Movimento Instavel - Claudia Cordovil

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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Faculdade de Artes Plásticas

MOVIMENTO INSTÁVEL CLÁUDIA AMANDA CORDOVIL DE ALMEIDA

São Paulo 2012



Fundação Armando Alvares Penteado Faculdade de Artes Plásticas Curso de Bacharelado em Educação Artística Habilitação em Artes Plásticas

MOVIMENTO INSTÁVEL

Trabalho de Graduação Interdisciplinar vinculado à disciplina Desenvolvimento de Projeto Integrado II, apresentado como exigência parcial para obtenção de certificado de conclusão do curso de Artes Plásticas. Aluna: Cláudia Amanda Cordovil de Almeida Orientadora: Profa. Ms. Andréa Tavares

São Paulo 2012


ALMEIDA, Cláudia Movimento Instável. Cláudia Amanda Cordovil de Almeida – 2012 Trabalho de Graduação Interdisciplinar- Faculdade de Artes Plásticas, Fundação Armando Alvares Penteado, São Paulo, 2012. 1. Água 2. Movimento 3. Materialidade 4. Espaço


Agradecimentos

A Deus, Pela força espiritual para a realização desse trabalho. À minha família que, com muito carinho e apoio, não mediram esforços para que eu chegasse até esta etapa de minha vida. Agradeço em especial ao André, pelos incentivos e apoios constantes, sem você nada disso faria sentido. Aos meus amigos pela cumplicidade, ajuda e amizade. À professora Andréa Tavares pelo convívio, pelo apoio, pela compreensão e pela amizade.



Sumário Introdução

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Parte I – Movimento instável . . . . . . . 11 O trabalho

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Parte II – Correnteza . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Materialidade impalpável . . . . . . . . . . . . . . . . Limites do espaço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Reflexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O visível e o invisível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Parte III – A poética da água . . . . . . . 55 Considerações finais

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Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67



Este o risco de quem vive à beira d’água: sempre a mente distante do mar ante o mar distante da mente Dia e noite: um diante do outro. Roteiro de impossível fuga: o horizonte é medido por invisíveis alturas. Alberto Martins, Cais 9



Introdução Este trabalho de Graduação Interdisciplinar, intitulado Movimento Instável, é composto de uma videoinstalação e uma monografia. A primeira consiste na projeção sobre cubos de acrílico fixados na parede de um vídeo retratando o mar. A proposta é criar de um espaço imersivo, a partir da imagem, no qual procuro discutir as questões da materialidade e espacialidade que a água possui. A monografia, por sua vez, trata do processo de trabalho que levou à constituição da obra e está dividida em três partes: na primeira, intitulada “Movimento instável”, discorro sobre a minha experiência e o meu interesse por esse estudo; a segunda parte, “Correnteza”, é composta de reflexões poéticas que surgiram junto às captações das imagens fotográficas que compõe essa escrita, e o título se relaciona às poesias, às correntes de água, ao fluxo e movimento. Por fim, “A poética da água” apresenta as referências para o trabalho, relacionando artistas como Bill Viola, Janaina Tschape e Tony Smith e autores como Georges Didi-Huberman e Gaston Bachelard. Nas considerações finais recupero o trajeto do trabalho para finalizar este relato reflexivo.

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Parte I – Movimento inståvel


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Meu interesse no estudo desse tema surgiu a partir da familiaridade com o elemento água. Faço natação desde que tinha uns 6 anos de idade e, desde essa época até os dias de hoje, todos os finais de semana, sem exceção, saio de São Paulo rumo ao litoral sul. Lembro-me de quando decidi que queria aprender a surfar e tentar entender por que tantas pessoas diziam que estar em contato com a natureza trazia uma paz profunda e espiritual, e eu não conhecia as razões pelas quais aquilo era fascinante. Hoje eu consigo perceber que estar em contato com a água me permite um contato maior com o meu próprio Eu. Descobri que o simples fato de estar diante do mar, ligada diretamente à natureza, faz despertar em mim um enorme fascínio, de certa forma todos os sentimentos e sentidos ali são explorados. “Movimento Instável” surgiu a partir de algumas experiências e observações sobre o corpo físico que a água possui. Em muitos momentos, enquanto estive no mar, sentada sobre uma prancha, cercada de água, observava o horizonte, a divisão entre o céu e a água, e as nuvens que se espelhavam sobre aquela superfície, e me sentia como uma coisa mínima infiltrada naquele lugar, como se aquilo tudo simplesmente fizesse parte de mim. Estar nesse lugar me proporciona diferentes descobertas de sentimentos os quais eu não imaginava que poderiam existir juntos em mim, como o medo e o prazer de estar sozinha naquela imensidão sem fim.

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O trabalho A videoinstalação é formada por uma projeção de três por dois metros e meio de altura, sobre trinta e sete caixas de acrílico fixadas a uma parede, contendo diferentes quantidades de água dentro de cada uma delas, em um ambiente escuro. Existem espaços em volta de cada caixa e com esses vãos é possível sugerir a ligação entre os espaços interno e externo das peças, assim como visualizar as diferenças de tamanhos e formatos das caixas e as quantidades de líquidos postas no interior de cada uma delas. As caixas são sobrepostas na parede em posição vertical, sentido nada convencional quando se trata de projetar uma imagem de água, elemento que sempre se encontra na horizontal. Quem está diante do trabalho pode se permitir movimentar-se nesse espaço ou encontrar um ângulo ou proximidade com que se sinta mais confortável para assistir à projeção, já que o trabalho pode ser visto de qualquer lugar dentro desse espaço expositivo. As caixas sobrepostas à parede em uma posição vertical remetem à ideia de aquário, reservatório ou viveiro de animais ou plantas aquáticas, que, por sua vez, apenas contendo a água, trata a relação novamente da ausência como a falta da presença desses seres. Decidi construir uma videoinstalação pois acredito que seja a forma que mais se aproxima do meu objetivo representacional, que é a subjetividade e a exteriorização de sentimentos; a videoinstalação propõe ao espectador uma ativação do espaço em uma projeção de imagens como ambiente imersivo, permitindo ao espectador que ele também possa entrar em contato com a sua subjetividade ao se sentir parte do trabalho, ao ser tocado e tocar a imagem da água. O vídeo por si só é o registro de algo que já aconteceu, quando o projetor lança essa imagem criam-se questões relacionadas ao tempo, o passado deixa por sua vez de ser passado e se torna presente, mesmo que este seja apenas a representação de um lugar, é um transporte ou deslocamento de um espaço e tempo. A representação torna presente a questão da ausência, a água só está presente como imagem, é mais sugestão e memória do que matéria.

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A paisagem é distorcida conforme essa massa líquida se movimenta sobre a câmera. A lente registra como se o olho de um ser humano captasse as imagens: conforme a água se movimenta sobre a lente, distorce as nuvens, as árvores, as pedras, o olhar da câmera é sempre de baixo para cima, e, em alguns momentos, para o horizonte. É como sentir uma fina camada de água caminhando pelo olho, é possível identificar as imagens apesar de ficarem distorcidas, o sujeito nesse local se torna frágil e sensível. Quando o vídeo é projetado sobre o espaço da instalação, a imagem transmitida se expande para o ambiente devido aos reflexos produzidos pelas caixas de acrílico, inserindo o espectador na representação, como se água vazasse para o corpo dele.

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O primeiro objetivo para produzir o trabalho era captar as imagens em uma praia no Nordeste do Brasil, onde a água é clara, característica fundamental para desenvolver a filmagem, já que o registro é feito com uma câmera de vídeo digital à prova d’água e submersa. Porém trabalhar com a natureza não é uma tarefa tão simples assim; em Natal, Rio Grande do Norte, iniciei o processo de filmagem, mas o resultado não saiu como o esperado em todos os lugares a que me dirigi em busca desse vídeo. Por ser o estado que se encontra exatamente na ponta do Brasil, a corrente de vento é simplesmente intensa. A partir das oito horas da manhã, o vento começa a soprar forte em todo o estado, então, quando colocava a câmera sobre a água, as imagens se distorciam exageradamente, devido a esses ventos, que não permitiam identificar a paisagem à sua volta.

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Um morador de Natal me sugeriu ir até a Lagoa do Carcará, explicando que talvez naquele dia não ventasse muito naquela região. Resolvi então seguir até lá e, depois de aproximadamente uma hora de viagem, cheguei a um lugar deslumbrante, onde a água era extremamente clara, uma região habitada apenas por pouquíssimos moradores. Lá aluguei um caiaque para começar a filmagem mas fui alertada para não ultrapassar uma certo lugar na lagoa, onde havia pequenos jacarés, o que resultou em imagens pouco submersas na água, de pouca duração. Algumas das fotografias que compõe esta monografia foram captadas lá. Como os resultados não me agradaram muito, resolvi então buscar essas imagens no litoral de São Paulo mesmo, pois conheço melhor a região, mas os imprevistos existem em qualquer lugar. Precisei em todos os locais lidar com o imponderável, em alguns momentos a falta de luz não me permitia uma boa captação da imagem, em outros, o excesso também. Descobri que, independentemente de conhecer ou não os lugares, eles sempre me trazem novas surpresas, jacarés, ouriços e até mesmo caravelas, uma espécie de água viva bastante venenosa, que de repente atravessam meus caminhos.

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Como pesquisa para este projeto ao longo dos últimos semestres do curso desenvolvi alguns trabalhos que resultaram em soluções e experimentos para produzir Movimento Instável. Experimentos com outros materiais como papel e madeira, e outras formas de apresentação, me permitiram analisar detalhes que são importantes para apresentar meu objetivo.

Amostra é um registro de uma performance que criei em 2012, com seis pequenas caixas de acrílico espalhadas sobre a areia de uma praia que continham diferentes quantidades de água coletadas no próprio local. Conforme a maré subia, a água, de certa forma, entrava em contato com esses objetos, e, em alguns momentos, nivelavam o líquido de dentro assim que a água do mar atingia as caixas. O corpo presente dentro de cada objeto era o mesmo que se encontrava ao redor dele, sugerindo ali uma relação entre a ausência e a presença do mesmo corpo através de outra matéria, o acrílico, que permitia refletir sobre os limites do espaço.

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Parte II – Correnteza


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Materialidade impalpável Quando a toco Quase não a sinto, Ela se espalha, Se dissolve Por todos os lados, Minhas mãos parecem impermeáveis Sinto apenas vontade De pegá-la novamente, Mas novamente ela escapa de minhas mãos.

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As ondas encobrem o corpo como uma pele, espessa, pesada, como um cobertor, estar sobre ele ĂŠ sonhar, acordar ĂŠ como um pesadelo, sair, e querer voltar de novo.

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Limites do espaço Quando meus olhos observam o horizonte Imagino se aquele limite é mesmo o fim. A risca entre o céu e o mar Separa e une os dois infinitos Meus olhos conseguem enxergar até um lugar E o outro a minha mente trata de buscar. Por que mesmo pensando no seu verdadeiro espaço ainda procuro encontrar outro lugar? Ver o todo sem um limite? Ou ver o limite de tudo?

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O sol se põe, na agua, na escuridão, no profundo, na imensidão no céu, nas nuvens nas ondas, no mar. Se esconde sem saber se no amanha vai voltar.

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Reflexos A água é como um espelho que revela o que está diante de si. Mas aquilo que ela mesma expõe também pode fazer parte de si.

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Verde Azul Transparente, translúcida Água tem cor? Diante de nuvens Vasta escuridão.

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O visível e o invisível A cor que vejo, não é apenas a cor que eu vejo, o profundo que enxergo não se resume apenas ao que eu enxergo; meus olhos penetram a uma profundidade, que pode não ser nem a metade, de onde a verdadeira profundidade pode chegar.

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O profundo é o vazio, escuro e sombrio, mas o vazio é só até onde meus olhos podem avistar.

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Paro e vejo, Sinto, Respiro, Ouรงo e lรก vem o medo, Do ausente ao presente.

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Parte III – A poética da água



Em certos momentos me deparo observando a água, em algumas vezes em quantidades mínimas e em outras em quantidades maiores e me pergunto: qual a grandiosidade que se esconde por trás desse corpo liquido que meus olhos enxergam? Qual sua verdadeira espacialidade? E a partir dessas indagações me recordo do espaço desconhecido de Malevitch. Olhando para o mar e observando o horizonte interminável para minha mente, porém marcado por uma linha no horizonte um limite do espaço, imagino a profundidade que ainda existe ali. A água é um elemento ao qual se atribui uma infinita variação de simbologias dependendo das religiões e culturas que sejam estudadas. A natureza de um modo geral possui uma grandiosidade definitivamente superior ao homem, a espacialidade da natureza e seus fenômenos tornam o homem um ser frágil diante dela. A água é equiparada ao caos e à matéria primeva por não possuir forma; em Thales de Mileto ela é a origem de todas as coisas. Segundo a mitologia egípcia o monte primordial ergueu-se da água primordial (representada pelo deus Nun); na tradição indiana, a água carrega o ovo do mundo. No início o espírito de Deus flutuava sobre as águas (Gn 1,2). A água é na maioria das vezes concebida como um elemento feminino, na China associada ao Yin; como chuva fertilizadora da terra também pode ser igualada ao sêmen virile. O mergulhar também possui um significado simbólico feminino, o aspergir um significado masculino. ... A água que lava sujeira é símbolo da purificação, que é uma condição para o renascimento. O duplo simbolismo da água mostra-se no Batismo; em conexão a este, Paulo fala de sepultamento e ressurreição (Rm 6). Também os maometanos sabem da ambivalência. ... Na psicologia profunda a água escura, insondável é símbolo do inconsciente; o estado da água pode indicar o próprio sentimento da alma (LURKER, 1997, p. 6-7).

A água pode ser caracterizada como matéria pois é corpórea, ou seja, possui um corpo, que se desloca por qualquer lugar ou espaço e ao mesmo tempo não pode ser 59


contido, é evidente que se pode conter a água dentro de um copo, mas até quanto tempo? Ou em uma represa? Ela sempre se modifica, seu estado liquido se transforma em outro estado, ela não pode ser contida para sempre. Esse corpo vital, não pode ser definido por gênero, quando se trata de associa-lo a características entre o feminino e o masculino. A água é uma matéria que vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é o nascimento irresistível, um nascimento contínuo. (...) A princípio, em sua violência, a água assume uma cólera específica, ou seja, a água recebe facilmente todas as características psicológicas de um tipo de cólera. Essa cólera, o homem se gaba rapidamente de domá -la. Por isso a água violenta é logo em seguida a água que violentamos. Um duelo de maldade tem início entre o homem e as ondas. A água assume um rancor, muda de sexo. Tornando-se má, tornando-se masculina (BACHELARD, 1997).

Durante o período de pesquisa tive a oportunidade de conhecer melhor a obra do artista Bill Viola, a observação de seu trabalho me ajudou a criar novos pensamentos e referências para minha pesquisa. Para ele a água é um símbolo de vida. Quando um homem e uma mulher mergulham seus rostos sobre uma quantidade de água em Dissolution (2005), tornam o vídeo mais do que uma representação simbólica sobre a água e realizam um ritual, como uma espécie de batismo, a purificação e a limpeza de impurezas da alma. As imagens são expostas verticalmente como uma espécie de díptico, sugerindo uma certa simetria entre elas. No livro New media in late 20th century art, o autor Michael Rush cita Bill Viola como um artista que trabalha a arte ao gênero lírico, seus vídeos são como poemas visuais, buscando questões de identidade e espiritualismo no mundo moderno. Todos os elementos que compõe suas imagens possuem uma simbologia religiosa. É centrado em um processo de descoberta pessoal e realização. O vídeo é parte do meu corpo, é intuitivo e inconsciente (Rush, 2001, p.162).

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De modo geral, seus trabalhos abordam questões espirituais, onde na maioria das vezes ele utiliza a água como um meio de construção de sua própria narrativa, desenvolvendo questões sobre a religiosidade, a purificação, a ressureição vinculados à memória; como se cada obra fosse uma etapa vivida por ele, as quais determinam uma característica particular sobre sua própria pesquisa. Essa busca por significados proporcionou para minha pesquisa uma intensa reflexão e constantes questionamentos sobre a constituição corpórea da água, o principal elemento de interesse de minha pesquisa artística.

Dissolution, Bill Viola. 2005 Vídeoinstalação. 208,28x 121,92x 10,16 cm.

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Talvez exista em mim um olhar diferente e um interesse em observar a água como uma matéria impalpável. O interesse constante em tentar explorar esse território liquido me permite entrar em contato com o que é visível e o que se pode ser aprendido com os sentidos. Em Água viva (2003), a artista Janaina Tschape se acomoda sobre a exploração desse território líquido onde seu corpo produz figurações de formas sinuosas. O trabalho é mais especificamente um registro de performance, a artista utiliza uma vestimenta que lhe permite flutuar sobre a água e conduzir movimentos que causam diferentes curvas e formas orgânicas, que em certos momentos prologam seu corpo e produzem formas estranhas. Alguns balões cheios de água acompanham a artista na performance como se fosse parte desse corpo, espalhados naquele lugar. Ainda assim, quando chove, especialmente quando a chuva se mistura ao sol, cada detalhe desses mistérios pode ser revelado. A chuva mostra que as veias, córregos, rios caudalosos e os ramos de árvores são apenas o recurso de um desenho, uma aquarela universal. Transmutação está em curso. Aqueles que nós pensamos uma vez que sabíamos não são mais os mesmos. Eles estão agora cobertos com pigmentos impressionantes, roupas feitas de bexigas metabólicas, veias e reservatórios de fluido. É uma superfície enorme que se dobra sobre si mesma, simulando uma interioridade, que é apenas uma superfície infinita. The octopus is the angel of the sea Saint Clair Cemin, NYC 26 February 2003.

Identificamos claramente a presença do corpo nas obras dos dois artistas e a sua asência nas imagens produzidas por mim, porém encontro uma relação entre ambas, pois a minha proposta, ao reproduzir essas imagens, é introduzir e provocar o observador diante desse ambiente, fazendo com que ele sinta como se a lente da câmera fosse o 62


seu próprio olhar, e nesse caso a ausência do corpo deixa de ser ausente, envolvendo-o naquele líquido imagem. A pele é a água e o corpo é o do observador, que não pode ser visto ali mas está presente.

frames do filme Água viva, Janaina Tschape, 2003. Vídeoinstalaçao 50,8x76,2 cm

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Outro elemento que procuro explorar nesse trabalho é o cubo, que apesar de ser um simples elemento geométrico possui significados simbólicos que se ligam ao restante do trabalho. Pelo seu equilíbrio foi tomado como símbolo da estabilidade. (...) Num sentido místico o cubo foi considerado como símbolo da sabedoria, da verdade e da perfeição moral, totalidade terrestre e celeste, finita e infinita, criada e incriada, daqui de baixo e do alto (LURKER, 1997).

Em A poética do espaço, Bachelard define a questão das paredes de uma casa comum estarem ligadas à ilusão de proteção do homem, em que ele próprio sensibiliza os limites de seu abrigo. (...) veremos a imaginação construir “paredes” como sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção - ou, inversamente, tremer através de grossos muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos (BACHELARD, 1993, p. 25).

Neste trabalho utilizo objetos, caixas, espécies de módulos em formas cúbicas, feitas em acrílico, que na justaposição e no acúmulo tornam possível exceder o limite do objeto singular, a imagem projetada atravessa as paredes sem que essa a comprima. A imagem penetra por todos os objetos expandindo sua extensão. O que é um cubo? Instrumento eminente ou figurabilidade. O cubo quando lançado para qualquer lugar, se fixa , e se imobiliza. Em um certo sentido ele esta sempre caído, mas podemos dizer que esta sempre erigido. (…) o cubo é por outro lado uma figura perfeita da convexidade, mas que 64


inclui um vazio sempre potencial, já que seguidamente serve de caixa, mas o empilhamento dos vazios também produz a capacidade e a aparência plena de blocos (DIDI-HUBERMAN, 1998,p. 88).

Esse autor nos fala ainda dessa tal espacialidade que existe em relação ao tratar a obra do artista Tony Smith. A questão do existente no interior do objeto é vista como uma espécie de lugar desconhecido ou de abismo. Assim os cubos de Tony Smith sabem dar uma massa ao que, alhures ou outrora, cumpriria a função de objeto perdido; e o fazem trabalhar o vazio em seu volume. Assim o cubo de Tony Smith sabem dar uma estatura ao que, alhures, faria o sujeito esvair-se: ao chamar um olhar que abre o antro de uma inquietude em tudo o que vemos (DIDI-HUBERMAN, 1988, p. 97-8).

Die, Tony Smith, 1962, aço, 183,8 x 183,8 x 183,8 cm Nova Iorque, Museum of American Art

A questão de espacialidade é uma analogia entre a água e o cubo, a demarcação do espaço ilusório em ambos elementos é definido no encontro do sujeito com o objeto, a 65


imaginação e o inconsciente determinam como esse espaço se comporta. Gaston Bachelard cita o livro de Edgar Allan Poe que descreve a percepção do olho em relação à profundidade do oceano, o olho imerge a tal profundidade onde não consegue mais identificar até onde aquele volume pode chegar, o inconsciente busca o volume total da matéria. É uma tarefa árdua e impossível determinar a extensão, o início e o fim desse corpo. Às vezes a construção dos reflexos é menos grandiosa; então a vontade da realização é ainda mais surpreendente. Assim o pequeno lago do Cottage Landor refletia tão nitidamente todos os objetos que a dominavam que era realmente difícil determinar o ponto em que a verdadeira margem acabava e onde começava a margem refletida. (...) Muitos outros poetas sentiram a riqueza metafórica de uma água contemplada ao mesmo tempo em seus reflexos e em sua profundidade (BACHELARD, 1993, p. 54-5).

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Considerações finais Movimento: Ação de mover-se, seu efeito, deslocamento de um corpo, mudança de posição no espaço, mudança pela qual um corpo está sucessivamente presente em diferentes pontos de estado. Instável: que não é estável, não tem estabilidade, não permanece na mesma posição, mutável, volúvel, inconstância, móvel, movediço. Dicionário Larousse

O trabalho não foge da essência do significado das duas palavras, ambas possuem como característica a mudança de posição no espaço. Trabalhar com a agua como é lidar com os imprevistos é encontrar e descobrir outros elementos que transformam o ambiente em que ela mesma se encontra. A relação que encontrei com os artistas e autores que citei foram relações das quais utilizar a agua como forma de matéria principal da obra me ofereceu, símbolos e significados que ela já possui mas de certa forma não são totalmente extraídos. O que busquei com esse trabalho é isso, extrair os significados de muitas dúvidas e perguntas que fazia a mim mesma. É literalmente dissolver minhas dúvidas e angustias que me surgiram ao longo de alguns anos. A agua é um elemento vital, possui uma energia própria, e traz ao homem sentimentos e sensações divergentes. Prosseguirei a partir daqui essa busca para alcançar novos sentidos que a água concede.

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Bibliografia BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BOUSSO, Vitoria Daniela. (Org.). Janaina Tschape. São Paulo: Paço das Artes; Imprensa Oficial, 2006. COTRIM, Cecilia. Escrito de artistas: anos 60/70. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MARTINS, Alberto. Cais. São Paulo: Ed.34, 2002. MARZONA, Daniel. Minimal art. Taschen, 2005. RUSH, Michael. New media in late 20th-century art. Londres: Thames & Hudson, 2001.

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