com os meus amigos da choça.» Desse exemplo tiro duas observações. 1. O poder condicionador do rótulo. «Sou um presidiário, vou passar a vida na choça...» A falta de melhor, Anto procurava ser fiel a esse título! 2. A não pertinência dos princípios existentes para apreendermos esse tipo de realidade. Nessa altura eu ainda era advogado. Graças a Anto e a muitos outros, comecei a compreender que os princípios do direito (é legal, não é legal), os princípios morais (é bom, é mau), os princípios sociais (isso faz-se, isso é normal, isso não se faz, isso não é normal), os princípios psicológicos (personalidade destruidora, em ruptura com a lei) não são pertinentes para se apreender a realidade tal como ela é: Anto arrastava consigo dezoito anos de falta de amor, de falta de identidade e de insegurança afectiva. Dizer-lhe «Está mal, não é legal, tens um problema psicológico...» seria falar com ele em linguagem marciana e aumentar ainda mais a distância afectiva. Sei agora, por experiência, que a única maneira de se levar um coração destroçado, como o de Anto, a tentar reconciliar-se consigo próprio e com a sociedade, é escutá-lo com empatia, no sítio certo e com todo o tempo do mundo. Tomando com certeza algumas medidas para garantir a segurança de todos, mas nunca fechando uma pessoa por detrás das grades à espera da conversão milagrosa... Fico portanto bastante decepcionado ao verificar que, salvo raras excepções, as sociedades e os Estados ainda não perceberam isso, ou então não acreditam nisso, e continuam a despender somas consideráveis em dinheiro e recursos humanos no encarceramento e isolamento de pessoas que, muitas vezes, necessitam é de integração, de escuta, de encontro e de uma oportunidade para darem sentido às suas vidas. Não estou a dizer que os princípios do direito, da moral e da vida social não tenham razão de ser. Eles são muitas vezes necessários. Mas também são muito raramente suficientes para resolver, de um modo duradouro e realmente satisfatório, problemas humanos como a delinquência, cuja verdadeira causa é principalmente de ordem afectiva.
3. Não temos tempo para nos entender, mas arranjamos tempo para nos desentender Durante uma formação, uma mãe de família dirigiu-se a mim muito irritada: «Pois, só que não há tempo para as pessoas se escutarem dessa maneira. Por exemplo, não lhe passa pela cabeça a correria que é todas as manhãs lá em casa para chegarmos todos a horas à escola e ao trabalho! Ainda por cima agora - isto já dura há umas semanas todas as manhãs, pelas 7h45, quando os meus dois filhos mais velhos já estão à espera no carro, de mochila em cima dos joelhos, para estarem na escola às 8hl5, e depois ainda tenho que ir deixar a mais novinha antes de entrar no trabalho às 8h30, sabe o que é que a miúda se põe a fazer? Começa a pentear-se horas a fio em frente ao espelho da casa de banho! Você acha que eu tenho tempo de lhe dizer como é que me estou a sentir, e quais são as minhas necessidades? É óbvio que fico pior que estragada, digo-lhe que ela é egoísta e cabeça no ar, e arrasto-a à força para dentro do carro. — E como é que se sente então? — Furiosa. Perde-se imenso tempo, os rapazes chegam praticamente sempre atrasados e eu também, e ainda por cima vai tudo a refilar dentro do carro. — E diz que isso já dura há várias semanas? — Sim, todas as manhãs. Está a ver, não há tempo para conversarmos do modo que nos está a sugerir!» Propus-lhe então que interpretasse o papel da sua filha, enquanto eu desempenharia o papel da mãe. A experiência mostra que pôr-se no lugar do outro ajuda a provocar surtos de consciência esclarecedores. Ela começou com prazer a desempenhar o papel da filha, penteando-se inocentemente em frente ao espelho da casa de banho. «Filha, quando te vejo a penteares-te assim agora (O), fico mesmo muito preocupada (S) porque queria que os teus manos chegassem a horas à escola, e eu também queria estar no trabalho a horas (N). Não te importas de vir connosco (P)?» (Silêncio. A mãe, no papel da menina, continua a pentear-se imperturbável.) Eu, no papel da mãe, ao perceber que não serve de nada estar a falar-lhe de mim naquele momento, opto por falar-lhe dela, tentando convencê-la. Evoco então o sentimento e a necessidade que me parece serem os dela, também por serem aqueles que surgem em mim
quando visto a pele da menina que prefere pentear-se calmamente quando toda a casa está em ebulição: «— Filha, será que estás triste (S) por alguma razão, há alguma coisa que gostasses que eu compreendesse (N) e que ainda não compreendi? — És má! — Estás triste (S) por não teres a certeza de eu gostar tanto de ti quanto o desejarias (N)? — Já não me vens acordar de manhã!» Dando essa resposta, a mãe sai do jogo e diz: «Chega! Já percebi! Realmente, faz já algumas semanas que deixei de ir ao quarto dela para acordá-la e dar-lhe miminhos. Antes era isso que eu costumava fazer, depois ia ter com os meus filhos e dizia «Bom dia meninos, são horas de acordar.» O despertar era diferente para os rapazes e para ela. Agora, passo pelo corredor dos quartos e grito para todos: «Bom dia meninos, são horas de acordar», ou seja, deixei de lhe dar aquele miminho da manhã. No fundo, ela deve estar a sentir-se triste por ter entrado no grupo dos mais velhos e por ter perdido aquele estatuto especial de filha mais nova.» O workshop durava dois dias, com uma semana de intervalo. A senhora teria a oportunidade de praticar em casa. Voltando uma semana depois, disse: «Era isso mesmo! Na manhã seguinte, lá estava ela outra vez a levar horas para se pentear, então decidi que mesmo que chegássemos todos atrasados, era preciso resolver o problema. Sentei-me ao lado dela calmamente na casa de banho e perguntei: «—Diz lá, estás triste porque deixei de te dar aquele miminho especial todas as manhãs? — Estou, já não gostas de mim. Gostas mais dos manos. — Estás aborrecida porque querias ter a certeza de que ainda és a minha filha querida, e que não te vou obrigar a fazer as mesmas coisas que os rapazes só porque estás a ficar mais crescida? — Sim. — O que é que eu posso fazer para teres a certeza de que gosto muito de ti em especial, e que podes crescer a teu ritmo? — Quero que continues a dar-me miminhos de manhã!» Assim, a mãe reiniciou o pequeno ritual do mimo matinal. Claro que nesse dia chegou tudo atrasado. Mas nos dias seguintes, a mais nova não precisou de atrasar mais ninguém para mostrar que também existe. Curiosamente, temos sempre todo o tempo do mundo para dis-
cutir diariamente, mas nunca há tempo para nos reunirmos durante alguns minutos! Qual será o objecto prioritário da nossa atenção: a intendência (chegar a horas) ou a qualidade da relação (chegar a horas de consciência leve)? Ao verificar o quão rapidamente se podem esclarecer mal-entendidos através da escuta mútua, surpreende-me cada vez mais a persistência do trágico e velho hábito que consiste em considerar que «discutir é normal» e que «faz parte da vida» dedicarmos tempo a isso, enquanto que sentarmo-nos, escutarmo-nos, pararmos para conversar, é muitas vezes considerado como uma perda de tempo, ou simplesmente nem é considerado! Seremos nós tão alérgicos ao bem-estar, ao prazer de estar juntos, à paz? Ou teremos nós dificuldades em acreditar que o bem-estar, o prazer de estar juntos e a paz podem ser uma realidade? Parece-me urgente questionarmos os nossos velhos esquemas: cada um de nós detém o poder de alimentar a paz ou de alimentar a guerra. Face a qualquer situação, nós é que escolhemos a atitude a adoptar: constranger a menina e viver a repetição do mesmo cenário todas as manhãs, ou compreender a menina e encontrarmo-nos mais profundamente todos os dias. Esse poder está nas nossas mãos.
CAPITULO
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O ENCONTRO
Estamos todos unidos. O destino da humanidade inteira depende do relacionamento de cada qual com os outros. Nunca até hoje dependemos tanto uns dos outros. Só que não o entendemos. O homem falha em tornar-se num ser dotado de compaixão, é incapaz de entreajuda. Se persistirmos na atitude que exige que se considere o vizinho como o nosso primeiro inimigo, se continuarmos a despertar vingança e ódio, a poluir o nosso mundo e os nossos pensamentos, então isso quer dizer que não aprendemos nada com os grandes mestres, nem com Jesus, nem com o Buda, nem com Moisés. E se não corrigirmos esses reflexos pavlovianos, estaremos impotentes para enfrentar esta época em que a humanidade continua obstinada em explorar, vencer, exercer a sua tirania. Em acumular o mais possível, sem se preocupar com o que virá depois. E em viver às custas daqueles que não têm recurso, nem recursos... É preciso partilhar com os que não se parecem connosco, pois a diferença deles enriquece-nos. É preciso respeitar aquilo que é único nos outros. YEHUDI MENUHIN
1. Frente a frente
Quando funcionamos unicamente ao nível mental, sem estarmos conscientes das nossas necessidades, tendemos a viver as relações segundo os seguintes modos. 46
Trocam-se informações ou frases feitas: «Passa-me o sal, vem buscar-me à estação, o que é que se faz este fim-de-semana?, Não te esqueças de levar o lixo...» Em caso de conflito, discute-se «Quem está certo, quem está errado?», e isso frequentemente resolve as coisas. Não de um modo muito enriquecedor, mas ajuda. Infelizmente, muitas vezes comunicamos assim:
Encontramo-nos, sem dúvida, mas de encontrão! Trata-se da passagem ao acto, ou passagem às palavras em forma de lâminas... 2. Fachada a fachada
Desencontramo-nos, desentendemo-nos uns aos outros! «Mesmo que eu lhe repita a mesma coisa cem vezes, ele não me ouve. Não sei em que língua lhe hei-de dizer as coisas.» Temos a sensação de estarmos a ser claros, a emitir uma mensagem, só que a mensagem não é recebida. E como se o outro não tivesse a antena certa ou captasse ondas diferentes. Inversamente, também sentimos muitas vezes que uma mensagem está a ser emitida pelo outro (ausência, silêncio, amuo, ira, reprimenda) mas que não dispomos das antenas adequadas para a descodificar. Por fim, às vezes comunicamos assim:
Ao observar estes desenhos que eu costumava apresentar durante as acções de formação, achei que muitas vezes nos deixávamos ficar pela superfície das coisas, frente a frente, fachada a fachada. Lembrei-me então de uma imagem utilizada por Anne Bourrit, a formadora em comunicação não violenta dos tempos pioneiros a quem tive o privilégio de dar assistência regular durante a minha própria formação. A imagem servia para mostrar como podemos alcançar as nossas necessidades, e representava um homem que era como um poço: tinha que descer ao interior de si mesmo para encontrar a sua vitalidade. Combinando as imagens das fachadas e do poço, surgiu-me o seguinte desenho. São três fachadas assentes na superfície da terra: a primeira, muito modesta, é uma tenda; a segunda, já mais elaborada, é uma pequena casa; a terceira, muito elaborada, é uma torre sólida e imponente. Recordemos o primeiro capítulo: ao julgar-se o outro, só se vê dele um pequeno aspecto, e toma-se o pouco que se vê pela sua realidade completa. Se recorrermos novamente aos exemplos do rapaz da crista cor de laranja cheio de piercings, e da senhora no seu carro de luxo, poderíamos simbolizar o rapaz através da tenda de índio, e a senhora através da torre, e poderíamos fazer uma caricatura com base no diálogo dos dois, como se fosse uma troca de tiros, com críti-
cas e preconceitos a voarem de um lado para o outro: «— Sua tia de m..., passa para cá o dinheiro e as chaves do carro... — Seu punk de m..., vai mas é arranjar uma roupa decente...» Muitas vezes, para evitar este tipo de excessos, adopta-se um perfil neutro, uma fachada anódina: a casinha do meio, nem demasiado pequena ao ponto de ser esmagada, nem demasiado grande ao ponto de ser atingida com projécteis. Mas mostrar-nos exactamente como somos, nem pensar! E demasiado assustador. Eis o resultado em desenho:
Eis a relação que se cria quando permanecemos dentro do nosso espaço mental, isolados dos nossos sentimentos, das nossas necessidades e das necessidades dos outros. 3. Dum poço ao outro Sugiro que se complete este desenho da seguinte maneira, partindo do princípio que qualquer habitação neste planeta deve ficar perto da água. Escavo um poço por baixo de cada uma das fachadas e reparo no seguinte: independentemente do aspecto exterior das fachadas, e por mais diferentes ou antagónicas que possam parecer, as habitações estão em contacto umas com as outras através dos respectivos poços, através do mesmo lençol freático. As pessoas são como poços: se descerem ao interior delas próprias, ligar-se-ão entre si pelo mesmo lençol freático. E a mesma água que mantém vivos todos os seres humanos, são as mesmas necessidades que os animam. Quer sejamos nómadas das planícies ou directores-gerais de uma multinacional, varredores num bairro do fim do mundo ou estrelas famosas do show business, partilhamos as mesmas necessidades de identidade, de segurança afectiva e material, de
integração num grupo, numa tribo, numa família. Todos precisamos de partilha e de inter-relação, de liberdade e de autonomia, de reconhecimento e de realização pessoal, de amar e de sermos amados, etc. Enquanto ficarmos à superfície, face a face, fachada a fachada, temos sérias hipóteses de alimentar uma linguagem que nos separa e nos divide. Mas se estivermos dispostos a descer ao fundo do nosso poço e acompanhar o outro até o fundo do seu, então teremos boas hipóteses de encontrar uma linguagem capaz de nos unir. O leitor poderá ver, observando o percurso da seta até ao poço, que para ir adequadamente em direcção ao outro, temos que passar por nós próprios; para encontrar o outro no poço dele, devemos descer primeiro até ao fundo do nosso. Eis, para mim, a verdadeira ilustração da ideia segundo a qual não posso, ao caminhar em direcção ao outro, dispensar o caminho em direcção a mim. 4. Dançar devagar em direcção ao outro O encontro é um movimento, muitas vezes lento, todo ele interior, de mim para mim e de mim para o outro. Esse movimento ocorre no espaço de liberdade que atribuímos a nós próprios, e que representa uma condição fundamental do encontro: hoje sei, por experiência íntima, que sem esse espaço de liberdade, não há respiração, não há movimento, não há «fricção criadora»(XV). Eis uma tentativa de esquema que representa o movimento do encontro que, em comunicação não violenta, é como uma dança: dançamos connosco e com o outro para chegar ao encontro. Recordemos..
por exemplo, o diálogo entre Thierry e Andrée (ver capítulo primeiro) a propósito do programa «jantar fora» ou «vídeo». É uma dança de quatro tempos, uma dança de mil tempos Domar faz-se com constrangimento e controlo, domesticar com confiança e liberdade. A dançar, domestica-se a aproximação
Thierry
Andrée
A. Ligo-me a mim próprio, faço o ponto das minhas necessidades.
1. Ligo-me a mim própria, faço o ponto das minhas necessidades.
B. Ligo-me a Andrée, faço com ela o ponto das suas necessidades, sem deixar de estar ligado a mim próprio, até estarmos de acordo, ou até concordarmos sobre o facto de que não estamos de acordo.
2. Ligo-me a Thierry, faço com ele o ponto das suas necessidades, sem deixar de estar ligada a mim própria, até estarmos de acordo, ou até concordarmos sobre o facto de que não estamos de acordo.
5. Alimentar a relação Cada um de nós cuida com regularidade do próprio corpo, do cabelo, da barba, da roupa, do seu local de habitação, assim como dos vários electrodomésticos e aparelhos que costuma utilizar, da cafeteira ao computador, passando pelo aparador de relva e pelo automóvel. Ocupamo-nos de tudo isso em nome do nosso bem-estar, e todas essas questões de intendência estão perfeitamente adquiridas e integradas nos nossos hábitos - ao ponto de podermos, sem grandes complicações, adiar um encontro invocando que temos o carro na revisão ou que o computador avariou. Também é possível, sem o mínimo problema, organizarmos toda a nossa agenda em torno de uma consulta médica («Adiemos a reunião para a semana que vem, porque tenho que fazer uma série de exames clínicos»), ou até mesmo de uma marcação no cabeleireiro («Querida, não vai dar para estarmos juntos esta tarde, esqueci-me que tenho de ir ao cabeleireiro»). Já é menos frequente ouvir-se dizer: «Vou estar ausente para a semana, tenho que fazer o check-up anual da minha relação comigo próprio»; ou «Vamos ter de adiar a reunião de amanhã, porque tenho que de encontrar-me com uma pessoa que é muito importante para mim»; ou ainda «Querida, não vai dar para estarmos juntos esta tarde, queria primeiro cuidar da minha beleza interior». Curiosamente supõe-se que o nosso relacionamento, tanto connosco próprios como com os outros, deve funcionar sozinho, sem carburante, sem afinação, sem manutenção! Não admira que se desgaste, que se esgote ou que esteja tantas vezes avariado: simplesmente não cuidamos dele. Estamos mais preocupados com as questões de intendência do que com a intimidade, como se esta fosse supostamente já conhecida ou, melhor, «supostamente a não conhecer». Não se vai espreitar, não se quer saber, porque a intimidade assusta. E a verdade é que se não nos conhecermos bem a nós próprios, se não nos fixarmos solidamente no interior de nós mesmos, a intimidade tanto connosco como com os outros é realmente capaz de meter medo: medo de nos perdermos, medo de nos dissolvermos como uma gota no oceano. Mergulhamos então de cabeça nas questões de intendência, pondo muitas vezes de lado o encontro. Tenho um amigo arquitecto(XV1II) que fez uma formação intensiva em comunicação não violenta para compreender melhor os seus clientes, e sobretudo ajudá-los a compreenderem-se melhor a eles mesmos. Muitos desses clientes são jovens casais que decidem cons153
truir ou renovar uma casa. Acontece frequentemente que há grandes discussões durante as obras e, quando a casa está finalmente acabada, o casal desfaz-se. Muitas casas de jovens casais são assim postas à venda logo no fim das obras... O que é que aconteceu? A intendência prevaleceu sobre a relação, o organizacional sobre o relacional. Cada um agarrou-se de tal modo ao seu escritório, à sua cozinha, ao seu tapete ou às suas cores pastel, que já não há escritório nem cozinha nem cores pastel para ninguém... Esses casais poderiam ter aproveitado a oportunidade da construção da casa para construírem a sua relação, a oportunidade das obras de restauro ou de renovação para restaurarem ou renovarem o seu modo de estarem juntos. Só que preferiram agarrar-se ao projecto de casa, de escritório, de cozinha, e este foi-se esvaziando até se transformar num letreiro a dizer «Vende-se» junto à porta da frente. Eis uma história verídica que aconteceu em Africa e que me foi contada, há uns anos atrás, por um participante numa acção de formação. Esse homem trabalhara para uma organização europeia que geria projectos de desenvolvimento em África. Um desses projectos consistia na instalação de bombas de água numa aldeia muito remota. A organização tinha reparado que os aldeões caminhavam um dia inteiro até ao rio para lavar a roupa e abastecerem-se de água, e andavam novamente durante um dia inteiro para regressar à aldeia - e isso, claro, muito frequentemente. Indignados com a situação, os responsáveis descongelaram imediatamente as verbas necessárias para se escavarem poços na aldeia e serem instaladas bombas para facilitar o abastecimento de água a todos. E assim se inauguraram as bombas com grande... pompa! Mas passado alguns meses, os organizadores verificaram que os habitantes tinham deliberadamente posto as bombas fora de serviço... à pedrada. Investigou-se o caso. Os habitantes declararam que tinham deliberadamente abdicado do conforto proporcionado pelas bombas para reencontrar o bem-estar da sua unidade. Tinham verificado que as pessoas já não falavam umas com as outras, que já só saiam de casa para ir encher as bilhas ao poço, regressando imediatamente ao lar e que aí, no isolamento das vedações e dos muros, tinha-se a pouco e pouco instalado a prática de falarem «sobre os outros» (segundo a expressão de Jacques Salomé) em vez de falarem directamente uns com os outros. A discórdia começara a instalar-se, rebentaram disputas e dissensões, de tal forma que os anciões da aldeia decidiram suprimir as bombas e restaurar o ritual da viagem até ao rio. Tinham 54
consciência de que essa viagem permitia não só lavar-se a roupa em sentido literal mas também «lavar a roupa suja em família», e que não só permitia irem buscar a água tão necessária à intendência da aldeia como também facilitava os encontros tão necessários à qualidade da vida. A aldeia tinha o seu espaço natural de diálogo. 6. Espaços de diálogo Parece-me urgente que sejam criados mais espaços de diálogo: no meio empresarial, nas escolas e instituições escolares, nos meios médicos e hospitalares, no sector associativo, nas administrações e até junto das famílias! Sou moderador de grupos de diálogo mensais no meio hospitalar, no meio familiar e escolar, e na área da assistência a jovens. As instituições e pessoas que recorrem a mim optaram todas por dar prioridade ao relacionamento nas suas várias áreas de actividade, e assumem o respectivo custo em termos de tempo, de recursos humanos e de orçamento. Todas essas equipas ficam espantadas ao verificar até que ponto os mal-entendidos podem assim ser esclarecidos, os equívocos elucidados, as guerras frias pacificadas, os implícitos explicitados, tudo porque se oferece um enquadramento seguro dentro do qual cada um sabe que pode exprimir-se regularmente em total liberdade, mesmo que desajeitadamente, sem ser julgado nem rejeitado... Cria-se também uma oportunidade de as equipas de trabalho ou os grupos de pessoas partilharem as suas alegrias e os seus entusiasmos. Esses encontros propiciam o aniquilamento de tudo o que possa perturbar as relações, e estimulam tudo o que as alimenta. Fico feliz com todas as iniciativas que se têm vindo a desenvolver nesse sentido, mas surpreende-me verificar que um número impressionante de organismos, instituições, associações, administrações ou empresas, muitas vezes até na própria área das relações humanas (escolas, hospitais, instituições de apoio aos jovens, etc), ainda funcionam sem espaço de diálogo nem grupo de intervisão. Tanta energia e tanta criatividade que se desperdiçam em boatos, rumores, desmotivação e revoltas silenciadas! Todos esses talentos e toda essa vitalidade poderiam desenvolver-se de um modo muito mais satisfatório se existisse um enquadramento que assegurasse a manutenção da relação de grupo. Existem muitas comunidades de todos os tipos, administrativas,
comerciais, mas também religiosas ou familiares, interiormente corroídas por silêncios e palavras contidas que por vezes passam de geração em geração. Como bons rapazes e boas raparigas que somos, aprendemos muitas vezes a calar e a ficar calados, a pôr de lado as palavras contidas como quem arruma um queijo na dispensa. O problema é que o queijo fechado na dispensa acaba por empestar a casa inteira. Não está posto de lado, está por todo o lado! Há já muito tempo que deixámos de caminhar até ao rio para ir buscar água com um espírito de comunidade. Mas será que poderemos ainda por muito tempo oferecer cuidados médicos, educação, assistência, e também comércio, serviços e indústria, sem dispormos de algum tempo para nos conhecermos e amarmos mais uns aos outros? Tão bem tratados que estamos, tão educados, assistidos, vestidos, alimentados e bem servidos, não estaremos a correr o risco de simplesmente morrermos de sede, com o coração seco?
CA PI T U LO V
S E G U R A N Ç A AFECTIVA E SENTIDO, DUAS CHAVES PARA A PAZ
É manifesto que um só homem aparentemente desarmado mas que se atreva a gritar bem alto um discurso verídico, que sustente esse discurso com toda a sua pessoa e toda a sua vida, e que esteja disposto a pagar muito caro por isso, detém, por muito surpreendente que possa parecer e apesar de ele estar formalmente sem direitos, um poder maior que o poder detido noutras condições por milhares de eleitores anónimos.
VÁCLAV HAVEL
Amar-te-ei se... Neste capítulo, dirijo a minha atenção para os condicionalismos do amor condicional e para o modo como esse amor gera insegurança afectiva, confusão no que respeita ao sentido, e violência. 1. Ensinaram-nos afazer, não a estar Ensinaram-nos a FAZER, não a ESTAR. Verifico que o uso, por gerações sucessivas de pessoas em relacionamento educativo (pais, professores, educadores, religiosos, etc), do sentimento seguido de «tu» sem indicação da necessidade («Fico contente quando tu fazes o que te digo, fico triste quando tu não o fazes») gerou e continua a 156
gerar uma terrível insegurança afectiva. A maioria das pessoas com quem trabalho - a começar por mim próprio - entendem no fundo, por detrás das expressões «Fico contente quando tu...» e «Fico triste quando tu...», respectivamente «Continuo a gostar de ti se...» e «Não gosto mais de ti se...» Não estou a dizer que é isso que quem está a falar queria exprimir, só quero dizer que é isso que foi entendido, assimilado por quem escutou, e é a realidade dessa codificação que me interessa, já que condiciona todo o nosso modo de estar na relação, todo o nosso modo de estar no mundo. «Gosto de ti se arrumares o quarto, se fores bom aluno, se obedeceres, se fores bem comportado, atencioso, boa pessoa, etc. Não gosto mais de ti se fores mau, distraído, caprichoso, se estiveres zangado, excitado, se não fizeres o que te digo, se não corresponderes àquilo que espero de ti...» Somos treinados para responder e corresponder às expectativas do outro, vamo-nos adaptando a elas. Sabemos fazer de tudo para agradar ao outro mas não sabemos ser, simplesmente sermos nós próprios. Aprendemos a fazer de tudo para corresponder à imagem do bom rapaz, da boa rapariga à escuta do bom pai e da boa mãe, e mais tarde tentaremos fazer de tudo para corresponder à imagem do bom marido, da boa mulher, do bom executivo, do bom empregado. Nessas tentativas, muitas vezes passamos a vida a correr de um lado para o outro, cheios de actividades e de projectos, zelosos no trabalho, com a família e na acção social, mas sem cuidar do nosso bem-estar interior por nunca termos aprendido a tomar consciência dele. Muitas vezes, só conseguimos amar-nos a nós próprios se tivermos muitas actividades, dependendo da maior ou menor quantidade destas. Não vivemos com a consciência de estar no mundo, com a consciência de saborear a identidade e a presença das coisas e a nossa ligação a elas, vivemos sim numa espécie de contabilidade sempre deficitária entre consciência leve e consciência pesada. Não estamos na proa da nossa vida a fazer o ponto da situação sob um céu estrelado em pleno alto mar, dirigindo a nossa barca, ajustando as velas ou segurando o leme e desfrutando o prazer da navegação, estamos sim no fundo do porão a passar em revista a contabilidade, sentindo um enjoo leve mas constante.
TRABALHAR A CONSCIÊNCIA, OU CONTABILIZAR CONSCIÊNCIA LEVE E CONSCIÊNCIA PESADA?
Consciência ou contabilidade Desta forma, sentimo-nos sempre mais ou menos responsáveis pelo sentimento do outro e, sobretudo, mais ou menos contabilistas desse sentimento. Se o outro estiver triste ou infeliz, é por nossa culpa, tínhamos que ter «feito alguma coisa». Culpamo-nos facilmente a nós próprios. Por outro lado, responsabilizamos ou culpamos facilmente o outro pelo nosso próprio sentimento: «Estou triste ou infeliz porque tu...» Em ambos os casos, não sabemos «estar». 1. No primeiro caso, estamos tão preocupados com a ideia de sermos responsáveis pelo estado do outro que nem somos capazes, por exemplo, de simplesmente escutá-lo. Recorde-se o caso do adolescente que só queria que o pai o escutasse, enquanto o pai, que não sabe escutar o filho, só lhe consegue dar mil conselhos e soluções pré-fabricadas. Estar disposto a escutar significa confiar que a capacidade de estar do outro lhe permitirá encontrar por si próprio as suas soluções. Acompanhar um doente, um moribundo, uma pessoa de luto, é aceitar que não há nada «a fazer» a não ser estar junto dele, com uma presença bondosa e vigilante. E deixar a pessoa descer ao fundo do poço da sua mágoa e explorar todas as tensões do seu sofrimento, proporcionando-lhe através da atitude de escuta e de acompanhamento a oportunidade de verificar que ela não está só, que está acompanhada. Muitas vezes, a tensão provocada pela palavra de ordem «o outro está mal, tenho de fazer alguma coisa», é tão grande que pura e simplesmente nos sentimos incapazes de estar na presença da dor do outro. Arriscamo-nos muitas vezes a ficar orgulhosos pelo papel que desempenhamos. Vamos esforçar-nos por fazer «o que é preciso». Vamos ser aquele que dá um «bom conselho». E corremos também o risco de falhar a dimensão essencial do encontro: a «ligação» de nós connosco próprios, e do outro a ele próprio. Cuidar não é responsabilizar-se por Cuidar é ajudar o outro a viver o que ele tem que viver. Não é impedi-lo disso, nem tentar poupá-lo a um sofrimento que está no seu caminho minimizando-o («Não é assim tão mau, não penses nisso,
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vem distrair-te») ou carregando com o seu peso («A culpa é minha, não devia ter feito isso, vou fazer isto ou aquilo por ele»), é sim ajudá-lo a enfrentar a sua dificuldade, a mergulhar no seu sofrimento para dele se poder libertar, com a consciência de que esse caminho só ao outro pertence e que ninguém o poderá percorrer no seu lugar. Cuidar é dar toda a nossa atenção à faculdade, existente no outro, de curar o seu próprio sofrimento ou de resolver a sua própria dificuldade, bem mais do que lhe levar uma cura. É confiar que o outro dispõe de todos os recursos necessários para resolver a situação, se for capaz de se escutar ou de ser escutado no sítio certo. Isso implica que tenhamos adquirido essa confiança e essa estima em relação a nós próprios. Como poderíamos nós confiar na capacidade de estar do outro, sem termos adquirido confiança na nossa? O risco que corremos, ao responsabilizarmo-nos pelo outro, é estarmos inconscientemente a cuidar não do outro mas sim de nós próprios, da nossa imagem de bom são-bernardo, de salvador, e muitas vezes da nossa própria necessidade de reconhecimento, isto é, da tranquilidade da nossa consciência. E porque estamos a cuidar de nós próprios convencidos de estarmos a cuidar do outro, corremos o risco de não ter a atitude mais apropriada, mais adequada à situação, alimentando em ambos a frustração, a confusão ou a dependência. Recordo-me de Viviane, uma mãe de família de quarenta e oito anos de idade, que se encarregava de gerir todas as dificuldades vividas pela filha, estudante universitária de vinte anos, convencida de que esta ainda não tinha maturidade suficiente para olhar por si e que era «preciso andar sempre atrás dela». Organizava o quarto da filha na residência universitária, programava-lhe as actividades do fim-de-semana e chegou mesmo a ser ela própria a pôr um termo a uma relação amorosa complicada da filha. Quanto mais reforçava as medidas de controlo e vigilância (saídas, encontros, explicações, actividades de fim-de-semana, destinos de férias) mais a filha reivindicava e tomava liberdades, e mais a mãe controlava. Um círculo infernal! Um dia, a filha foi de férias com um grupo de amigos para uma casa alugada. Quando regressaram, a mãe ficou a saber pelos amigos que a filha é que tinha tratado da casa, gerido o orçamento comum, organizado as idas às compras, as refeições e os horários de todos, proibido aos fumadores de fumar dentro de casa, em suma, ela sabia muito bem olhar por si mesma (reproduzindo assaz bem um modelo que lhe era familiar). Aprofundámos a situação e deparámos com 60
a realidade seguinte: a mãe estava tão prisioneira da imagem da «boa mãe que faz tudo o que é preciso pela filha» que nem sequer era capaz de confiar nela, ou de considerar que mesmo que a filha tivesse que enfrentar certas dificuldades, mesmo que arranhasse um pouco as mãos ou o coração pelo caminho, tinha dentro dela todos os recursos necessários para viver a sua vida. Por isso, mal a filha exprimia um sentimento desagradável do tipo «Estou triste, decepcionada, preocupada...» Viviane precipitava-se para resolver o problema sem nunca deixar a filha «enterrar-se» um pouco na sua dificuldade, mergulhar verdadeiramente nela para melhor a ultrapassar. Com Viviane, trabalhou-se 1) a necessidade de identidade «Poderei ser eu mesma, sem ter que me estafar a fazer tudo o que é preciso para ser boa mãe, boa esposa... Se já não sou a boa mãe, então quem sou eu?» - 2) a necessidade de segurança afectiva «Poderei amar-me e ser amada pelo que sou e não pelo que faço?» e 3) a necessidade de ter confiança - «Poderei confiar que as coisas vão correr bem, mesmo que eu não esteja a controlar tudo?» Tendo tido ela própria uma mãe exigente e controladora à qual se adaptara desempenhando o papel de boa filha, Viviane não tinha aproveitado a oportunidade de se tornar realmente no que queria. Por esse motivo tinha por sua vez dificuldades, de um modo completamente inconsciente, de admitir que a filha se tornasse no que queria ser. No fundo, a liberdade que a filha queria tomar era demasiado ameaçadora para Viviane. Ameaçava-a com um dever, o dever de tomar consciência que ela própria tinha ficado prisioneira da sua imagem de boa filha e mais tarde de boa mãe, algo doloroso demais para ela poder assumir sozinha, sem ajuda. Em conjunto acolhemos essa tomada de consciência, e trabalhámos em simultâneo o desgosto provocado pelos anos de prisão e o despertar para uma vida nova. Para que esta mãe pudesse realmente encontrar a filha tal como ela era, teria antes do mais que ir ao encontro dela própria. E ao tornar-se cada vez mais ela própria, Viviane ia implicitamente autorizando a filha - toda a beleza do caminho está aí - a tornar-se também cada vez mais ela própria, em vez de tentar reproduzir melhor ou pior o modelo materno! 2. No segundo caso, quando tendemos a atribuir ao outro a responsabilidade do que vivemos, isso deve-se a não sabermos escutar-nos a nós próprios para nos compreendermos e para nos encarregarmos da nossa vida, tornando-nos autónomos e responsáveis. Muitas vezes ficamos dependentes, à mercê do olhar do outro.
2. Não aprendemos a ser amados como somos, mas como os outros gostariam que fôssemos Se por um lado aprendemos a corresponder às expectativas dos outros, a estarmos debaixo de tensão por causa dos outros, também esperamos quase infalivelmente que o outro corresponda às nossas expectativas e que esteja tenso por nossa causa. Desta forma não aprendemos a amar os outros como eles são, mas sim como nós gostaríamos que eles fossem. Além disso, se fizemos os possíveis para corresponder à imagem de boa filha com o objectivo de agradar ao nosso pai, há sérias hipóteses de esperarmos que o nosso cônjuge se adapte à imagem do bom esposo para nos agradar, da mesma forma que nós nos adaptamos à imagem da boa esposa e da boa mãe para lhe agradar. Se no passado nos proibimos de sermos nós mesmos, é bem provável que muitas vezes, inconscientemente, impeçamos o outro de ser ele mesmo. Quando conseguirmos ser verdadeiramente nós mesmos, sem máscara, sem rótulo, sem tensão, só então deixaremos o outro ser verdadeiramente ele mesmo, sem máscara, sem rótulo, sem tensão. O verdadeiro encontro acontece entre os seres, não entre as personagens que usam máscaras. ENCONTRAR É ANTES DO IMAIS ESTAR
Isso não impede que também sintamos gosto em evoluir, em crescer e especialmente em crescer lado a lado. Crescer lado a lado, no casal, na família, entre amigos, numa equipa de trabalho, é certamente uma das fontes de satisfação mais gratificantes. Amar o outro como ele é também significa que nos interessamos por ele, e que somos capazes de acolher aquilo em que ele se está a tornar, ou no que se poderia tornar. Significa amar o outro com todo o seu potencial de crescimento, de abertura e de diversificação. Já vi muitos casais e muitas famílias onde cada um e cada uma se escondeu atrás de máscaras, travando ou limitando fortemente qualquer processo de evolução pessoal e interpessoal. A anestesia instala-se num instante. Que será o amor sem o respeito? Christian Bobin(XX) exprime assim o desgaste e a anestesia a que me refiro: A vida está gasta, menos saborosa, vai-se desfiando na alma, vai desfazendo o sonho. Não se pode tocar no assunto com nin-
guém. Não se pode contar a ninguém que se gostaria de passar desta vida para outra e que não se sabe como o fazer. Como dizer aos vossos entes queridos: o vosso amor fez-me viver, agora está a matar-me. Como dizer àqueles que vos amam que eles não vos amam. Desta forma, quando alguém começa a mudar, a evoluir, a rever o seu modo de ser, o outro ou os outros entram em pânico: «Já não és o mesmo, mudaste (implicitamente: isso não se faz, devemos ser o que sempre fomos), não estás a ser natural, não me deixes sozinho(a).» Gosto mais do meu projecto de filho do que do meu filho... O filme Clube dos Poetas Mortos ilustra bem esse drama. Um pai quer por força que o filho seja engenheiro, mas o filho, durante o último ano de estudos num colégio, descobre o seu talento no grupo de teatro escolar. O pai (certamente convencido de que não se pode ao mesmo tempo estudar para ser engenheiro e ser-se actor) proíbe o filho de continuar a ir aos ensaios do espectáculo de fim de ano. Mas o filho não só continua a ensaiar, como acaba por ser entusiasticamente aplaudido pela escola inteira e por todas as famílias presentes no dia da representação, provocando a fúria do pai que também se encontra na sala. No fim do espectáculo, sem se referir ao sucesso e ao talento do filho, sem sequer querer ouvir os elogios que lhe dirigem os outros espectadores, o pai arrasta o rapaz para casa e prega-lhe um sermão falando-lhe do futuro: «A tua mãe e eu esforçámo-nos para te oferecer bons estudos, por isso hás-de ser engenheiro.» Aquela repreensão não admite réplica. O filho sobe para o quarto e suicida-se com o revólver do pai. O pai estava mais agarrado ao seu projecto (virtual) do que ao seu filho real, convencido de estar a ter a atitude certa, de estar a cumprir o «seu austero dever de bom pai severo mas justo.» O pai acha que escutar o filho seria de alguma forma desistir do seu dever. O filho acha que escutar o pai seria de alguma forma renunciar ao seu talento. O pai impõe, o filho foge. Não existe encontro, e o desencontro é trágico. Tenho observado, em especial entre casais, que muitas pessoas têm um projecto «para» o outro, um conceito ou uma teoria do casamento e da vida de casal, que para elas tem mais importância do que o outro!
Quando um dos membros começa a evoluir, a rever o seu projecto, a emendar a teoria, toda a atenção do outro não está concentrada em escutar o cônjuge, em compreendê-lo, em amá-lo na sua evolução, e muito menos em questionar as suas próprias opções. Não, toda a atenção do outro focaliza-se na preservação do projecto inicial: como fazer com que o outro se adapte ao conceito, como manter de pé a teoria. Jacqueline tinha cinquenta e um anos. Chegou sozinha à consulta, completamente desorientada pelo facto de o marido a ter deixado após vinte cinco anos de casamento. Começou logo por afirmar que para ela o casamento era sagrado e que se recusava a pensar em divórcio. «Quando uma pessoa casa, é para a vida», dizia ela. Após algumas sessões, ao reparar que ela estava constantemente a tocar na mesma tecla, tentei identificar com ela as necessidades que existiam por detrás dessa atitude. (Mais uma vez, o exemplo está muito resumido.) «Jacqueline, quando me diz «para mim o casamento é sagrado, não se divorcia, casa-se para a vida (O)» será que se sente triste e magoada com a sua actual separação (S) porque, no fundo, gostaria de reencontrar a doçura da conivência e da intimidade com o outro, o bem-estar de poder entregar-se a um mundo de confiança e de autenticidade, a alegria de estar com alguém (N)? E isso que a entristece?« Ela olhou para mim, de lágrimas nos olhos, e deixei que se fizesse um grande silêncio antes de continuar: «Sente-se comovida com o que estou a dizer?» Achei que ela fosse responder: «Sim, é por isso que choro e é isso que eu gostaria de reencontrar.» Mas em vez disso afirmou: «Estou muito perturbada, porque isso que está a descrever, nunca o senti em vinte e cinco anos de vida comum. Estou a tomar consciência de que vivi o tempo todo numa espécie de molde, estando agora a fazer os possíveis para que o meu marido encaixe nesse molde, em vez de tentar compreendê-lo.» E de facto, cada vez que ela voltava a estar com o marido, havia uma discussão: Jacqueline tinha ficado tão insegura com o facto de o molde se ter partido que não estava disponível para tentar compreender o que tinha acontecido. Quanto mais tentava reconquistar o marido com a sua argumentação, a censura, a fúria ou a moralização, mais ele fugia. Um dia, sugeri - e ela aceitou - que eu próprio desempenhasse o papel do marido, e disse-lhe assim: «Jacqueline, estou farto deste nosso jogo, fartíssimo. Foram vinte 64
cinco anos atrás de uma máscara, já não aguento mais (S). Preciso de viver uma relação verdadeira onde eu possa ser eu mesmo e não o «bom marido que faz tudo como deve ser». Sinto necessidade de liberdade e de confiança, estou cansado deste controlo e de as coisas estarem sempre programadas. Só que me faltam as palavras para te dizer essas coisas, porque aprendi a esconder os meus sentimentos e a ser boa pessoa. Já não aguento, vou-me embora, mas isso não quer dizer que não te ame.» Saindo do jogo de personagens, perguntei: «— Como é que reage a isto tudo? — E realmente muito esclarecedor. Percebo agora melhor a encenação de que ambos fomos prisioneiros. Dá ideia de que gostei mais do meu projecto de vida comum do que da nossa vida comum propriamente dita, e que gostei mais do meu projecto de marido do que do meu marido. Agora percebo melhor a minha parte de responsabilidade, antes considerava-o como o único responsável pela minha infelicidade.» Com Jacqueline, trabalhou-se a necessidade de identidade, de auto-estima e de segurança: poderei ser eu própria apesar de estar a viver sem o meu marido? Poderei sentir que ainda existo, quer esteja sozinha ou em sociedade, apesar de a minha vida de casal estar desfeita? Poderei amar-me a mim mesma apesar de estar convencida de que ele já não me ama? Poderei sentir-me segura interiormente apesar de o meu molde exterior se ter modificado? Quanto mais Jacqueline reconquistava confiança nela própria, e não unicamente na sua personagem, mais adquiria auto-estima, não pela sua personagem de boa esposa e de boa mãe mas por ela própria. Quanto mais ia criando segurança interior sem estar dependente da atitude do marido, da família e dos seus próprios princípios, menos discussões havia quando ela se encontrava com o marido, e mais ele se ia abrindo sobre si próprio, desfazendo-se muito devagar da sua carapaça e encetando uma relação mais verdadeira. Claro que se trata de um trabalho extremamente demorado e de uma mutação dolorosa. E preciso deixar para trás uma pele antiga feita de hábitos, de clichés, de princípios pré-fabricados, é preciso ultrapassar o medo da mudança e da solidão, para entrar pé ante pé na novidade e na autenticidade.
N A D A GARANTE QUE A
LAGARTA
SINTA PRAZER
EM T R A N S E O R M A R - S E EM BORBOLETA
3. A diferença é vivida como algo ameaçador A verdade é que em muitas das nossas relações, surge em filigrana uma pergunta que gera quase infalivelmente um clima de desconfiança: «Se eu não fizer o que queres, se deixar de corresponder à imagem de bom rapaz ou de boa rapariga que tens de mim, se deixar de ser bem comportado, boa pessoa, atencioso, se eu for diferente do que esperas de mim, ainda me amarás?» Receamos adquirir consciência da nossa diferença, que é evitada ou recalcada. Deste modo, não damos muita atenção a acolher a diferença do outro. Confrontados com a diferença do outro, que fazemos nós? Evitamo-la ou rejeitamo-la. Só toleramos o outro na medida em que ele é «igual» e na medida em que nos ama. Por isso, costumamos conviver muito mais com pessoas que pensam como nós, falam como nós, vestem-se como nós, crêem ou rezam como nós, fazem as mesmas coisas que nós... Sempre é mais reconfortante! A M A S - M E POR EU SER EU, OU POR SERMOS I G U A I S ?
Vivemos muitas vezes a diferença do outro como um risco, como uma ameaça: «Se o outro for diferente, arrisco-me a ter que mudar, adaptando-me, tornando-me no que ele espera que eu seja, deixando de ser o que acho que sou.» Essa insegurança interior pode tornar-se poderosa ao ponto de se exteriorizar em racismo, fanatismo, anti-semitismo ou homofobia. No entanto, manifesta-se mais frequentemente através do juízo, da crítica, da censura é da suspeita. A diferença não desperta curiosidade hospitaleira, mas sim dúvida e desconfiança: «Essa gente não é como nós!» 4. O sentimento mais comum: o medo! Se por um lado aprendemos afazer para agradar, por outro nunca temos a certeza a cem por cento de estarmos a fazer «a coisa certa» pelo outro na altura certa ou da maneira certa. Arriscamo-nos a viver dominados pelo medo da sua desaprovação, crítica ou indiferença, receosos da reacção que possa ter, e inseguros quanto às nossas qualidades ou competências. E assim que a desconfiança e a dúvida muitas vezes se
impõem como princípios de vida, como modo oficial de funcionamento. O outro é sempre de certa forma encarado como um juiz, cuja aprovação ou desaprovação condiciona o nosso bem-estar. Assim, vivemos sempre de certa forma com o receio de «não ter feito o suficiente» para merecer (!) o seu olhar ou comprar a sua clemência. Vivemos relações que são mais comerciais (comprar reconhecimento, vender a própria autenticidade) do que verdadeiramente humanas. Marshall Rosenberg aborda esta questão no seu livro(XX): «Habituados a uma cultura onde comprar, ganhar e merecer são os modos de troca clássicos, ficamos muitas vezes pouco à-vontade quando se trata simplesmente de dar e receber.» Como referi no início do capítulo III ao apresentar o gráfico de emissão e recepção da comunicação humana, o mais habitual é evoluirmos numa zona de desconfiança: temos medo de ocupar o nosso lugar, de existir verdadeiramente, de afirmar a nossa identidade por não termos a certeza de podermos ser amados e acolhidos como realmente somos e, de igual modo, temos medo que o outro ocupe o seu lugar, que passe a existir verdadeiramente, que afirme a sua identidade, porque não temos a certeza de poder continuar a existir diante dele! O outro, por muito íntimo que nos seja, como é o caso de um cônjuge, é sempre de certa forma visto como um «impedidor» - não me atreveria a dizer inimigo, apesar de ter ouvido muitas vezes essa comparação - isto é, alguém que nos impede de sermos nós mesmos. Habituei-me a ouvir o seguinte protesto: «E você acha que é possível eu ser eu mesmo(a) tendo um cônjuge, filhos, patrão, pais... Isso tudo impede-me de ser eu mesmo(a)!» Pois nada disso, não é «isso tudo» que nos impede de sermos nós mesmos. O que o impede, é a nossa maneira muito própria de vermos «tudo isso», de vivermos as relações. O que nos impede de sermos nós mesmos, é o facto de as nossas necessidades de segurança interior e de confiança não terem ainda recebido a atenção necessária para se desenvolverem e nos permitirem viver «tudo isso» com um maior à-vontade. Não creio que possamos erradicar completamente o medo. Ele faz parte da nossa vida, assim como a confiança, a mágoa e a alegria. O que realmente nos pode libertar, é deixarmos de ter medo de ter medo. 5. Deixemos de ser boas pessoas, sejamos verdadeiros! Essa frase surgiu-me um dia no decorrer de uma acção de for-
mação, ao concluir uma simulação de personagens com uma participante. Ela tinha acabado de tomar consciência que a sua violência irrompia muitas vezes em consequência de uma frustração: a de ter dissimulado os seus verdadeiros sentimentos e as suas necessidades só para ser boa pessoa. Mas de tanto ser boa pessoa, estava a explodir de raiva. No instante em que sugeri, de um modo um pouco proverbial, «Deixemos de ser boas pessoas, sejamos verdadeiros», outra participante reagiu de imediato à frase. «O que estás a afirmar esclarece-me totalmente acerca do que tenho vivido com o meu marido. Eu adoro ir ao teatro e à ópera, encontro lá as minhas amigas, «mergulho» completamente na emoção do espectáculo, nunca deixo de verter a minha lagrimazinha e adoro ficar à conversa nos intervalos. O meu marido simplesmente odeia isso tudo. Fica logo impaciente, comenta em voz alta o desempenho dos actores, não se comove com nada e não pára de se mexer na cadeira entre suspiros. Acabo sempre por me irritar, fico com o serão estragado e ainda por cima fartamo-nos de discutir nos intervalos e no carro. Só que cada vez que reservo um bilhete para um espectáculo, ele tem medo que eu perca o último metro ou que não arranje táxi, de maneira que para ser boa pessoa, acaba por vir comigo. E eu, para ser boa pessoa - já que ele é tão boa pessoa - aceito a proposta. E passamos juntos um serão infernal! Eu devia era ser verdadeira e dizer-lhe na próxima vez: «Estou muito sensibilizada (S) por te preocupares com o meu regresso a casa logo à noite, porque gosto de sentir que dás importância à minha segurança e ao meu conforto (N), mas ao mesmo tempo não tenho tanta certeza (S) que a ideia de me acompanhares (N) te agrade. Como preciso que passemos os dois um bom serão (N) e preciso sobretudo de condições para poder apreciar o espectáculo sem estar preocupada com o teu bem-estar(N), sugiro que faças realmente o que te apetece, e eu hei-de arranjar uma maneira de voltar para casa (P). O que é que achas disto?» Esta participante estava na verdade muito satisfeita por conseguir desenvencilhar-se por si própria do ciclo infernal de que tinha sido prisioneira durante tanto tempo, e por finalmente tirar a máscara! Tiremos as máscaras! Se nós usarmos uma máscara e o outro usar uma máscara, então não se pode falar de uma relação, mas sim de um baile de máscaras! Se o jogo for divertido, não vejo razão para não nos alegrarmos. Só
que, infelizmente, a experiência demonstra que esses bailes de máscaras são tristes e desoladores. Não juntam as pessoas, isolam-nas; não fazem sonhar, tiram o sono; não acabam em fogo de artifício mas sim em explosões de lágrimas! Em relação ao ser boa pessoa, entendamo-nos sobre o sentido da expressão: refiro-me à boa pessoa complacente, ao ser boa pessoa só por atitude, sem o verdadeiro impulso do coração, sem aquele profundo prazer de dar e contribuir com alegria para o bem-estar do outro. É um modo de lidar com o outro mobilizado pelo medo de perder, pelo medo da rejeição, pelo medo da crítica, pelo medo de ocupar o seu lugar. Esse ser boa pessoa é muitas vezes uma máscara seca que abafa o som da verdade e absorve o fluxo da vitalidade. «A BOA EDUCAÇÃO É A I\l)lí I líl \( \ ORGANIZADA.»
Paul Valénj Existe o risco, por detrás da máscara seca de boa pessoa complacente, de nos acostumarmos às relações anémicas, assépticas, facilmente confundidas com verdadeiras relações humanas. Se uma pessoa sempre bebeu Coca-Cola, pode passar a vida inteira sem sequer imaginar que valha a pena provar vinho. Cheguei a conhecer muito bem, como advogado e depois como consultor de empresas durante mais de quinze anos, essa boa educação de escritório entre homens de negócios ou colegas: há sorrisos, há calor no tom de voz e na expressão, chega mesmo a haver humor, e tudo isso esconde uma profunda indiferença e a simples preocupação de se resolver um assunto ou de coexistir em paz. Certas pessoas chegam a ser tão «boas pessoas» com todos que já nem sabem quem elas são! Marshall Rosenberg, como já referi, menciona isso com a expressão nice dead person, uma boa pessoa morta! Sem identidade, sem presença, sem vida. E muitas vezes mais fácil, a curto prazo, ser-se boa pessoa do que ser-se verdadeiro. Quando éramos crianças e abafávamos a nossa ira ou a nossa tristeza para podermos reintegrar o círculo familiar, parecia-nos inconscientemente mais fácil sermos boa pessoa do que assumirmos verdadeiramente os sentimentos que nos dominavam. Aprendemos desta forma a ser infiéis a nós próprios, e isso paga-se muito caro a longo prazo. O reencontro consigo próprio absorve tempo e energia. Ah! se tivéssemos conseguido não nos perder! Felizmente,
tendo adquirido esse hábito também nos podemos desabituar dele, tendo sido «programados» de igual modo nos podemos desprogramar e reencontrar a nossa verdadeira natureza, a nossa verdadeira pessoa por detrás da personagem. Ao citar Paul Valéry, mais acima, não pretendo de modo algum maltratar a boa educação que enobrece certos impulsos do coração. A sociabilidade e a cortesia também são prazeres na vida. «NÃO CONFUNDAMOS O QUE I: NATURAL E O QUE É HABITUAL.»
Gandhi Costumo ouvir frequentemente a seguinte reacção em conferências ou workshops: «Pois, mas não é natural falarmos assim com sentimentos e com necessidades.» Eu acredito que, não sendo habitual, no fundo é-nos natural. Uma criança diz: «Estou zangado (S) porque quero ir brincar com os meus amigos (N), estou triste (S) porque quero ficar contigo (N).» A aprendizagem da vida social é que vai fazer com que a criança faça ou não faça as coisas «porque tem que ser, porque são horas, porque é normal, porque está no programa de ensino.» Se o ser boa pessoa por atitude, no sentido que eu aqui lhe dou, não é portanto necessariamente uma coisa boa, também é preciso dizer que a verdadeira bondade não é necessariamente simpática. Pessoalmente, prefiro mil vezes a verdade clara e sem rodeios, aos bailes de máscaras incertos de quem é boa pessoa por atitude. Tanta mentira para se ser boa pessoa, nos casais, nas famílias, nas relações profissionais! Quem nunca inventou histórias falsas, «filmes» inteiros, para sair ileso de uma situação complicada ou para evitar magoar alguém? Uma mentira? Sim, para ser boa pessoa! Como se a verdade fosse moldável, como se a pudéssemos mascarar em função do nosso próprio conforto ou do que julgamos ser o conforto do outro, sem sofrer as consequências disso... No que respeita à nossa responsabilidade global enquanto habitantes deste planeta, receio que essa atitude seja tão irresponsável, perigosa e poluidora a longo prazo, como a atitude dos que afirmam partilhar os ideais de protecção da natureza e que depois não hesitam em deitar de vez em quando, sem pensar, a beata ou a lata de bebida pela janela do automóvel.
A minha confiança na natureza humana não chega ao ponto de eu pretender que todas as verdades são para serem ditas em qualquer altura e a qualquer pessoa, de modo algum! Existem decerto circunstâncias em que não dizer nada responde a uma necessidade de paciência, de se levar o tempo necessário, uma necessidade de esperar pelo momento oportuno, uma necessidade de reflexão, de benevolência ou de verificação dos factos... O que eu digo é que, se eu optar por dizer alguma coisa em vez de nada, então tenho que contribuir para o respeito da verdade, logo não a mascarar por complacência. No fundo, estou a levantar a seguinte questão: «Será que quero contribuir para a confusão do mundo?» O astrofísico Hubert Reeves diz que a poluição do mundo não é um grande problema, mas sete mil milhões de pequenos problemas. Parece-me a mim que a confusão do mundo, o seu caos, a sua desordem, também não são um grande problema mas sete mil milhões de pequenos problemas. Cada um de nós confronta-se com essa escolha e esse poder na sua vida quotidiana de todos os dias: contribuir ou não contribuir para a claridade, a transparência, a paz. E incrível, não é? Finalmente, podemos tomar consciência de que o relacionamento com boas pessoas, isto é, pessoas que não dizem verdadeiramente o que pensam por medo de fazerem as coisas mal, de ficarem mal vistas ou mais vulneráveis, de mostrarem a sua fragilidade e/ou a sua força, é um factor de extrema insegurança. Precisamos, para nos sentirmos à-vontade numa relação, de ter a certeza de que quando o outro diz sim está mesmo a dizer sim, e que quando diz não está mesmo a dizer não. Se tivermos que estar sempre a imaginar quais poderiam ser as verdadeiras razões do outro, por não confiarmos que ele esteja a ser verdadeiro, cansamo-nos facilmente e é legítimo recearmos algum «reverso da medalha». Todos conhecemos bem, por exemplo, a situação clássica da pessoa que se oferece para ajudar garantindo que o faz por prazer quando no fundo se sente contrariada, e que depois se vem queixar de tudo o que fez por nós, ou de não ter sido reconhecida, ou de que não estamos a retribuir ajudando também... Mas que situações tão cansativas! Quando Valérie e eu casámos, fizemos mutuamente uma promessa, variante sem dúvida insólita dos tradicionais «nunca» e «sempre» dos jovens casais, mas fundamental para a segurança e o conforto da nossa vida comum: «Prometo nunca ser boa pessoa contigo e ser sempre verdadeiro(a).» Quando um de nós tem as suas dúvidas acerca da motivação do outro e receia que ele faça algo que lhe
custe só «para ser boa pessoa», desmascaramo-nos mutuamente: «Estás a ser boa pessoa ou estás a ser verdadeiro(a)?» E isso cria, na brincadeira, uma oportunidade de fazermos o ponto da situação sobre o que há para fazer, e das razões que nos levam a fazê-lo. A ideia é nunca fazermos o que quer que seja por dever ou «porque tem que ser», mas sim pelo gosto de dar e de contribuir para o bem-estar da nossa vida comum. No fundo, estou a referir-me a um princípio de ecologia afectiva tão conhecido quanto pouco praticado: podemos dispensar a verdade e a autenticidade se quisermos viver relações duradouras e insatisfatórias ou relações satisfatórias e pouco duradouras, mas não acredito que possamos fundar relações duradouras e satisfatórias sem alimentar esses dois valores ou essas duas necessidades que são a verdade e a autenticidade. Claro que nada disto é fácil pois nem sempre é simples ser-se verdadeiro a curto prazo. E preciso vigilância e exercício para adquirirmos força na expressão e flexibilidade no acolhimento do outro.
sabilizar, e uma expressão de incapacidade de chegar ao outro e de o compreender. Por não sermos capazes de fazer valer a nossa necessidade e conseguir que o outro a respeite, impomo-la sem dialogar e ficamos à espera que ele obedeça! Obediência automática ou adesão responsável? Por consequência, dizemos muitas vezes sim «para sermos boa pessoa» quando no fundo achamos que não, e isso na maioria das vezes para evitar um conflito: «Se entrar em conflito, conseguirei ainda ser amado? Serei ainda digno de amor se não concordar?» Ou então dizemos que não sistematicamente, por revolta, com medo de nos perdermos, por ser essa a única maneira que encontrámos de cuidar das nossas necessidades de identidade, de segurança ou de reconhecimento: «Oponho-me, portanto existo.» Aprender a dizer não é uma etapa que prezo muito, pois convida-nos a trabalhar essencialmente quatro valores que me parecem essenciais:
6. Como dizer não? No meu trabalho, tenho verificado a razão recorrente dessa dificuldade tão comum em dizer não: não fomos educados nesse sentido, no sentido de sermos diferentes e de vivermos essa diferença com à-vontade. Como já referi, sempre nos incitaram muito mais a «fazer o mesmo», a «reproduzir o mesmo», a estar de acordo com o pai, com a mãe, com o professor, com os hábitos, com a prática religiosa, com o meio social ou profissional: «Quando se é bem educado diz-se que sim; uma menina bonita, um menino bem comportado diz que sim; é feio dizer que não.» Desta forma, como por um lado a diferença (de opinião, de feitio, de atitude, de prioridade, de sensibilidade...) é vivida como algo ameaçador (ver ponto 3) e, por outro, a obediência foi durante muito tempo tida na conta de um valor moral, acontece-nos muitas vezes não só termos dificuldades em dizer não, mas também não conseguirmos simplesmente chegar à conclusão de que não estamos de acordo. Contrariamente à ideia que prevaleceu na pedagogia durante gerações, a obediência raramente cria seres responsáveis, gerando sobretudo autómatos. Ela é, uma vez mais, uma expressão de desconfiança e de dúvida quanto à capacidade do outro de se respon-
• o respeito pelos sentimentos e necessidades do outro, assim como pelos meus; • a autonomia necessária para poder parar e verificar o que estou a sentir ou o que quero; • a responsabilidade de escutar as várias implicações da questão e tentar cuidar de todas as necessidades em causa; não unicamente as do outro com prejuízo das minhas, nem unicamente as minhas com prejuízo das do outro; • a força de manifestar o meu desacordo e de avançar com uma solução ou uma atitude que até possa ser totalmente diferente daquela que me é exigida. Sabemos agora que por detrás de qualquer pedido existe uma necessidade, e também sabemos que muitas vezes confundimos as duas coisas. Concentremo-nos agora sobre a necessidade do outro, a origem do seu pedido, para podermos esclarecer as suas verdadeiras implicações. Eis um exemplo simples e fácil de gerir. A minha velha amiga Zulmira deixou três mensagens no meu atendedor de chamadas a convidar-me para um churrasco, e eu ainda não lhe disse nada. Gosto bastante da Zulmira, ia ser bom voltar a estar com ela, mas ao mesmo tempo não me apetece nada ir ao
churrasco. Preciso mesmo de descansar e de me reencontrar comigo próprio. Dantes, para não a magoar (e para ser boa pessoa) de certeza que teria dito: «Sim, claro» e lá me teria eu arrastado para a festa, deixando metade de mim em casa, sujeitando-me a ficar rabugento e a ser crítico em relação a tudo: aos convidados que são maçadores, às espetadas que estão demasiado bem passadas, ao vinho rose que está morno, etc. Recordemos que quando agimos contra as nossas necessidades, alguém acaba por pagar por isso: ou nós próprios ou os outros. Ou então, teria inventado uma história qualquer para escapar à obrigação: «Não posso, tenho que trabalhar.» Teria mentido para ser boa pessoa! Quando a Zulmira liga pela quarta vez, estou em casa e atendo o telefone: «— Então, seu desaparecido, já não se responde às mensagens? — Estás decepcionada (S), querias que eu tivesse respondido mais cedo (N)? — Queria! O «senhor doutor» nunca está em casa e ainda por cima não se lembra das velhas amigas. — Ó Zulmira, ficaste aborrecida (S)? Querias ter a certeza de que não me esqueci de ti (N)? — Claro! Se eu não te convidasse de vez em quando para estas coisas, nunca nos víamos! — E gostavas de sentir que eu também contribuo para a nossa amizade, que lhe dedico tempo e espaço(N)? — Pois gostava! Por isso, acho bem que venhas ao meu churrasco. Estás livre nessa noite? — Realmente estou livre nessa noite, Zulmira, e sinto-me bastante dividido (S). Sinto-me sensibilizado pela tua insistência (S) e apetece-me mesmo passar algum tempo contigo (N), e ao mesmo tempo estou esgotado com a semana que tive, estou saturado com tantos telefonemas e tantas reuniões (S). Preciso mesmo de ficar sozinho e de descansar durante um fim-de-semana, e este é o meu primeiro fim-de-semana livre após vários fins-de-semana seguidos com acções de formação(N). — Já percebi, estás a despachar-me! — Espera, deixa-me acabar. Se eu for ao teu churrasco não iremos estar juntos como eu gostaria. Já sabes como é, fala-se com toda a gente e no fundo não se fala com ninguém. Apetecia-me mesmo estar só contigo para pormos a conversa em dia (N). Achas boa ideia almoçarmos os dois para a semana? Comia-se uma salada e conversava-se (P)?
— E tens tempo para isso? Estás sempre tão ocupado que nem sequer me tinha passado pela cabeça que podias ter tempo para almoçar comigo. Por isso é que te estava a convidar para o churrasco. Claro que acho boa ideia, também prefiro encontrar-me a sós contigo para pormos a conversa em dia.» Eu disse que este era um exemplo fácil: neste caso específico, encontrar a verdadeira necessidade (alimentar a nossa amizade) por detrás do pedido (o convite para o churrasco), verificar que estávamos a partilhar a mesma necessidade na mesma altura e que a podíamos preencher de outra forma (um almoço a sós) foi simples e agradável. No entanto, pode ser muito mais difícil e muito menos agradável verificarmos que estamos muito longe de sentir a mesma necessidade, que nos posicionamos de forma muito diferente em relação a ela, e que tencionamos gastar o nosso tempo e a nossa energia de uma maneira completamente diferente da que o outro nos está a sugerir! Por detrás do não, a que é que dizemos sim? E treinando com situações fáceis que se adquire a prática e a capacidade para se dizer não em casos mais difíceis... Conseguir dizer não, impor os seus limites sem faltar ao respeito pelo outro, vai-se tornando cada vez mais fácil conforme se vai adquirindo força e flexibilidade no modo como gerimos as nossas necessidades de autoconfiança, segurança interior, reconhecimento e identidade. No fundo, ao trabalharmos o nosso conhecimento de nós mesmos, temos uma noção cada vez mais esclarecida acerca daquilo a que dizemos sim. «Não, não quero que ouças música agora.» Poderíamos dizer: «Sim, preciso de tranquilidade e gostaria que ouvisses música mais tarde ou noutro sítio.» «Não, não vais para discoteca nenhuma com a tua idade.» Poderíamos dizer: «Sim, preciso de confiar na tua capacidade de te sentires à-vontade e em segurança independentemente das pessoas com quem possas estar, e queria construir essa confiança contigo aos poucos, sugerindo-te que começasses por sair à noite para casa de gente que eu conheça, e que depois se conversasse sobre a forma como as coisas correram.» «Não, nunca mais levas o carro.» Poderíamos dizer: «Sim, preciso de ter mais confiança que estás consciente dos riscos que corres na estrada, por isso gostaria que pensasses nisso durante uns dias e que
só depois se tocasse no assunto, antes de se pensar sequer em voltares a conduzir.» Ao desenvolver a nossa consciência «daquilo a que dizemos que sim», desenvolvemos também a nossa consciência daquilo a que o outro diz sim quando diz não. Essa abertura de alma é preciosa para fugirmos ao terrível hábito de levar demasiado a sério a recusa do outro. Porque se tivermos dificuldades em dizer não com medo de ser rejeitados, também podemos - por causa do mesmo medo - ter dificuldades em ouvir um não: «Disseram-me que não, portanto não gostam de mim...» A segurança interior que nos torna aptos a ouvir um não sem duvidar, sem perder a confiança, é a mesma que nos torna mais disponíveis para escutarmos os sentimentos e as necessidades por detrás da atitude do outro, detectando aquilo a que ele está a dizer sim. O exemplo da menina que fica horas a pentear-se na casa de banho na altura de ir para a escola exprime um não: «Não, não vou descer com os outros e não vou entrar de livre vontade para o carro.» Vimos que bastou a mãe sentir-se suficientemente segura para escutar a filha por detrás do não, para finalmente poder ouvir «Sim, ainda preciso de um sinal especial de ternura que me faça lembrar a minha identidade de filha mais nova.» E a solução encontrada é bem mais construtiva e satisfatória do que andar à bulha todas as manhãs! 7. Tenho medo dos conflitos Por detrás do medo dos conflitos, há quase sempre uma necessidade de segurança afectiva. Como já aqui foi referido, a pergunta existente em filigrana é: «Poderei continuar a ser amado se entrar em conflito, serei ainda digno de ser amado se não concordar?» Tenho reparado que para as pessoas que se queixam desse medo, e são muitas, o conflito raramente foi vivido como uma experiência enriquecedora para todas as partes, como uma boa oportunidade de as pessoas se conhecerem melhor e estimarem mutuamente... Para elas, o conflito transmitia uma impressão de falhanço, de tensão mal gerida e mal digerida, um sentimento de amargura, de confusão. Jogava-se ao «Quem está certo, quem está errado?», decidia-se de quem era a culpa, e a experiência não se revelava nada construtiva. A sistémica, ciência dos sistemas, ensina-nos que qualquer sistema tende a perpetuar-se, a manter-se como tal. E a lei da homeostasia. Num sistema como a família, o casal ou muitas outras relações,
a diferença e a divergência assustam porque representam o risco de se comprometer o sistema, desestabilizando-o. Face a tal medo, tende-se muitas vezes a restabelecer urgentemente a unanimidade quer pelo controlo, quer pela submissão. Desta forma, para reencontrar a osmose familiar, conjugal ou outra, isto é, a homeostasia do nosso sistema, impomos soluções obrigando toda a gente a concordar ou então submetemo-nos logo à partida sem discutir. Há fuga ou agressão, mas não há encontro. Só que o conflito é muitas vezes uma oportunidade de evolução. Possibilita que se trabalhe a segurança interior, a autonomia e a capacidade de escuta e de empatia. Convida-nos a reencontrarmo-nos melhor a nós próprios e a reencontrarmos o outro, ou seja, a desenvolver ao mesmo tempo força e flexibilidade interiores. Representa uma oportunidade de se crescer com os outros, assim como um convite à criatividade. Julgo que no medo do conflito se reflecte ainda uma busca desesperada da aprovação do outro. Se não facilitarmos a nós próprios uma apreciação comedida, justo, arriscamo-nos a passar a vida desesperadamente em busca, junto dos outros, de uma apreciação desmedida. 8. Como viver a ira? Vislumbro duas razões que nos levam a viver a ira com dificuldade, quer se trate de exprimi-la ou de ouvi-la. A primeira razão é da mesma ordem da que nos faz hesitar quando dizemos não: o medo da rejeição. Ouvimos tantas vezes dizer «não gosto de ti quando estás zangado» que acabámos por assimilar a ideia de que, socialmente, não parece bem uma pessoa zangar-se. Desta forma a nossa própria ira é sentida como uma ameaça: «Continuarei a ser amado se mostrar a minha ira?» E a ira do outro é ameaçadora: «Serei eu digno de continuar a receber amor se se zangarem comigo?» A segunda razão que nos leva a silenciar a nossa ira ou a evitar a do outro, é que assistimos todos os dias às consequências dramáticas dos ataques de raiva que assaltam os seres humanos: insultos, pancadaria, crimes... Por todo o lado a ira revela-se trágica quando eclode, e pelo facto de as suas consequências serem destruidoras achamos que a própria ira é que é destruidora. No fundo, nós confundimos o próprio sentimento de ira com o modo como cada um de nós faz a gestão desse sentimento. Apesar de os seus efeitos poderem ser trágicos, a ira é em si mesma um sentimento salutar pois traduz a existência de uma grande vitalidade interior. Se os nossos sentimentos forem como luzes in-
termitentes no nosso tablier, então a ira é o flash azul das urgências. Indica que há necessidades vitais que não estão satisfeitas e que é urgente pôr tudo de lado e dedicar-lhes uma atenção exclusiva, pois já não há piloto a bordo. O «estou fora de mim», expressão consagrada, é a melhor indicação de que a primeira coisa a fazer será precisamente voltar a si. A ira convida-nos a colocarmos nos «cuidados intensivos» a nossa própria escuta, a nossa própria empatia. Enterrar a própria ira, é enterrar uma mina Quando se lê nos jornais que um homicida enlouquecido pegou na caçadeira para disparar sobre a multidão ou matar a mulher e os filhos, muitas vezes os vizinhos afirmam que aquele senhor era muito boa pessoa, que nunca se queixava de nada, que era muito sossegado. .. E fácil imaginar, nestas circunstâncias, que muitas iras contidas de repente explodiram por não terem tido oportunidade de se exprimir aos poucos. No fundo, se enterrarmos os nossos motivos de ira lado a lado desde a nossa infância, se os taparmos e dissimularmos cuidadosamente durante trinta, quarenta anos, é como se, de certa forma, estivéssemos a enterrar minas umas a seguir às outras, umas ao lado das outras: por fora está um lindo terreno bem tratado, por dentro há um campo de minas! Estamos sentados em cima de um campo de minas prestes a rebentar! E muitas vezes bastará uma pequena contradição, uma frustração suplementar em si benigna para que, como uma pena a cair em cima do detonador da última mina mal enterrada, vá tudo pelos ares de uma só vez! Quarenta anos de iras contidas a explodirem na nossa cara! A gota fez transbordar o vaso. E não será que a gota fez transbordar o vaso precisamente por não termos tido o cuidado de esvaziar o vaso regularmente? Não será que ficamos violentamente irados com consequências muitas vezes nefastas por não termos tido o cuidado de «desarmadilhar» as nossas iras regularmente? O outro não é responsável por o meu vaso estar prestes a transbordar. Eu é que sou responsável por não ter tido o cuidado de esvaziar o meu vaso regularmente. A verdade é que esvaziar o meu vaso regularmente implica que eu seja mais verdadeiro do que boa pessoa! Como então exprimir verdadeiramente a nossa ira sem agredir o outro, como ser-se verdadeiro sem se ser agressivo? Na ira clássica, o outro é que é considerado responsável: «Estou
zangado porque tu...» Esse estado de espírito faz com que tendamos a abafar a ira para não explodirmos, ou então a explodirmos directamente na cara do outro, com este no papel de descarregador da tensão suscitada pela ira. Muitas vezes o outro é repreendido muito para além do que as circunstâncias justificariam, pois várias minas rebentaram ao mesmo tempo por simpatia! Esta forma de exprimir a ira esvaziando-a para cima do outro, ora desperta a ira dele - o tal jogo de pingue-pongue em que cada um atira a bola ao outro, e que geralmente desencadeia a espiral de violência - ora conduz à sua fuga: o outro foge ou fecha-se no silêncio, no amuo, na revolta solitária, na guerra fria. Todos nós já tivemos oportunidade de verificar que esta forma clássica de exprimir a ira não é satisfatória. A única satisfação que se possa sentir é precisamente o ter explodido, o ter descarregado o excesso de tensão suscitado pela ira, o ter sido capaz de dizer «umas quantas verdades» ao outro. E curioso, não é? Ser necessário uma pessoa estar zangada, ter o alibi da ira, para conseguir atingir o verdadeiro diálogo... Porque será tão difícil comunicarmos as nossas verdades num ambiente de doçura e de cordialidade? Seremos nós tão deficientes da expressão ao ponto de necessitarmos da energia da ira para conseguirmos dizer o que está em ebulição dentro de nós? Cuidar das nossas iras Quando trabalhamos a ira em comunicação não violenta, por um lado trabalhamos a nossa própria responsabilidade, por outro aprendemos a ter a certeza de que o nosso interlocutor nos está a escutar, e para isso temos que regressar a nós próprios, isto é, deixamos de estar fora de nós! 1. A primeira etapa consistirá portanto em não abrir a boca: antes calar do que explodir. Não para abafar a nossa ira, para a recalcar ou sublimar, mas precisamente para lhe conferir toda a sua força. Sabemos que se explodirmos diante do outro, não teremos à nossa frente um interlocutor capaz de nos escutar e de tentar compreender a nossa frustração, mas sim um rebelde a preparar a sua rebelião, um agredido a preparar a sua agressão ou um fugitivo que já fugiu! Qual é pois a nossa necessidade, no caso de estarmos zangados? Queremos que o outro nos ouça, que entenda a amplitude da nossa frustração e das nossas necessidades insatisfeitas. E para que nos ouça bem, sabemos que devemos primeiro escutar-nos com atenção a nós mesmos.
2. A segunda etapa consiste interiormente em acolher toda a nossa ira, em aceitar a sua amplitude em technicolor sem regatear. Tenho verificado - e tive oportunidade de o experimentar eu próprio - que para muitos de nós, a ira é tão tabu que chega mesmo a ser difícil imaginarmo-nos zangados. Iremos preferencialmente afirmar que estamos tristes, decepcionados ou preocupados, exprimindo deste modo um sentimento socialmente correcto, em vez de nos deixarmos dominar conscientemente pela ira. Esta segunda etapa parece-me portanto fundamental: reconhecer que estamos zangados e aceitar todas as visões e fantasias que nos passam pela cabeça, aceitar as imagens de violência que chegam a nós, tais como atirar o outro pela janela, cortá-lo aos bocadinhos, atropelá-lo, ir buscar a velha caçadeira ao sótão ... A aceitação interior dessas imagens de violência tem o mesmo efeito que um monte de loiça atirado para o meio do chão ou que uma cadeira despedaçada contra a parede: alivia e serve para descarregarmos o excesso de energia suscitado pela ira, excesso que nos impede de estarmos à escuta de nós próprios. Só depois da acalmia provocada pela descarga emocional que possibilitam essas visões e projecções, é que poderemos tentar descer para o fundo do nosso poço. Esta etapa também é difícil por comprometer de certa forma a imagem de bom rapaz ou de boa rapariga que gostamos ter de nós próprios: «Eu, tão bom rapaz, rapariga tão bem educada, imaginar que me poderia apetecer esborrachar a cabeça do outro contra a parede, era o que mais faltava, esse tipo de violência é só para os outros, não é para mim!» Para uma pessoa poder desfazer-se da sua ira e da sua violência, tem que ser capaz de as encarar de frente. 3. A terceira etapa consiste em identificar a ou as necessidades insatisfeitas. Com a pressão já um pouco aliviada pela etapa anterior, ficamos mais disponíveis para escutar o que se passa em nós em vez de responsabilizar o outro. Passamos a poder nomear as primeiras necessidades que nos surgem. 4. A quarta etapa consiste em identificar os novos sentimentos que se poderão então manifestar. De facto, como acima se referiu, a ira está por vezes velada por detrás de sentimentos mais socialmente correctos, mas também pode velar outros sentimentos em relação aos quais funciona de certa forma como uma tampa. Estes são muitas vezes o cansaço provocado por uma situação repetitiva, a tristeza e o medo. Esses sentimentos mais específicos vão por sua vez informar-nos acerca das nossas necessidades, e passamos a poder fazer o inventá-
rio ou a inspecção de tudo o que nos é revelado pela ira. O cansaço pode traduzir a nossa necessidade de mudança, de evolução; a tristeza, a nossa necessidade de compreensão, de escuta, de apoio; o medo, a nossa necessidade de segurança afectiva ou material. 5. Estamos finalmente disponíveis para a quinta etapa: abrir a boca, exprimir a nossa ira ao outro de uma forma que já tem mais hipóteses de ser ouvida por ele. Na realidade, nem sempre será fácil efectuarmos rapidamente esse trabalho de escuta interior enquanto estamos na presença do outro. Poderá então ser oportuno dizer: «Agora estou demasiado zangado para falar contigo e ouvir-te de forma satisfatória. Preciso de ouvir e compreender a minha ira primeiro. Falamos depois.» Se a pressão for demasiado forte e se apesar de tudo explodirmos diante do outro, nada nos impede de trabalhar à mesma a nossa ira num frente a frente connosco próprios, e de ir ter novamente com o outro dizendo-lhe que estamos aborrecidos por termos exprimido as nossas frustrações nesses termos e com esse tom (S), que gostaríamos de encontrar um modo mais agradável de lhe comunicar o que não queremos e o que queremos (N), e por fim que desejamos saber se ele está disposto a ouvir-nos ali, nesse exercício (P). Não deixe um motivo de ira apodrecer dentro de si, nem entre si e o outro. Leve o tempo necessário para evacuá-lo, senão pode acontecer que mais tarde ou mais cede ele venha a envenenar toda a relação. Recordemos que se quisermos que as nossas relações sejam duradouras e satisfatórias, temos que alimentá-las. Muitas pessoas têm dentro de si uma ira que não querem assumir. Muitas vezes, estando toda a sua energia inconscientemente mobilizada para conter essa ira, as pessoas deixam de estar verdadeiramente disponíveis para a intimidade, a ternura, a experiência duradoura e satisfatória do relacionamento, a paz interior, a criatividade. O impulso vital está cortado, e só um trabalho sobre si próprio permitirá a desobstrução da via. Por outro lado, quando se trata de escutar a ira do outro, é frequente accionarmos os seguintes reflexos: agressão ou fuga. É raro que tenhamos em nós a paciência e a segurança necessárias para escutar a ira do outro e entrarmos em empatia com ele, pois tendemos a pensar que a atitude dele se dirige contra nós: «Ele/ela está zangado, portanto ele/ela já não gosta de mim; portanto já não sou digno de ser amado.» E para nos protegermos desse risco, ora agredimos ora fugimos. Só que essa reacção não satisfaz. No melhor dos casos, ao explodirmos também, aliviamos a tensão que existia dentro de nós, e no pior dos casos entramos os dois numa espiral infernal.
Quanto à fuga, inútil será dizer que, apesar de nos dar a impressão de termos salvo a pele, também parece pouco satisfatória. Sabemos agora que os sentimentos desagradáveis exprimem necessidades não satisfeitas. Sendo a ira em princípio um sentimento desagradável, se observarmos a ira do outro poderemos dirigir a nossa atenção não para a atitude dele, para as suas palavras, tom de voz e gestos, mas sim para as suas necessidades insatisfeitas, e tentaremos nomeá-las: «Estás zangado porque precisas de mais respeito, mais consideração, mais escuta, mais apoio, mais confiança...» E possível que não se acerte logo na necessidade em causa. No entanto, o outro não deixará em princípio de reparar que, em vez de argumentarmos para nos justificarmos, de o agredirmos também ou de fugirmos, ficámos ali a escutar. E uma atitude pouco habitual, por isso surpreende. Muito regularmente, logo depois da primeira troca de palavras, o tom volta a descer. O outro responde «Sim, é isso, eu queria que tu...» ou «Não, não é isso, eu queria que tu...», e muito devagarinho poderemos entrar de novo na dança do encontro. Refira-se novamente que reconhecer a necessidade do outro não significa que a aceitemos nem que a queiramos satisfazer, mas sim que pelo menos estamos juntos a tentar encontrar-nos. HÁ MAIS ALEGRIA EM TENTAR RESOLVER OS NOSSOS CONFLITOS DO QUE EM CONSEGUIR AGRAVÁ-LOS
Não estou a dizer que seja fácil, digo que é possível. Não estou a dizer sempre, digo que vale a pena tentar! Porquê? Porque há mais alegria em tentar resolver os nossos conflitos do que em conseguir agravá-los, porque também sentimos mais alegria em reencontrarmo-nos verdadeiramente verificando as nossas responsabilidades recíprocas, do que em defendermo-nos desesperadamente por termos errado ou em querermos ter razão de qualquer maneira. Há pessoas que preferem ter razão a qualquer preço, mesmo correndo o risco de ficarem de relações tensas com todos aqueles que as rodeiam, em vez de aceitarem alegremente que pode haver duas opiniões! Desejo que todos nós possamos exprimir e escutar a ira com força e com benevolência, para que um dia as pessoas parem de explodir por cima de campos de minas.
CAPÍTULO
V I
INFORMAR-SE MUTUAMENTE E PARTILHAR VALORES Não me disseram «Vem», disseram-me «Vai onde quiseres». WlLLIAM SHELLER
Há uma pergunta que é sistematicamente reiterada nas conferências: «É muito bonito escutarmo-nos assim uns aos outros, mas há que impor certos limites!» Sem dúvida. Precisamos de pontos de referência, precisamos de nos situar claramente em relação às coisas, às pessoas e aos eventos. Mas será por isso necessário impor, constranger? 1. É preciso, Deves, E assim, Não tens alternativa... Eis o que eu designava, no primeiro capítulo, por linguagem desresponsabilizante, um dos quatro hábitos de funcionamento mental causadores de violência. Essa linguagem - e sobretudo o nível de consciência que ela traduz - não deixa margem de liberdade e não informa sobre o sentido. Pior ainda: é uma linguagem que anestesia a consciência e a responsabilidade. Há alguns anos atrás, a Africa do Sul lançou uma campanha de amnistia dos carrascos e verdugos do apartheid. Li num jornal inglês entrevistas a vários desses carrascos aos quais fora proposto a confissão dos seus actos em troca da amnistia. Um deles, pai de família e músico nos tempos livres, a quem se perguntava como era possível passar o dia a torturar seres humanos na prisão onde trabalhava, e depois voltar para casa e brincar com as filhas ou sentar-se a impro-
visar ao piano, respondeu: «It zvas my job! I zvas paid for thatl I had to!»7) Até me caiu o jornal das mãos! Seria possível que o duplo jogo do dever e da obediência tivesse transformado esse ser humano numa máquina de torturar, sem consciência nem vacilação moral? Criminosos nazis questionados sobre os métodos de acção chegaram a dar o mesmo género de resposta. Trata-se da mesma anestesia da consciência e do coração, da mesma robotização. Parece-me que no nosso dia a dia, sem que - graças a Deus - as consequências dos nossos actos sejam assim tão trágicas, somos às vezes levados a agir ou a esperar que os outros ajam de uma forma robotizada, sem vida, sem alma, sem sentido: «É preciso vencer, Deves trabalhar, E preciso ir à escola, É preciso levar o lixo à rua, Tenho que ganhar a vida, Na minha situação não tenho alternativa...« Do constrangimento à liberdade: É preciso ou Eu gostaria? Na minha primeira sessão de formação em comunicação não violenta com Marshall Rosenberg, ele introduziu a questão desta forma: «Vejamos agora como sair da escravatura, como livrar-nos desses épreciso que, eu devo, não tenho hipótese...» Depois perguntou se algum de nós achava que existiam coisas que é preciso fazer, quer se queira quer não. Reagi sem hesitar: «—E óbvio que existem coisas que é preciso fazer, quer se queira quer não. — Podes mencionar alguma coisa que aches que é preciso fazer? — Posso, claro! Preciso de trabalhar. Não tenho outra alternativa, é assim mesmo! O dinheiro que tenho é aquele que ganho a trabalhar, e uma pessoa tem que se levantar cedo para ganhar a vida! — Quando dizes «O dinheiro que tenho é aquele que ganho a trabalhar, e uma pessoa tem que se levantar cedo para ganhar a vida (O)», como é que te sentes? — Farto e... preocupado! — E as tuas necessidades (N)? — Estou farto porque gostaria de poder usar o meu tempo de um modo mais criativo e altruísta, e preocupado porque preciso de segurança material. E verdade, preciso de me sentir seguro, de saber que posso pagar o apartamento, porque já não me apetece morar num quarto de estudante; de saber que posso fazer um plano poupança reforma, porque não me apetece morrer à fome quando chegar aos sessenta e cinco anos; de saber que posso pagar o carro, porque não me
apetece andar sempre a pé ou de comboio; de saber que posso tirar de vez em quando umas férias, fazer uma viagem, organizar uma festa com amigos, ou até inscrever-me numa acção de formação. — Ao tomares consciência de que trabalhas para poderes morar num apartamento mais agradável do que um quarto de estudante, para garantires a tua reforma, para te deslocares de carro, tirares férias ou continuares com esta acção de formação, como é que te sentes? — Muito surpreendido. Não tinha visto as coisas dessa maneira. É verdade que, todas as manhãs, opto por vestir um fato e uma gravata e ir para o trabalho. Ninguém, a não ser eu próprio, me impede de ir de repente viver para a Mongólia ou para a Terra de Fogo até ao fim dos meus dias. Opto por um certo conforto, uma certa integração social e familiar, uma certa liberdade a que poderia, se quisesse, renunciar. Só que não tenho muita vontade de ir parar à Mongólia sem recursos ou à Terra de Fogo onde não estão as minhas raízes. Ao mesmo tempo, estou a aperceber-me de que sinto uma necessidade urgente de mudar de orientação profissional e fico satisfeito quando penso que estou a trabalhar nesse sentido ao frequentar esta acção de formação.» Assim que pude esclarecer as implicações do meu «E preciso», isto é, a necessidade de segurança material por um lado, e a necessidade de mudança para um trabalho que me satisfizesse mais por outro, percebi que seria capaz de escapar à armadilha do sistema binário que até então me tinha paralisado e que consistia em ficar em segurança e morrer de tédio, ou em mudar e morrer de medo. Iniciei por isso uma transição suave e progressiva. Aos poucos, fui reduzindo o meu tempo de trabalho enquanto consultor jurídico e comecei a desenvolver a minha actividade na área das relações humanas. O constrangimento («Tenho que ganhar a vida») transformou-se num suporte: «Graças a este trabalho, posso mudar de vida profissional em segurança!» Vivi esses anos de transição com uma energia totalmente diferente, já que o valor (ou a necessidade) para o qual eu tendia era claro. A liberdade assusta mais do que o constrangimento Recomendo por isso, com veemência, que passem todos os «é preciso, eu devo, não tenho alternativa» pelo filtro da consciência, no sentido de verificarem exactamente quais os valores que eles servem. O exercício possibilita uma triagem. Muitas vezes, arrastamos connosco antigos «é preciso», que foram formulados há muito tempo e que não estão actualizados. Se não existir por detrás do «é preciso»
um «eu gostaria mesmo», então é porque o primeiro está obsoleto e prende-se mais com um reflexo automático do que com uma consciência responsável. A triagem pode levar a mudanças de peso. Tenho amigos que, após terem examinado todos os seus «é preciso, eu devo», deixaram tudo: trabalho, casa, rotinas, para irem com os filhos durante um ano dar a volta a França de carroça. E a escola? Era dentro da roulotte, à luz da lanterna. E o dinheiro? Iam fazendo biscates pelo caminho sempre reduzia as necessidades. E a integração dos filhos quando regressassem? A vida vive-se no presente, com confiança. Num zvorkshop que reunia algumas famílias, juntando pais e filhos, uma mãe que era professora interpelou-me: «— Ó Thomas, não deixa de haver certas coisas na vida que é mesmo preciso fazer, quer se queira quer não! — Podes mencionar alguma? — Claro. Todos esperam que eu, por ser mãe, faça o jantar todos os dias. Não tenho por onde escolher. — Como é que te sentes ao dizer isso e qual é a tua necessidade? — Sinto-me estafada, porque gostaria de largar as rédeas, nem que fosse um único dia por semana, e poder tomar um bom banho depois da escola. — Sentes-te portanto estafada (S) porque gostarias de dispor de um pouco mais de tempo para ti a seguir ao trabalho (N)? — Sim. Mas tens que perceber que se eu não cozinhar, as crianças põem-se a comer uma porcaria qualquer, e é preciso que elas comam de maneira equilibrada. — Sentes-te preocupada (S) com o equilíbrio alimentar delas e queres ter a certeza de que elas comem de maneira saudável (N)? — Sem dúvida! Isso é para mim uma prioridade. — Então será que te sentes dividida entre a necessidade de teres mais tempo para ti, por exemplo para tomares um bom banho, e a necessidade de te sentires descansada com a questão do equilíbrio alimentar delas? — E isso. Mas não vale a pena sonhar, elas não iam compreender que eu fosse tomar um banho enquanto esperam pela refeição! — Parece que tens dificuldade em acreditar que elas possam compreender a situação... — Oh! Estou convencida que são incapazes de compreender. — Já que as tuas filhas estão aqui, proponho que as questionemos em relação a isso, em vez de decidires por elas que são incapa-
zes de compreender - respondi voltando-me para as crianças, duas adolescentes que também participavam no workshop. - O que é que têm a dizer a respeito do que a vossa mãe acaba de nos transmitir? — (Em coro.) Há anos que lhe pedimos que descanse o tempo que for preciso antes de ir para a cozinha, ou então que nos deixe fazer as coisas. Sabemos não só que ela precisa de descansar um pouco, mas também que detesta cozinhar. Não imagina a má onda que há lá em casa, com ela a cozinhar contrariada! Muitas vezes ficamos com a noite estragada por causa disso. Ela bem que podia confiar em nós, aceitar a ideia de que somos capazes de fazer as coisas sozinhas, como preparar o jantar e cozinhar uma boa refeição. Já lá vai o tempo em que comíamos as bolachas todas da dispensa ou devorávamos dez torradas com barras de chocolate! (Volto-me então para a mãe.) — Como é que te sentes ao ouvir as tuas filhas dizerem que gostariam que acreditasses que são capazes de cozinhar uma boa refeição, ou então que tirasses algum tempo para descansares antes de ires tu própria cozinhar? — Perturbada e aliviada. E verdade que elas já me disseram isso várias vezes e que não as tenho escutado. Vi durante tanto tempo a minha mãe a estafar-se para fazer tudo como deve ser, a preocupar-se até à exaustão para ser uma boa mãe, que agora reparo que tenho dificuldades em adoptar outra atitude, apesar delas me convidarem a isso, já que não lhes convém o que vem ocorrendo.» Este diálogo revela a nossa extraordinária faculdade para nos fecharmos em crenças acerca de nós mesmos («Espera-se que uma mãe faça...») e acerca dos outros («Elas não vão compreender, nem me atrevo a tocar no assunto, já conheço a resposta...»). Só o encontro verdadeiro com o outro permite sair dessa armadilha. Tenho verificado o quão difícil é reconhecermos a nossa responsabilidade, e a nossa tendência para atribuirmos aos outros ou aos eventos que nos rodeiam a responsabilidade pelo que nos está a acontecer. Para aquela mãe, era difícil resolver sozinha, sem ajuda, aquela situação e assumir livremente as suas responsabilidades discutindo o assunto com as filhas. Inconscientemente, preferimos muitas vezes os poisos familiares da nossa gaiola, à liberdade de sair pela porta aberta. Só que a porta está aberta, toda aberta, como diz o poema de Gyula Illyes reproduzido no início deste livro. Então porquê? Não será porque a liberdade é para nós mais assustadora do que o constrangimento? Conhecemos bem o constrangimento. Ele é-nos familiar. Descon-
fortável, mas familiar. Quanto à liberdade, ui ui! É novidade e desperta o medo do desconhecido! Após gerações de uma educação totalmente orientada para as noções de dever ou de hábito, é difícil aceitarmos agir por opção e por impulso da alma, apesar de isso ser vital. Para evitarmos que o mundo perca o seu sabor e o seu encanto, ficando anestesiado, é urgente que cada um de nós reencontre o impulso da alma. Tens que calçar os chinelos! Durante uma acção de formação, uma mãe diz-me assim: «Não consigo fazer com que a minha filha de seis anos de idade entenda que tem que calçar os chinelos quando corre de pijama pela casa.» Peço-lhe então que me mostre como é que ela faz, e proponho-lhe que se dirija a mim como se eu fosse a filha. «— Já te disse mil vezes para calçares os chinelos, já nem sei em que língua hei-de falar contigo para me fazer entender. Vai já calçar os chinelos!, diz, começando a rir ao reparar no próprio tom de voz. — Se eu fosse sua filha e ouvisse isso, só me ia apetecer fazer exactamente o contrário, pelo menos por duas razões. A primeira, é que não percebo o sentido do seu pedido, pois até adoro correr descalça! — Mas eu já lhe disse ao princípio: tenho medo que ela apanhe frio, que fique doente e que eu tenha que faltar ao trabalho para ficar com ela. Mas é verdade que só lho digo uma vez, assumo que a coisa ficou entendida e depois vou-me irritando sem lhe recordar a necessidade por detrás do meu pedido. — Talvez possa verificar que certamente ela não dá ao seu pedido a mesma importância que você. Podemos facilmente imaginar que, para uma miúda pequena, apanhar frio e ficar em casa com a mãe talvez não pareça assim tão complicado como para a mãe! Talvez seja oportuno esclarecer melhor a sua necessidade, e de certeza que é necessário repeti-la, em vez de considerar que só porque lhe disse uma vez, ela entendeu a coisa exactamente da mesma maneira como você a entende. Agora gostaria de lhe perguntar se, ao indicar-lhe a sua necessidade e ao dirigir-lhe o seu pedido, respeitou a liberdade dela de não concordar? — (Rindo.) Não, era o que mais faltava! — Eis a segunda razão pela qual, se eu fosse sua filha, não me apetecia nada calçar os chinelos: preciso que a minha liberdade seja respeitada, por muito miúda que eu seja! 88
— Isso é que já é mais difícil! Aceitar que o outro não concorde! — Claro que não é fácil. Mas se impusermos os nossos pedidos como exigências, iremos obter submissão ou rebelião, nunca o encontro. Agora, ao dizer que é difícil, não se sente mais segura por saber que pode acolher o desacordo da sua filha sem desistir das suas próprias necessidades? — Pois, sinto. No fundo, quero que ela esteja de saúde e gostaria que começasse a ser mais autónoma em relação a essas pequenas coisas, como calçar os chinelos quando tem frio, por exemplo. — Será que gostaria de conseguir confiar nela, aceitando que ela seja capaz, aos poucos, de decidir por si própria quando deve calçar os chinelos? — (Longo suspiro e tempo de silêncio.) A palavra é mesmo essa: conseguir confiar. Tenho muita dificuldade em confiar, de maneira que acabo por controlar tudo! E tão cansativo!» Durante o workshop, a mãe foi ficando cada vez mais consciente da sua dificuldade em confiar. Também compreendeu que lhe compete a ela trabalhar-se a si própria para melhorar a relação com os filhos e o cônjuge. O workshop abrangia um período de vários dias. Certa manhã voltou a aparecer, toda contente, dizendo: «Ainda não consegui exprimir claramente a minha necessidade à minha filha mas ontem à noite, em vez de me irritar, fui capaz de lhe perguntar se ela sabia por que é que eu queria que ela calçasse os chinelos. Respondeu claramente: «Para eu não apanhar frio.» Consegui deixá-la estar sem a obrigar a nada e, minutos depois, reparei que tinha calçado os chinelos sozinha!» Como vêem, ao aceitarmos descodificar um «é preciso - tu deves», surge a oportunidade de regressarmos a nós próprios, de trabalharmos a nossa própria noção da responsabilidade. Um político em actividade numa instância deste país veio a uma consulta por ter verificado que sentia dificuldades em comunicar com a equipa. Reparou que usava regularmente um tom autoritário, recebendo como resposta uma contestação e uma rejeição da sua autoridade, que prejudicavam o trabalho, quando o que ele desejava era precisamente mais eficácia no trabalho de equipa e uma colaboração mais frutuosa. Quando surgiu uma oportunidade de renovação da equipa, a seguir às eleições, pretendeu esclarecer a maneira como iria comunicar as intenções e os objectivos para os próximos anos. Desejava nomeadamente que só estivessem a seu lado pessoas
realmente interessadas pelo serviço público e pelos interesses da comunidade, e não queria continuar a ter a colaboração de pessoas cuja única preocupação era a própria carreira. Um objectivo nobre para o qual, felizmente, pude contribuir. O seu projecto de apresentação estava recheado de expressões do estilo «É absolutamente necessário, Devemos, Já é tempo de, E escandaloso que...», isto é, deveres e considerações morais ou mentais. Não me surpreendeu que essa atitude gerasse tanta discussão: de facto, ele transmitia a impressão de saber o que era bom para os outros, de estar sempre a decidir pelos outros, em nome dos outros. Trabalhámos os seus sentimentos e necessidades para que ele fosse capaz de se exprimir com palavras capazes de tocar cada membro da equipa: «Estou cansado e um pouco desanimado, preciso que o nosso trabalho de equipa seja eficaz e, nesse sentido, preciso de ter a certeza de que realmente partilhamos o mesmo objectivo - o serviço e o interesse da comunidade. Gostaria que cada um de nós parasse para definir interiormente as suas prioridades. E preciso que haja uma enorme sintonia entre a nossa linguagem e a nossa atitude. Queremos uma política mais consciente do alcance dos seus actos, e mais responsável a longo prazo e de um modo geral. Será que cada um de nós, através do seu empenho nas tarefas quotidianas, se sente em sintonia com esse ideal a atingir?« Esse tipo de abordagem oferecia muito mais oportunidades de suscitar um encontro cordial com cada membro da equipa, do que a linguagem do «E preciso», que tanto exige ou condena. E de facto, ele ficou muito satisfeito com o modo como acabou por correr a reunião de equipa. £ preciso levar o lixo à rua! A próxima vez que o leitor pensar «É preciso levar o lixo à rua», pare e descontraia-se: não vai aparecer nenhum polícia a prendê-lo, nem vai ser condenado no juízo final por amontoar sacos do lixo, semana após semana, na cozinha e depois na sala, e até mesmo na casa de banho! Se costuma levar o lixo à rua, não é porque precisa de ordem, de limpeza, de higiene, de estética e de conforto, não é, resumindo, para tornar a casa mais acolhedora? Em vez de viver sujeito ao constrangimento do «E preciso», pare para meditar sobre o que sente quando entra em contacto com os valores que gosta de servir. 190
Não tenho alternativa, Não tenho tempo! Eu sei que existem, naturalmente, circunstâncias em que as possibilidades de escolha podem ser consideravelmente reduzidas, ou mesmo inexistentes. A violência ou o constrangimento físico, por exemplo, podem suprimir a liberdade de acção. No entanto, tenho sempre o máximo apreço pela coragem das pessoas que reconhecem não terem sentido a força de decidir, de recusar ou de mudar, e que consequentemente optaram por aceitar uma situação que decerto não lhes convinha mas que mesmo assim preenchia certas necessidades entre as quais, muitas vezes, a necessidade de segurança material, afectiva, emocional. Parece-me mais corajoso reconhecer a sua própria responsabilidade, do que culpar as circunstâncias ou os outros. Creio que é por hábito de linguagem que dizemos «Não tenho alternativa» da mesma maneira que dizemos «Não tenho tempo». Se estivéssemos mais conscientes das nossas necessidades, veríamos claramente que somos nós que escolhemos as nossas prioridades, e que o modo como usamos o nosso tempo é disso um reflexo evidente. A nossa agenda é um indicador de prioridades. Uma pessoa que trabalhe dez a doze horas por dia e que afirme «Não tenho tempo, com este emprego não tenho alternativa» poderia reformular o seu discurso dizendo, por exemplo: «A minha prioridade actual é a minha segurança material e a da minha família. Ainda não tive oportunidade de arranjar um emprego mais bem remunerado que me permita estar mais disponível», ou então «Estou muito empenhado em tentar assumir altas responsabilidades e em dedicar-me inteiramente ao trabalho porque isso preenche a minha necessidade de me sentir útil, de encontrar estímulo e prazer no que faço e de garantir o meu conforto material; optei portanto, por enquanto, por dedicar ao meu emprego grande parte do meu tempo.» As expressões «ainda não» e «por enquanto» possibilitam a liberdade de mudança. No fundo, basta olhar para o que se faz, para aquilo a que dedicamos o nosso tempo e a nossa energia, para as pessoas com quem convivemos. Esses elementos são um fantástico indicador das nossas prioridades, e portanto das nossas opções. Cuidado! Devemos dar atenção não obrigatoriamente ao que fazemos de imediato, mas sim às necessidades que vão sendo satisfeitas pelas coisas que fazemos. Verifica-se uma vez mais que só assumindo a responsabilidade das nossas opções ou da gestão do nosso tempo, é que se adquirimos o poder de acção para mudar o que gostaríamos de mudar. Uma má-
xima inglesa diz, com bastante humor: se não gostares, muda; se não mudares, gosta! 2.
Quebra-mar ou baliza, pastor ou
arame farpado?
Se fosse absolutamente necessário escolher entre a violência e a cobardia, eu aconselharia a violência (...) mas julgo que a não violência é infinitamente superior à violência. GANDHI
Um dia, ao passar de carro por uma pequena povoação, um agente da polícia mandou-me encostar logo a seguir a uma curva onde eu tinha distraidamente «pisado» o traço contínuo que separava as duas faixas da estrada. Num ápice, a visão do agente fez-me tomar consciência da minha distracção e despertou em mim o velho cliché da «autoridade-feia-e-má-que-cumpre-cegamente-o-seu-dever»! Refém deste velho preconceito, estava pronto para ouvir o discurso administrativo da praxe: «Cometeu uma infracção ao artigo XYZ do código da estrada. A coima é de mil e quinhentos francos, é assim, não tem por onde escolher» ou então a habitual moralização: «O senhor não está bom da cabeça, andar a esta velocidade numa aldeia, você é completamente inconsciente!» Encostei o carro na berma. O agente aproximou-se e cumprimentou-me com um extremo civismo: «Meu caro senhor, estou muito preocupado porque sou responsável pela segurança desta aldeia à hora da saída das escolas (N) e ao vê-lo pisar o traço contínuo, fiquei na incerteza (S) se o senhor estará consciente dos riscos (N) que correm as crianças que por vezes atravessam distraidamente a estrada. O que é que lhe parece?» Estive quase para lhe pedir que repetisse, pois não acreditava no que tinha acabado de ouvir. O agente tinha observado o facto sem me julgar, estava a transmitir-me o seu sentimento e a indicar-me a sua necessidade, pedindo-me para lhe comunicar a minha reacção! Fiquei maravilhado com a consciência desse homem: ele não estava ali para punir, repreender ou constranger, mas sim para indicar e recordar um valor e uma necessidade, a segurança. Ele não agia através de ameaças ou sanções, mas sim através da responsabilização. Respondi-lhe que estava extremamente incomodado com a minha distracção, que levava muito a sério a questão da segurança das pessoas e em especial a das crianças, e que aquela atitude de consciência e responsabilidade estava a convencer-me a ser mais consciente e
responsável ao volante. Desejou-me boa viagem e fui-me embora todo contente. Posso garantir-vos que aquele episódio continua ainda hoje a estimular a minha vigilância ao volante, muito mais do que se me tivessem «obrigado» a pagar uma multa para comprar a paz judicial. Costumo recordar-me desse agente, que poderia ter manifestado uma atitude «quebra-mar» (dizendo por exemplo: «O senhor cometeu uma infracção, vai ter que pagar»), mas agiu como uma baliza bondosa e cordial, um ponto de referência de que me lembro com respeito e amizade, e que ainda hoje me leva a ser prudente na estrada. Respeitar uma regra implica que a compreendamos «Se os jovens não respeitam as regras, é porque não as compreendem.» Foi Pierre-Bernard Velge, fundador da associação Flic et Voyous, que me ensinou isso. Digo «ensinou» porque, sendo eu um jurista, tratou-se realmente de uma aprendizagem: não é pelo facto de existir que uma regra passa automaticamente a ter sentido, nem sobretudo tem de «fazer sentido» para todos da mesma maneira. De resto, como já aqui foi referido, a compreensão confere poder de acção: em vez de nos esmerarmos para fazermos respeitar cegamente uma regra, cria-se a oportunidade de verificarmos se o sentido da regra, o valor por ela expresso, foi entendido correctamente e da mesma maneira por todos. Enquanto ignorarmos que uma regra é uma tentativa de exprimir ou ilustrar um valor no dia-a-dia, temos sérias hipóteses de a sentir unicamente como um irritante constrangimento. Durante uma das expedições que costumávamos organizar no deserto do Saara com jovens em dificuldades, começou a instalar-se um clima de tensão e de agressividade entre os jovens. Falava-se de estarem a ser roubados objectos pessoais e certas pessoas queixavam-se de terem que assumir todas as tarefas enquanto outras ficavam a descansar. Apesar de tudo, optámos por deixar os jovens algum tempo em «banho-maria» com essas tensões. Uma noite depois do jantar, à volta da fogueira, sugerimo-lhes que falassem sobre o assunto à vez, cada um com o seu tempo de discurso assegurado pelo ritual do pau do discurso. Eis um resumo da troca de impressões entre três jovens e os animadores que encetaram o diálogo. «—Tu, Thierry, queres dizer alguma coisa? — Quero, gamaram-me as minhas coisas. São uns anormais, estão aqui estão a levar porrada!
— Estás zangado porque precisas que respeitem o teu material e te respeitem a ti próprio? — Sim, preciso que me respeitem e que sejam honestos. — Tu, Jeanine, queres dizer alguma coisa? — Quero, estou farta. Somos só duas ou três pessoas que se dignam a ajudar a descarregar os camiões e a montar o acampamento! Há quem não faça a ponta de um corno e ande por aí a passear! — Estás revoltada porque precisas que haja mais entreajuda e uma repartição mais justa das tarefas? — Sim, era muito mais agradável se nos ajudássemos uns aos outros, fazia-se tudo muito mais depressa. Depois sobrava mais tempo para arrumarmos as nossas coisas. — E tu, Jean-Luc, também queres dizer alguma coisa? — Quero, já não aguento que falem de mim nas minhas costas. A Corine e a Angela estão sempre a dizer coisas sobre mim que não são verdade. — Estás zangado e decepcionado, Jean-Luc. Se elas realmente têm coisas para dizer, querias que tas dissessem à tua frente? — Sim, à minha frente e não pelas costas. E que não inventem coisas que não são verdade. Assim, à vez, escutámo-los a todos, reflectindo os sentimentos e as necessidades de cada um sem os julgar. E foram-se formulando, pelas próprias bocas dos jovens, todos os valores que permitem o bem-estar da vida em sociedade: respeito, honestidade, entreajuda, equidade, franqueza, verdade, etc. Muitos desses jovens tinham cadastros bastante pesados por terem cometido delitos graves. Alguns até tinham sido entregues ao nosso cuidado pelos responsáveis com a condição de assinarmos uma declaração de responsabilidade, tal era a sua reputação de reincidentes incuráveis. No entanto, isolados, na atmosfera de despojamento do deserto, longe dos constrangimentos e das revoltas familiares, os jovens partilharam connosco a beleza das suas intenções. Deram-nos a entender que no fundo do coração prezavam esses valores, apesar de aparentemente os desprezarem numa sociedade onde não conseguiam encontrar o seu lugar. De repente, esses valores adquiriram um sentido evidente, com os jovens a verificarem por si próprios que sem eles se instala a discórdia e o caos. Imagine agora que nos tínhamos armado em guardas prisionais, de estilo «quebra-mar», dizendo: «É preciso que haja respeito, é preciso que nos ajudemos uns aos outros, senão ficam de castigo ou voltam para casa no primeiro camelo que aparecer...» O resultado seria
a chacota geral, um encolher de ombros de escárnio ou rabugice e, para coroar, um insulto gestual! Pior ainda, teríamos reforçado a sua convicção de serem diferentes, de não estarem integrados, de serem desintegrados, inexistentes. Muito provavelmente teriam propositadamente exagerado os seus comportamentos habituais, pela simples razão de que a pancadaria ou a discórdia, assim como a desconfiança e o mal-estar, transmitem pelo menos a sensação de existir. Mal-estar, é à mesma estar. Nessa noite, assim como em todo o resto da viagem, sucederam-se inúmeras oportunidades que lhes permitiram perceber que uma pessoa também pode sentir que existe num clima de bem-estar, de respeito mútuo e de confiança. Esta história mostra que se uma pessoa foi educada desde o berço num clima de tensão, de disputas e de desconforto afectivo, se desde a infância acreditou que agredir o outro é a única maneira de ocupar um lugar - a menos que renuncie completamente a ocupá-lo - então instala-se nessa pessoa uma espécie de resistência ao bem-estar, pois este pode parecer menos intenso que o próprio mal-estar e menos seguro por ser desconhecido. Surge então o risco de a pessoa recriar inconscientemente as circunstâncias que lhe são familiares, reencontrando assim algo conhecido e intenso. Conheci um homem de negócios extremamente bem-educado, amável e elegante, que na infância tinha sofrido imenso com a atitude extremamente autoritária do pai. Este tinha-lhe infligido provas de resistência revoltantes, supostamente para habituá-lo a não sofrer. O que mais custava a esse homem, no seu dia-a-dia, era o modo como reagia face à autoridade. Tinha tomado consciência de que criava propositadamente situações de conflito com a autoridade, só para poder chegar a vias de facto! Contestava sistematicamente todos os impedimentos legais ou administrativos com que se deparava no trabalho, gastando enormes quantidades de energia a contradizer os funcionários ou responsáveis dos serviços que simplesmente queriam regularizar uma situação administrativa. Tinha tomado consciência disso depois de ter ido parar à esquadra por insultar um agente da brigada de trânsito quando este efectuava um simples controlo. Ao abordar as suas necessidades, tomou consciência de que reencontrava nessas alturas de tensão um acréscimo de intensidade e de segurança, sentimentos que o faziam sentir que exista e que tinha o seu lugar, o que não acontecia em ocasiões de acalmia. Explorámos então toda a ira e toda a revolta interiorizadas que se prendiam com a atitude do pai. Depois, quando ele se sentiu mais dispo-
nível para abordar o assunto, tentámos compreender a própria atitude do pai, explorando as necessidades que este terá sentido, no passado, para se comportar daquela maneira com o filho. Por fim, esclarecemos as seguintes necessidades: «Hoje em dia, preciso de sentir que vivo intensamente, evitando a atitude de revolta e agressão. Preciso de dar a mim próprio todo o espaço e todo o respeito que não recebi do meu pai.» Quer sejamos da alta sociedade, miúdos da rua ou homens de negócios civilizados, todos nós precisamos de sentido e de intensidade. E sobretudo, podemos verificar que se não nos tentarmos compreender a nós próprios, compreender a mecânica da violência e tornar-nos assim mais conscientes dos nossos mecanismos de funcionamento, arriscamo-nos a continuar durante muito mais tempo a erguer arames farpados ou cortinas de ferro para nos protegermos. Despacha-te, despacha-te! Não temos tempo! O subtítulo «pastor ou arame farpado» ocorreu-me há dois anos, ao atravessar uma região de França que eu conhecera vinte cinco anos atrás. Nessa altura, a região era ainda tão remota e autêntica que encarnava para muitos o sonho do regresso à natureza. Eu era então um adolescente fascinado pelo trabalho dos pastores que lá viviam. Encantava-me aquela postura de poeta contemplativo suspenso no universo. Eles passeavam livremente os seus rebanhos pelas charnecas austeras, entre ravinas e encostas, derrocadas e terras lavradas, com uma firme bonomia. Uns alegres gritos de ordem, e muitos encorajamentos, denotavam o conhecimento individual que o pastor tinha de cada um dos seus carneiros, e sobretudo do silêncio e do tempo. O pastor tinha o cuidado de ajustar o passo e o itinerário em função do bem-estar do rebanho. Ao regressar a essa região, vinte cinco anos depois, fiquei espantado por ver os rebanhos fechados em recintos. Como já não há tempo para passear pelos campos, resolve-se o problema com uns metros de arame farpado! E o rebanho a espezinhar a mesma terra. E o pastor a fazer de guarda-barreira, por falta de tempo! Tenho reflectido muitas vezes sobre a escola e a educação, as famílias e os lares de acolhimento, os internatos e as instituições penitenciárias, sobre todos esses espaços que se espera que acolham e eduquem, e onde toda a gente se queixa da «falta de tempo». E dei comigo a sonhar com a qualidade da relação entre os seres. É óbvio 196
que não desejo a ninguém que se transforme num carneiro, nem no sentido literal nem no sentido figurativo! Dei comigo a sonhar com a liberdade de qualquer pessoa nas áreas da assistência e da educação, podendo levar todo o tempo do mundo, como um pastor, a escolher o itinerário mais adaptado a cada um. Dei comigo a sonhar que qualquer pessoa em relação de aprendizagem pudesse pedir ajuda e ser ouvida, mostrar que tem medo ou que não está bem e ser escutada, reparar que não está a conseguir fazer alguma coisa e ser encorajada, mostrar-se confusa e ser compreendida, sem ser obrigada a espezinhar terra num recinto fechado. Trabalho com muita regularidade no meio escolar e ouço sistematicamente a mesma queixa: «Mas não temos tempo!» O director de uma escola importante de Bruxelas disse-me, após uma conferência onde eu evocara a imagem do pastor: «O senhor tem toda a razão, nem os pais nem os alunos já sabem o que representa dar tempo ao tempo. Os alunos de hoje passam a vida a ouvir duas coisas: Despacha-te, despacha-te e Depressa, depressa.» Mas será que realmente não temos tempo, ou será que não queremos encarar certas prioridades? Muitas vezes impõe-se a tal corrida à organização doméstica, à intendência. Um casal apercebeu-se que pretendia «não ter tempo» para conviver com os filhos fora da hora do jantar, só porque estava a fazer obras na casa. O casal tinha escolhido uma cozinha nova, uma sala de estar nova e estavam a refazer o jardim. Ainda por cima, «tinha sido necessário» trocar o carro que já estava a ficar velho, acabando o casal por comprar o mais recente modelo familiar turbo diesett As crianças queixavam-se da falta de disponibilidade dos pais e começavam a manifestar o seu transtorno: birras, falta de concentração na escola, más notas, amuos... Os pais, que já estavam a acusar os filhos de falta de disciplina e de falta de respeito, acabaram por admitir que a certa altura inverteram as prioridades, colocando em primeiro plano a casa e o conforto material, o que veio originar uma sobrecarga de trabalho e de preocupações financeiras. Após essa tomada de consciência, reordenaram as suas prioridades, passando a aproveitar de outra maneira o tempo. E de facto, de que serve uma cozinha nova se é para se comer sozinho ou irritado com os outros? De que serve uma sala de estar nova se nunca há tempo para se estar sentado? De que serve um carro novo se há discussões em cada trajecto e se de qualquer maneira não há tempo para viajar, ir passear até ao bosque ou tirar férias?
Prioridade às cadeiras ou à escuta? Há uns anos atrás, François, que tinha participado em várias acções de formação de comunicação não violenta, ligou-me a pedir ajuda. Acabava de ser nomeado director de uma casa da juventude num bairro desfavorecido de Bruxelas e tinham-lhe pintado um quadro catastrófico do ambiente que por lá se vivia. Pelo vistos, os jovens do bairro estavam revoltados e tinham destruído a sala de estar da casa, que era o local de convívio onde decorriam as oficinas criativas. François já tinha uma longa carreira na área da assistência social e humanitária mas nunca tinha lidado com jovens ditos da rua. Encontrei-me com ele e com os membros da sua equipa que, por seu lado, já conheciam bem o bairro. Inf ormei-me sobre a história da revolta e falei com alguns jovens. Pelos vistos, a anterior direcção tinha feito promessas sobre certas actividades e sobre os programas, e nada tinha sido cumprido. Os jovens tinham criado grandes expectativas que não se realizaram e, um dia, perderam a cabeça e partiram tudo o que era cadeira e sofá daquela sala! François disse-me que os seus superiores administrativos insistiam para que se pusesse a casa em condições o mais depressa possível e que se comprasse mobília nova, e pediu-me a minha opinião. Respondi-lhe: «Para quê reconstruir a casa, com a bomba ainda por desactivar? E quase uma provocação: os jovens vão verificar que há dinheiro para substituir a mobília, mas que não há para cuidar das pessoas! É a melhor maneira de se carregar outra vez no detonador: eles ficam com a impressão - com ou sem razão - de estarem a ser menosprezados, de serem considerados como coisas que podem ser arrastadas de um programa para o outro. E urgente que se lhes testemunhe alguma consideração humana, que eles sejam escutados e que se tente compreender as suas frustrações.» Aceitei a proposta de escutar os jovens e de levar todo o tempo que fosse preciso para se restabelecer a paz. Ele queria que eu lhe fizesse uma proposta concreta, com um valor definido, para apresentar à direcção. Sem imaginar ao certo o número de horas que tal trabalho iria exigir, avancei com a proposta de quatro módulos de quatro horas para poder falar com cerca de quinze jovens, o que correspondia nessa altura a um orçamento global de cerca de vinte mil francos belgas. François voltou a ligar-me uma semana mais tarde para me comunicar que a proposta tinha sido rejeitada, pois a direcção acabara de 198
esgotar o orçamento daquele ano ao votar a atribuição de cento e cinquenta mil francos para renovação da sala e aquisição de novas cadeiras. Especificou também que a direcção considerava aquilo uma prioridade: para que os jovens se sentissem bem, o ambiente tinha que ser acolhedor. Mas também estava determinada a reforçar as medidas de vigilância para garantir que o material não fosse maltratado. Claro que importa haver um ambiente acolhedor, mas qual a utilidade de um ambiente acolhedor quando se tem o coração cheio de revolta e de ódio? É uma atitude repleta de boas intenções, mas será que está ao serviço da verdade das relações humanas? Claro que importa garantir a segurança do material, mas reforçar a vigilância será realmente o meio mais eficaz e mais satisfatório para todos? Esta história verídica demonstra até que ponto as nossas instituições são parecidas connosco ao não conseguirem ainda colocar o factor humano no centro das suas preocupações, deixando-se ingenuamente distrair por toda a organização anexa. A violência é a explosão de uma bomba de vida impedida E quando uma pessoa fica sem palavras para se exprimir, e sem paciência para escutar, que começa a rodear-se de arame farpado. Certo dia, acompanhámos cerca de vinte jovens em dificuldades numa sessão de dois dias de escalada e exercícios arrojados, com cabos e pontes aéreas, no campo de treinos do regimento de comandos. O campo situava-se em plena natureza e não tinha cerca em redor. Tínhamos recebido uma série de avisos dos responsáveis desses jovens: «Olhem que eles são perigosos, não os percam de vista, não os deixem fugir...» ou então «Estão doidos, eles vão é começar logo a beber e a provocar distúrbios no primeiro café da esquina, tragam-nos de volta ao fim do primeiro dia.» Saímos confiantes. E com razão. De facto, aqueles jovens, que habitualmente vivem entre as quatro paredes de um lar de acolhimento ou então na rua, depois de passarem um dia inteiro ao ar livre suspensos por cordas a cem metros do chão, depois de atravessarem pontes Himalaia por cima de desfiladeiros, roçando os cumes dos abetos, depois de terem sentido calor, fome e medo, depois de discutirem, refilarem e rirem com os adultos, que poderiam querer ao cair da noite senão estar reunidos à volta da fogueira, com as tendas montadas e o jantar a aquecer? O que é que os apaziguava? O bem-estar, cujos ingredientes são o sentido do que se faz, e a sensação de existir.
Todos nós ficamos perigosos se a nossa vitalidade não tiver oportunidade de se exprimir, se o nosso mal-estar não tiver oportunidade de ser partilhado e compreendido. A violência é a explosão de uma bomba de vida impedida. 3. Sentido e sensação «A margem dá sentido ao rio» Já não sei quem disse essa bela frase. É verdade que sem a margem, o rio torna-se pântano e dali não sai mais. Precisamos de sentido como de pão para a boca. Sentido no duplo aspecto de direcção e de significado. Toda a arte está em entender e dar a entender que a margem é a aliada do rio, a amiga, a fiel companheira; que o rio não sofre com a margem, mas nela se apoia e graças a ela readquire forças. Precisamos de sentido como de pão para a boca Trabalho muito com os jovens as questões do sentido e da liberdade. Vejo que eles gostariam de ter as duas coisas, mas que não sabem muito bem como lá chegar, e que verificam por si próprios que não faz necessariamente sentido fazer tudo o que se quer e que, inversamente, escolher um sentido pode revelar-se constrangedor pois implica renunciar a certas coisas. Para ilustrar a ideia de que ser-se livre não significa poder fazer tudo e mais alguma coisa, mas sim poder fazer o que se escolheu fazer, costumo apresentar-lhes a seguinte metáfora. Imaginem que estão num grupo de uma dúzia de pessoas num baldio qualquer, ao sol, a meio da tarde. O que é que fazem? — Oh... andamos por aí, dormimos ou damos uma volta pelo bairro, enfim, passamos uma seca! — Imaginem agora que vos dou alguns constrangimentos: traçar com cal um grande rectângulo branco no chão; dividir esse grande rectângulo em duas partes e formar duas equipas; utilizar uma só bola para as duas equipas, num tempo predefinido e observando algumas regras de passagem da bola. O que é que acontece? — (Surpreendidos) Olha mas que esperto, joga-se à bola! — Como vêem, a regra ou o constrangimento são o enquadramento do jogo. Eles é que vos dão a oportunidade de exercerem de um
modo mais satisfatório a vossa liberdade de jogar. Da mesma maneira que o sinal vermelho e as regras do código da estrada possibilitam o exercício, de um modo mais satisfatório e seguro, da nossa liberdade de circular. Enquanto não tomarmos consciência do sentido da regra, até podemos sentir vontade de jogar sozinhos fora do enquadramento. Mas se estivermos conscientes do sentido da regra, temos certamente mais hipóteses de sentir prazer em partilhar o jogo.» Informar sobre o sentido é difícil se nos próprios não nos tivermos interrogado sobre a questão. Tenho observado a perturbação de muitos pais e professores a esse respeito: as perguntas dos adolescentes e até mesmo das crianças mais novas sobre o sentido do que eles fazem deixam-nos muitas vezes boquiabertos! Pessoalmente, fico muito satisfeito por tantos jovens se questionarem sobre o sentido e já não aceitarem ouvir como resposta «E assim porque é, Vai-se à escola porque é obrigatório, Trabalha-se porque é preciso ganhar a vida...» Com as questões que colocam, os jovens convidam os adultos a reflectirem sobre as suas prioridades, até mesmo a reformularem-nas, e também a serem mais precisos na definição daquilo que para eles «faz sentido». Vejo nisso um sinal de que se está a evoluir para a existência de mais sentido, de mais responsabilidade e de mais verdade. É claro que tudo isso vem de certa forma abalar os antigos pontos de referência e os velhos hábitos, e por vezes não nos é fácil termos de nos questionar a nós próprios! Celebrar a intensidade da vida O QUE FAZ FALTA AO HOMEM, É A INTENSIDADE.
Cari Jung Há uns anos atrás, numa rua de comércio de uma cidade do Quebeque, em pleno e gélido mês de Novembro, fui abordado por um adolescente sorridente, apoiado na esquina de um muro: «Olá, tudo bem? Está à procura de alguém?» Percebi logo o que ele estava ali a fazer, no frio, apesar de ter aquele ar de menino de colégio à saída das aulas. Não era droga que ele queria vender. Respondi: «Não, não estou à procura de ninguém. Mas ofereço-te um café se quiseres.» Estava mesmo um gelo e algo me sensibilizou naquele encontro inesperado. Ele aceitou. Entrámos no bar mais próximo e conversámos um pouco sobre tudo e nada.
«— Tim, disse, foram os jovens que me ensinaram grande parte daquilo que eu sei e que pratico no meu trabalho. Importas-te que eu te faça uma pergunta sobre ti?« — (Expelindo o fumo do cigarro.) Tudo bem, diga lá. — O que é que te levou a fazeres o que tu fazes nas ruas? — O pó. — E o que é que te levou ao pó? — A vida. — E o quê em especial na vida? — (Emite um longo suspiro, atira o cigarro ao chão e apaga-o com irritação.) Já não posso ouvir o meu pai dizer-me que é preciso ir à escola porque sim. Ele nem sequer é capaz de me explicar porque é que trabalha! O homem está a brincar comigo, nada disto faz sentido! — Precisas que as coisas e a vida façam sentido? — Claro! Ainda por cima a vida é uma seca, o meu pai é uma seca, a minha aldeia é uma seca. Preciso de me divertir! Apanho cada trip... (Ri.) — Querias que a vida fosse mais intensa, mais viva? — (Irrita-se.) Pois, quero é movimento, acção. Nem lhe passa pela cabeça o ambiente que se vive lá em casa. Está tudo arrumado no seu lugar, tudo morto. O que mais lá faltam são sensações! — Precisas de ter a sensação de que estás vivo? — Sim, é isso mesmo, a sensação de estar plenamente vivo. Só que não encontro nada disso na minha vida. De maneira que meto umas linhas de coca, fumo uns charros e dou umas quecas com desconhecidos. Ainda não encontrei outra razão para viver, mas sei que ela há de chegar.» Em poucas palavras, Tim resumira duas implicações fundamentais da nossa existência: precisamos de sentir o sentido da nossa vida, a sua direcção e o seu significado humano, filosófico, espiritual, e também precisamos de nos sentir encarnados em carne viva e palpitante, num corpo capaz de saborear plenamente o prazer de estar no mundo. Se não cuidarmos dessas necessidades de um modo construtivo, corremos o risco de tentar preenchê-las de um modo destrutivo. Três dias após o nosso encontro, ao sair do local onde eu estava a moderar uma acção de formação, dei com o Tim a pedir esmola numa grande avenida. Era inacreditável que me cruzasse novamente com ele. Ele estava com um ar exausto e, pelos vistos, tinha esgotado os seus últimos recursos. Faltavam-lhe vinte dólares para apanhar o autocarro de regresso à aldeia.
«Já disse, são só vinte dólares, só falta isso para eu voltar para a minha aldeia. Fica a quatrocentos quilómetros! — Não me importo de ajudar, mas quem me garante que não acabas por fumar esses vinte dólares? — Venha comprar o bilhete comigo. Tenho que ir embora, já disse!« Caminhámos até ao terminal rodoviário e Tim explicou: «Estou com medo de perder o autocarro, os meus pais vão estar amanhã à minha espera. E que o meu amigo já não me quer lá em casa. Então pus-me a rezar. Eu rezo sempre nessas alturas. — E os pedidos realizam-se sempre? — Bem, como pode ver, encontrou-me e agora vai-me comprar o bilhete! — E acreditas...? — Em quê? Em Deus? — Sim. — Claro que acredito! Ele responde-me sempre.» Ele tinha confiança. Confiança de que um dia teria uma mulher, filhos, um emprego. Falava daquilo que estava a viver como se de uma simples passagem se tratasse, um momento. Estou-lhe grato por essa lição de vida e de fé. Foi um encontro que alimentou em mim o gosto de escavar ainda mais fundo para encontrar, para além de toda a lama das vicissitudes e mágoas do dia a dia, a seiva da saúde e da vida. Julien, por seu lado, era um rapaz de dezassete anos tão calado que parecia autista. Estava envolvido com problemas de droga e convidámo-lo a juntar-se a nós num passeio rio abaixo que costumávamos organizar numa região montanhosa e desértica. Passou os primeiros dias na parte de trás do barco de borracha, sem se mexer, em silêncio, enquanto os outros iam trocando de lugar à frente para se encavalitarem nas bóias do barco e saltarem as ondas dos rápidos. Julien era de origem muito modesta. O pai, estrangeiro, regressara há muito ao país natal. Julien era triste e solitário. Apesar de tudo, foi-se socializando ao presenciar o divertimento dos outros. Um dia arriscou. Foi para a frente do barco e também se sentou a cavalo nas bóias, atento ao próximo rápido. Só que a onda que se formou era muito maior do que inicialmente parecia. Encharcou abundantemente toda a gente e os remoinhos quase que voltaram o barco. Julien exultou: «Viram esta onda!? Viram!? Aguentei-me bem, não aguentei pessoal!? Que coisa louca, que cena maluca!» Parou, espantado, con-
nosco pasmados por termos acabado de o ouvir articular palavras com um tom tão cheio de vida. Ele próprio nunca se tinha ouvido nem sentido tão bem. De imediato, a equipa inteira ovacionou-o como se festeja um nascimento! O jacto de água foi um jacto de vida que atingiu Julien, ensinando-lhe a entrar no seu próprio corpo, a deixar para trás o Peter Pan triste, a dançar, a movimentar-se, a encarnar-se. Julien foi-se desfazendo do seu torpor e do seu mutismo. Dia após dia, víamo-lo juntar-se aos outros, ocupar o seu lugar no grupo e começar a rir. Oito anos mais tarde, voltei a estar com Julien, que actualmente tem um emprego e cuida do próprio filho. Eis um desafio que me agrada especialmente: reencontrar a presença, a alegria e o sabor da vida após ter vencido os mais terríveis obstáculos, sem os negar ou recalcar. Longe de angelismos ou diabolismos, a ideia é simplesmente vivermos a experiência da nossa encarnação tão conscientemente quanto possível tentando evitar as habituais armadilhas, que são a acomodação aos nossos hábitos de funcionamento, aos nossos princípios e às nossas velhas feridas mal saradas ou por sarar, e a fuga para a idealização ou espiritualidade desencarnada. Para finalizar este capítulo, quero celebrar a vida em todos os seus estados, todos os seus movimentos e todos os seus momentos, a vida que nos faz procurar o que realmente queremos para além dos constrangimentos que se nos impõem. A vida que nos leva a ousarmos confiar nos nossos filhos; a tomar um banho em vez de irmos cozinhar de má vontade; que nos faz ousar partir de roulotte, de armas e bagagem, em vez de aceitar o tédio e a morosidade do dia a dia; que faz com que a menina dos chinelos resista porque quer compreender o sentido do que lhe é pedido, e ver a sua liberdade respeitada; que incita os pais a redefinirem as suas prioridades e a porem de lado os problemas do jardim, da casa e do carro para poderem estar com os filhos; que nos faz mudar quando já não gostamos do que temos, e ter de gostar do que temos quando não mudamos; que nos torna tão conscientes e fiéis aos nossos valores como aquele agente da polícia na aldeia a vigiar a saída das aulas; que nos faz sentar vezes repetidas com os jovens para nos informarmos mutuamente sobre os nossos valores, verificar a sua pertinência e eficácia, e os partilhar; que nos ajuda a descobrir uma antiga revolta escondida debaixo de um fato elegante e a libertarmo-nos dela; que nos faz travar a correria do costume para nos escutarmos uns aos outros; que impele Tim
a recusar-se a sufocar numa tentativa, mesmo que incerta, de «re-suscitar» a vida; que esbofeteia alegremente Julien para extraí-lo do seu torpor e trazê-lo ao mundo; por fim, que nos fará certamente um dia congelar o orçamento da «renovação, aquisição de cadeiras e decoração» para nos sentarmos no chão se for preciso, por cima dos escombros, e colocarmo-nos à escuta do coração. Durante a Segunda Guerra Mundial, a minha avó, que era uma mulher maravilhosamente generosa e muito crente, escondeu judeus nas caves de sua casa. Para nós que, aos dez ou doze anos, costumávamos brincar pelos cantos dessas caves, parecia incrível que pessoas se tivessem ali escondido para proteger as suas vidas. A minha avó contava-nos essas histórias e nós vibrávamos sempre na parte em que os Alemães apareciam para revistar a casa. Sem vacilar, ela tinha ousado dizer ao chefe de patrulha que naquela casa só estavam os membros da família, e mais ninguém. Eu ficava cheio de admiração pela sua dignidade e coragem, mas mesmo assim tinha uma dúvida: «—Mas a Avó não contou a verdade aos Alemães, e costuma dizer que é preciso contar sempre a verdade! (Parando para pensar, de olhos fechados.) — Tens razão. Acho que é preciso tentar contar sempre a verdade. Mas nesse caso, sinceramente, havia uma coisa mais importante que a verdade: era a vida. Era preciso respeitar a vida.» Foi assim que a minha avó me ensinou o além, o além das palavras, dos princípios e dos hábitos. E o uso da força e do castigo? Se eu vir o meu filho correr em direcção à estrada cheia de trânsito, tento agarrá-lo rapidamente e trazê-lo de volta para o passeio sem me preocupar com a brutalidade do acto. Não é propriamente a melhor altura para lhe dizer como é que me sinto, nem quais são as minhas necessidades: é uma situação de urgência! Mas quando a criança se encontrar em segurança, em vez de ralhar com ela zangando-me, censurando-a ou, pior ainda, castigando-a, posso então explicar-lhe que apanhei um susto muito, muito grande (S), que não tinha a certeza de que ela estivesse consciente do perigo, e que foi só para protegê-la de um acidente (N) que a puxei, perguntando-lhe só então se concorda em ser mais atenta no futuro (P). Trata-se do uso protector da força! Se eu for atacado na rua e se a minha única hipótese de evitar um golpe for dar um golpe, assim farei. Não para atacar mas para proteger a minha vida. A vida, e só a vida, é a medida da legítima defesa
física. Qual é a nossa intenção: submeter, diminuir, suprimir a vida, ou proteger, permitir e encorajar a vida? No que respeita ao uso da força «para educar», seja através de bofetadas, açoites ou a reclusão no quarto - métodos ainda correntes hoje em dia - fico estupefacto quando ouço dizer que certos pais, que afirmam gostar dos filhos, são capazes de lhes levantar a mão quando não concordam com eles. Será que manifestam o seu desacordo da mesma maneira com os amigos e conhecidos? Naturalmente sou capaz de compreender, como pai, que nos possamos sentir extremamente irritados e possamos esgotar a paciência por causa do comportamento dos filhos, não sabendo que atitude adoptar. No entanto, estou convencido de que ao bater numa criança, mesmo que levemente, perpetua-se a velha convicção segundo a qual a violência é um meio legítimo para se resolver os conflitos e legitima-se, no coração dos jovens adultos de amanhã, o uso da força para conduzir o outro à submissão. E levar a criança a admitir que «se não nos conseguimos entender, então andamos à pancada«! E alimentar a velha ilusão de que se pode obter o bem fazendo o mal. Tal passagem aos actos é um reconhecimento de impotência, impotência em fazer-se entender, impotência em entender o outro. Como o leitor compreenderá, é urgente aprendermos uma nova linguagem para nos entendermos e nos fazermos entender. Não estou a dizer que não seja importante sancionar os actos, isto é, aprová-los ou desaprová-los se servirem bem ou mal um valor. Trata-se de um ponto de referência muito claro que me parece indispensável, não só à educação mas também ao bem-estar da vida em comunidade. Castigo ou sanção? Será então que é necessário castigar? Não haverá maneiras mais responsabilizadoras de sancionar um acto que tenha servido mal um valor? Julgo que o castigo revela muitas vezes falta de imaginação e de criatividade, e falta de confiança na eficácia do diálogo para se chegar a uma solução reparadora e que esteja ao serviço da vida. Os tribunais estão a começar a compreendê-lo, sancionando com trabalhos ditos de interesse público. Não digo que seja fácil, nem quero estar a julgar os pais exaustos que esgotaram todas as soluções. Simplesmente verifico que todos nós somos responsáveis pela perpetuação de um modelo educacional que promove a violência. Tenho verificado quase diariamente o quanto o medo do castigo
e a busca da recompensa, que não passam das duas faces do mesmo jogo trágico, mantêm inúmeras pessoas na dependência do outro num sentimento paralisante de culpabilidade e na desconfiança sistemática de qualquer iniciativa, da novidade, da diferença e da responsabilidade, com todas essas situações a reactivarem o medo de a pessoa «se enganar» e ser castigada, ou de não receber a recompensa que constitui a aprovação. O sistema do castigo / recompensa não cria segurança interior nem autoconfiança. Suscita, muitas vezes de modo inconsciente mas duradouro, a busca mais ou menos desesperada da «nota positiva» ou o receio angustiado da «nota negativa». Observei regularmente essa mecânica, nomeadamente no meio empresarial, e fiquei muitas vezes impressionado por assistir aos estragos de uma educação que, em último recurso, transmite os seus valores recorrendo ao medo e à culpabilidade, em vez de usar o entusiasmo e a adesão. Clarifiquemos a nossa intenção: que queremos nós dos outros? Uma obediência automática desprovida de consciência, enraizada no medo ou na vergonha, e uma obsessiva preocupação de «agradar para comprar a paz», ou uma adesão responsável a valores que para nós são essenciais, ao gosto de fazer as coisas com a consciência plena do interesse comum, ao envolvimento moral? Quando eu tinha vinte cinco anos, a tropa ainda era obrigatória na Bélgica. Nessa altura eu não imaginava que existiam alternativas e, sobretudo, ainda não tinha a mínima consciência da força e da eficácia da não violência. Após anos a fio mergulhado em livros de Direito, estava a precisar de viver ao ar livre e de experimentar uma realidade bem concreta e física. Entrei então como oficial para o regimento de comandos. Após seis meses de um treino extremamente exigente física e moralmente, dei comigo, jovem oficial, mancebo, em frente ao meu pelotão de vinte e sete soldados, todos eles mais robustos do que eu e na sua maioria com vários anos de carreira militar! Vi logo que não valia a pena impor-me a eles, apesar da minha autoridade hierárquica. Eu não queria que os homens agissem por dever ou submissão, mas sim por consciência e responsabilização. Percebi que eles precisavam que o sentido das actividades propostas lhes fosse claro, e que a sua motivação fosse verificada. Dar ordens sem explicar o seu sentido nem assegurar-me da motivação dos homens teria anestesiado as nossas relações. Eu queria um relacionamento personalizado e tão igualitário quanto possível, respeitando no entanto a funcionalidade dos papéis de cada um, tão importante
para eles como para mim. Não me lembro de ter sido necessário levantar a voz. A nossa equipa funcionava alegremente, num clima de confiança mútua. A experiência militar ensinou-me muito acerca de mim próprio e do funcionamento humano, mas não pretendo fazer nenhuma apologia da tropa. Muitas vezes sonho que são atribuídos dez por cento (o que já seria óptimo) de todos os orçamentos da defesa nacional à organização de grupos de diálogo e de intervisão em todos os meios que assim o desejem, à formação em comunicação não violenta e à meditação logo desde o ensino primário, à resolução não violenta dos conflitos, à aprendizagem do respeito das diferenças, ao estímulo da segurança interior individual e à autoconfiança... Imagine o leitor que só dez por cento do dinheiro mundial, actualmente dedicado às armas e à guerra, passe a ser atribuído às ferramentas da paz! Quando vejo os resultados espantosos que eu e os meus colegas de trabalho somos capazes de atingir com meios irrisórios, fico arrepiado só de pensar no poder detonador que todos possuímos para criar activamente a paz. Dessa experiência militar, conservo nomeadamente a consciência de que quando a vida nos leva a assumir um papel de autoridade, esta não passa de uma autoridade de serviço, uma função de inspirador do movimento e de facilitador da coesão, um pouco como um chefe de orquestra. O chefe de orquestra «castiga» um violino que derrape ou uma flauta que divague? Não! Recorda o sentido da música e o respeito pela pauta, e estimula o gosto de se tocar em conjunto, ou então tenta perceber se os músicos não sentirão vontade de se divertir um pouco com uma improvisação de jazz antes de regressarem à pauta! Conservo a consciência de que é possível vivermos relações estritamente hierarquizadas num clima de respeito e de estima mútuos, sem perdermos a nossa própria identidade nem a nossa dignidade. Mais uma vez, o importante não é tanto «o que se faz» mas sim o «como se faz». Por fim, também não pretendo afirmar que a firmeza não seja por vezes necessária. Mas será que não podemos aprender a ser firmes e fortes sem sermos agressivos, aprender a dizer, até mesmo a gritar «Não, agora chega!», sem julgar mas exprimindo firmemente o que queremos e reconhecendo ao outro o direito de não concordar? Quando estamos cansados, convencemo-nos rapidamente de que o outro é que é cansativo. Quando nasceu a nossa primeira filha, Camille, as nossas noites, minhas e da Valérie, eram obviamente curtas e interrompidas várias vezes. Certa noite, o choro de Camille, que
ainda não tinha encontrado o ritmo certo para a hora da mamada, estava realmente a tornar-se difícil de suportar. A minha mulher e eu levantámo-nos a refilar: «Que miúda tão cansativa, que coisa insuportável.» E logo a seguir corrigimos: «Não, nós é que estamos cansados e temos dificuldade em suportar o choro dela. Ela está bem viva e dá provas disso. Não podemos estar à espera que ela seja boa pessoa e nos deixe dormir... Nós é que temos de satisfazer de outra maneira a nossa necessidade de descanso.» Albert Jacquart evoca maravilhosamente esse convite à responsabilização no que respeita ao modo de sancionar: «A presença de uma prisão numa cidade é a prova de que algo não está bem na sociedade inteira.» Do mesmo modo, o recurso ao castigo - que não se deve confundir com a sanção anteriormente evocada - é sinal de que algo não está bem no nosso modo de educar, de trabalhar ou de vivermos juntos.
CAPITULO
VI
MÉTODO
Nos últimos anos, ficámos mais conscientes do que nunca das profundas semelhanças que existem entre todos os organismos vivos... Todas as formas de vida são semelhantes e somos muito mais parecidos uns com os outros do que anteriormente imaginávamos. GEORGE WALD
(biólogo, Prémio Nobel)
1. Três minutos, três vezes por dia Nietzsche dizia: «A potência é o método.» Aprender uma língua nova, um desporto novo ou qualquer tipo de técnica implica método, aplicação, rigor e disciplina. Pessoalmente, só comecei a sentir-me mais ou menos à vontade com o processo de comunicação não violenta após quinze dias de prática intensiva em workshop de formação, ou seja, o equivalente ao tempo que me seria necessário para começar a exprimir-me numa língua nova, Alemão ou Português por exemplo. Especifico isto não obviamente para desencorajar as pessoas, mas sim para encorajá-las a tomarem consciência de que, como referi no princípio deste livro, não me parece que uma simples leitura possa transformar uma pessoa de um modo profundo e duradouro. Só a prática e a experiência o permitem. Dito isto, nem toda a gente tem disponibilidade ou gosto para participar numa acção de formação. Independentemente de ser interessante tentarmos compreender em nome de que necessidades nao
temos essa disponibilidade ou esse gosto, os workshops não são o único modo de aprendizagem. Muitas vezes, quando os participantes numa formação insistem muito para serem aconselhados sobre um método de prática regular - eu nunca dou conselhos individuais, a não ser que a pessoa mo peça clara e persistentemente, confiando que cada um de nós dispõe interiormente da sua própria caixa de ferramentas se for capaz de se escutar no sítio certo, e ciente de que dar um conselho é muitas vezes tentar evitar a verdadeira escuta - costumo sugerir o seguinte método: «Três minutos, três vezes por dia! Três minutos à escuta de si próprio sem juízos, sem repreensões, sem conselhos, sem tentativas de encontrar uma solução. Três minutos cheios de presença a si próprio, e não aos projectos nem às preocupações que se possa ter. Três minutos para fazer o ponto da sua situação interior sem tentar mudar rigorosamente nada. Três minutos para se ligar a si próprio, verificar que continua a ser habitado por si próprio, que à pergunta «Está aí alguém?» poderá verdadeiramente responder com toda a força do seu ser: «Sim, estou aqui», e isso, três vezes por dia! É da qualidade da sua presença a si próprio que poderá nascer a qualidade da presença ao outro.» Esta formulação em jeito de receita homeopática não representa naturalmente nenhum abracadabra mágico de boa feiticeira. É antes um convite, em forma de máxima, à consciencialização de que não é útil impormos a nós próprios objectivos de mudança tão drásticos que acabarão por não se concretizar. Posso novamente testemunhar que essa jardinagem simples e regular da minha presença a mim próprio foi essencial para a mudança da minha vida profissional e da minha vida afectiva. Ao escutarmo-nos assim, ficaremos aos poucos mais aptos a sentir a direcção para a qual tendemos, a direcção para a qual nos inclinamos e, libertos da ideia de querer resolver um problema à pressa ou de querer obter rapidamente resultados, conseguiremos dirigir melhor a nossa atenção e a nossa consciência para a emergência da vida em nós: «Onde está a vida, que diz a vida em mim, que necessidades em mim estão satisfeitas, que necessidades em mim não estão satisfeitas?» É com o verdadeiro esclarecimento dessas necessidades e a emergência das suas respectivas prioridades, que poderemos começar a vislumbrar soluções. O exercício permite praticar umas escalas: quanto mais o leitor tiver consciência do que a sua ira indica, mais estará disponível para escutar a ira do outro, e quanto mais familiaridade sentir com a sua própria impotência ou a sua própria insegurança, mais benevolente e compreensivo será com
a impotência ou insegurança do outro. Não vejo hoje em dia outra solução para renunciarmos ao velho e trágico hábito de se viverem as relações interpessoais como relações de força. 2. Uma higiene da consciência Por fim, recomendo a gratidão: trazermos em nós e exprimirmos gratidão por todas as nossas necessidades preenchidas, nem que seja simplesmente - no caso de tudo se desmoronar - a necessidade de estarmos vivos, de podermos inspirar a próxima lufada de ar, de termos olhos para ver ou mãos para sentir. Tenho a noção do quão ingénua poderá parecer esta proposta. Assumo. Para mim, é fundamental. Quando nos alimentamos da energia sustentada por tudo o que está bem, encontramos a força para enfrentar tudo o que está mal. É um princípio de ecologia interior: se toda a nossa energia for «sugada» pela irritação que sentimos quando o comboio está atrasado, esquecendo-nos de todos os comboios que chegam a horas, entramos em perigo de reclusão na estreiteza da nossa perspectiva e, mais tarde ou mais cedo, em perigo de asfixia. Teremos então que trabalhar urgentemente a nossa visão global, a nossa respiração global. Na vida do dia a dia, na vida de casal, na vida familiar e, porque não, na escola ou no trabalho, a gratidão é a vitamina da relação. Cuidado, a ideia não é sermos boas pessoas, mas sim verdadeiros! Será preciso esperarmos pela perda dos nossos entes queridos para exprimirmos todo o nosso amor? Será preciso sermos hospitalizados para celebrarmos a alegria da saúde? Será preciso ficarmos sozinhos para começarmos a sentir o prazer da companhia? Será preciso que as coisas «corram mal» para tomarmos consciência de que estava tudo «a correr bem«? Se não formos vigilantes, a nossa consciência pode encher-se de tantas más notícias que deixa de haver lugar para acolher as boas. Seremos nós capazes de estar atentos a essa higiene da consciência, de cuidar da sujidade acumulada no nosso carburador interior, de limpar as nossas velas, de verificar a ignição e, sobretudo, de nos certificarmos sobre a qualidade do nosso carburante: o meu motor costuma funcionar com boas ou com más notícias? 3. A consciência de convívio Um guia beduíno disse-me um dia: «A tristeza é um vírus que aqui não sobrevive. Se uma pessoa estiver triste, é imediatamente es-
cutada e reconfortada, e reencontra o prazer de cuidar dos outros.» Fico sempre admirado, durante os workshops itinerantes que costumo moderar em regiões desérticas, com a qualidade do convívio dos homens do deserto. Existe uma coesão, uma integração no seio das equipas de cameleiros e almocreves que me deixa maravilhado. É como se cada um, respeitando-se a si próprio, tivesse um radar para captar as necessidades do outro. Parece-me que eles, de tanto viverem juntos em circunstâncias exigentes e despojadas de supérfluo, foram desenvolvendo uma acuidade de consciência e de coração, a que chamo consciência de convívio. Essa consciência de convívio inclui nomeadamente, como elementos complementares, a dignidade e a humildade, a autonomia e a pertença, a integridade e a integração, a liberdade e a responsabilidade, a presença a si próprio e a presença ao outro, a consciência do indivíduo e a consciência do universo. Nós somos capazes de desenvolver esse radar, essa acuidade da consciência e do coração. Trata-se de um dos benefícios dos grupos de diálogo ou de intervisão que acima referi: desenvolver uma consciência comum, a consciência de convívio. No nosso mundo em rápida mutação, este trabalho de coesão e de integração das nossas comunidades, a todos os níveis, parece-me ser a prioridade das prioridades no sentido de contermos a mecânica da exclusão, do isolamento e da violência expressa ou silenciada.
EPILOGO
JARDINAR A P A Z
Que é o Mal, a não ser o Bem torturado pela sua própria sede? KHALIL GIBRAN
A violência não está na nossa natureza Acredito cada vez mais que, contrariamente ao que sempre aprendi na escola, estudei nas minhas cadeiras de psicologia na universidade e ouvi pelo mundo fora, a violência não é a expressão da nossa natureza. É sim a expressão da frustração da nossa natureza. Esta é a minha hipótese de trabalho. A violência serve para exprimirmos as nossas necessidades quando elas não são reconhecidas ou não estão satisfeitas. De que nos serve a violência se as nossas necessidades forem reconhecidas, ou se ainda por cima estiverem preenchidas? Acredito cada vez menos na maldade das pessoas e cada vez mais no poder da amargura e do medo, assim como no poder que se alimenta de frustração. No fundo, a maldade é a expressão da amargura das pessoas que não cuidaram (ou não tiveram oportunidade de cuidar) do seu próprio sofrimento. Se pudéssemos exprimir as nossas amarguras ou os nossos medos, até mesmo os mais secretos, verdadeiros tabus, se pudéssemos partilhar ou enfrentar as nossas frustrações, até mesmo as mais inconfessáveis, não lhe parece que poderíamos coexistir com força e fantasia sem nos agredirmos mutuamente? Muitas passagens ao acto devem-se ao facto de as frustrações não serem conscientes, e muito menos formuladas ou partilhadas num clima de benevolência.
A violência, um velho hábito Adquirimos o velho e triste hábito de achar que o último recurso para se resolver um conflito é a violência, e deixámo-nos facilmente programar assim. Sabemos agora que existem outros modos de resolução dos conflitos e que podemos portanto começar a «desprogramar-nos» da violência, a descodificar-nos desse velho sistema e a sonhar que um dia virá a existir, junto do Museu da guerra, um Museu da violência familiar, conjugal, tribal, política, étnica, religiosa, onde os nossos trisnetos aprenderão que na idade do e-mail e da internet, a maioria dos seres humanos ainda não sabia exprimir-se nem escutar-se, e muito menos compreender-se verdadeiramente. Nada me irrita mais do que as velhas crenças como «O homem é um lobo para o homem», «Sempre andámos à pancada uns com os outros» ou «O homem não muda». Essa resignação, esse cinismo até, abre o caminho à violência futura, prepara o próximo pedófilo, arma o próximo combate. E preciso que todos nós tomemos consciência do nosso poder individual de contribuir para a mudança, de nos «desprogramarmos» da violência e de trabalharmos no sentido de criar uma nova consciência comum. Não há dia em que eu não sonhe, estando convicto de que é o sonho que nos faz atravessar mares e desertos à descoberta de novos continentes. Se as calças de ganga e as T-shirts, a Coca-Cola e a dupla lâmina de barbear ficaram em poucos anos conhecidas e passaram a ser usadas por todo o lado, ao ponto de constituírem uma espécie de cultura comum mundial, é porque correspondiam a uma necessidade: conforto, bem-estar, simplicidade, identidade e pertença à comunidade mundial no que diz respeito às roupas e à Coca-Cola, higiene, comodidade e eficácia no que concerne às lâminas de barbear. Conheci muita gente, nos vários continentes do mundo, que adoptou elementos dessa cultura comum, mas também vi essas mesmas pessoas agarrarem-se com todo o vigor às suas tradições locais ou familiares. Por que não contribuir para um modo de comunicação capaz de abranger a mesma globalidade sem comprometer as várias identidades? Pela sua característica «todo-o-terreno» que evoquei na introdução, por se adaptar à relação interior consigo próprio, às relações interpessoais do casal e da família, às relações profissionais e sociais, e por respeitar todas as sensibilidades religiosas, espirituais, filosóficas, políticas, por fim por enaltecer valores que me parecem constituir o património comum da humanidade, a Comunicação conscien216
te e não violenta inscreve-se, ao lado de muitas outras abordagens similares, na busca de um modo de relacionamento no contexto da aldeia global. Desejo, como Jacques Salomé, que a comunicação seja introduzida nos programas de ensino do mundo inteiro, e que seja considerada uma disciplina tão fundamental como as línguas estrangeiras ou a informática. Consegue imaginar como seria o mundo se todos aqueles que estudam actualmente uma língua estrangeira ou informática aprendessem também a linguagem do coração? Espero deste modo poder um dia encontrar ministros visionários, ministros da Educação, ministros da Saúde, ministros da Administração Interna, ministros da Justiça e, porque não, ministros da Defesa, que estejam finalmente dispostos a investir na mudança duradoura dos nossos modos de relacionamento, por terem tomado consciência de que não se muda nada a longo prazo no mundo se o movimento não partir do interior do ser, e que aceitem empenhar-se pessoalmente trabalhando eles também no desenvolvimento da sua consciência de si próprios. Imagine que cada vez mais seres humanos começam a tomar consciência de que, parafraseando novamente Hubert Reeves, a violência e a falta de comunicação não são um grande problema mas sete mil milhões de pequenos problemas... Seríamos cada vez mais a sentir-nos convidados a responsabilizarmo-nos pelas nossas atitudes do dia a dia, e a cuidar da higiene da nossa consciência: «O que eu digo, o que eu faço, os pensamentos que me ocorrem, as minhas intenções, os projectos que concebo, estarão a contribuir para a unidade ou para a divisão, para a conciliação das diferenças ou para a oposição dos contrários, para a paz ou para a guerra?» E essa mesma consciência que nos autoriza a esperar habitar com à-vontade, segurança e alegria esse novo continente ainda tão pouco conhecido: o continente da relação. Haverá mais belo desafio para este terceiro milénio? Jardinar a paz Julgo que cada um de nós recebe, com a sua dignidade de homem, a sua quota-parte nessa responsabilidade. Desejo - é esse o sonho que acalento - que cada vez mais homens e mulheres fiquem cientes disso, que reconheçam alegremente essa responsabilidade e que a assumam nas suas vidas quotidianas, felizes por poderem contribuir deste modo, onde quer que estejam, com os meios que estiverem à sua disposição, para o bem-estar da humanidade. Creio que não haverá de facto
paz no mundo enquanto cada um de nós não cuidar da sua paz interior, como um jardineiro cuida das suas flores, todos os dias. Comecemos por cultivar a paz no interior de nós próprios. Ela difundir-se-á por irradiação, pois a paz é contagiosa!
LISTA DE NECESSIDADES
Sobrevivência
Autonomia
Abrigo Ar Água Movimentos, exercício Alimentação Descanso, permanência Segurança, protecção
Auto-afirmação Apropriação do seu próprio poder Escolha, decidir por si Independência Liberdade Solidão, calma, tranquilidade, tempo/espaço para si
Alimentação
Integridade
(Em sentido abrangente)
Afecto Calor Conforto Doçura Repouso, distensão, prazer, lazer Sensibilidade Cuidados, atenções, presença Ternura Tocar
Autenticidade, honestidade Objectivo, direcção, saber para onde ir Conhecimento de si Determinar os seus próprios valores, sonhos, visões Equilíbrio Auto-estima Respeito por si próprio Ritmo, tempo de integração Sentido do seu próprio valor, do seu lugar
Expressão de si
De ordem mental
Cumprimento, realização Acção Aprender Criatividade Crescimento, evolução, actualização, desenvolvimento, cura Gerar, ser causa de, participar Domínio
Clareza, compreensão (pela reflexão, a análise, o discernimento, a experiência) Coerência, adequação Concisão Consciência Exploração, descoberta Informações, conhecimentos Precisão Simplicidade Estímulo
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LISTA DE N E C E S S I D A D E S
De ordem social Aceitação Amizade Amor, afecto Pertença Apreciação Comunicação Companhia Troca de opiniões Confiança Ligação Contacto Dar, servir, contribuir Escuta, compreensão, empatia Equidade, justiça Expressão Honestidade, transparência Interdependência Intimidade Partilha, troca, cooperação Presença Proximidade Receber Reconhecimento (ressonância, eco, feed-back) Respeito, consideração Segurança (fiabilidade, contar com, confidencialidade, discrição, estabilidade, fidelidade, permanência, continuidade, estruturas, pontos de referência, etc.) Apoio, assistência, ajuda, reconforto Tolerância, acolhimento da diferença, abertura
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LISTA DE N E C E S S I D A D E S
De ordem espiritual
Celebração da vida (acolhimento das várias etapas da vida e dos seus diversos aspectos)
Amor Beleza, sentido estético Confiança, soltar rédeas Esperança Estar Finalidade Harmonia Inspiração Alegria Ordem Paz Sagrado Serenidade Silêncio Transcendência
Comunhão Luto, perda Festa Prazer de experimentar a intensidade da vida em si Humor Jogo Nascimento Dar graças Ritualização
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LISTA DE SENTIMENTOS
Sentimentos que nos habitam quando as nossas necessidades estão satisfeitas
À-vontade Absorvido Carinho (cheio de) Admirado Alerta Aliviado Bem disposto Amigável Amores (cheio de) Amor (cheio de) Enamorado Divertido Agitação (com) Consideração (cheio de) Ardor (cheio de) Saciado Atento No sétimo céu Nas nuvens Aventuroso Beatitude (em) Bom humor (de) Atordoado Calmo Cativado Focalizado Encantado Desejoso Preenchido Compadecido Concentrado Tocado Confiante Confortável Satisfeito consigo próprio
Coragem (cheio de) Curioso Descansado Destacado Relaxado Pasmado Deslumbrado Efervescência (em) Alegrado Electrizado Enlevado Comovido Encantado Encorajado Energia (cheio de) Inflamado Arrebatado Jocoso Entusiasmado Viveza (cheio de) Solto Espantado Atordoado Desperto Exaltado Excitado Expansivo Expansão (em) Expectativa (na) Êxtase (em) Exuberante Fascinado Orgulhoso Louco de alegria Animado
Galvanizado Confiança (cheio de) Gratidão (cheio de) Inebriado Ofegante Harmonia (em) Feliz Hílare Humor jocoso (de) Humor malicioso (de) Impaciente Implicado Despreocupado Inspirado Interessado Intrigado Felicidade (a transbordar de) Alegre Jubilar (a) Livre Boa disposição (viver na) Preenchido Optimista Plácido Paz (em) Vivacidade (cheio de) Prazer (que sente) Altruísta Próximo Radioso Suavizado Refrescado Alento (com mais) Serenado Mais sossegado © Centro para a Comunicação não violenta
Radiante Mais animado Luminoso Reconfortado Grato Alegrado Cheio de esperança Revigorado Satisfeito Seguro Sensibilizado Sensível Sereno Siderado Aliviado Estimulado De sobreaviso Excitadíssimo Ternura (cheio de) Tocado Tranquilo Transbordar de alegria (a) Vida (cheio de) Vivo Avivado
LISTA DE S E N T I M E N T O S
Sentimentos que nos habitam quando as nossas necessidades não estão satisfeitas
Abatido Oprimido Esfomeado Afligido Desvairado Exasperado Agitado Azedo Alarmado Anuviado Amargo Angustiado Animosidade (cheio de) Ansioso Apático Amedrontado Apreensivo Sedento Aversão (sentir) Ferido Bloqueado Em baixo (estar) Entristecido Chocado Coração despedaçado (ter o) Preocupado Confuso Consternado Contrariado Irado Medroso Crispado Curioso Dilacerado Desconcertado
Transtornado Desanimado Decepcionado Enojado Perturbado Desmoralizado Recursos (sem) Ultrapassado Ressentido Deprimido Incomodado Desapontado Sem argumentos Desarmado Desesperado Desolado Destacado Dorido Pasmado Abalado Enjoado Assustado Desalentado Embaraçado Aborrecido Baralhado Adormecido Enervado Entediado Enraivecido Invejoso Apavorado Sofrido Estafado Estoirado
Espantado Exasperado Agastado Excitado Zangado Cansado Furioso (louco) Esgotado Frágil Acagaçado (estar) Frustrado Sobreaviso (estar de) Rabugento Ódio (cheio de) Ofegante Hesitante Envergonhado Horrorizado Horripilado Fora de si Péssimo humor (de) Impaciente Impotente Desconfortável Incrédulo Indeciso Indiferente Indolente Inerte Inquieto Insatisfeito Inseguro Insensível Instável Interesseiro
Intrigado Irritado Ciumento Lasso Letárgico Pesado Mal Pouco à-vontade Infeliz Farto Mau humor (de) Descontente Desconfiado Melancólico Abatido (andar) Carrancudo Mortificado Moído Aflito Nervos em franja (com os) Nervoso Em pânico Preguiçoso Apaixonado Perplexo Pessimista Medo (estar com) Sem reacção Rancor (cheio de) Ensimesmado Reservada (ter uma atitude) Ressentido Reticente Roto Saturado
LISTA DOS SENTIMENTOS QUE INCLUEM INTERPRETAÇÕES E JUÍZOS
As seguintes palavras são muitas vezes utilizadas como sentimentos, quando na realidade são juízos ou interpretações do que o outro nos faz Céptico Impressionado Só Siderado Sombrio Preocupado Sofrimento (em) Duvidoso Ultrapassado (pelos acontecimentos) Surpreendido
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Taciturno Tenso Aterrorizado Desapaixonado Dividido Atormentado Poltrão Triste Perturbado Receoso (estar) Ofendido Vulnerável
Abandonado Logrado Espada e a parede (entre a) Acusado Banido Atacado Parvo Censurado Embaçado Culpado Desconsiderado Desamparado Detestado Desvalorizado Diminuído Dominado Trapaceado Afastado Esmagado Burlado Sufocado Embaído Pisado Assediado Humilhado Ignorado Inadequado Incompetente Incompreendido Indigno Insultado Intimidado Invisível Isolado Tampa (levar uma) Julgado
Desprotegido Par de patins (levar um) Manipulado Mimado Zero à esquerda (ser um) Ameaçado Desprezado Minimizado Preso Pressionado Negligenciado Negado Nulo Não aceite Não amado Não acreditado Não ouvido Não importante Não desejado Armadilha (numa) Espezinhado Protegido Rebaixado «Apanhado« Rejeitado Ridiculizado Manchado Sem valor Estúpido Sobrecarregado Traído Enganado Usado Vencido Violado Roubado
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