screver o editorial da revista é sempre o meu último grande ato a cada Bang! Quando finalmente sei qual o conteúdo que vai para cada página em branco, só então me dedico a escrevê-lo. Tenho pavor dos editoriais em que detalho o conteúdo ou realço os pontos fortes da revista. Sempre preferi escrever textos em que procuro unir o meu gosto pelo fantástico à realidade que nos envolve. Mas este é o meu primeiro editorial para o Brasil e não quero passar uma impressão errada. Talvez possa lhes falar um pouco sobre os desafios que enfrentei, junto com toda a equipe da editora, ao montar este projeto pela primeira vez em um país vasto e complexo como o Brasil. É quase inacreditável termos conseguido cumprir as nossas ambições e navegar de Portugal, onde a revista nasceu (e já vai a caminho da 15.ª edição), rumo ao país irmão. A revista Bang!! é um produto único por vários motivos: é produzida por uma editora, mas não é simplesmente um catálogo de novidades, nem é limitada aos livros dessa editora. É assu-
midamente dedicada à literatura fantástica, mas não pretende desrespeitar ou ignorar outras formas de expressão que não sejam os livros. E, por fim, é uma revista de 80 páginas com conteúdos únicos e exclusivos e de distribuição gratuita. Sim, você entendeu bem. Qualquer leitor pode chegar às livrarias, pegar um exemplar e levar para casa de graça. Quando comecei a contatar colaboradores no Brasil para me ajudarem a criar este número, surpreendeu-me o fato de muitos deles já conhecerem a nossa revista portuguesa (todos os números estão disponíveis on-line). Nunca suspeitei que tinha público para além dos portugueses. Talvez a minha surpresa não devesse ser tanta, pois afinal há tanto que partilhamos e a Internet possibilitou estreitar laços de uma forma que teria sido impossível há vinte anos. Como criamos cada número desta revista? Construímos uma vasta rede de colaboradores em quem confiamos e damos forma a uma comunidade em que mostramos receptividade a novos talentos e novas vozes. Tentamos criar um designn ousado e surpreendente para cada artigo. Não há uma página nesta
Todo o mundo sabe que Brasil e Portugal são países irmãos. Mas o que significa isso? Que falamos a mesma língua? Que temos uma história em comum? Pensamos que é muito mais do que isso. Na verdade, há um carinho especial entre os dois países. Um imenso desejo de conhecer, receber e partilhar. Só assim se explica a forma maravilhosa como sempre fomos recebidos em terras brasileiras. Quem primeiro nos estendeu a mão foi Antônio Torres, um escritor cuja generosidade só é comparável ao seu talento. Roberto Bahiense de Castro esteve sempre disponível e foi um autêntico irmão. Muitos profissionais do mundo editorial receberam-nos e partilharam experiências: Gustavo Faraon, Rejane Dias, Gorki Starlin, Haroldo Ceravolo Sereza, Claudinei Franzini, Igdal Parnes, Bárbara Bulhosa, Frederico Indiani da Saraiva e Rui Campos, da Livraria da Travessa. Mas os maiores agradecimentos têm de ir para as pessoas que não só acreditaram no projeto como quiseram embarcar na Saída de Emergência Brasil: os nossos parceiros Marcos e Tomás Pereira e toda a equipa da Sextante. Para terminar, um agradecimento especial aos colaboradores da revista Bang! e a todos os fãs de literatura fantástica que desfrutarão de sua leitura. Esta revista é de vocês. E, pronto, neste momento sentimo-nos em casa. Um país irmão não é isso mesmo?
revista que não tenha sido trabalhada até seu máximo potencial. Pensei muito no que escrever neste editorial. E tudo me pareceu excessivamente banal. Mas as melhores palavras são as que vêm do coração. Demos o nosso melhor porque queremos conquistá-los com nossa paixão. Queremos que conheçam em primeira mão o trabalho diário de nossa editora e o entusiasmo que nos move sempre. Cabe aos nossos leitores decidir se conseguimos isso ou não.
A sua opinião sobre a revista que tem nas mãos é fundamental para nós. Venha visitar-nos em e diga-nos o que pensa. Queremos que o próximo número seja ainda melhor do que este, mas isso só será possível depois de saber o que você tem a dizer: quer mais ficção? Mais resenhas? Mudava tudo? Não mudava nada? Estamos à sua espera!
BANG! /// 1
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l meu nome é Mariana Vieira. Sou lá, iilustradora brasileira e cofundadora do Black Fox Studio, onde desenvolvemos trabalho no campo de Concept Art & Illustration e ministramos oficinas e cursos de curta duração na área. Sou Bacharel em Pintura Tradicional pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – com o projeto final “Processo híbrido na produção de retrato de criaturas fantásticas”. Concluí minha especialização em Arteterapia em Educação e Saúde, pela UCAM, no início de 2010 com um título de tese: “Alterações estéticas na arte do início do século XX no Brasil e seus desdobramentos nas artes aplicadas.”
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Meu trabalho já foi exibido na EXPOSÉ 10, EXOTIQUE 7, da “Ballistic Publishing” Photoshop Criative, Ilustrar Magazine, entre outros. Trabalhei no jogo “The Light g of the Darkness”,, que q será lançado ç em breve. Participei de projetos como a série de quadrinhos “Doenças fazem História”, publicada pela IBqM UFRJ, participei da criação de ilustrações para o booktrailer “Crade de Scar – Van Steward” d para promover o livro The Unremembered, publicado pela Tor Books, entre outros. Atualmente trabalho para algumas empresas japonesas e outras americanas, como Applibot, o CROOZ , Paizo e FFG, em jogos de cartas como “Legend of Cryptids”, “Lord of the Ring LCG” e “A Game of Thrones LCG”, entre outros.
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http://www.marianaarts.com/
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Orgulhosamente nerds!
Daí para a primeira literatura de fantasia foi um passo: começamos com a famosa saga Dragonlance, de Margaret Weis e Tracy Hickman, depois devoramos as obras de R. A. Salvatore, Robert E. Howard, J. R.
R. Tolkien, Raymond E. Feist, Michael Moorcock e tantos outros criadores de mundos. Em suma, cedo nos tornamos uns geeks, uns nerds, uns doidos por fantástico. A música foi outra paixão. Vibrávamos com Iron Maiden e Sepultura,
mas o que nos deixava em transe eram os Manowar. Suas músicas sobre batalhas gloriosas, céus cobertos de relâmpagos e campos riscados de heróis tombados eram a trilha sonora perfeita para nossas leituras de fantasia épica e sessões de BANG! /// 5
Dungeons & Dragons. Como bons nerds, adorávamos o cinema dos anos 1980: Blade Runner, Indiana Jones, De Volta Para o Futuro ou O Exterminador do Futuro. Jogávamos o magistral Monkey Island, da Lucas Arts, e todos os grandes jogos de aventura e fantasia dos anos 1990, colecionávamos action figures de heróis e as trilhas sonoras dos filmes favoritos. Quando nos demos conta éramos adultos e, mais do que consumir o fantástico, queríamos fazer algo por ele.
Uma saída de emergência g chamada Saída de Emergência
Criamos a Saída de Emergência em 2003, porque em Portugal não se publicava suficiente literatura fantástica. E as editoras que publicavam o faziam sem critério, regularidade ou paixão. Nós sabíamos exatamente o que queríamos lançar: as aventuras de Conan e Elric; os horrores de H. P. Lovecraft e Clive Barker; a fantasia de George R. R. Martin e Robin Hobb; a ficção científica de Frank Herbert e Philip K. Dick. Com boas capas, boas traduções, boa distribuição. Criamos a coleção Bang! e, pasmem, conquistamos uma legião de fãs. O sucesso foi tal que a Saída de Emergência passou a publicar outros gêneros, como literatura romântica (Nora Roberts) ou romance histórico (Bernard Cornwell). Mas nunca perdemos o foco: a nossa paixão era, é e sempre será a literatura fantástica.
E,, com a chegada g ao Brasil, fecha-se um ciclo
Se tudo começou com os gibis da Editora Abril que chegavam do Brasil todas as semanas, e que hoje guardo religiosamente em minhas estantes, não é de espantar que o Brasil voltasse a cruzar nosso caminho. Muitos fãs brasileiros se iniciaram na leitura de A Guerra dos Tronos com as nossas edições de 2007, bem anteriores à edição brasileira. A nossa loja on-line vendeu muitos livros para o Brasil: da fantasia heroica de Fritz Leiber aos horrores históricos de Dan Simmons, da história alternativa de Harry Turtledove às aventuras de Ray Bradbury. E muitos fãs brasileiros nos repetiram ao longo dos anos: vocês deviam publicar no Brasil, não há aqui nenhuma editora dedicada ao fantástico como vocês. Este ano, em que celebramos 10 anos de atividade, decidimos que chegou esse momento. Sabemos que agora há muitas editoras no Brasil apostando no fantástico, a concorrência será feroz, mas sentimos 6 /// BANG!
que temos um trunfo: esta é a nossa praia. Da mesma forma que não publicamos fantástico porque está na moda, também não deixaremos de publicar quando passar de moda. Somos como vocês: lemos, conhecemos, amamos e defendemos o gênero. E poucos editores (dos dois lados do Atlântico) podem se gabar disso. Sabemos, melhor do que ninguém, que o fã de fantástico é exigente e crítico. Mas também sabemos que é o fã mais fiel que existe. Por isso, para conquistar seu respeito, admiração e fidelidade, comprometemo-nos a trabalhar e a oferecer mais do que a concorrência. A revista Bang! é isso mesmo. A nossa primeira oferta para os leitores brasileiros. Esperamos que seja do agrado de vocês e uma porta de entrada para a coleção Bang! que, acreditamos, mudará o gênero no Brasil. E agora chega de conversa e vamos mostrar o que preparamos para você.
Mago Aprendiz
Livro Um da Saga do Mago RAYMOND E. FEIST
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egundo Neil Gaiman, voltar a ler um livro favorito é uma das coisas mais infelizes e absurdas que podemos fazer. Afinal, um livro é como uma arca do tesouro da memória: apenas por pensarmos nele evocamos o lugar onde o lemos, as circunstâncias sob as quais o lemos, a música que estávamos ouvindo, a pessoa que éramos quando o lemos da primeira vez. Eu não podia concordar mais. Regressar a um livro favorito, ainda mais se lido na juventude, é arriscar destruir de forma irremediável uma memória doce e inspiradora. A primeira vez que li Mago, de Raymond E. Feist, foi há mais de vinte anos. Na época, tinha acabado de ler O Senhor dos Anéis,s passava várias horas por semana em animadas sessões de Dungeons & Dragons e recordo-me que foi uma leitura épica
Raymond E. Feist é um dos nomes mais importantes da literatura fantástica. Traduzido em mais de trinta países, Mago foi o seu primeiro livro e serve de base para uma vasta obra que tem conquistado os principais tops. Este número da Bang! vai apresentar a você não só o autor, mas também a sua obra e a importância que tem num dos gêneros mais fascinantes: a fantasia épica.
e absolutamente recompensadora. Para preparar esta edição tive de voltar a lê-lo, mas o fiz com o aviso de Gaiman bem vivo na minha memória. Felizmente, Mago recebeu-me de braços abertos. Não é tão bom como me recordava, é melhor. É nossa intenção que a coleção Bang! seja a casa da melhor literatura fantástica. Como tal, o título que inaugura a coleção tem de ser escolhido com muito critério. Não basta um bom livro de fantasia, precisamos de um livro realmente especial. Um clássico moderno que supere modas ou tendências do gênero e que tenha conquistado o crítico mais impiedoso de todos: o tempo. Magoo é esse livro. E duvido que haja melhor porta de entrada para a fantasia épica do que esta obra-prima de Raymond E. Feist. Se nos primeiros capítulos a juventude das personagens e a descrição do seu dia a dia nos pode fazer pensar que o livro foi escrito para um público adolescente, cedo nos damos conta de que isso é um truque de Feist. O tom juvenil está presente enquanto as personagens são jovens e serve apenas para tornar ainda mais dramáticos os eventos com que o autor cedo nos defronta na narrativa. Com o passar do tempo e o envelhecimento das personagens, nada sobra da inocência das primeiras páginas. E Feist consegue, em algumas passagens, levar o leitor às lágrimas. Com uma estrutura e linguagem acessível, Magoo conta-nos a vida épica de homens e mulheres fascinantes, heróis orgulhosos, de honra e lealdade inquestionáveis. Estão presentes elementos da fantasia clássica, como os elfos sábios e graciosos, os anões corajosos e festeiros, dragões de um poder inimaginável, magia complexa, batalhas épicas, vitória, perda, amor e ódio, numa rede extensa e intricada sem pontas soltas. Mas o ponto forte de qualquer livro, como todos os grandes autores sabem, são as personagens. E Raymond E. Feist consegue a proeza de criar uma infinidade delas que se tornaram ícones da fantasia épica. Pug, Tomas e Arutha jamais serão esquecidos. Sofremos com as decisões difíceis que têm de tomar, rimos com o seu humor inteligente e seguimos ao seu lado na estrada que os leva de uma juventude cheia de sonhos a um destino que abalará não um, mas dois mundos. Não é à toa que a BBC escolheu Magoo como um dos 100 melhores livros de todos os tempos,
na companhia exclusiva de nomes inquestionáveis do gênero, como Terry Pratchett, Neil Gaiman e, claro, J. R. R. Tolkien, cuja inspiração Feist reconhece no maravilhoso mundo de Midkemia com que nos recebe.
Tigana
Livro Um, A Lâmina na Alma GUY GAVRIEL KAY
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uando publicou O Senhor dos Anéis nos anos 1950 do século passado, J. R. R. Tolkien não podia sequer sonhar que estava criando alicerces tão profun-
Guy Gavriel Kay se iniciou no mundo literário ao ser convidado por Christopher Tolkien para editar “O Silmarillion”, de J. R. R. Tolkien. “Tigana” é uma de suas obras mais aclamadas e você vai poder conhecê-la melhor nesta Bang!. Gavriel Kay encontra-se traduzido em 25 línguas e recebeu numerosas nomeações e prêmios ao longo de sua carreira.
dos para a fantasia épica que, meio século depois, uma multidão de autores ainda o copiaria até à exaustão. Esses alicerces, hoje clichês absolutamente esgotados, são vários: a história dividida nos tradicionais três volumes; as características físicas e culturais dos elfos, anões e outras raças míticas; a inevitável demanda do herói; os poderosos artefactos mágicos; a figura do senhor das trevas; e, por fim, talvez a que mais marcou a fantasia desde então: a separação simplificadora entre o bem e o mal. Com Tolkien o mal é absoluto e corrompe absolutamente (corpo e alma). O bem, pelo contrário, é exclusivo aos heróis, quase sempre sem falhas, dúvidas ou arrependimentos. Guy Gavriel Kay, que procura constantemente transcender as fraquezas da fantasia, com Tiganaa marca um corte com essa tradição tolkiana do bem e do mal. Tiganaa está repleto de personagens em conflito com as suas próprias decisões e com o impato que essas decisões têm nos outros. Aliás, a grande força desta obra é precisamente a ambiguidade moral das suas personagens. Não são homens bons nem maus, são apenas homens, apesar do poder que lhes foi atribuído e que os coloca na posição de fazerem grande bem ou grande mal. Quem conhece a obra de George R. R. Martin sabe exatamente do que estamos falando. Vejamos as personagens: Alessan, o herói de Tigana, não se importa com os meios usados para atingir os fins. Mas será heroico, mesmo quando os fins são tão nobres como o resgate de um povo, recorrer ao assassínio e à própria escravatura? Brandin, o vilão, tem uma capacidade imensa de amar. Vive, inclusive, uma das mais belas histórias de amor da literatura fantástica. Mas é o ódio que o move durante grande parte da vida. Alessan e Brandin são personagens complexas e das mais fascinantes do gênero. Diga-se que estão em boa companhia: as personagens secundárias de Tiganaa formam um grupo rico, complexo e memorável. Prepare-se portanto para uma viagem inesquecível ao longo destas páginas. Mais do que estar na vanguarda de um movimento disruptor dos alicerces da fantasia, Guy Gavriel Kay oferece-nos um mundo de fantasia épica com a sua própria geografia, religião, política e estruturas sociais complexas. Numa península que em tudo nos recorda uma Itália medieval e BANG! /// 7
que segredos do passado vão aparecer, quem vai sobreviver ou até quem são os verdadeiros heróis. Resumindo: a ficção científica não podia começar de melhor forma na coleção Bang! Stephen Hunt é um autor de ficção científica e fantasia que vive no Reino Unido. Os seus livros já foram publicados no Canadá, Reino Unido, EUA e estão traduzidos para mais de doze línguas. A Corte do Ar é o primeiro livro de sua série steampunk centrada em uma Inglaterra vitoriana alternativa. Ao terminar esta Bang!, você estará apaixonado pelo mundo brilhante que Hunt concebeu.
onde o povo comercializa vinho, cereais e especiarias por terra e por mar, Tigana conta-nos uma história poética e poderosa sobre a força da política e da religião, o custo do sangue e o preço do amor.
A Corte do Ar STEPHEN HUNT
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e vivêssemos num mundo steampunk, talvez algum cientista louco tivesse criado um diversômetro: uma espécie de chapéu-pensador do Professor Pardal, cheio de fios, rodas dentadas e uma chaminé com buzina, que colocássemos na cabeça e medisse a nossa diversão enquanto líamos um livro. Seria uma forma insólita e autêntica de fazermos crítica literária. E se eu tivesse usado esse diversômetro nas duas vezes em que devorei A Corte do Ar,r garanto a vocês que o chapelinho tinha cuspido fagulhas, buzinado que nem um louco e lançado colunas de fumaça nos céus. Sim, A Corte do Arr é assim tão bom! Esta obra-prima de Stephen Hunt inaugura a ficção científica na Coleção Bang! Dos milhares de títulos que poderíamos ter escolhido, a responsabilidade recaiu neste por uma simples razão: A Corte do Arr é uma odisseia frenética e inteligente que satisfaz leitores de fantasia, ficção científica e steampunk. Onde bandidos, aventureiros, bordéis luxuosos, 8 /// BANG!
assassinatos, balões nos céus e órfãos em fuga ganham vida e conquistam os nossos corações. Comparável em ambição às obras-primas de Philip Pullman (A ( Bússola Dourada), a Alan Moore (A Liga Extraordinária), a ou Susanna Clarke (Jonathan Strange & Mr. Norrell), l a crítica não exagerou quando disse que A Corte do Arr poderia ter sido escrita por Charles Dickens e Jack Vance... numa colisão entre as melhores letras inglesas e a fantasia mais espetacular. A referência ao imaginário de Dickens é óbvia: nomes, estratificação social, bairros miseráveis e glórias bolorentas do passado dão um ambiente vitoriano a A Corte do Ar.r Mas são os conceitos que dão forma ao livro que se destacam pela sua avalanche de criatividade. Dos vaporhomens (fascinante raça de máquinas que lutam pela sua autonomia e que pensam, sentem, possuem alma e até os seus próprios deuses) aos encantados (humanos com superpoderes de origem mágica); dos cantores-mundo (uma espécie de polícia política mágica) às organizações secretas que observam tudo o que se passa a partir dos céus; das intrigas parlamentares às máquinas tão extravagantes que parecem saídas da cabeça de H. G. Wells ou Júlio Verne. A ação é digna de um filme de Indiana Jones e gira em torno de dois jovens, Molly e Oliver, que têm de enfrentar um mal antigo que se julgava desaparecido. O leque de personagens secundárias e, mais importante, de enredos secundários é fascinante e complexo, deixando o leitor sem saber o que o esperar,
Depois vem muita coisa boa, porque queremos que a Coleção Bang! seja uma referência na literatura fantástica. Em 2014 a fantasia vai continuar com gigantes como Ursula Le Guin e Terry Brooks. A ficção científica vai apresentar autores revolucionários como Ian McDonald. Mas quem gosta de George R. R. Martin e de sagas repletas de personagens, muita emoção e morte a cada esquina vai ter uma surpresa quando lançarmos Steven Erikson. Deixamos aqui a capa para abrir o apetite: E, claro, as
sagas de Mago (fabulosa capa para o segundo volume: Mago Mestre), e Tigana e a epopeia steampunk de Stephen Hunt vão continuar. Prepare-se, queremos que 2014 seja um ano inesquecível. Um abraço e votos de excelentes leituras!
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maginem um herói de fantasia, à la Conan, em um mundo recheado de elfos, fadinhas, orcs e deuses sedentos por sacrifícios de sangue. Um mundo onde a magia funciona com o mesmo rigor de uma equação matemática. Banal? De modo algum. Hari Michelson é um ator contratado pelas Mega Corporações em um futuro próximo da nossa Terra, onde as massas proletárias se alheiam de uma vida de penúria e exploração capitalista, com espetáculos televisivos de jogos violentos e massacre. Sua missão? Passar para o tal mundo de fantasia, OVERWORLD, através de um buraco de minhoca, e massacrar, durante um período de tempo limitado, tudo o que são elfos, feiticeiros, Princesas Guerreiras e Senhores das Trevas. Como um jogo de computador que se tornou realidade. Os direitos das fadinhas e dos elfos? Ele não quer saber, pelo menos não de início. O que as Corporações realmente desejam é explorar os recursos naturais desse novo mundo. Minerais, petróleo, urânio e água não contaminada. Com um humor ácido e uma feroz crítica social ao sistema de classes anunciado pelo capitalismo selvagem, Matthew Stover diverte-se desconstruindo todos os clichês dos mundos de fantasia que infelizmente começaram a preencher as estantes de nossas livrarias com um excesso de livros água com açúcar. A Terra Média de Tolkien nunca mais será a mesma depois da “visita” envenenada deste ciborgue ultra-high-tech que não mede esforços para subir na pirâmide social do pesadelo corporativo deste nosso futuro já tão próximo. A vida é dura para os atores. Simplesmente imperdível.
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teven Utley faleceu recentemente, portanto nunca mais teremos o prazer de voltar atrás no tempo, até à desolada Era Siluriana. Felizmente, restam-nos duas coletâneas magníficas, repletas de contos e noveletas, nostálgicas, intimistas, exuberantes, sobre os viajantes temporais que resolveram explorar esse passado onde só existe vida marinha e os continentes não passam de extensões de bolores e lama, onde o próprio oxigênio é escasso. Esta é a era dos escorpiões e das trilobitas e o início da conquista da terra firme por criaturas cheias de couraças, patinhas e olhos pedunculares. Esqueçam os Tiranossauros Rex e os espertos Velociraptores. Esqueçam as florestas do Jurássico e o grito ou trinar dos répteis gigantes. Em Silúria não há “nada”. Reina o silêncio e a solidão. Em Silúria, só estamos “nós”, e é precisamente sobre os conflitos humanos de quem resolveu se refugiar no passado profundo, que tocam as narrativas do Steven Utley. Com gênio e maestria. Na companhia de escorpiões, centopeias e aracnídeos. E que golpe de mestre, este de criar histórias maravilhosas no meio da cinzentude, do vazio e da desolação. Será que tenho de me repetir? Simplesmente imperdível.
Um dos autores norte-americanos mais veneráveis da literatura fantástica faleceu este ano aos 96 anos de idade. Embora nunca tivesse sido um autor de best-sellers, Jack Vance era um escritor prolífero e um dos mais intrigantes no gênero, com mais de 60 livros publicados. A sua mais famosa série, The Dying Earth [A Agonia da Terra], trouxe-lhe a admiração de muitos leitores, mas também as séries Lyonesse ou Demon Princes [Príncipes Demônios] influenciaram autores como Ursula Le Guin, Michael Moorcock, Michael Chabon e George R. R. Martin. Venceu três prêmios Hugo, um Nébula e um World Fantasy Award pela sua carreira. Tornou-se Grande Mestre da Ficção Científica em 1997, pela SFWA (Science Fiction Writers of America).
Horror, fantasia ou ficção científica não ofereciam segredos para este gigante da literatura do gênero. Embora hoje seja lembrado principalmente pelas numerosas adaptações de sua obra Eu sou a Lenda, teve muitos outros romances adaptados para o cinema e foi também argumentista de TV nas míticas séries The Twilight Zone e Star Trek. Citado por Stephen King como a maior inspiração para a sua carreira de escritor, Matheson ganhou o World Fantasy Award e Bram Stoker Award pela sua contribuição para a literatura fantástica.
Se alguma vez houve um autor muito amado na ficção científica do Reino Unido, o seu nome era Iain M. Banks. O câncer terminal diagnosticado no autor escocês no início do ano foi um golpe duro para seus inúmeros fãs que perderam, poucos meses depois, um autor inspirador e o criador da série Cultura, sobre uma sociedade interestelar futurista de 9 mil anos, controlada por inteligências artificiais. Era também um reconhecido autor de thrillers sob o nome Iain Banks, tendo estabelecido a sua reputação com o seu primeiro romance The Wasp Factory, em 1984.
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m virtude de uma série de evidências históricas, nós lusófonos temos certeza quase absoluta de que os navegadores portugueses foram os verdadeiros descobridores da América. No entanto, o fato é que, em fins do século XV, Portugal estava muito mais interessado em descobrir o caminho marítimo para as Índias do que com o continente americano. Desses fatos cruciais, todos sabemos. Porém, e se as coisas tivessem acontecido de forma diferente? E se os navegadores portugueses não tivessem conseguido dobrar o Cabo da Boa Esperança para atingir o Oceano Índico? Bem, então, é possível que o Novo Mundo houvesse sido descoberto e colonizado apenas pelos portugueses, sem a participação dos espanhóis. Imaginemos, por exemplo, como ponto de divergência neste nosso pequeno exercício de história alternativa, que Bartolomeu Dias houvesse desaparecido sem deixar vestígios ao tentar transpor o Atlântico Sul rumo ao Índico. O naufrágio da flotilha comandada por Dias no Cabo das Tormentas em 1488 geraria duas consequências imediatas: Em primeiro lugar, sem notícias do paradeiro de Bartolomeu Dias e, à falta de alter10 /// BANG!
nativas viáveis de curso prazo pr para chegar às Índias, El-Rei de Portugal, al, Dom João II, I contrariando seu conselho de Estado, decide aceitar a proposta estapafúrdia do navegador genovês Cristóvão Colombo de chegar às Índias navegando para o poente. Em consequência dessa decisão tecnicamente equivocada, Colombo acaba por descobrir a América sob bandeira lusitana. Em segundo lugar e pior: falhando em descobrir o caminho marítimo para as Índias em fins do século XV, os portugueses adiam por três décadas a ambição de controlar o monopólio do comércio das especiarias. Em compensação, na ausência dos lucros fabulosos com tal monopólio, há muito o que descobrir, explorar e conquistar no Novo Mundo. Se não vejamos: Colombo faz sua primeira viagem e descobre a América em 1490. Em sua segunda viagem, no ano seguinte, o almirante genovês descobre Cuba e Lusitânia (Hispaniola, em nossa linha histórica), dando início à colonização e à exploração econômica das Antilhas. Afinal, os portugueses já estavam bem mais acostumados a lidar com arquipélagos de ilhas atlânticas do que os espanhóis e têm êxitos maiores em tais empreendimentos. Paralelamente, Gaspar Corte-Real explora o litoral do Novo Douro (Nova Inglaterra) na Cabrália do Norte em 1498 e Pedro Álvares Cabral descobre a Terra do Cruzeiro
do Sul, posteriormente rebatizada ada em sua homenagem. O primeiro contato entre navegadores portugueses e pochtecatl mexicas se dá na Península de Iucatã em 1 5 0 4 , Afonso de despertando a cobiça dos lusos Albuquerque para as riquezas de Anáhuac. De fato, entre 1508 e 1510, Affonso de Albuquerque (cognominado “Affonso o Grande”) avassala o Reino Mexica para Portugal, tornando-se o primeiro Vice-Rei do México. Em presença de Albuquerque, o Tlatoanii Motecuhzoma II jura vassalagem a Dom Manuel o Venturoso. Esse monarca luso iria se tornar posteriormente conhecido na Europa pelo epíteto de “Senhor dos Sete Mares”. Entre os mexicas, Dom Manuel é cognominado de “O Rei dos Reis”. Oito anos mais tarde, Fernão de Magalhães atinge o Oceano Pacífico e estabelece o primeiro contato direto dos portugueses com o Tahuantinsuyu (Império Inca). Os emissários do Inca Huayna Capac (14501525) trocam presentes com os portugueses. No comando de uma pequena comitiva, Magalhães é recebido na corte do Sapa Inca em Cusco nas Alturas.
A diplomacia e as políticas lusas em relação aos povos e culturas avassaladas neste cenário alternativo diferem sobremaneira da forma como que os castelhanos lidaram com essa grave questão em nosso contexto histórico. Sobretudo no que se refere aos grandes impérios pré-cabralinos. Em vez de destruir t a i s impérios, os lusitanos os avassalariam, à semelhança do que realmente fizeram com os reinos da Península Indiana de nossa linha histórica. Aliás, de certo modo, a conquista dos grandes reinos das Cabrálias teria sido mais tranquila e amena para os portugueses do que a conquista da Índia. Para manter os vínculos de lealdade com seus novos vassalos, já em 1511, cerca de quinhentos teuclahtohh (nobres hereditários) e teteuctinn (lordes) mexicas e acolhuas, filhos da mais elevada nobreza da Tríplice Aliança de Anáhuac, são levados para Portugal a fim de receber educação cristã. A fina flor das nobrezas mexica e acolhua se assombra ao desembarcar em Lisboa a Branca após meses a bordo das caravelas de seus suseranos. Em verdade, não obstante o fato de receberem educação esmerada e tratamento condizente às suas posições de fidalgos, esses teteuctin constituem de fato reféns de luxo. Sua estada na Europa garante que os tlatoquee mexicas e aliados nem sequer cogitem se revoltar contra El-Rei. Quando enfim regressam a Anáhuac alguns anos mais tarde, esses jovens mexicas e acolhuas já se encontram lusitanizados o bastante para servir em postos de comando intermediário nos exércitos de El-Rei. Já as fidalgas mexicas se tornam aptas a desposar oficiais lusitanos. Talvez até mesmo alguns dos maiores comandantes das Três Cabrálias, como Affonso de Albuquerque e Vasco da Gama, ousassem desposar as mais formosas e bem-nascidas dessas beldades ameríndias. Se, ao contrário dos conquistadores castelhanos nas Américas, os suseranos portugueses nas Cabrálias, em vez de obliterarem os Impérios Inca e Asteca, alistassem seus vassalos lusitanizados para auxiliar a metrópole a travar suas guerras no Novo Mundo e algures, é de se supor que, a médio prazo, representantes das hierarquias nativas andinas e mesoamericanas acabassem por travar contato umas com as outras. Desses contatos, adviria uma troca de experiências fecunda. Se os portugueses de fato possuíssem as Três Cabrálias e se tornassem senhores absolutos de todo o ouro asteca e da prata inca, é de todo provável que tal proeza provocasse despeito nas demais potências eu-
ropeias, sobretudo, a inveja de Castela. Por outro lado, sem as conquistas americanas, é de se supor que a união entre Aragão e Castela se visse em dificuldades após a morte da Rainha Isabella. Admitindo que a Espanha lograsse se manter unida, talvez um monarca descendente dos Reis Católicos armasse uma esquadra para tentar se apoderar de algumas possessões lusitanas no Novo Mundo. Se tal ocorresse, os infantes e marinheiros incipientes de Castela teriam que enfrentar os veteranos lusos e, quiçá, mexicas, arregimentados por Affonso de Albuquerque e Vasco da Gama. Com o tempo, é possível que os lusos se vissem tentados a influir em contendas travadas por seus vassalos. Munidos de cavalos, pólvora, espadas de aço e conselheiros lusos, os exércitos do Tlatoani Montezuma II conquistariam vitórias decisivas sobre os tarascas. O Reino Tarascatl iria se tornar Estado vassalo do Império Culhua-Mexica. Embora o soberano Tangaxoan III pudesse até ser mantido no trono tarascatl, seria obrigado a pagar tributos pesadíssimos à Tríplice Aliança Tenochilitão-Texcoco-Tlacopão. Do outro lado dos Andes, é de todo possível que forças lusitanas e/ou lusitanizadas desempenhassem papel relevante na guerra civil fratricida travada no Império Inca entre os irmãos Atahualpa e Huáscar. Com tantas batalhas a travar no Novo Mundo, tantas conquistas e descobertas a empreender, é compreensível que o caminho marítimo para as Índias só fosse desbravado lá pela terceira ou quarta década do século XVI. A península indiana seria provavelmente atingida após a travessia do Oceano Pacífico, por uma esquadra largando de um porto qualquer da costa oeste da Cabrália do Sul. Então, quando os navegadores portugueses enfim chegassem às Índias, desembarcariam em Calicute ou Cochim na qualidade de senhores legítimos do Novo Mundo,, embaixadores de El-Rei de Portugal, o Rei dos Reis, Senhor dos Sete Mares; re-
Gerson Lodi-Ribeiro publicou duas noveletas na versão brasileira da Asimov’s: a FC hard “Alienígenas Mitológicos” e a história alternativa “A Ética da Traição” que abriu as portas do subgênero no fantástico lusófono. Finalista do Sidewise Awards (2000) com o conto “Xochiquetzal”; autor das noveletas premiadas “O Vampiro de Nova Holanda” (Prêmio Nova 1996) e “A Filha do Predador” (Nautilus, 1999 — publicada na “Sci Fi News Contos”), das coletâneas “Outras Histórias...”, “O Vampiro de Nova Holanda, Outros Brasis, Taikodom: Crônicas” e “As Melhores Histórias de Carla Cristina Pereira”, e dos romances “Xochiquetzal: uma Princesa Asteca entre os Incas” (história alternativa) e “A Guardiã da Memória” (FC erótica — Prêmio Argos 2012). Presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica nos biênios 1999-2001 e 2001-2003. Editor das antologias “Phantastica Brasiliana”, “Como Era Gostosa a Minha Alienígena!”, “Erótica Fantástica 1”, “Vaporpunk”, “Dieselpunk” e “Solarpunk”.
presentantes do maior império marítimo da história. Essa epopeia magnífica nas Cabrálias e algures jamais cairia no esquecimento, pois João de Barros, vero Tito Lívio lusitano, publicaria nos primeiros anos da segunda metade do século XVI, sua obra monumental, Décadas de Cabrálias.s
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sta é uma questão que, mesmo na segunda década do século vinte e um, ainda é muito discutida na academia, nos jornais e nas revistas da moda, e está sempre sob o olhar da mídia – seja na pauta do dia dos jornalistas especializados em tecnologia, seja nas colunas de cotidiano, bem-estar e até saúde, onde a questão do livro digital e do aparelho de leitura digital (ou leitor digital, conforme o chamaremos de agora em diante nestas páginas) não raro provoca espanto e desconfiança, como se esse tipo de objeto técnico fosse algo maléfico ou, na melhor das hipóteses, algo cuja utilização requer muito cuidado, e deveria ser supervisionado por adultos, ou melhor: por adultos especializados. Mas acho que esta revista é o último lugar onde esta pergunta deveria ser feita. Afinal, nós, leitores e escritores de ficção científica, pensamos em modos alternativos de leitura há tempos. Das bobinas de shigawiree de Duna aos implantes cerebrais dos livros cyberpunks, passando pelos PADDs® de Star k (e essa é só a pontinha de um imenso iceberg), a ficção Trek fantástica literária e cinematográfica nos oferece uma pletora de artefatos de leitura criados para facilitar a nossa vida. Por que deveríamos sequer pensar duas vezes quando finalmente nos é oferecida a chance de botar as mãos num dispositivo que pode armazenar centenas de livros e nos permite alternar entre diversos livros sem sair do lugar mais rápido que um
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computador desktop ou mesmo um notebook, com todos os benefícios (como efetuar uma busca por determinadas palavras ou fazer anotações no próprio texto sem riscar as palavras ou manchar o papel)? A história dos meios de leitura é fluida; ela nunca foi (trocadilho intencional) escrita na pedra. Das tabuletas de argila dos sumérios aos papiros egípcios e pergaminhos iluminados medievais, e quase finalmente, aos códices (ancestrais diretos de nossos livros físicos atuais) a humanidade sempre tentou aprimorar a maneira de ter um acesso melhor à palavra escrita. Por mais estranho que possa parecer aos ouvidos e olhos de hoje, nem todos gostavam da ideia de um suporte escrito para o registro da palavra. Platão pode ter sido o primeiro, ao menos na história registrada do Ocidente, a sugerir que escrever era sinal do declínio da civilização, pois ao por palavras em um meio de transmissão físico, perderíamos nossa capacidade de memorizar – e assim a transmissão oral da história chegaria ao fim. Platão não estava totalmente errado, mas A Ilíadaa e A Odisseia, de Homero (ainda que se dispute ao autoria dessas obras e a existência de um poeta com esse nome, mas a antiguidade dessas narrativas não é disputada), já foram desde então traduzidas para o modo escrito, e depois disso para o meio impresso (e hoje, para o meio audiovisual, graças ao cinema e à internet). Essas histórias não se perderam para nós, mesmo depois de dois mil e quinhentos anos. Parafraseando Emily Dickinson, um livro é um livro é um livro é um livro. Será que ele realmente precisa estar contido entre as capas do códice? Por mais que eu tenha amor a um livro físico, com sua textura e seu cheiro (sim, assumo o fetiche, se é que isso é fetiche), e o nome desta coluna é tanto uma homenagem quanto uma referência ao famoso livro de Anne Fadiman, Ex-Libriss (que adoro e releio volta e meia – em sua versão física, vejam bem), ainda assim tenho mais amor pelo que seu interior encerra. Sou um arúspice de livros: leio as frases como um adivinho da Roma Antiga lia o futuro nas entranhas dos animais sacrificados; eu retiro as tripas de parágrafos do corpo do livro e decifro seus significados ainda quentes, fumegantes. Às vezes os devoro. Outras, os compartilho com outros, pois senão onde está a graça, onde o prazer? O que sou, ao fim e ao cabo, antes mesmo de ser escritor, é
um leitor de histórias. Histórias contadas por pessoas desde tempos imemoriais, por homens e mulheres que usaram seus cérebros, suas vozes, seus corpos, suas imaginações, para contar a outros homens e mulheres coisas que viram ouviram, sentiram ou simplesmente pensaram – pois esse é o poder da mente. Então, quando finalmente essas histórias começaram a ficar disponíveis em formato digital, também eu me tornei disponível para lê-las assim, tamanha a minha curiosidade. Não foi Capaa Ex-Libris amor à primeira vista, mas de Anne Fadiman certamente começou com uma grande fascinação: sempre senti isso por computadores. Desde a adolescência, nos tempos de escola técnica, (quando comprei meu primeiro computador, um TK-82C made in Brazil,l um análogo do Sinclair britânico) rapidamente me acostumei a ele, e depois disso ao MSX Gradiente, e depois finalmente a um PC 286, meu primeiro com sistema operacional Windows, seguido pelo 386, pelo Pentium e o mundo da Web – mas sem abrir mãos dos livros de papel. E foi assim que me tornei fã do livro digital, ou e-book, que durante anos só podia ser lido nos desconfortáveis formatos de HTML ou PDF (ou em códigos ligeiramente melhor elaborados e mais confortáveis dentro de CD-ROMs), para, a partir de 2007, começarem a ser substituídos universalmente por outros tipos de arquivo com formatação mais elegante como o ePUB, o .MOBI e o kf8 (este último criado em 2011 para ser usado com o Kindle Fire). Nesta coluna, a intenção é falar não de títulos específicos (embora isso possa ser feito de vez em quando para ilustrar um exemplo); o que pretendo é falar um pouco sobre e-books e e-readers a partir da experiência de um escritor que é usuário ávido desses leitores (possuo três, sem contar os aplicativos para celulares). Aqui vocês lerão um pouco sobre minhas descobertas, alegrias, decepções, reflexões. Boa leitura.
Nos últimos anos, as editoras brasileiras têm corrido atrás do seu histórico atraso em relação aos clássicos da literatura fantástica. Por isso, autores como Howard, Lovecraft e Dunsany apareceram nas prateleiras, A companhia negra de Glen Cook finalmente teve uma edição nacional e, impulsionado pela série da HBO, George R. R. Martin se tornou um fenômeno de vendas no país. A obra de J. R. R. Tolkien tem sido constantemente reeditada, com edições especiais em lançamento simultâneo com o resto do mundo. Porém, ainda faltam muitas obras, séries completas que estão longe do público. Com a chegada de Mago Aprendiz a Saída de Emergência estreia no Brasil preenchendo uma grande lacuna. 14 /// BANG!
Obra: Mago - Aprendiz Autor: Raymond E. Feist Gênero: Literatura Fantástica Editora: Saída de Emergência Tradução: Cristina Correia Preço: R$ 39,90
À
primeira vista, Midkemia pode parecer com um mundo como aqueles que estamos familiarizados a ver em leituras e filmes. A vida é dura para os camponeses e servos, nobres disputam o poder – às vezes na ponta de uma espada – elfos vivem semiisolados nas florestas e anões exploram minas. Toda essa sensação de paz se quebra quando Pug, o aprendiz de mago de Crydee, e seu amigo Tomas, um jovem soldado, encontram um estranho navio naufragado. Sem saber, os dois revelam um plano de invasão que irá colocar todo o seu mundo em perigo e começar a terrível Guerra do Portal. É assim que começa uma das mais
importantes séries da literatura fantástica mundial. Com vinte e cinco livros lançados (e alguns contos e histórias curtas), Raymond E. Feist tornou-se um dos escritores mais vendidos do gênero contando as desventuras dos dois amigos em meio ao turbilhão que muda todo o seu planeta. Participam de batalhas épicas e encontram estranhas criaturas, ao mesmo tempo em que procuram desvendar o mistério que trouxe os tsurunai ao seu mundo. A série, chamada de Riftwar Cyclee – (Ciclo da Guerra do Portal), foi encerrada em 2013 com o lançamento mundial de Magician’s End, d fechando um ciclo de três décadas de mais de 15 milhões de exemplares vendidos. Pode parecer impossível, mas todo esse sucesso começou por acaso. Raymond E. Feist, filho adotivo do produtor de cinema Felix Feist, criou o seu universo como cenário para os jogos de RPG
(Role Playing Games) de seu grupo de amigos na faculdade, ainda na década de 1970. Inspirado pelas aventuras dos personagens e pelo universo que os envolvia, começou a rascunhar o seu primeiro romance no começo da década de 1980.
Foi só em 1982 que publicou seu primeiro livro, Magician, que conta o começo da Guerra da Brecha. O romance tornou-se um sucesso de vendas, ganhou três sequências diretas (Silverthorn, A Darkness at Sethanonn e Magician’s End) d
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e deu origem a todo um ciclo de histórias, espalhadas por livros, quadrinhos e jogos para computador. Raymond E. Feist foi tão bem-sucedido que, no décimo aniversário da publicação de ‘Magician’, lançou uma edição especial, dividindo o livro em dois com – muito – material extra. E é essa a edição, a preferida do autor, que é lançada pela Saída de Emergência como ‘Mago: Aprendiz’ e ‘Mago: Mestre’. O segredo do sucesso da série de Feist, que a fez atravessar três décadas e ainda atrair leitores hoje em dia, parece simples. Os livros combinam uma trama envolvente, bem detalhada e construída, com um cenário coerente que, ao mesmo tempo que nos é conhecido, guarda muitas novidades e surpresas. Mas talvez seu grande trunfo sejam os personagens. Seja na cidadela de Crydee, na cidade de Krondor, nos campos de escravos de Kelewan ou atravessando as minas de Mac Mordain Cadal, são eles que nos pegam pela mão e fazem a história acontecer ao seu redor. Suas emoções e problemas são reais, convincentes e suas personalidades são muito humanas, mesmo quando estamos falando de seres de outros mundos. São sempre personagens carismáticos, protagonistas ou não, que transitam com falhas e qualidades. Mesmo entre os inimigos, os tsurani, é possível encontrar pontos de identificação. Acompanhamos esses personagens no desenrolar da guerra que se aproxima. Com eles, vamos conhecendo a estranha raça dos tsurani, alienígena em um mundo que convive com trolls, goblins e kobolds. Descobrimos as terríveis brechas e seu poder de desafiar o tempo e o espaço (o que dá um gostinho de Ficção Científica à saga, já que é comum nesse gênero as histórias sobre os contatos, nem sempre pacíficos, entre duas raças de planetas diferentes). 16 /// BANG!
UM MUNDO RICO E COMPLEXO
A história começa em Crydee, mas logo se espalha por toda a Midkemia e chega a Kelewan, não só nos dois primeiros livros, mas na grande série que se sucede. Há vários lugares de interesse:
Crydee: A cidade de Crydee é sede do ducado de mesmo nome. É um posto avançado do Reino das Ilhas, no seu extremo oeste, na costa do Mar Sem Fim. Foi em suas praias que Tomas e Pug descobriram o naufrágio de um navio desconhecido. Elvandar: A principal cidade élfica fica escondida no meio do Coração Verde, a grande floresta ao norte do continente de Triagia. Totalmente composta por árvores gigantescas ligadas por pontes verdes, é protegida de
invasores por encantamentos e criaturas como dríades, lobos e ursos. Ilha do Feiticeiro: Já foi conhecida como ‘Insula Beata’, porém depois que o mago Macros, o Negro, fugiu para lá, os marinheiros passaram a evitá-la. Seus altos penhascos são encimados por um castelo, de cuja torre saem arcos de energia e ruídos medonhos. Nunca mais ninguém viu o feiticeiro ou sabe o seu destino, já que o único si-
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nal de vida são os raios e uma única janela iluminada do castelo. Krondor: a cidade na costa do Mar Amargo é a sede do ducado governado pelo Príncipe de Krondor, o herdeiro do Reino das Ilhas. Com isso, tornou-se uma das mais importantes cidades da parte oeste do reino, crescendo cada vez mais. O palácio, que fica no centro da parte murada, chama a atenção, pois fica no ponto mais alto da cidade. Mac Mordain Cadal: a mina abandonada fica debaixo das montanhas conhecidas como Torres Cinzentas. Um grande rio subterrâneo percorre a mina, que se conecta com passagens ainda mais antigas e inexploradas. Poucos se aventuram a atravessá-las, já que são habitadas por criaturas terríveis. Quem se arrisca, dificilmente consegue sair.
Quuan ando do era do r ap peena nas uum m b bê, be bêê, foi b foi ab fo baan nddo ona ona naddo o na beirra ddaa eest be stra st rada. da. Re da Reco colh lhid ido por mo po mon ngges, es, fo es foi le l vado vaddo va o attéé o Du Duqu Duqu que de que de Cryyddeee, e, quee o een ntr treg egouu par ara ra sseer cr cria iado do por or Mega Mega Me garr,, o coz ozin zin inhe heiirro, o, e sua ua mulh mu lher lh er. A Addot do otttad aaddo po por am amb bo os cco omo mo um fi filh llh ho, o, seu eu melho elh el ho o orr am amig igo o era era To er Tom Toma maas, s, filh fi lh ho le legí ggííttiim mo o dos os doi oiss e as aspi aspi pira rant ante nte a so nt olld dado. aaddo. o. No N o final al da iin nfâ fânc ânc ncia ia, o oss doi ois pa passssar aram ram m peello rituuall da Es ri Esco ollh haa.. En nqquuaant nto seu seu ami se am mig igo se segu egguuiu iu seeu sso onh nho, o, Pug ug ficouu suurrp prres resso ao a serr escol sco sc ollhi hido o como co mo apr pren endi diz ddee Kuullga diz g an n,, o veellh ho o mago ago da ag da cort co r e do do Duq uque ue. A vi vida da do jjo oveem aap prreen nd dizz de mago ma ggo o sof ofr fre reu uum ma ggrraan nddee rev evir iraavvol vo ollta lta t qua uanddo, uand o, juun ntto co com T To o oma maas,, enc m nco on nttrrouu um ba barc rco co ttssur uran ani peertto da p da ciddad a e. e. Sem em o saab ber ereem m, eessttaavvaaam m ddaand ndo iníc in íccio ício io à maaiior ior or avveentur ntur nt ura ddaas suuas as vid idas a ! Pu Pug é um Pug um r ap ra paaz iin nse nse segu egu guro ro e quuiiet etto, o, até o, té ttím ímido, ím iid do o,, maass quee sab be agirr co ag om m cor o ag ageem m quuaanddo a si situaç tuuaççãão o ped ede. e. Bom om ob obse bse serrvvaddo orr, ac acab caba ab ba ssee torna orna or nan nd do am do mig igo de de Fan an ntu tus, tu o ddrraaggonet oneette de on de eest stim st imaaçção ã do seeu m meest esttre re. Filh Fi lho do lh lho o cozin ozin oz inheir heeir h iro Me Megaar e su sua ua eesspo posa sa Maagg yyaa, T To om maas ccrres esce ceu uum m gar arot rot oto es oto espe espe pert rto e iirrre requ equ quuie ietto ie o. A o. Ass demai em mai as cria cria cr ianç anç nças nças as da ci cida dade da de o via i m cco omo mo líd der er naattuurral, al, p al peelo o seu eu caarriism maa,, e a nec eces esssiiddaade de de esta es tar se semp pree se me mexe xend xe en nddo o me meti tiam a eem m en nccrren nca cas – p paara ra as qquuais ais se ai sem emp mprree mpre arrrast arra raast s aavva va o aam mig igo P igo Puugg.. Deessddee sempr em mpr p e, e, Tom omaass tinh ti tinh nha do oiss son nh ho o os: s:: to orrna nararr--see um sso old ldaaddo e ve ver o oss elfo el fos. os. s. Se a Es Esco colh lha torn torrn to nou ou o prriim meeir iro rreeaallid idaadde, e, taalv ta lveezz o sseg lv egun eg ndo o não ão esttej eja lo eja long long nge ddee se re nge real eal alizar izaarr. iz r. O jo joveem so old ldad dad ado ap pre ren nddeu eu a usar saar be bem a es bem esp paada da, eem mbo bora ra ain inda nda da ten enha ha ceerrto ha o resspe peit ito po ito por ccaavvaallo os. s. Toma To mas é b beem mais maais is aalt lltto qu que seu seu cco se o omp mpanhe mp mpan anheeiro, an irro o,, além al lém ém de ter ter ca te cabe belo los lo oiirros os e olh lhos ho oss azu zuis zuis is.
Talvez depois de tudo isso ainda fique a pergunta “vale a pena ler um livro que saiu há mais de trinta anos?”. O bom de um clássico é que ele não envelhece. Está sempre atual, sempre tem algo novo a dizer para uma nova geração de leitores. Atualmente, a série de Raymond E. Feist traz de volta uma fantasia mais aberta, em que magos fazem bolas de fogo, dragões falam e tesouros mágicos podem mudar a vida de alguém – para o bem ou para o mal. Além disso, Mago: Aprendizz e Mago: Mestree são livros que falam sobre crescimento, transformação e as dores da mudança, que sempre vêm com a idade. E Raymond E. Feist tratou desse tema com uma propriedade que fez seus livros ainda serem tão relevantes, mesmo trinta anos depois. ONDE DESCOBRIR MAIS SOBRE O AUTOR:
— midkemia.wikia.com — crydee.com — elvandar.com
Ana Cristina Rodrigues, 30 e mais alguns anos é escritora, historiadora, editora, tradutora, professora e funcionária pública. Com vários contos publicados, tenta finalizar um romance. Tuita como @anadefinisterra e seu blog é http:// talkativebookworm.wordpress.com/
C ON CON CONTIN CO ONT TIN TI IIN N UA UA NA N A PÁG PÁ P Á G 18 ÁG 18
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Apeessar Ap ar da ap par arên arên ênci ca ddee um home homem ho mem ggo me ord rdo, o, o ma mago go e con nse selh selh hei eiiro ro ro ddo o Duque uque uq ue Bor orri ric de de Cryd Cr ryd ydee ee é um ho home home mem ágilil, co ág com re refl refl flex exxos os ráp rá piiddo os eem m bat atalha alha al h . Mesm Me smo co sm com su sua po p ossiiçã ção n naa corrte te duccaall, p prreffeerre mo m ra rarr em m um maa caba ca bana naa na fl flor oreessttaa próxi or ró óxi xima ma, juunt nto co com om Fa F nt ntus ntus us, us, sseeu drag ddrrag agon onete ete ddee est et stiim maaççãão o o.. Ba Barb rb rbud bud udo, o, o seuu iin nse nse sepa pará ráve áveel ca cach chim ch mbo bo par arec ece ce brot brrot otar otar ar do m meeio io de um uma ma fl flor ores or esta ta de ca cabe cabe belo elo los que que es qu escond co onddem m sua suaa boc ocaa.. F i tu Fo tutor to or do d s ddo ois is fillho hos do ho d Duqque ue e deesscco obr briuu no jo no ovvem em Pug ug um um ta tale ale lentto at até een ntã tão insu in nsusp suusp spei peeiitto o parraa a maggia pa ia.
O se senh nhorr de C Crryyd dee ee é uum m govver erna nan ntte juusstto o,, maass rííggido, iid do, o, que ue peede p de quuee as le leiiss sej e aam m ccuump mp pri rida ri ida das. as. s Deevvot o aaddo à fa fam míílilia, a, a mor orttee da duqquueessa C du Caath ath her erin ine o ddeeix ixou ou deessol olado, olad aad do, o, a pon onto to de se sete te an no os de dep po ois is de sua de ua mo orrrte te ainda te inda in d essttarr de lluutto o. Ao Ao ssab aberr ab ddaa esttranh ranh ra ha ddeesccob ober e ttaa de Pu Pug e T To omas, mass,, não ma ão heesi siito tou em to m aggiir e avviissarr aos os out utro r s se senh enh nhores orreess, s, prin pr inci cipa palm men ente ntee ao rreeeii R Ro oddrric icc.. T Teem tr trêêss filh ho oss:: Caarl rlin rlin ine, ine, e, Lya yam e Ar yam Ar ut uth haa.
A fi filh lha ma lh maiiss nov ova do do Duuqu D uquue de de Cry ryde d e sseemp mprree se aap prove ro ove v iitto ouu de ser de er a úni niccaa mul ulh heer da caassa paaraa terr o pai da ai e os doiis irr mã os mão oss à meerrccêê ddee suuaas vo v n nttaaddeess. A m em mã mo orr rreu qua uan uand nddo do el ela eerra ai aind nda mu muit ito no ito nova nova va eC Caarl rlin ine se in semp mpre pree se se re ressssen enti nti tiu de dessssa au dess ausêên ncciiaa, ccrresce eessce cend ndo vo volluunt ntar ario iosa ossaa e mim maadda. a. Aco cost ossttuum maadda a teer to toddo os ao aos se seuuss pééss, ssuurp pre reeen n nde ddeeueuu--ssee com om Pugg,, quuee ap Pu peessaar de de enc ncan ncan anta nta taddo o com m ela la, a, nã n o cceeddiia ao aos os seus seeuss caap priich hos os. In os. Intr trig riggadda, a, aapr prox pr oxiim mouu-sse ddo o ap apre pre rend ndizz de ma mago mago go, o, ccaaus usan saan ndo o ciúúme mes em mes m seeuu anti an nti tiggo o ami miggo o, o es escu cude ddeeir iro Ro Rollaand Rola nd. Ca Carl rlin ine é um uma ma jo oveem bo boni nita ta, de de o olh lhos lh os azzuuiss, qu que lleem mb bra ra mui uito oa sua mã su mãe, e, a fal alec ecid idda dduuques queessaa.. qu Lyam Ly Lyam m con onDo D iin nn nas aasscceeu eu no n o cas a telo teello o de de Cr Cryd ydeeee e é o he herrdddei eiirro o e fillho ho ho maais m i veellho ho do Du Duqu que Borrrric. Bo Borr ic. E ic En nsina ssiinaaddo o peelo p lo mes estr strre ddee arrm maass Faan F nn non, on n, o pa padr dre re Tu T lly lllly e o ma mago g K Kul uullgan, gan, ga n, /// BBAN 18 // 18 AANNGG!!
sem se mp pre re foii uma ma crian riiaan nççaa reeb beelldee e muuiita bel tas ve vezes veze zes ze teve te evvee de sseer caasttig igad ado do p peelo o seuu pai ai. O p po ovvo o aaddor ora o seu seu p se po orte rrtte el eleg eleg egan gan nte te e a suuaa per erso sonali naalida n liida dade de gen ge neero rosa sa. sa. sa Op prrinci inci in cipe pe Aru r uth tha é o fi filh lho lh ho ma mais is jove jo vem do d Duq uquuee. É ddeesc scri cri rito o como om mo se send n do meela m lan nccól ólicco e me meno os afáv af fávvel el do qu que sseeu iirr mã mão m mão maais is veellho ho, Lyyam L yam m. Co Como o fi fillho ho maaiiss no mais ovvo eerra es espera espe peera p rado o quuee segguuiiss sse a ccaarr sse rreiira ra mililitaar nu mi mili num b baaro ron naato to daass frro ont ntei eiraas, s, mas a o desttino de in no rreese ser erv r vvou ouu-l -lh hee mui uita tas as ssuurp prreesaas. s. Só um ma vez naa vidda teeve ve ve de se senttir ir o ciin nto o de se seu p paaii.. As ori As rige gens ns do jjo ove vem ccaaça aççaado dor sãão neebuulo n losa ossaas. s. Criad riado ri addo em m um mo mosstteiro eiro ei ro na fronte fr onte on t irra co co om m as as teerrra ras as ddo os el os elfo ffo fos, os, s, qua uan nd do ch heggo ouu a épo oca ca da su sua Esscco E olh haa,, foi oi co olloc ocad ado peello p o duq uque uque ue co om m mo o ap aprreen nddiz iz do Gu Guaarrda da-C Caç açaass. Cons Co n eg egui uiu se seu n no ome me po orr sua ua perrííccia ia com mo arrco ar cco o lon onggo ongo o, cons co ons nsid ider eradda in inig iguuaaláávveel no o Reino eeiino no. Oss adu O dult dult lto oss de Cr Cryyd dee ee sem mpr pre o vi viraam cco vira om ddeesccon on nfi fian ança ç , po poré rém as a ccri rriian iaan nçaas o aaddor do orram am, esta es sta tan nddo do sseemp mpree ao seeu re reddo or,, que uerreen nddo ouvi ouuvviir hiist h stór órriaas – aass sob obre re elf lfo oss são o as p prreffer erid rid idas as de To T oma mass.. A Seenh ho orra do dos E dos Ellfo os da Flo da orreest sta dee Elv lvvan an nda dar peerddeuu seeuu maarriddo, p o, o rei A re Aiiddaan, n, e man antéém seeu lu seu luto o por or quuaasee dua uass déccaaddaass..É dé .É co ons nsid sid ider erad rad ada ddo on naa de um ma be b lleeza za imprres im esssiio on nan antee, m meesm mo paara p ra os p paaddrrões õees él õ éllfi ficco oss:: allttaa,, rui uiv ivvaa e co om m gra rand ndes ndes es olllho o hos az ho azuuiis, s, sseu eu so eu orrrriiso o é caap paz az de ddo omi min naar um uma muullttid m dão. ão o. P Po oréém, m, pou ouco cos h huuma mano nos tive tive ti veraam o prraazzer p er de vê vê-la, vê-l -la, -l a, poi ois m muuiitto ra raraame ment nte te ddeeix ixa xa a ssuua cciida dade de no me meio eio o da fl flor orres esta sta ta. Um sol Um oldaado do quuee vvei eeiio de out de utro utro ro mundo un ndo do, é cco onhec nh hec ecid ido pe pelaa suuaa feero rociida daddee e gra rand and nde prro p oeezaa em ba battaalh lhas as. Descon De Desc sco sc on nhe hece ce-s e-s -se o tipo tipo ti po de comand co maando m nddo e h hiierrarqu arqquuiiaa quuee ar r sp re pei eitaam m.. Os so old ldad dad ados do oss tsurraan ts ni ffo orm orm mam m um eexxéérrcciitto o tem emido ido e p id po ouucco ou ou nada nad na da se se sabe sab sa bee sob bre re os se seus euuss ob bjjet etiv ivoss em M Miidk dkem miiaa.
{ A rústica cidade de Crydee é um posto avançado, na fronteira ocidental do Reino. Está localizada na foz do Rio Crydee junto ao Mar Interminável, no trecho conhecido como Costa Extrema. Em seus primeiros anos, era um forte keshiano, mas foi conquistada e transformou-se em uma fortaleza do Reino, um ponto vital de defesa. Tudo o que, anteriormente, era a velha província de Bosania do império keshiano, à exceção das Cidades Livres de Natal, tornou-se o Ducado de Crydee. Muitos dos maiores heróis de Midkemia podem chamar Crydee de lar – os mais famosos deles são Pug, Tomas, Arutha e Martin do Arco.
O Coração Verde é a parte mais profunda das grandes florestas cercadas pelas Torres Cinzentas e pelo Rio Crydee a leste e a oeste, pelo Lago do Céu ao norte e pela Costa Extrema ao sul. O Coração Verde é considerado um lugar de trevas e presságios, e desde que foi descoberto tornou-se um local de grandes perigos. A maioria teme os domínios da Irmandade das Trevas, ou Moredhel, que vivem em suas mais profundas clareiras. Os Moredhel da floresta, embora sejam um povo perigoso de se encontrar, não têm exatamente o mesmo nível de agressividade testemunhado em seu clã da montanha ao norte.
As Torres Cinzentas são uma cordilheira que se estende do sul a partir do Lago do Céu até as Cidades Livres. Antes da invasão dos Tsurani, as Torres Cinzentas eram o lar de
} uma grande população de Moredhel. Os Anões do Oeste, sob o estandarte de Dolgan Tagarson, da linhagem Tholin, chamam as Torres Cinzentas de lar. Há minas, cavernas e túneis antigos sob essas montanhas. Muitos foram cavados pelos Anões, enquanto procuravam ferro e ouro. Alguns são naturais, criados quando as montanhas nasceram. E outros já estavam lá quando o povo Anão chegou às Torres Cinzentas, cavados só os deuses sabem por quem.
Ilha do Feiticeiro está localizada no Mar Amargo, entre as ilhas de Queg e Krondor; é um lugar misterioso e aterrorizante para os marinheiros. Lar de Macros, o Negro, considerado por alguns o maior feiticeiro que o mundo já conheceu. No ponto mais alto da ilha, um castelo negro – uma coisa de aparência malévola com quatro torres e muros de pedra – recorta-se contra o céu. O castelo é a fonte de terríveis arcos de energia, raios prateados que sobem alto no céu, desaparecendo por entre as nuvens, acompanhados por zunidos barulhentos que ferem os ouvidos. Uma luz azul brilha pela janela de uma de suas altas torres, mirando o oceano.
Krondor é o lar tradicional do herdeiro legítimo do trono do Reino das Ilhas. Localizado na costa leste do Mar Amargo, é a capital do Reino Ocidental. Antigo entreposto comercial da cidade keshiana de Bosania, tem uma longa e turbulenta história, em que numerosos príncipes e duques batalharam pelo controle da cidade.
Veja, na página seguinte, o mundo de Midkemia BANG! /// 19
20 ///// BAN 20 ANGG!!
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///// 2211 BBAANG NG! ///
Rillanon é a capital do Reino Oriental, e também a capital de todo o Reino das Ilhas, às vezes, é citada como “A Cidade do Rei” e “A Joia do Reino”. Rillanon ergue-se como um amontoado de campanários altos, pontes graciosamente arcadas, e estradas que se curvam gentilmente, espalhadas no alto de montanhas onduladas. Sobre torres heroicas, estandartes e bandeirolas esvoaçam ao vento, como se a cidade celebrasse o simples fato de sua própria existência. A cidade-ilha foi construída sobre muitas montanhas, com diversos riachos descendo para o mar. Parece aos visitantes ser uma cidade de pontes e canais, tanto quanto de torres e campanários. As construções são revestidas de blocos de pedra coloridos, muitos de mármores e quartzo, dando-lhes uma suave cor branca, azul ou rosa. Os paralelepípedos das ruas são regularmente limpos, e mesmo as sarjetas são livres de lixo e entulhos vistos em outras cidades. Um rio corre diante do palácio, de modo que a entrada foi construída sobre uma ponte alta que forma um arco por sobre a água até o pátio principal. O palácio é uma coleção de imensas construções ligadas por grandes saguões que se esparramam no alto da encosta no centro da cidade. A construção é revestida de pedras de muitas cores, que lhe dão um aspecto de arco-íris. Muito da beleza majestosa de que Rillanon goza hoje em dia foi obra do rei louco, Rodric.
Elvandar é localizada nas grandes florestas ao norte do Coração Verde. Desde tempos remotos, é o lar dos Elfos (Eledhel), protegida por feras e magia contra todos aqueles que se aproximam sem convite. O centro de Elvandar é uma cidade construída inteiramente com árvores gigantes ligadas por pontes altas em forma de arco. Muitas dessas árvores têm folhagem prateada, branca ou dourada. Os elfos são um povo alto e gracioso cujas vidas naturais podem durar séculos. São uma das raças nativas mais antigas de Midkemia. Eram servos dos Valheru – os Senhores dos Dragões – cujos grandes poderes abriram portais para outros mundos durante as Guerras do Caos, permitindo que raças de humanos, anões, goblins e outras entrassem em Midkemia. Os elfos e seus primos distantes, os Moredhel, foram dizimados no conflito das Guerras do Caos e lutaram para sobreviver no mundo depois que os Valheru desapareceram. Os Moredhel escolheram um caminho sombrio e os elfos seguiram seu caminho na direção da luz. Os elfos são governados pela Rainha Aglaranna.
O Reino das Ilhas, também conhecido simplesmente como “O Reino”, foi um dia um restrito à ilha de Rillanon, mas cresceu e dominou os reinos das ilhas vizinhas, e expandiu-se para o continente. A família conDoin governou o Reino por centenas de anos. Dannis foi o primeiro conDoin a ser coroado Rei de Rillanon. Era um líder tribal 22 /// BANG!
que unificou os povos da ilha. Dois séculos depois, seu descendente, Delong, o único rei a ser chamado “o Grande”, trouxe o estandarte de Rillanon para o continente com a conquista de Bas-Tyra. O conflito entre o Império do Grande Kesh e sua subsidiária, a Confederação Keshiana, levaram ao recuo das tropas keshianas de seus territórios no norte. O Reino das Ilhas agarrou esta chance para expandir-se fundo a oeste, abraçando as terras do Mar Amargo pela Cordilheira das Torres Cinzentas até o Mar Interminável. O avô do Duque Borric, o filho mais jovem do Rei, levou os exércitos do Reino ao oeste e estabeleceu o Reino Ocidental. O Reino foi governado pela Dinastia conDoin por várias gerações. Embora reconhecidos como uma única nação, o Reino tem duas personalidades distintas e é, praticamente, dois estados unidos. Ao leste, a sede do governo é a magnífica cidade de Rillanon, mas Krondor marca o começo do Império Oriental e governa as terras a oeste de Crydee.
O Império do Grande Kesh está localizado ao sul do Reino, ocupando a maior parte da região sul de Triagia. É a maior entidade política do continente. O Império é vasto e inclui muitos povos e culturas diferentes. Grande Kesh é provavelmente a nação mais cosmopolita em Midkemia. O controle poderoso que o Império tem sobre suas terras e povos mantém a estabilidade necessária diante de tamanha diversidade. Do centro do poder na antiga Cidade Imperial do Kesh, nas margens do Overn Profundo, o Império é governado por “aquele/aquela que é chamado de Kesh” – uma Imperatriz ou Imperador que goza de statuss divino.
N
ão escrevo fantasia; escrevo romances históricos sobre um lugar imaginário. Pelo menos é como enxergo. Sempre tive uma imaginação viva. Lia histórias de aventura quando era criança; Robert Louis Stevenson é uma das maiores influências na minha escrita. E você simplesmente não encontra algo como Os Três Mosqueteiros ou Capitão Blood hoje em dia – de forma que cabe à ficção científica e à fantasia preencher a lacuna. Cresci em um ambiente familiar em que a imaginação era encorajada, mas hoje em dia se ouvem pessoas dizendo às crianças: “Pare de sonhar acordado e preste atenção!” Crianças espertas são postas nas aulas de ciência, não em arte ou música. Não se escuta “Ei, temos um gênio aqui, dê-lhe um violino, um pincel, uma caneta.” Há um senso comum, atualmente nos Estados Unidos, de que arte é o mesmo que frivolidade. Pessoas “sérias” não ganham a vida escrevendo livros. Bem, eu ganho. Eu sou, por muita sorte e alguma habilidade, um contador de histórias remunerado, embora tenha sido programado para pensar que deveria ser um cientista, médico ou advogado. De alguma forma, apesar dos grandes esforços do Sistema Unificado de Escolas da Cidade de Los Angeles, ainda consegui me tornar escritor, um tecedor de contos, um criador de mundos. Midkemia é um mundo virtual criado por um bando de amigos da Universidade da Califórnia de
San Diego quase quarenta anos atrás. Criamos pela diversão, como passatempo. Foi lá pela época em que Dungeons & Dragons era uma febre. Mas D&D era subdesenvolvido para nossos gostos, e decidimos nos valer de nosso conhecimento em história medieval e nosso amor pela fantasia para criar um mundo para jogo, mais completo: Midkemia. Criamos personagens, países, alianças políticas e disputas, um sistema de magia, um panteão de deuses – um lugar maravilhoso e mágico que não existia em lugar nenhum exceto em nossas próprias cabeças. Nós o trazíamos à vida quando nos reuníamos regularmente (toda noite de quintafeira por um tempo, depois todas as noites de sexta-feira), mestrando ou jogando com personagens. Jogadores compreendem este tipo de criação de mundos, mas para muitas pessoas poderia parecer algo estranho. E talvez seja, mas na minha opinião, não é mais estranho do que andar com carrinhos de golfe na chuva, colecionar cada publicação de cada LP que os Beatles já lançaram, ou comprar cada selo utilizado pelo Serviço Postal dos Estados Unidos. Mais tarde, meu amigo Steve Abrams sugeriu que eu contasse a história de como Greater Path Magic [A Mágica do Caminho Superior] (Não sabe o que é? Leia os livros!) chegou a Midkemia, do que resultou meu primeiro romance Mago, publicado em 1982. No intuito de entrar em conflito com o universo que havíamos criado, ambientei Mago, o primeiro dos romances da Guerra do Portal, 500 anos antes do nosso jogo.
Escrevi a história sobre Midkemia que os Friday Nighters haviam criado. O que nunca imagináramos todos aqueles anos atrás era que esse mundo iria adquirir vida própria além de qualquer coisa que poderíamos sonhar, que Midkemia encontraria seu caminho para casas de todo mundo – não apenas nossos apartamentos de estudantes. Eu não começara a escrever então, e a possibilidade de um jogo de computador era nula, já que o computador pessoal não existia ainda. Criamos Midkemia apenas para nossa diversão. Os livros, jogos e outros projetos em curso são todos parte de minha tentativa de compartilhar com leitores e jogadores meu amor por este excêntrico e impossível mundo criado por “pobres famintos” estudantes de graduação. Qualquer beleza única e maravilhamento advindos desse mundo é o legado daqueles criadores originais; sou meramente um contador de histórias. E é esta a essência do meu trabalho. Não estou tentando produzir Arte (“A” grande). Estou tentando tocar as emoções, trazer ao leitor um mundo fantástico e exótico. Amo aventura e coisas assustadoras no escuro, e atos heroicos, princesas adoráveis que precisam ser salvas (ou talvez não, conforme as circunstâncias demandem). Meu trabalho é uma aventura, e foi projetado para mostrar a você o que as pessoas fazem em circunstâncias adversas e ambientes fabulosos. Meu objetivo é entreter e surpreender, e não conheço nenhum lugar mais divertido e surpreendente do que o maravilhoso mundo de Midkemia. BANG! /// 23
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ago foi publicado em 1982 e deu origem a uma série de livros e a um universo que já apareceu em diversos formatos. O que mudou na Fantasia nessas três décadas? Como isso refletiu numa série que foi escrita durante todo esse tempo? REF: Para mim, é difícil avaliar o que mudou na Fantasia nessas três décadas, já que estou focado no meu trabalho e não na indústria de entretenimento, mas sou um observador como qualquer um. O sucesso de filmes e jogos aumentou de uma forma totalmente nova o interesse do público em geral. De Harry Potter a A Guerra dos Tronos, o gênero fantástico tem alcançado uma audiência muito maior do que jamais teve, principalmente fora do círculo dos fãs de fantasia a que estava restrito na década de 1960. O livro chega ao Brasil já na sua “edição preferida”. No que isso beneficia os leitores brasileiros, que só tiveram contato com seu universo 24 /// BANG!
através de Betrayal at Krondor, o jogo para PC? Aliás, foi o meu primeiro contato, o que me fez procurar saber mais sobre a série. REF: Bem, essa é a única versão que está sendo traduzida atualmente. E como o nome implica, é o texto que eu prefiro, já que na edição original tive que cortar um grande trecho de material, que pude acrescentar dez anos depois. Logo, o benefício – se é este o termo – seria que o leitor brasileiro teria em suas mãos o texto completo, não sua versão condensada. Com a recente explosão da literatura fantástica, surgiram muitos novos nomes. Algum que tenha chamado a atenção pela influência recebida dos livros de A Saga da Guerra do Portal? REF: Sinceramente, não penso nisso. Acabei de voltar da Austrália, onde alguns jovens escritores disseram terem sido influenciados por mim. Isso é bom, mas ser uma influência no trabalho de alguém faz com
que eu me sinta velho. Prefiro pensar que, se tive algum impacto, foi o de tocar em um “senso senso de maravilhamento maravilhamento” que já estava lá. Magician’s End [O Fim do Mago] foi realmente o capítulo final do Ciclo? Quais os seus planos como escritor, agora que Midkemia já não é um desafio? REF: Sim, Magician’s End [O Fim do Mago]] é o último livro de A Saga da Guerra do Portal. Atualmente não tenho planos para Midkemia, já que estou trabalhando em uma nova série, em um novo universo. Isso não quer dizer que não irei voltar a Midkemia, mas que se isso acontecer, não teremos mais histórias da Guerra do Portal. O senhor tem alguma história preferida entre todas as que contou sobre Midkemia e as guerras? E algum personagem marcante, que tenha dado orgulho de tê-lo criado? REF: É como ter filhos, você ama a todos apesar de suas diferenças. De todos os meus livros, alguns foram mais di-
Ilusstr Il traç açãoo ddee M Ma arrttin in Deschambault Des escchham mbaul bbaault uullt Ilustração Martin
Detalhe da capa do segundo volume, Mago Mestre, nas livrarias em 2014
vertidos de serem escritos, enquanto outros foram mais recompensadores de outras formas. Adorei trabalhar em colaboração e cada um dos autores me deu dicas e ideias sobre o processo criativo que eu não teria de outra forma. Acho que os personagens são vistos de forma diferente pelo escritor e pelos seus leitores. Entendo por que meus leitores se ligam emocionalmente a um personagem – e aceito isso como um fato. Mas para um escritor eles são meios para atingir um fim, para fazer a história progredir e adicionar elementos dramáticos. Alguns são mais divertidos de serem escritos, como Amos, Jimmy e Nakor, mas não tenho orgulho de nenhum em especial.
adaptações? Há alguma possibilidade de vermos Pug, Tomas e outros personagens de Midkemia nas telas do cinema? REF: Perguntam muito sobre isso. Acontece que as pessoas não entendem bem como funciona a indústria de entretenimento. Nós estamos sempre conversando com pessoas da indústria do cinema, TV e de jogos, então a possibilidade das adaptações está sempre presente – mas só se comercialmente fizer sentido.
Espero que meus leitores brasileiros achem o meu trabalho tão bom e divertido que queiram ler mais!
Atualmente, muitos jovens tornam-se leitores ao entrarem em contato com livros que foram adaptados para outras mídias, sobretudo o cinema, mas também jogos. Como o senhor vê as
E finalmente, o que o senhor espera do público leitor brasileiro? Somos fãs muito dedicados quando nos apaixonamos por autores e séries! REF: Isso é tudo o que um escritor pode querer. Espero que meus leitores brasileiros achem o meu trabalho tão bom e divertido que queiram ler mais! Obrigado!
RAYMOND E. FEIST
Feist é um dos nomes mais importantes da história da literatura fantástica. Nasceu no Sul da Califórnia e, atualmente, vive em San Diego. Foi também em San Diego que se formou, com honras, em Ciências da Comunicação em 1977. Tendo sido traduzido em mais de trinta países, Mago foi o seu primeiro livro e serve de base para uma vasta obra que tem conquistado, ao longo dos anos, as listas de bestsellers do New York Times e do Times of London. Quando não está escrevendo, Raymond E. Feist é um colecionador de DVDs, estudioso da história do futebol americano, fã de ilustração e um grande apreciador de bons vinhos.
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Zezinho e Emília chegaram à varanda sorrindo, indiferentes à lama que empoçavam no piso de ladrilhos florais. Sob a luz vermelha do crepúsculo, a sujeira nas roupas pareciam manchas de sangue. – Seus capetas! Vão já tomar banho! – gritou Vó Benta, sacudindo o braço pelancudo. – Primeiro você, Emília! Isso lá é brincadeira de menina! – ordenou com o ar maternal desfigurado pela raiva. A garota estava imunda. Restos de capim agarravam-se às meias coloridas, e chegavam até os cabelos louros. Provavelmente seguira o primo numa das explorações pelas matas do sítio. /// 27 BANG BA NGG! // 2
– A culpa é dele, vó! – Emília apontou um dedo de Judas para o menino. – Não me interessa! – Vó Benta suspirou, coçando as pálpebras por baixo dos óculos. – Vai logo, Emília, a janta tá quase pronta! Zezinho abaixou a cabeça e aguardou um esporro de proporções bíblicas. A avó inclinou-se, falando calmamente: – Garoto, presta atenção... – O tom ficou suave, quase o mesmo da mulher atenciosa que o garoto tanto adorava. – Você poderia ter se machucado. A floresta tá cheia de espinho e capim navalha. – Ela afagou-lhe a franja, derrubando um carrapicho que se prendeu nas sobrancelhas grossas do menino. – Agora limpa os pés no tapete e toma um banho. Eu fiz cozido.
Zezinho imaginou o gosto da carne e dos legumes derretendo na língua. Vó Benta era uma cozinheira de mão cheia e ficava feliz em entupir os netos de comida até as amídalas. Naquele tempo, expressões como “alimentação balanceada” e “nutrição saudável” eram tão exóticas quanto um McDonalds numa aldeia Xingu. – Tem milho, vó? – inquiriu Emília. – Ah tem! – confirmou Vó Benta – Milhos enormes que o Seu Pedrinho trouxe. Ele guardou os melhores para mim. – Oba! – disse Emília, correndo com rara satisfação para o chuveiro. Zezinho arrastou os pés no capacho e entrou na casa aconchegante. Quase tudo era feito em madeira de lei e azulejos barrocos. Um útero acolhedor, típico das zonas rurais mais prósperas. Com um sorriso, Vó Benta retornou aos afazeres. Era uma senhora grande, cheia de carne abraçando ossos mastodônticos, entretanto, movia-se com delicadeza; nem rangia as tábuas 28 /// BANG!
corridas no assoalho, enquanto cruzava o pórtico da cozinha rústica. Zezinho subiu as escadas em direção ao quarto. Quando segurava a maçaneta para entrar, algo lhe chamou a atenção. Nos fundos do corredor, o quartinho proibido jazia entreaberto. A porta pintada de branco sempre estivera aferrolhada com um cadeado – intocável, graças às advertências da avó, porém, hoje, estava livre, empurrada pela brisa de verão. Vovó disse que ali ficava o depósito da família. Um lugar exclusivo para adultos, não crianças. Ponderando se deveria ceder à curiosidade, decidiu correr o risco. Ah, que mal pode fazer? O menino esgueirou-se sorrateiramente, tomando cuidado para não pisar numa tábua solta. A dona da casa tinha ouvido de tuberculoso e escutava traquinices a quilômetros de distância. Colocou a cabeça para dentro da fresta, deixando a escuridão do cômodo guilhotinar seu pescoço. Um tímido faixo de sol penetrava por um buraco no telhado e iluminava um baú rústico. Refletidos na luz, grãos de poeira gravitavam como minúsculos cinturões de asteroides. Para um menino de dez anos, uma arca iluminada pelo sol significava a interferência do destino – um convite à aventura. Embora fosse um baú ordinário, Zezinho só pensava numa possibilidade: Tesouro! Entrou esbaforido e se arrependeu quase instantaneamente; estacou de terror, imaginando alguma lagartixa nas sombras. Tinha pavor de répteis, e seus piores pesadelos envolviam um lagarto gigantesco que o perseguia na floresta. Tentando reduzir o pânico, procurou por um lampião. Tateou velhas fotografias, roupas cheias de traças, entre outros cacarecos. Por fim, encontrou. Convenientemente, também havia fósforos. Acendeu a luminária, tomando o cuidado de fechar a porta atrás de si. Ajoelhou-se em frente à enigmática caixa. Um adesivo com letras meio apagadas indicava que o baú pertencia ao Tio Sinésio. Zezinho jamais o conhecera pessoalmente, mas ouvira lendas a respeito. Tio Sinésio foi um herói da Guerra do Paraguai, condecorado pelo próprio Duque de Caxias. Segundo as
fofocas nos jantares de Natal, falecera louco, abandonado num sanatório. Abriu o baú. As dobradiças ganiram como um cão ferido. Zezinho cerrou os dentes e apertou as pálpebras, esperando que a careta tivesse a habilidade sobrenatural de extinguir o barulho. Esperou dois minutos em silêncio. Como não detectou os passos contrariados da avó, prosseguiu. O conteúdo da arca emanava um odor de coisa velha, proibida. Um misto de mofo e naftalina que não era inteiramente desagradável. Viu uma foto desbotada de Tio Sinésio. Zezinho achava que fotografias de finados sempre tinham um ar assombrado, como se a figura fosse piscar ou sorrir a qualquer momento. Mas o medo diminuiu ao surpreender-se com as semelhanças físicas que compartilhava com aquele mítico Tio-avô. Herdaram as mesmas sobrancelhas grossas, juntas sobre os olhos. Um bigode fino conferia ao homem um ar respeitoso, severo. Explorou o tesouro um pouco mais, e achou uma velha farda do exército esfarrapada. Medalhas e condecorações ornamentavam os cortes nos ombros. O traje emanava uma tristeza profunda. Era a prova de que um dia alguém o vestira, e agora, nem mesmo seu cheiro permanecia no mundo. Um objeto fino e elegante lhe desviou o olhar. Como todas as crianças daquela fase, jamais conseguia prestar a atenção em alguma coisa por muito tempo. Era um cachimbo de bambu finamente trabalhado. Uma peça feita à mão. Entalhes de pica-paus amareloss formavam um arabesco em espirall, que convergia para o pito. Embaixo do o cachimbo, encontrou um diário enca-dernado em couro. Tirou o caderno e repousou ao lado. Quando seu avô, o Visconde, es-tava em casa, gostava muito de fumarr cachimbo na vasta biblioteca da famí-lia. Zezinho apreciava o aroma acre do o tabaco, mesmo quando lhe provocavaa lágrimas e tosse. Homens fumavam, então, ele tam-bém deveria fumar, afinal tinha quasee onze anos. Já não era mais um mole-que. A fumaça deixara o avô forte e imponente, e Zezinho queria ser como o ele, para poder entrar na biblioteca a hora que bem entendesse. Pegou os fósforos desajeitadamentee e acendeu o resquício de tabaco socado o ali dentro. Um gosto de flores mortas e
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relva seca encheu-lhe a boca. A garganta incendiou-se, pro ovocando uma tosse convulsiva... Mas ao invés de exalar fumaça, um torvelinho de pétalaas brancas partiu de seus lábios, espiralando pelo ar, animadaas por um titereiro invisível. Zezinho ficou encantado. As pequenas folhas saíam m, fazendo-lhe cócegas no céu na boca. Tragou novamente, e dessa vez soltou um punhado de mariposas coloridas, quue cintilavam os espectros do arco íris nas asas. O cachimbo era mágico! Mal conseguia conter a excitação. Precisava descobriir mais sobre o artefato! Apagou a chama com medo que vó Benta sentisse o cheiro. Mas cheiro de quê? Não havia fuumaça, só o fôlego criador da natureza. Um perfume de terrra molhada depois da garoa. Afinal, de onde veio o cachimbo o? Se havia alguma resposta para a charada, certamente estariia nas linhas daquele pequeno caderno. Curioso, abriu o diário e começou a ler: Relatório de campanha, Agosto de 1866. Naqueles dias de inferno, a floresta brincava conosco. O ar quente e úmido só alimentava a sensação de que todo aquele verde era um monstro baforando em nossas nucas. Nem os pássaros cantavam naquelas bandas. Era sempre silencioso, não o silêncio silvestre da natureza, mas a calmaria predatória que antecede o ataque... capitão Sinésio Monteiro bebeu um gole de água na moringa. O líquido rescindia a barro e minério de ferro. O calor da mata era sufocante, e por mais que tragasse toda a garrafa, não conseguia compensar o banho de suor que colava suas costas à farda encardida. Mosquitos orbitavam ao redor de seu cabelo negro, deixando-o ainda mais irritado. Era o líder da companhia. Não poderia se dar ao luxo de perder o controle – não depois do desaparecimento do Cabo Aurélio. Os homens estavam irrequietos, varrendo olhares hesitantes para a floresta. Sabia que eles não procuravam inimigos. Era a própria mata que os intimidava. Numa inspeção inocente, parecia apenas um bosque comum, como tantos outros. Não obstante, uma investigação minuciosa fazia o animal perdido em seus genes lhe aguçar os instintos, pressentindo na quietude uma ameaça oculta. Não havia os sons subjacentes da vida silvestre, nem mesmo um único criquilar de grilo. Aquela vegetação era amaldiçoada, temida até pelos mais estúpidos filhos da natureza. Foram deslocados para aquele fim de mundo, próximo a um afluente da Bacia da Prata. Os soldados de Francisco Solano rondavam o lugar, tentando estender as fronteiras do Paraguai, e abrir caminho até o Atlântico. Os rumores diziam que o ditador queria tomar o Rio Grande do Sul, e já cercara a província de Corrientes, na Argentina. Sinésio jamais permitiria que a campanha de Solano prosseguisse. As ordens do Alto Comando foram expressas: guarnecer os pontos estratégicos até o último homem tombar. E não eram muitos. A febre amarela sepultara metade do contingente. Restaram cinquenta e três soldados, uma tropa ínfima para confrontar uma legião de gringos. Mas não se tratava de vencer ou morrer; tratava-se de resistir com bravura. Militares burocratas não se destacavam pela inteligência ou senso de praticidade. Para os coronéis,
erra fá fáci c l sa s crificáá-l -los os eem m no n me m daa páttriia. a Difícil era levantarem os traseiros fláciddos de suas escrivaninhas, e manter o patriotismo com uma bala de chumbo fumegan ndo d nas entranhas. Antes de ser iludido por esse nacionalismo irracional, Sinésio fora um homem de teoria, não de prr ática. Lecionava literatura e gramática em Tau a baté. Perdido na selva, tão longe da civilizaç açção, a anti t ga fleuma intelectual cedera ao selvagem. Se a esp s ossa o visse agora,, certamente teria dificuldades em e rec econhecê-lo: pele curr tida em sol, sujeira, e ferida. O bi bigo g de – outrora apara rraaddo o com elegância máscula – agorra integrava umaa ba b rb r a er eremítica. Cuspiu no chão e olhou para os homens em m ativi viidaade d. O acampamento vivia uma rotina indolente. A comi m da d não ão ão chegava com frequência, e os soldados precisavam see avven nturar entre os arbustos para caçar caçar. Um de seus subordinasubor bor ordina dos, o índio Carlos Cupiaçaba – Cuca para os íntimos – estava sobrecarregado. Além de ensinar os outros a capturar animais e pescar em riachos barrentos, também rastreava os inimigos para a tropa. Era o único capaz de ler os sinais do homem branco nos elementos da natureza. Falando no Diabo, Cuca e mais dois homens voltavam da mata com uma expressão sombria. Há dois dias procuravam indícios do Cabo Aurélio, desaparecido durante uma vigília noturna. Ninguém sabia o que lhe acontecera. A única evidência de que existira alguma vez nesse mundo de Deus foi a faca que ele largara nos limites da selva. – Nadinha dele, Capitão – Disse o soldado de pele vermelha, aproximando-se. – Desci o rio dois quilômetro mais Otávio e Praça Ribeiro, e não achamo o cabo. A essa altura deve di tá todo carcomido pelos bicho. Tem monte di onça nessas banda. Sinésio espantou os mosquitos, dizendo: – Não achou nada mesmo? Nem a medalha de identificação? – Não. – O índio coçou a cabeça, olhando para as botas. – Mas achamo um troço meio esquisito preso, lá nas preda do rio. Uma mão fria dedilhou a nuca do capitão. – Que coisa esquisita, como assim? Sinésio fitou os homens atrás de Cuca. Eles fingiam que não sabiam do que o índio falava. Saíram de fininho, procurando algo para fazer entre as barracas do acampamento. O índio manteve-se em silêncio. Revirou os olhos, como se buscasse as palavras corretas nos céus. – Fala, homem! – explodiu Sinésio. Não precisava de mais suspense nos nervos em frangalhos. Cuca levou um susto, explicando: – Se voismicê quisé, posso leva tu lá pá vê. – Ofereceu com seu português campestre. – Nóis num teve coragem de ih lá prá confiri. Capitão Sinésio largou a moringa e inquiriu: – Estamos esperando o quê? – E saiu na frente, ajeitando a bandoleira do rifle nas costas. Ele e Cuca voltaram para as matas com passos rápidos. O ritmo da jornada tinha pouco a ver com determinação. Estavam com medo de que a noite preta e maligna caísse sobre eles, antes de retornar ao acampamento. BANG! /// 29
as que Diabo é aquilo? – indagou Sinésio, ao apontar para uma coisa brilhante nas rochas do rio. O sol da tarde parecia uma gema e lançava chamas sobre o objeto de sua curiosidade. O Capitão não conseguia discernir o que era, pois o objeto refletia a luz, que se fragmentava num ouriço cintilante. – Eu que num vô lá discobri! – disse Cuca, sombreando a fronte com a mão. A apreensão de Cuca era um indicativo de perigo. Sinésio aprendeu ndeu a confiar nos instintos do soldaado. Cuca estava tão intimamente ligad do à natureza quanto um bebê ao corrdão umbilical. Conseguia interpretarr os sons, e mais importante: os silêncios da floresta. Nenhum pássaro piava nas árvores, dando a entender que a região era indigna de receber seus ninhos. O capitão andou de um lado para outro na esperança de que o ângulo de visão pudesse deter o reflexo da luz, mas não adiantou. Teria que ir lá. – Me espera aqui! – ordenou Sinésio. Usando o rifle como muleta, o capitão avançou de rocha em rocha, encaixando a baioneta entre as fendas. Conforme se aproximava, os galhos de uma amendoeira – que se projetava para fora da margem – iam eclipsando o sol. O brilho reduziu um pouco, delineando as características do objeto. Tinha algo de vagamente familiar. As formas remetiam à cabeça, braços e pernas, mas estavam imóveis. Olhou para trás e o índio se limitava a vigiá-lo em silêncio. Sinésio pulou para outra pedraa, interpondo-se entre a luz e a coisa. Era uma árvore em forma hum mana. Na verdade, a julgar pelos detalhes, parecia mais uma escultura. Uma estátua perfeita de madeira. Cabelos e barba reproduzidos com folhas; mãos e pés feitos com minúsculos ciprestes; dedos de raízes. Sinésio estreitou a distância e ficou impressionado com o detalhismo da estátua: as linhas de expressão no rosto fariam inveja à mais sensível obra prima de Michelangelo. Órbitas preenchidas por duas amêndoas entalhadas simulavam um olhar de surpresa... Ou de horror. Notou que o brilho se originava num retângulo de metal preso ao pescoço da estátua. Parecia uma medalha 30 /// BANG!
de identificação. Com um frio soprado no estômago, Sinésio nem precisou chegar perto para entender o que via. Aquela árvore era o Cabo Aurélio. epois de contarem aos soldados o que tinham visto, Sinésio e Cuca permaneceram quietos o resto da tarde. Esperavam que, ao ignorar o assunto, pudessem refazer a realidade aos seus caprichos, e trazer Cabo Aurélio são e salvo da floresta. O calor diurno foi cedendo lugar ao sereno, que anunciava sua presença nos ventos glaciais, soprados do Oeste. A tarde extinguiu-se rapidamente, com a lua no horizonte afogando o astro rei numa poça de sangue. Sentados ao redor da fogueira, ouviam – com evidente desânimo – as bravatas de Alemão, um soldado valente, enorme, oriundo do Paraná. – Acho que estamos caindo numa tática de guerra! – disse Alemão, que bebia uma cachaça no gargalo. – Os paraguaios estão nos rondando, rindo da nossa cara! Tão querendo nos assustar! Devem ter esculpido aquele troço e colocado a medalha! – Acho que você está certo! – concordou Sinésio, levantando-se de um tronco de mangueira tombado. – Somos adultos. O que é mais provável? Que alguém enfeitiçou o Cabo e o arvorificou, ou que somos um bando de borra-botas caindo nas artimanhas do inimigo? – Girou nos calcanhares, buscando apoio nos olhares reticentes dos soldados. Alemão tinha mais barriga do que cérebro, mas sua teoria parecia absolutamente plausível. Percebeu que o medo escuro de alguns foi lentamente penetrado por uma faixo luminoso de razão. Alguns riram forçadamente, dispostos a conter o pânico que marchava sobre suas espinhas numa fila de insetos fantasmagóricos. O único que parecia à vontade era Alemão, fosse pela embriaguez, fosse pela falta de imaginação. – Quer saber? Vou provar que vocês estão se borrando sem motivo! – Alemão começou a caminhar rumo à floresta. – Não existe diabo, fantasma, nem mula sem cabeça! – O gigante pegou o revólver e o colocou embaixo da pança suada, prendendo-o no cós da calça. Estava sem camisa. O tronco oleoso refletia as chamas da fogueira.
Os soldados observavam o espetáculo de bravura infantil, enquanto Sinésio berrava: – Soldado, volta pra cá agora! Alemão ignorou a advertência, balbuciando o quanto todos eram covardes. O capitão começou a seguí-lo. – Alemão, isso é uma ordem! Volta pra cá agora! – Fica manso, capitão! – respondeu o soldado. – Tu vai ver que num tem nada naquelas árvores. – Vou só dar uma mijada! – E continuou andando. Diabo! Sinésio trincou os dentes. Não podia ser desmoralizado diante de uma tropa com fome, medo e sede. O que viria a seguir? Um motim? – Alemão, se você não der meia-volta, vou atirar! – Sinésio apontou o rifle para as costas do insubordinado. O paranaense ignorou. Parou nas raízes de uma frondosa amendoeira e começou a abrir as calças, cantarolando alguma coisa que se perdeu no vento. Ele nem ouvira a ameaça ou simplesmente não a levara a sério. Espantados, os homens assistiam ao conflito. Alguns tinham um brilho febril no olhar, desejando secretamente que Sinésio consumasse a ameaça para lhes entreter a noite. Sinésio mirava o Golias louro. O dedo transpirava na curva do gatilho, adquirindo a rigidez de um vergalhão. Se atirasse agora, o disparo desabrocharia uma rosa vermelha na carne adiposa do paranaense. Um milhão de coisas passavam em sua cabeça naquele instante. Talvez estivesse apenas arranjando um motivo para alvejar um inimigo que fosse palpável, e descontar a frustração de estar onde não queria. Lembrou-se de como era se deitar numa cama quente e desfrutar o abraço tenro da esposa; do som musical das risadas dos filhos; do café fumegando nas manhãs de domingo; de seus romances encadernados em couro; das aulas que aplicava na escola... Não valia a pena. Simplesmente não valia. Abaixou a espingarda, olhando para o distraído Alemão, que tirava água do joelho... E foi quando alguma coisa puxou o gigante para a mata. Foi tão repentino, que Sinésio piscou os olhos, achando que fora vítima de uma ilusão de ótica, então, começou a ventar – não o vento soprado pela natureza, o ulular sinistro que anunciava a morte. Era o mesmo vento que soprava na noite em que o Cabo Aurélio desapareceu. Os homens levantaram de seus lugares, pegando as armas. Prestavam atenção no farfalhar dos galhos. Uma orquestra de corações em pânico formava uma sinfonia de tambores dentro de seus peitos amedrontados. Fitaram as sombras recortadas da mata, apontando os rifles e revólveres. – É eles... – disse Cuca enigmaticamente. – Eles quem? – perguntou Sinésio, com todos os pelos do corpo eriçados feito lanças. – Os Sinhores du vento. O Capitão fez uma careta confusa e o índio continuou: – Nem tudo qui nasci da terra é coisa di Deus, capitão. Às veis, a natureza prova sangui dos homi e gosta. Esse vento num é coisa normal. É um vento di raiva, di vingança... Apavorado, um dos homens atirou a esmo para dentro da mata. – NÃO! – gritou Cuca. Mas os tiros espocavam mais altos que sua voz.
Num ato reflexo, todos os outros soldados imitaram o atirador. – Cessar fogo! Cessar fogo! – berrava Sinésio. As munições acabaram e no intervalo da recarga, o capitão ordenou: – Eu mandei parar, caralho! Os homens obedeceram trêmulos, suando em profusão. A fumaça de pólvora rescindia no ar, criando um nevoeiro cinzento. O vento havia parado. Tudo ficou mortalmente quieto. As folhas estavam imóveis novamente. E foi nesse momento que uma aberração escarlate saiu da mata. Sinésio e os soldados apontaram as armas, preparados para abater a criatura. Mas não era um monstro. Era Alemão. Esfolado vivo da cabeça aos pés, ele parecia uma caricatura retirada de um livro de medicina. Músculos e nervos em carne viva brilhavam contra a fogueira, lustrando cinturões de gordura. Ele caminhava tropegamente, com a banha incontida escorrendo pelo tórax descarnado. Cada centímetro do corpo ardia tão hediondamente que ele nem conseguia falar. Alemão caiu de costas na relva, encarando o luar com olhos catatônicos. Os soldados correram para acudí-lo; prestavam atenção em murmúrios pronunciados por dentes sem lábios. – Chá... a...chi – disse Alemão quase sem força – chá-a-chi – Meu Jesus, quê que é isso? – choramingou um dos soldados. Lutando para controlar o horror que ameaçava devorá-lo, Sinésio aproximou-se, tentando decifrar as palavras. – Chá-chi... chá-chi – murmurava o paranaense sem parar. Ele estava dizendo “tá aqui”, mas a boca sem lábios não conseguia moldar as palavras adequadamente. O que estava aqui? A resposta veio numa cacofonia de gargalhadas malignas. O ar preencheu-se de um coro de vozes estridentes, rindo em diferentes tons. Pareciam se comunicar num idioma sem palavras, onde somente as notas vocálicas tinham significado. Havia uma ordem subliminar naquele caos de risos. E eles vieram em toda a sua fúria. Saindo de trás das árvores, velozes como panteras, com olhos amarelos faiscando sua inumanidade, vultos mais negros que a própria noite saltaram sobre os soldados. Sinésio simplesmente não conseguia entender o que estava vendo. As criaturas corriam de quatro, com os braços dianteiros apoiados em posição de flexão militar, pois elas não tinham pernas; a metade inferior do corpo afinava-se numa cauda curvada para o alto, onde um apêndice em forma de pinha oferecia um contrapeso. O Praça Jarbas foi atingido violentamente por uma das caudas. Houve um estalo de ossos quebrando, quando a mandíbula dele foi arrancada. A língua ficou pendurada nos músculos, se contorcendo como uma lagarta. Um dos monstros colocou-se de pé feito uma naja em posição de bote, e – segurando uma zarabatana com as mãos – soprou um espinho envenenado. O dardo atingiu Cuca bem no meio do rosto. O índio caiu para trás com as mãos nos olhos. DebaBANG! /// 31
tia-se, enquanto a toxina mágica agia no sangue, convertendo cada célula de seu organismo em madeira. Sinésio fez menção de socorrê-lo, mas o amigo já estava tão inanimado quanto a estátua de Cabo Aurélio, presa nas rochas do rio.
Sinésio assistia a tudo congelado de terror. Apenas testemunhava o massacre. Os músculos se recusavam a obedecer ao alarme de fuga que tilintava no cérebro. Uma das bestas começou a girar o rabo flexível, deslocando o ar acima da própria cabeça. Ela atraía folhas secas para formar um pequeno redemoinho. O tufão – do tamanho de uma pessoa – assobiava ameaçadoramente, então, a fera chicoteou o rabo, lançando aquela boleadeira de vento no meio do conflito. O furacão envolveu o soldado Braga, capturando-o numa armadilha rodopiante. Ele começou a levitar no olho da diminuta tempestade, quando, repentinamente, as folhas que giravam em velocidade subsônica lhe fatiaram a pele. A vida foi espirrada de seu corpo, num jato vermelho. Eles não tiveram a mínima chance. A chacina durou menos de dois minutos. No final, só restava o moribundo Alemão, e Sinésio, cujas lágrimas vertiam horror sobre as maçãs do rosto. Já havia se entregado à morte. A mente estava prestes a involuir até à simplicidade de uma criança, no canto escuro do quarto. As criaturas – pelo menos uma dú322 //// BAN ANG! NG!
zia delas – formaram um círculo ao redor de Sinésio. Eram machos e fêmeas, que mantinham distância com movimentos cautelosos. A consciência de Sinésio relutava em aceitar a terrível realidade traduzida pelos olhos. As monstruosidades tinham o tronco e a cabeça impossivelmente humanos. Eram atléticos, delineados por uma musculatura obsidiana, tão rígida quanto carapaça de escaravelho. Ideogramas tribais espalhavam-se pelo torso e rosto, pintadas com a seiva escarlate de pau-brasil. Os olhos eram amarelos, cortados por íris reptilianas. Todos, sem exceção, cultivavam uma vasta cabeleira crespa, trançada em dreadlocks com caniços de bambu. Um deles, bem maior e mais forte que os outros, se aproximou. Caminhava com as mãos, exibindo a gigantesca cauda escorpiana em toda a imponência. Sinésio encolhia em baixo da sombra, humilhado perante aquele ídolo do mais puro ônix. O Senhor do Vento andou ao redor, estudando-o com arrogância, sem esconder o ar de supremacia. Deveria ser o líder, pois uma coroa de madeira vermelha lhe ornava o topo do crânio. – Ocê nem reagiu... – disse a criatura numa voz gutural, que resvalava entre presas pontudas. – ... Num vali nem a pena matá um covarde que nem tu. Sinésio mal ousava olhá-lo; estava apavorado demais para encarar aquelas fendas elípticas. O líder parou na frente dele. Tirou as mãos do cascalho, apoiando-se sobre a cauda grossa semienroscada. Com uma das garras, pegou uma zarabatana num cinto de palha, e com a outra, um pedaço cônico de bambu. O capitão orou em silêncio, aguardando o espinho de arvorificação, entretanto, isso não aconteceu. O monstro encaixou o cone na ponta da zarabatana e transformou a arma em cachimbo. Sinésio ousou uma espiada. Do alto da cauda, a criatura devia medir quatro metros de altura. O líder sugou a piteira, tragando a erva, e baforou um enxame de moscas varejeiras. Numa situação confortável, Sinésio tentaria racionalizar o que acabara de ver, porém, diante de todo fantástico ocorrido, o cachimbo que produzia vida era um pormenor insignificante. Ele jogou o cachimbo aos pés do capitão e disse: – Ocê vai vivê pra conta o qui cê viu aqui, homi branco. Vai falá di nóis pra
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tua laia, pra qui cês jamais pise di novo ni nossa terra. – O monstro apontou para a zarabatana-cachimbo no chão. – Eis aí tua prova di qui isso aqui num foi só sonho. As criaturas deeram as costas a Sinésio e começaram a se retirar. Dessa vez não estavam apoiaadas nas mãos. Deslizavam em pé, seerpenteando a cauda num movimento ssinuoso.
Metade delas de já havia desaparecido nas sombras, quando num impulso, Sinésio chorosamente perchoro guntou: – Por Deus... Deus Quem são vocês?
quando eram demasiadamente intoleráveis. Seu inconsciente adaptou-se, gerando mecanismos que suavizaram a vivacidade daquele relato, até que no fim, tudo não passava de uma lenda pueril, sem qualquer traço de malevolência. O insólito cedera lugar ao mundano, impondo sentido no inacreditável. Na cabeça de Zezinho, as caudas dos monstros foram transformadas em pernas saltitantes, suas carapaças em pele escura, as gargalhadas diabólicas ganharam o tom de risadas travessas, e a coroa de pau-brasil virou um gorro vermelho. O menino Zezinho cresceu, e tornou-se o homem José Bento. Ele foi estudar e graduou-se em Direito, quando passaram a chamá-lo apenas de Doutor. Contudo, jamais esqueceu aquele diário, e décadas mais tarde voltaria ao sítio para relatar sua versão da história, assinando-a com seus dois últimos sobrenomes: Monteiro Lobato.
O líder parouu, olhando por cima dos ombros poderrosos. – Ocês dão no omi pra tudo, até paquilo que num inteende. – Ele dirigiu um olhar para o escallpelado Alemão, que murmurava suas últimas ú palavras nesse mundo: – chá-chi... cháá-chi... chá-chi... Essa é a minhaa versão dos fatos. Fui julgado pelo Alto Coomando e chegaram a me acusar de traição. Não N havia provas que me incriminassem e nenhhum dos juízes acreditou que eu poderia ter feiito aquilo com meus homens. Os ferimentos nnão eram de balas, pareciam de animais, onçaas ou outra coisa. Minha sobrevivência garantiuu a aposentadoria e um monte de medalhas noo fim da guerra. Essa é a verdadee, nada mais que a verdade... pavorado, Zezinho largou o diário. Naquela noite, pediu para dormir no quarto da avó, temendo os estranhos ccha-chii que povoariam seeus pesadelos, durante anos. Por muito tempo, em suua longa vida, acordaria com m gritos aprisionados na garganta, sem m lembrar a razão dos temores. No entan nto, a mente humana tinha meios para ssuprimir lembranças,
Gabriel Réquiem nasceu no Rio de Janeiro, em 26 de dezembro de 1978. Profissional de Marketing e colaborador do site Nós Geeks, divide seu tempo entre a literatura fantástica e sua paixão pela cultura pop. Estreou na ficção com o conto “O último apóstolo” da antologia “Névoa – contos sobrenaturais de suspense e de terror”, onde homenageia uma de suas grandes influências: H.P Lovecraft. Atualmente, vive no Rio de Janeiro com a esposa Vivian e conclui seu primeiro romance. Fale com o autor: gabrielrequiem.escritor@gmail.com.
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em nunca perder a humildade e a capacidade de agradar aos fãs e de dar centenas de autógrafos durante horas, dizia-me que os editores tinham a tarefa de controlar a multidão, mas ele nunca falava “não” a um fã, “Safaa, você tem que ser o policial malvado, e eu sou o policial bonzinho”. Verdade seja dita, não é fácil ser o “policial malvado” no meio de uma sessão de autógrafos intensa, em uma cidade que nunca vira tantos jovens na fila de um lançamento, à espera que aquele simpático senhor de barba rabiscasse para a posteridade os seus livros. George confessava-nos orgulhoso e radiante: “há jovens que nunca tinham vindo a um evento literário e esta foi a sua primeira vez”. Era bem visível a satisfação e o prazer que lhe dava o convívio com os fãs. Nos nossos passeios pela cidade, conversávamos muito sobre sua escrita e Westeros. Ele bem via o meu entusiasmo quando começava a especular sobre alguns possíveis grandes segredos das Crônicass (eu tentei, mas falhei, em obter a confirmação da identidade da mãe de Jon Snow) e limitava-se a sorrir benignamente, escondendo no brilho dos olhos todos os seus planos sobre as vidas de Tyrion, Jon, Daenerys, Arya ou Jaime. Contou-nos, em uma noite, que acabara de ler um livro magnífico sobre a História de Jerusalém e ficara espantado com a violência e crueldade descritas: 36 /// BANG!
“os leitores queixam-se de meus livros, mas se tivessem lido as coisas que li nesse livro, pensariam que o meu material é para crianças”. A História medieval sempre o impressionara pela brutalidade e crueza, e a assimilação desses eventos do passado tornou sua prosa mais real e profunda. Mas nem tudo era só Crônicas.s Contou-nos de seu tempo como roteirista em Hollywood e das dificuldades em lidar com algumas estrelas de TV que, quanto mais famosas tivessem sido no passado, mais dificuldade tinham em aceitar o seu declínio e ofertas de trabalho na TV. Hoje, raro é o ator que não aceita de bom grado ter uma participação em uma série de sucesso, tal tem sido a qualidade dos dramas e comédias, superando largamente a oferta cinematográfica. George sabe da sorte que tem em ter produtores tão empenhados em se manterem fiéis ao espírito dos livros e são muitos os atores maravilhosos que conferiram uma nova dimensão às suas personagens. Tenho algum receio em lhe confessar que acho alguns protagonistas infinitamente superiores na TV como Tywin Lannister ou Varys, mas, bem no fundo, acho que ele sabe. Sempre me interessei muito pelo processo de escrita do famoso autor. É uma saga de uma enorme complexidade, centenas de personagens e casas, e não é fácil manter o controle sobre uma criação tão vasta. Sei que teve muitas
dificuldades na transição de O Festim dos Corvoss para A Dança dos Dragões, originando um hiato de cinco anos. Pergunto-lhe se o processo de escrita dee Os Ventos de Invernoo já se tornou mais fácil e rápido, ao que responde de forma incerta. Martin domina com perfeição os grandes arcos da sua história e dos protagonistas, mas os detalhes tornam-se uma batalha diária, e não é raro reescrever várias vezes a mesma cena até estar satisfeito com o resultado final. Confesso que, quando li os seus contos de ficção científica e o seu primeiro romance A Morte da Luz, z fiquei espantada com o romantismo e a forte sensação de nostalgia e perda. Longe estava o sarcasmo e a crueldade das Crônicas. Também me encantou o seu enorme talento para o gênero do horror presente em vários contos como o favorito e inesquecível “Reis de Areia”. Martin domina essa capacidade de incutir sentimentos de medo ou repulsa no leitor (quem não sente isso ao ler cenas de Gregor Clegane ou da companhia de mercenários que confronta Jaime e Brienne?). Li no outro dia um ensaio na Internet que discordava do título “O Tolkien americano” atribuído a GRRM. Perdia muito tempo em comparações literárias minuciosas com o mundo de Tolkien. Na verdade, acredito hoje que esse título encaixa com perfeição, não tanto pela faceta literária de ambos os autores, mas pelo impacto universal das suas personagens e histórias na cultura
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pop. Já não basta saber sobre Frodo e a destruição do anel de Sauron. É necessário também compreender as referências a A Guerra dos Tronos, se uma pessoa não quer correr o risco de passar como ignorante. Martin entrou no cânone popular como apenas J. R. R. Tolkien tinha conseguido antes dele. E é por isso que, diante de um autor tão popular, senti alguma apreensão em saber que tinha de entrevistar de novo o Tolkien americano para a Bang! Brasil.l É um autor que já realizou inúmeras entrevistas e torna-se praticamente impossível não cair na repetição, mas George é incansável e a entrevista por telefone e emaill decorreu sempre com a maior amabilidade e descontração.
Trabalhei durante dez anos na área de televisão e do cinema (mais ou menos entre 1985 e 1995). Durante esse período, cada vez que apresentava o primeiro esboço de um roteiro a uma produtora ou a um estúdio, ouvia sempre a mesma resposta: “George, adoramos o trabalho, mas é grande e caro demais. Ultrapassaria dez vezes o nosso orçamento.” Então, lá começava eu a cortar, a resumir, a juntar personagens, a eliminar cenas. Por fim, acabava tendo um roteiro passível de ser filmado, mas isso nunca foi um processo que me agradasse. Por isso, quando regressei à prosa, em A Guerra dos Tronos,s estava decidido a escrever algo enorme, com milhares de personagens, repleto de cenários fantásticos, batalhas grandiosas e efeitos especiais que só um livro consegue conter. Num romance não temos que nos preocupar com orçamentos nem com calendários de filmagens. Só estamos limitados pela nossa imaginação.
Sou um escritor lento, assíduo e meticuloso. Alguns escritores são arquitetos, que planejam o seu livro inteiro antes de escreverem a primeira palavra. Outros são jardineiros, que plantam a semente, a regam (com sangue, suor e lágrimas) e a veem crescer. Sou muito mais um jardineiro do que um arquiteto. Sigo as minhas personagens até onde elas me levam, e, às vezes, é até um final mortal. Depois, preciso voltar atrás e rever. Mas em ficção, as personagens são tudo.
Wild Cardss é um produto do seu tempo. Naqueles anos, houve uma revolução nas Histórias em Quadrinhos e sugiram obras de grande maturidade como Watchmen, de Alan Moore e The Dark Knight Returns,s de Frank Miller. Wild Cardss acompanhou essa abordagem mais realista dos super-heróis e colocou-os no nosso mundo onde envelheceram e foram transformados pelos eventos. Lembro-me de ler as aventuras do Homem-Aranha quando andava na escola e de Peter Parker entrar para a faculdade ao mesmo tempo que eu. Mas eu depois me formei e Peter Parker ficou durante muito tempo formando-se e preso à imagem de um rapaz de vinte e poucos anos. Isso nunca fez muito sentido para mim e era nosso desejo distanciarmo-nos disso em Wild Cards.s A construção de um mundo é um dos principais elementos da fantasia épica… pelo menos da fantasia épica que vem no seguimento da tradição de Tolkien. O “mundo secundário” onde a história se situa acaba muitas vezes por se tornar ele próprio uma personagem. Para um fã de fantasia, a Terra Média, a época Hiboriana ou Nárnia são épocas tão reais e vivas como o Oriente Médio e a Idade da Pedra ou a África. Criar um mundo assim implica muito tempo e muito esforço… mas, uma vez criado, passamos a ter um universo inteiro cheio de histórias por contar.
É um privilégio fazer parte desta geração de autores, há talentos incríveis como Patrick Rothfuss, Joe Abercrombie, Daniel Abraham e sinto-me muito feliz pelo sucesso dos meus livros ter possibilitado a revelação de tantos novos talentos.
Trata-se de uma coletânea dos aforismos de Tyrion Lannister e não terá qualquer informação nova relativa à personagem, sendo a minha prioridade neste momento terminar as Crônicas.s Foi a minha editora britânica que teve a ideia de criar esta edição para servir como promoção de Natal. Achamos que seria um presente bonito para os fãs da saga.
Anos atrás, em um texto que escrevi para um livro de fotografias de autores, eu disse o seguinte: “A melhor fantasia é aquela que é escrita na linguagem dos sonhos. É tão viva como os sonhos, mais real do que o real… pelo menos por um momento… aquele longo momento mágico antes do despertar. A Fantasia é prata e escarlate, azul-índigo e anil, raiada de ouro e lápis-lazúli. A realidade é de madeira prensada e de plástico feito de lama castanha e de um verde pardo. A fantasia tem sabor de habaneross e de mel, de canela e cravo-da-índia, de carne vermelha exótica e de vinhos tão doces como o Verão. A realidade são feijões e tofu e, no fim, apenas cinzas. A realidade são as casas de stripteasee de Burbank, as filas de chaminés de Cleveland, um parque de estacionamento em Newark. A fantasia são as torres das Minas Tirith BANG! /// 39
(de J. R. R. Tolkien), as velhas pedras de Gormenghast, as paredes de Camelot. A fantasia voa nas asas de Ícaro, a realidade na Southwest Airlines.s Por que é que os nossos sonhos ficam bem menores quando finalmente se tornam realidade? Penso que lemos livros de fantasia para encontrarmos de novo as cores. Para experimentar sabores fortes e picantes, ouvir as canções que as sereias cantavam. Há qualquer coisa de velho e de verdadeiro na fantasia que fala para algo de profundo que existe em nós, para a criança que sonhou que um dia iria caçar nas florestas da noite, banquetear-se debaixo das ravinas de uma montanha, e encontrar um amor que durasse para sempre em algum lugar ao sul do reino de Oz e a norte de Shangri-la”.
uma grande fidelidade e aprecio muito esse esforço, mas não tenho planos definidos caso a série me alcance. Nenhuma decisão foi tomada. Estou fazendo todos os esforços possíveis para que a série não me alcance, e escrevo o mais rápido que posso. Mas eu sou apenas responsável pelos livros e apenas posso responder por eles. David Benioff e Weis tomam as decisões que acham mais convenientes para a série.
hobbits regressam, Sauron é derrotado, mas as feridas de Frodo nunca saram e será sempre assombrado pelas trevas do anel.
É muito lisonjeador. Penso que os livros falam da universalidade da fantasia… um gênero que nos toca a todos, qualquer que seja o país onde nascemos ou a língua que falamos.
Penso que a maioria das pessoas procura entretenimento nos livros, certo tipo de escapismo. Não querem ter que ler sobre violência e morte, e aceito essa decisão, mas não estou interessado em escrever finais “felizes para sempre”. Não é esse o tipo de livro que me interessa. Já disse antes que faria um final agridoce, muito à semelhança de O Senhor dos Anéis. Os 40 /// BANG!
Adoraria visitar o Brasil um dia desses. Devo dizer que estou com a minha agenda cheia até 2016 ou 2017, mas, se for possível um dia concretizar uma visita, certamente terei todo o prazer em conhecer os meus leitores brasileiros.
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A primeira vez que vi o nome de Joe Hill foi em uma prateleira do Extra, na instigante capa de A Estrada da Noite (Heart-Shaped Box, 2007). Em uma era de tomos grossos, confesso que duvidei – à primeira vista – de que poderia me interessar pelo conteúdo daquelas poucas páginas. Bastou uma conferida na sinopse e uma rápida folheada para sentir algo, em algum lugar de minha mente, sussurrando: – Compre. Você não vai se arrepender. Não comprei.
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penas dois anos depois, após descobrir que Joe Hill era discípulo de sangue de meu adorado escritor e mestre do terror Stephen King foi que decidi dar uma chance ao novato. Foi preconceito, eu sei, mas que felizmente pude corrigir. Não posso dizer que Joe lembra King; ainda que andem lado a lado no estilo, Joe compõe ideias com roupagem própria, sem apoiar-se no pai para se autopromover, tanto que cita em diversas entrevistas Alan Moore e Neil Gaiman como seus favoritos na adolescência (imagino se King teria sentido ciúmes ao saber disso). Antes de lançar A Estrada da Noite, antes mesmo até de estourar como escritor, Joe Hill ganhava a vida com histórias curtas, e um dos últimos trabalhos no anonimato foi um roteiro para a revista Spider-Man Unlimited, um dos vários títulos da Marvel Comics. O enredo não era lá muito bom, era até bem genérico (palavras do próprio Hill), mas recebeu a arte de Seth Fisher (falecido em 2006) e acabou parecendo muito melhor. Vender suas novelas não estava se mostrando uma tarefa fácil, então imaginou se seu futuro não estava naquele ramo alternativo. Não seria de todo 42 /// BANG!
mal; afinal, a nona arte era uma de suas maiores paixões, especialmente graças a Brian K. Vaughan e Frank Miller, dois de seus roteiristas favoritos, descobertos por ele entre seus 20 e 30. Nessa tentativa de encontrar seu lugar no mundo, Hill teve alguns trabalhos recusados – normal para quem se aventura em tornar-se escritor, roteirista e derivados. A Marvel, inclusive, recusou dois: um foi Baby Hulk (inspirado pela raiva de seu próprio filho, na época com dois anos e cheio do vigor infantil e cruel dessa espécie), e o outro foi Locke & Key, sobre uma velha mansão cheia de chaves mágicas. A história foi recusada, mas não esquecida. Joe ficou com ela na cabeça, e passou noites em claro criando toda a sorte de chaves e suas “especialidades”. A IDW Publishing, uma empresa de quadrinhos norte-americana, procurou Joe quando seu segundo romance, Fantasmas do Século XX X (20th Century Ghostss, lançado originalmente nos Estados Unidos em 2007, e no Brasil em 2008), começou a conquistar prêmios. Estavam interessados em transformar contos de autores cultt em quadrinhos. Joe falou de seu projeto engavetado sobre chaves mágicas, que poderia ser contado em apenas seis edições, e eles compraram. Nunca sonharia que a série chegaria tão longe.
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ocke & Key conta a história da família Locke e sua adaptação na velha Keyhouse, uma mansão localizada em Lovecraft, Massachusetts. Após o assassinato do pai, os irmãos Tyler, Kinsey e Bode, junto à mãe Nina, tentam refazer suas vidas em uma nova cidade, na tentativa de deixar os traumas do passado enterrados. Infelizmente, não será algo fácil,
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pois, além das dolorosas cicatrizes da tragédia, os Locke descobrirão que Keyhouse possui um morador disposto a tudo para conseguir o que deseja. Rotular a série como terror seria ultrajante, pois há muito mais ao longo das páginas ilustradas pelas mãos habilidosas do talentoso Gabriel Rodriguez. Há drama, suspense, romance, cada qual se encaixando como uma chave na fechadura certa. O desenvolvimento dos personagens acontece gradualmente, como deve ser. Nada de personalidades rasas ou mal trabalhadas. Como em toda boa história que se preze, são os personagens os responsáveis pelo carisma de Locke & Key. Seria muito mais fácil conduzir uma van repleta de adolescentes bêbados, drogados e ninfomaníacos até Keyhouse, e fazê-los se perder, um a um, em algum canto da casa, onde encontrariam uma miríade de chaves com poderes distintos, e transformar tudo num slasherr teen pipoca. Evolução de personagem pra quê, se pode-se jogar sangue pra todo lado e deixar peitos à mostra em uma correria desenfreada pela vida? Fique tranquilo, não há nada disso aqui. Assim como há crescimento comum, há também crescimento forçado. Deixe-me explicar este último: existe uma chave com o poder de abrir cabeças – literalmente. Esse “procedimento” dá acesso às memórias da pessoa, em algo que permito-me intitular país das maravilhas. As lembranças têm formas e correm livres pelo interior de uma cabeça oca. É possível tanto vê-las como pegá-las para observar detalhes mais minuciosamente. Imagine você que há traumas tão vinculados em seu
uma garota traumatizada pela vida e por seus próprios preconceitos, diante da possibilidade de se relacionar com um rapaz pela primeira vez; o caçula, ainda em posse da coragem infantil, descobrindo um novo mundo atrás de portas mágicas. Transmitir determinados sentimentos é missão primordial dos escritores, e nem todos o conseguem em centenas de páginas de um livro. Nesse quesito, o feito de Hill é pleno, e estamos falando de quadrinhos. Quaisquer discussões sobre o motivo do sucesso de seus romances terminam aqui.
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Rotular a série como terror seria ultrajante, pois há muito mais ao longo das páginas ilustradas pelas mãos habilidosas do talentoso Gabriel Rodriguez.
ser que te impedem de progredir, de enfrentar o medo. Agora pense na possibilidade de tirar, definitivamente, essa memória de sua cabeça, e prendê-la dentro de uma garrafa ou apenas jogá-la na privada e dar a descarga. Você não o faria? Isso é evolução forçada. Joe Hill trabalha com domínio sobre o medo do desconhecido, e não me refiro apenas ao sobrenatural. Uma família que, de repente, teve o pilar da família arrancado de forma brutal de seu meio, e precisa reaprender a ser família; crianças chegando em uma nova cidade, afastadas da rotina aconchegante e obrigadas a recriar laços com outras pessoas, e, pior, consigo mesmas;
ão posso comparar Locke & Key com a história publicada em Spider-Man Unlimited, a qual pareceu melhor do que realmente era graças a uma bela arte, e o mérito de Joe é indiscutível, mas seria injustiça não citar Gabriel Rodriguez como a outra metade responsável pelo que a série se tornou. Gabriel não somente desenhou, mas ajudou Joe a criar. Exceto por pontos específicos, Joe não descrevia em muitos detalhes o aspecto visual do quadro, mas era detalhista em termos de informações que queria transmitir em certas cenas. Joe era bem específico quanto aos sentimentos dos personagens, sua linguagem corporal, o clima necessário para a cena. Então, entregava o roteiro para Gabriel, como um desafio, e com a licença para modificar elementos que funcionariam melhor visualmente. Gabriel fez a lição de casa direitinho. Seu estilo é bastante distinto, e nota-se em Locke & Key uma BANG! /// 43
1 linguagem visual própria. É como alguém quando lê um trecho de algum livro de Stephen King e sabe, de algum modo, que é dele. As ilustrações de Gabriel para a série pertencem à série, ponto. É uma arte diferente de qualquer outro quadrinho mainstream. É possível sentir a delicadeza no traço, o capricho, o respeito para com o leitor, em trazer um trabalho lapidado em seus mais indispensáveis detalhes. Aqui o imperceptível ganha destaque. Passei minutos demais em diversos pontos analisando cada centímetro dos desenhos, e as capas são um show à parte. Por exemplo, a capa da segunda edição do arco Head Games mostra a cabeça do caçula, Bode, em perfil, com uma espécie de radiografia colorida exibindo seu cérebro dividido em várias seções, cada uma dedicada ao que habita a cabeça de uma criança: mãe, quadrinhos, meus brinquedos, lugares em que consigo subir, lugares em que não consigo subir, TV, e por aí vai. O leitor lê uma a uma e imagina as histórias escondidas por trás de cada seção, até se dar conta de que se esqueceu de ir direto à história principal. Outra grande sacada se dá na página de 44 /// BANG!
O leitor lê uma a uma e imagina as histórias escondidas por trás de cada seção, até se dar conta de que se esqueceu de ir direto à história principal.
apresentação da equipe, geralmente entre a primeira e quarta páginas. Em vez do típico roteirista: fulano, desenhista: beltrano em fontes e posições frias, os nomes são dispostos em tom de brincadeira, como, por exemplo, gravados no tronco de uma árvore, com direito a coração talhado, ou como ingredientes no rótulo de uma bebida. São particularidades que podem passar despercebidas para olhos desatentos, mas que mostram a qualidade do que se tem em mãos. Como em qualquer história, o vilão sempre corre o risco de parecer caricato se não for dosado. Joe conseguiu criar um com carisma suficiente para carregar o título. Inicialmente apresentado como uma linda garota no fundo de um poço – que não consegue esconder sua verdadeira face diante de um espelho – e passando para um rapaz de traços andróginos e, ainda assim, bastante masculino, é um dos personagens mais bem desenvolvidos. Suas ações não se justificam somente pelo mal; há toda uma história por trás de seu intento. Os dedos folheiam ávidos, tomados pelo desejo de descobrir os mistérios. Pareço exagerado em minha aná-
lise, mas sei bem do que falo. Locke & Key é mais do que apenas quadrinhos. No Eisner Awards de 2009, foi indicado como Melhor Série Limitada, enquanto Joe Hill foi indicado como Melhor Escritor. A série venceu o British Fantasy Award ainda em 2009 como Melhor Comic ou Graphic Novel, o Eisner Award de 2011 como Melhor Escritor (Joe Hill), e foi indicada como Melhor Edição Única, Melhor Série Contínua e Melhor Desenhista. Em 2012, ganhou o British Fantasy Award como Melhor Comic ou Graphic Novel.
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m 2011, no San Diego Comic-Con International, foi exibido um teaser do que seria o episódio Piloto de uma série televisiva baseada no roteiro de Joe Hill. À primeira vista, a novidade foi recebida com entusiasmo, mas, à medida que tudo (elenco, efeitos, adaptação) era processado e avaliado pelos fãs e pela mídia, a possibilidade de aquilo funcionar foi minguando, até perder a força e, até hoje, não há notícias
positivas sobre o projeto. Particularmente, para transpor Locke & Key em toda sua totalidade, seria preciso uma produção mais HBO e menos ABC, o que se nota ao assistir ao vídeo de divulgação. O elenco só é reconhecido quando prestamos atenção ao sexo e à idade. Fisicamente não possuem fidelidade alguma com os personagens criados por Gabriel e Joe. Kinsey, na HQ uma garota com piercings e dreads,s se tornou uma patricinha que pratica natação. Nina, a mãe alcoólatra e depressiva, transmite calor materno, o oposto da original. Seria muito bom ter uma série de Locke & Key, mas se for pra pisar na jaca dessa maneira, é melhor continuar apenas como um desejo longínquo. Os efeitos não são dos piores, mas, comparados às mais recentes produções, como o citado A Guerra dos Tronoss ou mesmo The Walking Dead, d estão mais para 666 Park Avenue. Se eu disser que esta última foi cancelada, talvez você entenda parte do motivo de minha crítica. O plot segue o primeiro arco, Welcome to Lovecraft, e não parece se distanciar muito dos quadrinhos. A adaptação manteve a tragédia do início da série, mas escolheu por contá-la em flashbacks; não atrapalha a narrativa, e a torna ainda mais dramática. Infelizmente – ou seria felizmente? – o vídeo não saiu do pouco mais de dois minutos. Talvez, com o lançamento de Horns (adaptação cinematográfica do livro homônimo, lançado em 2010 e traduzido no Brasil como O Pacto) pelas produtoras Mandalay Pictures e Red Granite Pictures, e dependendo da repercussão, o interesse em levar Locke & Key, seja para o cinema ou TV, se reacenda no peito de algum produtor competente. O terror presente na série é eficiente. Não se apoia unicamente no sentido visual, mas no psicológico. Keyhouse possui seus demônios, mas os Locke, e também outros personagens vinculados ao passado da mansão, como descobrimos no decorrer das páginas, escondem os seus próprios. Estar diante da possibilidade de utilizar
chaves mágicas para se livrar de problemas, inimigos, ou tornar a vida um pouco mais fácil, mesmo a custos altos, é assustador por si só. O caminho mais rápido para uma solução pode não ser o certo, e uma vez que se decida segui-lo, é preciso encarar as consequências. Então chega-se ao verdadeiro terror. A última edição de Locke & Key está prevista para outubro de 2013, fechando o arco Alpha & Omega e, consequentemente, a série. Joe e Gabriel planejam partir para outros projetos, mas afirmam o desejo de voltar a Keyhouse para mais diversão. Segundo a dupla, há 300 anos de história para explorar lá. Inclusive, Joe conta que há uma história passada durante a Segunda Guerra Mundial, quando o subterrâneo sob a mansão era usado como ponto de observação submarino, que pretende contar em um arco de seis edições. Tenho certeza de que a IDW manterá a porta aberta para a dupla. Essa não precisará de nenhuma chave especial. Eis o convite para entrar em Keyhouse e descobrir as chaves mágicas escondidas em suas entranhas. Aliás, estou curioso: qual chave você gostaria de encontrar?
Tiago Toy é escritor de literatura fantástica e criador da saga Terra Morta, considerado o primeiro romance de zumbis nacional de sucesso, lançado em 2011. O primeiro livro da série, subintitulado Fuga, dominou o 1º lugar de Mais Vendidos de Horror da Amazon. Atualmente, Tiago trabalha na revisão do segundo volume a sair em 2013, na produção do roteiro de uma HQ, e na organização da coletânea Terra Morta – Relatos de Sobrevivência a um Apocalipse Zumbi. Tiago Toy também é colaborador do portal de Horror Boca do Inferno e contista presente na lista de Mais Vendidos da Amazon. about.me/tiagotoy facebook.com/terramortaoficial
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barco a vapor trouxe-nos de Constantinopla até à costa da ilha de Prinkipo, onde desembarcamos. Não eram muitos os passageiros. Havia uma família polonesa, pai, mãe, filha e o noivo desta, e nós dois. Oh, sim, e não posso esquecer-me de que, quando já estávamos na ponte de madeira que liga o Chifre Dourado a Constantinopla, juntou-se a nós um grego, um rapaz bastante jovem. Era provavelmente um artista, a avaliar pela pasta que trazia debaixo do braço. Os cabelos longos,
a ela. Apoiava-se no noivo quando caminhava e ficava sentada com bastante frequência para descansar, enquanto uma pequena tosse seca e persistente interrompia os seus murmúrios. Sempre que tossia, o seu acompanhante parava atenciosamente a caminhada. Ele olhava sempre para ela com um ar de compaixão sofredora, mas ela lhe devolvia o olhar e dizia: – Não é nada. Estou feliz! Eles acreditavam na saúde e na felicidade. Por recomendação do grego, que se separou de nós assim que chegamos
damente de costas para as rochas para que não pudéssemos ver os seus desenhos – disse eu. – E nem precisamos vê-los – disse o jovem polonês. – Temos à nossa frente paisagem suficiente para admirar. – Um pouco depois, acrescentou: – Parece-me que está nos retratando como uma espécie de pano de fundo. Bem, deixe-o para lá! Tínhamos realmente paisagem suficiente para olhar. Não existe canto do mundo mais bonito ou mais feliz do que Prinkipo! A mártir política, Irene, contemporânea de Carlos Magno, viveu ali
pretos e ondulados, flutuavam-lhe até os ombros, o rosto era pálido e os olhos negros estavam profundamente enterrados nas órbitas. O rapaz despertou o meu interesse desde o início, principalmente pela sua delicadeza e conhecimentos das condições locais. Só que falava demais e acabei me afastando dele. A família polonesa era bem mais agradável. O pai e a mãe eram pessoas bondosas e simpáticas, o noivo, um moço jovem e bonito, de modos diretos e refinados. Dirigiam-se a Prinkipo para passar os meses de Verão por causa da filha, que se encontrava um pouco abatida. A bonita e pálida moça ou estava se recuperando de uma doença grave ou, então, uma doença séria estava chegando
ao cais, a família instalou-se no hotel da colina. O encarregado do hotel era um francês e todo o edifício estava confortável e artisticamente equipado, seguindo o estilo francês. Tomamos o café da manhã juntos e, quando o calor do meio-dia esmoreceu um pouco, decidimos subir para as colinas, onde, no bosque de pinheiros siberianos, nos deliciamos com a vista. Mal tínhamos acabado de encontrar um lugar adequado para nos instalarmos quando o grego reapareceu. Cumprimentou-nos levemente, olhou ao redor e sentou-se a poucos passos de nós. Abriu a pasta e começou a desenhar. – Acho que ele se sentou proposita-
durante um mês, quando estava no exílio. Se eu pudesse ali viver durante um mês, viveria feliz com as memórias daquele lugar para o resto dos meus dias! Jamais esquecerei aquele único dia que passei em Prinkipo. O ar era tão límpido como um diamante, tão suave e meigo que a nossa alma pairava nele, elevando-se na distância. À direita, para lá do mar, elevavam-se os acastanhados picos asiáticos; à esquerda, ao longe, estendiam-se as violáceas costas íngremes da Europa. A vizinha Chalki, uma das nove ilhas do Arquipélago do Príncipe, erguia-se com as suas florestas de ciprestes até uma altura pacífica como um sonho lamentoso, coroada por uma grandiosa estrutu-
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lágrimas. A mãe dela comoveu-se também e chorou, e eu – até eu – senti uma estran anha pontada. – Aq Aqui, o corpo e a mente têm de melhorar – murmurou a moça. – Que terra feliz é est esta! – Deus sabe be qque não tenho inimigos, mas se os tiv tivesse, seria capaz de perdoá-los aqui qui! – exclamou o pai com a voz trêmul mula. E fi ficamos ca mais uma vez em silêncio. Estáv távamos todos com uma disposição maravilhosa – todo o cenário era indesma critivelmente doce! Cada um de nós sentia um mundo de felicidade dentro de si e todos partilharíamos a felicidade com o resto do mundo. Todos nós sentíamos ra – um asilo para aqueles aque cujas mentes estavam am doentes. O Mar de Mármara M agitava-se suavemente e exi exibia todas as cores, como uma opala brilhante. Ao longe, o mar era branco como o leite, depois rosado; entre ambas as ilhas, brilhava em tons alaranjados e, por baixo de nós, era maravilhosamente azul-esverdeado, como uma safira transparente. Era resplandecente em sua própria beleza. Não se avistavam grandes navios – apenas duas pequenas embarcações com a bandeira da Inglaterra corriam velozes ao longo da costa. Uma delas era um barco a vapor do tamanho de uma torre de vigia, a outra tinha cerca de doze remadores e, quando os seus remos se erguiam da água simultaneamente, caíam deles pingos de prata derretida. Os golfinhos confiantes nadavam ao redor e mergulhavam com longos e arqueados voos à superfície da água. O céu azul era ocasionalmente cruzado pelas calmas águias que planavam, medindo a distância entre os dois continentes. Toda a encosta que se estendia por baixo de nós estava coberta de roseiras carregadas de rosas cuja fragrância inundava o ar. A música viajava até nós através do ar límpido, vinda do café perto do mar e ligeiramente abafada pela distância. O efeito era encantador. Ficamos todos sentados em silêncio, deixando que as nossas almas embebessem completamente aquela imagem do paraíso. A jovem polonesa estava deitada na relva, com a cabeça apoiada no colo do noivo. Seu rosto pálido, oval e delicado, estava ligeiramente tingido com uma cor suave e de seus olhos azuis começaram a cair subitamente lágrimas. O noivo entendeu, curvou-se e beijou cada uma das 48 /// BANG!
o mesmo – e, por isso, ninguém perturbou ninguém. Mal tínhamos reparado no grego que, passada cerca de uma hora, se levantara, fechara a pasta e com um ligeiro aceno de cabeça anunciara a sua partida. Nós ficamos. Finalmente, depois de várias horas, quando, ao sul, a distância se começava a tingir de um tom violeta escuro, tão magicamente bonito, a mãe recordou-nos que estava na hora de partir. Levantamo-nos e caminhamos até o hotel com os passos soltos e descontraídos que caracterizam as crianças despreocupa-
das. Sentamo-nos sob a bonita varanda coberta do hotel. Tínhamos acabado de nos sentar quando começamos a ouvir sons de briga e impropérios. O nosso grego estava discutindo com o encarregado do hotel e nós ficamos escutando, por pura diversão. A diversão não durou muito tempo. – Se eu não tivesse mais hóspedes – rosnou o encarregado, subindo os degraus na nossa direção. – Mas me diga, por favor, senhor – pediu o jovem polonês quando o funcionário se aproximou –, quem é aquele cavalheiro? Como ele se chama? – Oh! Quem sabe como se chama o sujeito? – resmungou o encarregado, olhando venenosamente para baixo. – Nós chamamos-lhe de o Vampiro. – É um artista? – Mas de rico ofício! Ele só desenha cadáveres. Assim que alguém morre em Constantinopla ou aqui na vizinhança, ele tem, no próprio dia, um retrato completo do falecido. O sujeito pinta-os com antecedência e nunca se engana – é como um abutre! A velha mulher polonesa gritou assustada. Em seus braços, repousava a filha, branca como a cal. Tinha desmaiado. Em um só impulso, o noivo desceu os degraus. Com uma mão agarrou o grego e, com a outra, a pasta dos desenhos. Corremos atrás dele. Os dois homens rolavam pela areia. O conteúdo da pasta espalhou-se por todo o lado. Num dos desenhos, feito a carvão, estava a jovem polonesa, de olhos fechados e com uma coroa de murta na cabeça.
Jan Neruda (1834 – 1891) nasceu em Praga e foi um jornalista, autor e poeta checo, um dos representantes mais notáveis do Realismo Checo, assim como membro da “Escola de Maio”.
Se perguntarmos ao grande público o que é o Fantástico, certamente, não haverá muita dificuldade na resposta e nos exemplos: são histórias de coisas que não existem e trata-se do gênero mais frequente nas grandes bilheterias do cinema, da base da maioria das Histórias em Quadrinhos e é aquele que domina grande parte das listas dos livros mais vendidos em quase todo mundo. Contudo, a origem desse gênero (que, a princípio, era “apenas” literário) é, e sempre foi, muito discutida e questionada, e seus limites não são tão óbvios assim. Muitos críticos e historiadores literários atribuem ao romance gótico O
Castelo de Otranto (1764), do inglês Horace Walpole (1717-1797), a origem do gênero; outros dizem que foi somente com o contista alemão E. T. A. Hoffmann (17761822) que o fantástico começou de fato, já no início do século XIX; e outros ainda, acreditam ter sido o romance O Diabo Enamorado, do francês Jacques Cazotte (1719-1792), publicado pouco depois do livro de Walpole, o primeiro texto fantástico propriamente dito. Por fim, há, inclusive, quem diga que o gênero sempre existiu; segundo essa vertente, ele derivaria diretamente das grandes narrativas épicas, tais como A Ilíada e A Odisseia, de Homero, o livro As Mil e uma noites e a epopeia de Gilgamesh. Entretanto, sem entrar nessa discussão, é inquestionável que foi no final do século XVIII e no século XIX que o gênero fantástico ganhou os contornos
que lhe atribuímos hoje e uma definição possível e bastante abrangente: fantástico é uma narrativa que subverte e/ou extrapola as regras e limites daquilo a que chamamos de Realidade. No Brasil, essa questão torna-se um pouco mais simples, uma vez que é somente no século XIX que a literatura, de fato, brasileira se consolida. Em outras palavras, o fantástico brasileiro nasce praticamente ao mesmo tempo que a noção de literatura nacional, quando, após a independência, os primeiros românticos brasileiros conquistaram seu espaço e a literatura fantástica stricto sensu, nascida com o romantismo gótico do final do século XVIII, na Europa, ganha formas mais definidas.
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No início, as manifestações do fantástico eram poucas. Raros são os textos com elementos fantásticos antes de 1850, pois, naquela época, o Brasil (e por consequência, sua literatura) ainda estava se estabilizando enquanto nação e, por isso, os textos da primeira metade do século XIX são, sobretudo, obras de inspiração nacionalista e ufanista, ou mesmo regionalista, no intuito de exaltar a identidade nacional e buscar as nossas raízes histórico-culturais. Contudo, alguns românticos herdeiros do romantismo gótico já davam mostras de um ainda invisível fantástico brasileiro. UM SONHO
Salvo relatos esparsos de mitos e lendas de nosso folclore, talvez a primeira manifestação propriamente fantástica na literatura brasileira tenha se dado com o conto “Um sonho”, do esquecido Justiniano José da Rocha (1812-1863), político, jornalista e escritor romântico. Seu conto “Um sonho”, publicado em 11 de janeiro de 1838, no jornal O Cronista, a traz a história de Maria e Teodora, avó e neta, que vivem pobremente em residência que parece ter sido bela e rica, um dia. A menina nada sabe de seus pais até que, em seu leito de morte, Maria resolve contar o segredo de suas origens: Teodora era filha de Tereza, filha única de Maria, que fugiu da casa materna e seguiu uma vida de excesso e devassidão. Anos depois, Maria, que sempre procurara pela filha, recebe uma carta de Tereza pedindo-lhe que venha encontrá-la. A moça, antes tão bela, é achada suja e envelhecida, à beira da morte. Pouco antes de morrer, entrega a pequena filha à mãe. Isso tudo Maria conta a Teodora antes de falecer. Mais alguns anos se passam e Teodora se deixa corromper e segue os passos da mãe. Fraca e infectada pela tuberculose, é acometida pelo remorso. Então, uma noite, o fantasma de Tereza aparece para a filha e diz: “não quiseste seguir os conselhos de tua avó, preferiste o exemplo de tua mãe: pois bem! venho aplaudir-te; daqui a três dias estarás comigo... no inferno”. A moça acorda desesperada e dá-se conta de que tudo foi somente um sonho, arrependida, jura a si mesma que mudará de vida. Contudo, passados os três dias, Teodora cessa de existir. O conto, portanto, lança a dúvida se de fato o fantasma apareceu para Teodo50 /// BANG!
ra, ou se tudo não se passou de um sonho. A aparente coincidência suscitada pela morte da menina intensifica a hesitação do leitor, hesitação que torna o texto verdadeiramente fantástico, segundo a teoria de Tzvetan Todorov, autor de Introdução à Literatura Fantástica. NOITE NA T AV E R N A
É, porém, com Manuel António Álvares de Azevedo (1831-1852), que o fantástico de fato ganha força no Brasil, ainda que com poucos elementos verdadeiramente brasileiros. Considerado o maior expoente do chamado ultrarromantismo, Álvares de Azevedo tinha em Lorde Byron (1788-1824) seu grande mestre e, por isso, trouxe não apenas muito do romantismo melancólico inglês para suas obras, mas também a atmosfera gótica de terror, mistério e sonho, este último tal como se viu no conto de Justiniano. Azevedo morreu cedo, antes de completar 21 anos, mas foi autor de uma obra relativamente extensa, permeada por elementos sobrenaturais tipicamente fantásticos, como se vê em Noite na taverna, a seu único livro de contos. Essa obra conta a história de um grupo de boêmios que, após uma orgia, narram suas aventuras dramáticas e surpreendentes aventuras amorosas. As histórias estão repletas de crimes e perversões desde homicídios até necrofilia, antropofagia, fratricídio, incesto e infanticídio, inferindo aos contos um ar trágico e macabro, típico do romance gótico. Apesar disso, dentre todas as narrativas do livro, a única que traz de fato o sobrenatural é o conto “Solfieri”. Ele começa com a visão de uma bela noite enluarada, Solfieri passeia pelas ruas de Roma quando vê ao longe uma sombra que parecee ser uma mulher chorando. A cena é teatral: luzes se apagam, a lua desaparece, começa a chover. Solfieri tenta seguir a sombra em meio à escuridão e, de repente, percebe estar em um cemitério. Sem saber como adormeceu, u
acorda pela manhã ainda no cemitério e as únicas “provas” de que tudo não foi apenas um sonho são as urzes quebradas junto a um túmulo. A cena acaba e permanece a dúvida. Um ano depois, o rapaz retorna a Roma e novamente se depara com o insólito: em um templo vazio encontra a mesma moça que julgara ver no ano anterior abandonada em um caixão aberto; tudo leva a crer que ela está morta, mas, inexplicavelmente, ela acorda. Não se pode saber ao certo se estava morta e por milagre acordou, ou se estava viva e seria enterrada enquanto dormia; esta dúvida entre uma explicação sobrenatural e uma explicação lógica possível é ainda corroborada pelo fato de Solfieri estar ébrio quando a encontra. Ao fim, ele a salva, mas a moça acaba morrendo. MACÁRIO
Já na peça Macário, o fantástico está presente desde o começo e permanece em todo o texto que se inicia com a chegada de Macário a uma estalagem. Lá, pede a ceia e descobre que seu burro fugiu levando consigo suas bagagens. Enquanto come, entra o “desconhecido”. Desconsolado por ter perdido o cachimbo – que estava junto na bagagem que o burro levava – e por não ter vinho na taverna, Macário se queixa ao desconhecido, que prontamente tira uma garrafa das vestes e dá-lhe outro cachimbo; quando Macário pede-lhe fumo recebe a resposta: “É uma invenção nova. Dispensa-o.” O jovem agradece e pergunta o nome do desconhecido que se nega em dizê-lo. Cria-se, então, um suspense em torno de sua identidade, mas ao fim ele admite ser o diabo. E para desconcerto do leitor, Macário não se surpreende com essa revelação. Um tempo depois, já na casa de Satã, os dois conversam frente a uma janela; bebem, fumam. Ouve-se um grito agourento ao longe; o diabo comenta que é meia-noite. O diabo leva Macário para o campo e adverte que ele deve dormir. O rapaz acorda sobre um túmulo,
despertado por Satã, que lhe pede que conte o que sonhou; Macário diz que sonhou com uma mulher pensativa que caminhava nua entre cadáveres e que os tomava nos braços. Ouve-se, então, novo grito; Satã diz que é “o último suspiro de uma mulher que morreu”. O jovem treme de medo, e pergunta de quem é o suspiro, ao ouvir de que é de sua mãe já morta, começa a chorar e Satã a rir. Macário pede que o outro vá embora, este vai, não sem antes dizer que pela manhã Macário o chamará de volta. Acaba a cena. Tal como em Noite na tavernaa a atmosfera fantástica se intensifica e o horror, frente ao que lhe é narrado, surpreende o leitor. Novamente se está, como no conto de Solfieri e no de Justiniano, no âmbito do fantástico onírico. E o fantástico apenas se intensifica na cena seguinte, quando Macário acorda na estalagem onde conhecera Satã. A moça da estalagem lhe informa que faz horas que tenta acordá-lo; ao vê-la, Macário faz perguntas sobre o burro e sobre o desconhecido; ela lhe responde que o burro está amarrado na baia, que ninguém lhe fez companhia à noite e que ele não deixou a estalagem um só momento e conclui, benzendo-se: “Se não foi por artes do diabo, o senhor estava sonhando.” Aliviado, Macário chega à conclusão de que tudo não passou de um sonho, mas eis que vê uma marca no chão; mostrando-a para a moça esta se assusta e diz: “Um pé de cabra... um trilho queimando... Foi o pé do diabo! O diabo andou por aqui!” Desta forma termina o primeiro episódio, de modo que, assim como em relação ao sonho que teve no cemitério, Macário fica sem saber se seu encontro com o diabo realmente aconteceu. Sonho dentro do sonho. O relato da moça, a presença do burro, tudo leva a crer que foi apenas um sonho, porém, há a marca no chão – assim como havia marcas ao redor do túmulo na narrativa de Solfieri. O fantástico retorna nas últimas páginas do livro, quando, Macário se reencontra com Satã. Ambos se dirigem a uma “sala fumacenta”, e veem através da
O Pesadelo, Fuseli janela uma orgia. A peça termina com as duas personagens ouvindo os homens que conversam lá dentro. O CONDE LOPO
Para além de seus textos em prosa, Álvares de Azevedo também se valeu do fantástico em alguns poemas, como em O Conde Lopo, longo poema narrativo, ou, como preferem alguns, longo “romance metrificado”. O livro conta a história das aventuras do conde. Em uma das passagens mais interessantes, ele está num jardim, meio ébrio, não se sabe ao certo se dormindo, e então eis o primeiro acontecimento estranho: surge um fantasma. Os dois conversam e o fantasma se revela uma moça, ou uma sílfide, e o conde lhe cobre de perguntas. Mas “a visão não falou” e vão juntos para a beira de um lago onde se encontram com um barqueiro e para pagar-lhe os serviços o conde dá-lhe um rico colar. O barco se lança às águas e a sílfide começa uma canção belíssima. Mas, inesperadamente, a música cessa, a donzela desaparece, tudo se esvai, o conde percebe que tudo não passou de um sonho. Em outro trecho, vê-se uma cavalgada, um corcel infernal guiado pelo conde; logo, juntam-se a ele outros cavaleiros. Percebe-se, então, que estes parecem estar
Inesperadamente, a música cessa, a donzela desaparece, tudo se esvai, o conde percebe que tudo não passou de um sonho
mortos e pelo cheiro, ele conclui que são fantasmas. Tudo o que se sabe é que o conde se juntou a fantasmas nesta horrível cavalgada silenciosa, pois embora muito tenha tentado falar, por falta de resposta se calou. Cansado pela cavalgada, o conde cai; ouve-se o som das gargalhadas dos fantasmas; com esforço, consegue sair do alcance das patas dos cavalos. E exausto, desmaia, não como um morto, mas como um bêbado. Acordou um tempo depois sentindo as pernas serem puxadas, “abriu os olhos turvos – viu em torno/ Um batalhão de folgazões espíritos/ Diabinhos pigmeus d’olhos brilhantes”. “Ergueu-se maldizendo a noite aziaga”; ouviu uma risada aguda e avistou ao longe outro fantasma, que lhe vendo tremer de horror foi com ele falar. O fantasma queixa-se de frio e então oferece guarida ao rapaz em seu túmulo de pedras. O Conde Lopo, entretanto, logo o deixa e caminha até uma Igreja onde soavam os sinos da meia-noite. Novamente, meia-noite. Continuando em sua errante caminhada, chega a um banquete, no qual todos os convivas estão mortos. Isso, curiosamente, agrada-lhe; senta-se com eles e toma para si uma taça de vinho, porém, ao provar, sente o gosto de sangue; com isso já não mais lhe agrada a cena; acha-a pavorosa. Eis que se BANG! /// 51
levanta um fantasma pútrido, que outrora fora uma mulher, e convida-o a dividir-lhe o leito; o conde não aceita, inesperadamente os fantasmas em coro repetem: “À dança! à dança!” e, formando um círculo em torno do conde, começam a dançar, e tanto dançam e giram que o conde sente vertigens. Tudo se dissipa. O livro continua assim por muitos trechos, nesse imenso percurso entre o sonhar e o despertar que confunde o leitor e suscita o fantástico. O Conde Lopo pode ser cotejado com os outros textos de Azevedo, pois em todos há a possibilidade de explicação natural dos sonhos, como havia em Macário, em “Solfieri” e no conto de Justiniano, mas ainda assim, percebe-se o elemento fantástico tão caro a Álvares de Azevedo.
Já com Macedo, e seu conto “O Fim do Mundo” o Brasil se torna palco dos acontecimentos insólitos e das aventuras do último homem da terra. Mas o fantástico de Macedo não se limita a este conto. Ainda na década de 1860, a publica o livro A Luneta Mágica, outra história de viés alegórico, ambientada no Brasil, livro que foi considerado o primeiro romance fantástico brasileiro. A LUNETA MÁGICA
AS BRUXAS
Passando, então, a outro texto emblemático, encontramos o também ultrarromântico Fagundes Varela (1841-1875) que nos deixou seu conto “As Bruxas”. Publicado muitos anos depois de sua morte, “As Bruxas” traz outro tipo de fantástico, no qual há a certeza do elemento sobrenatural. Neste conto, um grupo de marinheiros é encantado por bruxas que chegam voando em suas vassouras. Já no navio, as bruxas, transformadas em belas mulheres, seduzem-nos e o grupo parte em viagem para mundos estranhos, onde os jovens colhem plantas típicas. Quando voltam, elas retomam a aparência grotesca e voam em suas vassouras. No dia seguinte, mostram as plantas que trouxeram ao capitão que, surpreso, conclui que em uma só noite haviam ido à Índia e voltado. Neste conto, não há o sonho propriamente dito, porém, tal como em Macário ou “Solfieri” o elemento sobrenatural aparece à noite, e somente à luz do dia é que se consegue questioná-lo e, neste caso, confirmá-lo. O FIM DO MUNDO
Por fim, como um último exemplo do fantástico onírico vale lembrar o conto “O Fim do Mundo”, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). Mais conhecido como o autor de A Moreninha, a Macedo foi autor de alguns textos significativos para o fantástico brasileiro. Em 13 de Junho de 1857, quando havia rumores de que um grande cometa colidiria com a terra, Macedo publicou no Jornal do Commercioo o conto “O Fim do Mundo”. Texto alegórico, de viés pseudocientífico e bastante político, traz a história do homem que resolve fugir do fim do mundo criando uma escada imaginária com os bancos do país, na base da escada está o Banco do Brasil e acima dele os bancos menores. Com isso, consegue se refugiar na Lua e voltar à terra após a passagem do cometa. Já na Terra, descobre que todos os seres estão mortos e que é o último homem do planeta. Ao fim, acorda e comemora que o mundo não acabou.
O livro conta as aventuras de Simplício, um rapaz quase cego que sonha em enxergar. Por isso, procura o Reis, um vidraceiro, que, após muito tentar, percebe que nenhuma de suas lentes pode ajudá-lo. Com pena de Simplício, Reis o apresenta ao armênio, um mágico europeu com quem trabalha. O armênio promete-lhe então uma luneta, mas adverte que se olhar por ela por muito tempo verá o que há de pior no mundo. A luneta acaba lhe trazendo infelicidade e uma série de infortúnios e, depois de um tempo, ele retorna ao armênio que lhe faz uma nova luneta, desta vez, com lentes capazes de mostrar apenas o bem. Todavia, novamente, essa luneta lhe traz problemas, pois, enxergando somente o bem, Simplício passa a ser enganado por todos. No fim, o armênio lhe presenteia com a luneta do bom senso com a qual Simplício pode ver o mundo em sua totalidade, com seu lado bom e seu lado mau. DANÇA DOS OSSOS
De modo muito diferente, Bernardo Guimarães (1825-1884), o último dos românticos de que iremos falar, também retratou o Brasil. Mas outro Brasil. Em seu conto “Dança dos Ossos”, publicado no livro Lendas e Romancess em 1871, temos um “causo” típico das regiões rurais do país. Nesta história, Cirino, um velho barqueiro, conta ao narrador a fatídica vida de Joaquim Paulista, assassinado, à traição, no meio da mata, por um antigo pretendente de sua namorada, e, em seguida, Cirino conta como veio a se encontrar com o fantasma de Joaquim. O caso é que a alma de Joaquim Paulista permanecia vagando e assombrando a redondeza, pois seu corpo não fora devidamente enterrado e seus ossos se espalharam pelo local. O conto traz alguns elementos da narrativa de horror de fantasmas, mas, ao mesmo tempo, tem um veio de humor satírico, tal qual o conto “A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça”, do escritor americano Washington Irving (1783-1859), com o qual se assemelha em diversas passagens. ORGIA DOS DUENDES
Se por um lado Álvares Azevedo foi muito importante por ter sido um dos primeiros a tratar largamente do gênero fantástico no Brasil, por outro, não se preocupou em dar ares nacionais a seus textos que se passavam todos na Europa ou em locais imaginários. Com Fagundes Varela, um tema como as viagens às Índias vem à tona, algo muito mais próximo ao imaginário brasileiro da época, ainda de maneira tímida. 52 /// BANG!
Já em “Orgia dos Duendes”, um longo poema narrativo, Guimarães conta a história de uma espécie de sabá, onde bruxas, duendes, um lobisomem, uma mula sem cabeça, diversos diabinhos, um crocodilo e alguns sapos se reúnem frente a uma fogueira para danças macabras enquanto contam as histórias de suas perversões para sua rainha. Ao fim de vários horrores, a orgia dos duendes acaba. O dia amanhece, os pássaros cantam, pareceria ter sido um sonho,
se uma bela donzela virgem não tivesse assistido a tudo escondida nas sombras de um arvoredo. CONTOS AMAZÔNICOS
Em caminho semelhante, o escritor realista Inglês de Sousa (1853-1918) compôs seus Contos Amazônicos,s publicados em 1893. Neste livro, tal como Guimarães fez em “Orgia dos Duendes”, o autor brincou com o folclore nacional e mitos amazonenses que resultaram em contos como “Acauã” e “O Baile do Judeu”. O primeiro conta a história do Capitão Jerônimo Ferreira que, certa vez, perdido na floresta encontrou uma menininha em uma barca, a qual deu o nome de Vitória. Levou-a consigo e a criou como irmã legítima de sua filha Aninha. Quando cresceram, Vitória tornou-se uma criatura estranha de hábitos escusos e Aninha tornou-se quieta e melancólica, ainda que bela. No dia do casamento de Aninha, Vitória não apareceu; porém, durante a cerimônia, Aninha começou a convulsionar e a gritar “Acauã, Acauã”, nome de uma ave de rapina da região. O Capitão desesperado olhou ao redor e viu por um instante Vitória que logo desapareceu, e então um grito agudo foi ouvido no telhado, Aninha parou de se mover. “Todos compreenderam a horrível desgraça. Era o Acauã!” Com este final enigmático, o conto termina deixando ao leitor a tarefa de imaginar se Vitória era Acauã ou se foi Aninha quem se tornou o pássaro. Já o conto “O Baile do Judeu” é aquele tipo de texto que não se mostra fantástico até quase o final. A história começa com os preparativos da festa do judeu que convidou todas as pessoas das redondezas, inclusive Dona Mariquinhas, uma bela senhora recém-casada com o tenente-coronel Bento de Arruda. Em meio à festa, surge um estranho de gola alta e chapéu que lhe tira para dançar. Chegam a desconfiar que se trata de Lulu Valente, um dos pretendentes que Dona Mariquinhas tivera quando solteira. A dúvida permanece e o casal começa a rodopiar assustadoramente rápido. Preocupado, o tenente-coronel se levanta para pará-los; no entanto, neste mesmo instante, o estranho deixa cair o chapéu e com assombro todos veem que há um furo em sua cabeça como o boto do mito. Ele, então, se precipita pulando no rio, levando Dona Mariquinhas consigo.
A ficção científica, que nada mais é do que uma das possíveis variantes do fantástico, difundiu-se no século XIX, sobretudo, a partir das obras de Júlio Verne (1828-1905), seu principal precursor. No Brasil, Júlio Verne foi muito lido e também muito traduzido. E até imitado. Outros ainda fizeram obras à sua maneira, como é o caso de Augusto Emílio Zaluar (1825-1882), escritor português naturalizado brasileiro, autor do romance Dr. Benignus,s publicado em 1875 e considerado o primeiro livro de ficção científica brasileiro. O livro conta a história de Dr. Benignus, um cientista que busca transcendência espiritual através do conhecimento científico e do recolhimento. Para tanto, parte com sua família para regiões desabitadas e inicia uma vida de naturalista. Em meio às suas pesquisas, encontra uma caverna onde indícios levam-no a crer que o sol é habitado por uma espécie de vida inteligente. Por fim, um dos habitantes do sol entra em contato com o doutor e conta-lhe que eles o estão observando e que ele deve continuar suas pesquisas em sua busca espiritual. DEMÔNIOS
Já o conto “Demônios”, do escritor naturalista Aluísio de Azevedo (1857-1913), publicado em 1893, traz à literatura brasileira toda a carga cientificista do fim do século ao contar a história do último casal de humanos na terra que, inesperadamente, desperta em meio a um mundo morto e em decomposição. Inicia-se então um processo de involução, no qual as personagens vão voltando a estados primitivos, passando de homens a bichos, de bichos a vegetais, e então a minerais, para por fim cessarem de existir. O conto, muito bem elaborado, transmite com maestria toda a carga de horror das personagens no início, mas depois vai tratando as transformações com naturalidade, à medida que elas perdem a capacidade racional. O texto termina com o despertar do narrador que percebe
“Demônios” traz à literatura brasileira toda a carga cientificista do fim do século ao contar a história do último casal de humanos na terra que, inesperadamente, desperta em meio a um mundo morto e em decomposição
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que tudo não passou de um sonho, tal qual acontecia nos textos de Álvares de Azevedo e nos contos de Justiniano e Joaquim Manuel de Macedo, reforçando, novamente, a importância do tema do sonho para a literatura da época. Semelhante ao texto de Macedo quanto ao tema do fim da humanidade, o conto de Aluísio se distingue, porém, por ser naturalista e não alegórico, preocupado como estava em mostrar o caráter científico e não político da vida dos últimos habitantes da Terra.
Paralelamente a todas essas publicações, como não poderia deixar de ser, Machado de Assis (1839-1908), talvez o mais versátil dos autores brasileiros do século XIX, escrevia contos e mais contos do gênero fantástico. Em estilo variado, Machado compôs textos alegóricos, satíricos, de horror e de humor, ou mesmo absurdos, antecipando o que faria Franz Kafka (1883-1924) ou mesmo Italo Calvino (1923-1985) anos depois. Dentre sua vasta produção destacam-se os contos “As Academias de Sião”, “Uma visita de Alcibíades”, “A Igreja do Diabo”, “A Segunda vida”, “O Imortal”, “O Esqueleto”, “Mariana”, “O anjo Rafael”, “O Capitão Mendonça”, “A vida eterna”, “O país das quimeras”, “O anjo das donzelas”, “Os óculos de Pedro Antão” e “A mulher pálida”, além de, é claro, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubass que, embora não traga nenhum acontecimento propriamente fantástico em seu enredo, parte de uma premissa sobrenatural: a história da vida de Brás Cubas contada por ele mesmo, depois de morto. Dentre os contos, destacaremos alguns para demonstrar a diversidade e maestria de Machado. Comecemos pelo célebre “A Igreja do Diabo”. A IGREJA DO DIABO
Nesse conto, o Diabo, enfadado do Caos em que vive e de ter sido sempre relegado ao segundo plano, resolve fundar uma Igreja própria. Sobe, então, aos Céus para contar tudo a Deus. Deus lhe diz que pode tentar e o Diabo vem a Terra. Assim, a Igreja do Diabo é fundada 54 /// BANG!
e ele começa a pregar os vícios e a condenar as virtudes. Sua nova religião logo se espalha por todo o mundo e, pela primeira vez, ele conhece o sucesso; entretanto, sua alegria dura pouco, pois percebe que alguns humanos passaram a praticar suas antigas virtudes, às escondidas. Revoltado, sobe aos Céus novamente para questionar Deus, que, simplesmente lhe responde que assim contraditória é a natureza humana. UMA VISITA DE ALCIBÍADES
Já em “Uma visita de Alcibíades”, Machado brinca com uma ideia absurda: e se uma personagem do passado simplesmente entrasse por nossa porta? Como reagiríamos? No conto, o desembargador X escreve ao chefe de polícia da corte o que lhe sucedeu quando ninguém menos do que Alcibíades, o grande general grego, saiu das páginas das crônicas do passado para visitá-lo. Felizmente, o desembargador era versado em grego antigo e assim consegue conversar com o general. Alcibíades se mostra surpreso com as novidades pelas quais o mundo passou desde sua época e o desembargador conta-lhe tudo em uma estranha atitude que parece aceitar a visita insólita. Ao fim, Alcibíades morre de um ataque, inconformado com as roupas da época. E o desembargador se desespera por não saber o que fazer com o cadáver vestido à maneira grega caído em sua sala.
A SEGUNDA VIDA
Por fim, no conto “A Segunda vida”, temos o relato de um homem que alega ter morrido, subido aos céus e, por ter sido a milésima alma do grupo que o recebeu, foi escolhido para reencarnar e viver uma nova vida. Não havia opção, tinha de reencarnar, mas poderia escolher como viria, e ele escolheu reviver com todo o conhecimento que tivera na vida anterior. Tudo isso conta José Maria, o homem reencarnado, ao monsenhor Romualdo, que, desconfiado, não tira os olhos de José Maria temendo que este esteja louco. O homem então continua seu relato e conta que o saber não lhe trouxe felicidade, tornou-se desconfiado, medroso, covarde e conforme narrava se tornava mais desesperado, agressivo e agitado. Em dado momento, José conta que sonhou com o Diabo e que o Diabo ria de sua péssima escolha e de sua juventude perdida. José então se levanta ante o padre que começa a recuar e com olhos ensandecidos José Maria lhe declara que não há como escapar. O conto termina com o som de espadas e pés e a ação em suspenso. Machado, portanto, inovou em diversos pontos: trouxe o tema da loucura que estava em voga na Europa, sob a pena de Guy de Maupassant (1850-1893) e Robert Louis Stevenson (1850-1894) para seus contos fantásticos. O fato é que o tema da loucura vinha substituindo o sonho como explicação para o sobrenatural, uma vez que possibilitava textos mais elaborados e suscitava a dúvida do leitor. Por outro lado, Machado também inovou ao escrever contos insólitos como “Uma visita de Alcibíades” nos quais não há explicação coerente nem dentro nem fora da narrativa, de modo que é o desconcerto do leitor ante a aceitação da personagem que cria essa nova poética do absurdo que irá se desenvolver no século XX e dará origem a diversos subgêneros fantásticos.
Por fim, para concluir este breve panorama, escolhemos falar da novela “O Sapo”, de Nestor Victor (1868-1932), publicada no livro Signoss em 1897. Nestor Victor ficou conhecido como o mais importante crítico do movimento simbolista. Amigo fiel de Cruz e Sousa (1861-1898), cuidou de publicar as obras do poeta após sua morte com uma dedicação ímpar. Talvez por isso, a própria obra poética e ficcional de Victor tenha permanecido esquecida, como é o caso desse brilhante livro Signoss e, sobretudo, da novela “O Sapo”. Neste conto, um jovem rapaz, em uma atitude tipicamente decadentista, alheia-se da sociedade de maneira radical até que se vê transformado em um sapo horrível com manchas amarelas e verdes. Escrito em linguagem expressionista, como acontecia com muitas das obras em prosas do simbolismo, “O Sapo” lembra de imediato o livro A Metamorfose,e de Franz Kafka que só viria a ser publicado em 1915. O conto de Victor, portanto, parece uma espécie de conto kafkiano, escrito antes de Kafka e, por isso, pareceu a escolha ideal para finalizar este panorama. Infelizmente, tivemos de deixar de fora muitos nomes importantes, tanto de autores, como Afonso Arinos (1868-1916), como de obras dos autores citados. Tentamos destacar os textos que nos pareceram mais importantes e representativos dentro do gênero fantástico em seus primórdios, retendo-nos, portanto, apenas ao século XIX, no intuito de evidenciar as origens e transformações pelas quais o gênero passou em suas primeiras décadas até se consolidar e se diversificar, de Justiniano a Nestor Victor, do relato onírico ao absurdo, passando pelo “causo”, pela lenda folclórica e pelo tema da loucura, de maneira a mostrar como o fantástico se tornou no século XXI um dos gêneros mais lidos e comentados, no Brasil e no mundo. PARA SABER MAIS: BATALHA, Maria Cristina. O Fantástico Brasileiro – Contos Esquecidos. Rio de Janeiro: Caetés, 2011. CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1950. Belo Horizonte: UFMG, 2003. MATANGRANO, Bruno Anselmi e RODRIGUES, Ana Cristina. Insolúsitos: Narrativas Insólitas Luso-brasileiras – Século XIX. Rio de Janeiro: Llyr Editorial (no prelo). TAVARES, Braulio. Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. TAVARES, Braulio. Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.
Bruno Anselmi Matangrano é bacharel em letras (português e francês) e mestrando em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP. Editor e contista, dedica-se, sobretudo, à literatura fantástica, policial e ao movimento simbolista nas literaturas brasileira, portuguesa e francesa. Fotos: Lucas Anselmi
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um gên um ê er ero lite liiterá teeráári r o uussuaalm lmen een ente nte te ide denttifi i caddo ca o com co om m o fut u ur uro e toda to oda da a suuaa icono cono co nogr graafi fia im maagggin in nár ária ia – fog fog oguueete ogue tes, ess,, arrm mas as avanç vvaan nçççad addas adas as, me m ggaam meetr tróp óp ópol pol oleess com m dom omos os e cúp ú uullass tra rans nsspaarreen nttes tes e veeíícu culo ulo os aaeero rodi din dinâ nââm miico icco os – nãão de deixxa ddee sseer ssuurp r rreeeen nddeente nte cco nt omo mo o rettrro ofuuturi tuuri r sm mo pa pareece c prreeen eeen nch heerr o im mag agin gin inár áárrio o dom min nan ante t.A Ass navveess esp spac aciais ac acia iaais is fo orram m subst uub bst stii-tuíd tu íd das as porr dir irig igíívveiis, s, as cciida dade dess de de de asp pec ecto ecto o est sterrililizzad a o pe pelos pe lo pesaade delo lo oss ur u baano os vi vito ito t riian noss, o oss carro arrro os aé a reeos os por o ess-trran tr anh an ho os vveeíc eíc ícul cul u os os a vaap porr ccha haapa h hapa pa reb ebit i adda, os chip chhipps in ntteerrno rno os po por or ccaarrtttõe õess peerffuurraaddos õe os, e o oss biq iquí uín niis is me metáálico metá lilico os po p r co orp r eettes es de couuro de ro e baarrb baatana ttaana nas ddee bal aleia. eia.. É to ei odda uum ma n no ovvaa esttét étic ticca qquue suubs bsti tituui a vi ti visã são ddo o fut u uro urro en nquuan a to to possí ossí os sííve vveel am aman an nhãã, co ontra ntraap nt po ond ndo o--lh lhe uum m fuuttuurro do do ont n em m, uum m fuutturro do que ue poddeerriia tteer si po sido do. É eesssa ssa s a esp speccia spec ial es esté tétiica té c stteaam mppun unk k. Um ma eessté téti téti tica tica ca que, ue, een ue nco ont ntrraand an nddoo-see num m esttággio o já ta tard rdio io de de de-seenv nvo ollvime vimeen vi ntto daas suas suas su as con con nve venç enççõe ões, s,, agl glutin utin ut ina na um u a gr g aan nddee quan qu ntida tida ti dade de de in nfl fluê uênc uê ncia ias re ia rettiiira rada ra adas das da da d tra raddiiçã iççãão puulpp e rreetr troo-ppuulp lp, do cin inem ema, a, da h hiist stó órria i em qu q aaddri rinh hos os, da da mo odda do o sécu sé éccuulo o XIX IX, e do do usso o de ma matteeriiai ais e tééccn nic icass asssocciaaddo os à IIn ngl glat atter erra er rraa viittori orria iana na e eduar duar du ardi diana: ana: an a: couurro oss,, cobre obre ob r s, s, dir iriggíívvei eis, s, s, art ar rt de deccoo, tu tudo do se co comb mbin ina cco om um m im maaggiináárriio nost no ostál stál st álgi g co co e rettrrof re ofuuttur uriissttaa paarra pr pro op por po orr ouuttra ra rev evolluç u ãão o ind ndus ustr tria iaal pa p utauttaaddaa po orr rob obôs ôs a vap por or, in nte t lliigênc gêênc ncia ciiaas arti arrti tificiiaiis pr prog ogra rama maadas cco da om om ccaartõ õeess p per erfu er ffuura rado doss,, combo ombo om boio os rro odovi ddo ovi viáárrio ios, s, tanq ta nquees pe perraamb mbul ulaan nteess,, dir irig igíívveeiis aauuto toma matiizzaado dos, os, s, esttrran es ran nh haas m mááquuin naass de cch hap pas reeb bittaad das as e deess-
luumb mbra rant nttes n teess mullhe here res qu q e cco o omb mbin mb in nam m um um fe femini miini nism sm mo an anac acrô ac rô-niico n co com om o fet etic ichi ichi hismo sm mo ddee corpe orpe or pete ttees ddee cou ouro ro.. Ao Ao laaddo deestta mira mi iraabo ola lantte teecn c ol o ogia ogiaa vol og oltaadaa parra o pa pass s addo ss o,, uma ma ccor o renor reen n-tee de miisstticcissmo mo p per errcco erco orrrre esta esta es t so ob braass,, ecco oaan ndo do as po posiçõ siçõ si ções õess anim an missta tas as e re relilliiggiiios o as que os ue se baattiiam m com m as tteesees ddee Dar ar w wiin no os saalõ õess ddas ass ccla laass ssess alttas sses as, on onddee aass seen nh ho orrass nãão o pod oddia ia m ia en ntr t ar ar: seessõe sssõe õ s esspí píri r ttaass,, máqquiinaas ca c pa p ze zess de de atuuarr sob brree o ét éterr, ho éter omú múncul nccuullos los os, ttrransm an nsm smig mig igra raaçõ ra ççõ õess aní ními m caas e deze mi deeze zena nas de na d apaarrrel ap ellho hos in nfeern rnai ais is fa f zeem a po p ntte en entr tre o cco onh nhec e ido ec ido e o id imag im agin ag giin naddo nuuma ma eera rraa dom dom min inad adaa pe pela laa pal a av a rraa prrog o re ress ssso. Foii ap Fo a een naass nos ano os 19970 quee sur u gi gira raam aass priime meir meir iras as ob bra rass qu que h ho ojee enccarram amos o co om mo pi p on onei e raas do ei o ssub ubgê ubgê ub gên neerro o: Th The The Warl Wa rlorrd of the Aiirr (199711), ), de Mi Mich ch hael ael Mo ae oo orrco occkk, Thhe Sp Spaacce Spac ce M Maachin ch ine (19 in 1 76 76), ),, ddee Ch Chriist s op o he h r Pr Prie iest st, e, st, e sob bre r tuudo do,, Mo Morloc rlocck Ni rl Nigghht Nigh ((1197 979) 9),, ddee K. W. 9) W. Jet eter er, co c m meeça ç raam a fi fixa x r o im xa maggin i ário árrio i de um um maa In ngl glat ater at errraa vit i or oria i na ia n altter e na nati tiva ti ivaa, do domi min naaddaa p por orr uma o m tec ecn no olo oggiia ffaant n áássttiicaa quee, co como o no ccaaaso s de P so Prrieestt, lh he p peerrm mit itee me mesm sm mo o esteend es nder deerr o seuu iimp mp m pér pér é io parra lá lá doss lim i it ites es teerrrreest strees. s Ouuttra ra cara ca ara ract c erríssttiicaa com ct omuum m às ob bra rass ci c ttaadaas é a ma m rc rcadda in i fl fluê uên uê ncciiaa dos tr do trab abal ab ballho h s dee Verrnee e Wel ells ls,, fi figu gguuraas ce cent ntraais is da FC FC, C, cu cujaas visões vi ssõ õeess de mo modeern r oss suub bma m ri rino no n nos, oss,, navves e eesp sp pacciaaiiss, mááqu quin inas as ddo o tem e po p e crriiat atuurrass mec ecân ânic icas as no as ovveecccen een nti tist staass mar st arca carraam in nddeelleeve eve velm men enttee o ccoorppus us st stea eamppunnk, so ea eamp sobr brettud udo o at a ra ravé avés véés do do mag a níífi n ífi fico co trraaba co balh alho lh ho ddee Har arp peer G Go offff n naa cria crria iaçã çãão o do do Na Nauttililus us para arra a aaddap ptaçã taçã ta ção ão ci c ne nema matto og ogr grááfi fica de de 20 2 .000 .0000 00 Léggua uass Su Subm bmarriinnas as (V Veerrne, 18 ne 1870 7 ;R Riich char haarrrdd Flleeiisscche her, r, 199554) 4), mas mas ta ma tamb mbém m pello oss suub b bse sseesequen qu entes tees Th The Time Time Ti me Mac achi hiine ne [A Má ne Máqquuin Máqu na ddo oT Tem em mp po o] (W Wel ells ls,1 ls ,188995, 5,
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Geor Ge o ggee Pall, 1996600), ) Fi F rs r t Me Menn in in the h Moo oonn (W Wel ells ls,, 19 190011; Na N th than a JJur an uran ur a , 19964 an 6 ) e daa cuurriios ios osa sééri r e te tele tele l vi visi s vvaa Th si T e Wi W ld Wilildd W sstt [JJaame We m s We W st st]] (1 ( 96 9 55-19 1969 69). ). E Eme merg rgee daaqu quii ouutr traa ca c raact cter erís ísti tica ca ssur urpr pree eend nden ente te e iin nespe espe es p ra r da da:: o st stea eamp mpun unk k, qu quee no noss ap pre resent se n a o pa nt pass ssad ado o id idealiliza zado de uma Ing at gl a er erra ra,, e, ssob ra obre retu t do,, de umaa Londres, r tr re t of ofut utur uris ista ta, é um m sub u gêneero tipicam nt me ntee am amer e ican no.
Em 1987, 7 o mundo da FC estava ainda reve re verb rber erando o com os ecos da revolução çã o cy cybeerp rpun u k que William Gibson desenc se ncad adea eara ra em 1984 com Neuromancer. r O cy cybe berp rpun unk k era o movimento literário icon ic onoc oclá lástico o e irreeverente da moda, e, como co o tall, er e a exigente com os autores que o in qu inte tegr gravvam; entre eles contava-se K. W. Jete ter qu q e, juntamente com Tim P we Po w rs e Jam mes Blaylock, eram praticament me ntee os únicos a escrever num outro subg su bgên êner ero o do qual eram reis e senhores. re s A rev evis ista Locuss referia-se aos seus text te x os ccom xt omo uma forma “gonzo-histo“ r ca ri call” de escrita de fantasia. Nas suas pági pá gina nass de deba batia-se qual dos três começara ça ra a p praatica c r prrim imeiro esse modo de escr es crit itaa e Je J te ter, de forma mais ou menos joco jo cosa sa, submetia o seu Mo M rlock Nightt à apre ap reciiação edi d tori rial, reeferinddo-se a ele como co m uma m “fa fant ntas asia ia vit i or oria i na”. Ele c ns co nsid i er erav avaa qu q e po p deria vir a se vi serr a grande d moda lilite terá rári riaa se segu guinte, de d sde quee “se eenc qu ncon ontree um rótulo cole co letitivo vo aade dequ quad ado pa para Poweers r , Bl Blay aylo lock ck e eeuu pr próprio. Algo Al g bbas go a ea as eado do na tecn c ologia daa épo poca c ; st ca stea eamp mpun nks, t lv ta lvez e ... .”. ez ” Os lilivr vros os destees au auto t re to ress – Th T e An Anub ubis i Gate Ga tees [[O O Po P rt rtão ão ddee An Anúú biis] b s] ((19 199833), ) ddee Po P we wers r; rs Hoomu H munc ncul nc ulluss (19 1986 866) e Lo Lord r rd Keelv K lvin vin in’s’ss Mac achi hine hi nee (19 1992 92), 92 ), ambo am mbo boss de d B Bla laaylloc o k;; e In I fe fernnal D Dev evviicces e (198 (1 987) 98 7),, de 7) d Jeetter e – ffo orm mam am o
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núcl nú cleo leo e dur uro o de uum m im imag agin in nár ário io qque ue vvir iria ia a co cons nsol olid i ar id ar-s -see de ffor orma ma ssup uper erio iorr no mais ma is p per erfe feit ito o de tod odos os o oss tí títu tulo loss stteamm punk pu nk:: Th Thee Di Difffferen encee Enggin inee [A Máquinaa Dife Di fere r nccial] l] (19 1 90), de Gibson e Sterlilng n , os pais do cyberpunk, que aqui prefiguram uma Londres industrial, governada por uma meritocracia científica chefiada por Lord Byron e enriquecida por inteligências artificiais baseadas no computador diferencial proposto por Charles Babbage em 1822; é uma Londres poluída, saída das páginas de Dickens, cuja influência sobre a imagética do gênero é impossível exagerar. É, de certa forma, um mundo representado de forma inesquecível nas pranchas com que Kevin O’Neill ilustrou o fabuloso The League of Extraordinary Gentlemenn [A Liga Extraordinária], de Alan Moore (1999-2000) a obra-prima steampunk em termos de graphic novels. Normal e justificadamente excluído do cânonee steampunk, Pavanee (1968),
de K Kei eith th R Rob ober erts ts, um ccon onju junt nto o de hist hi stór ória iass in inte terl rlig igad adas as,, ap apre rese sent ntaa-no nos, s, de for o ma per erti tine nent n e (e pre nt recu curs rsor ora) a)), o ou outr tro tr o la lado d da mo do oeed da, a, n no o qu qual al umaa inci in c pi ci pien ente en tee ttec ecno n lo no ogi giaa do vap porr figur uraa como co mo m met etáf áfor orra do d aatr tras aso as o in inte tele te lect le cttua u le indu in dust du s ri st rial al que u pod oder erria i ter aadv dvvin ndo o ddee uum m tri riun riun unfo o da In I ve venc nccív ível el A Arm rmad rm ada ad da do o cato ca ato oliliici ciism mo Esspa p nhol nh hol o so ob bre re a Ing ngla l teerra de Elliizzaab bet bet eth I. I Se a te t máátiiccaa e a fo orrrma ddee trat traattam tr men e tto o afa fast astam am m cla lara rame ra m ntte me Paavvaannee do es e pí píri riitto o st sttea eeaamp mpun unk un k, al algu g ma gu m s dee ssua uaas im imag magen aggen enss, s, no om meaada dame meent ment ntee a dos dos do t en tr ens ro ens rodo dovi do vviiár viár ários ário io os a va v po p r – um m co on ntraste tr tras aste as te de tecn tecn te c ol olog oggia ava o ogia ava vanç nççadda em em um mun mu nddo me m rg rgul ulha ul haado h o nass tre r va vass de d um maa
prolongada Idade d Méd dia – ddei eixo xo ou uma marca indelével no ima magi giná nári rio o posterior. Assim, e ao fim de qu quar aren e ta en anos de desenvolvimento, o st stea eamp mpun unk k traduz uma consciência críti t ca da pr proo ogramada obsolescência da teccno nolo logi giaa moderna, aplicando-o retroativvam amen en-te ao período da história europeeia qque ue construiu o mundo em que hoje vi vive vemos. Fazendo a ponte entre as or orig igen enss da FC e a História Alternativa, o st stea eammpunk parece manifestar um profun undo do descontentamento com o presente e a desistência do futuro; ao regressaar às origens do mundo d moderno, naasccid ido o do Ilumiinism mo oi oito toce cent n issta ta, e at atua ualizanddo a es estéti tica ca ddo o gê gêne nero ro llit iter erár ário io o que semp mpre re ttraansspo port rtou ou a ttoc ocha ha ttri riun u un fal deesse me mesm smo o mu mund ndo, o, a FC, C ob blli-terando o um m e o out utro ro,, trran a sf sfor orr maa uum m protesto por vez ezes es iing nggên ênuo u , po uo porr veezes injusto, o, em um m man anan an nci cial al cri riat attiv ivo com im menso soss ve veio ioss po or exxpl plor orar or a , uma ar um ma miríade de ffut utur uros os qque ue n nun un nca forram am,, um núm úmer ero o in infi fini nito to ddee am aman a hããs a prraan zo, aindaa po or de desb sbra rava var. r.
João Seixas nasceu em Viana do Castelo, Portugal, em 1970. Licenciado em Direito e advogado, é também crítico na área do fantástico e publicou contos e ensaios em diversos suplementos, revistas e antologias portugueses.
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Brras B asiill tem em ssee mo most stra rado do um do dos m dos maaio iore ores rees en ntu t ssiias a ta tas do o gêên ner ero stea steaamp st mpun unk k. Ma M s po p r aaqquii exi xist ist stee um ma iidden enttiiida daddee naccio da i nal naal m muuii to o fo orr tee que ue faz az o gên ênerro se se exp x an a dir dir de di de ffo orm ma a vaalo orriizaar a cu cult ult ltur ura ra na n cciion nal a e a hist hi stór ória ór iaa do pa paííss. país Em p Em pri rime meir me irro luga luugar gaar o Br Bras asilil crriiou ou as Loja Lo L oja jas ou ou C Con on onse nseellh ho oss, gr g up u os reg egio iona n iss divvid na idid idoss por or esstttad aaddos os ou ci cida ddaade d s e qu que ap apoi oiiaam m o deessen envo vo volv olv lvim vimen im men ento o da cuult ltur ltur ura st ura stea eamp ea mppun unk k na reg na egiiãão. o. O nome om me “lloja” ojja” a é umaa refferrên nci ciaa ao o ccon once ceit ce ito o ddaas ““llo oddge g s” s maç a ônic ônicas as.. Es E te tess cco ons nsel elho hos orga organi niza zam m pa p leessttraass,, enc lest ncon ntrro oss, pr p om omov o em a culltuura em fe ov feir iras as e aaté té ddeesseenvvo ollve v m wo w rk rksh shop sh opss ondde en op ensi ssina nam m so sobr bree o sttea eamp mpun unk k e a prrod oduzzirr e ccus oduz ussto tomi miza zarr bo b ls lsas as,, mo as m ch chililas as, óc óculos e até co om mp puuttad a o orres e com o o vis isua uall re retr trof ofut o utur uris ista t . Além Al é do ma m is is,, háá o SSTE TEAM AMCA CAST C ST, um podcast voltado paara p r o oss fã fãss de SSte team ampu punk nk.. Ap Apre rese sent entad ado o por Bruno Alciolly, cont co ntém nt ém eent ntre revi vist stas as com com aaut utor ores es n nac acio ciona n is e internacionais, explic pl icaç ic aççõe õess so sobr bree o gê gêne nero ro e diccas a do qqu que procurar para se inteirar sobr so bree o mo m vi vime ment n o. O Br Bras asilil aade d riuu à liteeraatuura steaam amp mpun u k, prim mei e ro, com uma co ole letâ tâne neaa da Edi d tora Tarja, ch cham mad adaa “S “ teeampunk – histórias de um mp pas assa sado do eext xtra raordi d nári r o”, quue tem m co c mo m foco:
“Uma antítese das visões utópicas da Ficção Científica de meados do século XX, nas quais futuro é igual a evolução sócio-cultural. O Cyberpunk é um subgênero da ficção que trabalha a ideia de que, se nossa sociedade seguir seu curso atual, o futuro próximo será um lugar onde o capitalismo predatório impera ao lado alta tecnologia e o nível de vida geral é péssimo. Daí o nome cyber, da tecnologia avançada, do ciberespaço, onde muitas das estórias se ambientam, e punk, da visão negativa em relação ao desenvolvimento social, da degradação do indivíduo.” Depois Depo i del elaa su surg rgir iram am ain nda d out u ros o livros do gênero. “Vaporp po rpun unkk – r el elat atos os ‘‘st stea eamp mpun unk’ k pubbllicaados sob as ordens de Suas Maje Ma jest je stad ades es”” é um umaa co cole letâ tâne n a de contos fantásticos baseaddos n no o un niv iver erso so SSte team ampu punk nk,, te tendo como foco Brasil e Port Po r tug rt uggal al. Aq Aqui ui a priinc nces esaa Is Isab abel el é uma pirata aérea enquuan a to o eesc sccra ravo voss lu vo luta taam co c nt ntra ra m máquinas autônomas por e pr em preg egos os. Inte In tere ress ssou s u? O release da obr b a:
Com força mundial, a estética steampunk vem angariando cada vez mais fãs brasileiros e portugueses. Seu apelo visual e o rico conteúdo inspirados no século XIX são o combustível certo para a produção de uma literatura que pode ser intensa, mas também descontraída. Descubra o que oito autores maquinaram nesse intricando conjunto de engrenagens que é
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a imaginação. O steampunk nasceu como um gênero literário, mas ganhou vida própria e dominou a moda e as artes plásticas, tornando-se cada vez mais conhecido. Se a cultura da era vitoriana virou inspiração para essa estética, em Vaporpunk – Relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas Majestades, os organizadores Gerson Lodi-Ribeiro e Luis Filipe Silva imaginaram essa época tão distinta sob a ótica brasileira e portuguesa, repleta de inovações tecnológicas e acontecimentos inusitados. Com a presença de renomados autores da ficção especulativa dos dois países, Octavio Aragão, Flávio Medeiros, Eric Novello, Carlos Orsi e o próprio Gerson pelo Brasil; Jorge Candeias, Yves Robert e João Ventura por Portugal; a coletânea traz oito noveletas movidas a vapor, disputas políticas, personagens famosos e armas engenhosas. Tudo isso regado a muita aventura e surpresas, porque, mais do que repensar o gênero, Vaporpunk é um convite para conhecer um mundo alternativo, e o que Brasil e Portugal poderiam ter sido com tamanhas novidades. Mas, M s se a fi ficç cçção o histó issttó óri ria n nãão é se seu ti tipo po p o de llei de eitu ei tura tu ra fav avor orit or ita, ita, a ain inda daa há o ro roma mance ncce de fanta de an nttaasi siaa “O OB Bar aron ar on nat ato o de Sho hoah hoah h: a Caanç C nção nç ã do SSiilêênccio ão o”. Es Escr crit ito it o por por Jo po osé s R be Ro b rt r o Vi V ei eira r e pub ra blilica licaado o pela ella E Ed dii tora to ra Drraaco. co o.
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Desde o nascimento os Bnei Shoah são treinados para fazerem parte da Kabalah, a elite do exército do Quinto Império. Sacerdotes, Profetas, Guerreiros, Amaldiçoados, eles não conhecem outros caminhos, apenas a implacável luta pela manutenção da ordem estabelecida. Depois de dois anos servindo o exército, Sehn Hadjakkis finalmente tem a chance de voltar para casa e cumprir uma promessa feita na infância: casar-se com seu primeiro e verdadeiro amor, Maya Hawthorn. Entretanto a traição de seu melhor amigo põe Sehn perante um dilema: cumprir a promessa à amada ou rumar a um trágico confronto, sabendo que isso poderá destruir não só o que jurou amar e proteger, mas aquilo que aprendeu como a verdade até então. Por fim, a Editora Estronho Por t ab tr bal alho houu co om dois livros do g ne gê n ro ro,, am ambo boss coleetâneas e co om teemá máti tica cass ma m is direcion da na d s. s O p pri rime meir iro deles org niza ga niz do ni d p por or T Tat atia iana n Ruiz se cch ham a a St Stea eamp mpin ink k e tem m como maio mai ma ior ca cara ract c er erísstica c ser uma an nto ollo ogi giaa es escr c ita e orgaanizadaa so ob boo olh har feminin i o. Seus peerrsso p on nag agen enss e cenários são robô robô ro b s, máq áqui uina nas vo oadoras, viaggeens ns no te temp mp po e mu muit ito o vapo por miist mi ssttur u ad ado o a va vamp mpir iras ass, co corv rvoss, p et po etas as,, am maazzo on n nas a e umaa vver as er-sãão va v pori po oriza riiza zada adaa de cl c ássssiico c s de con onto toss dee fad to adas adas as.. A sseeguunnda col olet etân et ân nea ea, orrggaani n za zada da por o Marc Marc Ma rcel eello Am A addo,, Rauul Câ Când ndid nd iiddo ido e Ta Tati tian ti anaa Ru an R iz i int ntit i ul it u adda Deeux ux E Mac Ex a hiina – anj njos oss e dem dem môn ônio nios iioos naa e a do vap er apor or apr or pres esen es en ntaa em suua siinops no ops p e. e
encenaram algumas das mais terríveis batalhas de que a humanidade já presenciou. De conflitos e duelos isolados a confrontos sangrentos entre os exércitos das trevas e da luz.
Os calendários são simplesmente ignorados por aqueles que combatem pelo bem ou pelo mal, numa guerra sem vencedores. As grandes batalhas distribuem louros entre os dois lados, em uma dança milimétrica da balança. Mas esse equilíbrio esteve ameaçado em uma época em que a elegância do vestuário das senhoras e cavalheiros convivia, não sem uma ponta de contradição, com o peso e a estranheza dos acessórios e equipamentos utilizados por uma civilização que começava a descobrir as maravilhas da tecnologia. Anjos e demônios escolheram aquele tempo, utilizando-se de todos os artifícios armamentos e equipamentos possíveis, e
Para encerrar, a cultura Steampunk não é apenas literatura e música. Ela é um conceito, um resgate aos velhos hábitos do cavalheirismo vitoriano, deixando de lado o preconceito contra a mulher e o negro. Nas aventuras do “retrofuturismo” há espaço para garotas heroínas e a escravidão é, quase sempre, mal vista. Para aqueles que desejam saber mais sobre o movimento Steampunk, o que não falta é material gratuito. Se você é mulher e adora moda, também vai gostar dos sites de moda que dão referências para se vestir melhor ou apresentam oportunidades para novas vestimentas.
José RRob José ober erto to Vie ieirirra é es e crrittor or e rred eddat ator o, or tend te nddo coont n os pub u lilica cado ca doos pe p la la edi dito dito tora rraa A drross An osss no n liv ivro ro “An A no Doom min min inii – Maanu n ss-ccrrit rittoss Meddie i vaaisi (20 2008 08),) Eddiitoorraa Mulltitifo ifo foco coo “PPac a to dos os Monnsttro r s” s em 20 2 09 09, aallém é do p im pr meiro eiiroo rom oman annce ce brraasis leir leiro le irro st stea eaam mppunk unnk peelaa Edi Eddiito tora r DDra rraaco, coo, ““OO Baarron onat onat a o de d Shoah hoah ho ah – A Canç Cançção Ca ão do SiSilê ilêênnccioo““.. Ain inda da pel ela Eddititooo-raa Dra racoo pub u liico cou os os connto tos “SSeoolffer erwu rwu wulflf” lff ” e “OO Mon onge g ” (2 ge (2009) 009)). 00 TTw wittteerr:: @jrjrxv rxv xvie ieiriraa ie Blog Bl Blog og: g: ba b raaoozzer e o.o wo word ord rdpr p essss..com pr coom
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A Co Cort rtee do A Arr rrec eceb ebeu eu m muitas críticas entu en tusi sias asma m da ma dass de ttod odaa um uma série de p bl pu blic icaç ic açõe aç õess e jo õe jorn rnai ais, s, ffui ui entrevistado na t le te levi visã vi são, sã o, e o com omititêê do m mai aior or festiiva v l de cciine nema maa ddo o mu mund n o, nd o, o Be Berlrlin inal alee, votou no n lil vr v o co c mo m m mel elho el horr ob ho bra ddee fa f nt n as asia que d ve de v riia se serr addap pta tada da par araa film lmee neess s e an ano. o Aiindda é co A c m mu muititta ad admi m ra mi raçã ção o qu quee en enca caro ro esta es taa fam a a qquue A Co Cort r e doo Ar me ttro rt ro oux uxe. e. Tudo Tu d me pa pareece um so sonh nho. o o. Quuan Q a do eesc scre sc revi re vi o liv i ro ro,, quer qu e iaa ccri er r ar uma ri m ffan an nta tasi siia cco om um ma so oci c ed dadde em um mun ndo dissta tant ntee do nt d s ttrrad adic icio ic io on naaiiss eelf lfos lf os m med edie ed ieva ie vaais e dr d aggõe ões. ões s. A ép époc o a hi histtór hist óric ric icaa qu que meelh hor or ccon onhe on heci ciaa er ci eraa a da d Inggllat In ater e rraa viti or er oria iaan naa e ggeo e rggiana eo iaan naa, ep paare rece cceeuu me m faz a err per e fe feitito o s nt se ntid id do fo ocaar ne n sssse pe perí perí rííod odo. od do. o Fo F oi só ó depoi epois ep ois ddee o rom oi man nce ce serr puub bllic icad addo e de de ter erem em m surrgi gido do do as pri as rime meir me irraass ccrí rítitica rí ccaas qu que no note tei /// BAN 62 // 62 ANG! G!
um padrão... O meu livro não tinha sido recebido apenas como f ntasia que retrata uma cultura fa alternativa… t Era considerado d sttea eamp mpun unk k. Na altura, pareceu-m -mee seer um umaa de d fini niçã ção o ób bvia uma vezz qu ve quee o me meuu lilivr vro o titinh nhaa robô bôss movi mo vido doss a va vapo por, r, dir irig igív ívei eis, s, carr ca rrua uage gens ns,, ci cida dade dess vi vito tori rian anas as e a re ap r se sent nttav avaa um m rret etra rato to aaltlter erna natitivo vo da soc o ieda ieeda d de ddo o sé s cu culo ulo o XIX IX,, cump cu m ri mp rind nddo ass car arac arac acte terí te rííst stic icas ic cas do stea st eaamp mpun puunnk. M Maas ju juro ro o que ue n não ão me ocor oc orre or reuu qu re q e o lilivr v o qu vr que es e ttaava v esscr crev evven even endo d ffos do ossse aalg lggo ma maiiss do que um qu ma avveen ntu tura de fa fant ntas nt assia ia..
A Co Cort rtte do do Ar cen ntrraa-se ssee na h hiist stór órriaa de um ra de rap paaz e ddee uuma maa moç m oa que teen qu nttam m com o prreeend n err uum m mund mu n o ffrreqquueent nd n em mente en nte hos hos ostitil
e mu muitito o es estr tran anho ho,, pe pelo lo o men nos o paara n nós ós,, à me medi dida da que amb bos enfr en fren enta tam m fo forç rças as m mal alév évol olas as e asssa sass ssin inos os ccom om o obj bjet etiv ivos os sin inis istr is tross. tros Os nos osso soss he heró róis is ttêm êm ddee fu f gi girr de tud udo o e de ttod odos os,, nã não o sa s be bend nddo em qque uem m co confi nfiaar.r. É uma ma h his isstó tóri riaa ri quee po qu pode deri riaa te terr fu func n io nc ona nado do bem do m com co m ca cava vale va leir iros o e espad os sp paddas ao estititilo es lo de Ge Geor orge or rgee R. R. R Maarrtiin e do o seu mar a avvilho illho hoso so mun undo ndo do ddee Wint Wi nter nt e fe er fellllll.. Ma Mas, s,, na ve v rd r aadde, A Cortte do Cort Co do Ar pas assa saa-s - e nu numa ma Ter erra ra,, ra nuum fu futu turo tu turo o dissta tant nte ap nte nt pó óss muiito toss milê mi lêni nio oss, de depo pois iiss ddee o ci cicllo de cicl de Iddad ades e de Ge G lo l e ast ster erroi oides oide ddees tteerem rem ap re apag aggad ado do tr traç a oss da da no oss ssa a uaal ex at e isstêên nccia no m muund ndo. o Atéé a o. g og ge ogra graafi fiaa m muudo douu ddrram mat atic tic icam am men ntee, com co m Ja J ckkel elia lia – a min nha h Ing ngla ngla late terr rrra allte alte tern rrn nat ativa ivva – ab a so sorvvidda pe pelo o cont co cont n in ineen ntee Eur u op peeuu e pró róxi óxi xima m ma deema m is i da Fr Fran raan nça ça – um ve veelh l o lh i im in imig mig igo –, –, sem sem m qua ualqque ueerr ma mr
separando as fronteiras. E, como se isso não fosse ruim o suficiente, a Espanha tornou-se um deserto e é controlada por um Império de engenheiros genéticos maléficos.
Quando entreguei A Corte do Arr ao meu editor, o fenômeno do steampunk ainda não tinha grande força – existiam apenas alguns livros retratando realidades ap alte al tern r ativas vitorianas, como a magnífica ob obra bra ddee Wi W llia i m Gibson, A Máquina D fefre Di renc ncia ial,l, o ouu a HQ de Alan Moore, A Liga Li ga Ext xtra raor ordi diná nári riaa. Ma Mass as inesperadas veend ndas as ele leva vada dass de A Co C rt rte do Arr e a at aten e ção en çãão da iimp mpre rens nsaa qu quee o lilvro atra at r iu con ra o ve venc ncer eram am ttod odos os qque u aqui e ta es tava v alggo qu va quee va valiliaa a pe pena na inv n estigar. Deesd Desd s e een ntã tão, o, eesc scre revi vi mais ci cinco livros, to ota tali aliliza z nd za n o se seis is liv ivro os na min inha série JJaack ack ckel elia iiaana n . Se Seis is aano nos da min inha h vida em m que tud u o mu mudo douu raadicaalm lmente. O ggêên neero r quee aaju jude deii a po popu pula l rizaar tem aggo orra ra ceent nten enas ddee au auto tore res. s. E não só is i so. O sstteaamp mpun unk un k afa f st s ou ou-s -see de d ssua uass ra raíz ízes es hiist h issttó órric ric icas as e evo oluuiu iu, u, pr p op porrci c on nan ando do uuma ma m ni mi niirr rrrev evol olluç oluç ução ão ins ão nspi piiraada p da na na co c nt ntra rraacu cultltur ua ur que see define po qu que porr um umaa avver ersãão ao aoss p piior o es víícciios o da so soci cied ci edad ed ade mo ad ade moddeern mode rnaa – m máá ed duccaç a ão ão,, es estr tres tr e se, es see, aaggre ress ssão ss ão o, so soci soci cied ied edad dad ade ddee co ons nsum umo um o co c m pa p dr drõe õess essté õe tétittiico os ba baix baix i oss, arqu ar quitititet qu etur et urra fe f ia ia, deesl slei eixo ei xo o no ve v st stuuáárriio e tecn te cnol cn olog ol oggia iass de desc scar sc artá ar táve veeis is. is. S olh Se harrmo m sp paara o ano o eem m q e co qu c me meçço ou a re revo vvo oluuçã ço
a vaapo or, r, pod odem dem mos os enc ncon ncon ontrar trrar a quaase toda to dass as ccau ausa saas quue co ond nduz uuzzirram às desi de sigu guual alda dade dess so soci ciai aiss e à an ansi sied edad adde qu quee cuulminar aram am no mo movi vime ment nto pu punk nk k dos anos 70 dos Sex Pi P stolls e nas bota tas Do Docc Martens.s 2007 foi o ano em que o sistem ma bancário iniciou o seu colapso gradual, provocando desemprego em larga escala e males econômicos num meio em que os cidadãos deixaram de confiar em seus políticos e instituições como a polícia, igreja, sindicatos, bancos e todo o resto. Como se isso não bastasse, tivemos de lidar com instabilidade política, empregos exportados para a China, alterações climáticas, motins e guerras no Irã e Afeganistão. Por tudo isso, não surpreende que, nos últimos anos, muitos jovens desencantados – assim como alguns mais velhos como eu – optaram por se afastar de nossa sociedade estéril e violenta e olhar para um passado imaginário que nunca existiu, no qual damas e cavalheiros cortejam-se uns ao outros com boas maneiras e vestuário requintado, droides movidos a vapor servem-nos cocktailss de absinto, e cientistas de casacos de couro produzem manualmente objetos para nossa maravilha e deleite.
Este mundo pode nunca ter existido fora de nossas imaginações, mas talvez fosse melhor ter existido. Não sei qual será a evolução do steampunk daqui para a frente, mas me sinto feliz por ter feito parte de sua origem, e tenho uma intensa curiosidade pelo seu futuro. Assim como A Corte do Ar transformou a minha vida e carreira, suspeito que o futuro do steampunk nos irá surpreender de formas que não conseguimos prever.
Stephen Hunt é um autor de ficção científica e fantasia que vive atualmente no Reino Unido. Antes de se tornar escritor, trabalhou com edição de conteúdos para a web, incluindo o Financial Times. Os seus livros já foram publicados no Canadá, Reino Unido, EUA, e foram traduzidos para mais de doze línguas. A Corte do Ar é o primeiro livro de sua série steampunk centrada em uma Inglaterra vitoriana alternativa.
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stava-se em 1953 e Alfred Bester vencia a única categoria de ficção (na modalidade de romance) do primeiro de todos os prêmios Hugoo com O Homem Demolido. Os marcianos desciam em uma América rural insuspeita a convite de George Pal, Quartermass salvava a Humanidade de um alienígena vegetal e o milionário Donovan era salvo e condenado perante audiências desconfiadas da ciência. Estreava na Espanha Luchadores del Espacio, uma coleção de pulp fiction; a Itália a adiantara-se um ano com a Urania, e a Presence du Futurr entraria no ano seguinte no poderoso mundo da Ficção Científica (FC) francesa. Vivia-se a Guerra Fria, um mundo de terror atômico, cheio de espiões e ameaças veladas, de perseguições anticomunistas e desconfiança generalizada na capacidade do Homem em sobreviver às suas próprias criações. Ainda assim, falava-se de futuros gloriosos, de contatos com seres de outras Terras e de colonização galáctica nas g Magazine of páginas da Astounding, Fantasy and Science Fictionn e Galaxy. Estava-se a quatro anos do lançamento do primeiro satélite fabricado por mãos humanas, o Sputnik 1, que deu início à atualmente designada Era Espacial, e a dezesseis da primeira viagem tripulada à Lua. Estava-se em 1953, e, ainda antes de terminar este movimentado ano, nasceria uma nova coleção portuguesa que ficaria nas vitrines durante cinco décadas, apresentaria autores de FC ao público lusitano e atravessaria o oceano para contaminar o paladar dos leitores brasileiros. Uma coleção cujo nome evocava tradição, epopeia e aventura: a Argonauta.
A viagem a que nos propomos fazer é uma de memórias e testemunhos, pois é a única deslocação temporal permitida à espécie humana. Convocamos autores e apreciadores, procuramos na internet e nas estantes lá de casa, e reunimos todos aqui, para um breve desabafo, para que nos contem as suas experiências e, nestas, descobrirmos o reflexo das nossas. Convocamos também a editora, que lamentavelmente se escusou.
Não importa – só os livros importam. nio de Souza-Pinto, o fundador da empresa. Durou 562 números ininterruptos com periodicidade mensal (exceto nos últimos anos em que foi irregular), mais o acrescento em 1968 do raríssimo n.º 130-A ((Estação de Trânsitoo – Way Station, de Simak)1. Continha essencialmente FC, mesclada com alguma Fantasia, e era relativamente atual: perto de quarenta títulos foram publicados apenas com um ano de diferença ao da respectiva edição original estrangeira, e aproximadamente duzentos com um máximo de cinco anos. Para a coleção, contribuíram centena e meia de autores e meia centena de tradutores oficiais. Vendia-se em Portugal e no Brasil, não obstante uma indicação na ficha técnica que proibia este ato na “República Federativa do Brasil”. E, se considerarmos uma dimensão média de 250 páginas por livro, estamos perante 140 mil páginas de literatura Fantástica e anos de leitura. Nenhuma outra coleção de FC atingiu no espaço lusófono tal dimensão, importância e longevidade, nem contribuiu, até hoje, para a formação básica de várias gerações de apreciadores do gênero.
A
ntes de mais nada, os dados biográficos: deu-se à luz em Novembro de 1953 e remeteu-se ao silêncio em 2006, em mês incerto. De mãe, a Editora Livros do Brasil, e, de pai, Antó-
S
e há fator que una os apreciadores é aquele momento ou circunstância em que a Argonautaa entrou em suas vidas e que se torna uma memória acalentada e contada com os detalhes de quem descobriu um segredo valioso. Cada qual conta a sua história, mas são os BANG! /// 65
mal dos meus pecados e do dinheiro dos almoços e lanches escolares, a Coleção Argonauta, argutamente, mantinha nas primeiras páginas uma lista com os últimos números publicados e nas últimas páginas uma pequena amostra do volume seguinte da coleção. Tudo isto servido com uma periodicidade mensal” (Ri-
mesmos os pontos de união, são familiares os motivos que os integram na comunidade. Pode ter origem na recomendação de um amigo ou familiar: “uma tia minha, que
colecionava a Argonauta, contou-me ao jantar sobre um lago de alcatrão, em um planeta perdido na periferia da Galáxia, onde residia um computador que guardava o registo das ‘almas’ de toda a espécie humana [e que] estaria defendido por milhares de morcegos gigantes”
(João Barreiros). Surge por acidente, por estar-se ali, naquele instante, diante do mostruário de uma livraria e deparar-se com a capa cuja ilustração, título ou autor despertam lembranças de outras leituras ou imprimem promessas de mundos maravilhosos: “uma bela manhã em
Sesimbra, com o calor já apertando, entrei numa daquelas papelarias/tabacarias que na altura ainda vendiam livros e eis que numa vitrine de arame, daquelas que rodam sobre um eixo, deparo com uma série de livrinhos que de imediato atraem o meu jovem olhar” (Ricar-
do Loureiro). Por vezes, a sedução demora: “houve um livro da Argonautaa que sempre exerceu um terrível fascínio sobre mim: A Árvore Sagrada [n.º 224], um dos livros de meus pais, publicado aqui em 1972, e que eu me lembro de ser uma presença constante [pela casa]. Nunca li o livro, mas cresci fascinado pela capa – melhor dizendo, pela contracapa – onde uma gigantesca iguana verde está prestes a devorar um astronauta de imaculado branco que paira sobre ela, filmando-a, contra um céu de um laranja intenso” (João Seixas). O rosto sorri-nos e dá uma piscadela: “nessa bela manhã escolhi mais por virtude da capa que mostrava um vaivém espacial – na altura ainda um protótipo, os primeiros voos seriam 3 anos mais tarde –, dirigindo-se a um planetoide âmbar, visivelmente artificial, do que por conhecer o nome do autor de algum lugar, o livro Exilados da Terra (n.º 249), de Ben Bova” a (Ricardo Loureiro).
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cardo Loureiro). Cria um vício de que não se quer fugir: “depois do primeiro,
veio o segundo, e logo o terceiro”
A sensação do primeiro contato transpõe oceanos: “descobri a Coleção Argonautaa em Janeiro de 1977, em plena Rodoviária Novo Rio, quando estava prestes a embarcar numa viagem de férias para o interior do estado. Como se tratava de um romance do Clifford D. Simak, meu autor predileto, não hesitei em adquirir o livrinho de capa prateada, n.º 227, O Outro Lado do Tempo (Enchanted Pilgrimage) e” (Gerson Lodi Ribeiro). Atravessa gerações: “é um bocado difícil recordar coisas desses tempos iniciais, já lá vão 60 anos – quando saiu o número 1 em 1953, tinha eu 22 anos e cursava Arquitetura, e lembro-me de que o primeiro livro que comprei foi o n.º 7, Inconstância do Amanhã (Tos de morrow Sometimes Comes), F. G. Rayer, livro que me deixou então positivamente fascinado, e depois disso passei a ser um consumidor assíduo da coleção” (António de Macedo). Espalha-se por territórios e culturas: “conheci a coleção Argo-
nauta por volta dos 12 ou 13 anos, na Livraria Pedrosa, em minha cidade natal (Campina Grande, Estado da Paraíba). Era uma excelente livraria, até para os padrões de hoje” (Bráulio Tavares).
Planta sementes no espírito do leitor: “Quando, depois de ler
A Nebulosa de Andrómeda, pedi ao meu pai mais livros do mesmo gênero, aconteceram duas coisas. Por um lado, fiquei sabendo que existia uma coisa chamada ficção científica. Por outro, tive nas mãos o meu primeiro Argonauta” (Jorge
Candeias). O primeiro contato abre a porta que não se volta a fechar: “para
(Jorge Candeias). Deixa na alma, gravados a fogo, o nome de mundos e autores, tão irreais e desconhe-
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cidos a princípio, como tão rapidamente familiares: “o primeiro livro da Argonautaa que li foi Os Frutos Dourados do Sol,l de Ray Bradbury [n.º 55], de quem eu já tinha lido alguns contos em antologias” s (Bráulio Tavares). Evoca-se aquela aventura tão íntima, mais tarde, com o toque de nostalgia e prazer da recordação de uma descoberta que não retorna: “[A história contada pela minha tia] era a do Ortog, g do escritor francês Kurt Steiner (André Ruellan), um dos primeiros livros da Argonautaa [n.º 66]. Li-o com um arrepio crescente de horror, porque, aos meus olhos inocentes de então, o livro era bem sinistro. Depois descobri nas estantes
da minha própria casa mais uns três ou quatro Argonautas. Peguei num. Missão Interplanetária, a do Van Vogt [n.º 9]. Li-o às escondidas, por baixo do lençol, com a lanterna acesa. E, claro, voltei a morrer de medo, porque os monstros nele descritos eram verdadeiramente assustadores. Mais tarde descobri todos os livros do Stefan Wul e ele foi, durante muitos anos, um dos meus autores favoritos” s (João Barreiros). A inocência deu lugar ao encantamento, e este perdura por uma vida: “Galactic Patrol,l de E. E. ‘Doc’ Smith com o apropriado título de Patrulha Galáctica (n.º 270), e com uma despropositada nave USS Entreprisee na capa: foi este o livro que verdadeiramente iniciou o dilúvio de FC para mim. Ali, perante os olhos da
minha imaginação, desfilava aquilo que milhares de fãs de FC conhecem como o sentido do maravilhoso ((sense of wonder). r Vastas naves enfrentavam-se em batalhas cruéis e planetas recheados de alienígenas malévolos eram bases secretas de Impérios do Mal” l (Ricardo Loureiro). Como eles, encontrei a Argonauta, a ou esta me encontrou, depois de ter descoberto a existência de Ficção Científica. Pertenço à geração das capas prateadas, cujo “tom metálico” (Ricardo Loureiro) margeava desenhos enigmáticos, raramente ilustrativos de uma cena do livro, mas compostos “invariavelmente de fotomontagens e/ou colagens com naves, planetas e estranhos sóis” s (Ricardo Loureiro). A edição de entrada foi O Número do Monstro – 1.º volume,e do Heinlein [n.º 294], mas admito que poderia ter sido qualquer outra. Heinlein era o autor que melhor conhecia do conjunto de exemplares na vitrine de uma tabacaria de praia. Ali, tão mansamente pousados, como pepitas num concurso de garimpagem. “O prazer da descoberta pela primeira vez de livros-chave do gênero é uma experiência tão intensa que é quase comparável à da descoberta do sexo” (João Seixas). Porque estes encerram as chaves do mistério. Ainda hoje, sempre que passo pela loja que substituiu este local, recordo-me. Estava-se no tempo das escolhas: as bibliotecas suburbanas ou escolares não adquiriam Fic-
ção Científica e a mesada não dava para tanto. O que nos é negado alimenta a íntima vontade. Exemplar a exemplar, fui adquirindo, e lendo, o que estava disponível. A coleção tinha, já, quase trinta anos, mais do dobro da minha idade – e eu, que andara tão distraído no limbo, tardando em nascer.
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omo qualquer boa coleção que se preze, e, em particular, numa de tão a é longa duração como a Argonauta, possível demarcar períodos. O mais óbvio será quanto ao formato. Desde o primeiro número, apresenta-se como livro de bolso com uma dimensão regular de duzentas páginas, um pouco menor que os livros em papel jornal americanos, o que é mantido até à decisão da editora, em 2004, de aumentar ligeiramente o tamanho com o n.º 553 ((A Grande Roda – The Big Wheell, de William Rollo) e seguintes – uma decisão mal recebida pelos apreciadores2, talvez em parte pela transformação radical das ilustrações num estilo quase abstrato que representou um retrocesso face à revolução de cores e imagens chamativas em voga no mercado editorial. Mas até então, a Argonautaa arriscou periodicamente a mudança – que por vezes se estranhava, mas que acabava por ser bem-vinda – de alterar a composição das capas, de introduzir estilos e técnicas de imagem e de criar um corpo consistente de ilustradores de reconhecido mérito e ímpar numa coleção de FC publicada em Portugal até aos dias de hoje. O primeiro foi Cândido Costa Ribeiro, que ilustrou as capas do n.º 1 ao 32 ((Robinsons do Cosmos – Les Robinsons du Cosmos,s de Francis Carsac), conhecido artista plástico e designerr gráfico português que se radicou no Brasil no final da vida e cujas inclinações surrealistas terão influenciado os desenhos fortemente simbólicos daquela sequência. Mas será com o n.º 33, o agora famosíssimo Fahrenheit 451, de Bradbury (em 1956, apenas três anos após o lançamento do romance original e traduzido por Mário Henrique-Leiria), que se dá início à contribuição de Lima de Freitas, um dos mais conhecidos pintores e desenhistas portugueses do século XX e figura marcante na vida da coleção. Freitas vem trazer um dinamismo e uma riqueza de composição a obras BANG! /// 67
de autores tão distintos como Heinlein, Simak e Versins, e marca presença até 1975, dando a última capa ao n.º 221 ((Eclipe Total – Total Eclipsee, de John Brunner). Este impressionante volume de trabalho rivaliza com o ritmo dos tradutores e faz da coleção uma verdadeira fábrica de produção de FC – com o encargo adicional de que o pintor tinha de ilustrar também a edição mensal da revista correspondente de literatura policial. “Lembro-me bem de meus pais partilharem o trabalho de
ler os livros de FC e policiais que o meu pai tinha que ilustrar. Era um ritmo razoavelmente forte, dois livros por mês, mas a minha mãe era fanática devoradora de policiais e lia tudo num instante para contar ao meu pai algum pormenor marcante que o inspirasse numa capa”” (José de Freitas). A contribuição de Freitas atravessa alguns períodos distintos de composição das capas: até o n.º 100, a ilustração surge isolada do título e do nome do autor, que a encimam. Mas com o 101.º ((Nova Ameaça de Andrômeda – Andromeda Breakthrough, de Fred Hoyle e J. Elliot), título e autor passam a incorporar, e a influenciar, o corpo do desenho (veja-se o caso do n.º 136, Ave Marciana – A Far Sunset,t de Edmund Cooper). É evidente que este espaço se torna, também, um laboratório para o artista: “O meu pai passou nessa altura (anos 70) a fase de fazer 68 /// BANG!
capas a partir de fotos, um método experimental que aparentemente granjeou bastante popularidade, embora eu pessoalmente não apreciasse tanto, comparado com algumas capas mais antigas que ele tinha feito: umas mais estranhas e abstratas (lembro-me da do Síndico, o de Cyril Kornbluth, ou a do Homem Demolido, o de Bester, mais brutais e expressionistas), outras mais realistas ((O Tempo das Estrelas, de Heinlein, por exemplo). Mas as fotos duraram algum tempo, e por elas passaram os pedaços dum foguete Apolo que eu tinha construído com [ele] aos 7 anos, uma estátua dum amigo nosso em O Planeta Neutral,l uma figura de um astronauta que eu tinha comprado na França, em O Ponto Ômega, a e que reapareceu em Os Homens das Estrelas ou, por exemplo, na Vampiro, o a minha tia Jenny (dinamarquesa) fazendo-se de Miss Marple!”” (José de Freitas). A fase seguinte da coleção, talvez a que mais a marcou, é a
prateada: título e autor voltam a autonomizar-se e a dominar o terço superior da capa, impressas sobre um tom cinzento brilhante, relegando a ilustração para uma ideia de “janela”, talvez como recuperação da ideia da entrada num mundo maravilhoso. Começando no n.º 225 ((Em Busca do Futuro – Quest for the Futuree, de Van Vogt), vai durar até ao n.º 300 (O Mistério de Valis – Valis – 1º volume,e de Dick), a partir do qual a margem cinzenta é substituída por uma azul. As ilustrações são, primeiro, da mão de Manuel Dias, numa breve incursão após Lima de Freitas, e, logo após, de António Pedro, o qual vai assegurar o rol impressionante de centenas de capas entre o n.º 254 ((As Vozes de Marte – I Sing the Body Electric,c de Bradbury) e o último. Refira-se que, apesar do expressionismo e ocasional simbolismo dos desenhos, é por vezes um desafio conseguir relacioná-los com a obra que ilustram ou sequer com uma cena particular da narrativa... A partir do n.º 333, desaparecem a margem e o conceito de janela, voltando à ilustração que domina a capa, à qual se sobrepõem o título e o autor, composição que vai permanecer até ao formato derradeiro que acima se mencionou.
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e o aspecto é o fator de mudança mais óbvio, também quanto ao conteúdo a Argonautaa teve os seus períodos distintos – ainda que mais duradouros. Primeiramente, pelas obras escolhidas. A coleção dá partida com um autor pouco conhecido: Archibald Montgomery Low, engenheiro e pesquisador inglês que, além de dezenas de ensaios, escreveu apenas quatro romances de ficção para jovens, e nenhum dos quais entrou no cânone da FC. Mesmo assim, a aventura espacial de Perdidos na Estratosferaa (Adrift in the Stratospheree) parece perfeitamente adequada para atrair desde logo a imaginação dos leitores. Será o evoluir dos títulos que faz suspeitar da ausência de um critério editorial sólido guiando a escolha. A primeira década é marcada por um predomínio dos “grandes nomes” – Asimov (usando seu próprio nome ou o pseudônimo Paul French), Bradbury, Heinlein, Clarke – em, aproximadamente, um sexto dos li-
vros, pertencendo os restantes a autores da época pulpp (Leinster, Siodmak, Van Vogt)3 e obras reconhecidas no gênero (O Cérebro de Donovan, Slan, Mundo de Vampiros); s em suma, uma aposta evidente na popularidade. A presença regularr4, a partir do n.º 22 (Vigilância Sideral – Les Étoiles ne s’en Foutent Pas,s de Pierre
Versins), de autores francófonos5, representando um terço das escolhas dos primeiros 100 números – além das presenças pontuais de Onochko (russo) e Čapek (checo) –, anuncia uma inversão da tendência pró-americana, que apenas surpreende se, em vez de a entendermos como uma aposta invulgar na FC europeia, considerarmos que advém do uso de tradutores mais familiarizados com a língua francesa. Esta desconfiança consolida-se se notarmos que a entrada de Eurico da Fonseca para a função de tradutor, e a sua continuidade durante centenas de títulos,
acontece ao lado da erradicação de obras de origem não inglesa do catálogo – sendo a última o n.º 107 (O Império dos Mutantes – La Mort Vivante,e de Stefan Wul). As exceções pontuais representadas pelo francês Barbet (n.ºs 251 e 258), pelo polaco Lem (n.º 264) e pelos russos irmãos Strugatski (n.ºs 307 e 308) explicam-se facilmente: foram traduzidos a partir das edições americanas, com todos os problemas de fidelidade inerentes à tradução de traduções... Há pelo menos um caso confirmado de influência de um colaborador na seleção das obras: “o meu pai frequentemente sugeria os títulos a traduzir, embora isso normalmente não fosse creditado” (José de Freitas). Lima de Freitas foi também responsável por organizar e traduzir os contos do n.º 100, uma antologia comemorativa “que reuniu uma quantidade notável de histórias, algumas das quais foram consideradas das melhores, como ‘Flores para Algernon’, e penso que a primeira história traduzida para português de Lovecraft, Jorge Luis Borges ombreando com Arthur Clarke, Efremov e Bradbury”” (José de Freitas). Efetivamente, a apresentação deste número é bastante explícita6: “num volume duplo de mais de quatrocentas páginas, posto à venda pelo preço de um volume simples, o nº 100 da Coleção Argonauta oferece um panorama completo da evolução da Fic-
[1] Vale a pena desvendar a rocambolesca história tal como contada por João Vagos em http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-130-estacaode-transito.html. [2] J. J. Vagos conclui o inventário pessoal dos títulos no 552.º com as seguintes palavras de desânimo: “última edição [...] no formato tradicional. A partir deste número, aumentaram o tamanho dos livros e também o preço, tendo sido publicados apenas mais dez números, que já não coleccionei. Para mim, a Colecção Argonauta terminou neste número” (http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/08/n552-os-vigilantes-do-imaginario-2-pat.html).
ção Científica, desde Júlio Verne até os Astronautas. Entre centenas de autores, entre milhares de obras, foram selecionados os mais belos contos dos escritores mais representativos em todo o mundo, formando uma antologia de características absolutamente ” destinado ao inéditas entre nós”, que já se mostrava ser “um público fiel e, até, entusiástico”. Se é natural que diferentes apreciadores tenham diferentes preferências e que orientem as seleções para as obras que conhecem (e que são capazes de ler), também decorre que a ausência de um crivo editorial coerente tenha contribuído para manter e até salientar certos defeitos de produção que foram prejudicando a coleção e que, eventualmente, antecipou-lhe o fim num contexto de crescente competitividade em que tais falhas já não eram perdoáveis pelos leitores.
Alguns dos “grandes nomes” que marcaram a coleção Argonauta. Asimov, Bradbury, Arthur C. Clarke, Leinster e Heinlein.
[3] A questão das preferências, aliás, será um dos apanágios menos felizes da coleção, ainda que, mais tarde, se manifeste sobre outros autores – Simak e Blish, por exemplo. [4] O primeiro francês foi Jimmy Guieu, logo no n.º 5, uma presença pontual. [5] Entre outros: Carsac, Russel, Aîné, Wul, Steiner, Hougron, com obras agora clássicas na FC francesa. [6] Excertos retirados da apresentação deste volume no n.º 99, presumivelmente da autoria do próprio organizador.
Luís Filipe Silva (blog.tecnofantasia.com) é autor português de «O Futuro à Janela» (Prémio Caminho de Ficção Científica), «Cidade da Carne», «Vinganças» e (com João Barreiros) «Terrarium - Um Romance em Mosaicos» e além de vários contos, críticas e artigos em publicações portuguesas, brasileiras e internacionais. Como antologista, organizou «Vaporpunk – Relatos Steampunk Publicados sob as Ordens de Suas Majestades» (com Gerson Lodi-Ribeiro) e «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa» (com Luís Corte Real). BANG! /// 69
m Fahrenheit 451, de Ray ay Bra radb ra dbur uryy, y, o m mun un ndo d é uum m lu luga gaar ciinz nzen ento to o onde seus habitantes ess uusa sam sa m a fe f liciidaade d com mo um umaa má máscar ara. a Qua u nd ndo o esta cai, revela-se a so olilidã dão dã o, o dessespe essp ro op por orr vivver em um mundo anesstesiado, a apatia e o conf co onfor nfo nf orrmi mism smo sm o pe pera pera r nt n e um um Est Est stad ado ad o que se enc n arregaa de apagar da mem mór ória iaa dos do oss indiv nddivvíd duo u s to oda d s as as traagé gédi d as que compõem o di quotidiano o. Quuem m ssee reevo v ltta é fa f ci c lm l en ente te eelililimi m na mi n do do sistema, desaparece da fo foto to o e duv uvid iddaam mos os se esssaa p pes e so oa reeal alme m nt me ntee ch heg egou um dia a ser nossaa vi vizi zinh nha. nh a. Désp Dé spot sp otas ot as e tir iran an noss não o sup upor orta or t m qu ta q alqu allqu q err ati tivi viida dade dee cul ultu t ral porque sabe b m quue, ao bani be ni-l -llas a , es e tã t o de d st s ru ruin i do do efi fica c zm ca zmen e te a mem en mór ó ia de um povo po vo.. Qu vo Quan an ando ndo Mon Mon onta tag, ta gg,, o bom o be beir iro o pr p ottag agon onis on ista is taa da obra ob bra r de Ray Bradbury bu ry,, fina ry n lm men entte desspe pert r a pa p ra a verda errdadee e parra um nov o o muundo, o,, é graaças à suua memó memó me móri riaa quee co ri ons n eg egue u res ue e is isti tirr à op opre ress re ssssão o pol olít í ic ít i a e cu culltural all. Se mem ri mo r zzaar os os liv ivro r s, sabe ro ab be qu quee ja jama maiss cor mais ma o reerá o risco issco o dde perdê--los. Em Ti Tiga gaanaa, do o aut utor or can a adden nse Guyy Gav avri riel ri riel e Kay ay, o po povo v difi vo ificilime m nn te tem out u ra esc scol olha ol ha sen enão ão rres e isti es isstiir à mald maald ldição içção ão llan an nçada po orr Bra ran ndin de Yggrath h. E resi reesi sist stee pr st prec ecis ec isam is amen am ente en te atr atr t av a és da me memó móri riia. a Resis R istee, le lem mbra brann do-s do -sse de d sua uaa pát átri ria. ri a. Na Pe Pení nííns n ul ulaa daa Pal alma ma,, quasse toda ma to oda dass as pro roví víncciaas caííram ca am nas a mão os do d s feit feitic iceeiro os Br Bran an ndi din n de Y Ygr graath e Al Albe b ri be rico co de Ba co Barr-badiorr. Sttevvan ba n, o fi filh lho lh o de d Bra rand and ndin in, foi in foi mo fo mort rtto po p r Va Vale l nt le n in in,, pr prín prín nci cipe de T ga Ti g na na,, um u ato pel elo o qu qual a seuu p al pov ovvo pa p go gouu mu muitto ca caro aro ro.. Br Bran Bran andi din de din di dest stró st róii a ró orguulh lhos o a Tigana, suas as belas ellass e fam amos osas os ass torrre res, manch ha ssuuuaa be b lezaa, ma mass nãão see contentando apenas com co om sua suua deesttru ruiç ição ão, deci ão cide dee ttam am mbé bém ellim miinar suua memória, lançando na o um m ffei eiti ei iti tiço ço o par araa qu q e nenh nh hum m hab bittan ante te da te Peenínssula ula ja j mais se lembre de se s u no nome nome me ou po poss s a seequ quer er o ouv u i--lo uv lo.. Ap A e-n s os na o ttig igganen ane ses relembraam o pa an p ss ssad addo dee suaa pát ado á ri ria, a mas não poddem a, e part pa rttilhá ililhá há-l -llo co om mais ninguuém m. As Assi sim es si estã tão tã o co ond nden en enad nad a os a tesste t muunh nhar aarr o fim ddee Tig igan an na at a é de d saapa pareece c r a úl últi tima ti m gerraç ma ação ão o. //// BAN 70 // BANG ANG! AN G!
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ublicado em 1990, Tigana, de Guy Ga G vriel Ka K y, y não foi sua primeira obr braa de fan antasia. Ele já tinha lançad ado o an ante teri rior orme ment ntee a trilogia de Fi Fion onav avvar, de ffor orte te iins ns-pira pi raçã ção o to olkkia ian na, mas fo na foii co com m Tigana ga naa que K Kay ay enc ncon ontr trou ouu ssua ua voz o narr na rrat ativ ivaa e o es esti tilo lo que que tor orna nari riam am suas su a obras tão ão fam amos osas as e aama m da ds em todo o munddo: a ffan anta tasia históri tó r ca. Kay pega det eter ermi mina nado doss ev even en ntoss históricoss rrea to eais is e ass s im mililaa oss ao seu m mun undo do ddee fa fant ntaasia nt asia. Nã N o se trat tr ata de uma meraa re reco c nstituição co ã , ão m s de ma d uma m pesqu quis issa cuidadossa do perrío odo h hiistó tóri rico co o em qu ques estã es tão, tã o, aprove ap veit itan ando do os me melh lhor lh o es eleeor ment me n os que u ser erve vem m de ggra rand n es temass pa te parra seus lilvr vros os. O re resuultado ta do fin nal al é mui uita tass ve veze zess no notá táve vel.l. Em m Os Os L Leõ eões de Al Al-Rassan, um u doss ro do romances favoritos de mu muiitos de seus fãs, Kay vai bus usca carr insp in spir iraç ação ão n naa hi histtória med dieval euro eu r peia no o temp mpo o da p pre resenn ça ddos o árabes em Portu tuga gall e na n Espa Es panh n a. As figuras do guerreiro eesp spanhol El Cid e do poeta d cidadde portuguesa de Silves, da Ibn Ammar, servem de inspiração para a própria criação do auuto tor, r, mas as,, at atravé véss de d suaas vívid s pe da persson onag agen ens, s, a trans nsição ã de uma erra pa um p ra out utra ra é roddeaada da de tant ta ntaa po poes esia es ia,, no ia nost stal st algi al giaa e ce gi cert rto rt o agri ag rido ri d cee qque do ue esstta se ttor orno or nouu um no ma d s su da suas as o obr b as maaiis ac br acla lama m das. s. Esse Es see p pod o er ddee evvoccaç od a ão o, em e oo ção çã o pr prof ofun of unda un da e lam a en ento to op por orr um o pass pa ssad ss ado ad o qu quee já nãão o exi x st s e, ou está es tá mor orre rend re ndo, nd o, permi err mi mite te ao au te au-to or cr criia iar allgu g maas daas ma mais aiss m maa-r viilh ra hos o as as e com mpl p exxass cen ceen nas nas as de seus se us liv ivro ro os.
pros pr osaa lííri os r ca e emo moci moci cion onal on a al não nã ão enco enco en con ontraa par aral alel elo o em neenh nhum u o um out u ro ut r auttor or dde fa fant nttas asia ia quee euu ten qu nhaa liddo,, ccom om exc xceç eção eç ão dee Urssul ula Lee Gui uin em sua sér uin ériiee érie Eart Ea rrtths hseaa. Kayy ddom hsea omiin om ina a liling ina ngguaag m co ge como mo um ma maggo go p pod oder od erros oo teeceend ndo o um m enc ncan antta tame tame ment nto nt o co com pala pa laavr vras ras ccui uida uida ui dado d same do sament sa ment ntee essco co-/// 7711 BBAANNGG! //
lh hid idas as.. Nãão há uuma as ma úúni nicca ni ca ffra r se qque ra ue n não ã ão seja se j b ja bon onit itta e ev evoc ocat attiv iva. a. E qu quem em mel elho horr paara rrep e re ep rese sent nttar ar ess ssaa perf pe rfei eiçã ei ç o lílíri çã rica icaa ddo o qu quee a figu gura ra de um b rddo? Dev ba evin in dd’A ’ so ’A solili é uma das a p perso onaage g ns apr p es e en entaada dass no iní níci c o do livvro e ci será se rá eele le que noss con ondu d zirá na prrim imeira partee pela Pen nínsu sula la da Palm lm ma e ap apre rseent ntar aráá os aco onteccim imen e tos po en olílíti ticoss e históricos. Um jovem e sen ensível e mú músi siico co talentoso que, ao de d scobrir a verdade acerca de suas origens, nunca mais volta a ser o mesmo. Attra A traavé véss de d le, conhecemos outras figuras qu quee formam, na aparência, uma mera companhia de músicos. No início do livro, descobrimos qu que os músicos têm uma identidade que escon sco dem de sc todos e uma missão que pretendem desempenhar a todo custo. Todos eles fazem parte de um grupo secreto de conspiradores e rebeldes que planeja derrubar os feit iticeiros e libertar Tigana, sua pátria subjugada e amaldiçoada, das garras de Brandin. A guns são jovens, outros nem tanto, Al m s to ma todo d s sentem intensamente a perda dee ssua u terrraa natal. Alguns ainda desejam ua redi re dimi di mir os erros do passado ou presermi varr as pou va o cas me m mórias familiares que lhes lh e res es e ta t m. m Ass mul A ullhe ulh heres são tão importantes quanto to os ho h mens em Tigana. Como eles, lutam por sua liberdade e dignidade, apaixonam-se (às vezes pelas pes esso soso as errrad adas a ), e, muitas vezes, podem supeeráá-los, perá l demonstrando uma coragem e sacrifício imensos, estando sempre dispostas a darr a vida para pagar o preço de san nguuee..
ouutr outr t a paart rtee da da n nar a ra ar r tiiva é ffoc ocad oc adaa na ad Ilha IIl ha de Chiara,, on o de B Bra rand ra nddin in est staabeele l ceu sua corte, e, e é ccon on nta tada d através doss ol do o ho hoss de d Dia iano nora no raa, um ma beela l mulher q e fo qu oi ca c pt ptur u ad ur ada pe pelo los meerc los r en enár árrios do r i Br re B andi d n e qu di q e ra rapi pida pi damente se tor dam orno or nou no u a de sua um uass am man a tees fa favo vo ori ritaas em m meio ao seu e saissha hann. A hist hiist stór ória ór ia de Di D an a ora é repl re plet e a de sollidão iddão o, dúvi vida ida da,, du d pla identida ti dade da de,, an de angúúst s iaa e tri rist stez ezas zas imensas. Seu pass pa ssado ss ssad addo é co ontad nttad ado o em em flflaashbackss e logo desc de s ob sc bri rimo mo os seus seeuss ver erdddaaddeeiros e objetivos. Ella é te test stem st eem munh un nha ha do do imenso poder de Bran Br an ndi din so din sobr bree seus súditos e seu bobo br Rhun Rh un,, de sua un ua arrogância e frieza, mas t mb ta mbém ém do seu charme e sensualidade. ém N s sab Nó bemos logo no início do livro que ele é o vilão, mas, à medida que a 72 /// BANG!
naarrrat ativ ivaa pr iv prog ogri og ride ri de,, Br de Bran andi an din di n mo m sttra um c rá ca ráte terr co comp mple mp l xo le o e tor orna na-s na -see ób -s óbvi v o qu vi quee não nã o é um ssim impl ples es ant ntag aggon nis i taa, e qu quas asee cons co nseg eguiimo moss co comp mpre reen ende derr seeu in inte tens te nso ns o deesggosto pel elaa mo mortee do d filho o Ste teva van va neo que o le qu levo vvo ou a cometeer ta t ma manh nhaa at a ro r ciidadada de contraa Tigana. Alb beriico de Barbaddior io or é o ou outr utr tro o fe f it i i-ceeir iro o qu q e mantém a Palma sob seu dom ni mí n o. Oposto de Brandin, é um senhor de guerra bárbaro, talvez a figura mais u idimensional na obra de Kay. Apenas un vêê a Península como um meio para atingir um u fim, e tudo o que amb mbic icio ic i na é glória i e poder no Império de Barbadior. ia Do lad ado opos ad o to, Alessan, o príncipe os de Tigana, é o sup up possto heróii de qu q em se espera a redenção e a vinganç nçça, a mas é uma figura que ganha umaa dimen e ssãão cada vez mais humana e menos heroica. Constantemente atormentado por dúvidas, jurou livrar a Penínsulaa do d s feiticeiros tiranos, porém, ainda que tenha companheiros tão leais como Devin, Catriana e Baerd, o príncipe cresceu em exílio e em constante fuga, atorrme ment ntant a do pela memória de uma Tigana que jáá não existe e de um pai corajoso que se tornou uma lenda e um mártir para os tiganenses. Para piorar as coisas, Alessan sabe que, para alc lcan a çar a vitória, terá de cometer atos questionáveis. Sua relação com o feiticeiro Erlein propiccia alg l un uns dos episódios morais e éti tico c s ma co mais is ddes esaa fiantes do livro ro. o É difícil esco co olher uma m única c cena decisiva do livro entre tantas – o que dizer do magnífico capítulo do “mergulho do anel” ou a Noite das Flamas com os Andarilh hos os da Noite? Mas de uma coisa não há dúv ú id idaa: o lei e tor ficará certament ntte n marc rcad addo pelos momentos finais de desta ob bra m mon o umental, em que Kay to omou um ma decisão controversa quando o rev e ela um dos o grandes seg e redos da sag a a. a Res e ta aao o leitor avaliar se essa decisão o nã não o faaz todo o sentido diante dos temass prrin incipais do livro: a perda da identida dade da dee, a vingança, o desejo por liber e dade e escolha pessoal, a necessidade de de compaixão. Pois afinal é o próprio Alessan que admite: Nesse mundo em que nos encontramos, penso que é preciso ter compaixão acima de tudo, ou estaremos todos sozinhos. Se você nunca leu Guy Gavriel Kay, posso assegurar que está nas mãos de um exímio contador de histórias, que o fará viver uma autêntica montanha-russa de emoções.
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Península da Palma partilha uma língua comum e está dividida em nove províncias: Senzio, Certando, Corte, Baixa Corte (a antiga Tigana), Asoli, Chiara, Tregea, Astibar e Ferraut. A parte oriental é dominada por Alberico, ao passo que o lado ocidental é dominado por Brandin, que reina a partir da ilha de Chiara. Duas luas orbitam em torno da terra onde os habitantes veneram uma tríade de deuses, um deus e duas deusas. Ao contrário de fantasias mais tradicionais, não imperam criaturas míticas ou outras raças. A única criatura sobrenatural que figura na história é uma riselka cuja aparição traz presságios. A magia existe na Península, mas não é disciplinada nem é ensinada, e muitos de seus praticantes são forçados a esconder seus talentos dos tiranos ou se arriscam a uma sentença de morte. Muito ao estilo da antiga Itália medieval, que era formada por estados que constantemente guerreavam entre si, assim é apresentada a Península. Os conflitos internos permitiram a fácil conquista dos territórios, simultaneamente, mas de modo independente, pelos dois feiticeiros que estabeleceram uma balança precária de poder.
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GUY GAVRIEL KAY é um autor canadense que se iniciou no mundo literário ao ser convidado por Christopher Tolkien para editar O Silmarillion, de J. R. R. Tolkien. É o autor da trilogia de fantasia A Tapeçaria de Fionavar e das obras de fantasia histórica Lions of Al-Rassan, A Song for Arbonne, The Sarantine Mosaic (dois volumes). Os livros Under Heaven e River of Stars, de sua mais recente série, passam-se no Império da China. Tigana é uma de suas obras mais aclamadas. Seu trabalho encontra-se traduzido em 21 línguas e recebeu numerosas nomeações e prêmios ao longo de sua carreira.
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ntes de publicar seu primeiro romance, The Summer Tree, você foi convidado por Christopher Tolkien para editar O Silmarillion, de J. R. R Tolkien, considerado uma obra-prima por muitos de seus fãs. Foi uma decisão deliberada escrever A Tapeçaria de Fionavar, sua primeira trilogia de fantasia, na tradição de Tolkien? Uma homenagem a um escritor que influenciou tão intensamente o gênero? A tees de An d qua ualquer co c is isa, obrigado por esta taa ent n re revi vist vi ist sta. a. É uum m pr praz a er ter a oportunida dade dee ddee pa part rtilililha rt harr algumas reflexões ha com meuss lei lei eito to orrees. s. Fionavarr não foi exatamente uma homenagem, m mas sim uma tentativa de regressar às mesmas raízes, à capacidade de moldar uma fantasia. Na época, a maioria dos escritores de fantasia que eu conhecia estava se afastando da dimensão épica em direção a uma obra minimalista, deixando os grandes épicos para escritores que imitavam cinicamente Tolkien como forma de obter sucesso comercial. Não era meu desejo que um gênero tão forte em mito, lenda e folclore acabasse dessa forma. Fionavar foi um desafio que impus a mim mes-
mo, utiliz i ando alguns desses elementos, m s cr ma c ia iand ndo pe nd p rsonagens mais modern s,, int na n ro rodu duzi du zinddo sexualidade e temas como mo o lib ibeer erd de de escolha ou o preço erda (ou fardo) do poder. Tigana foi o primeiro romance no qual você encontrou sua voz criativa. Sei que não lhe agrada muito o termo “Fantasia Histórica”, mas, ao recriar determinados eventos históricos em um cenário de fantasia, você acabou por criar um conjunto de obras único e forte. Em Os Leões de Al-Rassan há um grande fascínio pelo declínio da presença dos mouros em Portugal e na Espanha. Em A Song for Arbonne, foi a cruzada albigense na Provença Medieval que captou a sua imaginação. Em Tigana, você se inspirou na Itália Medieval. Também Constantinopla e a China foram objetos de estudo em romances recentes. A fantasia permite-lhe maior liberdade em explorar os principais temas do livro? Suponho que hoje em dia me sinta mais confortável com o termo “Fantasia Histórica”, pois as pessoas gostam de rótulos e categorias. Tenho imensas razões para trabalhar com o que um crítico chama de “história com um pendor para o fantástico” e escrevi ensaios e discursos sobre isso (quem lê inglês BANG! /// 75
p de enc po n on ontr trar ar alg lguuns uns de d st s es e ttex exto ex toss na to seçã se ção çã o “W Wor o ds ds”” de d www ww.b .bri .b riigh righ ghtw twea tw eavi ea ving vi nggs. c m). N co Naa Am mér éric icaa Laatiina na,, qu quee te tem m um umaa trad tr adiç i ão iç ã rric icaa em rrea ealilism smo o má mági gico co,, accho o quee co qu c mp mpre reen ende dem m me melh lh hor ccom mo estess lilige geeir iros os des e vi v os da re real alid idad adee po pode dem m na n verd ve rdad adee ilium minar ar ain inda da maiis o nosso munddo e a Histór ória i . Al Além dis i so, a fa fanntaasiia pe permittee me m usa sarr um maiorr n sa núm úmeeúm ero de ferramentas pa p raa sed eduzir o lei eito ei to or! r Verifiquei em seu site a bibliografia que você consultou para a pesquisa de Tigana, e a maioria dos livros centram-se na Itália Renascentista ou na Idade Média. O que o atrai tanto no passado da Europa e o que o cativa tanto para o melhor e o pior da ascensão e declínio de Impérios? Como você provavelmente deve saber, meus dois últimos romances exploraram a História chinesa, nos séculos VIII e XII, por isso não estou de maneira nenhuma “casado” com a Europa. Mas admito que me sinto fasc na ci nado por sua História desde os meus 1 aano 18 nos, quaando fiz uma viagem pela Euuro ropa pa. Do Dou-lhe razão quando aponta quee mu qu m itos de meus livros ocorrem em peerííod o os o de mudança política, religiosa ou mililit itar it a . A tensão que essa transição ccaaussa às à per e sonagens origina um grande imp pac acto to. Em Tigana, a magia desempenha o papel principal na eliminação da identidade e memória. O legado dos tiganenses e o caminho que eles têm de percorrer lembrou-me do livro de Amin Maalouf As Identidades Assassinas. A identidade conduz sempre à loucura e à violência? Não, Nã o certaame ment ntee nãão. o Mass qque uestões ue dee iide dent n id idad adee e su suaa su supr pres pr e sã es s o ou perdaa são o ext xtre rema re mame ma ment me ntee impo nt ortantes ao lo ong ngo ddaa His i tó tória. Tiranos e ccon onqu on quis qu ista is tta d rrees se do sem mpree sou soube bera bera r m qu quee a ma mane neir ne iraa ir m is ceerta de reduzi ma zirr a re resi sist si stên st ênci ên ciaa é ci dim di minuir a identid dad adee da naçção ão ocupaada d . A ep píg ígrafe fe de Tiga Tiga Ti g naa, dee aut u oria d mar do a av ar avilililho ho oso s poeeta gre rego ego go G Geo eorge eo S feeris,, é pre Se reci c same ci saame ment ntte so obr b e aquiilo o q e me qu me per ergu gunt n a: a lem mbr brar arrmos mos mu muit ito it o do passado do o pod o e no noss de dest stru ruir ru ir;; ma ir m s nos l mb le mbrarmos os p pou ouuco ttam a bé am bém m po p de. Sei que você já se referiu à Primavera de Praga [tentativa de liberalização da Checoslováquia do domínio da União Soviética em 1968, que terminou nesse mesmo ano com a invasão de Praga por tanques soviéticos] como um dos acontecimentos históricos que inspiraram Tigana. O povo de Tigana sofre o 76 /// BANG!
mesmo tipo de jugo político e tirania. Após várias décadas, a tirania política e a financeira continuam a ser um tema vital em todo o mundo. Vinte e três anos antes de sua primeira publicação, você previa que os temas de Tigana refletissem tão profundamente o estado presente do nosso mundo? Não Nã o te ten nho tendência a penssar nisso em teerm r os de “previsões”, sendo a minha pers rsp pectiva a de um historiador. Tigana f i escrito como uma fantasia em parte fo po orq r ue, ao ser escrito dessa forma, sobr bree um país fictício, po br p de de ttor orna or naarr se a histtór ó ia de muitos outros luuga g res em diferent nttes e tempo pos. Eu adoro este parapo doxo: o cenário de fan a tasia fazz co com m que leitores do mundo inte teiro me perrguunte tem, ao longo dos anos: “Voc occê es e crrevveu sobre nós?” Você é conhecido por criar personagens masculinas e femininas muito complexas: Alessan, Jehane, Dianora, Ammar ibn Khairan, para nomear só algumas. Até mesmo os seus vilões afastam-se dos clichês habituais. O feiticeiro Brandin de Ygrath é o opressor de Tigana, mas também vai muito além disso. Pode partilhar conosco alguns de seus segredos sobre o processo de criação destas personagens? Não diria que tenho segredos.. Su Supo ponh po n o que seja tudo uma questã tão tã o de tem empo po, po paciência e avver e são a uma simp plifi liificação excessiva da das coisas a . Como m leitor, aprecio livros que me ofereçam personagens complexas e maduras, e não heróis ou vilões óbvios. Por isso tento escreverr os lilvros que gostaria de ler. Tamb bém m sin into t mui u ta curiosidade pelas aass minh nh has a personagens er secundárias, quequ ro o ssab ab aber ber mais sobre elas à medidaa qu q e suurgem, por isso tento dar-lhe h s al algu guma p offun pr undidade. A riqueza de Tigana reside não só nas personagens fascinantes e no enredo, mas também nos detalhes de cada região e cultura. Como você integra a pesquisa na sua escrita? Quando está lendo um livro de História, reconhece imediatamente os elementos que irá assimilar em sua obra? É uma boa pergunta. A resposta curta é não, pois à medida que leio e pesquiso são as coisas pequenas e inesperadas que muitas vezes captam meu olhar, mas também acontece de eu fazer uma nota que acaba por nunca entrar no livro. Também pode acontecer de outras coisas irromperem de minhas notas enquanto o livro está tomando
form fo rma. rm a Ess a. ssaa é um uma da d s ra r zõ ões por or que não nã o po poss sso ss o si simp mple mp lesm le men entee emp prega g r ga pesq pe squi sq uisa ui s do sa dore res: re s: tten enho enho o que sser err eu eu pr próó-p io a ffaz pr azzêê-lo l , meerg lo rgul ulha ul harr be ha bem m fu fund ndo, nd o, d sccob de o riir aqquiilo qque ue ssee ir iráá to torn rnar rn ar par arte te d meu liv de ivro ro. O lilivr ro vro vr o mu muda da eem m mi mim m enqu en quan anto to o m mol olldo do. Em que você está trabalhando no momento? Quais são os seus futuros planos de publicação? Terminei agora o tourr para o meu livro mais recente, Rive v r of Stars, s por isso iniciei a fase de ler e pensar (e praguejar!) so ob brre re qu qual será o tema de meu próximo livr v o. vr o. Pre reci cis ci iso sempre de um pouco de tempo antes de começar a escrever, em parte porque não quero repetir os temas e o estilo do último livro. Esta é a sua primeira publicação no Brasil. O que gostaria de dizer aos seus leitores brasileiros para convencê-los a ler Tigana? Como ex-estudante de Direito e advogado, como defenderia a sua causa? Ah! Preciso de uma boa garrafa de uísque de malte para ser veerddad adei e ramenei te persuasivo. A verdadee é que Ti Tiga gana ga parece terr tido boas venda dass e im da impacto em toddo o mu m nd n o. Tornou-se uma obra imp mpor mp orttante para lei or eito tore to ress em país pa íses ís es ccom omo om o Co C reia do Su S l e Es Estô Estô tôni n a, da C Chi h na à Gré hi r ciia. Sinto-me honrad a o e proffun unda dame da mente grato. Os temass me do livvro o, beem co como as personaggens, s,, toca c raam pr ca p of o undamente muitas pes esso oass, e a minha esperança é que o meesm m mo acconteça no Brasil. Assim m espe es peero o!
Por Safaa Dib
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duardo Spohr é hoje um nome popular entre os nerds brasileiros. A história de seu sucesso já é conhecida. Tudo começou quando ganhou um concurso literário que lhe permitiu publicar 100 exemplares de seu primeiro romance A Batalha do Apocalipse. O autor propôs uma parceria a seus amigos do site Jovem Nerd que venderam em sua loja on-line todos os livros em uma questão de horas. Dos 100 exemplares, rapidamente passou de 4 mil cópias. O sucesso de sua edição de autor chamou a atenção da Editora Record que, em 2010, o convidou para publicar A Batalha do Apocalipse. Mas a escrita não ficou por aí. Em maio deste ano, Eduardo lançou Anjos da Morte, o segundo volume da série Filhos do Édenn e prepara o terceiro e último, Paraíso Perdido. O reconhecimento tem sido global: já publicou em vários países europeus e é um dos escritores brasileiros convidados a fazer parte do time de futebol que irá desafiar o time de escritores alemães na Feira Internacional de Frankfurt, onde o Brasil é, este ano, o convidado de honra. Apesar de ter uma agenda lotada, o autor, superamável, arranjou tempo para conversar com a revista Bang! e partilhar
umas dicas preciosas com os nossos leitores. Seu pai era piloto de aviões e você viajou muito com ele por todo o mundo. Essa infância e adolescência em constante interação com outras culturas influenciaram a mitologia que criou em seus livros? De certa forma, sim. Não que as viagens tenham influenciado diretamente no cenário de fantasia que eu descrevo em minhas obras. O que elas (as viagens) me proporcionaram foi a convivência com culturas e povos muito diferentes, o que me fez compreendê-los e respeitá-los. Essa postura, de respeito e compreensão, me ajudou a, mais tarde, estudar várias mitologias, crenças e tradições sem preconceitos, com um olhar aberto, amplo e interessado. E foi com esse olhar interessado que eu descobri que todas as histórias mitológicas seguem um mesmo padrão universal, padrão que também é adotado por muitas obras populares, no cinema, nas histórias em quadrinhos, na literatura, no teatro. Esse “padrão”, conhecido como “a jornada do herói”, tanto nos cativa porque está baseado em etapas narrativas que são metafóricas e que podem ser observadas em nossa própria vida – todos nós, de uma forma ou de outra, já assu-
mimos papéis arquetípicos, já passamos por situações difíceis, já morremos e renascemos (metaforicamente, é claro). Em que medida a leitura de HQs e os jogos de RPG influenciaram a criação de seu próprio mundo ficcional? Sem dúvida tanto os quadrinhos quanto os jogos de RPG representaram influências essenciais no meu trabalho. No primeiro caso, o que mais me inspirou foram as revistas da Vertigo, um selo adulto da DC Comics. Eu costumava ler histórias de super-heróis desde pequeno, mas foram nomes como Neil Gaiman, Alan Moore, Garth Ennis e títulos como Sandman, Hellblazer e Preacherr que mais me inspiraram. Neil Gaiman e Alan Moore, por exemplo, foram, ao meu ver, os grandes responsáveis por trazer a filosofia aos quadrinhos norte-americanos. Já publicações como Hellblazerr e Preacherr me interessavam por explorar personagens anjos e demônios, assunto que sempre me fascinou. O RPG é uma ferramenta de criatividade fascinante, que proporciona ao mestre do jogo a possibilidade de inventar uma história e testá-la imediatamente com seu grupo de jogo, que o ajudará a ampliá-la e enriquecê-la. O RPG também pode ajudar um escriBANG! /// 77
Todas as pessoas têm um potencial divino, o poder de fazer coisas incríveis, mas às vezes esse potencial está adormecido. Está em nossas mãos despertar esse potencial, escolher nossa trilha.
tor a criar personagens ricos. Quase todos os personagens dos meus livros foram criados por amigos meus em sessões de RPG – assim, sempre que, ao escrever um capítulo, eu tinha dúvidas sobre como um personagem deveria agir, eu pensava em como o jogador agiria ao controle do personagem, e até os diálogos soavam mais consistentes, menos artificiais. O RPG é uma ferramenta de criação coletiva, que auxilia o escritor em seu trabalho, trabalho esse que em circunstâncias normais seria um bocado solitário. De onde vem esse intenso fascínio pelo Apocalipse e pelo corpus mitológico do Velho e do Novo Testamento que deu origem ao Spohrverso? Estudei em uma escola católica, fiz catecismo e primeira comunhão, e cresci dentro da tradição cristã. Talvez o fascínio venha daí, mas eu diria que o meu fascínio, de fato, é por todas as crenças, religiões e mitologias. A tradição judaico-cristã é aquela com que mais convivemos no mundo ocidental, é a que mais conhecemos e a que mais temos contato, por isso talvez eu a tenha escolhido como tema principal das minhas histórias. Em relação ao fim do mundo, está muito ligado à minha infância. Cresci nos anos 1980, e com a iminência de um confronto nuclear durante a Guerra Fria os livros, filmes e até músicas destacavam bastante esse tema, de como seria um mundo devastado, destruído pela ação dos homens, um planeta a ponto de acabar, desprovido de esperanças. Em Paraíso Perdido de John Milton, a grande figura literária é Satanás, sendo Deus uma figura ausente e não tão carismática quanto Lúcifer. Em sua obra, A Batalha do Apocalipse, Deus está adormecido e são os arcanjos e outras figuras celestiais que se tornam protagonistas e movem toda a ação. O fascínio de todos nós por protagonistas que são anti-heróis, exilados, rebeldes é uma forma de refletir na ficção as próprias imperfeições e dúvidas da Humanidade?
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realidade. De fato, a grande maioria dos heróis são rebeldes, de uma forma ou de outra, figuras que se rebelaram contra um sistema vigente. É o caso de Jesus, que desafiou tanto os romanos quanto os sacerdotes judeus; é o caso de Buda, que decidiu largar a sua nobreza para seguir seu caminho; é o caso de Maomé, que se insurgiu contra as poderosas famílias de Meca iniciando a jihad; é o caso de Luke Skywalker, que se revoltou contra o Império Galáctico; é o caso dos robôs de Isaac Asimov, que lutavam contra sua própria programação, etc. Assim como esses heróis (da realidade e da ficção), nós também temos dentro de nós o desejo de nos rebelarmos contra as imposições sociais. No fundo, o que queremos é escolher o nosso próprio destino, queremos escolher uma atividade profissional que nos dê prazer e satisfação, enquanto a esmagadora maioria das pessoas no mundo são obrigadas a trabalhar em empregos de que não gostam, às vezes influenciadas pelos pais, pelos parentes, por amigos ou pela própria sociedade. É esse grito heroico dado pelos personagens descritos acima que nós desejamos dar, por isso tais figuras tanto nos inspiram, pois tiveram a coragem de não ceder às imposições sociais e seguir os princípios que acreditavam, mesmo diante da morte. Quanto à questão do Deus adormecido, é também uma metáfora. Todas as pessoas têm um potencial divino, o poder de fazer coisas incríveis, mas, às vezes, esse potencial está adormecido. Está em nossas mãos despertar esse potencial, escolher nossa trilha. Recentemente, você lançou no Brasil Anjos da Morte, que segue a história de Denyel, um querubim exilado, que testemunha a história bélica e sanguinária europeia do séc. XX. O que o surpreendeu mais em sua investigação da Europa no tempo das duas Guerras, da Guerra Fria e da queda do Muro de Berlim e nas viagens recentes que fez? Toda guerra é terrível, mas estudá-las não deixa de ser uma atividade fascinante. O que mais nos impressiona nas guerras é a incrível capacidade do ser humano em se adaptar às situações mais extremas. O homem, embora individualmente frágil, é uma máquina de sobrevivência, um ser que fará tudo o que estiver ao seu alcance para resistir às mais duras provações. Impressiona também, ao estudar as guerras, como, no momento do desespero e da morte, o ser humano é capaz de se superar, para o bem e para o mal. É nesses momentos que a nossa natureza aflora, mostra a
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Brinco com os meus colegas, também autores de fantasia, que passamos um, dois anos escrevendo um livro, e o leitor o devora em uma semana, às vezes em um dia. Sendo assim, o leitor vai procurar outros livros, e é bom que o faça, porque dessa forma ele irá adquirir e ampliar o hábito da leitura.
sua face verdadeira. É nesses momentos que nos tornamos heróis, monstros, santos e selvagens. Costumo dizer que existem três níveis de pesquisa. O primeiro nível é por meio da internet, que dará ao escritor uma visão geral sobre o assunto. O segundo nível de pesquisa é a leitura e o estudo de livros – é necessário ler livros completos sobre o tema que o pesquisador deseja se aprofundar. Finalmente, o terceiro e mais profundo nível de pesquisa é a visita ao local – no caso de Anjos da Morte,e visitei os sítios históricos das duas grandes Guerras e da Guerra Fria. Visitar o local antes de escrever sobre ele enriquece a narrativa, e muito, porque dá ao autor uma experiência não apenas intelectual (que pode ser assimilada por livros), mas principalmente uma experiência sensorial, fazendo com que o escritor conheça não apenas os fatos, mas as sensações e emoções que o lugar proporciona. Em um romance, essas sensações serão transmitidas para o leitor por meio do protagonista, que é o fio condutor da trama. Ablon e Denyel são duas de minhas personagens favoritas. Um é um anjo renegado e condenado, outro é um querubim exilado e recrutado como anjo da morte. Qual o segredo de um escritor para criar uma personagem memorável e carismática para os leitores? Primeiramente, agradeço pelo elogio e fico feliz que tenha gostado dos personagens. Bom, não sei se existe um segredo específico nesse caso, mas acho que todos os aspectos da produção literária devem ser genuínos para o autor – não que ele deva acreditar naquela história de fantasia, claro que não, mas ele deve acreditar que aqueles aspectos possam de fato existir dentro do mundo fictício que ele criou. Os personagens, feitos de tinta e papel, devem ser, no momento em que o autor está escrevendo e bolando seus capítulos, “reais” para ele; devem ter atitudes coerentes com o que a história propõe. É importante também que o personagem tenha características marcantes que o definam. Ablon, por exemplo, é um herói inabalável, enquanto Denyel é um malandro incorrigível. Eu, pelo menos, gosto de trabalhar com arquétipos universais. Os arquétipos universais são padrões de personalidade comuns a todos nós, e por isso nos identificamos com eles tão facilmente. Você ministra um curso de “Estrutura Literária”. Que desafios apresenta o seu trabalho como professor e como concilia com o seu trabalho de escritor? É sem dúvida um trabalho que me exige muito, mas não há nada mais prazeroso. Lecionar é para mim uma atividade incrível. Não só aprendo com os meus alunos como me torno amigo deles. Cada turma é uma nova experiência e um novo grupo de colegas que se forma. A fantasia e a ficção científica escritas em português (brasileiro ou europeu) podem vir um dia a rivalizar com a fantasia anglo-saxônica? Difícil fazer projeções para o futuro. De qualquer maneira, não acho que exista, por parte dos autores, essa necessidade de rivalizar com escritores nativos de outras línguas. Eu mesmo nunca pensei sobre isso. Creio que a maior vontade de um autor (se não é, deveria ser) é escrever a sua própria história, para que ela seja lida, sem pensar se ela será pior ou melhor que o trabalho de um colega. Penso que, enquanto artistas, não precisamos nos preocupar em fazer melhor do que ninguém – precisamos, sim, fazer o melhor possível, o melhor que podemos, sem pensar em competição ou rivalidade. Sei que leu muitos livros portugueses de fantasia e ficção científica na década de 1980 que eram importados para o Brasil. Hoje, o Brasil tem uma oferta muito diversificada de publicações e muitas editoras (granBANG! /// 79
des e pequenas) têm descoberto autores brasileiros e traduzidos, bem como lançado coletâneas e romances. Como encara este boom atual de fantástico no Brasil? Encaro da melhor maneira possível. É sempre bom ter muita oferta de literatura no mercado. O bacana desse ramo (o ramo literário) é que não existe competição entre os autores. Brinco com os meus colegas, também autores de fantasia, que passamos um, dois anos escrevendo um livro, e o leitor o devora em uma semana, às vezes em um dia. Sendo assim, o leitor vai procurar outros livros, e é bom que o faça, porque dessa forma ele irá adquirir e ampliar o hábito da leitura. Faço questão de sempre em minhas palestras e conversas com o público divulgar o trabalho de outros autores para quem estiver presente – se mais pessoas lerem os nossos livros, todos sairemos ganhando. O que os leitores podem esperar de seu próximo livro, Paraíso Perdido, que encerra a série Filhos do Éden? Gosto de trabalhar com várias camadas em meus livros. É claro que se trata de livros de aventura, onde há lutas e muita ação, mas penso que um romance deve ir além disso, deve incluir também uma camada mais profunda, sem soar lento, aborrecido ou professoral. Em minha primeira obra, A Batalha do Apocalipse,e além da trama e dos combates, explorei três assuntos que muito me interessam: filosofia, história e mitologia. Quando comecei a desenvolver a trilogia Filhos do Éden, resolvi que cada livro focaria um desses aspectos. O primeiro deles, Filhos do Éden: Herdeiros de Atlântida, é mais filosófico, questiona os aspectos da vida e a para onde vamos depois que morremos. Já o segundo, Filhos do Éden: Anjos da Morte,e é uma obra totalmente histórica, com uma forte carga de pesquisa. O terceiro, Filhos do Éden: Paraíso Perdido, então, será um livro que mergulhará fundo nos aspectos mitológicos, tanto da mitologia judaico-cristã quanto da mitologia nórdica. O que Anjos da Mortee teve de realidade, Paraíso Perdidoo terá de fantasia, e levará a série a um nível acima. Herdeiros de Atlântidaa teve como cenário o Brasil, em Anjos da Mortee os personagens viajaram pelo mundo e em Paraíso Perdidoo será a vez de explorar outros planos e dimensões.
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Escreva todo dia, nem que seja um pouco. Se você parar por muito tempo, terá de voltar para se recordar onde parou, dando início a um processo sem fim.
Organize-se, separando o seu material em pastas, físicas ou virtuais.
Estabeleça um horário para escrever, crie uma rotina.
Tenha um roteiro de todos os capítulos, do primeiro ao último, antes de começar a escrever o seu livro. Assim você não se perde e evita os “brancos criativos”.
Trabalhe com pequenas metas. Foque-se em seu objetivo mais imediato, caminhe de capítulo em capítulo.
Procure conquistar os seus leitores antes de conquistar a editora, pois se você tiver leitores, as editoras virão atrás de você – enquanto o contrário não é necessariamente verdade.
Apresente o seu material da melhor maneira possível, tanto graficamente quanto intelectualmente – bem revisado, escrito de forma clara.
Se as editoras não aceitarem o seu original, não desista, continue tentando publicar nem que seja de forma independente.
Procure agir de forma espontânea. Seja você mesmo. Seja verdadeiro. Não compre brigas, não invente números nem tente ser quem você não é.
Procure escutar as críticas e tentar melhorar com elas, em vez de achar que seu trabalho é perfeito e intocável. Somos humanos, cometemos erros e sempre podemos melhorar.