O Drive

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Paulo Sá

“... Sete horas em Brasília. Está começando a Voz do Brasil...” - Posso colocar uma música? - pergunta o taxista, olhando pelo retrovisor interno para o passageiro, já mudando do rádio para o CD - player. - Sim, mas estou atrasado. Você poderia ir mais rápido? – responde o passageiro apreensivo. - Eu até queria, mas nesse horário e com esta chuva, tá difícil. Mas hoje é sexta-feira e a chuva é só pra limpar o céu pra dona da noite sair... - O senhor tem razão, é provável que faça um luar lindo depois da chuva, porém, primeiro os compromissos profissionais, depois a diversão... O táxi está na Avenida Nazaré, uma das mais importantes e movimentadas da cidade, famosa pelo seu túnel de mangueiras seculares. O trânsito está lento e chove muito em Belém, capital do Pará. São as águas de março, anunciando a saída da lua cheia. Seu Jaime é um taxista antigo e conhece os atalhos da cidade, mas o passageiro não lhe disse o paradeiro, apenas vai lhe indicando o caminho. - Se o senhor me disser aonde quer ir, eu posso tentar um atalho mais rápido... com menos trânsito... - diz Jaime. 1


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- Dobre na próxima esquina à direita. Eu ficarei um quarteirão depois. A próxima rua é a Travessa Rui Barbosa e o trânsito deve estar melhor, pois nesse sentido eles se afastam do centro da cidade. - O senhor é fotografo? - pergunta Jaime. - Sou jornalista e, às vezes, o furo de uma reportagem pode ser uma imagem, então, aproveito para também fazer as fotos. - Deve ser emocionante sua profissão. Eu estudei pouco, por isso, sou motorista, mas já vi muita coisa na rua. Acho que se tivesse uma câmera poderia ter feito algumas fotos boas para uma reportagem. - Eu nunca havia pensado nisso, mas todo taxista poderia ser um bom repórter de rua, se estivesse preparado para isso. Tome, este é meu cartão. Ligue-me que vou lhe dar uma câmera, pode ser que trabalhemos juntos. - Obrigado, Seu Benício ...- Jaime agradece, lendo o nome do passageiro no cartão. - Vou descer no próximo sinal. - O senhor vai descer no sinal? Tá chovendo muito... - Eu sei, mas não se preocupe. Estou com pressa e a próxima rua é contramão para o lado que eu vou. - Mas eu posso dar o balão e lhe deixar na porta... - diz Jaime, encostando o carro no sinal. - Não tenho mais tempo. Aqui está bom, quanto é a corrida? - São 26 reais. 2


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- Tome trinta e fique com o troco. Não esqueça de me ligar – diz Benício saindo do táxi na chuva. Jaime agradece e espera, o sinal está amarelo e vai fechar de novo. Enquanto isso, observa o repórter que atravessa na faixa de pedestres em frente do seu carro e ainda o olha, quando uma moto se aproxima entre o táxi e outro carro. O carona da moto desce com uma arma e aborda o jornalista. De repente, ouve-se um tiro e o estranho sobe na moto com a câmera de Benício. O sinal abre e o motoqueiro, com o carona, dobra na transversal na contramão entre os carros parados no sinal. Jaime vê tudo e não pode segui-los. Benício está na faixa de pedestre, caído em frente ao táxi. O taxista sai do carro e se dirige para o repórter estendido no asfalto, ele ainda está vivo. Jaime tenta carregálo, mas ele está sangrando e quer lhe dizer alguma coisa. O motorista aproxima seu rosto do dele e percebe que Benício segura sua mão com um pequeno objeto e diz: - Não entregue isto à polícia - deixando um mini-drive na mão de Jaime. - Calma, eu vou te levar para o pronto-socorro- diz Jaime - Entregue à Manuela... me prometa? - Sim, eu prometo. Mas primeiro vamos para o hospital diz o taxista tentando levantá-lo com a ajuda de um rapaz que estava na padaria da esquina e acaba de chegar para ajudar. Entretanto, Benício não esboça mais nenhuma reação. Está morto. A chuva fica mais forte, mas, mesmo assim, pessoas com ou sem guarda-chuva se aproximam. Outros taxistas param, achando que foi um acidente com o colega, 3


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mas Jaime conta o que aconteceu. A polícia já foi avisada e, em pouco tempo, o local foi isolado e Jaime conta o ocorrido aos policiais, que o conduzem a delegacia para prestar depoimento ao delegado de plantão. Antes de entrar na viatura policial, o taxista pede para estacionar seu carro que ainda está no sinal. Ao se aproximar do táxi, Jaime percebe que há um carro preto sedan parado no acostamento, um pouco antes do local do acidente. A luz de dentro do carro está acesa e um homem de uns 40 anos está de cabeça baixa como se estivesse anotando algo. Neste momento, o homem, que está dentro do carro, levanta a cabeça e, por um instante, seu olhar cruza com olhar do taxista. Rapidamente ele apaga a luz interna e Jaime não consegue mais vê-lo. Jaime entra em seu táxi e coloca o mini-drive, que Benício lhe deu antes de morrer, embaixo do tapete. Depois liga o táxi e o estaciona próximo ao sinal. O sedan preto passa ao seu lado, os vidros estão fechados e peliculados, mas Jaime anota a placa e tem a sensação que aquele homem também deve ter anotado a sua. Olha as horas, são 19h32min, sai do seu carro e se dirige para a viatura policial. A delegacia está cheia de gente por causa de uma briga entre dois moleques que jogavam bola na hora da chuva. Tudo começou com uma entrada mais ríspida de um dos moleques durante a partida. O moleque que sofreu a falta, revidou em grande estilo com uma voadeira maldosa que acertou o outro em cheio. A partir daí, começou uma briga generalizada entre os times, depois entrou quem estava assistindo e, para finalizar, 4


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alguns pais também se meteram. Agora está todo mundo na delegacia falando ao mesmo tempo. O delegado tira sua arma do coldre e com a outra mão pega um porrete ao lado da sua cadeira e acerta o tampo da mesa com tanta violência que todos, como num passe de mágica, ficam mudos. Ele coloca, então, sua arma em cima da mesa ao lado do porrete e grita: - Vocês estão loucos? Isto aqui é uma delegacia e, se não ficarem quietos, mando prender todo mundo! Escovinha!!! - Sim, delegado!- responde Escovinha, o escrivão. - Pegue o nome e o endereço de todo mundo e o depoimento de um de cada lado. O resto pode ir lá para fora esperar. Amanhã eu chamo quem for necessário para depor. - Certo, delegado, mas houve um assassinato e o taxista que testemunhou está aí fora esperando... - Eu sei, vou conversar com ele na minha sala, enquanto você faz o B.O. desses loucos. Mande chamá-lo. - Ok. Escovinha manda chamar o taxista Jaime e o encaminha para a sala do delegado Ataliba Ferrero. - Sente-se, vamos primeiro conversar, depois eu colho seu depoimento oficial. Hoje esta delegacia está uma zona e o escrivão, no momento, está lavrando uma ocorrência. - Obrigado, delegado Ataliba - responde Jaime, sentando-se ainda todo molhado e sujo de sangue. - Eu sei mais ou menos o que aconteceu. Fui avisado pelo rádio, contudo, não tenho os detalhes. Quero que o senhor

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relembre para mim tudo o que aconteceu, a partir do momento em que apanhou a vítima. - Bom, delegado, eu peguei o seu Benício por volta das 18h45min, em frente ao Banco do Brasil da Avenida Presidente Vargas. Estava começando a chover e ele entrou rápido no táxi, pediu para eu seguir direto e dobrar na Avenida Nazaré... - E então? O que ele foi fazer na Avenida Nazaré? Ele disse alguma coisa? - Não. Entretanto, o trânsito tava ruim e com a chuva piorou... - Ele estava com pressa? Nervoso? - Sim. Às 19h eu perguntei se ele queria ouvir música e ele disse que estava atrasado... - Como o senhor sabe a hora exata? - Porque foi na hora que começou a Voz do Brasil, quando eu ia colocar um CD do Vinícius que eu perguntei pra ele. - Ok, e o que mais ele disse? - Pra eu dobrar na Rui Barbosa que ele ia ficar no próximo quarteirão... - Sim... exatamente no sinal em que foi assassinado. Mas por que ele parou no sinal?

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- Ele disse que ficaria naquela rua transversal, a avenida Brás de Aguiar, mas como era na contramão e estava com pressa, resolveu descer ali mesmo no sinal. - Então, você parou no lado direito e ele atravessou o sinal para o lado esquerdo? - Exatamente! Quando eu cheguei ao sinal ele estava fechado, mas até ele pagar a corrida e descer, o sinal abriu e já ia fechar de novo. Foi quando eu parei no amarelo e deixei ele atravessar na minha frente... - E o motoqueiro? - Pois é, foi nesse momento que uma moto passou pelo meu lado esquerdo e o carona desceu na faixa e “pegou” ele. - Como assim? Ele já desceu atirando? - Não, apesar de ter o revolver em punho, ele agarrou o rapaz, querendo tirar a câmera dele... - Aí o jornalista reagiu, foi baleado e ladrão fugiu! 7


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- É !?...parece que sim... - É, meu amigo, esses bandidos não têm alma, são latrocidas. E o pior é que geralmente são de menor e nós nem podemos prendê-los... - Coitado do rapaz! A família dele já sabe? - Sim, estão, agora, esperando o corpo ser liberado no IML... - Ah, meu Deus... - É, seu Jaime, isso acontece todo dia. E pra piorar a situação, ele era jornalista, daqui a pouco tá toda a imprensa aqui, enchendo o saco... Enquanto o delegado termina a frase, Escovinha abre a porta e diz: - Doutor, os abutres da imprensa estão todos aí fora, junto com aqueles loucos da briga dos moleques. Ninguém entende mais nada! - Não disse pra você. Bom, pelo menos esses loucos vão servir pra alguma coisa...Escovinha, chama todo mundo que estiver de serviço pra cá. Enquanto isso, deixa os loucos distraindo a imprensa, depois você pega o depoimento dele aqui na minha sala. Vai lá e não demora! - Certo, chefe, deixa comigo! - Escovinha sai da sala e o delegado continua: - E essa mancha de sangue na sua roupa? Como ela foi parar aí? - Que é isso, delegado? Eu fui tentar socorrer o rapaz e me sujei no sangue dele. Sou trabalhador e cristão, o que o senhor faria no meu lugar? 8


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- Eu faria o mesmo que você, mas aqui a minha função é investigar. Entretanto, não se preocupe com isso, há outras testemunhas que o viram socorrer o rapaz, ainda vamos ouvilas. - É, tava chovendo muito. Mas muita gente viu o que aconteceu e um rapaz também tentou ajudar... - É, eu sei. Ele já deve estar chegando para depor também. Contudo, ainda faltam alguns detalhes que eu queria saber... - Pode perguntar, delegado. - Primeiro: ele disse alguma coisa antes de morrer? - Sim, disse... Nesse instante Escovinha entra na sala e diz ao delegado: - Chefe, a outra testemunha chegou, mas o pessoal da imprensa está ficando nervoso e os loucos estão na maior baderna para aparecer na televisão... - Onde está a outra testemunha? - pergunta o delegado. - Está na viatura esperando. - Certo. Coloque os loucos pra rua, mande isolar a delegacia e peça paciência à imprensa, que daqui a quinze minutos eu vou dar uma coletiva pra eles lá no pátio. - Sim, Chefe - diz Escovinha. - Quando eu estiver dando a coletiva, coloque a testemunha na minha sala e me espere voltar. Entendido? - Não se preocupe, delegado, vou providenciar tudo. Escovinha sai da sala do delegado e chama a imprensa para o local da coletiva. 9


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Ataliba Ferrero olha para o taxista e diz: “Depois continuamos, agora preciso dar alguma coisa para a imprensa. Não se preocupe, fique tranqüilo e descanse um pouco, quando eu voltar continuamos. Vou mandar trazer água e café para o senhor. - Obrigado, mas eu estou com esta roupa molhada e vou acabar gripando... - Ligue para sua casa, explique tudo para sua esposa e diga que um policial vai pegar uma muda de roupa pra você. Provavelmente essas roupas molhadas vão para a perícia. O delegado sai da sala e vai falar com a imprensa. Enquanto isso, Jaime liga para sua esposa, Dona Odete, e conta o ocorrido naquela fatídica noite. Ela fica preocupada com a situação do marido e quer ir para a delegacia, mas ele a adverte: - Não, Odete! Faça apenas o que eu mandei. Ah, eu ia esquecendo... ligue para o Fernando e diga para ele me ligar agora. Eu preciso falar com ele urgente. - Que Fernando, Jaime? - O Sombra! Quem mais, Odete? - Aquele seu colega detetive, perturbado? - Ele não é perturbado, e é meu amigo, confio nele. Faça isso agora, é urgente! - Tá bem, meu amor, vou ligar pra ele. Mas me prometa que não vai se meter em encrenca... - Tá, prometo! Tchau, meu bem. - Tchau – responde Odete, desligando em seguida.

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