Lado oculto da memória

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lado oculto da memória

Prefácio de José Fortunato

Canas de Senhorim 2013


© Rui Fonte Capa: Rui Pina Edição de autor 1ª edição – dezembro de 1999 2ª edição – julho de 2013 ISBN: 978- 989- 20-4000- 4

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“A nossa memória manter-nos-á acordados quando a luz do dia adormecer os nossos sonhos”. William Burroughs

Seward


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Prefácio Feche os olhos. Procure recordar- se da sua última refeição. Saboreie com prazer todos os bocados... Volte a fechar os olhos. Agora vamos um pouco mais longe. Lembra- se do seu primeiro gesto de amor?... Perfeito? Quase? Inesperado... Ainda com os olhos fechados... O primeiro dia de escola. A professora. Como é que se chamava?... Ou seria Albertina ou Ana? Já pouco importa! É fácil gatafunhar no nosso álbum de recordações. Procurar

na memória

os momentos

mais marcantes,

aqueles que

fazemos questão de não deixar cair no esquecimento. Aqueles que, ao longo dos tempos, fomos indexando, sempre de forma aparentemen te aleatória, mas que, quando necessário, de imediato desfilam no nosso universo de ilusões. Se para uns a sua capacidade de rebuscar vivências passadas se resume ao jantar do dia anterior – fazendo questão de viver com pragmatismo q.b. –, para outros o passado é entendido como parte da história individual sobre a

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qual é necessário tirar as devidas conclusões, para não voltar a cometer novos – leia- se iguais – erros de facto. A ideia de o qu e lá vai lá vai não tem lugar aqui, pois não temos na mão o comando do vídeo para rebobinar e gravar outra cena, montar um novo capítulo com novos dados, atores mais perfeitos, mais bonitos – porque não – , cenários à altura de uma grande produção. As condições ideais para um final feliz. Quer se queira ou não, somos nós os atores principais de um grande filme. O filme da nossa vida. Um filme que dura uma vida a ser rodado; seja porque o ator falha nos momentos cruciais; seja pelo argumento interminável e quase sempre alterado sem aviso prévio. Romance? Tragédia? Comédia? O importante é ter um sem número de vivências para rir, chorar ou suspirar. Afinal, a nossa razão de ser... Agora volte a fechar os olhos. Imagine- se em total escuridão. Escuridão de ideias e de factos. Imagine- se a tentar recordar o que fez ontem e... nada! Nada lhe vem à memória. Tudo é nada! A confusão instala- se progressivamente. Corrói a mente... É neste estado que vamos encontrar o protagonista do livro que nos motiva. Ele é um indivíduo em fase terminal por força da doença. Uma demência que o ataca sem piedade e o obriga a esquecer- se de tudo e quase todos. Dáse conta de perder o rumo da própria história e, com isso, a sua identidade. Tudo se esfuma e parece desaparecer sem deixar rasto. A vida começa a desligar- se e a fugir sorrateiramente por entre as memórias perdidas. Tudo se apaga, exceto a recordação de um amor que não consegue esquecer. A herança de um (des)encontro de paixão que nunca sarou, cuja memória errante deambula à procura do seu próprio espaço no espírito confuso de um velho caduco. Um espírito atormentado por uma relação que só agora procura e pode compreender. Quer compreender. Para assim, também poder esquecer...

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É o retrato da solidão no seu derradeiro estado, a contagem decrescente de uma vida que se esgota, ou a exaltação do que resta dela. É a sua grande história de amor. A sua razão de ser. José Fortunat o

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O lado oculto da memória é um sonho. Acordado (?) Um sonho sem sono. É o meu mundo. É o meu ser. Minhas angústias, os desejos, A dor, o amor... Tudo se reflete nestas palavras, Nas letras que se afiguram E transportam o meu ser Para um espaço nulo. Um mundo sem sentimento. Para que eu possa, enfim, Espalhar o que me vai na alma. É esse o princípio! O resultado espera- se estranho. Sem sentido...vazio de emoção... Mas é meu! Só eu o tenho de compreender... E amar!!... Vocês dão- lhe o sentido e a emoção que desejarem!!...

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Para ti


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Prólog o O choro de uma criança atravessou o meu sonho de um lado ao outro. Estava deitado na areia da praia de uma ilha deserta e não percebia a razão e a origem daqueles gritos. Só depois abri os olhos e me apercebi que estava estendido na maca de um hospital. À minha frente estava uma menina com a sua pele branca suja de sangue. Queixava- se do braço e da cabeça. Ao seu lado estava um rapaz de cabelos compridos, com um corte no pulso direito. Os seus olhos vermelhos e brilhantes pareciam pedir por socorro. Ali ninguém socorria ninguém. Todos passavam pelo corredor, de bata branca e com crachá ao peito, mas ninguém parava. De vez em quando, uma voz ecoava nas paredes. Alguém se levantava e entrava por uma porta que tinha escrito «Proibida a entrada a estranhos ao serviço». Tentei saber porque estava ali. Num hospital, encostado à parede de um corredor, deitado numa maca, com um lençol por cima. A única coisa de que me informaram foi que estava no serviço de urgências. Espreitei

por baixo do lençol e vi que estava em cuecas. Fiquei

assustado. Mais ainda quando vieram ter comigo duas enfermeiras a gritar uma com a outra e me levaram com elas. Por cada corredor que passava, ouvia, pelo menos, duas pessoas a chorar ou a gritar. As enfermeiras não paravam

de discutir. Tudo quanto

percebi foi que uma delas se tinha

esquecido de mim no corredor, para ir ao telefone. Fecharam- me numa compartimen to sem janelas. Mandaram- me vestir e esperar. Assim fiz.

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Há muito que perdera a noção do tempo. Não sabia nem por que esperava, nem por que razão ali estava, mas tinha a certeza que estava ansioso por ir embora. Passados alguns minutos, apareceu um senhor de gravata. Estava a fumar, só podia ser médico. Sentou- se ao pé de mim, pôs o braço sobre o meu ombro e disse que eu tinha uma doença qualquer. – Doença de quê? – perguntei. – Doença

de

Alzheimer.

É uma

demência,

ou

seja,

um

declínio

progressivo das capacidades intelectuais de origem orgânica, que se faz sentir de maneira notória nas catividades sociais ou profissionais do doente. É devida a um processo degenerativo com perda importante de células de várias regiões do cérebro. Os principais sintomas são uma lenta desintegração da personalidade e das funções intelectuais, devidos a uma alteração das capacidades de compreensão

e de discernimento

e a uma

indiferença

afectiva. A doença será mais penosa para a sua família do que para si. Os seus interesses tornar- se-ão limitados, a atitude rígida e o pensamento mais difícil; aparece um certo empobrecimento do pensamento. – Empobrecimento do pensamento? – perguntei eu – Quer dizer que vou deixar de pensar? – De modo algum. Vai ter mais dificuldade. – Não estou a perceber. – Vai esquecer- se frequentemente daquilo em que estava a pensar. – Esquecer- me? – A sua memória vai ficando cada vez mais frágil. Ao ponto de se esquecer onde mora; qual o seu nome. Poder- se-á esquecer e até não reconhecer as pessoas que lhe estão mais próximas. – A vida proporciona- nos momentos inesquecíveis Sr. Doutor. Vai ser difícil sentir um cheiro, tocar um objecto ou ver uma paisagem e não lhe associar uma recordação... – Mas é bem provável que isso lhe venha a acontecer.

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– Por quantas vezes, Sr. Doutor – tentei explicar – por quantas vezes vamos na rua, a caminhar, e sentimos um cheiro, que não o nosso (talvez da mulher que nos passou despercebida ao lado) e pensamos na rapariga que conhecemos no comboio, à vinda da inspeção militar. Que nem sequer deu o nome a conhecer, mas que livremente se empacotou no nosso pensamento e faz hoje parte

das nossas recordações. Onde só o cheiro basta, para

desejarmos voltar para a estação e recomeçar tudo de novo. – A partir de alguns dias, essas recordações vão- lhe provocar confusão. Não saberá se aconteceu ou se simplesmente sonhou. Sem saber mais o que dizer, rendi- me aos factos e à minha realidade. – Só dei conta da minha memória, Sr. Doutor, quando quis esquecer uma pessoa e não consegui. Esqueci- me do meu apetite, do sono, do emprego... da vida! Agora ela quer esquecer- se de mim... Depois

de

pegar

na

receita

de

medicamentos

que

me

foram

aconselhados, regressei a casa. No caminho, tentei lembrar- me de tudo o que tinha sido a minha vida. Aproveitei para me despedir daquilo que achava ser o mais importante. Enquanto caminhava, dizia adeus aos amigos; à família; aos bancos de jardim; aos pombos, que me cagavam o cabelo sempre que lá passava; às crianças que brincavam no parque; ao bar que sempre amei e que era a minha vida. Despedi- me de tudo que atravessava a minha memória e que provavelmente lá não voltariam. Apesar da tristeza, senti alívio. Tinha finalmente a possibilidade de me esquecer de ti, meu amor! Tu, que desde que partiste, deixaste a tua vida cravada na minha. Por isso despedi- me de tudo menos de ti, meu amor! Foste embora sem dizer nada e achei que merecias o mesmo. Mas, quando pensei que a tua imagem esvoaçava lá longe, mal entrei em casa, deparei contigo. Estavas logo à entrada, junto ao espelho. Só depois notei que era a tua face reflectida na

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minha. Senti naquele momento a tua presen莽a. Lembrei- me de ti... e nunca mais deixei de o fazer.

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Aminh a vid a aca b o u qu a n d o m e es q u e c i de tud o... ... m e n o s de ti!

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Sento- me e entrego- me aqui. A chuva acordou antes de mim e fez o favor de me despertar. As lágrimas que deixei cair de noite perderam- se na minha face gelada. O meu coração bate agora lento e solitário, como eu. Há muito tempo que adormeço a chorar, como se do inevitável se tratasse. Como se fosse a única forma de sarar a ferida que rasga a minha alma, cada vez que tu me escapas do lado oculto da memória e te sentas à frente dos meus olhos, para que só te possa ver a ti. O frio instala- se junto a mim. Eu, sozinho, percorro as nuvens com o olhar. Leio nas estrelas a imensidão de toda a poesia que o céu tem para me dar. Tendo o silêncio como fiel companheiro, prometo à lua um dia a visitar. Sei que não é possível. De qualquer forma, prometo. Tenho- a a meu lado, todas as noites, a sonhar. Sou velho. Velho e caduco. Fiquei sem memória, mas os outros também se esqueceram de mim. Hoje, como sempre, acordei às seis da manhã. É sempre assim. Levantome. Ligo a televisão da sala e deixo- a ligada durante todo o dia. Baixo- lhe o som, mas fica a imagem. Só para sentir, talvez, companhia e fingir a presença de mais pessoas nesta casa negra e vazia. Às vezes, fico cinco ou dez minutos a olhar para o écran. Apesar de estar de olhos abertos, não vejo nada. Começo a pensar em coisas que depois raramente me lembro. Esqueço a televisão e vou buscar os pães que todos os dias aparecem do lado de lá da porta que dá para a rua. Uma noite tentei ficar acordado, para

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ver quem tinha essa bondade. Mas a meio da madrugada, esqueci- me porque razão ainda estava acordado e fui dormir. São dois pães. Como um antes do sol nascer e guardo o outro para a noite. Acontece frequentemente

esquecer- me de o comer e quando me

lembro é tarde demais, porque o pão já está duro. Atiro- o para a rua e há sempre um cão vadio que agradece. Depois, sento- me na minha cadeira de baloiço e penso em ti, meu amor! E escrevo- te! Aqui sentado e só. Apesar de não me lembrar do teu nome, escrevo- te! Neste humilde quarto. Como se apenas uns simples milhares de quilómetros nos impedissem de estarmos um com o outro. É tudo muito mais complicado. Estamos separados pela distância dos nossos sonhos. Ao meio do dia, uma senhora bate à porta e diz que traz o meu almoço e avisa- me para deixar metade para o jantar e eu pergunto- lhe pela ceia e ela ri-se. É uma senhora simpática, mas faz-me lembrar- te e eu não converso muito com ela. Não converso muito com ninguém. Uma

vez, perguntei- lhe quem

era. Ela respondeu

que

era

duma

instituição de solidariedade. Como já sabia que me ia esquecer, apontei o nome da tal instituição num papel. A tática foi boa, pena foi esquecer- me onde pus a folha. Os dias passam... mas deixam a monotonia de que são feitos. E eu, sempre sentado nesta cadeira, embalo as minhas mágoas, ao som do silêncio e da melodia das horas vagas. O meu corpo, outrora vivaço, engraçado, gozão, transformou- se em duro, imóvel e cansado. Os meus olhos já não veem os dias pintados de azul e sol. O mundo que agora conheço, e amo, é fruto da minha imaginação. A solidão e o pensamento dão as mãos e viajamos. Conheço sítios, sensações e sentimentos nunca antes vistos e sentidos por mim. Olho o mundo com a alma. Enquanto os meus olhos veem no espelho um velho caduco e fatigado, dos dias perdidos na sua cadeira de baloiço. Dizem que perdi a memória. Eu digo que perdi a oportunidade. A oportunidade de me esquecer de ti, com tudo o resto. O resto já não me lembro o que é, mas a ti recordo- te muito bem.

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Não me esqueci dos teus olhos e de tudo o que eles me souberam mostrar. As coisas tinham mais beleza espelhadas no teu azul. Era por isso que passava horas a olhar para ti. – Para de olhar para mim! – Eu não estou a olhar para ti. – Não me tinhas contado que eras estrábico. – Não sou. – Pareces. – Estou a olhar para mim. – Olha esta! – Nos teus olhos até eu sou bonito. – Não sejas assim! – Sou bonito de qualquer das maneiras, não? – Não és de maneira nenhuma. – Não é isso que as outras dizem. – Vai ter com elas! Não havia outras. Nunca houve. Quantas vezes me fechava no quarto e no dia seguinte te dizia que fui ver outras raparigas. Antigas colegas de escola, na maioria. Tu tinhas um namorado, eu sentia- me mal em te ter só a ti e mais ninguém. Uma vez escrevi- me uma carta. Falava de uma rapariga que descrevia a forma como me conheceu e se apaixonou por mim. Até comprei um envelope

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rosa. Meti- a no bolso onde estava o maço de tabaco. Deixei o casaco na tua cadeira. Fingi estar ocupado e pedi para me acenderes um cigarro. Tiraste um dos teus e ofereceste- me. Foi assim que descobri que também fumavas. Durante toda a noite, lamentei- me pelo facto de te não conhecer e tu saberes tudo sobre mim. Comprei- te um presente, no dia seguinte. Guardei- o ao pé da carta. Aquilo que eu disse, para arranjar uma razão para te oferecer uma prenda. Falei- te da minha infância e de tudo aquilo que eu não tive até te encontrar. Era verdade, mas também era escusado ficares a saber. Quando foste buscar o embrulho, viste a carta. Não a leste. Guardaste- a, julgando ser para ti. Deste- me um beijo e agradeceste por tudo. Adormeceste encostada a mim, a murmurar uma história, que me adormeceu também. Acordei com os teus gritos. Que por azar, eram para mim. – Podias, ao menos, disfarçar a letra! – Que carta? – perguntei estremunhado. – E depois, ainda se descai. Eu não sirvo

para

enganar

ninguém.

Falta- me

essa virtude.

Sou

demasiado sincero. – Podes inventar seja o que for. Troçar dos outros. Engendrar todo o tipo de mistificações. Dizer todo o tipo de aldrabices. Ter a sensação de que estás a mentir, mas com essas mentiras, acabas por dizer nada mais que a verdade – disseste, sem respeitar a pontuação. – Mas existem coisas sobre as quais não posso mentir – defendi eu. – Há coisas que conheço a fundo, cujo sentido compreendo e amo. Com essas coisas eu não brinco. Mentir sobre elas seria rebaixar- me. Isso eu não posso, de maneira nenhuma, fazer. – Como por exemplo?...

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Não tive coragem para responder na altura, mas respondo agora. Como por exemplo, o meu amor por ti. Mas já ninguém acredita em mim. Nem eu, para falar a verdade. Antes, só tu acreditavas. Não precisava dizer- te. Nem tinha coragem para isso. Mas tu sabias, nesse teu jeito desconfiado, que só da minha parte merecia confiança. Nunca gostei que acreditasses em mim. Quando nem eu sabia o que dizer, tu já tomavas como certas as minhas palavras. Eu era um medricas, mas tu fazias de conta que não sabias. Desafiavasme a tomar atitudes que nem nas minhas mais ridículas fantasias me passavam pela cabeça. Lembras- te meu amor (?) quando disseste que só ias comigo para a cama se levasses contigo a tua tia- avó. – Não podes levar uma velha contigo! – Não posso porquê? – Não lembra a ninguém fazer uma coisa dessas. – Lembrei- me eu. Li num livro e gostei da ideia. – Isso não é uma ideia, é uma estupidez. – É uma ideia estúpida, mas é uma ideia. – E ela vai fazer o quê? Ficar a olhar? – Não te preocupes que ela safa- se bem. – Preocupado estou eu contigo. – Além disso, ela pode ensinar- nos muita coisa... – Eu aprendo bem sozinho. – Se ela não for, eu não vou. – E se ela for, quem não vai sou eu. – Então ninguém vai. Ninguém foi. Tu só apareceste três ou quatro dias mais tarde. Só depois de sentires que eu já me tinha arrependido de ter tido aquele tipo de conversa contigo.

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Não gostavas de falar sobre sexo e dizias que era cedo e para eu ir devagar. Eu falava- te em paixão e em desejo e tu não me ouvias. Apareceste a sorrir, como se nada se tivesse passado. E não passou. Era isso que me assustava. Isso e as saudades, mas não falemos nelas agora. – Eras capaz de viver sem mim? – perguntei. – Sem ti, como? – Sem mim. Se eu não existisse. – Que remédio tinha eu. – Eu amo- te! – Que remédio tens tu. – Estás doente? – Porquê? – Não te calas com essa do remédio. – E tu não te calas com essas perguntas. – «Eu amo- te» não é uma pergunta. – Mas querias uma resposta? – Podias dizer qualquer coisa. – Qualquer coisa. – Sem ser isso. – Diz tu! – Eu amo- te! – Qualquer coisa. Eram estas as nossas conversas. Tu saías sempre a vencer, mas eu nunca me dava por vencido. Lembro- me da primeira e única vez que disseste que me amavas... Já passava das duas da manhã e eu estava a preparar- me para passar um pano humedecido pelo chão. Não estava sujo, mas sentia- me tão bem ali estar que, não tardava nada, começava a limpar todas as garrafas que se espalhavam pelas prateleiras. Uma a uma. Tu continuavas sentada no balcão, o teu sítio preferido, à espera de qualquer coisa. Essa coisa deveria ser eu e isso punha- me muito contente. O teu namorado tinha- se chateado contigo

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porque tu só querias vir ao meu bar. Não me importava que estivesses chateada com ele. O que me incomodava era que, sempre que isso acontecia, eu era o culpado. Aliás, tu tinhas a capacidade de me culpar por tudo. Para que dessa vez não acontecesse o mesmo, fiquei chateado também. Os carros deixaram de passar nas ruas e eu queria ir-me embora. Apercebeste- te disso, levantaste- te. Estava

chateado

e não seria eu a

despedir- me. Disseste adeus e ambos virámos costas. Quando deixei de ouvir os teus passos olhei para trás. Tinhas parado a olhar para mim. Só Deus sabe o esforço que fiz para não sorrir, enquanto caminhavas na minha direção. Poderias ser banal e perguntar- me a razão pela qual estava chateado. Não tinha

resposta, mas, na pior das circunstâncias, um beijo resolveria

o

problema. Mas não! Encostaste o indicador ao meu peito e, mais uma vez, conseguiste surpreender- me. – Não consigo perceber porque raio estás chateado, mas o que é certo é que não me falaste a noite inteira. Sabes que venho aqui só para te ver. Se calhar gosto da maneira como manejas os copos, ou da forma como tiras os finos. Não sei nem quero saber. Só duma coisa tenho a certeza. Eu adoro- te! Memória maldita que me traíste mais uma vez. Eu a julgar que ias dizer que me amavas. Eu também adoro a minha gravata nova, e depois? Viraste costas e eu perdi a vontade de sorrir. A lua deve ter sorrido por mim. Por mim e de mim. Fiquei durante horas ali parado. A imaginar- te à minha frente. A dizer tudo outra vez. Sem o pormenor do dedo. Não gosto que as pessoas apontem para mim. Faz-me sentir culpado e tu, já o disse, eras perita nisso.

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Quero eu viver a minha vida só e tu não me deixas. Sai da minha vida! É assim tão difícil? Sai da minha vida! Espera aí! Não vás já! Não te chamas Ágata, pois não? Poderás chamarte Sónia ou Sofia ou Marta ou Carla ou Guida. Margarida fica- te bem! Vamos fazer de conta que o teu nome é Margarida. Que todos te chamavam por Guida e eu era o único a tratar- te por Margarida. Vamos fingir que tínhamos uma relação especial, diferente das comuns entre amantes. Posso até inventar uma história. Queres ouvir? Enchi- me de estupidez, que julguei ser coragem, peguei num copo de vodka com sumo de limão e ofereci- te. Quando me disseste que não bebias álcool, voltei atrás e fui buscar uma garrafa de água. – É por conta da casa – expliquei. – Obrigado. – Fico agradecido se disseres o teu nome. – Pergunta ao meu namorado! Ele deve saber. Desfiz- me com vergonha. Eu devia saber. Uma mulher bonita como tu, nunca pode estar sozinha. Se houvesse ali um buraco, escondia- me e só saía de lá quando fosse para fechar o bar. Virei costas e caminhei em direção ao teu namorado. Aposto que, quando parei a falar com ele, pensaste que lhe perguntara o teu nome. Reparei no brilho dos teus olhos no momento em que

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ambos nos virámos para ti e eu murmurei – a tua namorada mandou servir- te este vodka. Está pago. Levantaste- te e caminhaste na nossa direção. Fiquei imobilizado, com ar de parvo, a assistir à vossa conversa. Obrigado, Guida! – disse ele – sabes que eu adoro vodka. Tu apercebeste- te logo da situação e sorriste amiúde para mim. O teu namorado continuou a falar e tu abanavas que sim com a cabeça. Mas a conversa

era

entre

nós.

Com

os

nossos

olhos.

Não

havia

barulho.

Desapareceu. De repente, tudo acabou. E, enquanto continuavas a abanar a cabeça, os meus olhos contavam- te histórias e sonhos mágicos. Fantasias onde tu eras protagonista. Contos sem encanto, até ao momento em que tu entravas em cena. O teu namorado não se calava. Falava sobre ti. Namorada preferida? – Não sabia que tinhas mais – interrompi eu. Deixaste de olhar para mim. Fiz mal. Não tinha nada com a vossa conversa. Só com a nossa. O teu namorado começou a odiar- me desde essa noite Não me preocupei. Menos um cliente. Virias tu sozinha? Não quis saber. Estava demasiado alegre com a minha própria felicidade. Já sabia o teu nome. Margarida! Um nome que durante anos não me disse nada e que agora veio adormecer no meu coração, para preencher os espaços nulos dos meus sonhos. Queres que invente outra história? Desta vez com menos personagens. Não. Vou continuar esta. Tinha uma vantagem. Tu não sabias o meu. Por todos era conhecido como “Barman ” e só os amigos mais chegados, se é que existem, sabiam o meu verdadeiro nome. De resto, foram logo avisados.

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Mas tu não querias saber. Tu nunca querias saber nada. Ao contrário de mim, que queria saber tudo. Quanto mais melhor. O teu número de telefone? quem me disse? Uma amiga. Bonita, de facto. Mais que tu. Mas menos interessante. Não tinha namorado. Não aparecias no bar. Tu nunca entravas num bar sozinha. Quatro dias sem te ver. Noventa e seis horas sem olhar para ti. Sem te falar, sem nunca dizer uma palavra. O teu número de telefone? Na caixa registadora, por baixo das notas de dez mil. Um papel rasgado. Mas, sem dúvida, mais valioso. Durante quatro horas, marquei- o até sabê- lo de cor e salteado. Nunca atendeste. Não estarias em casa? Não gostas de receber telefonemas? Na pior das hipóteses, sabias que era eu? O teu namorado entrou no bar e eu esperava por ti. Não entraste. Fui ter com ele. Pedi-lhe desculpa. Por aquilo da semana passada, lembras- te? Estou desculpado. O cliente tem sempre razão. Para a próxima traz a Margarida. Não o disse, desejei. Não trouxe. Chateados? Não. É noite e o bar está vazio. As pessoas passam de um lado para o outro, sempre com uma bebida na mão. Tu não estás, o teu namorado sim. Isto esvazia- se na tua ausência. Perde o sentido. A música, as melodias, não tocam da mesma maneira. É madrugada. O bar está cheio. As pessoas foram embora. O bar está cheio de saudades. Tuas? Não sei. Estarás em casa? Sei o número de cor. Não perco nada em tentar. Trim... Trim... Trim... Está? Margarida? Oh! Desculpe! Podia chamar- me a Margarida, por favor! Estou! Margarida? Sou eu.

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Tu sabes quem. Nunca mais te vi. Estás chateada? Não. O bar sem ti, não parece igual. O quê!!?? Não. Se estou interessado em ti? É isso que queres ouvir? Não és nada direta. Não, não o digo. É mentira. Se eu te admiro? Talvez, mas não o digo também. Porquê?! Pela mesma razão que tu não o dizes. Não sei... não sabes... Mais uma lágrima que se solta! Mais um sonho que se desmancha. Não!! Na pior das circunstâncias somente uma loucura desejada. Se eu te desejo? Porque não. És apetecível. Para qualquer um. Mas eu não sou qualquer um. Sou talvez mais... Ou, com certeza, menos! De qualquer forma, calo- me. Não! Não é já. As coisas nunca terminam quando queremos. Não podemos escolher a hora, nem o local. Mas podemos prolongá- lo. A quem? Ao tempo não. Ao interesse, claro.

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Sem esse, tudo isto não era possível. E sem o possível, não existiria o impossível. É isso que eu busco. O impossível! Tchau! Até já? Disseste até já? Vens cá? O telefone é uma puta duma loucura, que eu adoro! Os meus olhos espelham o que me vai na alma. A voz, por mais meiga e suave que seja, pode sempre esconder um grito ou uma vingança. Quando magoava alguém que amava, por mais orgulho que tivesse, os meus olhos pediam perdão. Ao telefone, podia ser quem quisesse. Um assassino ou um palhaço. Tudo o que dizia podia não ser mentira ou ser somente a verdade. Vieste. Sozinha. Bonita, como só eu sei que és. Entraste na minha vida, meu amor! E eu assustei- me. Destruíste o meu sonho. Aquele que eu sonhava antes de adormecer e transformar a noite em pesadelo. Destruíste o meu sonho e eu assustei- me! Mas destruíste- o para o tornar realidade. E eu amei- te por isso. Vieste. Sozinha. A sorrir como só tu o sabes fazer. Sorris com os olhos. Amas com os lábios. Vieste. Sozinha. Perdi- me na minha calma. O desejo confundiu- me os sentidos. Ouvia o teu corpo rasgar o ar e via o teu odor a passear e a dançar à volta da luz que caía na mesa de bilhar. Começaste a brincar com as bolas e o taco. Não disseste nada. Disseste, mas não ouvi. Cheirei nas tuas palavras a minha emoção. O amor não é cego. Ele cega- nos!

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Deixei de ver as pessoas que passavam na rua e de ouvir o eco das passadas dos vadios. Deixei de olhar para ti. Tu fechaste os olhos e contornavas o meu corpo com a tua boca. Rasgámos abraços e beijos como loucos. Tudo não passou de ilusões sem sentido. Sentimentos sem noção do espaço e do tempo. Entre a respiração ofegante soltaste umas palavras. Vi-as desenhadas no ar, que fervia à nossa volta. – Não devíamos estar a fazer isto! Não, meu amor. Não devíamos, mas fizemos. Eu estava a gostar e tu muito mais. Onde parar? Não havia tempo para pensar nisso. A traição é um capítulo do amor que não tem fim. – Podes julgar que estou a mentir, mas sem ti não tinha vontade de existir – disse. Não disse, mas pensei, quando os teus dedos se escondiam nos meus cabelos e a tua língua humedecia os meus lábios. Lá fora a noite reencontrava- se com o dia. O sol preparava- se para mostrar ao mundo que também existia. A lua desaparecera entre as nuvens. E as estrelas éramos nós. Brilhávamos de intensidade, desejo, paixão. No último abraço a ternura de duas criaturas estranhas e a cumplicidade de uma aventura sem heróis nem vencidos. Os meus lábios tocam nos teus e adormeço!

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Onde estás? Sai desse teu sonho e vem comigo! Tenho saudades tuas. Tenho saudades desse teu sorriso que fazes quando não queres dizer que me amas. Onde estás? Quando preciso ouvir o telefone tocar. Quando o silêncio rompe o que nas nuvens ouço gritar e o sol canta uma canção de amor. Preciso de te ouvir. Não me deixo levar. Só contigo. Onde estás? Quero ouvir aquele «amo- te muito». Deixa- me ouvir os teus olhos. Na melancolia da noite. Quando só há cães a passear nas ruas. Estou sozinho. Onde estás? É a tua gargalhada que eu ouço ao longe. Para lá dos meus sonhos. Para além do que o meu coração alcança. O meu coração sofre. Perto de mim e do meu mundo. Que sou eu e mais ninguém. Vem! Nem que seja para te ver passar, sem deixar rasto. A desaparecer por entre a multidão desse teu sonho. Onde estás? Quando a minha cabeça estala de dor e fecho olhos. Dá-me a tua mão, nem que seja por um segundo. Quero abrir os olhos e ver- te só a ti. A olhar para mim. Onde estás? Não sentes que estou a morrer.

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Apaga- me este cigarro que eu não quero fumar. Ocupa os meus lábios, nem que seja a conversar. Olha para aqui! Vê esta borboleta que poisou na minha mão! Quero mostrar- te as suas asas. Tem a cor dos nossos sonhos. Teremos nós os nossos sonhos? Onde estás? Quando a madrugada cai sobre mim e eu sufoco. Na aflição da noite. Foi este céu negro que te levou? Que te escondeu? Sai detrás dessa estrela! Vem brilhar só para mim! Morde os lábios! Mas beija- me antes! Se quiseres. Se não quiseres, deixa- me ser eu a beijar- te. Fecha os olhos e agarra- me contra ti! Eu não fujo. Não fujas tu também! Onde estás? Leva- me contigo! No pensamento, no coração, nos cotovelos... Tanto faz. Onde estás? Deixa a minha solidão adormecer nos teus braços. Não me deixes cair! De rastos já eu estou.

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Uma vez fomos jantar fora. Só uma vez. Foi uma experiência simples, que eu quis tornar única e não voltei a repetir. Eu pedi feijoada. Tu comeste vitela assada, com batata frita. Tu só comias batata frita, nem que fosse de pacote. Que vício! – Para beber? Uma garrafinha de vinho verde, por favor! Tivemos de pedir outra. E outra ainda. Nunca, até então, te tinha visto beber tanto. Tu, que um dia disseste que não gostavas de bebidas alcoólicas. Comeste pouco. Disseste que estavas nervosa. Nem coragem tive de perguntar porquê. Eu comi pelos dois. Tu bebeste por três ou quatro. Sem justificação, para mim. Para ti, tudo tinha a sua razão de ser. – Só gosto de vinho verde. Verde ou branco. E só à refeição. – Nunca te disseram que o vinho não se bebe, mastiga- se – disse eu. – Pois eu não mastigo. Emborracho- me. – Eu não te levo a casa. – Também não te pedi nada... – Só estou a avisar. – Foste tu que trouxeste o carro – lembrei eu. – E?!!... – Eu não te deixo guiar assim. – Guias tu. – Eu não tenho carta de condução. – Devias tirá- la. – Agora é tarde demais. – Para quê?

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– Para te levar o carro. – Nem eu deixava. – Vamos a pé. – Não estou em condições para caminhar. – Vamos de táxi. – Não tenho dinheiro – disse ela. – Eu pago. – Está bem! Mas o jantar fica por minha conta. – Acabaste de dizer que não tinhas dinheiro. – Tu emprestas- me. – Vamos embora! – Espera! Ainda não acabei de comer. – Nem sequer começaste. – Vou pedir um café – disse eu. – Depois não dormes. – Quero lá saber. Fomos de táxi até tua casa. Achaste que não conseguias subir as escadas e pediste- me, repito, pediste- me para ir contigo. Deitei- te sobre a cama e cobri- te com um cobertor, que fui descobrir atrás da porta da casa de banho. Pensei em te perguntar porque razão o tinhas posto ali, mas achei que não valia a pena. Eu não adormeci. Maldito café! Durante toda a noite fiquei ao teu lado. Com o cotovelo apoiado no colchão e a cara a descansar na palma da mão. Via-te dormir. Tentei entrar no teu sono, mas não consegui. Tinhas os olhos bem fechados e o coração protegido. Quando não estava a fumar, passava os meus dedos pela tua pele. Sentia a respiração dela, o seu ressonar. Tu não ressonavas. O teu nariz era demasiado bonito para provocar aquele barulho estridente. Enquanto me rodeava de hesitações e esperas, desejava transformar- me em fumo e ar, apenas para poder me aproximar e perder- me dentro de ti. De repente senti- me um intruso. Daqueles que penetram em território interdito e que a todo o momento poderia ser atacado. Levantei- me e fui

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fumar um cigarro para a varanda. Ninguém me rouba a felicidade de fumar um cigarro, enquanto o frio racha o meu estômago e o fumo embeleza o ar. Olhava para as estrelas e não pensava em nada. Hoje, olho para as mesmas e penso em ti. Fui para a sala. Liguei o rádio e encontrei, dentro de um armário, umas garrafas de whisky. Todas por encetar. Comecei a acreditar mais vezes em ti. Como não quis abrir nenhuma garrafa, bebi a cerveja que estava em cima do frigorífico. Estava quente. Caiu mal. Passado meia hora, estava na casa de banho, a vomitar. Logo nessa altura, tinhas de aparecer. – Eu bebo e os outros é que vomitam. – Epá! Tens a cerveja estragada. – Estragado estás tu e andas aí. – Estou a falar a sério – disse eu, com a cabeça enfiada na sanita. – Não precisas arranjar desculpa. – Qual desculpa? É verdade. Deitaste- me na cama, cobriste- me com o cobertor e foste para a varanda fumar um cigarro. Acordei com o sol a violar- me os olhos. Mania de deixar a janela aberta e a cortina encolhida a um canto. Tu não estavas em casa. Pintaste o espelho da casa de banho, na tentativa de deixar um recado. Das duas uma – ou deixas de comprar batom barato ou melhoras a letra. Fui para casa... Enquanto caminhava, desenhava os teus lábios em todas as bocas que via. Transformava em teus olhos, todos os olhares que me perseguiam. Eras tu que caminhavas ao meu lado. Era a tua voz que eu ouvia, a chamar por mim, quando alguém chamava um táxi, ou fazia parar o autocarro. Em tudo aquilo que tocava, sentia as tuas mãos, tão fofas e sempre frias. Dá-me a tua mão!... Dá-me a tua mão!

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Mas não a largues. Sabes há quanto tempo não ando de mão dada contigo? Na verdade, desde ontem. Mas vamos fazer de contas que já lá vai muito tempo. Tu dás a mão como ninguém. Adormeci a pensar em ti. Acordava de cinco em cinco minutos. Tu não me deixavas adormecer. Estavas deitada ao meu lado. Sem me tocar. Sem deixar que eu te tocasse. Bastava estar ali, juntos. Sem dizer uma palavra. Nem sequer um olhar. Eu sentia o teu perfume no ar que respirava e isso chegava para me fazer sorrir. Sempre a pensar em ti.

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A brisa levanta- se no improviso da noite e as estrelas tremem de frio. Da telefonia nasce uma melodia. Um piano? Qualquer coisa que destrói o vazio da solidão. Levanto- me e apago a telefonia. Quero viver o resto dos meus dias na paz do silêncio. Mas a música continua. És tu que a fazes. Vejo- te sentada ao meu lado. Os teus dedos passam suavemente pelas teclas brancas de um piano que imagino na cor das nuvens. Tu, que nem gostavas de música, que me obrigaste a deixar o meu violino morrer no pó, estás agora a tocar só para mim. Deito- me e começo a escrever. Escrevo para ti, ao som da tua música. A minha solidão é agora um filme com a tua banda sonora. Apaga- se a música e acaba a história. Adormeço?... Caminhava lentamente pela rua escura e silenciosa. O silêncio era tão grande que só se ouvia a minha respiração ofegante. Parei. Havia a sensação de perseguição. Arranjei coragem para olhar para trás. Não se via nada, mas algo

me

dizia

quer

devia

ficar

parado.

Sentei- me

numa

pedra

fria

e

desconfortável. Estava frio. E a noite continuava escura. Esperei. Não sabia bem porque esperava, mas continuei sentado, sem me mexer. Ouvi qualquer coisa. Um piano que não existia. Uma melodia que vinha de longe, onde a lua se cruza com o sol. De repente alguém me tocou no ombro direito. A mão estava quente, apesar do frio que se instalava, cada vez mais forte. Olhei para a mão e os meus

olhos voltaram- se para

cima.

A imagem

que

via

era realmente

surpreendente. Nunca vira um olhar tão belo e azul como aquele. Nesse mesmo

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instante,

ousei

dizer- te

uma

palavra.

Não obtive

resposta.

Tu


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continuavas a olhar- me com aquele olhar diferente e a tua mão fez-me um carinho na face gelada. Tremi. Nunca tivera uma sensação assim. Parecia que toda a vida tinha estado com a tua mão a tocar- me na face. Com receio, mas cheio de coragem, tentei fazer- te o mesmo. Inesperadamente, retiraste a tua mão, desviaste os olhos e começaste a correr, muito depressa. Desapareceste entre a noite, que continuava escura e fria. Levaste contigo a melodia, o som daquelas teclas invisíveis.

Um cão ladrou e eu despertei. Bati com a mão na janela e o animal calou- se. Num silêncio igual ao que não existiu. Ainda era noite. Saí à rua. Em busca do frio, da melodia, da perseguição, da pedra fria e desconfortável, do olhar surpreendente, da tua mão quente que me tocara... Encontrei o silêncio, o frio, a pedra fria e desconfortável. No entanto, não havia melodia, perseguição, olhar, nem mão para me tocar no ombro e passar pela face. Voltei para casa e deitei- me novamente. Antes de apagar a luz, acendi um cigarro. Comecei a pensar que se eu não te tivesse tentado tocar, talvez não fugisses velozmente. Se eu não tivesse reagido, tu estivesses à minha espera, na pedra fria e desconfortável, contemplando a noite e o frio.

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Ficarei sentado e só. A ouvir os ecos do silêncio. Não irei a caminhar na sombra daquilo que me entristece. Não irei de encontro a alguém, que um dia julguei seres tu. Não sou eu que te procuro. És tu que chegas com as nuvens e com a chuva. É de ti que as árvores falam, na melodia do vento, no murmúrio das folhas secas de Outono. Não te consigo esquecer! Nem quando vejo o pôr- do-sol a pintar o céu de laranja e amarelo. Nem quando a madrugada se recolhe e os lampiões adormecem. Nem quando o nevoeiro cai sobre mim e me sufoca de tranquilidade. É esta névoa que me devolve o arrepio. Aquele que me percorre as veias, cheias de sangue poluído com medo. Neste medo me desfaço. Sem ti não sou nada! Sou talvez uma estrela cadente, sem desejos para oferecer... Ficarei sentado e só. A ouvir as pedras da calçada respirar. A recuperar o sonho que só a mim pertenceu, até a ti me entregar. A recuperar da dor que construí com a ilusão de uma tocha a iluminar o mar, quando as estrelas parecem picar a espuma que se desfaz na areia. Não é de ti que eu falo.

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É a ti que me entrego. Nestas palavras, ressequidas e gastas. Sem sabor. Nestes rascunhos, onde moram tortos os rabiscos com que desenhamos a paisagem do nosso Amor. Não te consigo esquecer! Nem quando o verbo amar se esconde atrás dos lábios. Nem quando a tinta da caneta falha. Nem quando o fim aparece no início da nossa estória. A estória em que o meu coração morreu. Afogado nas lágrimas que eu não consegui evitar. Morreu e deixou- me vivo, no vazio. Neste vazio me dissolvo. Sem ti não sou nada! Sou talvez um arco- íris a preto e branco... Ficarei sentado e só.

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Acendo mais um cigarro em silêncio. Silêncio falso. Ouço a chuva cair e vejo- a perder- se nas ruas estreitas que me cercam. Sem saberem por onde ir e qual o seu fim. Eu sei qual é o meu fim. O meu fim é este. Só, a falar para uma folha branca que me diz o que sinto. E o que sinto não é nada. Não é saudade, medo ou pena. Se fosse pena, pedia desculpa e não pedi. Se fosse medo, comprava um cão e não comprei. Saudade é relembrar e talvez querer voltar. Eu não quero voltar. Quero que tu voltes. E se fosse saudade já tinha morrido. Porque com a saudade só pode acontecer duas coisas. Ou a matamos, ou somos mortos por ela. Então porquê? Pergunto. Porque não deixo de pensar em ti? De nos imaginar sentados num banco de jardim, abraçados à beira mar... – Olha um pirilampo! – disseste. Não te ouvi. Estava a pensar em nós. Vagueava pelas estrelas que me ensinaste a olhar. De mão dada contigo. Tu fazias parte de mim. Eu fazia parte de ti. Às vezes chamava- te o meu nome e tu chamavas- me o teu. Não havia diferença. Era como... – Olha um pirilampo! – Aonde? – perguntei. – Ali. Não vês?

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...Era como se o mundo estivesse ausente e só nós existíssemos. Eu o único homem. Tu a única mulher. Não havia maçãs. Só o nosso amor. Enrolava- nos e unia- nos até os nossos suores se misturarem. – Estás cego? – Não vejo. Tenho culpa? Não havia culpa nem inocência. Os meus pecados tinham o teu perdão. Eu transformava os teus defeitos em virtudes. Porque o amor é mesmo assim. Só quem ama sabe disso e eu sabia- o. – Não acredito que não estejas a ver. – Já vi. Já vi! Pronto! – Não viste nada. Só te via a ti. Mais que bonita. Mais que bela. Via-te deslumbrante. Beijava o teu corpo com os meus olhos. Ouvia as tuas palavras com o coração. – Ouve lá! Estás a gozar comigo? – Não. Não vejo o pirilampo. – Desculpa! Toda a gente consegue vê- lo. Estávamos sós. Tu e eu. Eu e tu. Se houvesse mais pessoas, deixariam de existir. Aquele tempo era nosso. O espaço de mais ninguém. – Ninguém consegue ser mais distraído. – Eu não sou distraído. – Repara como se mexe! Eu não me mexia. Cada gesto era calculado ao mais pequeno pormenor. Nada é improviso no amor. Estamos sempre a pensar na melhor forma de agradar o outro.

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– Olha outro! – São dois? – Não. É só um. Enganei- me. Enganado estava eu. Amava- te e partilhava esse amor contigo. Tu davas amor em troca, sem dúvida. Durante anos julguei que esse amor era teu. Agora sei que era o meu que rejeitavas. Não o querias. Durante anos andei enganado. Agora pago pelo meu erro. E o meu erro foi gostar de ti. Foi fácil. Bastou distrair- me um pouco. Toda a minha vida me apaixonava em cada esquina. Até tu apareceres e mudares a minha maneira de ser e de amar. Apareceste no melhor momento – no fim de uma tarde de Outono. A partir daí, não consegui apaixonar- me por mais ninguém. Nem quando foste embora. Levaste, julgo eu, o meu amor, aquele que rejeitavas, contigo. Foi fácil gostar de ti, mas era difícil lidar contigo. Sempre te compreendi. Pelo menos, o suficiente para não perceber a maneira como pensavas. Apesar de tu afirmares que eu tinha o dom da palavra, não consigo moldar nenhuma que saiba dizer como eras. Ainda hoje me pergunto como conseguias ser tão simples na tua maneira de ser e tão complicada na tua maneira de amar. Não tinhas coragem para dizer aquilo que sentias. Aposto que nem sentias o que dizias. Quantas vezes me magoavas, vias o meu sofrimento e nada fazias. O que me salvou foi o meu amor por ti, que traduzia as tuas palavras naquelas que eu queria ouvir e me deixavam tranquilo. – Gostas de mim? – perguntava. – Isso era o que querias saber, não? Eu ouvia: É claro que gosto de ti. –

E não te sentes mal em namorar com outro e andar comigo, ao

mesmo tempo. – Não.

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Eu ouvia: Aquilo que procuro em ti é diferente daquilo que encontro no meu namorado. – O que procuras em mim? – Sei lá!? Divertir- me. Eu ouvia: Passar momentos que me confundam

os sonhos com a

realidade. – És muito especial para mim, sabias? – Não vejo porquê? Eu ouvia: Tu também és especial para mim. – Acho que estou apaixonado por ti. – Olha que sorte. Já são dois. Eu ouvia: Eu também estou apaixonada por ti. Depois ria- me. Não daquilo que dizias, mas do que eu ouvia. – De que estás a rir? – perguntaste. – Daquilo que disseste – menti. – Disse alguma mentira? – Não. – Estás então a rir de quê? – Da forma como falaste – menti outra vez. – E como é que eu falei? – Já alguém te disse que às vezes és irritante. – Como é que eu falei? – Olha um OVNI! – Como é que eu falei? – A sério! Acho que é um OVNI. Não acreditas em OVNI’s?

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– Não mudes de conversa! – Vá lá! Só desta vez. Acreditas ou não? – Não. Não acredito. E tu? “ Se responder não” – pensei – “a conversa acaba aqui”. – Acredito. Eu acredito. – Porquê? – perguntaste. – Porquê? Porque sim, olha! Não tem explicação. É como acreditar em Deus. – Eu não acredito em Deus. – Espera lá! Tu não acreditas nem em Deus nem em OVNI’s. – Exato. – Então acreditas em quem? – Em várias coisas. Em mim, por exemplo. – E em mim!? – Em ti? Mais ou menos. – Mais ou menos? Explica lá isso! – Mais ou menos. Não tem explicação. Acredito em ti mais ou menos. Como tu acreditas em Deus e em OVNI’s. Sem explicação. – Está bem! Ganhaste. Fim da conversa. Não suportava discutir contigo. Tu pouco te importavas. Ficavas logo a conversar e a rir com outras pessoas. Eu ia para perto de ti. Sem dizer nada. Só a observar. Assim demonstrava que não estava a gostar. Era o meu tímido pedido de desculpas. Compreendias e vinhas ter comigo. Eu falava e deixava- te falar muito mais. Ria-me contigo. Mesmo quando não tinhas piada nenhuma. – Vamos casar? – propuseste entre risos. – Tu é que sabes... – Eu é que sei?! – Sou eu, não? – Claro que és. – Claro que não.

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– Então quem sabe? – Sei lá. O destino! – Somos nós que fazemos o destino. – Então quem sabe somos nós... – Então – concluíste – nós vamos casar! Não casámos. Mas foi por pouco. Quando eu queria, tu não querias e quando tu querias, eu não queria. Quando queríamos os dois, fingíamos que não sabíamos de nada. Até acabaste com o teu namorado. Mas ficou tudo na mesma. Só tu nos usaste de um modo diferente. Começaste a namorar com o teu ex- amante e ficaste amante do teu ex- namorado. Eu sabia. Sabia de tudo e fazia de conta que não sabia de nada. Era a minha vez de passar por ignorante. Aceitei de braços abertos e cabeça erguida o destino – aquele que nos ia casar.

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As sombras dormem na calçada e das estrelas só se sente a música. Fumo com a mão esquerda. A direita orienta uma caneta azul, que tenta escrever aquilo que não consegui dizer. O resultado espera- se óbvio e simples, mas entrego essa responsabilidade à noite e à música. E agora à chuva que começou a bater na janela. Nestas três coisas procuro o significado de algo que o meu coração não encontra. Vejo em cada cigarro a minha vida a acabar- se. Sinto o fim cada vez mais próximo. Refugio- me no meu rosto reflectido no espelho e espero saber a razão pela qual os meus dias se tornaram num qualquer ato de penitência. Ocupo o teu lugar e caminho pelos teus sentimentos. Lembro- me quando olhei para ti pela primeira vez e consegui ver os meus olhos espelhados nos teus. Lembro- me quando me apercebi que tinhas algo de especial. Cheirei a tua pele e senti as tuas mãos macias tocarem nas minhas... Como o tempo passou! Hoje sei que não me apaixonei por ti. Apaixonei- me pelos teus olhos. Pelo cheiro da tua pele. Pelas tuas mãos. Eram estes pormenores pequenos que tornavam grande o meu amor por ti. O cigarro adormeceu no filtro. O Cd chegou ao fim. A chuva parou de cair. O rosto não me diz nada.

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Passeio os olhos por um livro que folheio sem prazer. A questão é simples, mas ninguém tem a resposta. Nem Kant, Freud, Alberoni ou Einstein. Ainda está por inventar a fórmula do antídoto deste veneno que nos deixa a alma em estado de degradação. Espero pelo sono, na secreta esperança de quando adormecer, tu apareceres no meu sonho e me dizeres qualquer coisa que me faça sentir menos culpado. Esta é a minha contradição. Tu pediste desculpa por sair da minha vida e sou eu quem ocupa o lugar de réu na nossa relação. Sei que não é este o meu lugar. A minha posição. Mas onde está a minha postura? Qual é o meu papel no meio de tudo isto? Quando somos o centro das atenções, não lhe damos valor. Enche. Por vezes torna- se insuportável. Simplesmente não dá mais. Tudo recai sobre nós. Os elogios, os comentários... e, obviamente, a culpa! Não nos importamos. Porquê? Porque gostamos dela. Porque a pusemos acima de todas as outras coisas do mundo. Quando deixamos de ser o tal centro das atenções, torna- se um sonho quase impossível de realizar. Vivemos em contraste eterno. Por um lado é preciso batalhar, ser forte; frio, para não sofrer. Por outro lado... quem tem vontade de lutar, quando tudo parece que nos abandonou? É tudo em vão. O mundo desaba em nós. Já ouvi falar de solidão. Talvez num livro ou na boca de alguém. Mas a diferença entre ouvir e sentir é enorme. Solidão é, para além de estar, sentirmo- nos sozinhos. Os dias parecem uma eternidade. Mas damos conta que estamos a perder esse dia... e o outro e o seguinte. E dói bem fundo. Dói bem fundo de nós. É uma sensação estranha, que estou a conhecer e me está a matar pouco a pouco. Sinto- me como se tivesse levado um tiro e me estivesse a esvair em sangue. Lembro- me de ouvir o som da carabina que disparou sobre mim... Era uma noite abafada como esta. A lua estava distante, assim como toda a natureza deste ou de outro mundo qualquer.

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Tu olhavas para aquela bola branca e mágica em silêncio. Eu estava sentado a teus pés. Tinha uma garrafa de cerveja na mão e, de vez em quando, sorria para ela. Ouvia a tua respiração dizer- me que tinhas de desabafar. Mantiveste- te fiel à mudez, que naquele momento nos unia. Esticaste o braço. A tua mão segurava uma folha dobrada em quatro. Pediste- me para ler. Era uma carta. Deste- me um beijo e disseste que depois telefonavas, já com a certeza que não o irias fazer. Olhei para ti e tremi. Não era de frio. Porque a noite estava abafada. Tive aquele arrepio que a ciência não explica e o coração não quer dizer. Li as tuas últimas palavras como se as estivesses a sussurrar ao meu ouvido. Ainda hoje o faço. Nem preciso tirar o papel, já velho e rasgado, do bolso. Basta fechar os olhos e sentir a tua respiração no meu pescoço... Exist e m m o m e n t o s e m qu e te m o s d e de ci dir o qu e faz er, por mai s qu e no s cu s t e ou do a. Mesm o qu e par e ç a qu e no s va m o s ma g o a r , é m el h o r atu ar no m o m e n t o cert o . Para mai s tard e nã o sofrer m o s as co n s e q u ê n c i a s . Adora v a po d e r olhar para trás e v er qu e tod a s as d e ci s õ e s qu e to m e i fora m as mai s corre t a s . É ne s s a per s p e c ti v a qu e est o u a to m ar ag or a est a atitu d e . Pode s nã o acre dit ar, de qu al q u e r form a ass u m o

qu e

é s, será s para

s e m p r e , u m a p e s s o a es p e c i al para mi m. Pela sim pl e s razã o d e qu e fost e o prim e iro ho m e m qu e te v e a cora g e m de m e tent ar co m p r e e n d e r e go s t ar d e mi m p el o qu e real m e n t e so u e nã o pel o qu e de m o n s t r o ser. Admiro- te por iss o. Obrig a d a ! Mas não dá. Não co n si g o . Co m p r e e n d o qu e m e le v e s a mal, ao ler e st a carta. Talv e z d ei x e s d e m e pro c ur ar, tel ef o n ar, es cr e v e r e faz er e s s a s coi s a s to d a s qu e , tu sa b e s , m e am o l e c e m o coraç ã o . É m el h o r as si m . Não v o u impl orar qu e seja m o s ami g o s no v a m e n t e . Na v er d a d e , eu não acre dit o na amiz a d e de p o i s do am o r. Só te e s cr e v i para qu e te le m br e s se m p r e qu e por mai s qu e os no s s o s olhar e s s e d ei x e m d e cruz ar, por mai s qu e as no s s a s mã o s se dei x e m de unir,

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e os no s s o s d e d o s , tรฃo firme s e co m p ri d o s , se d ei x e m d e entr el a รง ar, eu nun c a te e s q u e c e r e i . Nunca te es q u e c e r e i ... Desc ul p a ! !

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Obrigadinho!! Deixaste- me na merda!!

Sentia- me aos bocados. Não me esquecia da cabeça em lado nenhum. Nem deixava cair a mão ou o braço. Mas muitas vezes fui buscar o coração ao estômago. Refugiava- se lá, sempre que desaparecia a coragem de sobreviver. Doía-me o corpo. Tinha a alma embriagada, das lágrimas que não chorei. Ficaram cá dentro, a humedecer os ossos e a enfraquecê- los. A minha fragilidade transformou- se em palavras inventadas e sem sentido. Num poema, para ser mais preciso. Só um, para não ter comparação. Porque tu também eras única. Trago- o no bolso, junto da tua carta. Queres recitá- lo para mim? “ O bar estava vazio. Eu cheio de emoção. Surgiste no alvor da noite. Quiseste ser o Sol a minha vida. Para brilhares no meu coração, para sempre. Estavas à minha frente. A pensar em mim, se Deus quiser. Tanto como eu. Sentia- me Rei. Rei de um condado.

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Que era teu. Que eras tu. Até que outro Rei chegou. Tu quiseste o condado dele. Que era ele. Faltou- me a palavra, no momento certo. Por cobardia ou timidez, guardei- a para mim. Com ela sobrevivi à minha solidão, sem ti. Repeti- a vezes sem conta, ao espelho quando sentia a tua falta. Talvez na esperança de ver a tua imagem

espelhar- se na minha.

Tudo em vão... Mas...

...Eu amo- te!! “

Quando julguei que te estava a conquistar, era eu que, cada vez mais, me deixava apaixonar por ti. Mas tu amaste- me. Tenho a certeza. Amaste- me durante muito tempo. Pelo menos dez segundos. Eu sei quando foi. Tenho uma vaga ideia. Foi na tua despedida. Toda a gente se ama nas despedidas. Sabem que nunca mais se vão ver e amam- se por isso. O amor ajuda a saudade. Protege- a do medo. Qual medo? Medo do tempo, da distância, do trabalho, das pessoas. Eu não fiquei com medo. Fiquei sem nada.

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Às vezes esqueço- te e concentro- me um bocado em mim. Penso como seria se pensasse de outro modo, se falasse de diferente maneira, se agisse em algumas situações com mais clareza. Toda a minha vida seria diferente, se não me deixasse levar pela emoção do momento. Porque eu até gostava de ter amigos com quem falar, ter sítios para onde ir, histórias para contar e, mais importante, alguém para as ouvir. Estou cansado de nada fazer. Passo os dias à espera da noite e a noite à espera da manhã. Até o meu amor por ti, de tanto pensá- lo, se tornou ridículo. A solidão perde o seu significado, quando não conhecemos mais nada. Acendo mais um cigarro. É o último. Desde sempre julguei que o cigarro era a minha melhor companhia. Mas o cigarro não passa do nada, se não houver uma chama que o acenda. E sem oxigénio a chama não existe. Ninguém vive do nada e eu não sou a exceção que confirma a regra. Não me chamo Nietzsche e nem sequer sou escritor. Durante anos vivi dos sonhos, mas eles esqueceram- se de me devolver a vida. Doença de Alzheimer. A minha sina. Olho para as palmas das minhas mãos.

Duvido

que

alguma

cigana

lesse

aqui

a

palavra

Alzheimer.

Provavelmente ditava- me um cancro ou uma hepatite B. Desconfio que tudo não passou de uma brincadeira entre a razão e o coração. A memória serviu só de bode expiatório. Deixo cair o cigarro no cesto de papéis, sem oportunidade de o apagar ou dar mais uma passa.

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Dispo- me e preparo- me para tomar banho. Recordo as fantásticas imagens que criava no duche. A água fertilizava a minha imaginação. E o cheiro a estrume também devia ajudar. Nunca fui homem de lavar a casa de banho. Ainda não sou. Nos últimos dias não tenho lavado nada. Nem sequer a mim me lavo. Não é preguiça. É falta de vontade. Desde que o meu cabelo começou a cair e os meus dentes a apodrecer, perdi a vontade de cuidar de mim. Assoou- me às mãos e passo- as pela roupa. Meto o dedo no nariz e depois levo- o à boca. A maioria dos dentes já caiu. Estou quase careca. Não me lembro da última vez que passei uma lâmina pela face. Fiquei sem vontade. É normal, nesta idade, julgo eu. O cesto de papéis está a deitar fumo. Os rascunhos das cartas que te escrevi estão a arder. Não preciso deles. Tudo o que te queria dizer está aqui, ao meu colo. O vento que entra pela janela espalha o fogo pelos meus discos. E agora pela aparelhagem. Os meus livros

são

lidos

e relidos

pelas

chamas,

que

reduzem

as palavras

à

insignificância de quem as escreveu. O fumo foge para o céu. A chuva, sempre ela, continua a cair. Ouço pessoas lá fora a gritar pelos bombeiros e a dizer que está uma pessoa dentro da casa. Eu sei. Escusam de falar tão alto. Essa pessoa sou eu. Reconheço- me na vida que agora passa diante dos meus olhos. Se recuperar a memória sempre foi o meu sonho, é agora o meu medo. Sim, admito. Estou com medo. Lembro- me de tudo. As minhas recordações são feitas de coisas insignificantes, que no fundo deram significado à minha vida. A minha memória já não me deixa pensar só em ti, meu amor. Recordo as garrafas de vodka. Estavam na prateleira, perto do balcão. Por baixo estavam os vinhos. Mais à esquerda os Whisky's. E por cima da máquina de café, os licores. Junto à entrada, estava um quadro que o João pintou para mim. Era a preto e branco. Ao lado estava sempre uma rapariga. Devia ser o seu sítio preferido. Pedia um café e ficava lá, a olhar para mim. Se calhar, eras tu. Mas não quero saber. Estou cansado de tanto pensar em ti. Deixa- me lembrar os meus copos de cristal ou a minha coleção de isqueiros.

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RUI FONTE

lado oculto da memória

A minha roupa deixou de se poder vestir e a cama já não existe mais. A tinta da parede começa também a desaparecer. Eu estou confuso. As memórias são a bússola dos nossos sonhos e eu estou desnorteado. As ideias chegam até mim atrapalhadas e às cambalhotas. É o medo sob disfarce, penso eu. Mãe, fui eu que escondi a prenda de natal do pai. Porque a queria para mim. Esteve sempre atrás do guarda- roupa. Afonso, fiz amor com a tua mulher. Por vingança. Quem te manda passar tanto tempo a conversar com a minha. Preferia que fosses para a cama com ela. Cinco minutos depois estavas despachado. A falar ficavas uma noite inteira. Só fiz amor com a tua mulher para te arrependeres de conversar tanto com a minha. Avó, que agora vives detrás de uma nuvem, eu até gostava de ti. Tudo o que te disse foi sem sentimento. Escusavas era de te peidar tanto e fazer de conta que não era nada contigo. Padre, nunca fui à missa. O corpo estava lá, mas a alma ficava cá fora a fumar um cigarro. Eras chato. Não conseguia ouvir- te. Nem a falar e muito menos a cantar. Amigos, não acredito em vós. Nunca acreditei. A amizade é uma utopia, que nos faz esquecer quem na realidade somos. Não faz sentido. Andamos uns atrás dos outros. Acredito em igualdade de interesses, gostos parecidos, objectivos comuns, futuros idênticos, atitudes semelhantes. Mas não tenho fé na amizade. Deixei- a na página de um livro que emprestei a um amigo e ele esqueceu- se de o devolver. Muito ficou por dizer e estórias por contar. Mas do passado vivem os arqueólogos e eu sempre fui barman. Meu amor, sempre salvaguardaste os teus sonhos e puseste os meus em perigo. Não vou deixar que isso volte a acontecer.

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Tudo à minha volta se transforma em cinzas, mas eu sinto- me o maior. O mais simpático. O mais bonito. O mais inteligente. Se fomos feitos à imagem de Deus, eu sinto- me a cópia mais perfeita. Mas tenho medo!

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lado oculto da memória

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Sento- me e entrego- me aqui. Fecho os olhos. Sem força para os abrir. Sem vontade de me levantar. O calor das chamas devolve- me o primeiro grito de dor Recorda- me o frio das lágrimas. O cansaço de viver. O silêncio arde e na escuridão acende uma luz. Parece que vou indo. Depois, se puderes, vai lá ter!

05 de Dezembro de 1998

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