Caderno de Textos

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Dezembro 2014


1. ATUALIZAR O PROGRAMA PRAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS ....................... 4 Texto 1: A CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA DE LULA DA SILVA ................................................................ 4 Texto 2: EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE ............................................................................................................................................. 14 Texto 3: Universidades Pagas – Democratizando a Universidade: PROUNI E FIES? .................................... 37 Texto 4: Universidades Privadas – Regulamentação já! ............................................................................. 41 Texto 5: Tese do Movimento Honestinas – Universidade pra quê? ............................................................ 44 Texto 6: A PRÁTICA DA EXTENSÃO COMO RESISTÊNCIA AO EUROCENTRISMO, AO RACISMO E À MERCANTILIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE ..................................................................................................... 55

2. CONCEPÇÃO DE MOVIMENTO ESTUDANTIL E TRABALHO DE BASE ................. 90 Texto 1: Nós não vamos pagar nada - Unificando diferentes pra fazer a diferença! ................................... 90 Texto 2: Os valores e os desvios na militância .......................................................................................... 100 Texto 3: Princípios e elementos organizativos para iniciar um debate ..................................................... 108 Texto 4: MOVIMENTO ESTUDANTIL: PROCESSO DE CONSCIÊNCIA & TRABALHO DE BASE- “ABRINDO CAMINHOS DE LUTA” ............................................................................................................................... 112

3. REORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL – OPOSIÇÃO DE ESQUERDA DA UNE E FEDERAÇÕES/EXECUTIVAS DE CURSO ................................................. 122 Texto 1: Lutar quando é fácil Ceder! – A reorganização do ME ................................................................ 122 Texto 2: POR QUE SER OPOSIÇÃO DE ESQUERDA À MAJORITÁRIA DA UNE?............................................ 137 Texto 3: Movimento de área .................................................................................................................... 139

4. EDUCAÇÃO LIBERTADORA E COMBATE ÀS OPRESSÕES ................................ 148 Texto 1: Vermelha flor, vermelha bandeira. ............................................................................................ 148 Texto 2: Hoje você é quem manda, falou tá falado... ............................................................................... 149 Texto 3: Aqui eu poderia cantar uma canção veemente .......................................................................... 151 Texto 4: Por um movimento estudantil feminista .................................................................................... 152 Texto 5: Mudar a sociedade, não a nossa cor ........................................................................................... 154 Texto 6: Por que nos auto-organizamos? ................................................................................................. 155


Texto 7: Pelo direito de decidir ................................................................................................................ 156


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1. Atualizar o Programa pras Universidades Brasileiras Recomendamos, também, o Caderno 2 do Andes SN, disponível em Andes.org.br e na lista de e-mails do RUA.

Texto 1: A CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA DE LULA DA SILVA Roberto Leher

O governo Lula da Silva recolocou em movimento a engrenagem de uma reforma universitária que, se exitosa, estraçalhará a concepção de universidade da Constituição Federal de 1988 e o futuro dessas instituições. A partir de um tripé constituído pelo Banco Mundial, pelo próprio governo Lula da Silva e por uma ONG francesa, ORUS, dirigida por Edgar Morin, está sendo erigido um falso consenso que poderá redefinir profundamente a universidade brasileira e quiçá de diversos países latino-americanos, representando a vitória de um projeto asperamente combatido por sindicatos, estudantes, reitores, entidades científicas, fóruns de educadores e partidos, no curso da última década: a conexão com o mercado e, mais amplamente, a conversão da educação em um mercado. E, não menos relevante, será mais uma oportunidade perdida de reforma verdadeira dessas instituições que, ao longo de sua breve, mas intensa história, ainda não viveram um processo democrático de reforma, a partir de seus protagonistas, para afirmá-la como instituição pública, gratuita, autônoma, universal, locus de socialização e de produção de conhecimento novo. Com efeito, após duas décadas de resistências às reformas do Banco Mundial, a realização de seu programa educacional seria uma amarga e profunda derrota para a universidade pública. Os (neo) crédulos poderiam objetar que o Banco aceitaria uma nova agenda menos deletéria para a universidade, pois a organização criada em Bretton Woods, conforme certa leitura sui generis de sua história recente, tem demonstrado maior preocupação social. Ademais, a assessoria do ORUS, entidade dirigida inclusive pelo ministro da educação


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brasileiro, e a própria natureza do governo Lula, cujo partido tem estreita ligação com as lutas educacionais, poderiam criar um novo marco, superando, assim, os históricos propósitos neocoloniais do Banco.

Os objetivos do Banco Mundial e suas consequências nas nações periféricas Somente renunciando ao pensamento crítico, é possível edulcorar a ação dos organismos internacionais na América Latina, uma região compungida a exportar capitais para o circuito comandado por Wall Street e Washington, em troca de estagnação, miséria e sofrimento de milhões de pessoas [1]. O objetivo supremo das políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI segue sendo viabilizar o pagamento dos ignominiosos juros e serviços da dívida, em favor do capital rentista. Ao assinar um acordo com o FMI, o país "flexibiliza" a sua soberania, chegando, até mesmo, a mudar os seus textos constitucionais para atender "as condicionalidades inscritas nesses acordos, como fizeram a Argentina, o Brasil e o México, tristes exemplos dessa situação. Em continuidade, os acordos reduzem as políticas sociais a ponto de, no limite, restringir os direitos sociais à manutenção vegetativa da vida dos miseráveis (campanhas contra a fome) e, para assegurar a governabilidade, sustentam medidas focalizadas capazes de aliviar a pobreza para assegurar o controle social, atualmente uma das maiores preocupações do Banco Mundial, em virtude da devastação social, e do conseqüente aumento na tensão social, provocado pelas políticas neoliberais. No plano educacional, é sobejamente conhecido que as políticas de ajuste estrutural do Banco Mundial contribuíram decisivamente para inviabilizar a educação e em particular as universidades da África subsaariana [2] e, no caso da América Latina, impediram que os governos mantivessem as universidades entre as prioridades das políticas públicas, contrapondo o direito aos conhecimentos científico, tecnológico e artístico à alfabetização e às primeiras letras, estas últimas tidas apenas como ações focalizadas para os que foram eleitos como os mais pobres. Como desdobramento, o fornecimento privado conheceu um


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crescimento colossal no Brasil [3] e em toda a região, aprofundando o neocolonialismo. De fato, o abandono da responsabilidade do Estado no fomento a produção de conhecimento estratégico agrava a condição capitalista dependente dos países periféricos. Conforme o relatório anual da UNCTAD (2003), países como Argentina e Brasil passaram a conhecer um processo de desindustrialização, enquanto outros, como o México, vivem uma industrialização de enclave (maquilas). É muito importante observar que essa política subalterna é praticada pela coalizão de classes

dominantes locais,

dirigidas

em

conformidade

com

os

centros

hegemônicos do capital. No Brasil, o exemplo mais ilustrativo dessa situação pode ser simbolizado pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles[4] que, junto com os ministros da agricultura e do desenvolvimento, representa os setores que hoje têm a supremacia na coalizão de governo: financeiro, agrobusiness e commodities. Coerentemente, recente "pacote" que vem sendo operacionalizado entre o Banco e o governo brasileiro tem como condicionalidade o fim da gratuidade do ensino superior [5], posição que, como ficou exposta no discurso do ministro da educação na UNESCO, conta com sua plena simpatia [6]. Maior entusiasmo pelo fim da gratuidade pode ser encontrado na área econômica, visto a sua ortodoxia neoliberal, como fica evidente nos documentos do Ministério da Fazenda e, em particular, no documento "Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002" que, em conformidade com o teórico da direita da Escola de Chicago, Gary Becker, postula que o ensino superior gratuito é o principal obstáculo à concretização da justiça social no país, recomendando empréstimos aos estudantes para que estudem nas escolas privadas, uma opção mais econômica segundo o documento.

Os objetivos dos lacaios do Banco Mundial e as consequências no Brasil No que ainda restar como setor público, o Chefe da Casa Civil, José Dirceu, sugere que as instituições terão de se ajustar ao mercado, como previsto na Lei de Inovação Tecnológica, originalmente proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PL 7282/2002) e vigorosamente criticada na academia, notadamente por


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significativos setores da SBPC, colegiados superiores e sindicatos: "Vamos mudar toda a relação da universidade com o empresariado, empresas, fundos de investimento. Citou, como bons exemplos, o ensino superior da China e da Coréia do Sul" (FSP, 5/12/03), casos que não poderiam ser mais desastrosos para a universidade brasileira: ambos países flexibilizaram a gratuidade e não asseguram liberdade de cátedra, sendo que, no que refere-se a relação entre a oferta pública e privada, o modelo coreano é muito semelhante ao existente no Brasil, ademais, na Coréia grande parte da pesquisa é direcionada para três grandes conglomerados: Daewoo, Hyundai e Lucky-Gold Star [7]. Com efeito, a manutenção do superávit primário de 4,25% do PIB até o final do mandato impossibilita a expansão do fornecimento público e, pior, até mesmo a manutenção das instituições existentes. Por isso, o mercado é tido como a tábua de salvação das promessas de campanha, concorrendo, para a perseguida governabilidade da ordem existente. Com a reforma, dois problemas que afetam a governabilidade poderiam ser operados: a despolitização do desemprego (reconfigurado como um problema de qualificação), ocultando o debate sobre o modelo econômico adotado por Lula da Silva, e a desestruturação dos principais loci em que o pensamento crítico sistemático vem sendo produzido. Por isso, são compreensíveis as ameaças do Chefe da Casa Civil: como a reforma não objetiva o fortalecimento da universidade pública, gratuita, autônoma e capaz de produzir livremente conhecimento, José Dirceu adiantou, antes mesmo de submeter suas propostas ao debate, o método obscurantista para a sua aprovação: "o pau vai comer", disse o Ministro [8]. A admissão do uso de coerção contra os que se opuserem à reforma, encaminhada pela tríade mencionada, indica que a coalizão governamental pretende, de fato, redefinir as universidades em organizações sociais competitivas e inseridas no mercado, concluindo o Plano Diretor da Reforma do Estado, encaminhado por Cardoso. Mais do que por uma razão econômica concreta, visto que o mercado capitalista dependente não requer a produção de conhecimento novo, a expansão virtual [9] e a vinculação estreita universidade-empresa atendem a imperativos políticos no complexo terreno das ideologias. Em um contexto de


8 terrível desemprego, notadamente entre jovens, e de impossibilidade – nos marcos da política macroeconômica com foco na inflação [10] - de políticas que permitam a reversão desse quadro [11], a transformação das instituições de ensino em depositárias das esperanças de inserção social de vastos setores da juventude é – e tem sido – largamente utilizada pelos governos neoliberais como um importante instrumento de governabilidade.

Os métodos "pós modernos" da ORUS - ONG à serviço do Banco Mundial e seus lacaios Quanto ao ORUS, os seus antecedentes também não são alentadores. Edgar Morin, a despeito de suas reflexões epistemológicas, que mereceriam um estudo a parte, foi um dos mentores da contestada reforma de Claude Allègre, no período de conversão neoliberal de Mitterrand, que pretendia adequar os liceus e universidades às necessidades empresariais [12], projeto que, em virtude da intensa oposição dos sindicatos, por meio de expandidas greves e manifestações, e de intelectuais, como Pierre Bourdieu e outros [13] que não colocaram os seus talentos a serviço dos governos neoliberais, acabou não se viabilizando, ao menos não nos termos das pretensões primeiras. Fracassado no centro do capitalismo, o "modelo da complexidade" está sendo vendido como uma nova referência a ser seguida na periferia, em especial no Brasil e na Venezuela, coincidentemente países com grandes mercados educacionais. Os operadores do ORUS pensam que, com o seu projeto, os atrasados latinoamericanos poderão ser finalmente "civilizados" pelo que Morin denomina pensamento "complexo". Como bons conhecedores dos métodos de ajuda aos povos primitivos, sabem que não é possível aplicar um pacote sem que o mesmo tenha um verniz de participação social autóctone. Na reforma Allègre, Morin liderou uma consulta por meio de formulários padronizados distribuídos aos estudantes e aos professores dos liceus (cujos questionários são um esplêndido contra-exemplo de cientificidade, tanto ao nível da coleta de informação, como de seu impossível tratamento estatístico)[14].


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No Brasil, um território tido como menos exigente no trato democrático dos assuntos públicos, optou-se por uma cyber participação através de uma lista de discussão não publicizada. Este simulacro de participação seria apenas mais uma mera formalidade burocrática, não fosse o seu conteúdo pleno de colonialidade: em apenas duas páginas [15], os operadores do ORUS ensinam o que é uma lista de discussão, como os brasileiros devem se portar para poder utilizá-la e o que pode ser sugerido ou proposto como temas para "adequar as nossas universidades às novas tecnologias e ao mercado". Após ORUS nos explicar que um fórum de debates é um lugar de discussão e que, por conseguinte, devemos estar atentos ao que dizem os demais participantes, e, ainda, após oferecer instigantes "conselhos" sobre como redigir uma mensagem (objetivo, espaços entre os parágrafos, resumo das idéias principais, etc), faz uma advertência: o moderador do ORUS se reserva ao direito de "selecionar" as mensagens "pertinentes" (SIC!). Para facilitar a comunicação da atrasada comunidade acadêmica autóctone com o pensamento complexo, numerosos exemplos são oferecidos aos participantes: "Nesta sala de debates, os participantes deverão desenvolver mensagens que exprimam o que significa para o Brasil a reforma do pensamento universitário e como fazê-la. Deverão sugerir como mudar o pensamento sobre o ensino dado hoje pelas universidades brasileiras, o que deve ser conservado e o que pode ser aprimorado. Eles poderão dar exemplos específicos de algum curso em particular ou falar de um modo geral. Também poderá incluir fatores externos que influencia diretamente no pensamento da reforma." A seguir, o ORUS informa aos internautas o que o MEC ainda não havia comunicado aos cidadãos brasileiros ou, melhor, aos sujeitos caracterizados como os interlocutores potenciais do MEC-ORUS: "O MEC quer saber o que pensa e o que espera a sociedade brasileira do ensino universitário, para poder prosseguir a reforma e, com isso, adequar a educação brasileira às novas tecnologias e demandas do mercado. Não é de hoje que

ouvimos

dizer

que

os

recém-formados

saem

das

universidades

despreparados para o trabalho. Por isso, esse fórum é destinado a todos os


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setores da sociedade como: professores, alunos, pais, empresários, que terão a oportunidade de contribuir para melhorar a formação dos futuros profissionais (destaques, RL)."

Um Seminário internacional onde a participação do movimento foi vetada de antemão Cabe observar que, conforme a ORUS, o MEC já encaminha uma reforma e que a mesma terá continuidade. Embora registre que o MEC quer saber o que espera a sociedade brasileira, ORUS, a priori já tem uma resposta: "adequar a educação brasileira às novas tecnologias e demandas do mercado". ORUS comunica também que o trabalho acadêmico desenvolvido nas universidades públicas brasileiras é incapaz de preparar para o trabalho. Curiosamente, ORUS não menciona as urgentes providências para minorar a catástrofe que o país deveria estar enfrentando em virtude do despreparo de seus engenheiros, enfermeiros, médicos, etc, considerando que, até para que o ORUS (e o sujeito oculto, o Banco Mundial) possa ensinar às universidades como formar profissionais "aptos ao trabalho", ao menos cinco ou seis anos serão necessários para atingir "profissionais -ORUS". Após três meses de fórum ORUS, realizado, em tese, sob a égide do paradigma da complexidade (que, nos trópicos, deve ter uma única idéia por mensagem conforme nos ensina a referida instrução), foi realizado um seminário internacional [16] co-patrocinado pelo Banco Mundial, em que os conferencistas teriam acesso aos debates realizados e um documento consensual seria aprovado. Nem mesmo Fernando Henrique Cardoso convocou o Banco Mundial para ministrar as suas lições derivadas da experiência mas, com Lula da Silva, o Banco assume lugar de destaque: apresenta e financia a sua proposta ou, antes, o consenso em torno de sua proposta (sabemos que se não houver consenso, as condicionalidades do Banco podem ser impostas!). É certo que, entre os convidados ao referido Seminário, existem alguns poucos intelectuais comprometidos com a universidade pública, mas este fato em nada modifica o seu arcabouço geral. Considerando que os educadores estiveram


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entre os principais protagonistas dessas lutas, a omissão de todos aqueles que resistiram e defenderam o ensino público é ainda mais significativa. De outra parte, a inclusão de intelectuais que formularam o projeto neoliberal de Ferrnando Henrique Cardoso entre os conferencistas, sem a possibilidade de apresentação de argumentos que critiquem esse projeto de universidade, assume ainda maior dimensão: ratifica e busca legitimar uma opção política! Não é casual, portanto, que, no referido seminário, não tenham sido convidados como conferencistas os representantes dos sindicatos, das entidades científicas e dos dirigentes.

Educação: de direito à lucrativa mercadoria. Tudo em nome da "justiça social"! A conclusão de que os países periféricos devem importar os modelos dos países do Norte é crucial para o futuro do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços da OMC. Os países do Norte exportarão conhecimento escolar, como ocorre hoje com as patentes! Essa ofensiva, presente também na agenda do ALCA, tem como meta edificar um mercado educacional ultramar, sacramentando a heteronomia cultural. Mas o pré-requisito é converter, no plano do imaginário social, a educação da esfera do direito para a esfera do mercado, por isso o uso de um léxico empresarial: excelência, eficiência, gestão por objetivos, clientes e usuários, empreendedorismo, produtividade, profissionalização por competências, etc. Esse léxico é contraposto às políticas públicas universais e ao modelo universitário consagrado na Carta de 1988, cujos defensores são desqualificados como corporativistas, elitistas, privilegiados, insensíveis ao drama social. Nesse jogo de significações aparentemente difusas, o governo joga o povo pobre (os camponeses, citados por Lula da Silva) contra os privilegiados servidores da universidade (os professores, conforme o mesmo Lula da Silva) (mensagem: o camponês é pobre porque os professores têm muitos privilégios, nada tendo a ver com a estrutura fundiária!), a exemplo do que fizera na reforma da previdência. Assim, reformas regressivas, privatistas, anti-republicanas e que beneficiam os


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ricos, são apresentadas aos de baixo como uma vitória da justiça frente aos privilégios.

Que fazer? Diante dessa ofensiva sem precedentes contra o ensino público, reitores, colegiados acadêmicos, sindicatos, professores, pesquisadores, técnicos e administrativos e, sem dúvida, os estudantes, terão de criar espaços democráticos de discussão para construir e difundir na sociedade uma agenda de reforma verdadeira das universidades brasileiras. Questões como: estratégias de universalização, autonomia, democracia, controle social das instituições privadas, articulação ensino-pesquisa, financiamento público das instituições estatais, condições de trabalho dos trabalhadores da educação, assistência estudantil, democratização efetiva dos órgãos de fomento a C&T, colonialidade do saber, integração com os países periféricos e centrais, criação de um espaço universitário latino-americano, patentes e propriedade intelectual, entre tantos outros que vêm sendo demandados pela maioria da sociedade brasileira. Toda a experiência de coalizão dos setores devotados a causa do ensino público, notadamente do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, terá de ousar novos patamares organizativos para que a educação possa se fazer presente, de forma massiva, no espaço público – nas praças, nas ruas, nas escolas e universidades. A privatização não passará, apesar do Banco Mundial e de seus velhos e novos aliados! Roberto Leher foi presidente do ANDES-SN e é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - e do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ [1] Estudo de Saxe-Fernández a partir dos Informes do FMI e do BM, apresentado no Seminário Internacional sobre Imperialismo, Mundialização e Desenvolvimento, organizado pelo Centro de Investigações Interdisciplinárias e pelo Instituto de Investigações Econômicas da UNAM (23 a 28 de novembro de 03), registra que, em duas décadas, a AL transferiu aos centros de poder econômico das nações desenvolvidas 2,5 trilhões de dólares na forma de pagamentos da dívida externa, por fugas de capital e pelo diferencial de preço a que são vendidas as matérias primas. No mesmo Seminário, Eric Toussaint, declarou que, entre 1996-2002, as transferências de capital da região alcançaram 310 bilhões de dólares somente pelos depósitos líquidos realizados pelos grupos de poder locais nos sistemas financeiros dos países centrais; no mesmo período, os empréstimos foram de 267 bilhões de dólares.


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[2] Para uma apreciação geral das conseqüências das políticas de ajuste estrutural da África, ver: Arrigui, G. The African crisis In: New Left Review, 15, may/june 2002; para um exame particularizado dos casos da Somália, Ruanda e Etiópia, ver: Chossudovsky, M. Globalización de la pobreza. México, Siglo XXI Ed., 2002.; a redefinição das políticas educacionais da região pode ser vista em: Laïdi, Z. Enquête sur la Banque Mondiale, Paris, Fayard, 1989. [3] Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais/ INEP, Censo de 2003: Menos de 20% das vagas de graduação do país são de universidades públicas. De acordo com relatório do órgão, a quantidade de vagas oferecidas em todo o país já corresponde a 86% do número de concluintes de ensino médio (1,8 milhão em 2001), mas somente 17% são gratuitas. O número de vagas oferecidas nos vestibulares no Brasil cresceu mais de 200% nos últimos anos, passando de 517 mil, em 1991, para 1,6 milhão, em 2002. Mais de 72% delas concentram-se em duas regiões do país: Sul e Sudeste. [4] Henrique Meirelles, deputado eleito pelo PSDB, é ex-presidente mundial do Bank of Boston, o segundo maior credor do país. [5] Marta Solomon, Gratuidade nas federais ainda provoca debate. FSP, C 4, 3/08/03. Em contrapartida a possível empréstimo de US$ 8 bilhões (a serem distribuídos nos próximos 4 anos), o Banco espera revisão do princípio da gratuidade. [6] Em conferência na UNESCO, Cristóvão defendeu projeto de imposto diferenciado para egressos de instituições públicas que, com o imposto diferenciado, pagariam o custo de seus cursos, medida que exigiria a modificação do Art. 206, CF que estabelece a gratuidade nos estabelecimentos oficiais. [7] A menção a reforma chinesa deve ser vista com preocupação. Com as recentes reformas, a China passou a cobrar taxas escolares dos estudantes, extinguindo a gratuidade e o cerceamento a liberdade de pensamento é rigoroso. A Coréia segue o modelo estadunidense, 70% das instituições são privadas (correspondendo a cerca de 80% do total de alunos). Neste país, os docentes não dispõem de estabilidade em seus cargos e é comum afastamento por delitos de opinião (Altbach, Philip G. Educación Superior Comparada. Bs. As. Universidad de Palermo, 2001, p.113-116, 352-354). [8] O Globo, 05/12/03, p. 3. [9] Em discurso proferido na 69o Reunião Plenária do CRUB, o Ministro afirmou ser possível triplicar o acesso ao ensino superior por meio da educação a distância (www.universia.com.br). [10] Ver Reinaldo Gonçalves.Política econômica e macrocenários nacionais: 2003-2006 (www.outrobrasil.net). [11] Segundo o IBGE, o rendimento médio da classe trabalhadora caiu 11,6% de dezembro de 2002 a outubro deste ano. No mesmo período, ainda segundo os dados oficiais do IBGE, o desemprego aumentou de 10,5% para quase 13%. A.economia está estagnada e sufocada pela dívida pública, cujo principal já ultrapassa metade do PIB, sendo que o pagamento efetivo dos juros corresponde a 10% de toda a riqueza anualmente produzida. Em 2003, as despesas com o serviço da dívida pública mais do que dobraram em relação a 2002, tendo superado em 22,5% todos os gastos da Previdência Social (ver: Até quando, companheiro?, Carta Aberta ao Presidente Lula, FSP, 8/12/03). [12] Segundo o seu ministro da educação, C. Allègre: "É imperativo que todo o nosso dispositivo de ensino superior se impregne, tanto no recrutamento, como na formação, do espírito de inovação, de criação, de empreendimento e de iniciativa" (CPS N° 73, 24 JUIN 1998). [13] Pierre Bourdieu et Christophe Charle. Un ministre ne fait pas le printemps, Le Monde, 8 avril 2000. [14]Olivie rBRIFFAUT .Papiers universitaires. Thèmen.3. http://perso.wanadoo.fr/papiers.universitaires/chaine.htm) [15] Ver a íntegra da proposta "As características do pensamento da reforma" em http://www.orusint.org/mailgust/index.php? [16] Seminário Internacional Universidade XXI, 25, 26 e 27 de novembro de 2003, Brasília – Brasil.


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Texto 2: EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE Roberto Leher (UFRJ)* Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desenvolver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos (p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países en desarrollo: peligros y promesas, 2000)

Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco Mundial publicou o seu já célebre documento “lições derivadas da “experiência” 1, que as políticas para a educação superior de muitos países latino-americanos, em conformidade com as suas frações burguesas dominantes, passaram a perseguir o objetivo de desconstituir o chamado modelo europeu de universidade. Conforme o Banco Mundial, a indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das instituições públicas, os traços mais distintivos deste modelo, seriam anacrônicas com a realidade latino-americana. As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latinoamericanas organizadas pela UNESCO e os levantamentos do INEP, no caso brasileiro, confirmam que, de fato, o modelo universitário deixou de ser reivindicado pelos governos locais. Os indicadores confirmam que nas duas últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de instituições 2 de ensino superior na região, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de instituições: tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as universidades privadas, em virtude da flexibilização dos critérios para o credenciamento como universidade, são atualmente, via-de-regra, unidades de ensino quase que completamente desvinculadas da pesquisa, nada tendo de emulação humboldtiana3. A natureza jurídica dessas instituições e organizações

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. WORLD BANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994). O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam que muitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais. Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacional (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999).. 3 . Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809), referenciado na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A 2


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também se alterou, predominando, largamente, instituições com fins lucrativos de natureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos4. A despeito das profundas mudanças nas instituições universitárias públicas, também alteradas pela mercantilização e pela hipertrofia das atividades de serviços, a grande maioria destas instituições seguiu ofertando cursos de graduação plenos, inclusive ampliando o tempo de formação em diversas carreiras.no bojo de longas reformas curriculares A indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão, embora nem sempre sistemática, se mantém como uma prática estabelecida nas públicas, por meio de programas como o Programa Especial de Treinamento (CAPES/SESU-MEC), o Programa de iniciação científica (PIBIC/ CNPq), monitorias e mesmo por atividades docentes em que a pesquisa desenvolvida nos programas de pós-graduação repercute nas salas de aula da graduação. As resistências das universidades públicas aos projetos que pretendem imprimir um caráter aligeirado e massificado sem qualidade têm gerado críticas sistemáticas por parte dos sucessivos governos brasileiros. Todas as políticas de Collor de Mello a Lula da Silva, inclusive, são enfáticas a esse respeito. A acusação mais comum é que as universidades públicas são burocráticas, conservadoras, elitistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impede que se tornem instituições “integradas” com a sociedade, como se pudesse existir instituição social fora da sociedade! Mas essa resistência – expressa em atos acadêmicos em prol da concepção universitária e por mobilizações e greves – pode estar sendo quebrada pelas sucessivas medidas adotadas pelo governo Lula da Silva que, diferente de Cardoso, tem obtido apoio mais ativo por parte das administrações universitárias. Em geral, todos os projetos governamentais que pretendiam “harmonizar” os cursos de graduação das públicas com os das privadas, tendo o padrão destas

instituição nos termos de Humboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da autonormação. 4 . Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”, Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.


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últimas como referência, foram compreendidos como heterônomos e não contaram com o apoio ativo das administrações. A partir do mandato de Lula da Silva a realidade é outra. Projetos que outrora foram apresentados pelo MEC e recusados pelas universidades voltaram à baila, mas agora assumidos como se de autoria das próprias universidades, retirando o MEC do foco do conflito. Assim, diferente dos períodos anteriores em que os embates eram externos à universidade, o que facilitava a unidade da comunidade acadêmica, atualmente, o cerne dos conflitos se volta para dentro das instituições, ampliando o grau de liberdade do governo para levar adiante a sua agenda. Outro aspecto novo a ser considerado é que setores mais empenhados no “capitalismo

acadêmico”5

têm

assumido

um

posicionamento

mais

ativo,

protagônico, nesse processo, justo por vislumbrarem a possibilidade de mais e melhores negócios em uma universidade massificada e aligeirada, em especial por meio de cursos a distância. A este setor se somam docentes que apóiam a contra-reforma como uma tarefa política, por se sentirem comprometidos partidária ou ideologicamente com o governo de Lula da Silva, posicionamento presente em militantes petistas e de outros partidos da base governista (PC do B, PDT, PMDB, PP, PR, PSB), de distintas forças presentes na CUT e na direção majoritária da UNE. Em que consiste essa reestruturação das universidades federais como instituições que ofertam cursos aligeirados? Quais as medidas que pretendem implementar esse modelo? O que é novo em relação às iniciativas que buscavam implementar cursos de curta duração? Duas medidas recentes – estreitamente interligadas – têm o objetivo de modificar a forma de graduação, tornando-a mais breve, para que as universidades federais possam ampliar, sem recursos adicionais, a oferta de vagas: o projeto “universidade nova” e o programa de reestruturação das universidades federais (REUNI). 5

. SLAUGHTER, S.; LESLIE, L.L. Academic capitalism: politics, policies and the entrepeneurial university. Baltimore, USA/London, England: The Johns Hopkins University Press (1999).


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Inicialmente, o artigo analisa a Universidade Nova, por ser um projeto mais detalhado e explícito em relação ao propósito de aligeirar a formação universitária. A seguir, o artigo discute o REUNI, a materialização do projeto universidade nova, estabelecendo, ao final, nexos com o padrão de acumulação em curso no país.

Universidade Nova

O projeto Universidade Nova, apresentado originalmente em um seminário promovido pela UFBa6, pretende promover uma “nova arquitetura curricular” nas universidades, promovendo um ciclo básico, curto, de natureza não profissional, que garantiria aos concluintes um diploma de estudos gerais. A formação profissional seria exclusivamente para os mais aptos a prosseguir em sua formação. O documento “Universidade Nova: Reestruturação da Arquitetura Curricular na UFBa” doravante denominado Universidade Nova-UFBa, parte da mesma premissa dos documentos do BM e dos teóricos da Escola de Chicago, como Gary Becker, um Nobel neoliberal que pertence a ala direita desta Escola, que afirmam o fracasso do projeto de construção de universidades públicas e gratuitas no Brasil. Nos termos de Becker, manter o modelo europeu (humboldtiano) no Brasil é uma irracionalidade, pois as suas universidades tão somente redescobrem o conhecimento e, ademais, significam subsídios às pessoas erradas (à dita elite).

6

. Em sua atual versão, o projeto Universidade Nova foi divulgado no I Seminário Nacional da Universidade Nova, realizado em Salvador entre 1º e 2 de dezembro de 2006, sob o patrocínio da SESu/MEC e da ANDIFES. O evento tratou dos temas: estrutura curricular do Bacharelado Interdisciplinar (BI), dos Cursos profissionalizantes e da Pós Graduação, modalidades de processo seletivo para o BI e para os Cursos Profissionais, antecedentes históricos da Universidade Nova, modelos de arquitetura acadêmica utilizados no mundo, impacto do projeto Universidade Nova na estrutura administrativa da universidade pública brasileira, dentre outros tópicos. Grupos de trabalho discutiram e sintetizaram as propostas do documento final. O II Seminário Nacional da Universidade Nova realizou-se na Universidade de Brasília – UnB, no Auditório Dois Candangos, no período de 29 a 31 de março de 2007, tendo como tema “Anísio Teixeira e a universidade do século XXI”.


18

A partir da construção dessa imagem negativa, os governos neoliberais, a Escola de Chicago e o BM propugnam que, em virtude de seu descolamento com a sua época, a universidade pública precisa ser completamente reestruturada: novo aqui significa a rejeição completa do que foi construído no período do pósSegunda Guerra, no contexto das políticas nacional-desenvolvimentistas em que se forjou, contraditoriamente, um pensamento crítico à ideologia da modernização e do desenvolvimento, crítica esta que supunha que o país desenvolvesse suas universidades para fortalecer a luta contra a heteronomia cultural, cujo expoente máximo foi Florestan Fernandes. O precioso patrimônio asperamente construído em um intervalo de tempo incrivelmente exíguo, o Brasil foi o último país da América Latina a ter instituições propriamente universitárias, passa ser considerado um estorvo a ser reformulado inteiramente para atender às necessidades de um mercado capitalista dependente que já não estaria demandando formação acadêmico-profissional sólida e longa. Sobressaem as fórmulas bancomundialistas, os esquemas da área de negócios de educação superior estabelecidos pelo processo de Bolonha e da OCDE/ Unesco, almejando a criação de um espaço europeu de negócios educacionais com “competitividade internacional”, o AGCS/OMC e, sobretudo, o modelo aligeirado para os mais pobres nos EUA, os Community Colleges. Em termos práticos, o projeto UNIVERSIDADE NOVA diagnostica que o problema central das instituições universitárias brasileiras é o “velho recorte disciplinar” que a tornou uma instituição esclerosada, moribunda, inserida em um sistema classificado de "ultrapassado", "condenado" e "arruinado" incapaz de dialogar com as necessidades do tempo presente. A partir dessa consideração, os seus autores concluem que a alternativa mais sensata é adotar o modelo bancomundialista, pincelando aspectos do acordo de Bolonha e carregando nas tintas do modelo dos Community Colleges.

Uma universidade a ser descartada?


19

A premissa fundamental do projeto Universidade Nova é que o atual modelo universitário

é

nefasto,

gerando

uma

instituição

anacrônica

e

inviável,

especialmente por não ter semelhança com as universidades reformadas pelas políticas neoliberais nos países centrais. É preciso, preliminarmente, examinar esse pressuposto fundamental para seguir examinando os demais fundamentos da proposta. Os autores do referido projeto partem do que julgam ser uma análise histórica da constituição da universidade brasileira para, a partir do histórico, apresentar um diagnóstico e as supostas alternativas (já contidas na narrativa histórica que é escrita para corroborá-la, uma evidente teleologia). O documento qualifica as universidades federais como híbridas, reunindo o pior do modelo estadunidense e da universidade européia do século XIX. É desconcertante que o documento não considere que, apesar das políticas governamentais, as instituições possuem uma dinâmica própria engendrada pelas contradições do real. A rigor, nenhuma universidade federal se encaixa no diagnóstico da Universidade Nova. Existiram resistências, lutas, greves (qualificadas no documento como inúteis) que impediram que as determinações oficiais fossem implementadas de modo mecânico e absoluto. Ao deixarem de examinar as instituições em suas particularidades, os autores ignoram que existe uma história não governamental que expressa as lutas, tensões e contradições que pulsam em toda instituição universitária. A análise histórica contida no documento confunde contradição com incoerência. O fato de existir tensões na universidade provocadas por perspectivas distintas de universidade, longe de ser algo negativo é, ao contrário, alvissareiro, pois indica que em um determinado contexto existiram forças criticas ao projeto hegemônico. Para os autores do referido projeto, a existência de forças emancipatórias que reivindicam a dimensão libertária da modernidade é “o” obstáculo a ser removido, pois estas forças criam resistências e arestas à universidade operacional que defendem. Embora as primeiras instituições propriamente universitárias tivessem sido criadas por frações dominantes com propósitos conservadores – no caso da USP,


20

a afirmação da burguesia paulista frente ao novo bloco de poder que se afirmava sob a liderança de Getúlio Vargas – a vitalidade da universidade produziu contradições muito mais profundas do que supunham os seus criadores. O mesmo efeito aconteceu no período da modernização conservadora do governo empresarial-militar. O fortalecimento da pesquisa e da pós-graduação assumiu contornos muitas vezes distintos do que preconizava o modelo desejado pela ditadura. Por isso, na segunda metade do século XX, o período em que a maior parte das universidades foi constituída, a função social da universidade não pôde deixar de ser contraditória, produzindo majoritariamente conhecimento funcional ao modelo capitalista dependente, mas, embora de forma minoritária, elaborando, também, conhecimento novo, crítico, de alta qualidade que tem contribuído para tornar pensável a formação social brasileira, a agricultura camponesa, a saúde pública, as formas alternativas de energia, os conhecimentos históricos das lutas sociais dos trabalhadores brasileiros etc. Os autores do projeto em discussão concluem que a universidade existente tem de ser superada a partir de um histórico que, pelo exposto, é sui generis: desqualifica por completo a perspectiva emancipatória que, embora minoritária, parece ser a causa de todos os males. Significativamente, os autores nada falam dos

setores

mais

capitalizados

engajados

na

mercantilização

e

no

empreendedorismo que configuram o capitalismo acadêmico periférico. Se a universidade que pode dar certo é a universidade operacional (a serviço de um mercado apresentado como virtuoso), como os autores da proposta explicam que o país segue patinando no número de patentes7 e que a presença

7

. O Brasil perde espaço em inovação tecnológica. Em seu levantamento anual, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) aponta que, entre 2004 e 2005, o número de patentes pedidas no País caiu 13,8%, enquanto em praticamente todo o mundo aumentou. A queda foi a maior entre os 20 principais escritórios de patentes no mundo.Hoje, um quarto de toda a tecnologia disponível no planeta já está nas mãos de apenas três países asiáticos: China, Japão e Coréia do Sul. Jamil Chade, Brasil perde espaço em inovação tecnológica Estadão, 10 de Agosto de 07. Durante a década de 90 verificou-se um crescimento da ordem de 70% nos pedidos de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Os pedidos passaram de 14.186 em 1990 para 24.572 em 2001. A participação dos residentes nos pedidos de depósito, que pode ser tomada como um indicativo da importância do esforço nacional de inovação, caiu durante toda a década, chegando a atingir, em 1998, a metade do nível de 1991. Antônio Márcio Buainain e


21 internacional da ciência brasileira8 tem se dado, sobretudo, na pesquisa básica? O que esses indicadores nos mostram é que, a despeito das políticas que tentam subordinar a universidade ao utilitarismo e ao pragmatismo, a sua vitalidade reside justamente nos domínios em que o fazer acadêmico é mais condizente com a função social de produzir e socializar conhecimento científico e tecnológico do que com a função de ser lócus da pesquisa e desenvolvimento (a chamada inovação tecnológica). Esses indicadores sobre patentes e produção do conhecimento na universidade não surpreendem os que estudam a base material do país: nações que estão inseridas na economia-mundo de modo capitalista dependente (como o Brasil) não possuem um parque produtivo que requer inovação tecnológica significativa, e não serão as universidades que poderão preencher essa lacuna aberta pelas empresas que atuam apenas em parte da cadeia produtiva ou se valem de tecnologias já consolidadas. Os autores não explicam igualmente a expansão da pós-graduação brasileira, estruturada a partir dos quase heróicos mestrados (que chegam a ser ridicularizados no documento) há apenas três décadas – uma experiência extremamente bem sucedida, pois ainda hoje é o primeiro momento em que grande parte dos novos professores e pesquisadores faz um trabalho científico completo – tenha alcançado a dimensão do Sistema Nacional de Pós-graduação (em 2003):

Nº de Programas e Nº de Cursos

Sérgio

Carvalho http://www.inovacao.unicamp.br/anteriores/colunistas/colunistas-amarcio.html. Neste início do século 21, definitivamente, não fomos brilhantes. O USPTO (sigla em inglês do escritório de patentes norte-americano) concedeu-nos, no triênio 2001-2003, 336 patentes, número que caiu para 304 no triênio subseqüente. Ou seja, tivemos uma perda de 10%. Roberto Nicolsky e André Korottchenko. Publicado no Jornal de Brasília, 15/05/2007. 8

M.

1.819 / 2.861

Paulino

de

. Em 30 anos, o número de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros aumentou exponencialmente de 0,3% para quase 2% de todo o conhecimento científico mundial. Entre as 15 universidades com maior produção científica no momento, 11 cresceram mais de 200% em relação a dez anos atrás (1996-2006), segundo os dados mais recentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (O Estado de S. Paulo, 1/08/2007).


22

Doutorado

1020 cursos

Mestrado Acadêmico

1.726 cursos

Mestrado Profissional

115 cursos

Alunos titulados

35.724

Fonte: CAPES/PNPG (2005-2010)

Mais do que o crescimento das citações internacionais, um indicador em vários sentidos frágil e controvertido, como explicar que uma universidade tida como anacrônica, isolacionista, quase única no mundo por seu ecletismo, tem permitido um diálogo tão intenso com os grupos de pesquisa estrangeiros de prestigiosas instituições e a realização de doutorados sanduíches e dos pós-doutoramentos exitosos? Se o sistema fosse tão anacrônico e descolado do que existe nos países centrais, como esses diálogos aconteceriam de modo tão intenso? O documento tampouco explica como a ciência brasileira foi capaz de produzir conhecimento com amplo reconhecimento internacional, como o uso de soluções hipertônicas no tratamento de choque hemorrágico, uma descoberta que ampliou em cerca de 10% a sobrevida de acidentados com múltiplos fermentos aos serviços de urgência dos hospitais, ou a participação brasileira no Genoma, ou ainda a produção de vacinas contra a hepatite B no Butantan, ou os estudos sobre a fixação de nitrogênio por bactérias associadas com raízes de plantas que permitiram aumentar a produtividade do plantio de feijão em cinco vezes na UFRRJ, ou os estudos sobre as conseqüências do uso de mercúrio no garimpo, pela UFPa, ou os estudos sobre informática desenvolvidos na UFPE ou a prospecção de petróleo em águas profundas pela UFRJ que hoje garante a quase autonomia de combustível fóssil no Brasil9. A base da infra-estrutura nacional, estradas, portos, pontes, hidrelétricas, petróleo, o conhecimento geográfico, o levantamento da biodiversidade, a produção de sementes adaptadas ao solo e ao clima do país, tudo isso dificilmente teria sido edificado sem os profissionais formados pelas universidades públicas. A avaliação social reiterada no cotidiano de que os melhores 9

. A presença da universidade pública. USP, Gabinete do Reitor, 2000.


23

professores, enfermeiros, sociólogos, bioquímicos, médicos, agrônomos são provenientes dessas instituições supostamente fracassadas também não é mencionada pelos detratores da universidade pública. Ao mencionar o elitismo das públicas, os autores ocultam que atualmente as públicas sequer alcançam 20% das vagas disponíveis na educação superior e que a renda familiar dos estudantes das Públicas que estão entre os 20% mais pobres é de cerca de R$ 750,00 e que 75% dos estudantes possuem renda familiar de até R$ 2700,00. Isso seria a elite da Universidade Nova, da Escola de Chicago e do BM? Desconhecem os autores o estudo do IBGE que constata que, apesar de tão reduzida, ainda assim, em todas as situações, a universidade pública é mais democrática do que as privadas: em todos as carreiras a renda média dos estudantes das públicas é menor do que a renda média das privadas?10 Considerando a devastação provocada pela tese de que cada país deve ter uma universidade compatível com as expectativas que o imperialismo tem sobre a sua inserção na economia-mundo – cujo exemplo africano certamente é o mais dramático –

que país seria o Brasil

sem a sua “arcaica, velhaca, obtusa”

universidade pública? O que realmente querem dizer os elaboradores do projeto Universidade Nova quando dizem que tudo o que foi acumulado historicamente com base em trabalhos tão árduos e penosos é anacrônico e irrelevante? É como se vinte anos de debates sobre a formação de “professores como intelectuais e produtores de conhecimento” fosse apenas motivo de comentários jocosos, lastreados em pressupostos frágeis de Edgar Morin, um autor que se celebrizou por ter sido um operador de políticas neoliberais em seu país, como na reforma da educação tecnológica que, a exemplo da Universidade Nova, aligeirava a formação dos jovens, promovendo um levante da juventude francesa contra o seu modelo, situação finamente criticada por Pierre Bourdieu e que, recentemente, tentou vender o pacote de sua ONG, o Instituto ORUS em associação com o BM, para “reformar e criar uma universidade nova”, dita do Século XXI, no Brasil.

10

. Sobre acesso, ver indicadores muito bem elaborados em José Marcelino Rezende Pinto, Educação e Sociedade, vol. 25, n.88, p.727-754, Especial, Outubro 2004.


24

Disciplina e interculturalidade

A discussão prioritária sobre a interculturalidade, o método de construção do objeto, a forma de fazer perguntas e definir os problemas, o problema da unidade do ser e do saber, a unidade das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades, em suma, a reflexão a propósito das questões epistemológicas e epistêmicas, ao ser desenvolvida pelos autores da Universidade Nova é dissolvida na fórmula simplista da interdisciplinaridade epidérmica. Os seus autores criticam o recorte disciplinar das faculdades, mas sustentam a interdisciplinaridade. Como é possível estabelecer relação entre várias disciplinas em que se divide o saber-fazer humano se a proposta em discussão desqualifica a existência da disciplina e das faculdades? Tudo indica que os autores desconsideram que a expressão disciplina está relacionada ao “propósito de rigor, exatidão que se identificam com a posse de ´um saber´ ou o ´domínio de uma arte ou técnica´ e também com divisões do trabalho intelectual em campos, áreas ou aspectos de um fenômeno. Ao mesmo tempo, (...) disciplina e faculdade evocam os problemas do poder estabelecido e alternativo.”11 A leitura dos documentos da Universidade Nova indica, antes, que o sentido assumido na crítica às disciplinas é o oposto desta expressão: indisciplina, isto é, ausência de rigor e exatidão, relativismo epistemológico, nos termos do pós-modernismo midiático. A interdisciplinaridade somente pode buscar novas formas de rigor e profundidade se estabelecer real diálogo com problemas bem elaborados e demarcados, pois é a busca do rigor disciplinar que exige combinações e interseções de duas ou mais disciplinas, superando a divisão do trabalho anterior, conferindo novos sentidos para a totalidade12. O abandono do rigor reacende o empirismo vulgar e a celebração do senso comum como saber científico. As ideologias dominantes, com isso, jamais poderão ser questionadas, assegurando a ordem estabelecida como uma ordem natural. É a capitulação ao fim da história. 11

. Pablo G. Casanova, interdisciplina e complexidade. In: Casanova, P. G. As novas ciências e as humanidades. SP: Boitempo, 2006, p.13. 12 . Idem, p.13.


25

Baseado no modelo pretendido no Bacharelado Interdisciplinar, a vida acadêmica do estudante será equivalente a do consumidor em um shopping center: os estudantes percorrerão as diversas temáticas como se estivessem diante de vitrines, mas, tal como nesses templos de consumo, nem todos poderão freqüentar as mesmas “lojas” (percursos escolares), posto que, como discutido adiante, alguns domínios estarão reservados aos “vocacionados”. A massa terá de se contentar em adquirir alguma quinquilharia (O Bacharelado Interdisciplinar) em alguma loja de departamento. Com base nessa noção rala que não enfrenta o debate epistêmico (que saber está sendo produzido? Como esse saber está sendo elaborado?) os piores projetos em curso, como a transposição das águas do Rio São Francisco ou a hidrelétrica do Rio Madeira podem ser concebidos como exemplos bem sucedidos desse

enfoque

interdisciplinar

epidérmico.

Se

compreendemos

a

interdisciplinaridade como justaposição de saberes, é indubitável que esses projetos são interdisciplinares, reunindo saberes da engenharia, da física, da metereologia, da hidrologia, da ecologia etc. Mas nem por isso anunciam perspectivas emancipatórias, críticas à colonialidade do saber, referenciadas em estudos desenvolvidos em perspectivas históricas.

Essa interdisciplinaridade

epidérmica já é uma realidade em quase todos os cursos, o que não altera o peso da razão instrumental que segue guiando os mesmos. Mas a questão de fundo do projeto Universidade Nova não é o debate epistemológico e epistêmico, mesmo porque estas preocupações inexistem no projeto Universidade Nova. A mal denominada “arquitetura curricular” da Universidade Nova é, sobretudo, uma “reestruturação” gerencial para aumentar a produtividade da universidade, em termos da administração racional do trabalho taylorista. Nesse sentido, o Decreto 6069/07 do MEC (REUNI) é mais honesto: trata-se mesmo de uma reestruturação da universidade. Assim como as empresas viveram reestruturações baseadas na qualidade total, na reengenharia etc, agora é a vez das universidades se ajustarem aos preceitos da economia capitalista dependente.


26

A questão central do projeto da Universidade Nova, que não pode ser objeto de confusão, é a graduação minimalista com a concessão de diploma, objetivando ampliar o número de estudantes sem contrapartida de recursos e promover um novo e perverso gargalo que tornará a profissionalização um privilégio de poucos “vocacionados”.

As inspirações do modelo Após as críticas à universidade à bolonhesa, as referências a Bolonha13 acabaram ocultadas, em favor de um educador respeitado: Anísio Teixeira, autor de um projeto de educação nacional-desenvolvimentista, que, ao criar a UnB, desenvolveu fundamentos radicalmente distintos dos presentes na Universidade Nova. Embora o projeto da UnB14 previsse um ciclo básico em grandes áreas, seguido de um bacharelado de três anos, perfazendo uma graduação de cinco anos, este projeto foi pensado com os estudantes cursando o ciclo básico em horário integral, em pequenos grupos, acompanhados pari passu por docentes. A meta, em dez anos, era que o número de estudantes por professor fosse de 6:1! A Universidade Nova prevê no ciclo básico (O Bacharelado Interdisciplinar) 80:1 a 40:1. O REUNI 18:1! Obviamente, não há como comparar os termos da UnB com os da Universidade Nova. A leitura do texto do Documento Universidade Nova: UFBa e do referido artigo do reitor da UFBa não deixam dúvidas de que as referências mais importantes são mesmo as de Bolonha e dos Community Colleges. E isso fica claro não apenas pela adoção do modelo do ciclo básico (o Bacharelado Interdisciplinar) de curta duração, mas de todo o léxico dos textos, estruturado a 13

. O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a expectativa da OCDE-UNESCO que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver difundido em toda a Europa. (Roberto Leher “Fast delivery diploma: a feição atual da contra-reforma da educação superior Notas sobre a Universidade Nova”, publicado originalmente no sitio da Carta Maior, espaço de controvérsias) 14

. Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.


27 partir de expressões muito bancomundialistas e muito bolonhesas, a “nova vulgata planetária”15

como:

“ciclos”,

“mobilidade”,

‘qualidade”,

“competitividade”,

“flexibilidade”, “empreendedorismo”, “inevitabilidade da transnacionalização”, “globalização”,

“sociedade

da

informação”,

“competências

genéricas”,

“polivalência”, “adaptação ao mercado” etc. Nos termos de Bourdieu e Wacquant (2001), essa vulgata opera a ideologia neoliberal que difunde as ‘disposições de pensamento´ necessárias para a nova ordem: o capitalismo de livre mercado inexorável e irreversível. Em todo texto está suposto que o mercado é um agente. Quando não é o mercado, os atores que induzem as transformações são não-humanos, inanimados (as novas tecnologias) ou nominalizados (a transformação, a mudança). O ator mais proeminente é o “novo mundo globalizado”. Não há protagonismo

humano.

A

partir

desses

pressupostos

o

documento

da

Universidade Nova conclui que a universidade brasileira está em descompasso com esses “agentes transformadores”. Daí a obsessão com a forma distinta de organização da educação superior brasileira em relação aos países centrais e ao mercado global, um sujeito que requer que a universidade faça os ajustes em conformidade às suas necessidades. De fato, a localização das IFES fora do padrão de Bolonha ou dos community colleges é provavelmente um dos pontos mais reiterados do documento da Universidade Nova-UFBA, estruturando a crítica à universidade atual e propugnando o ajuste aos referidos modelos sob o risco de “isolamento”, como se não estar com o mesmo formato mercantilizado e “mercadocêntrico” fosse impedir o diálogo da universidade brasileira com os demais centros de produção de conhecimento: “se (...) não aproveitarmos a chance de criar um novo sistema universitário articulado ao que é dominante no mundo o Brasil vai ficar isolado” (citação com ajuste de redação) (Universidade Nova-UFBa, p.13).

15

. Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 . vulgate.


28

A solução miraculosa para esse descompasso é, como visto, a revisão curricular, sem qualquer indicação de alteração nas políticas macroeconômicas do imperialismo que somente mantém empregos precários e de péssima qualidade, sem qualquer menção ao encolhimento da oferta pública, ao congelamento das verbas para a educação federal, ao robusto sistema de subsídios públicos para as instituições privadas-mercantis (PROUNI) e ao problema da propriedade intelectual que opõe as nações centrais e periféricas. É observável ainda a adesão à ideologia de que as pessoas trabalham em áreas distintas de sua formação ou estão desempregadas em função do anacronismo do currículo presente em sua escolarização, uma afirmação que causaria orgulho em Schultz e Becker, dois dos mais importantes ideólogos do capital humano da universidade de Chicago que, em sua época, teriam ficado encantados com seus discípulos brasileiros.

Graduação

minimalista

para

um

mercado

de

trabalho

flexível

e

desregulamentado

Em linhas gerais, a Universidade Nova preconiza a seguinte estrutura: após o invertebrado Bacharelado Interdisciplinar (BI) de 2 a 3 anos (p.18), o estudante ganharia um diploma que o habilitaria a seguir os seus estudos, se aprovado em seleção, conforme o seu perfil “vocacional”: 

Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas específicas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;

Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;

Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pósgraduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico,


29

podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisador16 (grifos e destaques meus). Está evidente que essa diferenciação tem como fundamento o padrão de acumulação por despossessão17 que pressupõe níveis de “competência” distintas no mercado de trabalho. A lógica da Universidade Nova é mesma da de Bolonha. Espera-se aqui uma instituição de ensino superior capaz de servir a demandas de mercado, operando a hierarquia baseada em supostas competências gerais e específicas, lastreando conhecimentos subjetivos que vão separar “os mais talentosos” que terão uma formação mais sólida, da maioria que terá apenas uma formação panorâmica de uma grande área. No México, por exemplo, o instituto de estudos estatísticos desse país menciona que apenas 10% dos postos de trabalho exigirão formação universitária completa. No Brasil não temos indicadores prospectivos abrangentes, mas, muito provavelmente, não serão muito distintos dos mexicanos. Essa cisão não é vista como problemática, ao contrário, é celebrada como um ajuste da educação superior ao mercado mundializado: “Um mundo do trabalho marcado pela desregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade não demanda apenas especialistas, mas também profissionais qualificados e versáteis, com competência para atuar em diferentes áreas” (Razões para a reestruturação. In: Universidade Nova: uma nova arquitetura para um novo tempo, UFBA Revista, n.4, 2007). A lógica não poderia ser mais instrumental: como o futuro do trabalho será precário para a grande maioria é preciso “ajustar” as universidades públicas criadas em um contexto de Estado de bem-estar social para o áspero mundo do trabalho flexível e desregulamentado, por isso os ciclos. Claro que o “velho” modelo universitário orientado para o trabalho regulado não cabe mais aqui.

16

. http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 . 17


30

Este mesmo padrão de acumulação requer a diferenciação das instituições de ensino superior mundiais. No caso brasileiro, uma conseqüência do projeto será a conformação das universidades federais em “escolões”, em detrimento da pesquisa acadêmica, tendo em vista que para cumprir o contrato de gestão, discutido adiante, o grosso do corpo docente terá de se empenhar em atender enormes turmas no primeiro ciclo, institucionalizando, ainda mais, o afastamento do modelo humboldtiano de universidade como instituição de ensino e pesquisa, capaz de garantir uma formação ampla, bildung, aos estudantes. O modelo preconizado pelo processo de Bolonha não é distinto da formulação bancomundialista e está sendo difundida não apenas na Europa, objetivando o espaço de negócios europeus de educação superior, mas está promovendo o redesenho da educação superior em muitos outros países capitalistas dependentes. A mesma estrutura pode ser encontrada na Guatemala, está em discussão na Argentina e encontra-se em implementação na Romênia e em Portugal. Na Romênia, o ajuste ao processo de Bolonha tem como argumentação central a recusa a especialização excessiva e precoce, buscando uma formação mais geral e ajustada ao mercado de trabalho, assumido, tal como na Universidade Nova, como precário e flexível18. Não casualmente, em Portugal a Comissão de educação do Parlamento encarregada de examinar o processo de Bolonha sugeriu a sua não implementação, pois essa dinâmica iria aprofundar a condição periférica do país no continente europeu. As principais universidades portuguesas não aderiram justo porque compreendem o modelo como prejudicial à autonomia científicocultural do país. As lutas dos estudantes franceses contra o processo de Bolonha expuseram todo o arcaísmo do modelo, pois cerca de 90% dos estudantes não podem alcançar os níveis mais elevados do sistema. Também os estudantes gregos estão em luta contra o modelo bolonhês. Nenhuma dessas resistências é

18

. Fairclough, N. (2006) Language and Globalization, London: Routledge.


31

mencionada pelo Documento que se alia aos governos social-liberais na defesa da diferenciação social.

Universidade Nova e o MEC

A pretensão de originalidade do projeto é descabida, pois não apenas em âmbito internacional projetos semelhantes estão sendo implementados em diversas partes do mundo, como, em âmbito local, vem sendo diligentemente encaminhado pelo MEC desde Cardoso. Na proposta do Grupo de Trabalho Interministerial (2003), a idéia era expandir as vagas públicas por Educação a Distância, uma idéia que faz parte do núcleo sólido da política do governo de Lula da Silva e que compunha o cerne da Minuta de Decreto de implementação da Universidade Nova apresentada pelo MEC em março de 2007. O crescimento das matrículas nessa modalidade é inédito e vertiginoso, passando de 28 cursos de graduação em 2003, sendo 70% públicos, equivalendo ao ingresso anual de 21 mil estudantes, para 189 cursos em 2005, 40% deles públicos, correspondendo ao ingresso neste ano de 172 mil estudantes! Outra idéia força foi a criação de uma graduação em moldes póssecundários, à semelhança da reforma conservadora do Pacto de Bolonha. A expansão da educação tecnológica, dos centros universitários (2002:70, 2005:120) e das instituições com fins lucrativos (2003: 1600, 2005:1850) comprovam que a expansão aligeirada, uma realidade nas privadas, já vinha sendo incentivada pelos governos. A idéia de um sistema organizado para ofertar ensino massificado e desvinculado da pesquisa, presente no Projeto GERES19, qualificado como positivo pelo Documento da Universidade Nova20, é sumamente significativa. Distintamente do afirmado no referido documento, o ANDES-SN combateu intensamente o GERES por compreender que o mesmo institucionalizaria um

19

. Em novembro de 1985 foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qual pretendeu reformular as instituições federais de ensino superior. 20 . Universidade Nova - UFBa, p.11.


32 sistema dual nas IFES: alguns poucos “centros de excelência” e muitos “escolões”, perpetuando, assim, as desigualdades sociais e regionais. Também importante é a avaliação do documento (p.12) de que o PL 7200/06 é um avanço, indicando o escopo em que o projeto Universidade Nova está situado. No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto de Lei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro deles de “formação geral” (Art. 21). Entretanto, as críticas impediram a concretização desse intento, agora retomado pelo MEC, com apoio de parte da ANDIFES, com a Universidade Nova. A primeira menção explícita pode ser encontrada na Minuta de Decreto Presidencial Plano Universidade Nova de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (versão de março de 07). A incorporação do princípio da graduação minimalista pelo MEC é muito importante, pois indica que, enquanto política governamental, o MEC propugna que também as públicas devem se harmonizar com a tendência geral de adequação da educação superior ao mercado capitalista dependente, equiparando públicas e privadas a partir do metro do mercado.

Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)

Recentemente, com o chamado PAC da Educação, o governo lançou um conjunto de medidas denominadas de Plano de Desenvolvimento da Educação. No caso da educação superior federal editou o Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que “Institui o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (REUNI) que opera a implementação da universidade nova (incisos II, III e IV do art. 2o do decreto 6.096/2007). O inciso II garante condições para a mobilidade e a “harmonização” dos ciclos básicos, criando um vasto mercado para as privadas que disputarão a absorção dos excedentes do ciclo básico. O Inciso III permite o desenho curricular previsto na Universidade Nova e o IV a diversificação das modalidades de graduação. O Decreto também fixa metas de desempenho a


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serem alcançadas, em moldes do contrato de gestão de Bresser Pereira: os recursos financeiros serão reservados a cada IFES na medida da elaboração e apresentação dos respectivos planos de reestruturação (Art. 3o): a) 90% de formados em relação aos ingressantes (Art. 1 o, §1o), um índice que não tem paralelo nas comparações internacionais e que somente seria possível com a implementação também na educação superior da aprovação automática e uma agressiva política de assistência estudantil e

b) a meta de relação professor/ estudante que deverá passar dos atuais 12 estudantes por docente para 18 alunos por docente em um prazo de cinco anos. Vale notar que a ANDIFES queria empurrar o cumprimento dessas metas para 10 anos, mas o decreto não acatou o seu pleito. É importante registrar que os números do MEC estão fundamentados em comparações internacionais descabidas (pois não considera que em muitas universidades estrangeiras os docentes podem contar com apoio de doutorandos e assistentes que não compõem o quadro permanente da instituição), ignora a expansão da pósgraduação e a especificidade de áreas. Toda a lógica de implementação do REUNI está baseada no conceito de contrato de gestão, tal como formulado por Bresser e Cardoso. Os recursos somente serão liberados em função da atendimento de determinadas metas, na melhor

tradição

bancomundialista,

referenciada

no

léxico

próprio

do

neoliberalismo, já citado. Nem os recursos previstos na primeira Minuta de Decreto para instituir a Universidade Nova, nem o REUNI agregam montantes significativos de recursos ao orçamento geral das IFES. A previsão da primeira versão era de R$ 3,7 bilhões até 2012 (R$ 625 milhões/ ano), sendo 52 universidades federais, teríamos 12 milhões por ano/ universidade. A versão atual foi mais pragmática, indicando a possibilidade de um montante que não poderá ultrapassar o equivalente a 20% das despesas de custeio e de pessoal (excluindo os aposentados e pensionistas), montante este que será distribuído ao longo de cinco anos (Art 3, parágrafo 1 o).


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Admitindo que todas apresentem planos de adesão ao REUNI, que o MEC trabalhe com o teto de 20% e, ainda, que os 20% serão distribuídos todos os anos, ao longo do período de contrato, grosso modo, o montante seria de aproximadamente R$ 1,12 bi ano, cerca de R$ 21 milhões/ano por instituição que, com esses recursos, terá de arcar com a expansão da infra-estrutura e com as despesas adicionais de pessoal (Art.3, inciso III). O atendimento do Plano de cada IFES é condicionado à capacidade orçamentária e operacional do MEC (Art.3, §3o), o que pode confirmar um montante inferior a 20%, assim, a hipótese de que as universidades contratem docentes e invistam em infra-estrutura e não recebam os magros recursos adicionais não pode ser descartada. A rigor, com o decreto 6069/07, o MEC não fica obrigado a se responsabilizar com a garantia dos recursos adicionais acordados. Considerando o PAC e o virtual congelamento das despesas correntes da União, essa possibilidade não é pequena. Outro detalhe: a decisão sobre a pertinência ou não do contrato de gestão elaborado pela IFES compete exclusivamente ao MEC. Está claro que os parcos investimentos serão direcionados para a função de escolão. As licenciaturas pós BI estarão reservadas a possivelmente um terço ou menos do número de estudantes do BI, abrindo um imenso mercado nas privadas que terão um novo ‘nicho´ de mercado: como a grande maioria dos que concluírem o BI não poderá se licenciar de modo pleno nas públicas, o setor empresarial buscará “captar” parte desses “clientes”. Esse processo levará a uma renhida disputa dos estudantes por conceitos. Cada colega passará a ser visto como um inimigo em potencial, pois, o estreito funil para as licenciaturas plenas selecionará os estudantes de maior coeficiente de rendimento (ou outro processo de avaliação similar). As lutas estudantis poderão ser duramente atacadas com a quebra da solidariedade e do companheirismo entre os estudantes, cada um concorrente do outro na luta pela formação plena. Mas a difusão da cizânia não estará restrita aos estudantes em competição pela formação profissional. Como os recursos para a contratação de professores


35 serão

liberados

em

função

de

“professores-equivalentes”:

uma

unidade

corresponde a um professor doutor com dedicação exclusiva ou a três docentes de 20h e considerando a pressão para dobrar o número de estudantes, é previsível que no futuro próximo se expanda uma nova categoria de professores: os docentes que atuam no escolão. Estes, certamente, terão o caminho para a pesquisa interditado, conformando duas categorias de professores: os docentes que desenvolvem todas as atividades universitárias e os que devem restringir a sua atividade as aulas do Bacharelado Interdisciplinar ou do ciclo básico.

Método de implementação

Novamente, a falsificação do consenso. O MEC não promoveu qualquer debate com a comunidade acadêmica, não escutando os docentes organizados no Andes-SN e tampouco os estudantes autônomos frente ao governo. O debate do MEC com os reitores foi terceirizado por um reitor que serviu de porta-voz dos anseios do governo. A proposição de que a adesão das universidades ao projeto é livre por parte das universidades também contribui para escamotear a ausência de debates. De fato, estranguladas pelo contingenciamento de recursos e pelo virtual congelamento de recursos, mesmo os muito parcos recursos disponibilizados, em tese, pelo MEC são uma forma de constrangimento ou chantagem econômica, pois os recursos adicionais para a infra-estrutura e a possibilidade de realizar concursos a partir de uma definição da própria instituição, um anseio das IFES, somente serão possíveis para as universidades que se ajustarem ao projeto da Universidade Nova-MEC. Essa é a “democracia” dos contratos de gestão. Se o consenso é falsificado no andar de cima, não surpreende que o mesmo processo esteja acontecendo nas IFES21 que, para cumprirem o apertado calendário do MEC (do esboço ao projeto final em aproximadamente dois meses), estão ignorando o processo democrático que seguramente evidenciaria, a todos os que estão comprometidos com a causa da universidade pública, que a 21

. Roberto Leher, “Metamorfoses na deliberação do Consuni impõem o Reuni como fato consumado na UFRJ”, Jornal da Adufrj, 22 de maio de 2007.


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reestruturação é uma reengenharia produtivista que desconstituirá o modelo universitário conquistado na Constituição Federal de 1988.

Universidade Nova e a contra reforma

O projeto Universidade Nova/ REUNI é um ajuste na tática governamental. A política de aligeiramento e de criação de um mercado educacional mais robusto é a mesma, mas a forma contém novidades. O Decreto 6.096/2007 a primeira vista permite um amplo grau de liberdade para instituições, afirmando que as universidades são livres para aderir ou não ao projeto (mas sem aderir não receberão os magros recursos). Em todo processo foi muito difundida a idéia de que a proposta nasceu da livre elaboração das universidades federais, em especial da UFBa e UnB, inspiradas em Anísio Teixeira, situação que não se situação, como visto anteriormente. O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais aligeirada para os pobres é suficientemente longo para comprovar que o mesmo é parte de um padrão de acumulação muito próprio do imperialismo de hoje, em que os países periféricos e semiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção de conhecimento e em processos produtivos em que o conhecimento se constitui em vantagem comparativa importante. Seria um grave erro situar esse projeto como uma peça secundária no processo de contra-reforma em curso, assim como seria um grave equívoco localizá-lo como uma iniciativa de reitores. Assim, as frentes de luta serão mais complexas, tendo de conjugar a luta no âmbito interno as universidades e nas lutas anti-sistêmicas mais amplas.


37 Texto 3: Universidades Pagas – Democratizando a Universidade: PROUNI E FIES? CARTILHA – REGULAMENTAÇÃO DAS ESCOLAS MÉDICAS PAGAS - produzida pela COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS EDUCACIONAIS (CPE) – 2014 da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Direito) Grace Urrutia (FCMMG)– Coordenação de Políticas Educacionais da DENEM (CPE) – Gestão 2013/2014

A universidade brasileira sempre foi marcada por um caráter fortemente excludente. Além de criada tardiamente em relação a outros países, somente a partir da vinda da família real e de acesso bastante elitizado, nunca se teve uma rede de ensino superior capaz de atender a totalidade dos jovens. Isso se expressa num país que com cerca de 50 milhões de jovens, menos de 15% daqueles entre 18 e 29 anos estão nas universidades, sendo que quase 80% destes concentram-se no ensino particular. Um dos períodos de maior crescimento das instituições do ensino superior (IES) aconteceu nas ultimas décadas, sobretudo nos anos 90, porém com predominante ampliação do setor privado de ensino (só entre 1999 e 2001, o número de escolas pagas cresceu quase 300%). Esse processo de privatização, que se dá pela retirada de gastos e responsabilidade da estrutura estatal, atinge duramente a educação, que pensada como a única atividade social capaz de promover a inserção no mercado de trabalho, transforma-se num campo altamente rentável, passível de grandes investimentos privados e geração de lucros. O que constitucionalmente é um direito de todos e dever do Estado, passa a ser um mero serviço disponível de acordo com sua competência e capacidade individualizada. Outra estratégia usada para ampliação do setor privado e ataque a uma educação de qualidade, foi a indissocialização do tripé ensino-pesquisa-extensão para a universidade, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996) que prever a possibilidade das “universidades especializadas por campo do saber”, como as faculdades, centros universitários e universidades, com e sem fins lucrativos.


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A universidade que deveria ter um papel emancipador e oferecer uma educação de qualidade, referenciada no trabalho e desenvolvimento humano, para todos e todas que nela queiram ingressar, hoje apresenta um recorte de classe, cor e gênero e passa ao longo dos anos por várias formas de incentivo ao ensino subordinado a lógica de mercado, que a transforma em verdadeiras linhas de produçãode bens e serviços educacionais para a fábrica de diplomas e certificados de formação simplificada e tecnicista. A crescente participação do capital estrangeiro na educação é outro fenômeno resultado de anos de vantagens do Estado para com essas instituições que geram uma grande desnacionalização do setor. Apenas quatro grupos financeiros controlam a grande maioria do setor: Anhanguera, Kroton Educacional, Estácio Participações e SEB. Um exemplo disso é a compra de uma das maiores universidades paulistas, a Anhembi-Morumbi pelo grupo norteamericano Laureate Education. Para conseguir comprar a universidade, o grupo recebeu do Banco Mundial U$ 150 milhões. Com essa ajuda, estes grupos têm entrado no Brasil aumentando a concentração e oligopolização da educação superior. A oligopolização chega a tal ponto, que o Laureate Education conta com um total de 750 mil estudantes distribuídos em 29 países e mais de 65 estabelecimentos de ensino. A demissão em massa de professores é uma marca dessa concentração. O maior grupo brasileiro, o Anhanguera Educacional, demitiu entre 2011 e 2012 cerca de 1500 docentes, sendo que em apenas uma instituição, a UNIBAN (SP) demitiu 50% do quadro de professores. Assim, vemos um grande investimento na educação privada em contraponto ao subfinaciamento da educação pública que se tornam nítidos com os programas governamentais de expansão do ensino superior como o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e Fundo de Financiamento Estudantil (FIES). É inegável que tais ações colocaram milhões de jovens nas universidades, mas vale a pena refletir sobre o real papel ele cumpre na formação desses conglomerados educacionais e incentivo ao ensino pago. O FIES, Fundo de Financiamento Estudantil, substitutivo em 1999 ao Crédito Educativo, CREDEC, atua como fonte de financiamento direto do setor publico para o privado através de


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empréstimo ao estudante para o pagamento da mensalidade. Desde 1999, injetou mais de 6 bilhões nestas universidades, alcançando menos de 600 mil estudantes. Com esse dinheiro seria possível construir e manter nos primeiros anos pelo menos doze novas universidades federais. Fortuna essa que somada ao investimento

do

PROUNI

e

do

financiamento

de

Bando

Nacional

de

Desenvolvimento Econômico e Social, contribui para o enriquecimento desses conglomerados. Além de criar um endividamento por um direito que não é garantido, a educação, há grande obscuridade no processo seletivo que demanda mais de sorte do que critério socioeconômico, tendo vista varias denuncias e insatisfações de como ele é realizado. Já o programa universidade para todos, PROUNI, atua como forma de fonte indireta de recurso publico ao setor privado através de isenções fiscais em troca de bolsas totais ou parciais, comprando vagas ociosas em instituições privadas de ensino superior para atender a demanda de estudantes de baixa renda que não foram contemplados pelo vestibular com uma vaga no ensino público. Com a implantação do programa, garantiu-se em lei a participação das universidades com fins lucrativos que ao aderir, passaram a ter isenção total no pagamento do Imposto de Renda (IR), da Contribuição Social sobre o Lucro Liquido (CSLL), da contribuição para o financiamento da Seguridade Social (COFINS) e do Programa de Integração Social (PIS). Que outro setor da economia conta com tantas isenções? Tais isenções fiscais que faz com que todos os anos um montante de dinheiro que, se investido na educação pública, poderia criar milhares de novas vagas nas universidades federais, vá parar no bolso dos empresários do ensino, sem levar em consideração a qualidade das vagas geradas. Só em 2010, cerca de 120 milhões foram destinados para ofertar bolsas integrais. Na verdade, vale lembrar que esse programa foi criado com todo apoio dos tubarões do ensino, que acumulavam grandes dificuldades financeiras por conta da inadimplência e da evasão, consequências naturais das altas mensalidades cobradas.


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Entre 2005 (quando foi editado) até o ano de 2012, o ProUni ofereceu 1,043 milhão de vagas, porém apenas 518,6 mil foram utilizadas. Estudos do Ministério da Educação apontam ainda um forte índice de evasão: 25% dos estudantes que ingressam no programa abandonam. Será dúvida quanto ao curso escolhido ou a ineficiência de políticas que garantem sua permanência na IES?

Afinal, o que é Assistência Estudantil? Em suma, ela compreende políticas públicas para enfrentar qualquer obstáculo que o estudante possa ter para a conclusão do seu curso. Nesse sentido, além das pautas fundamentais (e essenciais), como Bandejão (seja pela construção de mais restaurantes universitários ou pelo barateamento do preço da refeição), mais moradias estudantis, a luta por mais bolsas, essa política inclui questões tão importantes quanto: como o acesso à informação e ao conteúdo das aulas ministradas nas universidades (na prática, o acesso aos livros e textos dado pelos professores ou à internet) e a questão da saúde do aluno, como os Hospitais Universitários, Centro de Práticas Esportivas (clubes com piscina, quadras, academia) e assistência em tratamentos de problemas psicológicos, dentários, e a criação de creches. Considerando a assistência estudantil enquanto política social de caráter assistencial, que de acordo com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº 8.742/93, tem natureza não contributiva, se configurando, portanto como direito do cidadão e dever do Estado, que não estabelece condições ou contrapartidas no seu processamento. Todo esse blá blá de assistência estudantil nos remete às históricas lutas do movimento estudantil nas escolas públicas, porém essa uma dificuldade também muito encontrada nas instituições privadas que não garante sequer uma alimentação barata e de qualidade. Não basta somente a “cadeira” nasala de aula, é essencial a implementação de medidas que garantam nossa permanência na universidade e evite um índice de evasão tão alto. Não há dúvidas que o PROUNI e FIES permitiram uma parcela de jovens, anteriormente com muitas dificuldades de ingressar no ensino superior o seu


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acesso. No entanto, após todos esses anos de adoção e diversos levantamentos de entidades de educação e mesmo de órgãos do governo, se esse mesmo dinheiro da isenção fiscal fosse investido em educação pública garantindo o acesso para essas novas vagas com os mesmos critérios adotados pelo PROUNI, todos esses jovens atendidos pelo programa estariam hoje matriculados nas universidades federais, que contam com uma melhor infra-estrutura, laboratórios, pesquisa e extensão. Um dos pilares fundamentais para o Brasil se tornar um pais justo e soberano é a urgente priorização e investimento na educação, que não ocorrerá enquanto míseros 3,44% do Orçamento Geral da União for destinado a ela em contraponto a quase 43% para pagamento dos juros e amortizações da dívida externa. Assim formaremos milhares de médicos, engenheiros, professores, cientistas e profissionais capazes de pensar e construir o desenvolvimento do país do ponto de vista da população e não das grandes corporações e monopólios. A universidade faz parte da democratização do acesso ao conhecimento e é histórica a luta pelo livre acesso a ela. O movimento estudantil e a DENEM devem jogar um grande peso na mobilização e organização dos estudantes das escolas

pagas na defesa de

regulamentação

do

ensino

seus direitos,

privado

como

passando por uma

estratégia

de

desgaste

justa da

mercantilização da educação. Alcançando uma educação libertadora e de qualidade para todos, pintando a universidade de branco, negro, amarelo, índio. Pintando de povo!

Texto 4: Universidades Privadas – Regulamentação já! Grace Urrutia (FCMMG) – Coordenação de Políticas Educacionais da DENEM (CPE) - Gestão 2013/2014 *Texto com a contribuição de Katerine Oliveira – Vice Presidente da União Nacional dos estudantes 2014 pela Tese Rebele-se


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Há muito sabemos que a situação do ensino superior privado no Brasil não é boa. Principalmente após a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Financiamento Estudantil (FIES) pelo Governo Federal, as vagas nesse setor cresceram de maneira descontrolada. Essa expansão não foi acompanhada de uma ampliação da fiscalização da qualidade dos cursos por parte do Ministério da Educação (MEC), o que torna os estudantes reféns de aumentos abusivos de mensalidades, cobranças de taxas injustificáveis, falta de democracia e participação estudantil nos espaços deliberativos, inexistência de políticas efetivas de assistência que garantam a permanência estudantil na universidade. Além disso, os estudantes acabam por sofrer grande criminalização com o movimento estudantil. Todos esses problemas ocorrem devido a falta da regulamentação do ensino superior privado, a mercantilização e desnacionalização da educação brasileira e a impunidade dos responsáveis por esses absurdos. É preciso uma campanha e organização estudantil para a criação de instrumentos que nos protejam da avidez por lucro que a educação hoje demonstra. Há meses tramita o Projeto de Lei nº 4372/2012 que cria o Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (INSAES). Esse PL é a tentativa do governo de atender as reivindicações estudantis quanto à regulamentação do ensino pago, tendo em vista a anarquia que reina nesse setor e os lucros exorbitantes, muitas vezes ilegais. No entanto, se esse projeto quer atender a demanda de regulamentação como é pauta histórica dos estudantes, ele precisa ser discutido e modificado. O pior do PL é que ele não trata especificamente de algumas questões fundamentais: nada fala sobre aumento de mensalidades e taxas, ou seja, as instituições continuarão livres para extorquir os estudantes a seu bel-prazer, apesar de dizer que é papel do INSAES “avaliar” fusões, cisões e vendas das instituições; Não proíbe ou sequer regulamenta o ingresso de capital estrangeiro na educação paga; Não incide sobre a questão da estatização das instituições em crise financeira e/ou administrativa e não prevê participação estudantil.


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Precisamos de uma regulamentação que enfrente as principais contradições encontradas. Várias foram as formas de lutas feitas pelos estudantes contra esses abusos: assembléias, apitaços, manifestações, greves, audiências. Dentre eles, vale ressaltar a criação da CPI para algumas instituições pagas do Rio de Janeiro, que trabalhou durante dez meses ouvindo representantes de sindicatos, federações, reitores, representantes das mantenedoras e de entidades estudantis. O relatório apresentou denúncias de irregularidades no funcionamento de algumas universidades como venda de diplomas, apropriação indébita de recursos, convênio de IES filantrópicas com empresas de fins lucrativos (proibido por lei), ilegalidade na compra de imóveis utilizando-se da filantropia, sonegação de impostos, atrasos e falta de pagamentos aos professores e técnicosadministrativos, não pagamento de imposto sindical, INSS e FGTS, aumento abusivo de mensalidades em 64 instituições, convênios com prefeituras sem licitações, irregularidades em vendas e fusões de instituições. Uma das questões abordadas pela CPI é a qualificação acadêmica não levar em conta a saúde financeira das instituições, que deveria ser fiscalizada por auditores fiscais e não por professores. Enquanto isso, os lucros nas IES privadas bateram recordes nos últimos anos. Exemplo disso é a Kroton Educacional, que obteve um crescimento de 99% em 2012, e acaba de fundirse com a Anhanguera Educacional, transformando-se num dos maiores conglomerados “educacionais” do mundo. Agora, o grupo tem mais estudantes no Brasil que todas as universidades federais juntas! Outro investimento altamente lucrativo é o Ensino a Distância, que ,somente no Rio, teve um crescimento de 80% em 10 anos (5.359 vagas em 2001 e 930.179 vagas em 2010). O MEC mais uma vez falha na fiscalização das condições nas quais essas graduações são oferecidas. A maioria das universidades substitui disciplinas de cursos presenciais com aulas online, prejudicando o aproveitamento total do currículo na aprendizagem dos estudantes. O relatório aponta o investimento de dinheiro público nas IES privadas, através dos programas FIES e PROUNI, como fator fundamental para o aumento


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absurdo do lucro de algumas. A CPI foi importantíssima para o levantamento de provasda existência de todas essas irregularidades. A situação mais preocupante é da Universidade Gama Filho e do Centro Universitário da Cidade, instituições adquiridas pelo grupo Galileo Educacional, que vivem uma grave crise. Atrasos no pagamento dos salários de professores e funcionários, quatro campi fechados, greve estudantil, ocupação do prédio do Ministério do Trabalho pelos estudantes e da maior ocupação de uma reitoria da história de uma IES privada, mais de 70 dias. As instituições foram descredenciadas e a transferência assistida dos estudantes em realização. Vale ressaltar que a luta pela federalização de tais IES não foi feita, mas a ampla denuncia e mobilização estudantil contra os abusos dos monopólios educacionais é um importante passo para desgastar o processo mercadológico que a educação se encontra e cobrar pela responsabilização do Estado com esse direito.

Texto 5: Tese do Movimento Honestinas – Universidade pra quê? Parte da Tese do Movimento Honestinas da UNB ao CONUNE de 2013 “As lições fundamentais do primeiro ano de vida universitária ficaram indeléveis. (...) Uma concepção nova de ensino, ainda em caráter experimental, voltado para os reais problemas de nossa terra e nosso povo, com métodos democráticos – não paternalistas e autoritários, não expositivos e magistrais. A existência já efetiva de um real diálogo entre professor e aluno, sem a distância que o sistema catedrático colocava. Depois a imagem de tudo isto calcado por uma bota militar. A demissão coletiva de quase todos os professores, a parada por vários meses e o vazio do reinício.” Honestino Guimarães “Foi num ato de defesa própria que a ditadura dispersou aquele corpo de professores irredentos. Eles acreditavam que fôssemos perigosos. Gosto de pensar que éramos mesmo.” Darcy Ribeiro


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Não passamos duas horas das nossas vidas sem aprender, nem sem ensinar. Aprendemos e ensinamos com atitudes, com experiências novas, conversas, quando ouvimos gente mais velha e crianças, com viagens e pessoas que pensam diferente, quando dançamos, beijamos, quando abrimos mil abas na internet durante uma aula, e até mesmo, vejam só!, com as próprias aulas. O que estamos aprendendo e ensinando na universidade, hoje? Que o único espaço de aprendizado é uma sala de aula, onde nos enfiamos cada vez mais apertados para ouvir uma sumidade das galáxias nos repassar todo-oconhecimento-que-existe-no-universo? Que a universidade é uma fábrica de diplomas que serve para distinguir certas pessoas socialmente, e dizer que as outras são ignorantes e por isso não devem ser ouvidas, prestigiadas nem dignamente remuneradas? Que a única forma de aprender é enfiar a cara em livros empoeirados ou se virar nos trinta pra ler artigos de periódicos estrangeiros em inglês? (E se você não teve condições de aprender inglês, sorry, isso é problema seu... Universidade é só pra gente diferenciada, e não tem culpa de você querer invadir esse espaço). Sim, os livros têm muito a nos ensinar, e a gente também aprende em salas de aula e bibliotecas, principalmente quando há espaço e condições ambientais adequadas, que têm faltado. Para garanti-las, é urgente a ampliação significativa dos investimentos na educação pública gratuita, e lutamos pelos 10% do PIB para a educação já! Mas não basta reivindicar mais verbas, porém, se ao mesmo tempo não lutamos também pela democratização da universidade brasileira em sua estrutura e em seu projeto pedagógico, perspectiva de ciência, cultura e saber. Não aceitamos ser apenas another brick in the wall, outro parafuso moldado, inserido e apertado em máquinas que não escolhemos operar. Clamamos à ruptura com o projeto de mercantilização da educação e de tecnoburocratização da ciência que vem sendo implementado pelos sucessivos governos nas últimas váaaaaaarias décadas. Superamos uma ditadura escancarada, mas ainda hoje precisamos escancarar e enterrar o seu legado autoritário e fechado à participação e à emancipação social. Por isso, somos a luta de Honestino Guimarães e suas companheiras contra um passado que ainda se faz presente por meio da indiferença da Universidade às lutas populares, da ilusão ideológica do conhecimento despolitizado, da elitização e da repressão velada à real democracia. Somos o espírito de rebeldia criativa da juventude latino-americana. Somos o movimento universitário de Córdoba, a memória da efervescente rebelião estudantil de 1918 contra o autoritarismo e o elitismo da educação superior, em defesa da universidade pública, gratuita, laica, autônoma, popular, extensionista e comprometida com a superação das injustiças sociais. Com Córdoba e Honestino,


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assumimos, como movimento estudantil, a postura de sujeito produtor da universidade democrática, como parte da missão de democratizar radicalmente, junto a outros sujeitos políticos insurgentes, a sociedade brasileira e latinoamericana. Cada estudante que se rebela contra a educação como processo de dominação de si e das outras contribui para forjar não apenas uma universidade democrática e uma cultura participativa, mas também a libertação social com a qual sonhamos. Esse movimento de tomar o controle da universidade nas nossas mãos só pode realizar-se plenamente se for feito em conjunto com servidoras/es e professoras/es, mas também com os setores subalternos da sociedade, hoje invisibilizados e dominados. Só assim pode ser parte da construção de uma universidade comprometida com as lutas por um Brasil que pare de queimar índias, negras, trabalhadoras, homossexuais como combustível de seu “progresso”. Para além de espasmos de solidariedade a outros movimentos, convocamos todo o movimento estudantil a questionar(-se): a Universidade tem tomado o genocídios dos povos indígenas e da juventude negra, por exemplo, como problemas centrais de sua pauta cotidiana de ensino-pesquisa-extensão, ou tem se omitido? Como os currículos dos nossos diversos cursos contemplam essa questão? Produzimos conhecimento sistematicamente com esses grupos, como estudantes, ou estamos enclausurados na bolha de elitismo, colonização e segregação espacial, epistemológica, cultural e política da universidade? A gente quer um movimento estudantil que volte a ser subversivo e transformador não apenas na rua e no palanque, mas na própria práxis cotidiana de estudantes. Para isso, o nosso grande norte (ou sul...) é a extensão, sob a perspectiva da educação popular e da co-pesquisa com comunidades e movimentos sociais. Extensão não é assistencialismo, nem é mera difusão de conhecimentos produzidos na universidade; é servir à integração dos grupos sociais marginalizados à produção de certos conhecimentos e à formação de profissionais realizadxs na universidade. As cotas para negros/as, indígenas, estudantes de baixa renda e provenientes de escolas públicas foram um avanço importante, conquistado pela luta dos setores oprimidos. Porém, não basta garantir sua presença de maneira compensatória, marginal ao projeto de universidade. É preciso ampliar os canais para a sua presença como produtores de conhecimento nas universidades brasileiras. Queremos uma Universidade-Laboratório: de novas práticas e mentalidades políticas, pedagógicas, artísticas e científicas, da educação que queremos, da sociedade com que sonhamos. Uma Universidade em que a arte, a


47 literatura, a cor, a diversidade, a rebeldia tenham espaço – quando a criatividade seja objetivo pedagógico, e não rejeitos de uma pedagogia morta. Esse era o sonho de Honestino Guimarães. Tentaram destruí-lo debaixo de botinas e tanques. Tentaram e tentaram, de novo e de novo, mas não conseguiram, porque "Podem nos prender, podem nos matar, Mas um dia voltaremos, e seremos milhões" Honestino Guimarães O sonho vive, e o Movimento Honestinas convida você a não deixar o sonho morrer. A sonhar junto com a gente o sonho ousado de uma universidade que faça todas e todos também poderem sonhar. De uma univer(cidade) cooperativa, solidária, popular, que ecoe os sonhos da sociedade, em especial das exploradas e oprimidas do nosso povo. Não quero mais saber da universidade que não é libertação!

Universidade pra quem? A história da Educação é uma história de privilégio. Se a gente pensar bem, a exclusão é um processo decisivo pra quem tem acesso à Universidade, porque faz com que o conhecimento científico, acadêmico, se torne cada vez mais legítimo (já que é tão difícil ter acesso ao *processo mágico* de construção desse saber-verdade). As conseqüências disso são aquelas ideias socialmente difundidas que beneficiam sempre mais as elites: só elas podem “produzir verdade”, porque só elas tem representação na academia. A Educação é, então, um direito que foi negado ao povo, historicamente, para manter o controle de uma parte da população sobre a produção de ~conhecimento legítimo~. Hoje a gente vê que as classes sociais que são maioria na população são, ao contrário, minoria na Universidade. Se só as “elites educadas” podem ocupar os principais cargos da condução política do país, que exigem diploma ou prestígio, a formulação de políticas está concentrada nas mãos de uma parte (uma pequena parte!) da população. E time que tá ganhando não se mexe! É assim que essa minoria privilegiada, na forma de Estado, segue administrando pela manutenção da estrutura social – e contra a democratização da universidade e o


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time de quem tá perdendo. Reproduza essa lógica muitas vezes e tcharam! aqui estamos no Brasil de 2013, onde a educação continua sendo privilégio, e privilégio de classe. Só que educação deveria ser direito de todxs, certo? Por isso o Movimento Honestinas acredita que a expansão universitária (e uma política de assistência estudantil condizente) é fun-da-men-tal para a democratização da universidade, da educação, da ciência e do Brasil! Mas como essa expansão tem sido conduzida hoje, por um governo que administra a Educação segundo seu projeto de aliança de classes? Pra começar, como falar em democratização de cima pra baixo, sem debate e sem possibilidade de questionamento ou proposição? Como combater a desigualdade defendendo uma Educação diferente, sem acesso pleno à pesquisa, extensão, organização política, vivência etc., pra população que sempre foi excluída? Pois é: é esse “meio-acesso” que as políticas do REUNI e PROUNI ~proporcionam~, já que a gente pode ver a diferença entre a vida universitária de quem é pobre e de quem é de classe média. Essa diferença é estimulada pelo governo quando as/os estudantes não podem acumular bolsas de caráter sócio-econômico com bolsas acadêmicas de pesquisa e extensão; a gente vê o descaso com os RU’s e Casas do Estudante, e sabemos quem precisa mais deles; é questionável ainda que muitas das universidades privadas não cumpram os parâmetros educacionais nacionalmente estabelecidos, prejudicando a formação da/o estudante do PROUNI. Defendemos 2 bilhões para o PNAES já! Mas por tudo isso, defendemos com mais gravidade a revisão dessas tais políticas de ~democratização~ da Universidade brasileira, que na verdade representam uma expansão conservadora que não é (não mesmo!) a revolução educacional com que as Honestinas sonham. Porque essa “nova” forma de enxergar a educação, como serviço, só faz criar aquela visão assistencialista e limitada das políticas de acesso e permanência... Ao governo, quando conveniente, cabe dar uma ajudinha (oi?) pra quem “não pode”? A gente acredita que o papel do governo não é ajudar-por-ajudar algumas das exceções que superam o acesso excludente e entram na Universidade: é, mais do que isso, se comprometer a transformar toda essa estrutura social de desigualdade. Pra isso, a gente tem que se posicionar contra o tal do conservadorismo que se expressa hoje avesso às cotas, idealizando a meritocracia, põe a segurança do patrimônio em primeiro lugar e a extensão popular em último. O conservadorismo só pode ser receptivo à assistência estudantil como caridade: ele treme diante possibilidade de democratização da Universidade (e da sociedade!), na recusa em abrir mão de privilégios políticos, econômicos e culturais. Contrárias/os a esse projeto de manutenção, a gente do Honestinas compreende a democratização da universidade como parte de um projeto popular beeeeem mais amplo de sociedade. E esse projeto nega a meritocracia como forma de legitimar essas estruturas históricas de privilégio da elite sobre a educação. Porque nesse contexto, o discurso da meritocracia serve pra que a gente pense que a superação individual é a superação das limitações da sociedade. Mas a


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gente não se ilude com essa: queremos uma Universidade democrática e democratizante! O Movimento Honestinas luta sim pela assistência que viabilize as políticas afirmativas de acesso e combata a evasão; acreditamos sim na assistência que promova excelência acadêmica, pelo fim do “meio acesso” segregador e pela garantia da formação plena para todas as universitárias e universitários. Mas temos que pensar que, mais que isso, a democratização não é só garantia de acesso que beneficie o individuo em situação de vulnerabilidade: é parte do nosso projeto revolucionar a composição social da universidade, pra que ela seja democrática e popular. Deve ser parte do nosso projeto enquanto movimento estudantil de esquerda revolucionar o conhecimento e a educação, pra que deixem de ser produzidos com parâmetros elitistas e colonizados. Precisamos da sociedade brasileira na universidade e vice-versa, pra que a sociedade brasileira, inteira, pense os problemas do Brasil. Mas cadê o povo brasileiro no meu campus, pensando os seus próprios problemas, não só recebendo, mas criando conhecimento critico? “Precisamos permitir que todas possam se identificar com a Universidade de Brasília e, mais, fazê-la, sê-la, existir nela.” Programa do Movimento Honestinas, 2012 Para além da lógica excludente de segregação segundo a classe sócioeconômica, a assistência estudantil deve ser referenciada como parte da política universal que é (ou deveria ser) a Educação no Brasil. Fato que a igualdade deve ser promovida pelo combate às desigualdades, e as/os estudantes em vulnerabilidade social devem ter direito a políticas específicas que garantam sua permanência e vivência plena na Universidade. Mas o principio de Universidade Pública deve ser pensado assim como o da Saúde Pública: não podem ser algumas/alguns que pagam por ela, enquanto outras/os são subsidiadas/os pelo Estado. O conservadorismo vive aterrorizado com a possibilidade de mudança, mas se a política é pública e universal, ninguém deve pagar por ela! Para isso, precisamos garantir que a taxação (que deve ser feita sobre renda e patrimônio, não sobre o uso do serviço, orientada pela isonomia) consiga prover os recursos necessários e justos para a Educação. Desse jeito, defendemos a universalidade por princípio e por resultados. Isso porque sonhamos com uma Universidade onde todxs estudantes possam fazer extensão, mesmo que a família (e a $ajuda$ da família) seja contrária a ~essa perda de tempo~; onde nenhum/a estudante deixe de fazer pesquisa de gênero por sofrer ainda mais uma pressão (financeira, no caso) pra não sair do armário; onde nenhum/a caloura/o, de classe média ou não, precise


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ser já enquadrada/o pela lógica de mercado, condicionando sua formação por influência das demandas das empresas. A autonomia da Universidade e da produção acadêmica depende, ainda que indiretamente, do financiamento dxs estudantes. Além disso, separar as/os estudantes entre “ric@s” e “pobres” pode funcionar pra agravar ainda mais a disparidade. É claro que a consideração dessa diferença se mostra necessária na busca da isonomia de fato; mas é também verdade que os e as estudantes beneficiárias dos programas da assistência estudantil são várias vezes guetificadas pela sua ~condição especial~ (ainda mais nas universidades mais elitizadas!), de um jeito que as suas movimentações são invisibilizadas por uma pulverização mesmo da organização estudantil. As bolsas atrasam, as casas do estudante estão caindo aos pedaços, a vida das pessoas é afetada por todo tipo de problema da concentração burocrática, e a maioria das estudantes nem faz idéia do que seja isso... Aí fica difícil ampliar a solidariedade na luta e pressionar reitorias e governos se a maior parte das/os estudantes não é afetada pela ineficácia dos programas de assistência. É´ como chegar num hospital do SUS e a equipe decidir se vai cobrar ou não sua consulta ou exame com base na sua renda, ao invés de fazer essa diferenciação direto nos impostos: dá pra imaginar como todo mundo seria atendido igualzinho, né? Sóquenão, isso já acontece nas clínicas particulares e a gente não quer pras nossas universidades! Educação é política pública U-NI-VER-SAL! Também por isso, assistência para todxs! Então o Movimento Honestinas não cede seus sonhos: assistência estudantil para todxs estudantes! Essa é uma luta que vemos lá no horizonte porque, mesmo que distante das nossas possibilidades atuais de transformação da educação universitária, esse é um avanço muito importante pra consolidação da Universidade que a gente quer. No momento certo, a universalização do acesso e da assistência estudantil vai aparecer como uma reivindicação central pra esquerda. Porque o sonho é isso mesmo, é tipo o sol lá no horizonte que não deixa a gente esquecer o caminho certo, mesmo enquanto a gente vai construindo a luta no pequenininho, em cada meta, cada transformação, a cada passo da estrada. Enquanto Movimento Estudantil, nossos sonhos são luta nas reivindicações que apresentamos. Mas o tamanho dos nossos sonhos não cabe hoje nesse papel: vemos no horizonte uma Universidade Universal, onde o vestibular e a tal vulnerabilidade econômica são só uma lembrança da época em que a Educação era um privilégio. Sem ceder nossos sonhos, gira o mundo, Honestinas!


51 “É fundamental ter em mente, ainda, que as desigualdades econômicas não são os únicos empecilhos ao aproveitamento da universidade de modo pleno e em igualdade de condições. Os dados têm mostrado que, muitas vezes, as razões para a evasão e para as dificuldades acadêmicas têm razões psíquicas, relacionadas, por exemplo, ao enfrentamento de preconceitos, à falta de autoestima e de interesse por parte das/dos estudantes. Essas razões psíquicas são condicionadas por processos sociais e pela estrutura pedagógica da universidade: por um lado, as opressões geradas pelo racismo, machismo, homofobia e preconceito social e regional impedem que a/o estudante sinta-se à vontade e confiante no ambiente universitário; por outro lado, a pouca abertura de professoras/es e da estrutura de poder da universidade à participação estudantil cria currículos e aulas desconectados dos interesses e anseios da maioria das/dos estudantes. As políticas pedagógica e de combate às opressões deste programa, assim, também devem ser entendidas como partes integradas às políticas de acesso e permanência.” Programa do Movimento Honestinas, 2012

Universidade de quem? Opressão é um termo transmórfico. Ora é ação, ora é ausência. Ora é substantivo, ora é adjetivo; mas nada impede que seja, também, advérbio. Opressão pode ser sufoco, sufoco que transborda em choro – angústias sem nome, mas tão compartilhadas nos espaços de exclusão. Opressão é a dialética dos semelhantes desconsiderados como tal; é fetiche: instrumento de coisificação do outro e de nós. Oprimidas somos todas que dançamos no tombadilho, sob o tinir dos ferros e estalar do açoite, legião de seres esquecidos pela noite, (con)fundidos em um só. Somos as negras mulheres madrugantes no transporte público a buscar o leite de todo dia. Somos as magras crianças, cujas bocas pretas racham o sofrimento da fome. Somos as moças nuas, violentadas e espantadas no turbilhão indigesto de um espectro monstruoso: machismo. Somos o amor preso nos elos de uma só cadeia, multidão faminta que, mesmo contra a ventania, não-cambaleia, na luta por um horizonte- horizontal. Somos a cara-a-tapa no combate de todo dia, o delírio consciente, corações sem raiva; somos o recrudescimento da coragem. Somos o branco que emerge tão puro sobre o mar; somos o olhar que ao fitar o céu que se desdobra, desmanda o capitão que manobra – somos a flor a quebrantar o rijo chicote do marinheiro. Oprimir é ignorar o locus de cada ser; é condensar a trama social em um bloco assimétrico de fios feito fôssemos linhas pré-dispostas à redução da forma.


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Oprimir é hierarquizar o gênero, a sexualidade, os caminhos. É fantasiar os trejeitos e futuros e aplicá-los indistintamente, reproduzi-los (in)conscientemente. Nós, Honestinas, por isso, recusamos a inércia do silêncio que perpetua a opressão; assumimos o papel da luta e da voz; transcendemos ao outro: ocupamos a pele que é sua, dele, dela, nossa. Somos, assim, também oprimidas; somos, assim, a recusa definitiva do opressor que reside (e resiste) em todas nós. Somos presente e memória num desenho livre da dogmática das cores, dos símbolos desbotados, da moral contraditória e discriminatória. Somos a identidade que desbrava a margem, sob o Sol dos Trópicos a colorir a pele já colorida pela melanina da diferença. Acreditamos e defendemos que ser livre repousa justamente na inquieta (e genial) maneira de ser o que se é (e o que se quer) e poder, embora a sobra ou falta de arestas, ser visto por ângulos convertidos em uma só forma geométrica: a da pessoa humana. Entre a vigília e o son(h)o, a luta. A opressão está presente em todos os âmbitos da vida social (da nossa vida!). Ela é presente e contundente, antes, durante e depois da Universidade. A exclusão aos espaços de poder e produção de conhecimento é auto-reprodutora, à medida que torna mais legítima a voz daquelas em posição dominante dentro da sociedade. Este processo é História no Brasil, especialmente sob a perspectiva das classes sociais. Mas alguns grupos de pessoas (porque isso é problema sociológico, não do indivíduo) estão naturalizados no imaginário geral como pertencendo a ~posições inferiores~, retraídas ou marginalizadas, também conforme a cor da pele, o gênero, a sexualidade, as condições físicas, enfim, conforme os padrões de opressão arraigados na sociedade brasileira. Muitas vezes as opressões são pensadas como uma coisa da esfera do outro, do ultrapassado, do absurdo, que só existe na forma de agressão física, ou como subproduto umas das outras, ou sob perspectiva individualizante de meritocracia (como se a superação individual fosse a superação das limitações e privilégios estruturantes da sociedade). “Mas pera aí, a Universidade tem aquelas tais de cotas raciais, num é? Então qual foi desse papo? E aliás, a capacidade no vestibular depende da cor da pele?” É claro que os indivíduos não se diferenciam naturalmente conforme sua ascendência étnica! Mas existe um processo social e cultural de inferiorização e periferização de negras e índias, por padrões históricos cujas estruturas, em grande parte, se mantiveram. Esta opressão está presente na manutenção, pela mídia, de padrões de beleza europeizados; tá nas piadas de bar; está no mito da hipersexualização aplicado à mulher não-branca, resquício da cultura de estupro que deu origem à ~famigerada~ miscigenação brasileira; está no tratamento diferente que as negras, pardas e indígenas recebem independentemente de suas classes sociais (não que justificasse...); está na concessão de privilégios às pessoas brancas; está na estrutura histórica que mantém as negras e as indígenas com níveis mais baixos de renda e escolaridade e com menor grau de contato e socialização com o que se tem como cultura brasileira “oficial”. Por isso, as cotas raciais devem ser defendidas e garantidas, e não dissolvidas em meio outros tipos de políticas afirmativas! É necessário que se informe o que elas são, como funcionam, qual seu motivo de implementação, o


53 que se pretende combater e o porquê. Que elas sejam mantidas não “só” por reparação histórica, mas por excelência acadêmica; pelo protagonismo na pesquisa de suas próprias condições, por perspectivas de diferentes socializações, para impedir a colonização da intelectualidade. É necessário, ainda, que o mecanismo de efetivação desta política de acesso sejam definidos em articulação com os Movimentos Negros. “Ok, pode ser, mas a Universidade tá cheia de mulher e de homossexual, certo?” Certo, e ainda bem, graças a muita, muita luta! Mas ela não para por aí, na “mera” presença destas pessoas em ambiente universitário e em espaços de poder. Na medida em que o (antes) invisível assume a coragem de ser o que é, e esse processo de auto-reconhecimento se torna disponível ao olhar externo, há uma ruptura com os paradigmas tradicionais e aflora a necessidade do diálogo, respeito e alteridade entre os grupos que convivem e dividem o mesmo espaço. Uma sociedade patriarcal, enraizada de machismo e de homofobia, não só dificulta a saída do armário, como também retarda (e impede) a livre construção e exercício da identidade e individualidade de cada um/a. O direito de ser quem somos é bloqueado pela violência que se personifica no olhar de repúdio; na determinação de papéis sociais que orienta até mesmo nossas escolhas profissionais; na mão que roxeia o corpo; na recusa diária que gera evasão e prejudica o rendimento e o empoderamento; no assédio, potencializado pela hierarquia limitadora da Universidade; na linguagem que agride em apelidos e nomes insossos; no “estupro corretivo”; na diminuição, caricaturização e rejeição da transsexualidade; na falta de estrutura que culpabiliza as mães em vez de promover sua autonomia; na proibição de usufruir os espaços de maneira plena. Por tudo isso, a gente tem é que abandonar o mito da igualdade formal e assumir a (des)igualdade substantiva como ponto de partida para a construção de uma sociedade mais justa, escancaradamente colorida e horizontal. Queremos garantir a utilização de nome social por estudantes, servidorxs e professorxs transexuais e a continuidade e expansão dos serviços que hoje são prestados pelos HU’s à comunidade LGBTTT, especialmente em vista da atuação da EBSESRH; criar creches para alunas, professoras e servidoras (e para alunos, professores e servidores, certo?!); criar órgãos, internos e externos à Universidade, para recebimento de denúncias e acompanhamento de casos de violência; e remodelar os trotes, combatendo o trote homofóbico, machista e racista, a fim de que o trote possa ser um instrumento inicial de modificação do olhar do calouro e de inclusão. Existem outras opressões, tão naturalizadas e invisibilizadas que não costumam ser sequer problematizadas, são secundarizadas e vistas como alguma forma de caridade. “Como é que é? Deficientes? Já não é o bastante colocarem vaga de trânsito pra eles?” Não! Pessoas com deficiência são todas aquelas que tenham adquirido, ao longo da vida ou desde a concepção, alguma característica, física ou cognitiva, às quais a estrutura de nossa sociedade, de forma geral, ainda é deficiente em adaptações. Pessoas que, durante a vida, passam por processos de inferiorização e desincentivo à participação de ambientes públicos, e, por isso,


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são esquecidas pelos interesses públicos, e é naturalizado o seu nãopertencimento a eles. “Necessidades especiais”, todas nós temos. Mas, para algumas adaptações, a sociedade “não está preparada”. Será mesmo? Mais do que adaptar a deficiente à sociedade, é preciso adaptar a sociedade à deficiente; afinal, essas adaptações só são necessárias porque os processos e espaços não são pensados por deficientes, nem para deficientes. É necessário então que se incentive (possibilitar já é um começo, né, reitorias?) a participação e vivência destas pessoas tanto nos meios estudantis quanto profissionais, culturais, artísticos e esportivos para não limitar sua vida em sociedade, sua autonomia e suas particularidades. Queremos garantidas condições (ao menos) igualitárias de ingresso na Universidade, com apoio institucional específico, com tecnologias assistivas, acessibilidade física e cognitiva, orientação a funcionárias e contratação de intérpretes. Somos pelo direito a uma escolaridade não padronizada, nas várias possibilidades modelos de ensino; pela opção entre escolas mistas ou de atendimento exclusivo a pessoas com necessidades especiais; e pelo direito de todas brasileiras de aprenderem suas duas línguas oficiais: português e LIBRAS; e pela cidadania plena das pessoas com todos os diferentes tipos de deficiência! As instituições de ensino, embora ambiente de sujeitos cognoscentes, têm vestido faz tempo os farrapos calados de mera reprodução das estruturas dominantes e conservadoras da sociedade. Os conflitos e as diferenças são relegados a pinturas nos corredores cobertas por cartazes quaisquer. Vigora a política da mídia; o debate só se introduz depois do consumo do trágico: quantas outras alunas terão de ser agredidas no estacionamento para que se combata a lesbofobia? Quantxs travestis terão de ser assassinadxs para que se encare o préconceito? Qual o abismo de desrespeito e violência que nos deixaremos cair? É nesse contexto que a gente visualiza a necessidade de adotar uma postura preventiva e combativa. É preciso promover o acesso à informação, a divulgação de meios e instituições que atuam tanto na repressão quanto na reparação nesses processos de exclusão; dialogar com a sociedade civil e acadêmica com muito ato e muita intervenção, eventos culturais, palestras e oficinas; criar órgãos internos, formados por discentes, docentes, servidorxs e movimentos sociais, responsáveis por receber denúncias, desenvolver políticas de inclusão dentro e fora da Universidade, para acompanhamento, inclusive psicológico, de casos de violência; desconstruir o uso da linguagem heteronormativa por meio da utilização da linguagem inclusiva nos “atos escritos” da Universidade. A gente precisa de esforço ativo pela abertura da sociedade atual, em seus mais diversos âmbitos, para a discussão das opressões, assim como são necessárias políticas públicas e leis que garantam direitos iguais e também direitos reparatórios àquelxs que estejam em situação de exclusão e opressão social!


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Texto 6: A PRÁTICA EUROCENTRISMO, AO UNIVERSIDADE

DA EXTENSÃO COMO RESISTÊNCIA RACISMO E À MERCANTILIZAÇÃO

AO DA

José Jorge de Carvalho – Professor da UnB

1. Questões iniciais Prezados colegas da UFRGS, Realmente, confesso que surpreendeu-me este convite porque, apesar de ter amigos queridos na Extensão em Brasília, esta não é minha área de atuação na universidade. Por isso peço-lhes que tomem estas reflexões como contribuições trazidas para uma reunião de trabalho - um diálogo de pautas e temas, que neste momento me preocupam e fica em aberto em que posso contribuir com elas para a discussão na UFRGS. Pelo que me informou o professor Fernando Meirelles, a UFRGS já conta com uma grande experiência de Extensão, que pode inclusive exportar para outras universidades. Portanto, não se trata aqui de pensar a partir do zero, mas em ampliar o leque de intervenções, na tentativa de sacudir, talvez, uma atitude ainda muito fechada das nossas universidades públicas. Espero apresentar alguns argumentos que ajudem a entender as razões desse fechamento e oferecer algumas alternativas de ampliação. Neste momento, duas questões me preocupam principalmente sobre o perfil das nossas universidades. Em primeiro lugar, a questão da inclusão social, étnica e racial, tema que nós silenciamos ferozmente ao longo de muitas décadas, a ponto de tornar-se praticamente inexistente. Ressalto o tema da inclusão porque ele toca diretamente o que tem sido o meu esforço diário ao longo dos últimos cinco anos: a luta pelas ações afirmativas para negros e índios no ensino superior brasileiro. O segundo tema que me preocupa particularmente é a falta de abertura das universidades para os saberes não europeus, bem assim como para os saberes europeus ainda não legitimados pela nossa academia. Desde que ingressei como professor na Universidade de Brasília, trazendo uma formação eclética adquirida na Venezuela e na Irlanda do Norte que me permitia incursões


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em várias áreas sem destruir minhas especializações, as expectativas que eu tinha em relação ao cosmopolitismo do saber na universidade brasileira não se cumpriram jamais. E cada vez mais me parece uma dissonância inexplicável, crônica e indefensável, o eurocentrismo quase cego que é perpetuado no nosso meio sem ser submetido à menor crítica. Essas duas questões se combinam, obviamente, na medida em que fazem parte de uma mesma tentativa de renovar os saberes, de reabrir a imaginação bloqueada e desvalorizada e de deselitizar, social, étnica e racialmente, as nossas universidades, todas elas escandalosamente brancas e de classe média. A Extensão pode ser, neste sentido, um lugar chave na tentativa de chacoalhar esses dois elementos difíceis, primeiro, ao conectar-se com a sociedade; e logo, ao trazer os agentes sociais excluídos para dentro da universidade, superando assim uma resistência que ela mostrado ao longo de toda a sua história no século vinte. Nossa forma principal de relacionamento com a sociedade sempre foi objetificadora. Afirmo-o inclusive porque a própria disciplina com que sou identificado, a Antropologia, que em princípio alega exercitar um diálogo com as chamadas sociedades “nativas”, continua trazendo seus vários “outros” para perto de nós apenas como objetos de estudo. E esta não é, na verdade, a maneira de trazê-los ao nosso meio como iguais, mas apenas de observá-los para fins científicos. A consciência dessa objetificação tem crescido tanto ultimamente entre os excluídos que em uma discussão sobre cotas, no Rio de Janeiro em 2003, um estudante disse a um professor que era contra as cotas: “O senhor está com medo de que o micróbio assuma o microscópio?” Impressionante! Agora o micróbio vai assumir o microscópio! Já não vai ser mais o objeto, apenas, do olhar escrutinador e dissecante do professor. E isso conduz a um processo muito mais complicado de equacionar, que é construir os parâmetros para a legitimação de novos saberes - no caso, os saberes que os nativos, até agora objetificados, escolham como importantes para fazer parte do cânon acadêmico. Promover um envolvimento de mão dupla com as comunidades


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excluídas é o caminho para se propor esses novos saberes, até agora tidos como não-acadêmicos e torná-los legítimos. E exatamente o quê vamos construir com esses novos saberes que passarão a circular agora como legítimos? É esta, em síntese, a base dos questionamentos que trago aqui para sua consideração. Curiosamente, essa parte da revisão dos saberes, que deveria ser central para uma reorientação de sentido das nossas instituições de ensino superior, não parece constar da pauta da atual reforma universitária. A partir da leitura das posições defendidas pelo Ministério da Educação e rebatidas agora pela Associação Nacional dos Docentes e pela UNE, entendo que a Reforma se baseia em três eixos principais. O primeiro diz respeito ao financiamento, fonte de grande polêmica: se público, se privado, ou se misto. O segundo eixo diz respeito à autonomia das universidades e não incide tão significativamente sobre nosso tema. E o terceiro se refere à questão da inclusão, estando o debate concentrado principalmente na definição apenas social do beneficiado. Até onde sei, portanto, o conteúdo mesmo do saber acadêmico não está sendo colocado em pauta; os atores da reforma agem como se não existissem problemas com os paradigmas de ciência e arte atualmente vigentes. Enfim, se não ampliarmos esse debate para discutir os conteúdos que reproduzimos na universidade, podemos imaginar o perfil da universidade pública brasileira após uma reforma tida como radical e desestabilizadora: mais ou menos autônoma, com estudantes da escola pública; mais ou menos mista, mais ou menos privada; e, ao mesmo tempo perpetuando, como faz há já um século, o mesmo eurocentrismo e a mesma objetificação do outro. Para oferecer uma resposta mais libertária, ou pelo menos para pensar em uma atitude mais radical, a partir de uma lógica mais ampla e crítica do capital sobre a situação das universidades hoje, proponho utilizar como referência um artigo de Robert Kurz, pensador alemão do Grupo Krisis, publicado recentemente na Folha de São Paulo. Seu texto, original e corajoso, discorre sobre o que chama de efeito colateral da educação fantasma, expressão metafórica da crise da educação,


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tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo. Gostaria, então, de propor uma síntese entre o raciocínio de Kurz e outras evidências que lhes apresento para analisar a situação da Extensão a partirda trajetória histórica do ensino superior no Ocidente moderno.

2. A crise da nossa academia eurocêntrica As universidades públicas brasileiras são herdeiras, em sua autorepresentação, das universidades européias do princípio do século XIX, principalmente das portuguesas, francesas e alemãs. Kurz argumenta que na maioria dos cursos desse modelo clássico de universidade havia uma forte divisão qualitativa e ideológica. De um lado estavam os cursos técnicos, destinados exclusivamente para as classes trabalhadoras mais qualificadas da revolução industrial; e do outro, aqueles cursos que seriam destinados exclusivamente para a formação da classe dominante, que poderia se dar ao luxo de introjetar um saber não-prático, sustentado em si mesmo. Enquanto o saber técnico seria meramente utilitário, concebido e ensinado como exterior e colado às necessidades de reprodução da vida material, o outro serviria para formar um indivíduo com um mundo interno supostamente mais rico. Essa dicotomia entre um saber aplicado à indústria, à reprodução da vida, à acumulação do capital; e o saber que formaria o caráter da classe burguesa (e cujo modelo foi a formação aristocrática), foi levada adiante sem rupturas por dois séculos e sói ser expressa, até hoje, na oposição entre os cursos de Ciências Exatas, por um lado, e os de Humanidades, por outro, que ainda é a nossa idéia-mestra organizadora do saber universitário. Ou, para usar a elegante expressão de Pascal, a oposição entre o esprit géométrique e o esprit de finesse. Segundo Robert Kurz assistimos, no momento presente, a um colapso desse sistema educativo por vários lados, porém sobre tudo em consequência do ímpeto suicida do capitalismo neoliberal de nossos dias. Na verdade, seu argumento central é que esse modelo de ensino não se sustentará por mais


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tempo, visto que o capital não quer mais continuar financiando esse saber para todos. Ou seja, o ensino tende a se reduzir a zero pelo seu lado de formação humanizadora; e se tornará ainda mais estreito e simplificador pelo lado da formação técnica. Por um lado, o curso universitário foi ficando cada vez mais caro para os estados; por outro lado, as empresas pressionam cada vez mais para não pagar os impostos que permitiriam a reprodução do ensino superior gratuito e universalizado. Feito o diagnóstico com precisão, todas as alternativas apontadas por Kurz são impressionantemente negativas. Uma alternativa sedutora para os nossos governantes do Terceiro Mundo seria privatizar de vez o ensino superior pleno e integrado. A partir daí, quem quiser obter esse saber especial terá que pagar por ele. Segundo a visão de muitos colegas, este é o espectro que ronda a atual proposta de reforma universitária. Uma outra saída seria elitizar de fato as universidades, na linha do que já acontece nos Estados Unidos: ela pode até continuar sendo pública, porém somente uma pequena elite vai poder jogar esse jogo sofisticado de estar além do saber técnico e absorver um saber amplo, a atualização da Bildung humanizadora e desalienante do século XIX. Enfim, apenas uns poucos eleitos terão o privilégio de estudar o que quiserem de acordo com a sua “vocação”, ou com o seu chamado interno; a maioria terá que se satisfazer com uma formação mais rasa e limitada (ou aplicada, digamos). Resta ainda uma terceira possibilidade, igualmente terrível (e temo que talvez esteja também no horizonte da reforma atualmente em curso): que cheguemos a desenvolver uma atitude de rendição em relação ao caráter prático do mercado, de modo que a universidade – pública ou privada, indistintamente – terá todo o seu saber, toda a sua orientação cognitiva dirigida para um chamado desenvolvimento econômico, isto é, para algum tipo de projeto imediatista de interesse exclusivo do grande capital que dá as ordens na nossa política. E aí os temas de ensino e pesquisa poderão ser definidos fora das universidades - pela Câmara dos Deputados, pelos Senadores, por um conjunto


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de membros do executivo, etc. Todos, na verdade, como acaba de explicar István Mészáros na sua conferência do Fórum Mundial de Educação em Porto Alegre, apenas obedecendo à lógica desumanizante do capital globalizado. Essa proposta significaria colocar toda a sociedade – e em particular todos os estudantes e professores universitários – a reboque desse projeto de economia empresarial. Faremos aquilo que a elite política defina como sendo o seu projeto: desenvolvimentista para os ricos, atado ao FMI para (des)equilibrar as contas da nação, fazer crescer perenemente o bolo do PIB sem jamais distribui-lo. Diante desses três cenários apocalípticos, Robert Kurz (e também István Mészáros) propõem a destruição desse totalitarismo econômico a escala mundial – somente assim salvaremos a educação humanizadora, porque somente assim poderemos salvar a humanidade. Podemos agora tentar unir essa radiografia do ensino superior sob a égide do capital monopolista globalizado com a discussão sobre Extensão que aqui nos convoca. Uma das características mais dramáticas do processo educativo dos últimos dois séculos é o seu extremo disciplinamento, antes parecido com o regime de vida militar e agora perigosamente próximo de um outro tipo de instituição igualmente totalitária: as corporações do grande capital. A escola (incluindo o mundo universitário) exerce atualmente o mesmo tipo de disciplina intensa e irredutível dos conventos, dos quartéis e das empresas. As horas, os minutos, os intervalos, as provas; os projetos, as qualificações, as monografias, as comissões, os currículos, tudo se tornou absolutamente quantificado e verticalizado, como na ordem militar e empresarial que despersonaliza o neófito e o predispõe a obedecer e reproduzir sem crítica um mundo hierárquico, conflitivo e excludente. Há uma cativante caricatura, desenhada por Moshe Süsser, em forma de charge desse cotidiano asfixiante da escola no livro Foucault for Beginners, de Lydia Alix Fillingham. O desenho expõe graficamente, em tom jocoso, a verdadeira insanidade

de

uma

agenda

escolar

que

prescreve,

no

melhor

estilo


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esquizofrenizante do duplo vínculo proposto por Gregory Bateson, a ordem severa de brincar por exatos 15 minutos! Kurz retira dessa evidência uma conclusão surpreendente: por muito tempo, enquanto estavam todos imersos nesse processo foucauldiano de inclusão na escola, o estado (e o capital) conseguiam disciplinar a sociedade como um todo. O grande exemplo da realização ideológica negativa desse disciplinamento é os Estados Unidos nos dias de hoje: um Estado que ameaça destruir o planeta, comandado abertamente pelo complexo industrial-militar (como também o foi o Terceiro Reich), porém que produziu um disciplinamento tão grande na população (exercido em grande medida por um ensino chauvinista e colado ao projeto militarista dominante) que a resistência às decisões políticas é baixíssima, comparada com as perigosas conseqüências mundiais dessas decisões isoladas. A mobilização na esfera pública norte-americana é notoriamente muito pequena, também

porque

o

disciplinamento

escolar

tem

trabalhado

contra

o

desenvolvimento de um mínimo de senso crítico. Eis a dedução de Kurz: se declina o projeto de universalizar a escola (rejeitado agora pelo capitalismo em crise), o qual formaria os membros do estado-nação, extingue-se também a possibilidade de se disciplinar toda a população. A relação conflitiva entre os interesses do capital e os projetos clássicos do Estado-nação interpelam diretamente as instituições de ensino superior em que atuamos. O passo seguinte é o surgimento dos chamados excluídos como novos atores sociais, munidos de uma vantagem cognitiva de pensamento lateral comparada com os incluídos: contarão com um excedente de lucidez porque foram menos “institucionalizados” que os “normais” e “integrados”. Esses excluídos irrequietos não vão estar disciplinados pelo regime escolar e poderão fazer uma resistência monumental ao sistema, e no limite, tentar até destruí-lo. É de se esperar que as rebeldias mais poderosas e articuladas surgirão dos não disciplinados pela escola. Kurz termina o artigo abrindo para a possibilidade de que nem tudo está perdido neste mundo em que se exclui as pessoas, porque elas certamente pensarão em formas de dar o troco ao sistema excludente e repressor. Ressaltemos aqui mais uma vez a consciência advinda da experiência


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de exclusão, a condição de exterioridade articulada e o campo de forças de que todos nós, sem exceção, fazemos parte: se excluímos ou incluímos a alteridade, comprometemos, de um modo ou de outro, o nosso próprio futuro. Vendo essa realidade de dentro da universidade e na condição de professores, os projetos em que nos envolvemos parecem em geral mais tímidos, quando comparados com a radicalidade proposta por Robert Kurz. Pelo menos, não costuma ser esta a discussão principal da Extensão. Há alguns pontos em comum, porém, porque esse disciplinamento nos atinge e em boa medida limita a nossa imaginação. A Extensão poderia ser, portanto, uma forma de realimentar a imaginação interna ao nosso mundo, dela profundamente carente. Retomo por um momento uma reflexão que já desenvolvi em outro lugar sobre esse modelo da universidade humboldtiana do século XIX, que teria separado as “ciências exatas”, o saber técnico, do saber “filosófico”, de formação humanística. Procurando ser positivo e indo mais além dos problemas advindos dessa dicotomização alienadora e falsa, há um aspecto interessante a ser resgatado no projeto humboldtiano: a sua flexibilidade pedagógica. Vejamos. É interessante como nós, que nos dizemos herdeiros e continuadores do ensino superior europeu, fechamos inteiramente esse sistema antes tão aberto em seu lugar de origem. Em uma universidade européia do princípio do século XIX, um estudante poderia estar assistindo um curso de duas semanas de duração e, ao mesmo tempo, estar terminando a terceira semana de um curso de outro professor que talvez tivesse vindo como visitante por quatro semanas; e logo começaria um novo curso que duraria uma semana. O sistema de créditos não era tão rígido como é agora. Alguém podia passar cinco anos na universidade, e suspender sua formação, por várias razões, porém sem uma noção muito formalizada de que havia encerrado a carreira universitária (como é o caso da Áustria, ainda hoje em dia, em que, rigorosamente, o estudante somente “se forma” de fato na universidade quando defende o seu doutorado!). O sistema de créditos era aberto, o regime de classes não era rígido, o fluxograma de cursos menos ainda e o corpo docente flutuava de tamanho a partir da oferta de


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intercâmbio entre as universidades, que eram todas de menor porte. Havia uma flexibilidade na composição das aulas e de alguma maneira isso facilitava a ligação da universidade com a comunidade, porque haviam menos barreiras disciplinares para a realização desse trânsito. Paradoxalmente, tratava-se de um ensino menos alienado. É preciso lembrar que não utilizamos praticamente nenhum desses recursos pedagógicos – a não ser, justamente, através da Extensão. Contudo, em alguns países, como na França, continua a tradição da aula livre, aberta para quem queira assistir. Um exemplo recente e espetacular dessa cátedra livre foram as aulas magistrais que Michel Foucault ministrava uma vez por ano em Paris, nas décadas de setenta e oitenta, em apenas 26 horas, de janeiro a março, em palestras de 2 horas. Conforme o descreveu Edward Said, que assistiu a uma dessas aulas em 1 de fevereiro de 1978, centenas de pessoas superlotavam o auditório, de mendigos a pesquisadores tão ilustres como o próprio catedrático. Sua descrição é surpreendentemente parecida com a reconstrução feita por Frederic Ungar de como foram as aulas do primeiro curso livre de História dado por Friedrich Schiller, na última década do século XVIII, na Universidade de Jena, em um salão lotado, com uma multidão de ouvintes disputando um espaço mínimo nas escadarias do lado de fora. Quero então dizer que nós estamos procurando cobrir com a Extensão uma rigidez enorme, que talvez nem sequer seja mais percebida por muitos de nós, tal o ponto em que naturalizamos esse engessamento das possibilidades abertas à experimentação. Somos levados a ponderar, infelizmente, que é na verdade bastante limitado o jogo acadêmico que nos ensinaram a jogar no Brasil. Desejo ressaltar, portanto, o efeito de contigüidade entre um projeto formal e Extensão, em uma rígida grade curricular (que é o nosso caso), e a porosidade da universidade de pequena escala que foi de onde partimos, não faz tanto tempo. Efetivamente, passamos de uma universidade de pequena escala para uma universidade de grande escala. Contudo, creio que é possível imaginar uma possibilidade de se estar em uma universidade de grande escala e tentar construir


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uma vida acadêmica ainda mais porosa e sensível em sua relação com a sociedade e com o mundo de um modo geral. É claro que não expresso aqui enhum voluntarismo acrítico: as contingências do capital que forçaram o aumento da escala das universidades compõem o quadro em que devemos atuar. Sempre cabe a nós, porém, render-nos à sua lógica ou resistir a ela. E para resistir é preciso mentalizar modelos alternativos, seja recuperando o melhor do passado ou experimentando com formatos inteiramente novos. Evidentemente, carregamos ainda uma carga muito forte de eurocentrismo, dado que todo esse modelo de academia exclusivista foi gerado no mundo europeu,

que

se

via

como

homogêneo

etnicamente.

Dito

em

termos

antropológicos mais soltos, havia uma etnia dominante, tanto na Europa Central, como na Inglaterra e na França: os brancos. As minorias de outras línguas que não as línguas coloniais, estavam fora desse jogo político e acadêmico. Tratava-se, na verdade, de um mundo branco, ocidental, que funcionava como se não tivesse fraturas internas de visão de mundo, que se autoproclamava universal. Todavia, quando transladamos essa configuração sócio-racial para o nosso mundo, fomos forçados a pagar um preço muito alto em termos de silenciamento, de censura, de repressão de outras visões de mundo, porque nós não estamos nesse espaço austríaco, prussiano, britânico ou parisiense. Existem pelo menos 180 línguas indígenas faladas hoje no Brasil. Não é a mesma coisa, pois na Áustria, Inglaterra, França, Itália, o que existe são apenas dialetos de uma única língua nacional, com suas diferenças respeitáveis, porém escritos todos de um modo padronizado. Daí que pelo menos a nossa Extensão deveria manter, ao meu ver, a especificidade manterse conectada com a parte não-eurocêntrica da nossa sociedade. Deve ser o lugar onde se faz o esforço por incorporar saberes não europeus que foram definidos por nós, brancos, como não-acadêmicos. Dou o exemplo das línguas indígenas, entendidas talvez como uma referência muito forte nas nossas universidades, porque reproduzimos uma noção altamente preconceituosa, que é a idéia de “língua de cultura”.


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Sempre que se vai abrir uma vaga nova na área de Línguas, há uma pressão para que se contrate mais um professor de francês, ou de inglês, ou de alemão. Então, se nós olharmos as línguas ensinadas nas nossas universidades, podemos detectar o descolamento das nossas universidades públicas com relação à realidade do nosso país. Por exemplo, se eu for à Universidade de Alepo, na Síria, com certeza encontrarei cursos de árabe, curdo, armênio e aramaico; se eu for à Universidade de Lahore, no Paquistão, poderei aprender árabe, urdu, pashtu e talvez persa. Se eu for ao Cuzco, no Peru, poderei freqüentar cursos de espanhol e também de quechua. Pela mesma lógica, na Universidade Federal do Amazonas eu poderia fazer cursos de tukano, baniwa, tuyuka, tikuna, nheengatu, mas esses idiomas não são oferecidos na UFAM. Semelhantemente, a UFRGS deveria ensinar kaingang, guarani, xokleng, iorubá, mas tal nãosucede. A Universidade Federal de Minas Gerais deveria ensinar quimbundo e kicongo e a Universidade Federal do Maranhão deveria ensinar o fon (mais conhecido no Brasil como gêge), além de várias línguas indígenas. Infelizmente, nenhuma dessas línguas locais não-européias são ensinadas em

nossas

universidades.

Em

todas

elas

são

ensinadas,

quase

que

exclusivamente, as línguas européias dos países de maior poder político e econômico: inglês, francês, italiano, espanhol, russo, polonês. O fato de o japonês (uma língua não-européia) ser ensinado em algumas universidades brasileiras talvez seja mais um reflexo do prestígio geral e do poder econômico daquele país na geopolítica mundial atual do que o fato de ser um idioma não-europeu falado no Brasil.

3. Insuficiências do modelo pedagógico Avançando nesse diagnóstico, um primeiro ponto de mudança de rumo seria admitir que muitos dos nossos cursos estão montados sobre saberes


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desatualizados de 30, 40, até 50 anos atrás. As técnicas podem estar atualizadas (às vezes acriticamente), mas não assim a visão de mundo que orienta as decisões sobre o que pesquisar. A grande revolução de paradigmas que sacode o mundo científico e humanístico ocidental desde a metade do século passado não foi ainda incorporada devidamente às nossas ementas, grades disciplinares e abordagens teóricas (Estou falando, devo advertir, a partir do que vivo na Universidade de Brasília: se serve ou não para a UFRGS, não cabe a mim avaliar.). A propósito, lembro aqui que a UnB foi uma universidade fundada dentro de um espírito interdisciplinar e transversal, capaz de favorecer cursos livres, personalizados e com sistemas alternativos de avaliação. Tive o privilégio de participar dos últimos momentos de plena liberdade curricular quando ingressei na UnB em 1969. Naquela época, era possível cursar praticamente qualquer disciplina da universidade, tal a maleabilidade das grades curriculares dos cursos oferecidos. Atualmente, as grades disciplinares da UnB estão cada vez mais fechadas e muitos cursos funcionam, na prática, como se fossem ministrados por institutos técnicos superiores, em que os estudantes só fazem as matérias específicas dos seus cursos. As faculdades funcionam como escolas, porque não existe mais nem integração nem circulação de saberes. Em muitas carreiras, os alunos são encorajados ou pressionados pelos seus coordenadores de graduação a não perder o fluxo e não “perder tempo” com disciplinas alheias aos seus cursos. Observamos agora uma prática de orientação à inversa: os alunos chegam à universidade e são (des)orientados pelos coordenadores, que os limitam em suas escolhas, ao mesmo tempo que dificultam a matrícula das matérias para os estudantes que vêm de outros departamentos. As vagas nas disciplinas são agora reservadas exclusivamente para os que optaram pelo curso. O caráter humanístico tão apregoado, de se ter as disciplinas abertas para a formação integral do jovem, para essa Bildung renovada, está desaparecendo a passos largos. Não sou só eu que reclamo, vários dos meus colegas têm lamentado essa situação em inúmeros debates. Cursos formativos como Introdução à Filosofia,


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Introdução ao Cinema, Introdução ao Direito, por exemplo, são agora restritos aos alunos dos cursos de Filosofia, de Comunicação e Direito. Pode-se imaginar que a disciplina de Filosofia interessaria também a um estudante de Engenharia, ou de Biologia, por exemplo. Essa tendência cresce com a pressão por terminar o curso em 4 anos e aponta para um apequenamento da formação universitária. Creio ser papel da Extensão chacoalhar essa rigidez alienante. Além da relação agonística entre capital e estado-nação, fator determinante dessa conjuntura que analisamos aqui, um outro fator condicionante da rigidez face ao saber é a nossa pedagogia, baseada na exposição intensiva e longa na sala de aula. Na graduação são aulas de duas horas, na UnB e provavelmente em todo o país. Cursando duas matérias seguidas, o aluno passa diariamente 4 horas imobilizado em uma sala de aula! A pós-graduação é ainda pior, com extenuantes encontros de 4 horas para os cursos em forma de seminário, tensos pela cobrança recíproca docente-discentes e, não raro, pela falta de liberdade e espontaneidade na interação com o saber. Insisto em que essa unidade de duas horas é uma forma particular e idiossincrática de conceber o tempo de uma aula. É muito diferente, por exemplo, da Irlanda do Norte, onde estudei (e do Reino Unido em geral), em que cada disciplina consta de apenas uma aula por semana de 50 minutos e o resto é estudo individualizado. E por que um tempo de aula tão breve? Porque acredita-se que o centro do ensino é o estudo individualizado. O estudante tem que estar só, na biblioteca, lendo os textos, e não ouvindo horas a fio, seu ouvido sendo alugado na sala de aula. Esse modelo das Ilhas Britânicas pelo menos oferece uma margem de autonomia e de escolha um pouco maior que a nossa. Some-se a isso o fato de que as disciplinas são anuais e um ano letivo, na Queen's University, por exemplo, tem aproximadamente cinco meses. Em algumas universidades, como a de Cambridge, nem sequer passa de quatro meses e meio. Ofereço esses contra-exemplos simplesmente na expectativa de que nos ajudem a repensar nossos dilemas acadêmicos. Discutirei mais adiante a concepção pedagógica de alguns grupos indígenas brasileiros. Lembremos por


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enquanto que a experiência da Universidade de Cambridge, campeã em Prêmios Nobel (e bem sucedida devido a vários fatores, obviamente), indica claramente que não há uma relação linear entre o número de horas de aula e a produção de saber de ponta (obviamente, sem perder de vista o viés ideológico dessa noção de “ponta”). No caso brasileiro, se já temos um sistema que está baseado no seqüestro do estudante para ficar sentado na sala de aula; e se ainda por cima a grade está fechada, imaginemos o efeito da relação do aluno com o saber como um todo: seu interesse intelectual pelo curso tende a diminuir, infalivelmente. Acredito sinceramente que esse exagero de aula imobiliza e freia a imaginação. São exposições excessivas a um mesmo regime de relação com o conteúdo e com o professor. Dito em outros termos, nós estamos exercitando nesse caso muito mais o tempo cronológico do que aquilo que Lacan chamava de tempo lógico. O tempo lógico, como em uma sessão lacaniana, pode ser curtíssimo. Digamos que nos primeiros 30 minutos de uma aula ocorre um certo clic, o limiar de uma nova idéia, a partir da dinâmica específica entre professor e alunos. A aula podia então ser suspensa e os alunos teriam a permissão de elaborar, ler outras coisas, sair, meditar e introjetar aquele conhecimento que se apresenta agora vivo. Mas isso não é possível: todos devem pemanecer sentados, porque ainda falta uma hora e 30 minutos para o encerramento da aula, e o que é pior, quem sabe os 90 minutos restantes matarão a intuição criadora surgida nos primeiros 30 minutos. E há aqui uma esquizofrenia na nossa dupla função de educadores e pesquisadores: pautamo-nos pelo tempo lógico no momento solitário e inspirador da criação científica e humanística; porém regressamos ao nada inspirador tempo cronológico na hora de ensinar e interagir com os alunos. A autonomia e a liberdade do tempo lógico são prerrogativas nossas, enquanto aos alunos resta a dependência intelectual e a redundância entediante da cronologia burocratizada.

4. O poder no ensino e na pesquisa


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A verdade é que no caso do ensino, a estrutura de poder tende a ser especialmente pesada. De todos os aparelhos ideológicos do estado, o ensino talvez seja um dos mais rígidos (ao lado do aparelho militar) e submetido agora a uma pesada chantagem por parte do capital, daí ser o mais difícil de transformar. E de fato não é fácil reformar o ensino superior, pois a dinâmica consolidada pelos colegiados aborrece qualquer movimento de mudança ou revisão profunda de valores e práticas.Experimentar, inovar, auto-criticar-se, abrir-se para outros registros de fala não são características da nossa corporação. Em primeiro lugar, há os nichos de especialização dos professores que já estão muito demarcados. Logo nos deparamos com uma determinada grade disciplinar pouco flexível, construída para adaptar-se ao modo como alguns professores concebem suas disciplinas. Finalmente, e mais grave, trata-se muito mais de passar um conteúdo consagrado e consolidado do que propor-se a resolver novos problemas práticoteóricos surgidos a partir de uma determinada interação com a comunidade ou com outras áreas disciplinares. Optou-se por uma linha de formação que consagra um cânon já banalizado por sua rotineira repetição, ao invés de buscar a resolução de novas questões e de novos paradigmas de pensar. De ser assim, é difícil propor mudanças pelo lado do ensino: as resistências hão de ser maiores que em qualquer outro lado. No caso da pesquisa, a taxa de criatividade pode ser maior que a do ensino, adepender também das relações estabelecidas com as agências financiadoras. O mantra atual da academia é “agência financiadora”: pode-se ser mais ou menos criativo a depender de como se luta e se rebela contra o que está sendo determinado ou imposto pela agência financiadora. A partir do que venho observando, em inúmeras situações, os professores não pesquisam o que gostariam ou o que julgam ser socialmente relevante, ainda quando têm a clareza do que desejariam explorar. O mesmo sucede com os alunos, de graduação ou de pós, que procuram também adequar seus projetos para atender às linhas abertas de financiamento nos editais ou pelas necessidades de seus professores. Uma coisa é que se tenha uma grande urgência interna de pesquisar um tema, outra é


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é que os editais apontem os rumos da pesquisa. O acadêmico acaba pesquisando o que os editais propõem e não aquilo que a sua intuição teria proposto. Neste momento presente, essa operação de conformismo já é realizada com um mínimo de resistência, às vezes automaticamente: o pesquisador apenas lê os editais e começa a reorientar, adaptar ou até negar o que desejava pesquisar para concorrer às verbas oferecidas. Essa mesma lógica opera tanto com os editais públicos como com os privados. Na verdade, a distância entre os dois só vem diminuindo na medida em que o Estado perde o controle das áreas estratégicas e passa, na prática, a ser controlado diretamente segundo os interesses do grande capital. Foi esse, inclusive, um dos pontos abordados por István Mészáros na sua conferência no Fórum Mundial de Educação, acima mencionada. Essa migração de idéias, valores e teorias científicas não é trivial, porque significou uma transferência de uma massa muito grande de intelecto da universidade para um grupo pequeno que comanda a reprodução da academia. Ou seja, há uma minoria de especialistas no poder estatal que emite os sinais da direção; e um outro grupo, majoritário dentro da universidade (e que, bem ou mal, tinha antes sua própria capacidade de imaginar), que é agora obrigado apenas a reagir e se adaptar à agenda formulada pelo pequeno grupo. E as propostas recentes de mudanças nas políticas de fomento anunciadas pelo CNPq e a FINEP têm causado enorme preocupação nos pesquisadores negros. Eis o problema: essas instituições financiadoras não estão querendo mais aceitar projetos individuais de pesquisa que não estejam inseridos em grupos ou linhas coletivas já cadastrados. Essa exigência incide negativa e diretamente contra os (poucos) acadêmicos negros atualmente ativos no nosso meio. Se muitos dos professores negros não têm conseguido encaixar as suas linhas de pesquisas naquelas atualmente estabelecidas pelos colegas brancos (justamente porque não foram contempladas há décadas atrás, quando as redes se consolidaram), encontrarão ainda mais dificuldade em entrar nesse campo a partir de agora,


71 porque ele se tornará ainda menos competitivo e mais clientelista – e obviamente, mais racista. Sejamos claros: não é nada bom que se vincule todos os projetos individuais de pesquisa a grupos já consolidados, pois isso implicará em reproduzir um pequeno número de grupos, ao preço de mais uma vez limitar a inclusão racial e, com ela, cercear de novo a possibilidade de uma revisão e ampliação dos saberes legitimados. Trata-se de um mecanismo poderoso de controle político-acadêmico e de limitação da imaginação científica. Pode ser bom para os brancos inseridos na rede em termos de organizar e administrar a ciência (na medida em que fica mais fácil para o gestor homogeneizar o perfil dos seus gerenciados); contudo, além de imoral, pela reprodução consciente da desigualdade racial, certamente não é o mais rico para a comunidade de pensamento como um todo. Esse alinhamento temático, se implementado, provocará, portanto, uma dupla discriminação: racial e intelectual. Enfatizar as disciplinas como fulcro do ordenamento acadêmico é favorecer ortodoxia, o que é gravíssimo nos dias de hoje, quando testemunhamos um grande rearranjo dos saberes e dos paradigmas científicos e artísticos consolidados no início do século passado. E a maioria dos grupos consolidados na CAPES e no CNPq são grupos disciplinares. Os projetos interdisciplinares sempre têm mais dificuldade de ser aprovados. Se um pesquisador solicita apoio à sua área para uma experiência de pesquisa de fronteira com outra área, receberá dos colegas uma recusa, com a recomendação de que busque apoio na outra área... que, obviamente, se negará a financiar um pesquisador que não pertence à sua rede específica. Há muito dessa lógica posta em prática e sua conseqüência é a ortodoxia e o conservadorismo. Muitos dos grupos de pesquisa são extremamente fechados; e do controle da rede muitas vezes se passa ao controle científico, das idéias e dos temas definidos como legítimos. É claro que o modelo do grupo de pesquisa integrado faz sentido e deve continuar existindo. Mas este é um modelo


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apenas. O que não devemos fazer, parece-me, é generalizar o modelo de laboratório controlado como se fosse o único modelo de pesquisa coletiva autorizado. E temo que já estejamos a caminho da sua absolutização por razões menos substantivas, da dinâmica da descoberta científica, e mais ligadas diretamente à baixa autonomia do campo da ciência com relação à elite de poder político e econômico do país. Dito telegraficamente, e em forma apenas de hipótese, acredito que uma boa parcela da rede social da academia replica a rede da elite do poder político e econômico. Essa promiscuidade de relações tinge as reivindicações que deveriam ser de cunho estritamente científico de uma aura de favor pessoal. Em um clima como esse, é sempre um risco para um acadêmico assumir posições autônomas, pois pode ser alijado de ambas redes, as quais freqüentemente se superpõem.

5. Extensão como espaço de integração de saberes Diante desse panorama, o que pode fazer a Extensão? Pode estar mais livre para tomar decisões sobre que projetos privilegiar. Exemplos? Para começar, acolher e experimentar com a estrutura modular dos cursos, testando as novidades para expandir e revisar o conteúdo acadêmico vigente em cada área. Provavelmente seria mais eficaz, hoje em dia, em plena “sociedade da informação”, ensinar disciplinas por módulos e não por semestre. A estrutura do semestre foi um decisão tomada pelo MEC em um determinado momento na sua política de unificação e homogeneização do ensino. Somos 180 milhões de pessoas e temos que nos pautar todos pela mesma regra escolar, o que indica quão pouco temos usado a imaginação, a criatividade e o respeito à diferença regional. Se pensamos em módulos, nem sequer é preciso adequar um formato para cada estado. Na verdade, cada universidade deveria ser capaz de experimentar com o formato que melhor lhe aprouvesse. Absurdo maior torna-se então admitir que os formatos sejam padronizados nacionalmente. Mesmo que o sistema universitário se tornasse mais complexo, menos cartesiano e mais difícil de administrar, ainda assim acredito a produção de conhecimento seria maior,


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mais diversificada e mais sensível aos contextos locais e regionais. Se a articulação de módulos de tamanhos vários fosse uma prerrogativa de cada universidade autonomamente, estou convencido de que o caminho da inovação e da vinculação com a sociedade seria mais transitado, pois a experimentação com a forma estimularia uma revisão do conteúdo. Uma função importante da Extensão pode ser, nesse sentido, a de acolher projetos de inovação com as formas pedagógicas e também projetos que avaliem a incidência das inovações modulares na expansão e revisão do saber acadêmico. Outro ponto, complementar à flexibilização do ensino, e em que a Extensão pode e deve intervir com conseqüências muito positivas, é em acolher e estimular os projetos inter-disciplinares – ou transdisciplinares, ou multidisciplinares, sejam quais forem os nomes que lhes dermos. Enfim, deve cobrir aqueles espaços de interseção em geral bloqueados pelas financiadoras e pelo corporativismo dos colegiados, como mencionado acima. Por exemplo, sou consciente de que a UFRGS desenvolve atualmente um projeto de educação bilíngüe guarani, montado segundo acordo estabelecido com os caciques das aldeias beneficiadas. Este é um modo da universidade conectar-se com esses saberes extra-europeus e não canônicos, em um caráter franco de experimentação. Neste momento, estou fascinado pelo tema da educação indígena e tenho tido o privilégio de participar de algumas discussões sobre o ensino médio indígena bilíngüe. É altamente desafiador o modo como os índios propõem o ensino médio bilíngüe no Alto Rio Negro, por exemplo. Pude acompanhar as propostas das escolas indígenas Baniwa e Tuyuka, que já deram excelentes resultados. Professores e alunos se reúnem regularmente durante dois meses na escola, período em que formulam mutuamente os temas e problemas a serem pesquisados. Após esses dois meses, fecham a escola e todos, alunos e professores, vão para as aldeias pesquisar aquele tema, cada um com seus recursos acadêmicos próprios. Dois meses depois, regressam à escola e discutem os trabalhos realizados. Aí fecham aquela fase de pesquisa/ensino e pensam


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juntos novos temas a serem pesquisados; e como antes, saem a campo e apenas dois meses depois vão reencontrar-se no ambiente escolar. Em resumo, trata-se de um ensino médio que está inteiramente pensado para a formulação de problemas e para a produção de conhecimento. Nós deveríamos pautar nosso ensino médio por esse tipo de ensino médio indígena, já que o nosso foi reduzido a decorar e aprender conteúdos visando unicamente a aprovação no vestibular. Podemos concluir que o ensino médio indígena é de ponta, se visto nos termos dos nossos critérios de avaliação de inovação em educação. Somos nós que precisamos ter o saber indígena em educação por perto, porque ele está colocando alternativas que estão nos faltando neste momento. Esclareçamos dois pontos que podem haver ficado ainda mal entendidos. Em primeiro lugar, a oposição humboldiana entre saber humanístico e saber técnico analisada por Robert Kurz é um modelo evidentememente a ser superado. A formação superior integral deve estar acessível a todos os estudantes, se entendemos a universidade como um patrimônio público, o que significa: aberto a todos os cidadãos. A crise desse modelo permite expor o seu conservadorismo pelo avesso, argumenta Kurz, lançando mão de um argumento possivelmente inspirado nas teses sobre a Filosofia da História de Walter Benjamin: a hierarquia implícita na oposição entre saber técnico e saber humanizante é sustentada por um disciplinamento específico, que alcança tanto as classes populares quanto as classes burguesas. O declínio dessa força disciplinadora permite o surgimento de uma terceira posição, não necessariamente interessada na integração entre os dois saberes, mas em reagir contra a instituição que produz essa dicotomia mal resolvida. Meu interesse em escutar as propostas da educação indígena é retirar dela novos argumentos para retomar uma perspectiva integral dos saberes humanos, idealmente ensinados em um tipo de universidade adaptada para a realização dessa integração e enquanto ela se mostra distante, no tempo e na concretização,


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seus primeiros passos podem ser dados pelas atividades de Extensão, devidamente informadas e fundamentadas na direção da busca dessa integração. Em segundo lugar, é preciso insistir em que o lugar da Extensão não admite evasivas: ou ela se deixa reger pelo capital e se transforma no seu fulcro dentro da universidade pública (afinal, na cabeça dos privatistas, Extensão é fonte de dinheiro), ou ela se coloca como uma força assumidamente anti-capital da academia, dedicada ao valor de troca e à dádiva da instituição universitária ofertada à sociedade circundante. Podemos associar aqui a prática da Extensão como uma atitude crítica frente à ideologia elitista da universidade neo-humboldiana que praticamos. Podemos fazê-lo ao oferecer eventos de Extensão que experimentem com formatos flexíveis e expor a dupla ilusão da idéia de “hora-aula”, conceito nascido inteiramente dentro de uma visão capitalista do ensino: o pressuposto de que se pode quantificar o saber e que se pode quantificar o tempo. Essas duas dimensões qualitativas são atualmente o motor da mercantilização da sociedade. E mesmo no modelo humboldiano clássico, o saber técnico guardaria uma afinidade eletiva com a mercadoria, porque ele seria quantificado como mercadoria para ser utilizado por um técnico, cuja função estaria, de um modo ou de outro, conectada também com a produção de mercadoria. Quanto ao saber humanizante, do mesmo modo implicaria, pela sua negação, a presença da mercadoria. A Bildung, enquanto conceito, surgiu justamente na época da passagem do mercantilismo para o capitalismo, na primeira revolução industrial. Foi quando a ideia de um tempo inútil, de não-produção, começou a invadir uma visão de mundo que ainda não media a reprodução da vida em horas. Desenvolver as “ciências puras” era resistir, ilusoriamente, a uma servidão ao tempo produtivo – ou pelo menos postergar, para a classe dos poderosos, o momento dessa rendição, que em nossa época iguala a todos, ricos e pobres, letrados e iletrados, a uma batalha sempre perdida contra o tempo produtivo. A Extensão, ainda que


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em escala reduzida, permitiria o exercício de imaginar a possibilidade de uma atividade produtiva, criativa, coletiva e solidária, porém sempre no tempo. Jacques Derrida, em seu ensaio sobre a dádiva, leva a discussão ao limite, quando afirma que a verdadeira dádiva, que se dá no tempo, é o próprio tempo. Nosso ensino é absolutamente cronometrado, o que quer dizer: não tem tempo nenhum para dar e sim para trocar – e, com a troca, produzir. A prática mais radical da Extensão deveria ser, então, a abertura para o tempo, que é barrada na sala de aula e no laboratório. A Extensão no tempo não pode ser, fixe-se bem, uma mera extensão do tempo (em tal caso ficará presa à mesma lógica da temporalidade que instrumentaliza e legitima um modelo que favorece, inevitavelmente, a transformação do saber acadêmico, de dádiva pública (os membros da sociedade que dão a si mesmos o saber que desenvolvem) em valor de troca: mais saber em menos tempo, mais tempo para mais saber, meio saber em meio tempo, o mínimo saber possível no menor tempo gasto. Enfim, comprar o saber que ensina a comprar, acumular e vender tempo. Mais ainda, dito em termos da crítica de Marx ao capital, a escola em geral (e a universidade em particular, na medida em que congrega exclusivamente os adultos) ensina fundamentalmente, segundo um mecanismo implícito em todos os cursos científicos e humanísticos, a absorver a noção, desumanizadora e predatória, da mais-valia relativa. É

preciso

falar

sobre

esses

dilemas

justamente

agora,

quando

vislumbramos uma onda de mercantilização sem precedentes da instituição universitária e experimentamos uma grave sensação de impotência. A discussão do tempo e dos saberes indígenas e africanos (defendidos ainda da razão instrumental que ameaça generalizar-se por toda a tradição de saberes ocidentais) nos conduz a meditar sobre a possibilidade, positiva e esperançosa, de que a universidade seja uma instituição que ainda mantém traços estruturais nãocapitalistas (e, dentro da lógica do capital, qualquer atitude nãocapitalista é anticapitalista). E isso não é pouco, em uma época em que o grande capital ameaça com a mercantilização de todas as dimensões da vida. Repensar a Extensão


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nesses termos, de resistência intra-campus e extra-muros é contribuir para as propostas de reformar a universidade, não para aumentar a produção de bens de ensino (o que seria o seu fim definitivo), mas para a produção de vida.

6. Experiências inovadoras de Extensão e seus desafios

A Universidade Federal de Minas Gerais conta com um projeto originalatualmente, conduzido pelas professoras Rosângela Pereira, da Escola de Música, e Maria Inês de Almeida, do Instituto de Letras. Elas estão trazendo os índios Maxakalis, do norte de Minas, para fazer estágios na universidade e participar de oficinas. Os Maxakalis são muito pobres, vivem em uma situação miserável em uma área muito pequena, mas sua imaginação artística e científica é enorme. Vários dos índios estão participando de oficinas em Artes Visuais, Gráficas, Música, Literatura, Arquitetura, Antropologia, Arqueologia, Lingüística, Ecologia e Turismo, a cada vez por um período de até quinze dias. Esse projeto é um primeiro passo no longo caminho da inclusão mais regular dos índios na nossa academia. Esta é então uma interação, uma troca, um exemplo excelente de Extensão, capaz de testar inclusive a resistência de muitos professores, que se sentem perturbados com a presença de índios na sala de aula, conversando, fazendo perguntas, trocando idéias e informações com os alunos e com eles próprios. Outro projeto de Extensão desafiador, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é a introdução de um curso de Capoeira Angola, não como educação física, apenas, mas como disciplina formativa, no sentido da integração corpo-mente. Esse curso, de duração anual, é possivelmente o único curso de capoeira assumido por uma instituição pública de ensino superior no Brasil. Questionando o conteúdo eurocêntrico embutido na formação universitária, a capoeira passa a ser acolhida na universidade como uma filosofia de vida, uma visão de mundo, um saber que interioriza, que promove equilíbrio, resgatando inclusive a figura do mestre capoeirista exatamente como é: um mestre de um


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saber afro-brasileiro que pode conviver e trocar com os outros mestres de saberes europeus. Esse projeto está vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFAL e seu coordenador, Professor Moisés Santana (também um praticante de capoeira), enfrenta agora o desafio de contribuir para ampliar o campo intelectual e espiritual de sua universidade. E as resistências ainda não são poucas. Tocar nos núcleos corporativos e eurocêntricos no nosso meio não é tarefa fácil. Um exemplo que expõe a relação tensa (e necessária, por outro lado) entre os projetos de Extensão e os valores fechados de muitos Departamentos e Institutos foi um encontro de xamãs que ocorreu na Universidade de Brasília há dois anos. Um professor do Departamento de Antropologia foi convidado a participar do evento, na sua qualidade de etnólogo e de alguém vinculado com a causa da promoção dos saberes e da educação indígenas. Assim que soube do evento em preparação, a Chefia do Departamento comunicou à Pró-Reitoria de Extensão que não autorizava a menção do nome da Antropologia nos panfletos e cartazes de divulgação do evento, deixando claro que o colega participaria em caráter estritamente individual, e não como membro do colegiado departamental. Ficou patente que a Chefia não queria dar legitimidade à presença de pajés indígenas na UnB. Sem entrar em maiores detalhes, este incidente ilustra vários dos problemas que discutimos anteriormente. Vejamos alguns deles. Essa recusa em acolher os líderes espirituais dos índios pode estar relacionada com o medo de infringir o cânon etnocêntrico e sofrer represálias por isso: quem sabe, dada a dependência paranóica dos programas de pósgraduação em relação aos humores das agências financiadoras, se o nome do Departamento de Antropologia da UnB fosse associado a um encontro nacional de xamãs (que representam um tipo de saber até agora não legitimado), a CAPES ou o CNPq poderiam retirar as verbas do programa, rebaixar pontos na próxima avaliação, etc. Aqui se evidencia o quanto a estrutura disciplinar e departamental pode tolher processos dinâmicos de intercâmbio e exploração de novas fronteiras de conhecimento no interior das nossas universidades.


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Aponta ainda para o problema grave do corporativismo e indica que o melhor caminho a ser trilhado pela Extensão deve ser o de contrapor-se aos fechamentos exercitados pela estrutura formalizada e fossilizada do ensino e da pesquisa. Esse assunto dos pajés nos permitiria dar ainda várias outras voltas no parafuso do fechamento acadêmico. Por um lado, está o pressuposto de que o saber do outro, não-ocidental, só vale enquanto crença, e não enquanto saber equivalente ao nosso: nós, acadêmicos, apenas acreditamos que eles acreditam que sabem. Em segundo lugar, ele pode até valer algo, porém unicamente em seus próprios termos, isto é, desde que fique confinado ao ambiente da selva, ao mundo tribal: aqui na universidade ele já passa a ser embuste, oba-oba, ingenuidade, irracionalismos de neo-hippies, ou mercadoria falsa. Enfim, acreditamos que eles acreditam que sabem, mas acreditamos também que eles não sabem com o mesmo grau de verdade com que nós sabemos. Indo adiante nessa análise, é possível interpretar a atitude da Chefia do Departamento de Antropologia como uma reação contra o que poderia ser entendido como uma exotização da pajelança indígena – o evento estaria retirando a pajelança do seu contexto tribal para trazê-la para um mundo alheio ao seu sentido original. Plausível e compreensível, restam para o extensionista favorável à realização do evento ainda alguns argumentos na manga. Afinal, os xamãs indígenas brasileiros estão entre nós e podem viajar; por que a universidade não pode recebê-los e reconhecê-los, ela que já recebe xamãs de outras civilizações? Lembro apenas dois “super-xamãs” que visitaram a UnB e receberam o título de Doutor Honoris Causa: o Bispo Desmond Tutu e o Dalai Lama. Não importa quão complexas sejam essas situações, a legitimização nesses casos é sempre mútua: a academia passa a ser mais academia por receber o homenageado; e o homenageado passa a ser mais eminente por ter recebido as honrarias da academia. Finalmente, no caso dos saberes subalternos, como é o caso dos pajés, fica ainda no ar uma variável meio solta, que são os estudantes: quais serão as


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conseqüências para nós, professores, caso os representantes dos saberes nãoeuropeus impactem positivamente os alunos? Não correremos o risco de nos desautorizarmos no nosso papel de até agora incontestes intérpretes de todos os saberes legitimados? Via de regra, nosso saber objetifica o outro; e o sintoma mais claro dessa objetificação é a ausência do outro no nosso meio. Trazer os pajés para que se apresentem como sábios é admitilos como sujeitos de conhecimento. Operação nada trivial para um universo pulverizado

em

departamentos autônomos e sempre prontos a se auto-representarem como primeiros sem segundos, fechados sobre si mesmos. Somente a Extensão parece ter essa flexibilidade e essa liberdade para romper falsas barreiras. Que fique claro que o incidente dos pajés na UnB nada tem de excepcional e é emblemático da atitude defensiva comum à nossa classe em todas as universidades públicas. Tive notícias de um caso análogo ocorrido em outra universidade, em que o colegiado de Educação Física quis impedir a presença de um mestre de yoga em um evento de Extensão, alegando que ele não tinha os títulos necessários para discorrer sobre Anatomia Humana. Essa auto-proteção possui uma história, que precisa ser explicitada constantemente para que convivamos nesse nosso meio com um pouco mais de realidade e menos fantasia de superioridade. Esses incidentes devem surgir a cada vez que a Extensão propuser um debate que ameace os nichos de poder e legitimidade científica dos departamentos ou dos grupos de pesquisa estabelecidos. Pelo que ouço dizer, não está sendo fácil abror a discussão dentro da comunidade universitária sobre os riscos dos alimentos geneticamente modificados (como a soja trangênica) e das manipulações genéticas em geral, porque os grupos que recebem financiamentos para desenvolver pesquisas nessas áreas (em geral de interesse de mega-empresas, mesmo que apoiadas com verbas estatais) não querem correr o risco de ser questionados por colegas e por alunos. Em tais casos, somente a Extensão ainda pode responder às legítimas demandas por informação e esclarecimento advindas da sociedade. Nossas

universidades,

quando

foram

constituídas,

desautorizaram

sistematicamente todos os saberes dos indígenas e todos os saberes dos


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africanos escravizados no Brasil. Esta desautorização está até hoje embutida nos conteúdos das nossas aulas e nos nossos temas de pesquisa. Daí que o papel da Extensão deve ser justamente caminhar na contra-corrente desse processo de discriminação. Para tanto, tem que atrever-se a reautorizar os saberes negados e reintroduzi-los no seio da vida universitária, através de duas intervenções: trazendo as expressões culturais e os conhecimentos dos subalternos para o campus e estabelecendo vínculos concretos de parceria com as comunidades que perpetuam esses saberes. Em suma, deve deslocar docentes para perto das comunidades através de projetos de parcerias e trazer representantes dessas comunidades para dentro da universidade. Mais

dois

exemplos

positivos

dessas

práticas

inclusivas,

anti-

discriminatórias e anti-corporativas da Extensão. Um dos momento mais marcantes da Extensão na UnB foi justamente a gestão de um professor gaúcho, Volnei Garrafa. O professor Garrafa criou o Fórum Nacional dos Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, em 1987 e desenvolveu os Núcleos Permanentes de Extensão, destinados a conectar a UnB com a realidade social do Distrito Federal, tanto nas cidades-satélites como nas invasões e nos municípios do Entorno. Os Núcleos chegaram a envolver 40 departamentos da universidade. Dois projetos desenvolvidos na Ceilândia merecem destaque: o apoio jurídico oferecido na Casa da Ceilândia (órgão da UnB) e a disciplina da Comunicação chamada Jornalismo Comunitário (já desativada), que ajudava na confecção do jornal “Nós da Ceilândia”, primeiro veículo local de imprensa gerado naquela cidade. Outro projeto integrado importante, em parceria com o governo do Distrito Federal, foi o assentamento das invasões do Paranoá e da Vila Planalto, que envolveu estudantes e professores de Arquitetura, Serviço Social, Psicologia, Educação, Sociologia, Antropologia. Foi a Extensão da UnB que possibilitou, naqueles momentos, a formação de uma equipe deveras multidisciplinar capaz de comunicar-se de um modo criativo frente a um tema comum, façanha que nunca havia sido realizada, nem pelo lado do ensino nem pelo da pesquisa. Foi igualmente o Decanato de Extensão que contribuiu, no âmbito da Reitoria, para a consolidação da nossa proposta de vagas para índios na UnB,


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justamente pela experiência da Decana, Profª Dóris Faria, em confrontar com versatilidade contextos sociais diferentes do campus estratosfericamente elitizado da Universidade de Brasília. A primeira reunião, histórica, por mim articulada e conduzida, que as lideranças indígenas e representantes da FUNAI tiveram com a UnB para discutir a abertura de vagas para índios, não foi feita em nenhuma Faculdade em princípio afim com o tema da educação para índios (como a Faculdade de Educação ou de Ciências Humanas e Sociais), mas na Pró-Reitoria de Extensão. Também a solução final da proposta de cotas para negros foi feita de comum acordo com a Extensão, que coordenará um programa de apoio à escola pública da periferia do Distrito Federal, em articulação com a Faculdade de Educação e o Instituto de Psicologia. Esta solução evidenciou uma análise mais refinada da situação da escola pública que o Decanato de Extensão pôde trazer. Por que o apoio às escolas da periferia? Porque a escola pública não é homogênea. Colocar cotas para escola pública, sem perceber, por exemplo, que no caso de Brasília as escolas do Plano Piloto certamente têm uma capacidade de preparar para o vestibular muito maior que a das satélites, seria um equívoco. Se quisermos fazer uma ação afirmativa realmente inclusiva, social e racialmente, temos que fortalecer a escola pública das satélites, não as do Plano Piloto, caso contrário continuarão entrando na universidade apenas os alunos brancos egressos da escola pública elitizada. E o objetivo das cotas é justamente deselitizar o ensino público. Essa reflexão, mais sutil, é conseqüência também da relação do Decanato de Extensão com a realidade extra-campus. Finalmente, gostaria de mencionar algumas intervenções extensionistas realizadas pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT). Nas palavras do seu Reitor, Taissir Mahmudu, mais que uma universidade pública, ele espera que a UNEMAT seja uma universidade popular (idéia que ainda horroriza uma boa parte dos nossos colegas da UnB e, quem sabe, também da UFRGS). Pioneira e revolucionária, a UNEMAT é a primeira (e ainda única) universidade brasileira que abriu um terceiro grau inteiramente para os índios. No campus de


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Barra do Bugres funciona a primeira turma do terceiro grau de formação de professores, com 200 estudantes, que se formarão em janeiro do próximo ano. Dos 200 alunos, 180 são índios do Mato Grosso e 20 oriundos de outros estados, cobrindo todas as regiões do país. A coordenação do Terceiro Grau Indígena acaba de consolidar a abertura da segunda turma, que será de 100 alunos, a começar em 2005. A UNEMAT também oferta um curso de graduação de Pedagogia da Terra para assentamentos agrários em convênio com o INCRA; um terceiro grau modelar para o MST; e prepara agora, também para o Movimento, um curso de Ciências Agronômicas. Assim, a UNEMAT confronta na prática a política estadual excludente e predatória, de prioridade à mega-produção de soja e que se transforma em uma patologia disfarçada de ideologia desenvolvimentista do agro-negócio. Enquanto o governador quer transformar o Mato Grosso no maior celeiro de soja do mundo, mesmo que para isso tenha que destruir toda a floresta amazônica e o modo de vida dos índios e camponeses que nela habitam (são palavras do próprio governador), a Extensão da UNEMAT atua em projetos que fortalecem a opção pela escala humana da relação com o meio ambiente. Na linha de flexibilização do ensino comentado anteriormente, a UNEMAT, sobretudo através da Extensão, oferta ensino a distância, em cursos parcelados e modulares, voltados para a inclusão social de grupos específicos. Outros dois projetos importantes liderados pela Pró-Reitora de Extensão, Profa. Solange Ikeda, foi o Encontro de Agricultura Familiar, em Tangará da Serra, destinado a pequenos agricultores e assentados e o Festival Ecológico e Cultural das Águas de Mato Grosso, em homenagem a D. Pedro Casaldáliga e solidário com a luta das populações locais em defesa do meio ambiente, da cultura regional e dos direitos humanos. Obviamente, é preciso coragem para enfrentar a política regional, o capital bilionário do agronegócio e mesmo as pressões, supostamente neutras do ponto de vista acadêmico, advindas da CAPES, da FINEP, do CNPq, exigindo que a UNEMAT seja tão “neutra” academicamente e tão eurocêntrica como todas as outras universidades brasileiras. E mais, que esteja a serviço da lógica do desenvolvimentismo predatório cujo futuro será a destruição completa do Centro-Oeste brasileiro –


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flora, fauna e modos de vida. (Enquanto escrevo, sou informado de que a UNEMAT está sendo ameaçada de federalização – uma espécie de “destruição branca”, dada a sua inviabilidade – por parte do atual governo do estado do Mato Grosso; uma retaliação, também, ao excelente trabalho de Extensão promovido por uma universidade estadual que de fato cumpre o seu papel social de desenvolver todas as regiões e todas as populações e grupos étnicos do estado).

7. A Extensão na encruzilhada: rebeldia ou submissão

O ponto básico dessas reflexões é enfatizar que para pensar a Extensão é preciso entender como opera a estrutura de poder dentro das universidades brasileiras. Na maioria, se não em todas as universidades públicas, o poder decisório está concentrado nos Departamentos, que são unidades extremamente reduzidas dentro do organograma da instituição e que compõem colegiados autônomos, os quais não passam em geral de duas dúzias de docentes. As unidades maiores, que são os Institutos ou Faculdades, pouca interferência exercem sobre as decisões dos colegiados departamentais; menor ainda é a capacidade das Pró-Reitorias de interferir nas decisões dos Institutos. Esse grau tão alto de autonomia e os reduzidos mecanismos de controle externo favorecem a cristalização de focos de poder e de definição das linhas acadêmicas nas mãos de um número extremamente reduzido de professores, que podem impor-se a seus colegiados durante décadas seguidas, às vezes praticamente sem nenhum desafio. Ou seja, o colegiado departamental, concebido inicialmente como uma instância de poder, visa transformar-se, na prática, na única instância real de poder e representação. Em um clima de tanta centralização (e muitas vezes de alta impunidade) a tendência comum é o fundamentalismo disciplinar e o conservadorismo teórico e temático. É esse o pano de fundo em que deve operar a Extensão. Em inúmeros casos, a tendência normal dos Departamentos será tentar barrar abertamente as propostas tidas como “ousadas” da Extensão.


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Aqui poderíamos ponderar se não há ainda mais uma fundamentação teórica para a prática extensionista. Cada Departamento, cada Instituto ou Faculdade, cada curso, de graduação ou pós, opera com um determinado cânon do saber científico e assim delimita o que deve ser ensinado e pesquisado – nessa delimitação está a sua positividade, ao distanciar-se idealmente da doxa e do conhecimento superado. Contudo, todo cânon opera com um grau de censura; ou melhor, é somente através da censura que se converte uma seleção, arbitrária e sempre interessada, de temas e abordagens, em um cânon. O tema da censura universitária tem sido inclusive retomado nos últimos anos por Jacques Derrida, ao discutir a crise da universidade estatal pública. Podemos ler os seus textos como um alerta para as dificuldades e a atualidade generalizada do tema, pois Derrida criou o Colégio Internacional de Filosofia na Universidade de Paris nos anos 80 justamente como se fosse uma mega- Pró-Reitoria de Extensão filosófica, destinada a acolher e estimular os temas censurados pelos vários departamentos de Filosofia da Universidade, reacionários e ortodoxos. Indo mais adiante, há sempre um não possível de ser formulado – um Denkverbot, para utilizar uma expressão retomada recentemente, e de um modo igualmente metafórico, por Slavoj Zizek, ao comentar o novo totalitarismo intelectual que ronda nosso mundo atualmente, correlato dos totalitarismos, mais dolorosos, econômico e militar. Seria plausível conceber a prática extensionista como uma intervenção diagonal e contundente nesses pontos cegos dos saberes disciplinares, nessas terras-de-ninguém entre os Departamentos e as Faculdades. Esse seria o caráter necessário e positivamente subversivo da Pró-Reitoria de Extensão. Ao referir-nos às instâncias acadêmicas como nichos ou pólos de poder, a questão recai, quase inevitavelmente, sobre o grau de autonomia do campo científico enquanto tal. Pierre Bourdieu parte do princípio de que esse campo se constituiu e se reproduz a partir de sua dinâmica interna e formula a hipótese de uma independência do campo acadêmico em relação às disputas políticas que


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sucedem no interior do Estado. Bourdieu construiu sua teoria da análise do mundo acadêmico da França, país rico do Primeiro Mundo e com instituições científicas de mais de dois séculos de existência e que se reproduzem ainda hoje com grande estabilidade. Na verdade, essa suposta e tão apregoada neutralidade política do mundo científico tem sido questionada por vários historiadores e pesquisadores, tanto para o caso europeu como para o norte-americano. Christopher Simpson e Noam Chomsky mostram, por exemplo, que as escolhas dos temas de pesquisa e mesmo de etiqueta acadêmica vigentes nos Estados Unidos e na Europa Ocidental foram construídos segundo parâmetros políticos formulados para a Guerra Fria. E István Mészáros mostra claramente como a pesquisa científica, no mundo ocidental, tornou-se dependente do complexo industrial-militar. No caso brasileiro, estamos falando de redes construídas majoritariamente na década de 70, em plena ditadura militar. Apesar do esforço continuado de muitas lideranças do campo científico em apregoar a existência uma independência da sua atividade em relação às disputas ideológicas e partidárias, eu particularmente defendo que sempre existiu uma evidente contaminação entre as duas áreas, inclusive porque a política universitária, mais encarnada na disputa pelos cargos de representação na Reitoria, esteve sempre vinculada à disputa partidária regional e nacional. E o poder no campo científico e acadêmico é assim constantemente conectado com o poder político da Reitoria e da sociedade como um todo. Nesse sentido, o modelo bourdieano, que certamente possui um valor heurístico, por um lado ajuda-nos a fazer uma leitura específica da instituição; por outro lado, ele pode trazer-nos uma ilusão de autonomia que não é realista. E aqui a Extensão é uma área particularmente politizada, na medida em que essa conexão com o mundo extra-muros é sempre uma escolha de relação com agentes sociais inevitavelmente posicionados no campo político. Para ficar no exemplo da UnB, poderíamos facilmente traçar as conexões entre os momentos mais “corajosos” e “rebeldes” dos seus projetos, em contraste com os momentos mais “alienados” ou simplesmente conformistas, com alinhamentos políticos da administração da Reitoria com a dinâmica política local e federal. Mais do que


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resistir a essa vinculação, ou performar uma desconexão que não existe, talvez uma alternativa melhor seja explicitar abertamente essas posições e re-significar a vinculação com a política externa nos termos específicos das disputas acadêmicas. Assim, por exemplo, se a abertura para os saberes nãoeurocêntricos passar a ser uma política de Extensão, os acadêmicos envolvidos nos projetos estarão enviando mensagens e reagindo, de um modo prático e contundente, a posturas governamentais – estaduais ou federais – que dizem respeito à construção de uma nação deveras multicultural. A política da Extensão deve passar a ter também um “p” maiúsculo: ou bem os poderes constituídos são sérios no respeito à diferença (valor maior na construção da democracia) e terão na Extensão um interlocutor qualificado e disposto, ainda que autônomo; ou bem continuam reféns de uma elite brasileira branca, eurocêntrica e discriminadora – e em tal caso será de novo em nome da autonomia que os projetos multiculturalistas da Extensão assumirão uma feição mais aberta, subversiva e coerente com sua missão de engajamento e retorno do saber acadêmico para a sociedade. Em qualquer dos dois casos, teremos admitido com toda consciência que somos atores políticos em um mundo que é sempre perpassado pela política; e teremos exercido também nosso lugar de posicionamento, seja para influenciar uma política externa com a qual concordamos, seja para resistir, com uma ação concreta de intervenção, a uma política de governo que nos parece inadequada para uma nação multicultural plena. Em ambos os casos, portanto, estaremos rompendo a barreira da ilusão de uma neutralidade acadêmica que nunca existiu e nem provavelmente algum dia existirá. Com um grau maior de controle dado pelo macartismo no caso norteamericano e um grau mais sutil de independência dado pela etiqueta pós-colonial francesa, é provável que até nossa concepção de Extensão não esteja isenta das agendas geopolíticas que mencionamos acima. Essa conexão mais mediada que absorvemos de uma ideologia de neutralidade centífica que silenciou o discurso anti-capitalista foi o que nos levou, por exemplo, a não refletir abertamente sobre a natureza das relações da nossa academia com as fundações estrangeiras de


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financiamento e apoio à pesquisa e à pós-graduação. Acredito que o momento presente, de repensar a Extensão no contexto agonístico de uma reforma universitária que dilacera a nossa comunidade, seja também uma boa ocasião para se iniciar uma discussão franca sobre o campo acadêmico brasileiro no contexto internacional, com todas as suas articulações e mediações, do Estadonação às empresas multinacionais que financiam pesquisas científicas e formação de especialistas, segundo os seus interesses de acumulação e reprodução do capital. Para ir um pouco mais adiante, a Extensão, como a raiz do próprio nome indica, existe para trazer tensão a um campo domesticado, qual seja, o do saber acadêmico institucionalizado: identificar a tensão gerada pela censura e a exclusão de saberes não legitimados; formular projetos, em parcerias com os grupos e comunidades detentores desses saberes; e assim, ampliar o universo de reflexão acadêmica, dissolvendo de um modo positivo e enriquecedor a tensão excludente inicial (gerando, de fato, uma extensão). Parafraseando Kant em sua célebre luta por publicar A Religião nos Limites da Razão Pura, que havia sido censurado por uma comissão obscurantista de colegas seus a mando do monarca, a Extensão deve estar sempre preparada para provocar, em nome da abertura dos saberes, um “Conflito entre as Faculdades”, parafraseando o título do famoso ensaio kantiano em que ele comentou e teorizou sobre o conflito de legitimidades no mundo acadêmico, do qual havia sido vítima. Este ensaio foi retomado recentemente por Derrida, em mais de uma reflexão sobre a instituição universitária contemporânea. Julgo importante enfatizar o lado irrequieto e inovador da Extensão justamente como um alerta, pois ela corre o risco de exacerbar os malefícios e as distorções que encontramos hoje na prática do ensino. Por exemplo, se a tendência agora é privatizar a universidade sub-repticiamente, através de cursos pagos, a Extensão pode ser o lugar por excelência da prática mercantilista intransparente e imoral. E se os colegiados estão fechando os cursos ao diálogo interdisciplinar, de novo a Extensão pode seguir na mesma linha, apenas


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replicando, em um formato reduzido e muitas vezes pago, a prática conservadora da grade curricular existente. Assim, para além de qualquer caso específico, os dilemas da Extensão são os mesmos dilemas que deveriam ser colocados também para a Reforma Universitária atualmente em discussão. E que é um dilema também internacional, conforme demonstra, com precisão e detalhe, Robert Kurz. Repassemos. Robert Kurz nos alerta para a possibilidade de uma insurreição que vem de fora, baseada na exclusão social por nós perpetrada, a qual significará uma ruptura radical de comunicação e o abandono definitivo da construção de uma proposta coletiva de convivência entre classes diferentes no interior da mesma sociedade. Em suma, essa ruptura poderá gerar uma atitude niilista e violenta por parte dos excluídos. Se tal ocorrer, perderão tanto os incluídos quanto os excluídos. Praticar Extensão é manter esse canal aberto com os grupos que mais se ressentem do poder injusto na nossa sociedade e que identificam a universidade como uma das instituições principais de reprodução da opressão a que são submetidos. Se a universidade não se abrir para esses grupos, ajudará a confirmar essa percepção (que eles já nutrem) sobre o seu papel de inimiga das camadas sociais injustiçadas pelo nosso Estado capitalista desigual e excludente. Finalmente, lembremos que, do lado do ensino, a grade curricular homogeneizadora do MEC não permite quase nenhuma aproximação com os subalternos excluídos. Do ponto de vista da pesquisa, é a dependência das instituições financiadoras públicas e das empresas privadas que colocam barreiras contra uma escuta de temas emergentes e/ou insurgentes. Por esses dois lados, portanto, a universidade está deixando de escutar as vozes dos excluídos. A Extensão ainda é o elo que deve ser mantido para um enriquecimento mútuo e para evitar uma ruptura de comunicação muito mais dramática, a qual na verdade já começa a instalar-se na sociedade brasileira, entre a pequena elite universitária e a maioria esmagadora de pessoas sem formação escolar suficiente para que possam sequer sonhar com a possibilidade de inclusão com dignidade nas redes sociais e no mercado de trabalho minimamente digno, no contexto de um Estado periférico, dependente e que desnacionaliza e privatiza seus recursos a um passo


90 cada vez mais acelerado – entre eles, os preciosos recursos destinados à educação superior pública. Essas são as questões que eu gostaria de trazer e poder dialogar com vocês a partir delas. Muito obrigado!

2. Concepção de Movimento Estudantil e Trabalho de Base

Texto 1: Nós não vamos pagar nada - Unificando diferentes pra fazer a diferença! José Rodolfo,

“Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e, sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir”. A.Gramsci

O movimento estudantil brasileiro assumiu no século XX um papel de protagonismo nas lutas sociais. A campanha “O petróleo é nosso” (1947-50) foi o primeiro grande momento histórico do movimento estudantil brasileiro atuando como eixo ordenador da União Nacional dos Estudantes. Campanha esta que assinala pela primeira vez na entidade uma posição anticapitalista. A fundação da UNE possuía bases de despolitização mesmo que esta tivesse caráter progressista e que uma leitura de esquerda na entidade tenha sido amadurecida paulatinamente. A UNE e o conjunto do movimento estudantil assumiram preponderantemente ao longo de sua historia um caráter de entidade atrelada à construção de um novo projeto de desenvolvimento para o país, mesmo que isso não fosse uma constante. De 1950 a 1956 por exemplo, a UNE foi dirigida pelo grupo de direita “Aliança Libertadora Acadêmica” ligada a UDN (União Democrática Nacional).


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A história da UNE é repleta de campanhas que ultrapassaram os muros da Universidade: O petróleo é nosso, campanha contra o aumento dos Bondes (1956), contra as multinacionais (1957), Contra o Estado Novo, pelo fim da ditadura, diretas já, fora Collor, fora FHC, etc...Vale ressaltar esse elemento para um balanço adequado, em termos de cultura política, da maioria do movimento estudantil hoje. A rearticulação da UNE na década de 80 após muitas mortes nos porões da ditadura recolocou a entidade em papel central no cenário político brasileiro. Nesse momento a UNE começa a contar com novos parceiros para a construção da luta, surgidos na grande efervescência que foi a década de 80. Os parceiros maiores e mais centrais, a CUT nascente e o MST, constituíram relação orgânica na disputa por uma nova hegemonia na sociedade brasileira. Para além dos caras pintadas e do “fora Collor” muito ocorreu sob a década de 90 na UNE. A consolidação da hegemonia da UJS através do controle burocrático da entidade e da instauração da carteira da UNE como obrigatoriedade para meia-entrada foram os fatos de maior relevância. Na década de 90 a disputa política da UNE toma novos rumos, o debate programático em termos apenas das bandeiras a serem defendidas se ampliou para um debate em torno da forma e do programa do movimento estudantil brasileiro. A maior parte da esquerda da UNE nesse momento percebe que não se trata apenas de modificar a direção da UNE para se resolver os problemas do movimento estudantil (ME), cada vez mais em refluxo e com graus de despolitização ascendente. A UNE das grandes campanhas havia sido substituída pela UNE dos grandes congressos, com megashows e pouco debate político. Os congressos da UNE se converteram nos últimos anos sob domínio da UJS em espaços despolitizados que apenas legitimam uma hegemonia política construída sobre as mais diversas estruturas que não a construção autônoma do ME. A disputa que noutros momentos se dava a quente no debate político na base, cada vez mais se tornou a disputa por quem tem mais grana para pagar ônibus. A intervenção da esquerda também foi tomando caráter complicado. Nas ultimas décadas de ME, além do controle das estruturas, a hegemonia da UJS se deu por diversos fatores, entre eles pela capacidade de acomodação do discurso que essa juventude demonstrou diante do avanço neoliberal. Para exemplificar, não é de hoje que a política cultural da UNE é atrelada a rede globo de TV, a exemplo de um festival de música realizado em 2002 pela entidade para a rede filmar uma de suas novelas. O crescimento da rede privada de ensino superior em ritmo acelerado foi outro fator que contribuiu em muito para a atual situação do movimento estudantil, só


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para se ter uma idéia o contingente de alunos em 2003 dividia-se entre as instituições públicas e privadas na razão de 31% para 69%, respectivamente, em 1995 essa razão era de 39% para 61%. A mudança de base operada pela UNE não refletiu uma ampliação da base militante no movimento estudantil, mas uma tática da UJS/PC do B no sentido de neutralizar a oposição de esquerda na entidade. Para tanto, o campo incorreu na flexibilização do seu discurso de forma cada vez mais acentuada. A isso, soma-se a reprodução da lógica burocrática de movimento estudantil, da hierarquia do levantamento de crachá por vários setores da esquerda da entidade e a extrema fragmentação, fruto do fenômeno de crise das esquerdas após a queda do muro de Berlim, que atuam na contramão da construção de unidade de ação nas lutas entre as forças e nos mais diversos setores. A falta de unidade entre diferentes concepções impossibilitou a produção de novas sínteses para o momento histórico que vivemos e contribuiu para acomodações da esquerda em torno de mitos do neoliberalismo. Um deles foi a instauração de um novo padrão normativo no estado que o tornaria muito mais permeável, argumento esse incoerente com o seu encrudescimento, mas legitimado no Brasil pelos efeitos ainda existentes das diversas conquistas democráticas da década de 80. A emergência da nova cultura política - “o novo (nem) sempre vence” Parte da esquerda da UNE, a partir do diagnóstico de progressivo afastamento da entidade do que se espera de uma ferramenta para a construção de uma nova sociabilidade, identificou na cultura política vigente, reproduzida pelo movimento estudantil presente na UNE, o problema central para a construção de um movimento estudantil que opte pela transformação. É importante salientar que cultura política é mais que a forma da política, que o tom do debate, que a cor da camisa, que um tambor ou “fumaça amarela”, mas, sobretudo é a construção de um novo padrão de valores relacionais e ideológicos no intento de ultrapassar a cultura política atual, geradora de consensos em torno de uma sociabilidade de opressão e exploração. Acredita-se que esta nova cultura não brota da mente de um novo dirigente de uma nova esquerda, mas de uma coletividade em exercício incessante de novas sínteses. Nas palavras do filósofo italiano Antônio Gramsci: “Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas originais, significa também e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e ordem intelectual e moral.”


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Uma nova cultura política no movimento estudantil redireciona a concepção de movimento estudantil para novas bases. Abaixo o que considero essencial nessa concepção de movimento que nosso coletivo adota ainda hoje: - Um movimento estudantil engajado, para além do corporativismo no debate de educação. Apesar de identificar no debate de educação o elemento de coesão e legitimação central no movimento estudantil, a construção de uma nova cultura política implica ampliar as pautas do movimento para além de bandeiras corporativas. O desenvolvimento de parcerias entre o movimento estudantil e outros movimentos sociais e a reflexão crítica da totalidade social são essenciais para essa ampliação das bandeiras que extravase o movimento estudantil para além dos muros dos muros da universidade. Essa postura engajada no espaço onde se formam novos trabalhadores e se forjam novos conhecimentos é essencial para a disputa por uma sociabilidade onde o ser ultrapasse o ter, a partir da auto-organização de oprimidos e explorados e para a demarcação de um projeto alternativo de sociedade sem exploração e opressão. - Um movimento estudantil combativo, na defesa da liberdade sem pedir licença. A resposta ao marasmo neoliberal não é, portanto, a adequação do discurso a despolitização e desmobilização reinantes, ao contrario, é a afirmação de nossas bandeiras históricas, buscando demonstrar a sua pertinência na vida das pessoas através das mais diferentes formas. - Um movimento estudantil autônomo e democrático: são elementos fundamentais para viabilizar a mais ampla mobilização de massas. Uma pratica política coerente com o projeto de sociedade que defendemos: auto-organização dos oprimidos e explorados e emancipação dos mesmos. Diante disto o movimento estudantil não deve servir de correia de transmissão para correntes, partido, movimentos e organizações externas a sua realidade, sendo autônomo em relação a partidos, governos e reitorias e onde quem decide sobre seus rumos são os estudantes que atuam nesses movimentos. - Autonomia não implica em rejeitar o acúmulo que os partidos, movimentos e organizações políticas da esquerda oferecem como instrumentos importantes para construção da luta dos oprimidos e explorados, e muito menos perseguir ou impedir a plena participação de militantes organizados no movimento. Ao contrário, autonomia requer o mais amplo respeito à pluralidade de posições e opções organizativas, inclusive a opção de não estar organizada, cuidando para que os próprios fóruns do movimento estudantil definam seu futuro e não grupos e organizações externas a esse movimento.


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- Democracia. A defesa de um mundo radicalmente democrático passa pela defesa de um movimento estudantil democrático e principalmente pela existência de uma prática democrática de movimento estudantil. Uma prática democrática de movimento estudantil está vinculada também à ousadia de demonstrar às pessoas que elas podem e devem interferir nos rumos da história de que elas participam, fomentando o debate nas bases através de espaços de democracia direta como assembléias aliado a uma preocupação de não subrepresentar ninguém. - Um ME democrático deve levar em consideração as dificuldades enfrentadas pelo conjunto dos estudantes para participar do movimento estudantil, tais como dificuldades econômicas, de tempo (ocasionadas por situação econômica muitas vezes), dificuldades de expressão em público, etc... Além disso, é preciso construir estruturas horizontais de gestão, rechaçando hierarquias do tipo presidencialista em nossas entidades, esforçando-se na construção do método de “Voz, voto e ação” para todo o estudante que ingresse em entidade de base. -Um ME antimachista. Um movimento estudantil que combata a opressão sobre as mulheres deve, para além do discurso, transpor em sua prática um combate radical a opressão de gênero. Para tal, a relação com o movimento feminista transversal ao movimento estudantil deve atuar no sentido de transpor as pautas das mulheres, historicamente oprimidas e super exploradas na ordem capitalista, para o movimento e instaurar uma lógica geral menos opressiva em relação. - Um ME anti-racista. A realidade das universidades é profundamente atingida pela opressão aos negros e negras. Desde a composição até o espaço ocupado pelos negros na Universidade. Um problema que atinge a sociedade brasileira como um todo. No ensino fundamental brasileiro, pretos e pardos representam 53,2% do total de alunos e os brancos são 46,4%, enquanto no ensino superior a proporção de pretos e pardos é de 17,6% e a de brancos é de 81,5% (segundo os dados do IBGE tabulados pelo INEP de 2001). Esta realidade extremamente excludente já impõe uma demanda ao movimento estudantil que é a pouca expansão deste debate em nossas universidades, já que a maioria dos atingidos por esta opressão está excluída do espaço da Universidade. A realidade do movimento estudantil é ainda mais brutal, basta observarmos a quantidade de militantes negros e a pouca relevância que a questão étnico-racial assume em nossa prática quotidiana. O fenômeno de “branqueamento” (que consiste na adoção de padrões brancos pela raça negra) é reforçado por uma prática de movimento que não põe em xeque esta questão e continua atribuindo ao debate setorial de negros, defensivamente o ônus da divisão, acusando a militância negra de racismo inverso. “Isso é racismo, defender cotas, porque separa”, como se já não houvesse uma cisão entre os que são


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oprimidos e os que não são, assim toda reação que enfrente o mito da igualdade racial é tida como separatista. A necessidade de ampliação deste debate no movimento estudantil está relacionada ao modelo de universidade e de sociedade que queremos construir. A opressão étnica não está apenas relacionada à exploração econômica, o que se observa pela diferença brutal entre os padrões econômicos e étnicos da universidade brasileira. O fenômeno racista em nossa sociedade, infectada pelo mito da igualdade racial, está vinculado também a questão identitaria e as mais diversas trocas valorativas que legitimam diariamente uma violência simbólica aos homens e mulheres afro-descendentes.Um dado para análise deste fato é que nas ultimas gestões do DCE-UFF @s militantes negr@s sempre foram poucos. - Um ME anti-homofóbico. A opressão a lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros é também elemento a ser enfrentado pelo movimento estudantil e que corrói profundamente a construção do movimento como espaço de experiência democrática. Pense rápido em alguns comentários pejorativos entre as forças políticas e talvez você veja isso com mais clareza. A relação que o movimento estudantil estabelece com o movimento LGBT é ainda precária para quem considera importante o enfrentamento desta questão. - Um ME ambientalista. É essencial que o movimento estudantil esteja engajado na construção de um novo padrão de relação com o meio ambiente na nossa sociedade. O capital tem nos imposto faz décadas seus nefastos padrões de degradação ambiental e parte da construção de uma nova cultura política é a afirmação disto e a denúncia deste sistema de morte. - Um ME plural, horizontal, autônomo e democrático. Em suma, a defesa de uma nova cultura política abarca uma radicalidade, no sentido de ir a raiz dos problemas, que concebe os problemas do movimento estudantil para muito além da direção da UNE, são problemas de cultura política, que orbitam em torno da concepção de movimento estudantil defendida e praticada pela maior parte das forças políticas do ME.

“A nova cultura virou fumacinha amarela?!” Aqueles que regressam que lhes importa vossas tristezas? Que falta lhes faz


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a franja de alguns versos? Basta-lhes um par de muletas com que renguear pelo resto da vida. Tens medo? Covarde! Te matarão! Maiakovsky O governo Lula marca um novo ciclo para a esquerda e para o conjunto dos movimentos sociais brasileiros. Uma série de processos em aberto é concluída e o seu fim não foi o melhor fim possível. A ascensão do governo lula representou um novo impasse na construção efetiva de uma nova cultura política e de uma sociedade radicalmente diferente. Os ataques dirigidos às conquistas históricas dos trabalhadores e dos estudantes no Brasil não tardaram, no primeiro ano a reforma da previdência, depois a reforma universitária e as diversas políticas que atacaram direitos e conquistas históricas dos movimentos sociais. O primeiro momento no movimento estudantil foi de crise na esquerda, já que parte dos campos que defendiam uma “nova cultura política no movimento” foram engolidos pela força centrífuga do campo governista, contudo a guinada destes campos para a concepção de movimento estudantil a que se opunham não foi um processo pacífico e muito menos um processo consensual nestes campos. Muitos estudantes e lutadores da esquerda em geral se desiludiram por sentirem-se órfãos diante da traição de antigos companheiros e outros tantos travaram e travam até hoje a disputa por um referencial de construção de uma nova cultura política no movimento estudantil. Os últimos fóruns da UNE foram marcados pela guinada da maioria dos campos que defendiam uma nova cultura política no movimento estudantil para o campo atrelado ao governo, triturando a defesa histórica de autonomia do movimento estudantil, chegando ao limite de defenderem a votação indireta para presidente da entidade, pauta que sempre combateram. O governo Dilma, iniciando o ano de 2011 com um corte de verbas nos setores sociais, segue o mesmo caminho do governo anterior, aprofundando as políticas de enquadramento à ordem internacional, principalmente no que tange à viabilização da realização dos megaeventos no Brasil, gerando desocupações, ocupações militares de morros e favelas, restrição de direitos e desrespeito aos direitos humanos. Mais uma vez os movimentos sociais são colocados em xeque e levados a se posicionar diante da opressão da classe trabalhadora, uma política de


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autonomia a governos, partidos e reitorias é o que garante a independência necessária para não assumir o discurso desenvolvimentista pregado pela mídia e pelo governo, possibilitando a resistência e a luta contra a retirada de direitos. “Quem não se movimenta não sente as cadeias que o prendem” A luta não é luto, é nascimento. Tenho pena de quem nunca teve essa prática de convívio. Viva a nós e a uma humanidade mais humana, mais justa e, por que não, mais poética. Que todos aqui têm algo em comum e que as diferenças devem ser encaradas com mais sensibilidade. Trecho do poema escrito no primeiro seminário do Coletivo Nós Não Vamos Pagar Nada

Por um movimento estudantil autônomo, plural e combativo Quem tem consciência para ter coragem E ter a força de saber que existe E No Centro Da Própria Engrenagem Inventa a Contra-Mola Que Resiste Quem Não Vacila Mesmo Derrotado Quem Já Perdido Nunca Desespera E Envolto Em Tempestade Decepado Entre Os Dentes Segura A Primavera

Movimento Estudantil para nós é plural. Expressa-se de vários modos na nossa vida cotidiana. Entre os estudantes há uma diversidade de grupos e diferentes prioridades de intervenção e opiniões distintas. O movimento estudantil não se limita aos Diretórios e Centros Acadêmicos, DCE’s, e muito menos a forças políticas que atuam dentro do movimento estudantil.Sendo assim, consideramos parte do movimento estudantil, todo intento de organizar e mobilizar os estudantes em torno de determinado projeto de universidade ou de sociedade, inclusive as entidades como CA’s e DA’s. Consideramos que as diversas formas de atuação que avancem para além da defesa de interesses corporativos e que não quer de forma alguma prescindir do necessário combate a toda forma de opressão e exploração. (coletivos de cultura, gênero, etnia...) têm a mesma importância para operar as transformações sociais que preconizamos.


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Hoje a maioria dos movimentos sociais vive grande impasse e no movimento estudantil não é diferente. A já flagrante falta de autonomia dos movimentos sociais frente a partidos e organizações políticas aflorou com maior intensidade pela polarização fruto da divergência entre os que acreditam que hoje a tarefa central do movimento é defender o governo e o restante do movimento. Nas entidades de movimento geral isso ficou bem claro, a ver pelo exemplo de nossa entidade representativa nacional, a UNE, e a sua política de defesa do governo, mesmo quando esse se contrapõe aos interesses dos estudantes. Para esses os fins justificam os meios, acreditam que esse governo é bom e fazem o que for possível para defendê-lo. Uma alternativa de construção de um movimento autônomo tem sido feito através da organização dos estudantes em seus cursos. Os encontros de área com suas formas inovadoras e flexíveis têm atraído milhares de estudantes para o debate. As executivas de curso se configuraram em espaço central protagonizando momentos importantes como o boicote ao ENADE e na resistência contra o REUNI e a expansão universitária que como está apresentada mercantiliza a educação. As executivas têm defendido um modelo de universidade diferente, com mais verbas, debate democrático e autonomia didático-científica, entre outras coisas. O Movimento de área, que ultimamente tem preenchido em muito o papel que devia ser da UNE, de conduzir com autonomia as lutas gerais dos estudantes brasileiros, é imprescindível para a disputa de rumos da sociedade, e não pode nem deve ter um fim em si mesmo ou no movimento geral servindo de correia de transmissão de correntes de oposição a UNE. É preciso que construamos saídas alternativas ao imobilismo e adesismo da UNE sem repetir suas praticas aparelhistas nas executivas de curso. Pois bem, para nós o central é a contraposição à forma aparelhista e autoritária de conduzir as entidades e os movimentos, pois é essa forma antidemocrática de representação e direção que norteia a maior parte da militância do movimento estudantil hoje. Para nós também não existem soluções relâmpago. Não julgamos adequadas rupturas pirracentas com nossas entidades históricas sem debate mais profundo. Estas acabam servindo mais pra fragmentação da parte crítica do movimento estudantil que para o combate aos aparelhismos de partidos e governos. Acreditamos que é cental unificar a parte crítica do movimento estudantil, com autonomia e disposição para construir consensos. Experiências desse porte vêm se desenvolvendo em diversos DCE´s executivas de curso e na Frente de Oposição de esquerda na UNE, tocando as lutas dentro das


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universidades, nos encontros estudantis, nas praças, ruas e em todo lugar. Não acreditamos no movimento estudantil que adere aos projetos do governo acima de tudo e muito menos acreditamos no “Contrismo” de quem é contra tudo e todos. O movimento que queremos e fazemos é propositivo. Deve sempre formular novos caminhos e estratégias para construir universidade e país melhores com a devida flexibilidade para compreender a complexidade dos processos em que estamos inseridos. Outras formas organizativas que recentemente tem tomado vulto no movimento estudantil: - Coletivos de mulheres Reunindo estudantes mulheres no combate ao machismo estes coletivos se multiplicaram Brasil a fora, combatendo tanto o machismo dentro do ME quanto na sociedade como um todo. Em 2011 aconteceu o quarto encontro de mulheres da UNE, que pontuou debates combativos discutindo a luta contra o machismo de forma contextualizada e séria; - Coletivos de negros e negras: Tem sido fundamentais no aprofundamento do debate sobre a questão racial, carece portanto de maior articulação com outros grupos; - Coletivos de diversidade sexual: Ganharam maiores proporções e iniciaram sua ampliação a partir da experiência do ENUDS (Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual) a partir de 2002;. - Coletivos Ecológicos: Em diversas universidades grupos que lutam contra a exploração predatória fruto da mercantilização da natureza e da vida tem atuado; - Coletivos de cultura: Não é algo tão recente mais tem ganhado um vulto abandonado desde o tempo dos CPC´s através da instauração de grupos que discutem e fazem arte em todo o pais, participando dos festivais de arte assim como da Bienal de cultura da UNE, que infelizmente cumpre papel muito inferior ao que foram os CPC´S, a arte engajada é geralmente independente, e nem sempre mantêm relação com as entidades do ME. Cada estudante deve se sentir parte do Movimento Estudantil. É preciso então que encaremos práticas maléficas a um movimento plural que aceite as divergências e as resolva pela discussão democrática. 1) “A boa e velha conversa de forças”- muitas vezes decide o futuro do movimento estudantil, passando por cima do debate democrático.


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2) “Papo de homem pra homem”- O movimento estudantil reproduz o machismo em seus espaços de forma desenfreada. 3) “Eu sou mais eu sigo adiante, romper com tudo e até com o estudante” – divisionismos e sectarismos não nos ajudam nesse momento, precisamos unificar todos os que não se venderam por um cargo no governo e ampliar. 4) “Eu já falei vou repetir”- Acreditamos que o movimento estudantil precisa muito mais de propostas que de palavras de ordem, isso é muito importante para lembrar sempre. Essa pequena contribuição não pretende responder as questões do ME atual mais levanta-las e propor método de superá-las, espero que ajude a construir o ME autônomo e de luta que preconizamos.

Texto 2: Os valores e os desvios na militância (texto para debate na comissão de organização do III EIV SP) A gente deve varrer o chão e lavar o rosto todos os dias, pois, se não fizermos isso, a poeira se acumula. Mao Tse-Tung

No interior do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se processava em nossos hábitos e nossas mentes, o indivíduo foi fundamental. /.../ Na atitude dos nossos combatentes, visualizava-se o homem do futuro. Che Guevara

Valores são traços da conduta, do comportamento, da postura, do hábito. Os valores são uma necessidade no interior de qualquer projeto de humanidade. No limite, são o objetivo maior do próprio projeto de humanidade. Cada projeto define os seus valores. Para os socialistas, a solidariedade é um valor; para os capitalistas, o individualismo é um valor. Por isso, os anti-valores são desvios: desvios do caminho que se deve seguir. Para todo valor há um desvio correlato: disciplina x indisciplina; solidariedade x individualismo; organização x desorganização etc. Entre um valor e seu correlato, há uma articulação dialética, de modo que a construção de um confunde-se com a desconstrução do outro. Quais são os valores que os socialistas devem cultivar, e quais desvios devem corrigir?


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Qual é a origem da conduta? Por que um indivíduo se comporta de uma maneira X e não de uma maneira Y? Ele é “culpado” pelo seu comportamento? O comportamento nasce somente e tão somente da vontade e pronto? Ou, inversamente, o comportamento é fruto de determinações externas, não tendo o indivíduo qualquer responsabilidade sobre ele? A origem do comportamento é um dos maiores mistérios da humanidade. A filosofia discute esse tema desde sua origem. A bem da verdade, esta é uma das grandes polêmicas da filosofia e, mais recentemente, da psicologia. O que se sabe é que os indivíduos são influenciados desde o nascimento e permanentemente pelo ambiente onde vivem, entendido como as condições históricas, sociais, políticas, culturais e psicológicas de sua existência, bem como o ambiente local propriamente dito. O ambiente influencia, condiciona, em alguma medida determina. Nestes termos, a conduta é uma síntese: nela, tanto a vontade como determinações externas estão presentes. Em que medida cada uma opera, em que grau, em que momento... pouco se sabe e muito se especula sobre. O fato é que a conduta não pode ser reduzida nem a determinações externas nem à vontade. Ambas estão presentes, articulando-se dialeticamente. De qualquer forma, é certo que, se não somos culpados pelos desvios em nós, somos responsáveis pela sua correção, mas isso depende de uma motivação interna Che: “ter essa motivação interna que incita constantemente a observar os próprios defeitos, a buscar os defeitos para tratar de superá-los”. Como despertar no indivíduo essa motivação interna? A sociedade de classes é um obstáculo à superação dos desvios nos indivíduos; inversamente, os desvios nos indivíduos constituem-se como obstáculo à superação da sociedade de classes. Um e outro formam um ciclo vicioso: a sociedade de classes alimenta os desvios e vice-versa. Do mesmo modo, a correção dos desvios nos indivíduos e a superação da sociedade de classes são aspectos diferentes de um mesmo processo. Entre uma e outra não há etapas, mas uma articulação dialética. No entanto, no bojo do processo, é necessário que haja organizações que sejam capazes de intervir no processo para garantir a justeza de seu rumo. Organizações são feitas de militantes, os quais são indivíduos, que também sofrem influência das condições postas nessa sociedade de classes. Por isso, a conduta dos militantes é um dos pontos mais importantes da conspiração revolucionária. A conduta dos militantes é determinante para o sucesso da ação revolucionária. Podemos dizer que os desvios na militância são um dos maiores empecilhos à práxis revolucionária. Por isso, é necessário corrigir os desvios na militância desde já. Como corrigir os desvios na militância desde já, ou seja, no interior da sociedade de classes? Os desvios na militância se corrigem pela práxis, desde que se assuma como tarefa identificá-los e corrigi-los, numa ação permanente e planejada, que envolve organização, formação e lutas. Numa organização, os quadros devem ser antes de tudo educadores, guardiões do exercício da critica e da autocrítica, da tarefa permanente de superação dos desvios. O que faz dele um educador é a sua práxis, a sua militância. Ele educa pelo exemplo, muito mais do que pelo discurso. Nós temos nos portado como educadores? Se não, por que não?


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Os valores e os desvios expressam-se também no discurso, mas como o discurso foi banalizado – qualquer um fala qualquer coisa, sendo que nem sempre realmente se faz o que se fala –, o discurso deixou de ser critério da verdade. A prática é o critério da verdade, o critério para saber quem de fato cultiva valores e quem não os cultiva, quem de fato se esforça em corrigir os desvios e quem os mantém. Qual é a nossa prática? O que nós temos feito? Que desvios há em nossa prática? Nós os percebemos? Se sim, nós temos nos esforçado por corrigilos? Se não, por que não? O movimento estudantil é um ambiente repleto de adversidades à correção dos desvios: a origem de classe dos estudantes; o fato de o movimento estudantil não ser uma organização, mas nele haver organizações em disputa; o fato de a condição de estudante ser passageira e a alta rotatividade dos militantes num curto período de tempo; etc. Essas adversidades não devem ser vistas como limites, entraves intransponíveis. Devemos superar a idéia de que o movimento estudantil possui vícios que não podem ser superados, como se estes vícios fizessem parte da natureza do movimento. Estas adversidades devem ser encaradas como desafios. Nós encaramos estas adversidades como desafios ou como limites? Se como limites, por quê? Se como desafios, nós temos conseguido organizar uma práxis que dê resposta a estes desafios? QUAIS SÃO OS DESVIOS QUE DEVEMOS CORRIGIR? Perante as tarefas: Voluntarismo – Voluntarista ou espontaneista é aquele companheiro que age por impulso, seja por ingenuidade, por não compreender a importância do planejamento e da organização, seja por má fé, por querer dirigir um processo à força, na marra. Nesse caso, é aquele que nas manifestações age contra a decisão coletiva, que toma uma iniciativa por si só, sem consultar ninguém, e que coloca tudo a perder. O voluntarismo pode ser uma ação pontual, mas pode ser uma postura: nesse caso, o sujeito é voluntarista. Do voluntarista não se pode esperar nada, pois ele faz as coisas que quer e na hora que bem entender. Não se compromete com nada, não gosta de ver nada organizado. E se ele espera isso dos outros, ele resiste à organização e ao planejamento. (Não se deve confundir o voluntarismo com o trabalho voluntário, e que Che pregava com tanto entusiasmo. São coisas bem diferentes. No trabalho voluntário, o “voluntário” é sinônimo de militante. Nele, a organização e o planejamento estão sempre presentes). Indisciplina – A indisciplina é a postura daquele que não segue a linha definida pelo coletivo, que não entende a diferença entre fazer parte de um coletivo e não fazer parte de um coletivo. Nunca um militante vai concordar com absolutamente tudo que é decidido. Todo aquele que faz parte de um coletivo ocasionalmente diverge de orientações, encaminhamentos, decisões do coletivo, mas, se ele tem disciplina, ele as segue, sem deixar de divergir e expor sua divergência nos espaços adequados. Mas aquele que é indisciplinado não consegue ter essa postura. Se ele diverge, ele faz as coisas da sua cabeça ou simplesmente não


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cumpre as tarefas que deveria cumprir. E, quando pode, ele sabota o coletivo. Ao contrário do voluntarista, aquele que é indisciplinado segue uma organização e um planejamento, mas aquelas definidas por ele próprio, e não pelo coletivo. Pessimismo exacerbado e otimismo exacerbado – O pessimismo exacerbado ou o derrotismo é a postura daquele que se sente sempre acha que o que é feito vai dar errado ou que não vai dar em nada. Geralmente é a postura de quem superestima as condições objetivas e subestima a própria capacidade. O otimismo exacerbado é o contrário: é a supersimtação da própria capacidade e a subestimação das condições objetivas. Tanto um como outro são duas formas de subjetivismo, pois surgem da incapacidade de avaliar friamente as condições objetivas e a própria capacidade e de orientar sua ação considerando ambas as variáveis, na justa medida, sem hiperdimensionar uma e subdimensionar a outra. Desleixo – O desleixo é a desorganização, é a postura daquele que faz as coisas de qualquer jeito, sem cuidado, sem atenção, sem se preocupar se a tarefa está sendo bem feita ou não. O desleixado, enxerga as tarefas como meras obrigações, e se preocupa mais em cumprir as obrigações o mais rápido possível do que em garantir que o objetivo da tarefa seja alcançado. Isso quando se preocupa. O desleixo é a falta de cuidado e de atenção em geral. É desleixo não cuidar do espaço físico, da organização das coisas, da limpeza dos espaços, da preservação das coisas. O militante que age assim não percebe a importância da organização das coisas para o trabalho político. A falta de pontualidade também é uma forma de desleixo, que prejudica imensamente o trabalho político. São diversas formas de desleixo, que têm na base a inconsistência no compromisso do militante com a causa no qual está envolvido. Falta de iniciativa – Na luta pelo socialismo, é necessário que o militante tenha iniciativa. Todas as situações impõem essa postura. Iniciativa de fazer alguma coisa, de pensar alguma coisa, mesmo de tomar decisões, o que não se confunde com voluntarismo. Essa é a postura daquele que se desdobra para cumprir com os objetivos, para garantir que a tarefa seja cumprida fora dos meios previstos originalmente. A falta de iniciativa é a falta de protagonismo, é a postura daquele que se contenta em “fazer a sua parte”, mesmo sabendo que, numa situação, se ele só fizer a sua parte, o que estava previso para ele fazer, a tarefa não será cumprida. A falta de iniciativa é por isso também falta de compromisso com a causa. É a postura daquele que se coloca como se fosse um funcionário de uma empresa capitalista, e não como militante. Irresponsabilidade – A irresponsabilidade é a postura daquele que não mede as consequências do que faz edo que fala, e que em função de sua irresponsabilidade coloca os objetivos da organização a perder ou compromete outros companheiros. O irresponsável cria situações que atrasam o trabalho político, que desviam o foco, que retrocedem o acumulo alcançado. É irresponsável aquele que age de maneira irresponsável, mas também aquele que se omite de maneira irresponsável.


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Comodismo – No atual estágio da luta de classes, um dos desvios mais generalizados entre os socialistas é o comodismo ou o burocratismo. Ao contrário do que prega um certo senso comum, o burocrata não é necessariamente aquele que atua na retaguarda, pois a atuação na retaguarda de uma parte da militância é essencial para o sucesso do trabalho político. O burocrata é o acomodado. Ele pode fazer o discurso mais radical, mas se na prática ele estiver acomodado, ele é um burocrata. O comodismo é a postura daquele que não se preocupa em aperfeiçoar suas tarefas e o modo de executá-las. É aquele para quem do modo como está sendo feito está bom. É a postura daquele que não cria, mas se limita a reproduzir operações padrão, que não toma a iniciativa de procurar melhorar seu trabalho, sua militância. Em última instância e em situações em que se exige mais do militante, é a falta de espírito de sacrifício, quando a luta pelo socialismo exige sacrifícios. Inconstância – A inconstância é a característica daquele que ora está presente e se compromete com as tarefas, ora está ausente, e neste momento não dá pra contar com ele pra nada. A inconstância é sintoma de inconsistência ideológica, de falta de compromisso real com a organização, de um meio compromisso. 2. Perante os outros companheiros, as outras organizações e as massas: Individualismo – O individualista é aquele que só faz as coisas se ele pensar, se ele comandar, não raras vezes se ele fizer sozinho. O individualismo não se confunde com a postura de reserva. Há companheiros que são reservados: falam pouco, guardam sua privacidade etc. Estes companheiros não são individualistas. O individualismo é a postura daquele que quer que as coisas sejam “do seu jeito”, e que as tarefas acumulem não para a organização e para a classe, mas para si, para a sua auto-satisfação. Geralmente o individualista se sente oprimido pelo coletivo. Aliás, o invididualismo é exatamente o oposto do espírito de coletividade. Sectarismo – O sectarismo é a postura daquele que não sabe lidar com a divergência e a diferença daqueles que compartilham da mesma causa, mas acreditam que os caminhos para alcançá-la são outros. O sectário é aquele que, face à divergência, elege como inimigo aquele que na verdade é adversário. Existem dois tipos de postura sectária. Na primeira, o sectário é ostensivo: ele agride, denúncia, gasta boa parte de seu tempo com patrulhamento ideológico sobre seu adversário. Na segunda, o sectário, despreza totalmente seu adversário, evitando qualquer tipo de diálogo, mesmo a crítica, e quando fala do adversário, evitar falar o nome. Em ambos os casos, o sectarismo envolve um sentimento de superioridade perante o adversário, sentimento esse que precisa ser expresso como mecanismo de auto-proclamação. Em suma, o sectarismo se manifesta quando não se tem a incapacidade de diferenciar o inimigo do adversário. Moralismo – O moralismo é a postura daquele que reduz o comportamento à vontade, tanto nos outros como em si mesmo. Geralmente aquele que é moralista


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em relação aos outros é também em relação a si. O moralista desconsidera as influências do ambiente, da conjuntura, as situações. No lugar disso, ele sempre procura identificar a culpa e a não culpa: “fulano tem culpa”, “ciclano não tem culpa”. É comum o argumento da culpa servir de pretexto para encobrir a realidade e impedir a auto-crítica e a correção dos próprios desvios: “nós não temos culpa”. O moralista acha que tudo é uma questão de vontade. Por isso, geralmente o moralismo vem acompanhado do voluntarismo. Vanguardismo – A revolução é uma tarefa de milhões. Isso é consenso entre todas as organizações revolucionárias. Só que, quando se entra no mérito da forma de mobilizar estes milhões, há uma grande divergência. Para alguns, o papel dos revolucionários é rebocar as massas. Isso vale no geral, mas também nas frentes de massas, inclusive no movimento estudantil. O vanguardismo é a postura daquele para quem as massas (sejam as massas estudantis, sejam outras) podem ser rebocadas ad infinitum, mesmo fora de uma conjuntura revolucionária. O vanguardista não se preocupa com o nível de consciência das massas. Ele superestima o papel do discurso mobilizador e subestima o papel da educação das massas. Para ele, as condições para a revolução estão dadas, basta aqueles que ocupam o papel da direção agirem da maneira certa que as massas seguirão o caminho. Por isso, o vanguardista desdenha a idéia de acumulo de forças. Por isso, o vanguardista é sempre se isola das massas. Basismo – O basismo ou o assembleismo é a postura daquele para quem tudo tem sempre que passar por assembléia. Isso vem geralmente de uma rejeição a priori à direção política. Ele acredita que a direção tem sempre uma postura dirigista, autoritária, mesmo quando não há essa postura. Ele sempre acha que a direção quer manipular a base, enganar a base. Entretanto, embora basista, ele desdenha a organização da base, a formação política para a base, pois isso soa como manipulação. Ele quer que a base fale e pronto. Para ele, o importante é que os processos sejam conduzidos pela ação espontânea da base. O caráter espontâneo é essencial. Para ele, se a base fala sob influência da direção, a base está sendo manipulada. Este é o basista autêntico, sincero. Mas existe também o falso basista, ou aquele que é basista por conveniência. Este é basista por má-fé. Isso acontece quando, numa conjuntura de assembléias esvaziadas, mas favoráveis às suas posições, ao invés de se engajar na formação de novos militantes e no trabalho de base, o falso basista insiste que tudo tem que passar por assembléias, caso contrário o encaminhamento não será democrático, será burocrático. Seja ele vanguardista, seja ele direitista e contra o movimento, não importa: se a situação de esvaziamento lhe é favorável, ou seja, se a assembléia esvaziada lhe é favorável, ele se torna um basista. Mas esse basismo não é consistente. A evocação à vontade da base não passa de pretexto. O que está em jogo para o falso basista não é que a base imponha a sua vontade, mas, ao contrário, é que suas posições prevaleçam. Por isso, os falsos basistas combatem toda e qualquer proposta que visa a ampliar a participação.


106 Autoritarismo – O autoritarismo é a postura daquele que quer definir as linhas políticas, as ações e o comando dos outros companheiros sozinho, e que enfrenta a resistência dos companheiros quando questionam essa conduta. O autoritário é aquele que no discurso diz valorizar a direção coletiva e a democracia interna, mas que na prática desdenha tanto um como outro e passa por cima de ambos. Existem diversas maneiras de organizar a democracia interna, a ampla participação e a direção coletiva numa organização. Elas dependem de esquemas formais, mas também de uma postura. Numa organização, uma instância pode formalmente ter o direito de tomar uma decisão, mas se não existe uma opinião amadurecida sobre o assunto na base, a direção sabe que a decisão não pode ser tomada, mesmo que formalmente possa. Uma direção autoritária não assume essa postura. Omissão do exercício da critica e da auto-crítica – Numa organização, qualquer militante é suscetível de cometer erros e ter desvios de conduta, mesmo os mais experientes e coerentes. Por isso, o exercício da crítica e da auto-crítica é essencial, o que não se confunde com policiamento, muito menos com patrulhamento ideológico. Muitas vezes, por vergonha, sentimento de impotência, falta de convicção ou qualquer outro motivo, deixa-se de criticar um companheiro quando é necessário criticar, dizer que ali existem desvios. O mais comum é ou não criticar ou criticar para ofender, humilhar, desmoralizar. Ambas as posturas são um desvio. Assim como o é a falta da auto-crítica. Como sabemos, é raro um militante ter o hábito de fazer a autocrítica. E, quando vemos um militante fazer auto-crítica, o mais comum é a auto-crítica se resumir ao apontamento de insuficiências: “eu fiz tal coisa, mas foi insuficiente”, “nós fizemos tal tarefa, mas foi insuficiente”. O fato é que a maioria dos companheiros têm um forte bloqueio ao exercício da auto-crítica. Para eles, fazer a auto-crítica é como humilhar a si próprio. Não perceber a importância e o lugar da crítica e da autocrítica é um desvio dos mais graves, pois a correção de todos os desvios depende exatamente do exercício da crítica e da auto-crítica. Por isso, as organizações revolucionárias devem ter como prioridade educar os militantes ao exercício da crítica e da auto-crítica, instituindo maneiras, momentos e espaços adequados para isso. Por mais dura que seja essa educação. 3. De grupo: Auto-suficiência e auto-proclamação – A auto-suficiência e a auto-proclamação são desvios que vêm sempre acompanhados um do outro e que são típicos de grupos (organizações, movimentos, correntes, partidos etc.). É auto-suficiente aquele grupo que considera desnecessário somar forças com outros grupos, ou mesmo que soma forças, mas apenas quando isso lhe fortalece enquanto grupo. O grupo auto-suficiente tem sempre uma postura e um discurso autoproclamatórios, ou seja, gosta de falar de si como o melhor, o único, a alternativa. Aparelhamento – O aparelhamento é também um desvio típico de grupos. Ocorre quando um grupo confunde o coletivo com o privado, e faz do espaço coletivo –


107 geralmente uma entidade – extensão de si. O aparelhamento não é o esforço em tornar coletivo a linha política do grupo. Este esforço é natural. Todo e qualquer grupo almeja difundir suas idéias e propostas. O problema é quando a adoção de uma linha não se dá num processo de debates e apropriação da linha, mas de maneira artificial e burocrática, sem que haja convencimento e sem que seja garantido o espaço democrático de discussão e decisão. Por isso, o aparelhamento acaba sempre sendo uma versão do burocratismo. 4. De personalidade: · Deslealdade à classe · Personalismo · Oportunismo · Competição · Incoerência · Agressividade · Impaciência · Exibicionismo · Picuinhagem · Dogmatismo · Arrogância


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Texto 3: Princípios e elementos organizativos para iniciar um debate

A ideia é debater alguns princípios organizativos que possam fazer avançar as formas organizativas que escolhermos para a organização e para qualquer outra frente de atuação. Também é importante, junto aos princípios organizativos, alguns elementos organizativos que são importantes para debatermos e chegarmos ao que queremos daqui pra frente pra nossa nova organização. Princípios organizativos são aqueles que norteiam uma organização e que, independente da conjuntura, seguirão presentes e necessários - como um norte a ser seguido, sem nunca rebaixá-lo. Os elementos de organização são mais voláteis, são os elementos que compõe uma estrutura a ser tocada pela organização. Eles são orientados pelos princípios. Fazer um debate de princípios, sem debater os elementos, ou vice e versa, não traz o debate organizativo por completo numa perspectiva marxista. Os princípios e elementos que elencarei aqui, de maneira solta, são dialeticamente relacionados, e não necessariamente existe uma ordem de prioridade ou de realização entre eles. ***Podemos iniciar o debate em si pelas questões que podem ser classificadas como mais gerais (princípios), para depois partir para as mais práticas (elementos). Talvez, o central das questões gerais organizativas, o princípio basilar de uma organização marxista, é a busca incessante pela direção coletiva. Karl Marx tem essa ideia como central para a construção de uma sociedade socialista e comunista, ainda que não use esse conceito. Direção coletiva é fazer com que, cada vez mais, todos os militantes tomem parte de todas as discussões possíveis, e, por que não, que toda a sociedade tome parte das discussões e decisões dos rumos das mesmas. Para que haja direção coletiva é necessário que, individual e coletivamente, os militantes sigam a práxis marxista. Práxis é a unidade dialética entre a teoria e a prática. É formação política simultânea à luta e organização cotidiana com a disposição de um socialista. Mas só são necessárias práxis e direção coletiva se elas forem acompanhadas do princípio do projeto anticapitalista. É esse projeto, e suas


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implicações teóricas e práticas, que nos coloca em movimento, que faz com que nos organizemos. Nunca podemos abrir mão dele na militância, nem deixar de debatê-lo. Para tanto, faz-se necessário analisar não só o que dizemos defender, mas também o que fazemos. Agora vamos passar a elencar algumas outras questões sobre esse debate de princípios e elementos organizativos que baseiem a nossa discussão para levantarmos e chegarmos a uma síntese para o que acreditamos que deverão nortear o nosso debate.

ALGUNS PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS:

Conjuntura, estratégia e tática: uma das coisas que é fundamental de debater em nossas instâncias. Muitas vezes me parece que tendemos a debater apenas as ações, de maneira muito rasa, sem tentar analisar a conjuntura na qual determinado tema está inserido. Essa atitude prejudicial às nossas próprias ações, por mais que ela faça com que encaminhemos mais rapidamente. Análise de conjuntura não é apenas a parte chata das teses onde se escreve qualquer coisa sobre o que acontece no mundo, é o instrumento fundamental para a ação, para a práxis! Uma organização deve debater sempre a conjuntura, constantemente rever suas análises, e usá-la para os debates mais específicos. Isso não significa que antes de cada reunião tenhamos que fazer uma análise de conjuntura, mas devemos começar a pensar em, pelo menos mensalmente, fazer esse debate. A análise de conjuntura é também o instrumento teórico que nos possibilita delimitar nossas estratégias e táticas para as mais diversas ações. Esse debate, sim, deve ser feito em todas as reuniões. Estratégias são os objetivos gerais que a organização quer alcançar e táticas são as ações que serão utilizadas para chegar à estratégia. Táticas são flexíveis e mutáveis, a estratégia não. Elas, porém, relacionam-se dialeticamente. O que é uma tática para algum tema pode ser estratégia para outro, e vice-versa. Por isso, a importância de que nossa organização deve debater sempre as estratégias e táticas gerais, da organização como um todo. E que a cada nova ação devemos debater, em reunião, as estratégias e táticas para ela. O aperfeiçoamento desse debate irá, aos poucos, fazer com que os militantes se atenham às questões mais centrais dos debates e das caracterizações. Fará com que nossa organização baseie suas ações (como, por exemplo, uma eleição de DCE) não só sobre as aparências, mas sobre o que queremos e como o faremos. Formação política: a formação política constante é dever da organização e dos militantes. Não há prática sem teoria, e para isso é necessário estudar! A


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organização deve possibilitar espaços de formação política coletiva, que sirva para ensinar, aprender e nivelar o debate dos militantes. Os militantes também têm o dever de estudar individualmente, e para isso têm de sacrificar outras atividades de fora da militância. É importante estudar economia, filosofia, história dos movimentos de esquerda, teoria da organização política, opressões e também temas específicos de áreas de atuação, como educação e saúde. É importante ler Marx, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Moreno, Mandel (entre muitos outros). Estudar os formadores de opinião da burguesia também é fundamental, assim como assistir ou ler jornais. Formação política constante é a melhor maneira de criar direção coletiva dentro de uma organização, e também é muito profícua para a militância cotidiana. Militância, método e moral: Todos nossos militantes devem se debruçar a fundo sobre esses temas para que não criemos um paradoxo de defender uma nova sociedade, mas manter o método e moral burgueses. Nossos militantes têm de sempre tentar fazer análises das situações, não se deixando levar pelas aparências, pelo estômago e pelo pragmatismo. Devemos, também, construir a moral marxista na prática, aos poucos. Temos de subverter conceitos construídos pela moral burguesa, com o que é moralmente certo e o que não é (o debate sobre o vandalismo é um exemplo disso). Camaradagem, respeito e prioridade do coletivo em detrimento do individual são alguns dos elementos nos quais temos que avançar, sempre sabendo que a sociedade capitalista nos condiciona à moral burguesa, e que temos que superar a ambas para chegar ao socialismo. A militância não é um mar de rosas e, infelizmente, temos de abrir mão de algumas coisas em nossas vidas, mas também não deve ser uma coisa desprazerosa, mas algo com que façamos na medida do possível da nossa disponibilidade, entendendo que alguns militantes tem tempo maior a se dedicar à militância, enquanto outros não. Alguns deixam coisas de lado e colocam a militância como prioridade, bem como outros não. Nesse sentido, a militância deve ser algo prazerosa dentro de nossas vidas, para a luta contra todas as desigualdades e opressões vivenciadas cotidianamente com um horizonte para a superação do sistema capitalista. Avaliação das intervenções: Outro elemento importante é o balanço, que muitas vezes é confundido com a crítica. O balanço é algo coletivo, de toda a organização, não sobre um militante, mas sobre uma linha política ou ação que passou ou que mudou de forma. Nele se apresenta o que tinha sido pensado para o tema, como as ações foram desenvolvidas e como foram os resultados. O balanço pode ser tanto positivo quanto negativo, e deve apresentar, ao seu final, a síntese do debate, as perspectivas para seguir acertando ou parar de errar.


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ALGUNS ELEMENTOS ORGANIZATIVOS: Comunicação: quem não comunica se trumbica, até mesmo na militância. Para que haja direção coletiva é preciso que todos os militantes saibam o que se passa na organização, nas frentes de atuação e no movimento em geral. Para isso é fundamental que todo militante que for a alguma atividade pela organização passe um relato detalhado o quanto antes para a lista de e-mails da organização. E é dever dos militantes ler os e-mails/informativos e se informarem sobre o tema. Além de isso possibilitar um debate mais profundo, também faz as reuniões ficarem mais curtas, trocando o tempo de informes (já mandados na lista) por debate das pautas. As relatorias das reuniões também entram nesse bojo, pois servem, além de memória do debatido, para que militantes que não puderem comparecer se inteirem das discussões e posições do coletivo. Organização das reuniões: essa discussão é fundamental. Um grande problema é quanto aos dias e horários, pois nem todos tem uma grande flexibilidade. Outro problema são os atrasos. A ausência em reuniões e atividades é outro ponto a ser debatido. A convocatória da reunião deve ser feita com antecedência, pois nem todos os militantes tem a mesma possibilidade de acesso à internet. Nela devem estar todas as pautas. É tarefa de cada militante pensar nas linhas de cada uma das pautas antes de sair de casa, para que o debate em reunião seja mais qualitativo. A reunião deve ser organizada a ponto de que possamos debater sem perder muito tempo. Isso implica na necessidade de repensarmos nossa prática de inscrições. Sem a definição prévia de uma mesa e de uma relatoria é muito difícil organizar uma reunião. Debatemos informes, quando esses deveriam ser postos como pontos de pautas se fossem ser debatidos. Muitas vezes tem a chance de falar aquele que fala mais alto ou que se impõe, algo bastante antidemocrático. Outra prática interessante que podemos tentar é a divisão prévia de qual militante abrirá cada um dos pontos da reunião, priorizando uma divisão que ajude também na formação política dos militantes mais novos. Divisão de tarefas: Lenin, em sua Carta a um Camarada, diz que é necessário dar tarefas "a todos e a cada um". Isso significa que as tarefas, para além do importante resultado de seu cumprimento, tem uma importância interna à organização. Dar tarefa a cada um é dividir tarefas entre os militantes, possibilitando que a organização avance coletivamente. Dar tarefa a todos é fazer com que todos os militantes façam parte, de verdade, da organização. Só com militantes fazendo parte do cotidiano da organização, por mais que com as mais diversas tarefas, é que poderemos avançar rumo a uma organização com direção coletiva. Dividir tarefas é também pensar nas estratégias e táticas da organização.


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Texto 4: MOVIMENTO ESTUDANTIL: PROCESSO DE CONSCIÊNCIA & TRABALHO DE BASE- “ABRINDO CAMINHOS DE LUTA” Por Vinícius Oliveira “Doug” * Coordenador Geral ENECOS-2009 Barricadas abrem caminhos Coletivo Socialismo e Liberdade – PSOL

“A questão de atribuir um pensamento humano, uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa provar a verdade” Karl Marx Introdução. Todo movimento social necessita criar suas trincheiras fortes para que possa resistir e agir . E o primeiro passo na construção dessa barricada é definir um objetivo, concepção e organização. O movimento estudantil localiza-se dentro do movimento de educação mas não para limitar-se à ele, mas para a partir dele conseguir pintar de povo a universidade, a educação, o Brasil e o mundo. Nesse contexto compreendemos a concepção do movimento estudantil classista como movimento social, que alia-se à classe trabalhadora e suas organizações, mas respeita a autonomia de si e de outras organizações. Para que o ME não vire correia de transmissão de pautas que não possam ter consonância. Todo movimento só tem razão social de ser quando consegue entender as contradições sociais com que trabalha e qual a base social que o sustenta. Por isso a discussão de trabalho de base é importantíssima no movimento estudantil, mas não basta apenas repetir as cartilhas traduzidas de outros países, ou do MST (sem dúvida o movimento social mais importante da América latina) e de outras organizações, temos que formular a discussão de trabalho de base aproveitando as diversas experiências, mas com um olhar firme para nossos


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objetivos e nossa concepção e realidade. Encarando de tal forma, o debate sobre o projeto de educação do nosso país, da nossa universidade, polarizado hoje dentro da reestruturação da educação brasileira, e particularmente da universitária, através da REFORMA UNIVERSITÁRIA, é vital para amadurecer qualquer espécie de discussão

e

atuação do movimento estudantil brasileiro, se defendemos uma educação voltada para as elites ou voltada para o povo e a posição da reforma atualmente reflete isso. Assim, pretende-se formular CONTRIBUIÇÕES, no sentido dialético, para a discussão do trabalho de base no movimento estudantil para potencializar nossas organizações contra o capital e abrir caminhos de Luta. O que seria trabalho de base? Trabalho de base consiste em diferentes métodos de trabalhar uma causa dentro de uma coletividade específica (no caso estudantes), casado com uma leitura da realidade material e subjetiva, para formular sujeitos ativos da transformação social. A importância do trabalho de base? “É muito mais difícil e muito mais precioso mostrar-se revolucionário quando a situação não permite ainda a luta direta, declarada, verdadeiramente macia, verdadeiramente revolucionária, saber defender os interesses da revolução (pela propaganda, pela agitação, pela organização) em instituições não revolucionárias, ou mesmo claramente reacionárias, num ambiente não revolucionário, entre massas incapazes de compreender de imediato a necessidade de um método de ação revolucionária...” Vladimir Lênin Marx já dizia que não são as idéias que moldam o mundo, mas o mundo na relação dialética com as idéias que determinam a realidade social. Então não basta que apresentemos o programa mais revolucionário ou mais à esquerda. O programa tem que apresentar consonância material e subjetiva com a atuação práxys do movimento. Nesse sentido a leitura da realidade (ou conjuntura) mais acertada


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localmente, nacionalmente e internacionalmente reflete na construção do movimento, casado com sua concepção e organização que interfere no seu modo de ser e trabalho de base. Na dinâmica da luta de classes a história não se move em forma linear, nem de forma evolutiva. A dialética da realidade não é estática, é movimento. Não podemos acreditar que porque a organização vai bem, ela sempre irá bem, está “evoluindo”. Nos momentos de Ascenso e descenso da organização a avaliação deve permanecer. Prestemos atenção em 2 aspectos: Fatores externos: que influi a conjuntura sua de outras organizações, inimigos de classe, descenso das lutas sociais. Fatores internos: como pode haver um quadro grande de renovação de militância, erro no ritmo da luta, ou até mesmo o “tarefismo”,a falta de formação política e disciplina consciente. Quem faz o trabalho de base? Quem deve executar o trabalho de base é a ORGANIZAÇÃO. Por mais que algumas vezes a organização apresente-se com um ou poucos indivíduos, é para o chamado à coletividade que devemos apresentar nossa pauta. A falta da organicidade à luta podem levar a erros históricos como a luta individual ou ao ativismo. E muitas vezes leva a atuação a um ciclo vicioso da eterna partida do ponto 0. Porque as pessoas não conseguem visualizar que cada luta é tocada pela organização. E que além da disputa pelo ganho material da pauta é a organização dos mesmos que garante qualquer conquista. As formas de organização mais abertas, democráticas e formuladoras que estimulam o protagonismo social, a discussão dos pontos do problema ligados a questão mais ampla e entendem a importância dos VALORES SOCIALISTAS como: companheirismo, respeito ,solidariedade, alegria e ousadia na luta cotidiana, ecoam mais enfaticamente nas escolhas. A ideologia e os perfis dos estudantes


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Uma discussão vital no campo da esquerda é a discussão da ideologia e do processo de consciência. A classe trabalhadora e os estudantes são doutrinados pela ideologia a seguir a vida material, os anseios e os sonhos burgueses. A família, o trabalho, a religião, a educação formal, a mídia e o Estado tentam garantir a sobrevivência da ordem burguesa e também a sua legitimação, tanto no campo material quanto na subjetividade.

De tal forma, que não podemos compreender o movimento estudantil apenas analisando-o por dentro, tanto seus acertos quanto os seus erros, mas analisar a atuação do mesmo dentro da conjuntura social. Vivemos uma conjuntura no Brasil de descenso das lutas sociais, cooptação das maiores organizações da classe trabalhadora (PT, UNE e CUT), sectarismo dentro da própria esquerda e um consenso conservador e individualista que nada se transforma pela coletividade. Vivemos em uma conjuntura de resistência e reorganização. Então resta-nos entender o nosso campo de ação, ou seja nossa base social: os estudantes. Sabemos que os estudantes são policlassistas o que dificulta nossa intervenção de classe. Mas mesmo assim é dever nosso fazer a disputa da consciência de classe. Dessa forma existem diversos interesses IMEDIATOS da estudantada na sua relação com a universidade o que pode refletir tanto na sua relação com a mesma, quanto com o movimento estudantil. Essa relação se dá também pela condições materiais que o individuo está submetido. Os interesses IMEDIATOS podem ser: Acadêmicos - em uma formação acadêmica, formar-se intelectual (podendo cair na falsa separação trabalho braçal x intelectual) Interesses puramente festivos-

curtir a universidade, aproveitar os

momentos lúdicos, conhecer novas pessoas e visões. Carreiristas- por questão de emprego e sobrevivência. Estar na


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universidade para crescer no trabalho ou fazer concurso. Ou para garantir a famosa independência financeira. Poder -assumir status na sociedade burguesa, afirmação pessoal ou familiar. Transformação- pode ser individual,familiar, coorporativa e até de classe. As vezes pela ótica trabalhador ético e honesto que faz o “bem” pelo seu “bom” trabalho. Não se trata de demonizar ou vangloriar um perfil acima do outro. Nem se trata de encaixar as pessoas dentro desses perfis. Esses tipos de perfis podem tanto se adentrar nas organizações estudantis de luta, quanto nas pelegas. Podem existir diversos interesses ou perfis não mencionados. Esse tipo de discussão nos leva a pensar em como entendendo os interesses imediatos dos estudantes possamos fazem uma disputa de consciência, e pautar nossa atuação. É mais um recurso metodológico do que uma linha política. Exemplo:

Organizando

uma

semana

acadêmica,

envolvermos

a

companheirada com interesses imediatos acadêmicos. Com uma cultural que debata valores, podemos atingir os mais festivos. Debatendo formação profissional, os carreiristas e que anseiam por poder. Fazendo uma jornada, ou mistica, envolvermos os que querem transformar, em um convite à luta organizada.

Processo de “Engajamento” no ME. (ou quem sabe de consciência)

A- Contradição x Indignação. Não é o movimento em si que desperta, mas a contradição em movimento que pode indignar os indivíduos. Precisamos entender que os estudantes muitas vezes sabem que as contradições existem, mas sempre de forma “mediada”.


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Trabalhar com o ver, sentir, cheirar, tatear,ouvir e para evitar o desânimo trabalhar a contradição apontando a organização. Entender que o capital tem “contradições” em todas as suas etapas e dentro da universidade como fora dela. Existem diferenciações dentro de um curso para outro, da relação entre professor e estudante, dos apadrinhados pelos que topam enfrentamento, entre os próprios funcionários, entre a formação colocada e o emprego imposto pelo mercado, entre a propaganda falseada e a realidade. Exemplo: Na Universidade Federal de Sergipe, à 3 anos no primeiro dia de aula levamos os estudantes calouros de comunicação a conhecer os espaços da universidade e fazemos uma breve explicação sobre cada espaço e sua importância. Mas particularmente sempre levamos os calouros a conhecer a antesala do gabinete do reitor (sem aviso prévio) e pedimos que tirem uma “foto mental”(sem

mediações)

desse

espaço

para

comparar

com

o

nosso

departamento. A contradição é alarmante e incontestável, porque falta estrutura para um departamento enquanto o gabinete da reitoria ostenta algo que só existe naquele espaço?

B-Indignação x participação A partir do momento que trabalha-se a contradição e desperta a indignação,muitas perguntas surgem. É preciso que fique claro que esse processo não acontece com todos os indivíduos e também não ao mesmo tempo. A indignação não é um passo completo na consciência, ela também pode se perder, por ser um sentimento ela passa. O indignado ainda pode-se mover pelos interesses individuais e achar que a resolução dos seus problemas por meios que apenas o favoreçam. Então dizer que o mundo vai mal, a universidade tá ruim pode trazer a linha de raciocínio:“ Então vou fazer o meu e foda-se o resto”. Ou seja também, pode cair na indignação INDIVIDUALISTA. Devemos enfrentar a ideologia, que trata-se do falseamento da realidade e a universalização das idéias da classe dominante. Na hora da indignação


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devemos trabalhar a FORMAÇÃO. Através de debates que partam da realidade IMEDIATA. E combater os “mitos” ou as “verdades” que são minimamente perigosas para o avanço do trabalho de base no movimento estudantil. Combater qualquer saída individualista, mostrando a importância da coletividade e da organização até mesmo para a conquista das pautas minimas. E que nós devemos ser os construtores da nossa própria história. Jogando qual o compromisso que nós devemos ter com a sociedade. Exemplo: 1-Na mesma calourada (ou semana do calouro) no segundo dia realizamos um espaço sobre “Universidade e Formação”, convidando um estudante e um professor(ou convidado), para quebrar a idéia do professor como latifundiário do conhecimento e juntos teorizarmos sobre o que vemos e vivenciamos. Mostrar que conhecimento e educação no sentido epistemológico paulo freiriano são as idéias da classe dominante e que eles não vão sair da universidades “formados”, mas que estão passando por um processo de formação, e que o tempo todo vão ter que escolher se produzem conhecimento para os dominantes ou para povo. Exemplo 2- Na mobilização por qualidade, realizar uma assembléia, discutir a pauta e propor comissões abertas além da organização, para que outras pessoas se inseriam na pauta e a partir dela na organização. Mostrando que temos que propor e agir. C-Participação x ORGANICIDADE Acreditar na coletividade é um passo. Exercitar a coletividade é um desafio! Não somos formados para viver a coletividade. É difícil pensarmos enquanto organização e nos sentirmos parte dela. Adentramos em uma organização e sempre a testamos para saber se ela serve ou não, se aquele era discurso tem consonância prática. Mostrar abertamente a organização como algo aberto e móvel . Que ela é instrumento da luta. Exemplo: As pessoas quando entram nas organizações e pegam as tarefas


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que mais se identificam, não se desafiam em expandir seus horizontes. Não se desafia a pensar a organização. Organicidade no planejamento e divisão equitativa das tarefas. A organicidade real do movimento é sentida quando existe uma formação coletiva e quando as tarefas também são encaradas dessa forma. Organizações que legitimam a concentração de tarefas e o personalismo não tendem a durar muito. Isso não desqualifica a formação de referências. É preciso sensibilidade no cotidiano da organização. Prestar atenção na companheirada mais nova, envolver nas discussões, leituras e tarefas. Cobrar das pessoas mais experientes atenção, cuidado e compromisso. Trazer pautas para organização que contemplem os diferentes perfis de militantes, trabalhando discussões acadêmicas,culturais, mobilizadoras. Importante também nesse aspecto sair um pouco da universidade. Mostrar que existem outras organizações, movimentos sociais e que nossa tarefa é estar aliada a esse setores. D- POSICIONAMENTO DE CLASSE A partir do estudante vivendo a contradição, organizando-se e colocando-se em movimento. Os caminhos para a construção e posicionamento de classe entrelaçam dialeticamente com a nossa forma de fazer movimento. Nossas referências de movimentação, leituras, até uso de roupas abrem a mente da galera para que possamos dialogar sobre qual a grande questão da classe trabalhadora: a Luta de classes. Nesse momento é adequado unirmos as pautas estudantis as pautas da classe trabalhadora, sem menosprezar a luta estudantil. A importância de estarmos juntos aos movimentos sociais de maneira critica (para também não virarmos correia de transmissão!). Enfim, de fazermos luta para quebrar os muros da universidade. Não trata-se de dissociar a luta de classes da luta do movimento estudantil. Mas sim de saber como vamos relacionar a luta do movimento estudantil com a


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luta da classe trabalhadora. * Formação Política Sempre que entramos no movimento estudantil, temos a impressão que a luta começa quando entramos. A formação política é fator fundamental no trabalho de base. Compreender o que fazemos, porque fazemos e que a nossa luta é muito anterior a nossa existência e que continuará além dela. É fundamental termos um referencial teórico nos nossos cursos dentro do marxismo. E compreender a luta de classes e sua história de lutas no Brasil e no mundo. Entender o capitalismo e suas bases econômicas-políticas. Compreender qual o projeto de educação defendido pelo capital na atual conjuntura e dentro de todo o contexto qual o papel do movimento estudantil. *Quantitativo x Qualitativo. Um dos erros que os diferentes movimentos fazem é avaliar o trabalho de base pelo critério apenas quantitativo. E também não podemos avaliar pelo critério apenas qualitativo (companheirada bem politizada!). O sentido do trabalho de base é seguir a dialética de quantitativo e qualitativo. Não adianta formar um grupo qualificado que não consegue organizar a estudantada para mobilizações, e não adianta um grupo massivo que não tem o debate tático e estratégico claro. 7- PARA OS QUE VIRÃO “A experiência demonstra que é fundamental romper com esse esquema (da Universidade Pública). E também que não se deve subestimar as dificuldades para fazê-lo. Nos países com governos débeis, os estudantes com suas reivindicações podem representar uma ameaça à estabilidade política. Portanto, os governos devem atuar com muita cautela ao introduzir as reformas...” (Extraído do documento oficial do Banco Mundial chamado “Las lecciones derivadas de la experiencia, pagina 29


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Quem trata de fragmentar o ser é o capital. Não podemos cair na dicotomia entre sentir e pensar. A sensibilidade militante deve nortear nossa luta cotidiana colado com o nosso sonho da revolução socialista. A criatividade e a ousadia devem também fazer parte da nossa atuação. É na ousadia, no fazer diferente que as pessoas sentem o tesão pela luta e pela organização, devemos ser o estimulante dos militantes criativos e ousados. Sempre ouvimos que o Movimento estudantil é passageiro, mas o movimento deve ser permanente quem é passageiro é o militante. É papel da organização e dos militantes INSPIRAR. Trazer a cabeça e o coração para pensar a luta. Estimular valores de lutadores que sabem que não carregam as verdades do mundo, mas que sabem e sentem o compromisso que nossa história não nos deixa esquecer. Então o nosso trabalho de base deve ser voltado para os que virão. Para os novos. Para o despertar de novos lutadores e lutadoras. Para que em meio a essa sociedade que queima de ódio, egoísmo e desigualdades façamos chuvas de contestação. Chuvas de Contestação por Vinícius Oliveira A seca de esperanças faz com que criemos chuvas de contestação Correr atrás do objetivo da transformação cair na realidade e dar de cara no chão morrer enquanto individuo e renascer enquanto organização organizar nossa teoria organizar nossa ação sensibilizar os indivíduos para a transformação formar a militância com a cabeça e o coração lutar, mesmo de mãos atadas, pois, o compromisso é com a nossa classe criatividade e ousadia devem ser a nossa agitação inspirar a nossa juventude inspirar o sujeito na atuação criando barricadas de idéias abrindo caminhos para a revolução


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3. Reorganização do Movimento Estudantil – Oposição de Esquerda da UNE e Federações/Executivas de Curso

Texto 1: Lutar quando é fácil Ceder! – A reorganização do ME *Texto sobre a Reorganização do Movimento Estudantil. Contribuição do Coletivo Rompendo Amarras, escrita pela militante Clarissa Viana, ex-Diretora de Mulheres da UPE e integrante da CN do Rompendo Amarras

Quando nos propomos a fazer o debate sobre em que estágio está a reorganização do movimento estudantil, precisamos partir da análise de alguns elementos conjunturais. Boa parte das organizações e coletivos de esquerda tem diferenças de avaliação sobre como se dá e como se dará o processo de reorganização. Entre essas diferenças está a própria divergência quanto à profundidade do processo e as conseqüências disso na reformulação de um projeto de transformação social, nos instrumentos da classe, e nos demais movimentos sociais, incluindo o estudantil. Essas diferenças justificam em parte recentes acontecimentos que dificultam inclusive a unidade na ação em oposição ao governo federal. Podemos usar como exemplo a divisão do Conclat em 2010 (que sabemos, já vinha de outros processos de fragmentação), outro bom exemplo foram as candidaturas separadas do PSOL e PSTU para presidência da república no mesmo ano ou mesmo a divisão nas instrumentos de luta no movimento estudantil. Essas situações não se justificam somente pela diferente visão do processo de reorganização. A dinâmica de divisão estabelecida diante desses fatos potencializou, e muito, a priorização absoluta da auto-construção. Mesmo que as divisões tenham origem na lógica da sobrevivência das organizações de esquerda, de sua preservação ou auto-proclamação, está colocado um desafio ainda maior para os socialistas no Brasil: a retomada da bandeira da unidade enquanto necessidade imprescindível da classe trabalhadora e da juventude e a


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perspectiva de que a reorganização é muito maior do que as próprias organizações existentes.

Rompendo Amarras no CONUNE de 2011 Para refrescar a memória O movimento estudantil também foi influenciado pelo processo de fragmentação. Prova disso, é que depois do FLCRU (Frente de Luta Contra a Reforma Universitária) em 2006, somente na greve nas federais em 2012 a partir do CNGE (Comando Nacional de Greve Estudantil) foi vista uma ação em unidade em âmbito nacional dos setores de oposição ao governo federal. A experiência do FLCRU, mesmo que um pouco atrasada diante da reforma que vinha sendo aplicada aos poucos pelo governo federal, foi um marco importante, já que fazia um recorte entorno de um eixo político, possibilitando a unidade e polarizando de maneira efetiva com o governismo. O que unificava os setores da esquerda combativa era evidente: a oposição à reforma universitária. Antes disso, parte do movimento – amplamente resumida o PSTU – enxergou a necessidade de ruptura com a UNE. Foi criada a Conlute, em 2004/2005. Parte da vanguarda deslocou assim grande parte dos debates entorno do instrumento de luta do ME. Viu-se assim, aquilo que unificava – a luta contra a Reforma Universitária – se transformar em uma luta entre a própria esquerda sobre se seria correto ou não romper com a UNE e fundar uma nova entidade, mesmo que esses diversos setores tivessem acordo na bandeira de luta e que milhares de estudantes sequer tivessem contato com esse debate. A própria FLCRU, que buscava retomar espaço de unidade, se esgarçou por conta deste debate. Naquela época, as companheiras e os companheiros que decidiram pela construção da Conlute já anunciavam “um novo movimento estudantil” como argumento para tal política. Em um texto em 29/06/2005, o PSTU afirmava: “Dezenas de Centros


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Acadêmicos, DCEs e Executivas de Cursos já romperam com a UNE e a tendência é que esse processo se aprofunde a partir do congresso que será realizado em Goiânia (GO) a partir de 29 de junho. Trata-se de um movimento histórico e objetivo diante do caminho sem volta tomado pela entidade”. “Permanecer nos marcos da UNE é semear ilusões e gastar energia numa luta estéril, inglória, uma vez que os estudantes, principalmente das universidades públicas, não a tem mais como referência. Pelo contrário, a UNE e o PCdoB foram literalmente expulsos dos DCEs das federais”. Em outro texto, de 17/05/2005, o PSTU dizia: “A ruptura com a UNE é um processo objetivo que está apenas se iniciando e tende a aumentar após o Conune”. Alguns anos se passaram. A reforma, por conta do enorme peso do governo, foi sendo aprovada. Junto com isso, as políticas do governo Lula provocaram um aumento brutal no ensino privado. A base governista correu para organizar estes setores. E as rupturas com a UNE não ocorreram de maneira massiva, como visualizava o PSTU. A pouca resistência que havia não foi capaz de manter vivos os espaços de unidade. Apesar de todo o esforço, de todas as lutas travadas, ocupações, marchas, atos, a esquerda combativa foi derrotada. E com o passar dos anos a própria Conlute deixou de existir, sem nem sequer se despedir. A própria Frente de Oposição de Esquerda da UNE também enfrentou muitas dificuldades. Em 2007, com uma nova onda de ocupações de reitorias pelo país, como na USP e em mais de dez federais, que se chocavam contra medidas de precarização do ensino, principalmente o Reuni. Novamente, apesar da unidade na ação em muitas universidades, as companheiras e os companheiros do PSTU voltaram a colocar a ruptura da UNE como um passo determinante. E novamente a esquerda combativa de oposição ao governo petista, se viu debatendo o instrumento, a superestrutura – um debate legítimo, mas que na prática cotidiana de atuação colocou enormes dificuldades à unidade do movimento. Nesse momento, o ativismo do PSTU fez um chamado para a construção do Congresso Nacional dos Estudantes, em mais um texto, de 4/08/2009 “nós não podemos ficar parados! Apesar da traição da UNE, o movimento estudantil brasileiro segue lutando e deve dar um passo à frente. É preciso construir uma nova entidade estudantil nacional que possa recuperar a confiança de cada estudante na luta unificada do movimento estudantil.” O CNE seguiu ao ritmo da música da fragmentação e terminou com parte da esquerda fundando uma nova entidade, a ANEL, e parte dela reivindicando a composição da Oposição de Esquerda da UNE (este tema em especial será


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melhor debatido nos itens subseqüentes do texto). Sem compreender o governo, não compreendemos a reorganização Há, portanto, uma primeira diferença na leitura sobre o processo de reorganização da esquerda. A leitura de que o governo Lula vivia uma crise em seu início que provocaria muitas rupturas não conseguiu se comprovar na realidade. Houve sim um setor da vanguarda que se deslocou do petismo, mas nem a UNE nem o Governo se enfraqueceram de lá pra cá. Se depois do boom das universidades privadas os setores governistas ocuparam espaço político nesta base social, depois da implementação do Reuni esses mesmos setores voltaram a disputar a sério o espaço nas universidades federais. As teses de enfraquecimento objetivo das forças governistas, nesses dois momentos históricos, devem ser melhor pensadas. É verdade que em momentos de maior unidade dos setores combativos, os DCEs e CAs voltam para as mãos da esquerda. Mas isso é muito diferente de afirmar que o setor governista agoniza, inclusive pelo enorme peso que as privadas têm no quadro atual. Os índices recordes de aprovação dos governos petistas – em aliança com a direita tradicional – apontam para isso. É de conhecimento geral do ativismo do ME brasileiro como um todo que a UJS (União da Juventude Socialista) hoje dirige a maioria dos estudantes organizados do país. Com o processo de ampliação das vagas nas universidades privadas através das políticas de governo que beneficiaram esse setor, a correlação de forças no movimento estudantil mudou bastante. É importante lembrar que hoje cerca de 74% dos estudantes do país estão nas universidades privadas. Além disso, o governo Lula dobrou o número de vagas nas universidades federais, de aproximadamente 100 para 200 mil. Com isso, é inegável que se abriu um considerável espaço para os militantes da base ou da base aliada do governo no próprio ME de públicas – este que sempre foi um terreno difícil para a majoritária da UNE. É impossível pensar um processo a sério de disputa de hegemonia da sociedade, da qual o movimento estudantil faça parte, que não inclua um planejamento de disputa destes novos estudantes. Na avaliação do Rompendo Amarras a perspectiva ainda é, e continuará sendo, de defesa intransigente da unidade entre os setores combativos do Movimento Estudantil, em que pesem todas as dificuldades, diferenças na leitura da reorganização, nos métodos de construção do movimento. Talvez através da identificação dessas diferenças conseguiremos pensar melhor as iniciativas unitárias que superem os famosos “chamados” à unidade – por coincidência, a unidade proclamada sempre é entorno do instrumento ou da luta que as organizações já estão construindo, ignorando assim essas diferenças, e raramente entorno de espaços realmente unitários a serem construídos.


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Dessa forma, entendemos que o ME é consoante com a reorganização da esquerda de modo geral no Brasil e enfrenta novos desafios diante das últimas políticas educacionais instituídas. É importante pontuar, pois esta pode ser uma segunda diferença fundamental, que na nossa visão, falar de reorganização do movimento estudantil vai muito além da soma automática dos setores já organizados. O desafio da reorganização vai muito além – da já muito difícil – unidade na luta dessas organizações. Reorganização, para nós, é muito mais do que a soma matemática da Oposição de Esquerda da UNE com a ANEL. Quando falamos em reorganização, estamos falando da construção de um processo de massas, que recoloque bases programáticas no seio do movimento, que seja capaz de polarizar a conjuntura. Na nossa avaliação, a conjuntura de fragmentação da esquerda como um todo impõe pressões também ao movimento estudantil. A auto-construção acima de tudo, o hegemonismo, o sectarismo, a burocracia juvenil, o parlamentarismo estudantil, etc. Até pelo momento de defensiva, as organizações buscam atalhos, subterfúgios – por vezes com um “programa político” supostamente revolucionário para justificar tais opções. O Rompendo Amarras reivindica o acúmulo histórico do movimento estudantil e antigas experiências de unidade (mesmo compreendendo a dificuldade de transpor esse acúmulo a cada geração no ME). A criação de slogans que reivindiquem o nascimento de “um novo movimento estudantil” não tem sido suficiente para acelerar tal processo de reorganização. O ME sempre será novo, desde que esteja aberto a superar os desafios de seu próprio tempo e superar os vícios de seu passado no presente. A nossa geração do Movimento Estudantil brasileiro está experimentando as lutas de maneira mais isolada do que em outros momentos. Basta ver o quanto todas as bandeiras que conseguiram alguma repercussão por parte da esquerda foram entorno de pautas defensivas, de resistência a projetos neoliberais do governo. Precisamos inicialmente admitir o movimento de refluxo, bem como devemos tentar buscar entender quem é o estudante brasileiro hoje, depois de 10 anos de petismo. A compreensão de quem é o novo estudante contribui para pensarmos como o movimento estudantil pode cumprir um papel de longo prazo e protagonizar movimentações em busca da transformação social. Podemos usar, como um rápido exemplo, o movimento estudantil chileno, que foi pólo impulsionador de uma das maiores mobilizações ocorridas na América latina na última década, assim como o papel que o ME cumpriu em processos de luta no século passado. O desafio de construir um ME com envergadura capaz de influenciar em processos massivos de luta não é uma tarefa simples. Ainda mais sob algumas


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características das políticas educacionais dos últimos anos na qual elencamos alguns pontos. O primeiro, pela diferenciação do papel da educação a partir das necessidades impostas pela reestruturação produtiva do sistema capitalista. Podemos aferir isso com o ensino superior brasileiro, que antes era um reduto de formação das elites nacionais e dos grandes quadros da direita. Hoje, é pressionado a cumprir o papel de formar a mão de obra ainda barata, porém com a qualificação técnica, que essa nova forma de gestão do capital precisa. O estudante hoje é mais proletarizado, em especial e contraditoriamente, nas universidades privadas. Além disso, fica expressa de forma clara no setor da educação a característica dupla do governo petista de privatização velada dos bens públicos, em conjunto com o discurso da justificativa paliativa para priorizar sempre o investimento na esfera privada. A intervenção no campo da educação, e mais especificamente a partir do sujeito estudante, incide sobre pontos que estruturam a forma de funcionamento do sistema capitalista, incide em contradições importantes abertas pelo atual governo e tem o potencial, caso a esquerda tome de forma séria e com tal intenção, de movimentar um número considerável de estudantes, que são imprescindíveis no processo de reorganização das lutas da esquerda no Brasil. É entendendo esse papel, que não acreditamos que o movimento estudantil se resume como um “estágio” da luta que virá, uma mera formação de quadros pra outros movimentos sociais. Não que a partir dessa conclusão estejamos negando a importância que o movimento estudantil representa no convencimento de inúmeros militantes valorosos, que depois de sua passagem pelo ME, continuam atuando em diversas frentes de atuação da esquerda brasileira. Mas trata sim, de reafirmá-lo enquanto um movimento social, e que por isso, não deve estar subordinado à política de captação de quadros. Se a idéia é buscar a construção de uma força com perspectiva revolucionária no movimento estudantil de massas, precisamos iniciar esta caminhada de maneira a apresentar política concreta para o próprio movimento, o fazendo agente e não uma antessala nas organizações.

A entidade, a majoritária e o governo O PCdoB, há pelo menos duas décadas, faz parte da base de aliança prioritária do Partido dos Trabalhadores, que este ano completa dez anos de governo. Este governo teve como prioridade apresentar um projeto de desenvolvimento (chamado por alguns de neo-desenvolvimentista) econômico do país, baseado no fomento ao agronegócio, aos grandes bancos brasileiros e a exploração cada vez mais agudizada dos recursos naturais do Brasil, etc. Ao


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mesmo tempo, no que diz respeito a direitos sociais, não existiu nenhum avanço concreto e, sim, vimos a retirada dos mesmos. A lógica dos governos Lula e Dilma foi de estímulo ao consumo em detrimento dos direitos sociais como concebemos. Quando aumentou o acesso ao ensino superior, aumento o investimento direto e indireto de dinheiro público na educação privada, nos levando a absurdos, como hoje um dos principais acionistas das Faculdades Anhanguera (um dos maiores conglomerados de empresas da educação do mundo, ser a empresa google). Quando pautou políticas de moradia, jamais a colocou como um direito. Executou ou foi conivente com milhares de remoções, colocando como alternativa à – recém despejada – classe trabalhadora, programas de financiamento como o “Minha casa, minha vida” programa esse que, às custas do endividamento das famílias das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, recheou os bolsos das principais empreiteiras do país. É essa mesma lógica do desenvolvimento do país, que enterrou a reforma agrária e fortaleceu o agronegócio, e é o mesmo projeto que massacra qualquer movimentação anti-sistêmica, como a luta pela terra dos Guarani-Kayowá no Mato Grosso do Sul, que têm suas vidas ameaçadas todos os dias, por milícias de jagunços armados com a autorização da Polícia Federal brasileira. O mesmo PCdoB é um dos principais impulsionadores da Copa do Mundo no Brasil e das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Com a justificativa de que tais eventos trariam um grande legado ao Brasil, são responsáveis direta e indiretamente por milhares de famílias despejadas por todo o país e, também, pela recente retirada dos indígenas da aldeia maracanã. É importante situar que com o tal “legado” deixado por tais eventos no país, o Eike Baptista concorda, a gente não. A educação, não está desconexa de tal projeto de desenvolvimento, o projeto de país apresentado por estes setores é um só, a esquerda tem a tarefa de se posicionar perante o mesmo. Nós optamos por negá-lo. É com essa leitura que vamos aos fóruns da UNE, compreendendo que há tempos o PCdoB se adequou à ordem. Como disse o recém ingressante nas fileiras da oposição de esquerda da UNE, Pedro Fonteles, “penso que o PCdoB tem aplicado uma política da ordem burguesa e da manutenção do status quo da sociedade. E em nome da manutenção do projeto de governo Lula-Dilma, aliandose ao que existe de pior na vida política do Brasil, com figuras como Sarney, Calheiros, Eduardo Paes e Jader Barbalho, de oligarquias regionais como da família Andrade no Pará ou de figuras ligadas ao latifúndio como o Deputado Federal Giovany Queiroz ou a Senadora Kátia Abreu. Penso que o PCdoB não está se construindo como uma alternativa de esquerda e socialista de poder


129 político dentro do Estado burguês.” Dessa forma, como não esperamos de nenhum partido da ordem, não esperamos que o PCdoB facilite a intervenção da esquerda nos espaços da UNE. O fato de não haver democracia da forma como concebemos na UNE, jamais poderá frustrar a disputa de um projeto de oposição. Fazer a disputa com a majoritária é fazer oposição ao projeto econômico do governo, à hegemonia do mesmo e à práticas e métodos stalinistas. Não esperamos, portanto, uma disputa “justa” ou “democrática” do ponto de vista da superestrutura. Mas nem por isso, deixamos de enfrentar diretamente aqueles que não respondem mais às aspirações da transformação da educação e da sociedade como um todo. A UNE que tocou a campanha “O petróleo é nosso”, a luta contra a ditadura militar e o “Fora Collor” ainda existe? Em nossa opinião, não como era antes. Entendemos que para compreender o que é a UNE hoje, somos obrigados a debater sua relação com os governos petistas, pois estes mudaram muita coisa do que ela é. É relevante resgatar algumas características da entidade antes mesmo da eleição de Lula em 2002. A UNE, da década de 90, já não era independente financeiramente de governos. Os mandatos de FHC, e antes desses, já financiavam boa parte dos fóruns da entidade. Mesmo antes de Lula ser Presidente do Brasil, a UNE fez campanhas em conjunto com a direita tradicional e a rede Globo, como no caso da campanha “sou da paz”. Antes mesmo de o petismo ser hegemônico no país, a UJS dirigia a UNE, sua direção era burocratizada e já existia o monopólio das carteirinhas. Ainda assim, a chegada do PT ao governo causou mudanças substanciais na entidade. A majoritária da UNE ajudou a formular o modelo da reforma universitária, ajuda a definir o curso ou como se destinarão os recursos do pré-sal, para ficar somente em alguns exemplos. Nossas respostas retóricas a este problema podem ser utilizadas em uma plenária de agitação, mas acreditamos que pouco ajudam na análise. Em nossa opinião, dizer somente que a UNE “traiu” e é “inimiga dos estudantes” são por demais insuficientes para explicar as dificuldades de rearticulação do movimento estudantil combativo brasileiro. Ou melhor, achamos que explica errado. Podemos dizer que ela institucionalizou suas lutas de acordo com o projeto de hegemonia petista. Neste sentido é coerente dizer que há uma “traição” e abandono das bandeiras históricas do movimento estudantil. Por outro lado, temos que compreender que há coerência da parte deles (e que nós discordamos em absoluto), pela “lealdade” a este projeto em curso. Dessa forma, resumir a “traição” da entidade é tentar esquecer o enorme peso social dos governos petistas na área da educação.


130 Além disso, a retórica da “traição” carrega um sentido confuso de resumir este enorme peso do governo a um restrito grupo que compõe a direção da entidade. O discurso serve para “vender” a ideia de que existe uma outra direção pronta, não traidora, no movimento estudantil. Nesta tese, resta ao estudante escolher se vai atuar em uma entidade que tem uma “direção traidora” ou em uma que tem uma “direção não traidora”. Entendemos que a relação que a UNE tem com o Estado hoje, conduzida pela direção majoritária, é substancialmente diferente. Antes, mesmo que já burocratizada, ela tinha uma relação de maior, porém, não total independência com os governos. A entidade deixou de ser somente contra ou a favor os projetos governamentais, mas passou a ajudar em sua formulação e, mais ainda, em sua consolidação no senso comum dos estudantes. Suas grandes ações, campanhas e “mobilizações” são muitas vezes articuladas com o governo, não por somente o apoiar, mas por defender o que ela mesma ajudou a formular. É evidente que a quebra da independência da entidade é agravada pela quantia monstruosa de dinheiro que o governo repassa e sua relação financeira com o Estado, já que isso não é uma exclusividade dos governos petistas. A direção majoritária da UNE tenta tornar seus eventos cada vez mais oficiais, seja pelos patrocínios do governo federal (e ministérios), empresas estatais (e privadas), seja pela programação que é composta em grande parte por ministros, parlamentares e representantes do Estado de um modo geral. Ainda que seja inimaginável qualquer deslocamento da entidade no que diz respeito ao governo Dilma, é importante compreendermos que a UJS ainda utiliza como tática, o lançamento de “grandes campanhas” da UNE que desemboquem na aprovação destas políticas, como se houvesse uma “ação civilizada” do movimento estudantil. Essas ações consolidam a idéia da “esquerda conseqüente”, da “política do possível”. Reivindicam pra fora, mas claro, já garantiram todas as suas “vitórias” com o Governo Federal. O peso da direção majoritária tem a ver com essas “vitórias” concretas e materiais obtidas. O exemplo mais emblemático que podemos usar é a campanha dos 10% do PIB, que, claro, mal citou a educação pública durante suas manifestações. Se não explicarmos a força da direção majoritária pelo que é considerado um “ganho concreto” por parte da população, correremos novamente o risco de reduzir o problema à “traição” da direção e não ao grande impacto dessas “vitórias” concretas. É a partir de todas essas caracterizações que pautamos a nossa relação com a entidade e é por isso que não priorizamos seus fóruns como “O” espaço de disputa e organização do ME. Deixar de compor os espaços também não é a saída para a rearticulação, até por que, não queremos cometer o erro de


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abandonar os cerca de 5 mil estudantes que se reúnem nos fóruns da UNE. Não podemos de forma alguma confundir esses estudantes com a direção majoritária da entidade, porque se estão num espaço como o do ME, por mais burocratizado que seja, é porque são estudantes que se descolaram do senso comum e se preocupam em fazer alguma coisa para alterar os rumos da sociedade. É a partir desse tipo de reflexão que os jovens se tornam ativistas. O ME atua em quase todos os momentos por fora da dos encontros bianuais da UNE (como fazia há quase duas décadas atrás, quando nasceu o “Rompendo Amarras” em sua primeira versão, a partir do comando de greve nas universidades públicas, criado à revelia e contra a direção majoritária, aproveitando apenas o espaço de um fórum da UNE – pois o comando se constituiu numa reunião de DCEs realizada durante um CONEG, quando a majoritária votou contra a greve estudantil em 1998. Passada a greve, veio a histórica vitória contra os funis para eleger delegados aos CONUNES, no CONEB de 1998). Precisamos admitir que o fato da esquerda combativa não estar em melhores condições de impor mais derrotas à majoritária se devem à situação política atual mas também à sua fragmentação. O debate em torno da atuação na UNE é difícil, em primeiro lugar, pela confusão posta na diferenciação entre entidade, frente única e fração pública. A UNE é uma entidade, que, mesmo com todo o esvaziamento de enfrentamentos, é reconhecida como a maior representante dos estudantes no Brasil. Reconhecida por quem? Pelos governos, pela maioria dos partidos, pela mídia, e pela maioria dos estudantes que sabem que existe movimento estudantil e isso é inegável. Isso nãosignifica dizer que ela represente de fato os anseios deles, muito menos que defenda de fato seus direitos. Não. Para nós, a UNE hoje passa longe disso. Compreendemos que enquanto entidade ela poderá sempre abrigar as mais diversas forças políticas, os mais diferentes projetos, que estarão em choque permanentemente. E, diga-se de passagem, têm aspectos mais democráticos que até algumas entidades do movimento sindical, já que na UNE nunca houve cláusula de barreira para composição da direção, por exemplo. Faz parte do papel da esquerda compreendê-la enquanto uma entidade (não a confundindo com a sua força majoritária) e, portanto, apontar as críticas e contradições de como a força majoritária conduz a entidade. A defesa da esquerda, neste momento, é a defesa das bandeiras históricas do movimento estudantil. Reivindicaremos, portanto, que a entidade estudantil seja independente política e financeiramente dos governos, que mantenha autonomia diante do Estado, Igrejas, empresas, etc. E que seja uma, claro, entidade democrática de fato. É importante ressaltar que defender essas características para a UNE não significa vender ilusões sobre as possibilidades da esquerda anti-


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governista se tornar maioria dentro da estrutura atual e da correlação de forças presente. Quase ao contrário. Significa dizer que as disputas políticas da entidade incluem as bandeiras por democratização dela. E vice-versa. Só haverá um processo de democratização da UNE se houver disputas políticas em alta intensidade, de projeto de sociedade. Enfim, nossa disputa dos milhares de estudantes também passa pela demonstração concreta com o que não é possível conquistar na UNE dirigida pela UJS e pelo campo governista. Não acreditamos que o nosso foco de atuação deve estar na luta interna da UNE. Não temos interesse algum de deliberadamente trilhar um caminho que limite a nossa disputa dentro do movimento estudantil. Muitas vezes se coloca uma falsa contraposição entre estar na UNE e fazer lutas. Essa confusão proposital não passa de mais uma agitação, já que a OE não depende nem política nem financeiramente da entidade. Devemos sim nos utilizar – por que não? – dos poucos espaços existentes promovidos por esta entidade, para fazer a disputa das bases do movimento estudantil. E diante da dificuldade de alcançarmos determinados setores estudantis, os fóruns – ainda que de forma limitada – são espaços possíveis de se fazer isso. É inegável, e ainda não encontramos argumentos convincentes do contrário, que o processo de eleição de delegados para o CONUNE é um momento muito importante da disputa dos projetos da sociedade, especialmente para dialogar com os milhares (é importante enfatizar-se o milhares) de estudantes que hoje são direta ou indiretamente influenciados pelas posições da direção majoritária da UNE e do projeto petista. É, sem dúvida, um momento privilegiado da disputa de suas bases. É possível dialogar com parcelas estudantis de toda a universidade, e confrontardiretamente com as concepções, posturas, opiniões da direção majoritária da UNE e do próprio governo. Consideramos, portanto, uma disputa completa, total, ainda que saibamos que no geral é uma disputa dura, já que eles têm – pelo menos – um aparato gigantesco e um governo com altos índices de aprovação. Aí, não podemos fingir que não existe atuação dos setores governistas para tiragem de delegados na maioria das universidades do país. Existe. Diante disso, é melhor disputar ou deixar que existam como única opção de ativismo? A Oposição de Esquerda da UNE está cada vez mais se apresentando como alternativa nas universidades privadas, inclusive nos espaços onde há um rechaço à direção majoritária da UNE. Uma pergunta pertinente: precisamos estar na UNE para travar esta disputa? Nós podemos travar esta disputa em vários espaços políticos do movimento, concepção que defendemos e temos aplicado cotidianamente. Porém, é só reivindicando que queremos derrotar essa direção majoritária, ainda que seja dentro das regras impostas por eles, é que nos gabaritamos diante dos


133 estudantes. Na nossa avaliação, a disputa direta, por este instrumento – que se não reconhecido, é conhecido por todos – é muito mais eficaz do que a postura abstencionista como fazem alguns setores ou totalmente paralelista. Se quisermos mesmo disputar uma ampla camada de estudantes, então precisamos necessariamente atuar nos espaços onde conseguimos explorar mais diretamente as contradições do atual sistema e do modelo de educação. Por que somos Oposição de Esquerda da UNE? Inicialmente, é importante colocar que a Oposição de Esquerda não é um espaço no qual os coletivos se diluem ou deixam de existir. Ela é sim uma frente de atuação conjunta dos setores de esquerda, anti-governistas, que avaliam importante fazer a disputa dos espaços da UNE. A oposição de esquerda faz isso respeitando as diversas forças políticas presentes na frente, que mantém suas fronteiras organizativas. Essa, inclusive, é sua riqueza. A OE, não é, e não deve ser, portanto, um espaço que deve cumprir o mesmo papel que uma entidade cumpriria. A OE não pode – e não é função dela – ser a UNE de esquerda nem mais uma entidade geral. Ela não se colocará para “representar” o conjunto do movimento estudantil brasileiro, não filia CAs e DAs, não organiza congressos, etc. Discordamos frontalmente das posições que dizem que há um enfraquecimento na OE pelo fato de existirem muitas diferenças em seu interior. Essas diferenças são muito inferiores à sua importância histórica de buscar a cada dia dar mais consistência a uma articulação de forças da esquerda da entidade, principalmente no que diz respeito a uma agenda de ações nas bases do movimento. O fortalecimento das forças políticas que compõem a OE é o fortalecimento da própria frente, estimulando cada vez mais que esta seja um espaço de síntese política no movimento estudantil. A OE tem demonstrado um aumento da capacidade de atuação unitária na base do movimento cotidiano. Sabemos que hoje o processo de reorganização está longe de estar completo. Reconhecendo todas essas dificuldades, de acordo com nossa leitura, nossa tarefa é defender sem tréguas a unidade com os setores da Oposição de Esquerda. Na prática, tentamos agir sem sectarismo e sendo propositivos na construção de políticas unitárias. Nós queremos, sim, que a OE seja mais orgânica. Para isso devemos dar bases concretas para a sua existência, tendo paciência histórica no que diz respeito a processos de reorganização reais, não agitativos. Através da construção de uma política cotidiana de oposição de esquerda que os tensionamentos que fazemos sobre as forças repercutirão em anseios não só nossos, mas de uma ampla base social. É por isso que hoje, cada vez mais


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todos os setores da OE reivindicam atuação conjunta em outros espaços de atuação. Em nossa opinião, o debate franco a ser feito com toda a esquerda é a necessidade de que a reorganização da esquerda se dê da maneira mais ampla possível, com o maior número de organizações possível, porém, principalmente, com as mais massivas camadas de ativistas. A disputa molecular da vanguarda não vai nos possibilitar impor uma nova hegemonia no movimento estudantil do país. A ANEL Consideramos importante lembrar que fomos ao Congresso Nacional de Estudantes em 2009. Na avaliação que fizemos na época, justificamos nossa ida assim: “nos dispusemos a participar do CNE, principalmente por acreditarmos na construção da unidade do movimento estudantil combativo, na defesa de um ensino público, gratuito, laico, presencial, de qualidade, a serviço dos trabalhadores e trabalhadoras”. Fizemos, no mesmo documento, uma comparação numérica, como forma de ilustrar a nossa argumentação: “O Conune, maior espaço da entidade, costuma juntar aproximadamente 4 mil delegad@s e 8 mil estudantes no total. A tiragem de delegad@s por universidade, tendo quorum mínimo de 5 % do total de estudantes matriculados, significaria que aproximadamente 4 milhões de estudantes estariam “representad@ s”. A expectativa da oposição de esquerda da UNE é de ter aproximadamente 400 delegad@s, sendo 400 mil “representad@ s”. No CNE, a proporção era de 5 delgad@s a cada 300 votos, com quorum mínimo de 5 % por curso, e não por universidade. Isso significaria 81 mil “representad@ s” pelos 1350 delegad@s presentes (as aspas entre a palavra representad@ s significa nosso questionamento sobre a real dimensão de estudantes envolvidos, conscientes, ativistas de fato)”. Seguimos com a análise: “Nas eleições para o CNE em que estivemos presente, vimos que os debates foram abaixo do necessário para polarizar as universidades em torno de alternativas para o movimento estudantil. O debate entre a própria esquerda, ao mesmo tempo em que qualifica as diferenciações de concepção do ME, pecam muitas vezes por “falar para nós mesmos”, pois, neste caso, estamos lutando contra um inimigo que está ausente”. E continua: “Nos moldes como ficaram, foi completa a predominância do debate simplista de criação de uma nova entidade para resolução de todos os problemas


135 estudantis. Além disso, as mesas de debate que foram canceladas e o “tempo ocioso” ocupado por atividades de comemoração de 15 anos do Pstu, são exemplo também de uma inabilidade do grupo político majoritário no congresso para conseguir aprovar a sua política principal. No início da plenária final, outra demonstração de ansiedade hegemonista. Alguns grupos apresentaram uma questão de ordem pedindo que as votações sobre conjuntura, educação, e demais resoluções políticas, fossem realizadas antes da polêmica sobre o instrumento de luta. Mesmo sabendo que estariam prestes a aprovar uma nova entidade sem programa político, integrantes do Pstu foram ao microfone dizer que este tipo de proposta tinha intenção de tumultuar o vitorioso congresso. Em uma metáfora, seria como se o dono de uma festa de debutante esbravejasse aos convidados, que aqueles que não dançassem a valsa na hora que ele quisesse, estariam lá estragando a sua festinha”. O baile então se tornou uma festa à fantasia. A plenária, daquele momento em diante, passaria a definir coisas sobre a própria ANEL”. Relembramos este texto não só pra colocar que vivemos a experiência de ir a um espaço que não éramos bem-vindos, para tentar defender propostas unitárias, mas também para reafirmar que muitas vezes o “novo” carrega uma tremenda carga de “velho”. Há um debate, este sim pujante em diversas parcelas do movimento estudantil, sobre a relação entre partidos e movimentos. É muito comum a antipatia de ativistas independentes com as organizações. Em grande parte são motivadas, e devemos reconhecer isso, por erros cometidos por diversos setores organizados. A dinâmica do movimento muitas vezes impõe uma lógica muito destrutiva por parte dos setores organizados. Este sim é um debate que nós, enquanto organização, acreditamos ser fundamental para a construção do movimento estudantil. E o CNE que vimos se bateu de frente com essa demanda. Vivenciamos também a tentativa de propor um Fórum de Mobilização Estudantil. Este foi debatido e apoiado por diversas entidades de base e gerais do movimento. Tentamos fazer com que a nossa proposta do FME não fosse votada contra a proposta de criação da ANEL, já que a ideia era justamente propor a unidade, e não combater a opção d@s camaradas. Mas a força majoritária do CNE não permitiu. No mesmo instante em que foi aprovada a nova entidade, se votou por sua filiação à Conlutas. Lembramos que o primeiro passo para a construção da nova entidade surgiu de um Encontro Nacional de Estudantes, em 2008, que reuniu cerca de 500 estudantes e visava fazer a tiragem de delegados para o congresso


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da Conlutas que se realizou em seguida no mesmo local. Percebe-se que a filiação à central permeou a construção da ANEL, pois esta não estando ligada à Conlutas não faria sentido para sua força majoritária, o PSTU. O debate sobre a participação de estudantes na central é legítima, mas ficou evidente que a prática da auto-construção que subordinou o movimento estudantil a isso foi prejudicial à unidade, ainda mais depois do fracasso do Conclat. Hoje a ANEL age muito mais como uma corrente ou um campo de movimento estudantil de uma força política do que uma entidade que representa uma base estudantil. Não nos cabe aqui elencar críticas ao funcionamento atual da ANEL, mas sim de reconhecer que, mesmo diante delas, continuamos defendendo a construção da unidade com a militância organizada nela. Afinal, para nós, a defesa da unidade não é condicionada à permanência destas forças políticas na ANEL. Não achamos, diferente do que muitas vezes sentimos às avessas por parte do PSTU, que este deve estar na Oposição de Esquerda da UNE para ser considerado um aliado. Daqui pra frente Resta à esquerda combativa saber lidar com o atual quadro para, a partir inclusive das diferentes concepções, análises e mesmo práticas, possamos pensar em como desenvolver as enormes lutas que temos pela frente de maneira unitária. Em diversas universidades, no dia a dia, tem sido possível uma atuação conjunta entre as organizações e militantes independentes de oposição de esquerda ao governo. O Comando Nacional de Greve Estudantil foi mais uma experiência, que mesmo com problemas, serviu de experiência concreta neste sentido. Motivada por movimentos, levantes, protestos e revoluções em outros países, a juventude brasileira tem boas perspectivas de se inserir em lutas importantes. Em conjunto com a Oposição de Esquerda da UNE, defenderemos que em todas essas lutas possamos atuar em unidade, com a consciência de que o inimigo não está entre nós. Com a ambição de reconstruirmos um movimento estudantil de grande influência social, com um programa anti-capitalista, antisistêmico e anti-governista, com lealdade entre os setores envolvidos, podemos dar vários passos à frente. Aos poucos poderemos vencer à auto-proclamação excessiva, o dirigismo, o hegemonismo, o capismo, a agitação acima do programa e o sectarismo. Quem sabe, a ponto de evitar que velhos vícios venham novamente nos impor vários passos atrás. À luta!


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Texto 2: POR QUE SER OPOSIÇÃO DE ESQUERDA À MAJORITÁRIA DA UNE? *Texto escrito pelo núcleo Curitiba do Rompendo Amarras

"Quando a esquerda combativa não se faz presente em espaços e debates do movimento, é maior o vácuo ocupado por outros projetos – que não são nossos e pior, se apresentam como única opção. Não há espaço vazio na política, logo: Oposição de Esquerda."

A União Nacional dos Estudantes já não cumpre seu papel, de lutar por melhorias concretas para a educação, coadunando com as políticas precarizantes realizadas pelos últimos governos. Mas ao mesmo tempo em que não cumpre esse papel, ainda reúne massas de estudantes sob sua bandeira. Então ficamos com o dilema: continuar ou não dentro da UNE? Qual a melhor alternativa? Para responder a esta grande questão, que é “qual deve ser o projeto do movimento estudantil de esquerda?” devemos realizar uma mediação entre aquilo que buscamos construir (um movimento estudantil combativo, de massas e que enfrente o capital) e a conjuntura em que estamos inseridos. A síntese é simples: não podemos negar todo o passado histórico realizado pela UNE. Relembramos que o Movimento Estudantil, impulsionado pela UNE em 1968, foi uma frente de luta muito importante contra a ditadura militar brasileira e contra as reformas da educação no período. Atualmente observamos que não existe perspectiva de um fim próximo da União Nacional dos Estudantes, pois ela ainda é legitimada por mais de 90% dos estudantes brasileiros – o que é comprovado por sua tiragem de delegados que acontece em praticamente todas as universidades brasileiras (concordando com a política de tiragem ou não). A experiência de ir aos congressos da entidade demonstra que para desconstruir a ideia hegemônica de “UNE é sinônimo de movimento estudantil” não é suficiente ficarmos entre a vanguarda do M.E. das universidades públicas. É preciso alcançar, principalmente, os setores que ainda não estão mobilizados em torno de nossas lutas (frisamos aqui que aproximadamente 80% da juventude que se encontra no ensino superior estão dentro da rede privada, onde mesmo pesando a ausência de história de movimento, a entidade alcança e sua majoritária se elege). À parte de todas as fraudes e práticas despolitizadas que a União da Juventude Socialista (UJS/PCdoB) pratica para se manter na direção majoritária da entidade há 30 anos, devemos reconhecer a existência de uma base real e massiva de estudantes que se referencia na UNE e constrói movimento estudantil, mesmo que discordemos da política tocada e dos métodos utilizados.


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Muito se diz que a entidade tem se ocupado apenas de festejos, promovendo espaços políticos de menor importância. Concordamos em parte. É fato que a UNE não tem tocado processos de mobilização contestatória, mas é verdade também que ela tem conseguido corroborar, quer seja com seu silêncio ou com seus posicionamentos, com a legitimação do projeto educacional e societário mercantilizado do governo, que precariza sob a insígnia da democratização. Apontar tudo isso é necessário, e principalmente, apontar outro horizonte é um imperativo! Não é a toa que o movimento estudantil como um todo se obriga a dar respostas quanto à participação na UNE: é fato que ela hoje tem uma legitimidade que não depende de nossa vontade, legitimidade esta que sempre é usada para defesa de propostas educacionais do governo com as quais não concordamos. Agimos de acordo com o que o momento histórico nos oferece e nos cobra, assim, nossa militância não se restringe a posições puristas que afirmam ou impossibilidade de disputa dentro da UNE, ou a impossibilidade de militância por fora da entidade. Não abdicamos de qualquer frente e entendemos que a realidade nos impõe a necessidade de mediações para lidar com as contradições inerentes a ela. A militância que defendemos se constitui por nossa construção nos locais que temos inserção, desde centros acadêmicos, até o movimento de área, e é este movimento do dia a dia e combativo que defendemos frente a todos os estudantes ainda referenciados na UNE. Daí posicionarmos por manter-se dentro da UNE compondo a Oposição de Esquerda (OE) e fazendo frente ao projeto hegemônico que a entidade tem sustentado há anos e que se apresenta ainda para muitos estudantes como única alternativa de educação e única referência de Movimento Estudantil. Alguns companheiros da esquerda do M.E. optaram por sair da UNE e fundar uma nova entidade, com o intuito de tomar para si o papel que aquela não mais cumpre. Consideramos que tal construção foi uma tática equivocada, tanto pelo processo de criação da nova entidade, que não congregou àquele momento nem muitos (ou nem outros setores) em sua formulação, tanto pela ausência de conjuntura para tanto. A partir disso, criar uma nova entidade divide ainda mais a já fragmentada esquerda dentro do Movimento Estudantil. Mas, ao mesmo tempo em que temos a posição de nos manter dentro da UNE, o que nos difere da majoritária da entidade? Por que criticar a UNE não é o mesmo que criticar a OE? Porque a OE, mesmo sendo parte da UNE, continua a criticá-la e a deslegitima-la como representante nacional dos estudantes? Não temos uma visão idealista de que nos manter dentro da UNE fará com que mudemos os rumos que a entidade tem tomado na última década e, portanto, não temos a intenção de reformar a entidade. Estamos dentro da entidade para que com nossa atuação, mostremos para os estudantes que nela se referenciam os limites existentes e a necessidade de formulação de outro projeto de educação e de movimento, ao mesmo tempo em que construímos em unidade com outros setores as perspectivas de como se dará essa superação.


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Para a OE, disputar os espaços da UNE é a melhor forma de desconstruir a entidade e o projeto educacional que ela encampa; é desconstruir a UNE para a base que ela reúne. OE, por outro projeto de educação e por outro movimento!

Texto 3: Movimento de área Por: Ananda, Camila P., Lester, Nabylla, Rebecca, Wesley (EMBAP); Bárbara, Clarissa, Spam, Diego, Etiene, Fábio Henrique, Gabriela, Gustavo, Luiza, Mariana Auler, Mariana Figueiredo, Naiady, Peterson, Suzan, Vanessa e Wagner (UFPR).

Desde sua fundação o Coletivo Barricadas Abrem Caminhos aponta para o espaço do Movimento Área enquanto uma esfera importante de intervenção no contexto de refluxo e, consequente, necessária reorganização do movimento estudantil. Em termos gerais, poderíamos afirmar que tal apontamento tem se mostrado acertado, refletindo no grande crescimento que nosso coletivo logrou atingir através da militância nos cursos a nível nacional: a grande maioria dos novos núcleos que abrimos nos últimos dois anos tem seus contatos abertos através do movimento de área. O último ano, no entanto, tem feito as palavras “desorganização” e “ausência de política” estarem, com frequência, nas mesmas frases que “movimento de área”. Assistimos nossa intervenção se reduzir cada vez mais em organicidade nas executivas, a ausência de articulações prévias que permitissem a construção de FENEX produtivos para o movimento e consequentes com sua continuidade, bem como um crescimento generalizado da intervenção de setores como a Consulta Popular nesses espaços. Pensamos ser necessário analisar essas questões sem cair na justificativa fácil de ausência de voluntarismo militante – será que o problema do movimento de área hoje é somente que temos dificuldade de cumprir nossas tarefas? – e tentar contextualizar esse processo dentro de uma conjuntura mais ampla. Esse é um esforço importante pois, muito embora situemos o movimento de área enquanto um dos pilares de nossa leitura de reorganização, poucas vezes conseguimos fazer debates que o integrassem a nossa leitura de conjuntura, procurassem debatê-lo em termos de concepção e potencialidades de forma sistematizada, reduzindo-se o debate do coletivo a caracterizações de nossa intervenção em cada executivas – necessárias – porém insuficientes para responder as perguntas que a atual conjuntura nos impõe sobre essa questão. Funções e potencialidade do ME de área Vamos tentar, em um primeiro momento, tratar um pouco das potencialidades e características próprias do movimento de área, o que conflui para um debate de concepção. Dividiremos essa discussão entre os pontos que


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derivam de seu objeto e aqueles que derivam de seu método. Posteriormente tentaremos uni-los no debate de perspectivas da atual conjuntura. (i) Por seu Objeto Acho que um primeiro ponto que é gritante quando pensamos nas potencialidades do movimento de área a partir da perspectiva do objeto por ele enfocado, é a noção de que “dialoga mais com a realidade do estudante”. Os debates que giram em torno de sua área de escolha para atuação profissional tendem a aproximar mais estudantes e, muitas vezes, estudantes que a princípio não são sensibilizados de imediato por pautas ligadas ao movimento geral. Contudo, acredito que o trabalho com esse recorte de pautas não se relaciona somente a possibilidade de atingir uma maior aproximação do estudante, afinal de contas, poderíamos utilizar qualquer outra “desculpa” para fazê-lo. A opção pelo campo de militância determinado por opções profissionais carece, assim, de outras justificativas que o sustentem. Penso que podemos visualizar duas principais justificativas para essa intervenção, das quais decorre diretamente uma determinada concepção do movimento estudantil de área. - Do Enfoque na formação Quando falamos de mercantilização da educação podemos nos referir a uma problematização do ensino privado, ou seja, da transformação da educação ela mesma em uma mercadoria que é vendida. Outra expressão da mercantilização da educação se mostra quando o conhecimento/produção científica/arte passa a se tornar mercadoria ou serve somente para qualificar uma outra mercadoria, a força de trabalho. Obviamente esses dois significados são complementares, a medida que a mercantilização estrita da universidade, sua privatização, facilita a flexibilização das balizas da produção do conhecimento em direção aquilo que se torna mais lucrativo para o mercado. A essa complementariedade voltarei mais a frente. Entendo os debates empreendidos no movimento de área são um espaço privilegiado para se aprofundar esse segundo significado da mercantilização da educação. Encarar que aquilo que consideramos em alguma medida importante para a sociedade – afinal, foi a profissão que escolhemos – se calca, na verdade, em interesses direcionado ao lucro é um fator de indignação bastante importante. A mercantilização daquilo que não concebemos como mercantilizável a princípio abre margem para um debate bastante amplo sobre a realidade social em que vivemos, com um recorte de classe bastante evidente. Para além disso, temos que ter que claro que essa indignação não é somente uma desculpa para tratar de assuntos maiores, sob o risco de voltarmos a justificativa única do movimento de área como maior diálogo com o estudante. A produção de ciência dentro de um determinado paradigma, bem como a qualificação do trabalhador sob uma determinada ótica, tem uma importância dentro da estrutura de reprodução do capital, notadamente a partir do processo de reestruturação produtiva, quando novas exigências são feitas tanto às capacidades do trabalhador (daí a


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preocupação com a formação profissional) bem como o tipo de saber e tecnologia disponíveis para o aumento da produtividade. Nesse sentido, como defendemos quando fazemos o debate do desmonte da educação de forma mais ampla, a discussão da formação deixa de ser mero ornamento para ganhar um papel mais central em nossas formulações. Para além disso, é importante ressaltar que as problematizações resultantes desses debates muitas vezes evidenciam não somente um foco equivocado da ciência correta: a história escrita hoje é boa mas não há preocupação da academia em democratizar seu acesso, por exemplo. Fica patente a noção de que não se trata somente de se apropriar de toda a formulação da ciência burguesa, mas que há alguns marcos epistemológicos, e seus respectivos desobramentos, com os quais teremos de romper. Nesse sentido, os debates do movimento de área também tem o mérito de construir bases para o tipo de ciência e conhecimento que consideramos trilhável para uma sociedade diferente. É nosso papel dentro do movimento de área estimular esse sentimento de indignação e canalizá-lo através de lutas palpáveis. No campo da formação, essa canalização tende a desembocar em três vertentes, complementares, cujas características são importantes de serem pontuadas. Primeiramente, apesar de mais rara, visualizamos a produção/estudo/sistematização de conhecimento sob um viés reivindicado pelo movimento em oposição à produção hegemônica da disciplina em questão. É nosso desafio fazer com que tais debates saiam de elocubrações abstratas e se convertam em construções reais através do espaço da pesquisa e da extensão. Deve se vincular necessariamente a esse primeiro ponto um segundo que reivindique mudanças curriculares calcadas nos acúmulos do movimento sobre a função social de uma determinada disciplina. Tal vinculação é essencial para evitar que a extensão se torne um mundo paralelo à “universidade burguesa indisputável”. A disputa da formação concreta e obrigatória dos profissionais formados nas universidades deve ser um norte importante dos militantes do movimento de área. Um terceiro ponto deve se relacionar diretamente, e consiste de certa forma em consequência desse primeiro. Os governos e reitorias não se disporão espontaneamente a dar as condições estruturais e recursos humanos necessários para o pleno desenvolvimento daquilo que preconizamos como uma ciência socialmente referenciada. Isso significa a luta pelas condições da universidade, ou seja, um vínculo direto com o movimento estudantil geral. - Do enfoque na intervenção profissional O movimento de área tem a potencialidade de problematizar de forma mais palpável as condições do mundo de trabalho a partir do debate das realidade de sua profissão mais específica. A discussão sobre direitos trabalhistas, regulamentação da profissão, condições estruturais das esferas de atuação são muito importantes e abrem caminhos para a solidariedade do movimento


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estudantil ao movimento combativo dos trabalhadores, fazendo um dialogo para além da universidade, bem como dá bases para que esses militantes estudantes vislumbrem uma área de atuação quando deixem a universidade. Ainda que a discussão sobre a realidade do mundo do trabalho pósuniversidade tenha um bom apelo junto ao corpo estudantil, devemos ter ciência de que é necessário situar esse debate na realidade concreta imediata do estudante. Nesse sentido, o debate do estágio ganha grande potencialidade na contextualização dessas problematizações na conjuntura de desmantelamento do mundo do trabalho de forma mais ampla. Mais do que problematizar, é necessário que se delineiem lutas concretas vinculadas a essa pauta, seja em solidariedade à categoria em questão, seja vinculadas as condições de trabalho dos estagiários. (ii) por seu método em determinadas conjunturas Os pontos anteriormente elencados dizem respeito a características inerentes à opção pelo recorte a partir de disciplinas/profissões acarretada pelo movimento de área. Desejamos agora aprofundar suas potencialidades e características vinculadas a seu método de organização. Esses apontamentos serão historicizados, pois acreditamos que os métodos aplicados ao movimento de área cumpriram papeis diferentes ao longo da história do movimento estudantil brasileiro. Entender os papeis que o movimento de área já cumpriu nos auxilia a pensar o papel que ele cumpre hoje bem como as limitações que ele muitas vezes enfrenta. A intervenção segmentada a partir dos cursos se origina, em grande medida, a partir de secretarias da União Nacional dos Estudantes - apesar de haver executivas que surgem por fora da entidade. Apesar de se referirem a uma intervenção setorializada, elas tinham na UNE seu eixo de articulação entre as executivas a partir de pautas gerais. No final da década de noventa, já observavamos dificuldades de articulação das lutas gerais através da UNE. É emblemático, nesse sentido, a luta contrária ao Provão de FHC, a qual foi timidamente construída pela entidade. Por outro lado, as executivas de curso que se desmembravam da UNE apontavam outras ferramentas para cobrir o vácuo deixado pela UNE, dentre elas, o FENEX. O fórum surge principalmente para articular a pauta do Provão, e cumpre um importante papel na articulação nacional do ME. Esse processo de gestação de novas ferramentas se intensifica no período a seguir. Não é novidade que a partir do início do governo Lula da Silva a UNE, em conjunto com uma série de setores combativos do movimento social brasileiro, passa a se situar cada vez mais ao largo das lutas. A entidade, a partir de sua composição majoritária, recebe financiamento do governo, e, mais do que isso, não só reforça as políticas privatizantes que o governo petista propõe com auxilia na sua formulação.


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Nesse sentido, há a necessidade de uma ferramenta que cumpra o papel historicamente cumprido pela UNE enquanto catalizadora das lutas gerais do movimento estudantil a nível nacional. A oposição de esquerda ao governo passa a apontar para o espaço do movimento de área enquanto um possível cumpridor desse papel. As forças de oposição passavam a ocupar os espaços das executivas e seus fóruns baseadas em uma política de denúncia e debate dos ataques desferidos pelo governo Lula à educação brasileira. Isso significava um enfoque bastante grande ao movimento geral nas intervenções protagonizadas pela oposição de esquerda nas executivas na primeira metade dos anos 2000. Esse enfoque se agudizava ainda mais por significar um contraponto a tendência da militância setorial petista que procurava, como um subterfúgio ao debate das políticas públicas precarizantes de seu governo, focar a discussão sobre as questões relacionadas à área específica de formação/atuação profissional, onde as contradições seriam menores – mais por sua abordagem do que por essência, como vimos no ponto anterior – a partir da elaboração pela qual tinham sido responsáveis desde a década de noventa. O espaço do movimento de área, então, representava a possibilidade de dialogar com um número maior de estudantes sobre os ataques desferidos pelo governo do PT. Um espaço de agitação para a base, portanto. Mas mais do que isso, o movimento estudantil carecia de ferramentas que organizassem sua atuação conjunta. O espaço de articulação entre essas executivas, o FENEX, passa a cumprir esse papel. Seu enfoque era, assim, de um articulador do movimento estudantil geral, mais do que um articulador de lutas setorias – as quais estavam enfraquecidas não só no espaço do FENEX, mas dentro das próprias executivas. Ao longo da segunda metade dos anos 2000, no entanto, observamos um esvaziamento do espaço do movimento de área por parte da maioria das forças de oposição de esquerda ao governo. Se relaciona a esse movimento a gradual desarticulação do FENEX e sua diminuição em capacidade de síntese, por aglutinar cada vez menos setores, e encaminhamento, por refletir a impossibilidade de encaminhar seriamente para o ME geral e observar um renascimento ainda inicial das pautas setoriais enquanto eixos articuladores tomados seriamente. Aqui cabe aprofundar um pouco os motivos que acarretam nesse esvaziamento. Inicialmente, os setores impulsionados pelo PSTU, que por algum tempo constituíram a CONLUTE, se utilizam do espaço do ME de área enquanto um importante palanque de agitação de suas políticas de oposição ao governo e, principalmente, de sua leitura do processo de reorganização do movimento estudantil. Isso é, no processo em que o movimento estudantil de área se esvai das discussões próprias de seu objeto para se centrar completamente naquilo que era trazido pelo movimento geral, muitas das discussões programáticas próprias ao movimento geral eram deixadas de lado em detrimento de um debate em torno das alternativas organizativas disponíveis frente a falência da UNE. Os espaços


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do movimento de área se tornavam, assim, palco de disputa entre aqueles que defendiam o rompimento com essa entidade, e aqueles que pautavam a mediada proposta de “por dentro e por fora da UNE”. Com o fracasso da CONLUTE, sem entrar no mérito desse processo em particular, o PSTU inicia uma campanha pela construção do Congresso Nacional de Estudantes (CNE), no qual foi fundada, então, a ANEL. Nesse processo em particular o espaço das executivas de curso foi amplamente utilizado para polarizar os debates em torno da reorganização do ME. Foi notável o protagonismo de entidades que eram dirigidas pelo PSTU na construção do CNE, como a Exnel, bem como a insistência da afirmação dessa proposta nos fóruns das entidades em que eles se constituíam enquanto minoria. Apesar da presença desse setor no movimento de área ao longo desse período de forma mais incisiva, víamos que sua proposta de intervenção sempre se baseava em algo para fora do ME de área. Ia-se ao movimento de área para dizer que a resposta necessária ao processo de reorganização era outra: uma nova entidade canalizadora de lutas do ME geral. Isso se refletia na, quase, nenhuma organicidade dada por esse setor às executivas para além de seus fóruns de disputa. Podemos dizer que, a partir da fundação da ANEL, a concepção de intervenção sustentada por esse setor não se altera substancialmente: aparece nos encontros para pautar a construção da ANEL, desaparece no restante do tempo. Contudo, é notável a diminuição do peso que os militantes da ANEL dispendem na disputa dos fóruns do movimento de área quando comparado com aquilo que faziam no período de gestação da nova entidade. Para além disso, apesar da repetição insistente da necessidade de rompimento com a UNE e construção da ANEL, vemos que é difícil hoje que a intervenção em um encontro tenha essa temática enquanto sua polarização central. Esse esvaziamento dos espaços orgânicos das executivas, de seus espaços de direção e de seus fóruns de disputa, acarretam em uma lógica ausência dessa força nos espaços do FENEX o qual, antes valorizado por sua potencialidade enquanto ferramenta de articulação do ME geral a nível nacional, já tem seu papel suprido por um belo solitário. Com relação à oposição de esquerda da UNE, sem entrar em especifidades de campos específicos, vemos que seus coletivos se aproximavam mais da construção de uma política de ME geral dentro dos espaços do ME de área do que propriamente de uma construção focada num recorte temático/profissional. Na medida em que a construção de espaços unitários da esquerda do ME se tornam cada vez mais uma exceção, vemos que o movimento de área, por se enxergar nele somente essa funcionalidade, também é esvaziado. Ao mesmo tempo, vemos setores de coletivos da OE atuando no ME de área, porém de forma assistemática e quase sempre pontual. (iii) breve síntese É necessário indagarmo-nos sobre o papel do movimento de área e, mais especificamente, seu papel no processo de reorganização. Inicio por este último: o


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ME de área é importante por que nos permite dialogar com mais estudantes por seu método, relação direta com CAs, e por que trabalha com uma base diferente do que aquela mobilizada por um primeiro contato direto com as pautas gerais. Por outro lado, entendendo o processo de reorganização do movimento estudantil enquanto um processo calcado na necessidade da unidade, não podemos ignorar o fato de que as principais lutas que movem o cenário nacional do movimento estudantil não tem se utilizado dos instrumentos do movimento de área enquanto catalizadores e canalizadores dessas explosões. Nesse sentido, embora o movimento de área contribua para o processo de reorganização na medida em que evidencia importantes balizas sobre as quais devemos pautar nossas lutas, auxilia na nossa análise de conjuntura e abre perspectiva de incidência sobre uma nova fatia de nossa base social, suas ferramentas hoje não cumprem o papel que cumpriram no início dos anos 2000 na articulação das lutas. Concretamente, hoje o FENEX não tem condições de ser o fórum de mobilização estudantil, embora contribua para a realização deste. Dizer isso, contudo, não significa dizer que não se deve dar peso ao ME de área ou que suas potencialidades se esgotaram na década passada. É entender que, apesar de ter cumprido um papel conjuntural protagonista na organização das lutas, o movimento de área tem um papel perene que deriva da opção do recorte de seu objeto, explorado anteriormente. Deriva disso um entendimento de que o barricadas deve cumprir um papel importante na pressão sobre outros grupos do movimento estudantil para que esses se reaproximem da intervenção do movimento de área. Essa pressão deve se dar tanto através de conversas de força formais, mas, principalmente, através de uma atuação coerente dentro do ME de área que faça com que essa esfera de atuação se demonstre factível tanto em termos da política tocada quanto em potencialidade de aglutinação de base. Isso é responsabilidade do barricadas, na medida em que o movimento de área ganha politicamente com essa intervenção mais ampla de setores, bem como isso significa um deslocamento da localização política que esses setores ocupam no cenário de reorganização também. Cabe precisar, ainda, que a relação que logramos estabelecer entre a intervenção no ME de área e os debates do ME geral nacional são uma baliza muito importante na possibilidade desses deslocamentos e aproximações. Assim, constitui nossa tarefa prioritária pensar uma política geral coerente que seja passível de ser articulada de forma a não se tornar a ideia-fixa do ME de área, mas sim desdobramento lógico de seus debates específicos na pauta da educação. A mobilização de setores independentes em torno desses debates de ME geral, assim gestados, contribuem para a pressão sobre os grupos com quem temos atuação no ME de área, bem como demonstram a potencialidade das lutas que propomos enquanto unificadoras do ME geral. Isso ressalta mais uma vez a importância que a intervenção no ME de área ganha na possibilidade de constituição de alguma organicidade a uma alternativa de FME. Conjuntura atual e outras contradições


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É notório que, embora coloquemos enquanto um de nossos nortes na intervenção no movimento de área a aproximação de outras forças, hoje o movimento de área aglutina, com alguma clareza de projeto e atuação orgânica, duas forças: o barricadas e a consulta popular, recentemente via levante popular da juventude. No último período temos observado um crescimento bastante significativo da CP, tanto em números, quanto em abrangência de formulação política para as executivas. Esse movimento tem sido acompanhado de uma impossibilidade nossa de dar respostas a altura, terminando em uma hegemonização de executivas como a FEAB, ABEEF – tradicionais – e o avanço em direção a outras executivas em que historicamente temos trabalho, como a ENEBIO, FEMEH, FENED e DENEM. Para tentar responder ao porquê de enfrentarmos tal conjuntura, cabe um breve histórico e caracterização da atuação da Consulta Popular dentro do ME. Historicamente observamos uma inserção desse grupo na área de agrárias, através das já citadas FEAB e ABEEF. Dentro dessas executivas, sua atuação se centrou em cima de um dos elementos que apontamos enquanto uma potencialidade do ME de área: a relação com a extensão e a produção de uma alternativa à produção acadêmica vigente. Isso se configurou em um enfoque sobre a formação de profissionais que respondam às expectativas e problemas 39 elencados pelos movimentos sociais que se aglutinam na via campesina, notadamente o MST. A caracterização geral é de um movimento estudantil que se desloca do enfoque do debate da educação e busca formar estudantes capazes de se tornarem quadros dos movimentos sociais em questão. Em síntese, era uma concepção de movimento estudantil enquanto uma antessala de outros movimentos sociais, que, por fim, esvaziava o ME de suas características próprias enquanto movimento social da educação. Paulatinamente, vemos uma inflexão desse setor no sentido de, não somente apontar para fora do ME enquanto única perspectiva verdadeiramente revolucionária, mas de iniciar uma formulação em torno da educação, ainda que incipiente. Tal formulação tem, em grande medida, coincidido com aquela tradicionalmente defendida pelos setores mais à esquerda do PT, de críticas leves às políticas governamentais, mas de sua defesa enquanto projeto de desenvolvimento nacional e avanços concretos para a classe trabalhadora. Se a inserção inicial em outras executivas se baseia amplamente no debate da vinculação do ME aos MS, cada vez mais vemos a ampliação desse discurso para abranger a defesa das políticas, sejam elas para a educação ou não, dos governos do PT. A pergunta que resta é: como esse discurso ganha corpo em detrimento da política que formulamos para esses mesmos espaços? Considero que alguns fatores contribuem para isso. Primeiramente o método adotado por esses setores é basicamente agitativo, contando com a sensibilização enquanto fator determinante no convencimento político. Essa metodologia dialoga, no geral, com o senso comum médio – dentro de uma noção de defesa das políticas do PT, há um duplo fator de diálogo acrítico com o senso comum, baseado no método e no conteúdo da agitação. Tal elemento destaca


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uma noção de intervenção no movimento estudantil que, se por um lado segue reproduzindo a noção de formação de quadros para os movimentos sociais, por outro tem pretensões de abranger sujeitos diferenciados e mais amplos. Não é raro nos depararmos com a verbalização por parte da CP da necessidade de se constituir um movimento de massas a partir do corpo estudantil. Tal noção nos coloca um desafio que, acredito, não concerne nossa intervenção somente no movimento de área, mas fica patente em nossas inserções neste: a necessidade de superarmos alguns perigos impostos pelo ME de área. Um primeiro perigo se relaciona a uma tendência à militância nacional se virtualizar e perder gradativamente o contato cotidiano com sua base social. Por outro lado, um segundo perigo se refere à natureza dos debates que empreendemos, o qual remete necessariamente à abrangência da base social com quem temos contato. Os encontros de movimento de área tem um potencial de aglutinar amplos setores estudantis em seu interior. Contudo, é comum que seus fóruns tenham um número proporcionalmente reduzido de estudantes envolvidos de forma mais séria – note, não digo orgânica – nos debates empreendidos naquele espaço. Nosso desafio é conseguir abranger um número maior de estudantes, notadamente das universidades pagas onde, por raras exceções, praticamente não temos militância orgânica no coletivo e temos dificuldade de atingir também no debate do movimento de área. Mais do que isso, temos que conseguir fazê-lo sem ceder em nosso programa político, mantendo a centralidade da pauta da educação apesar das aberturas diversas que o movimento de área nos proporciona. Penso que a construção de lutas concretas, pautas factíveis, também deve ser uma linha de nossa intervenção nesse espaço, na contramão de um outro perigo do movimento de área incorrer em um pólo de debates e concepções progressistas de fundo sobre uma área, mas sem ações práticas e pautas que o mobilize. Aponto, assim, um vácuo deixado por nós, tanto por desarticulação de nossa política de movimento de área mas, mais o que isso, por uma construção ainda estreita de nossos debates e métodos do movimento de área, que a CP vem ocupando. É imperativo que reflitamos sobre isso e tenhamos uma pretensão a uma construção ainda mais ampla a partir das executivas de curso. Somente assim podemos legitimar uma defesa séria da intervenção no movimento de área, levando em conta sua especificidade, seu vínculo com o movimento geral, sem ignorar seu papel na conjuntura de reorganização do movimento estudantil, e calcado em uma concepção que se disponha a disputar uma parcela significativa da sociedade, e não somente sua vanguarda.


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4. Educação Libertadora e Combate às Opressões Textos da Tese do Coletivo Nacional Levante para o V Encontro de Mulheres Estudantes da UNE

Texto 1: Vermelha flor, vermelha bandeira. Assistimos um processo de profunda modificação e expansão do capitalismo. Além da dominação de territórios, o capital consolidou seu alcance em todas as esferas da vida humana. Tal processo se vincula com a luta deste sistema por sobrevivência: nasede por mercados e mercadorias, o capital se introjetou em todo o mundo. As mulheres são hoje 70% dos pobres do mundo. São maioria entre os refugiados de guerras, trabalhadores informais, precarizados e desempregados. O capitalismo só se viabiliza alimentando os conflitos entre aqueles que explora. A divisão sexual do trabalho mantêm-se na mesma dinâmica pré-capitalis ta, acrescentando a seus papeis uma dimensão financeira. Assim, a hoje tão falada dupla jornada sempre foi uma realidade das mulheres pobres, que lavavam as casas de seus senhores maridos e dos senhores patrões. A desvalorização da mão-de-obra feminina que se reflete mesmo nas esferas burguesas de nossa sociedade é um mecanismo para a precarização da mão-deobra como um todo das classes trabalhadoras. Nas partes mais ocidentalizadas e metropolitanas do planeta, nosso papel como mercadoria transformou-se. Ao invés de sermos exibidas sedutoramente para consolidar alianças entre clãs, somos exibidas sedutoramente para consolidar o consumo de cerveja. Somos ainda vendidas de modo literal, arrancadas à força de nossos lares e prostituídas em bordeis. O tráfico de pessoas é o terceiro maior negócio ilegal do mundo. Somos mantidas neuróticas e infelizes quando são vendidas a nós imagens de mulheres irreais, dentro de um padrão de beleza tão estrito que nem sequer as modelos se encaixam nele, sendo retocadas por todas as ferramentas de imagem possíveis. O império das grandes empresas e bancos tem avançado ainda no desrespeito ao meio ambiente, à biodiversidade, à vida. O uso de combustíveis fósseis e o a geração descontrolada de lixo tem agravado a degradação


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ambiental. Também temos visto o direito da semente e da vida serem mercantilizados na produção dos alimentos transgênicos. A opção pelo lucro e pelo agronegócio tem tido consequências sobre a comida, que fica cada vez mais cara e de pior qualidade. Em diversos movimentos anticapitalistas e/ou de contestação da ordem vigente nos últimos anos, as mulheres têm mostrado a cara dizendo o quanto as saídas que o capital nos oferece são limitadas. No último ano, em contestação à RIO+20 e sua economia verde, 20.000 mulheres marcharam dizendo não à nova máscara do capital, que precifica a natureza e nos expulsa dela. São mulheres dos rostos mais marcados que sabem que só mudando o mundo mudaremos nossas vidas. Texto 2: Hoje você é quem manda, falou tá falado... Há pouco tempo era muito difícil imaginar que teríamos uma presidente mulher no Brasil. “Agora elas podem”, repete a presidente Dilma Roussef, que instituiu pela primeira vez um Ministério com cotas 30% de ministras. Se por um lado essa feminização do poder é fundamental para alimentar um imaginário onde as mulheres tem livre acesso a vida política, por outro ela não tem se refletido num avanço das pautas feministas no governo. Ainda durante a campanha, a atual presidente associava sua imagem à grande mãe defensora do povo brasileiro e se comprometia com os setores mais conservadores da sociedade a não caminhar com o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), sobretudo nos itens referentes à invasão de propriedade rural, direitos dos homossexuais e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (revisão da legislação punitiva sobre aborto). E logo no início do governo, já apresentou cortes de verbas nas áreas sociais, o que pesa mais sobre os ombros das mulheres. A Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres criada durante o governo Lula sinalizando um grande avanço não demorou muito para ser a primeira a ter suas verbas cortadas logo no início do governo Dilma.Essa ação inviabilizou a aplicação correta da Lei Maria da Penha limitando o combate à violência e tornando quase inexistente o apoio às vitimas. Da mesma forma as verbas destinadas a educação foram cortadas, o que prejudicou a aplicação da assistência estudantil e a permanência das mulheres, mães na universidade.De que adianta encaminhar a política e não garantir que ela aconteça? É importante lembrar também que a postura do governo brasileiro no cenário internacional tem sido por um lado a briga por uma inserção dependente no mercado globalizado a partir de nossos minérios, cana, petróleo, florestas, perpetuando a histórica pilhagem dos recursos do país e por outro lado a sua ação, sobretudo a partir das multinacionais brasileiras na expansão imperialista sobre países da América Latina, desrespeitando sua soberania e depredando seus recursos. As mulheres tem em todo o mundo se colocado contra o


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capitalismo imperialista e tem sido fundamental na construção da resistência. Não podemos deixar, que o governo brasileiro prossiga desta forma. A Lei Maria da Penha proporcionou maior visibilidade à violência contra a mulher e facilitou o acesso ao direito. Houve avanço através da criação - ainda insuficiente - dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, e das alterações de diversos códigos legais. Mas, apesar do reconhecimento da lei, o acesso aos serviços depende ainda de medidas complementares como as casas abrigo, as delegacias da mulher, e de jurisprudência compatível com a norma. As garantias às mulheres ainda são limitadas e a proteção do estado inexistente ou insuficiente. O governo também sinalizou a legalização do aborto como uma política de saúde necessária. Mas a condução da política pelo governo e as contradições do PT e da sua base de sustentação, além da pressão de agrupamentos religiosos, tem provocado reveses à luta do movimento feminista - que enfrenta igualmente uma forte resistência dos setores conservadores. Outras políticas muito parciais como a extensão da licença maternidade – que não impõe obrigações para área pública entre outras limitações - e a ampliação dos direitos das domésticas - igualmente muito limitada pela exclusão de direitos comuns as trabalhadoras - foram criadas num ambiente de barganha institucionalizada. Ambas as leis tiveram pouca ou limitada eficácia. Porém, o conjunto dessas políticas foi constituído sem o aporte financeiro e operacional necessário a efetividade das ações. Especialmente os irrisórios recursos destinados aos programas e projetos e a submissão a uma estratégia de focalização das ações sociais - abandonando a necessária universalização dos direitos - são responsáveis pelo impacto restrito das políticas. Igualmente a não responsabilização dos entes federados e poderes da república na gestão dos planos de estado para atendimento das políticas sociais e a não garantia da universalidade dos serviços tornam ineficazes ou muito insuficientes essas políticas. A opção pela assistência social exclusiva através do programa bolsa família é um obstáculo adicional. E a submissão à política macro econômica neoliberal é que impõe a escassez de recursos e o que estimula a barganha institucionalizada dos movimentos sociais que ascendem à esfera pública sem autonomia e de forma concorrente para obtenção de recursos públicos. Com a crise essa situação pode piorar ainda mais. É que o governo continua preocupado com a credibilidade junto à comunidade financeira e pra isso sustenta metas de superávit monstruosas, responsáveis por contingenciar bilhões de reais que, ano a ano não são destinados às políticas públicas. As políticas de enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, por não possuírem vinculações e mínimos constitucionais assegurados, são as mais penalizadas por este artifício. É por isso que precisamos ficar alerta à defesa dos direitos das mulheres a partir da luta anti-capitalista e feminista. Denunciar as ameaças do capital e a submissão dos governos aliados ao mesmo à vida das mulheres é uma tarefa nossa!


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Texto 3: Aqui eu poderia cantar uma canção veemente A universidade não está descolada da sociedade, estando, portanto, permeada por valores machistas e, em determinados cursos, alguns elementos são mais aprofundados. É necessário, portanto, trabalhar para incluir temáticas que discutam a opressão de gênero na formação dos futuros profissionais e dedicar investimentos nas áreas de pesquisa para a produção de um conhecimento não sexista. É preciso influir nos currículos escolares, nas estratégias pedagógicas e no material didático de forma a romper o ciclo de reprodução da dominação simbólica que repercute nas escolhas profissionais. Devem ser previstas formas de apoio aos núcleos, redes, publicações e eventos especializados nas temáticas que envolvam gênero, bem como o estímulo a criação e manutenção de grupos de trabalho e comissões nas sociedades científicas. As estratégias não podem se limitar ao estímulo do ingresso de mulheres nas carreiras científicas. Mulher Também Produz Conhecimento! Pensar o que é a produção de conhecimento em nossas universidades passa por perceber quem são os atores e atrizes sociais que o constroem, assim como toda a sociedade que o envolve. Por isso, outra temática que carece de aprofundamento por nós feministas é a área da produção científica. A ciência moderna envolveu progressivamente um alto grau de formalização, com a fundação de instituições e o estabelecimento de normas que afastaram progressivamente as mulheres. A ciência se estruturou, então, em bases quase exclusivamente masculinas. Se formos fazer um resgate histórico do reconhecimento das mulheres na produção da ciência, vamos perceber que foi necessária a recusa de Pierre Curie em receber o prêmio Nobel sozinho para que a comissão reconhecesse a contribuição de Marie, sua esposa, na área da radioatividade. Mais tarde, a contribuição essencial de Rosalind Franklin para a elucidação da estrutura do DNA foi completamente ignorada pela comissão do prêmio Nobel. Outros exemplos podem ser facilmente encontrados em qualquer livro bibliográfico sobre mulheres cientistas. Apesar de a situação ter se modificado um tanto, o momento de hoje não é lá essas maravilhas. Apenas 3-4% do corpo docente universitário em qualquer área de ciência e tecnologia no Reino Unido é constituído por mulheres. O mesmo vale para os Conselhos de Pesquisa e demais órgãos governamentais. Quanto à participação feminina na produção do conhecimento, o primeiro ponto que deve ser considerado é a completa falta de preocupação dos órgãos oficiais que coordenam o sistema de Ciência, Tecnologia e Informação no Brasil em desvelar a presença feminina neste sistema. Como os/as estudiosos/as da problemática de


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gênero não cansam de alertar, somente o olhar interessado de pesquisadores/as envolvidos/as com a questão podem encontrar a mulher onde as estatísticas insistem em tratar os diferentes como iguais. Outro indicativo, que se soma à reduzida participação de mulheres em cargos administrativos das principais instituições de C&T do país, é a eleição delas para a Academia Brasileira de Ciências. Nas Engenharias e nas Ciências da Saúde não há nenhuma mulher entre os acadêmicos. No caso dessas áreas, bem como nas de Física e Matemática, a ausência de mulheres entre os acadêmicos reforça ainda mais o estereótipo masculino associado a elas. Mas, quando se observam os acadêmicos associados, uma posição certamente de menor prestígio, elas são mais representativas, contando cerca de 40% do total. Outro elemento a se considerar é que no Brasil, durante o percurso acadêmico, a licença maternidade é um direito reconhecido legalmente, mas quando concedida durante o mestrado ou o doutorado não se desconta este período do tempo de titulação da aluna, o que tem impacto nos indicadores dos programas e resulta em mecanismos de pressão variados sobre as mulheres. Mas uma questão que é fundamental a ser enfrentada é a representação paritária das mulheres em comitês das agências de fomento e nas instâncias de decisão das instituições. À primeira vista é bem possível achar que a universidade é um espaço onde o machismo é limitado. No entanto, basta olhar para os cartazes das chopadas, ou para as piadinhas em calouradas para percebermos que ainda temos muito a mudar. Outro problema encontrado é preconceito e falta de reconhecimento encarado pelos cursos/profissões tidas como femininas. O preconceito dentro dos cursos por sua vez não é menor. São muitos os casos de constrangimentos em plena sala de aula por parte dos professores e colegas de sala enfrentados pelas meninas. Além disso, os campi pouco iluminados podem ser palco para filmes que tem sim a mulher como protagonista, mas que estão mais para tragédias do que para qualquer outra coisa. Nesse segundo olhar, podemos perceber que a universidade continua a ter um papel central na difusão do preconceito. As mulheres, mesmo no espaço da universidade, continuam a ser vítimas de um modelo de sociedade sexista. No entanto, essa mesma universidade que hoje é voltada para as empresas, pode ser um pólo de resistência, de construção de consciência coletiva de luta e de avanço para o povo.

Texto 4: Por um movimento estudantil feminista Localizamo-nos no movimento estudantil como uma ferramenta fundamental para a construção de uma sociedade com igualdade real entre seus pares. Um espaço estratégico desta luta se dá no combate às opressões dentro do movimento estudantil, da Universidade e da nossa sociedade como um todo.


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Mas para que o movimento estudantil consiga contribuir para a construção de uma sociedade e uma universidade e de um mundo onde a pobreza e a violência sexista não existam mais, é necessário transformá-lo.

Por um Movimento Estudantil Não Machista! O espaço político, se configurando como um espaço público e de poder, historicamente é ocupado pelos homens e mantém às mulheres à margem de seus processos. Enquanto que o espaço das mulheres continua a ser a esfera privada e reprodutiva, no conjunto da sociedade, as relações entre homens e mulheres ainda se dão não só de forma diferenciada, mas hierarquizada. No M. E., identificamos alguns fatores dessa perpetuação patriarcal: O Espaço Masculino: Pela lógica da reprodução dos processos explicitados acima, a participação feminina no movimento estudantil não se dá de fora espontânea. Trabalhar, portanto pra alterar a composição desse espaço através de cotas e incentivos às mulheres é de extrema importância no atual cenário. A Figura d“O Dirigente”: A figura d”O Dirigente” introduz um modelo de tocar política que separa “base” e “direção”, dificultando a prática política dos menos experientes. Além do fato de este ser quase sempre homem e baseado em aspectos mais difíceis às mulheres (falar em público, “comprar briga”, “bater na mesa”, valores dificilmente cultivados na educação das mesmas). Trabalhar pra construir múltiplos agentes que possam dar a possibilidade a nós de trabalhar de forma horizontal e menos personalista é fundamental para incentivar a participação das mulheres. A Falta de Democracia como Valor Universal: Defendemos um movimento estudantil baseado em espaços democráticos que dêem a todxs a possibilidade de participar, contribuir e formular a política. De um modo geral os espaços do ME ainda se constituem de modo diametralmente oposto a isso. Acabam se configurando blocos, que na melhor das hipóteses, combinam política entre si para disputar com outros blocos. A falta de democracia nos espaços do movimento e o “disputismo” sem fim desses espaços tem impacto grosseiro sobre o estímulo à participação do conjunto dos estudantes e em especial das mulheres.


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Machismo e Privilégios: Adotar um ponto de vista materialista é entender que os homens, enquanto membros de um grupo opressor usufruem de privilégios materiais e nãomateriais sobre as mulheres e que, mesmo participando do movimento estudantil, reproduzem a opressão. É fundamental manter um olhar vigilante sobre as posturas machistas dos homens no ME. Por isso, também devemos apostar na formação de espaços auto-organizados com o intuito de incentivar a prática e a formulação política das mulheres e a identificação e combate a posturas e políticas machistas. É importante ressaltar que a construção da autonomia para as mulheres envolve a mudança dats relações de poder nos diversos espaços sociais, sendo necessário fazer um esforço não só para inserir as mulheres no espaço político, mas repensar a forma como toda a prática política é estruturada. Reafirmar a “nova cultura de movimento estudantil” é, portanto, não maquiar o debate, ou fazêlo pela metade, no sentido de que não basta debater gênero como se estivesse descolado de todo o restante, mas incorporar no dia-a-dia do movimento, CAs, DCEs e entidades gerais (UNE, executivas, etc) a políticas das mulheres.

10 11 Texto 5: Mudar a sociedade, não a nossa cor Para mudar a sociedade temos que ter como pauta de discussão e ação a luta das mulheres, que por muitos anos não foi colocada como prioridade. Hoje temos o entendimento que o debate de mulheres negras vai além do debate de feminismo e da luta pela igualdade racial. Nós, negras, temos debates mais específicos por sofrermos dupla opressão: de genero e cor. Se gays, isso se torna ainda mais intenso. Quando surgiram as primeiras movimentações de mulheres exigindo o direito ao trabalho a história das negras não foi relevada, mesmo sendo nós as mulheres que trabalhávamos desde a colonização do Brasil nas plantações e cozinhas – serviços extremamente exploratórios. Não esqueçamos que éramos as escravas sexuais dos senhores de engenho. Hoje ainda ocupamos os cargos para os quais se considera necessário o menor desenvolvimento intelectual, nos quais ocorre grande exploração em relação aos direitos das trabalhadoras e que resultam em várias doenças físicas pelo esforço repetitivo. Estudos mostram que a população pobre brasileira é de maioria negra e muitxs acreditam que o racismo acabará com a melhoria da qualidade de vida. Isso não é real. Se não houver políticas afirmativas para a miscigenação da sociedade, o racismo, assim como o machismo, continuará ocorrendo de forma “natural”, como hoje. O debate de cotas sociais e raciais vai além dos muros da universidade. A luta pela igualdade da população deve ser feita em todos os espaços que ocupamos diariamente. Devemos exigir do governo medidas efetivas para a Saúde Publica, que se encontra em situação precária e é majoritariamente


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utilizada por mulheres negras de baixa renda. É inaceitável que essas mulheres não tenham o atendimento necessário após abortar e morram, como também que as mulheres sofram agressões e que sejam em sua maioria negras. A educação é ponto de partida para a superação de muitos dos problemas raciais e sexistas. Uma das ações deveria ser a inserção efetiva da cultura afrodescente na grade curricular das escolas junto com o entendimento da igualdade de gênero. Porém, isso não parece ser prioridade do governo. Mesmo os níveis de alfabetização e escolaridade das negras estão atrás dos índices das brancas sendo, respectivamente,78% e 76% das negras e 90% e 83% para brancas. Onde vemos as mulheres negras dentro da Universidade? Não estamos nas reitoras, nem lecionando, nem fazendo pesquisas e poucas vezes estamos nas cadeiras das salas. Em maioria, somos as faxineiras e cozinheiras dos R.U.’s. Temos que levar para dentro dos centros acadêmicos, DCE’s, salas de aula e bares nosso debate, tentando aprofundar a discussão para que a sociedade capitalista e opressora veja que existimos e temos consciência de quem somos e da força que temos.

Texto 6: Por que nos auto-organizamos? Apesar da constante reprodução do mito de igualdade entre os sexos afinal, segundo esse discurso, hoje as mulheres votam, trabalham fora, têm independência financeira -, a realidade da opressão machista é duramente sentida por nós cotidianamente. Mas essa realidade muitas vezes precisa ser desvelada, pois a reiterada naturalização de práticas machistas faz com que muitas de nós acreditem no tal mito de igualdade e reproduzam a lógica pós-moderna de que “não há mais nada pelo que devemos lutar”. O fato é que ainda há muito pelo que lutar e pra isso é preciso nos organizarmos. Ou melhor, é preciso nos auto-organizarmos. E isso porque enquanto sujeitos que são objeto da opressão machista, só nós, mulheres, podemos conduzir a luta por nossa emancipação - não devemos ansiar que os homens reconheçam a igualdade entre os gêneros como prática social, devemos ser protagonistas da nossa própria luta. É através da auto-organização que criaremos uma identidade política, ao nos percebermos enquanto mulheres e compreendermos o que significa esse ser mulher. Por isso defendemos e incentivamos a criação de coletivos feministas e a realização de encontros de mulheres nas universidades. Esses espaços são extremamente importantes para a organização da luta feminista. Neles, a partir da troca de experiências, é possível reconhecer o que há de comum entre elas. Neles também realizamos nossa formação enquanto militantes feministas: inicialmente, nos identificando enquanto ser oprimido e explorado; em segundo lugar, compreendendo que essa opressão e essa exploração situam-se no interior das


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relações sociais, de modo que a dominação também varia de acordo com questões étnico-raciais e questões de classe; e, por fim, compreendendo os mecanismos que sustentam essa dominação e que fazem com que ela se reproduza e se perpetue. No espaço da universidade somos responsáveis por levantar e exigir respostas às demandas de mulheres, desde a criação de creches nas universidades até o fim dos trotes machistas. Cada uma de nós tem seu papel no combate ao machismo, cada uma de nós carrega a responsabilidade de lutar contra essa opressão que configura das mais diversas formas em diferentes lugares. Mas essa luta deve ser travada coletivamente, repartida ao lado de cada companheira e espraiada por todos os cantos. Então, mulheres, levantem-se, organizem-se!

Texto 7: Pelo direito de decidir Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos são feitos por ano no Brasil. A questão que se levanta é como proceder diante desse realidade? Ignora-la? Manter a legislação que pune a mulher que faz o aborto? Condenar as mulheres que recorrem ao aborto clandestino como uma solução viável diante de circunstancias adversas? Deixar de assistir centenas de mulheres que tem complicações por realizarem abortos clandestinos? Desconsiderar a capacidade das mulheres decidirem de modo ético, sobre a interrupção da gravidez? Trazer ao mundo um novo ser deve ser fruto de um processo de escolha e cultivo de amor, desejo e carinho. Assim sendo é pouco razoável exigir que as mulheres se tornem mães apenas porque são dotadas da capacidade física de gestar; é pouco razoável que as mulheres não sejam reconhecidas como agentes morais com capacidade de decidir eticamente sobre seu corpo e sua capacidade reprodutiva. Ser mãe não é apenas algo que ocorre por 9 meses, mas algo que a acompanha por toda a vida. Por isso a decisão de ter ou não um filh@ deve ser da mulher. A luta pela defesa do Estado Laico é uma luta pela cidadania das mulheres. São as cidadãs que devem decidir se devem ou não práticar o aborto, se essa é uma prática correta ou não, se está ou não de acordo com seus valores religiosos. O Estado deve garantir que suas cidadãs possam decidir tanto por serem mães quanto por não serem e pensar a concepção, a anticoncepção e o aborto como direito de cidadania e direitos humanos, reconhecendo a democracia para as mesmas. Manter o aborto criminalizado somente colabora para a morte de milhares de mulheres, na sua maioria negras, pobres e jovens, todos os anos. São essas mulheres que não podem pagar os altos preços cobrados pelas Clinicas


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Clandestinas e recorrem a outros métodos como agulhas de tricô, chás e espancamentos. Enquanto as clinicas lucram, o Estado gasta mais para reparar os danos à saúde das mulheres provocados por métodos de abortamento inseguros. Mulheres sempre abortaram e continuarão abortando. Métodos contraceptivos não são infalíveis, pessoas não são máquinas, a violência contra a mulher é enorme e a situação de submissão e desigualdade nas relações sexuais também. Legalizar o aborto significa ter uma política de saúde responsável para com as mulheres e garantir educação sexual para prevenir, contraceptivos para não abortar e aborto seguro para não morrer. Significa eliminar o lucro abusivo das clinicas clandestinas e o medo e a solidão das mulheres que abortam.


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