O Debate nº 1

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15 JUNHO 2011

Editorial Finalmente chegou a hora de o jornal O DEBATE ver a luz do dia. Depois de um número zero experimental O DEBATE, ressurge hoje dia 15 de Junho primeiro e apenas numa edição online e mais tarde então, depois de consolidado em matéria de colaborações fixas, publicidade e leitores assíduos, estará em edição papel nas bancas de todo o país.

(…) o novo jornal não é, nem pretende ser, como muitos já fizeram crer, a forja de nenhum movimento monárquico. É apenas e só, um órgão de comunicação social com tudo o que isso implica e que dará cobertura a todos os m ov ime ntos pe la Monarquia em Portugal sendo por isso partidário de uma po lítica de proximidade junto da população portuguesa em geral e dos monárquicos em particular. (…)

Com um cariz acentuadamente monárquico - como sempre foi sua tradição - O DEBATE pretende unir de uma vez por todas os monárquicos em torno de uma causa e de uma casa real com uma longa história na nação portuguesa. Como é óbvio, O DEBATE reconhece publicamente e desde já que, os direitos dinásticos da Coroa Portuguesa estão na pessoa de Sua Alteza Real o Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança e em quem legitimamente lhe vier a suceder nesses direitos. Por outro lado, o novo jornal não é, nem pretende ser, como muitos já fizeram crer, a forja de nenhum movimento monárquico. É apenas e só, um órgão de comunicação social com tudo o que isso implica e que dará cobertura a todos os movimentos pela Monarquia em Portugal sendo por isso partidário de uma política de proximidade junto da população portuguesa em geral e dos monárquicos em particular.

odebate.jornal@gmail.com [+351] 963 007 515 Rua Correia T eles , 28 A 1300-150 L is boa Salvador C osta Director Pedro Corte-Real Editor-chef e I nês de M ello Desi gn Els a N ascimento Capa Col abora ra m ne sta edi çã o: Álvaro Santos P ereira Augus to Ferreira do A maral António J osé T elo Carlos Bobone J osé M anuel Q uintas N uno Resende Marketing e P ublic idade: L uisa Borges Directora de ma rket ing Carlos Gas par A gência s publi cidade Paulo C otrim Clientes di re ctos Bibi C orreia A ccount J oana P into Circula ção e A ssi natura s J orge C aldeira Director f ina ncei ro Periodicidade: M ensal

Por último uma palavra de agradecimento a todos quantos aderiram aos vários grupos nas redes sociais que ajudaram a cativar os mais de 15.000 potenciais leitores para um projecto único em Portugal. Portanto quem disse que a monarquia é "coisa do passado" e "está morta e enterrada" enganou-se redondamente. Salvador Costa

D ia de s aída: D ia 15 de cada mês Formato: 370mm x 290 mm N úmero de páginas des ta ediç ão: 58

Ci rcula ção di re cta G overno, Assembleia da Repúblic a, A utarquias , J untas de Fregues ia, O rgãos de poder loc al, E mbaixadas de Portugal no exterior, E mbaixadas es trangeiras ac reditadas em Portugal, O rganizaç ões regionais , Associaç ões de emigrantes , Associaç ões de estudantes , empresários e quadros s uperiores de empresas .


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José Manuel Quintas

A Monarquia do Norte: Os combates pela bandeira azul e branca [ 1910-1919 ] 1. As incursões da Galiza 2. O programa de Richmond 3. O ascenso monárquico 4. No Sidonismo «com o osso da minoria» 5. «A Monarquia ou a morte!» 6. Proc lamando a «Monarquia do Norte» 7. No rescaldo Em Janeiro de 1911, Ramalho Ortigão contava setenta e quatro anos. Permanecia no exílio em Paris mas, voltando ao dirigir-se aos seus leitores da Gazeta de Notícias, no recomeço da sua carreira no ofício das letras, emocionou-se com a analogia com Vítor Hugo que, tendo regressado do seu exílio de Guernesey, depois da queda do Império e da proclamação da Terceira República, afirmara auspiciosamente: «Messieurs, j’ai soissante quatorze ans et je commence ma carrière.» Ramalho reiniciava ali os seus últimos farpeios, citando as palavras do “mais glorioso mestre”, mas o tema não podia deixar de ser o da “Revolução de Outubro”. [1 ] Ele que, nos dias imediatos ao 5 de Outubro de 1910, entregou as chaves da Biblioteca da Ajuda, e se recusou a secretariar a Academia das Ciências, manifestando a Teófilo Braga a sua repulsa em engrossar “o abjecto número de percevejos que de um buraco (est ava) vendo nojosament e cobrir o leito da governação”, [2] não deixava agora de considerar esses “pobres homens, mais dignos de piedade que de rancor”, e de assinalar a rapidez e a benignidade do desenlace do movimento militar que derrubou a Monarquia.[3]

Quase não se dera pela resistência ao derrube do trono. Se os monárquicos se encontravam de há muito profundamente divididos por razões político-ideológicas e dinásticas,[4] a verdade é que os últimos anos do rotativismo partidário da Monarquia da Carta contribuíram para debilitar o sentimento monárquico. Nos primeiros anos do novo século, os que permaneciam convictamente monárquicos, na sua maioria não queriam aquela Monarquia. Quando se deu a implantação da República, muitos dos monárquicos influentes dos partidos dinásticos entraram a aderir sem complexos aos novos partidos, constituindo aquilo a que os republicanos mais intransigentes passaram a designar por “adesivos”. Os que permaneceram fieis às instituições depostas foram poucos, e menos ainda os que de imediato combateram a nova situação com armas de guerra ou razões de inteligência. Preferiam lançar alcunhas aos tribunos da plebe, ridicularizar com acintes a rusticidade de suas feições e compostura, ou o mau gosto dos vestidos de suas esposas… Seguiam, afinal, confiados no fim fatídico da República vaticinado por José Luciano de Castro no conselho que se tornou célebre: “Não se mexam, nem lhe mexam...”. [5 ] 1. As incursões da Galiza Foi diante desse quadro, muito sombrio para o ideário monárquico, que se resistiu na Rotunda e que Paiva Couceiro lançou, em 3 de Outubro de 1911, a primeira incursão a partir da Galiza. Ainda

Q ua nd o se deu a implantação da República, muitos dos monárquicos influentes dos partidos dinásticos entraram a aderir sem complexos aos novo s pa r ti dos , constituindo aquilo a que os rep ublicanos ma is intransigentes passaram a designar por “adesivos ”.


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As eleições realizaram-se em 28 de Maio de 1911, mas Paiva Couceiro não reconheceu a validade do acto. Na sua perspectiva, mantinham-se “de facto suspensas as garantias e liberdades p úblicas – liberdade de imprensa, de propaganda e reunião”. Dir ig iu -s e e ntã o ao Ministro da Guerra para lhe comunicar que se demitia do Exército e que ia para a Galiza comandar as tropas que dariam combate às instituições vigentes. Acto c on tín uo , pe d iu intervenção e apoio aos seus camaradas de armas.

que desencadeada por uma hoste essencialmente constituída por monárquicos, não é de estranhar, pois, que venha a ser realizada em obediência a um propósito plebiscitário. O processo tinha sido aberto por Paiva Couceiro, em 18 de Março de 1911, ao apresentar uma “Proposta ao Governo Provisório”. Encont ra-se naquela Proposta alguma expressão de apreço pelo regime deposto? - Longe disso. Co uc e i r o p u g no u a l i pe l a “organização, com novas bases”, do “serviço junto ao chefe do Estado”, pela continuação da “obra de saneamento dos costumes políticos, dando seguimento aos inquéritos já iniciados, promovendo outros que se aconselhem”, propondo apenas, e no essencial, que o Governo Provisório pusesse fim ao frenesim legislativo, se limitasse a restabelecer a ordem, as liberdades públicas, e fizesse imediatamente eleições livres. [6 ] As eleições realizaram-se em 28 de Maio de 1911, mas Paiva Couceiro não reconheceu a validade do acto. Na sua perspectiva, mantinham-se “de facto suspensas as garantias e liberdades públicas – liberdade de imprensa, de propaganda e reunião”. Dirigiu-se então ao Ministro da Guerra para lhe comunicar que se demitia do Exército e que ia para a Galiza comandar as tropas que dariam combate às instituições vigentes. Acto contínuo, pediu intervenção e apoio aos seus camaradas de armas. [7 ] Chegado à Galiza, e como circulavam notícias segundo as quais Afonso XIII teria já discutido com a Inglaterra a possibilidade de uma intervenção espanhola em Portugal, [8 ] desmentiu que aos portugueses sob o seu comando se tivessem juntado espanhóis. [9 ] Por fim, dirigindo-se aos soldados, aos reservistas e ao povo, conclamou à revolta sob “a bandeira azul e branca da Pátria Livre”. [10 ]

Paiva Couceiro, que até aí não expressara qualquer reivindicação monárquica, vai levantar a bandeira azul e branca significativamente despojada de coroa Real, [11 ] explicando que o fim do levantamento que dirige é o de “promulgar apenas as medidas indispensáveis ao estabelecimento de um regimen de Ordem e de Liberdade egual para todos, dentro do qual se realizem eleições em termos de traduzirem, de facto, a expressão da Vontade Nacional”. [12 ] Ainda que a solução plebiscitária não fosse inédita, [13] as tropas comandadas por Couceiro não tropeçaram apenas nas forças militares que lhe saíram ao caminho. O rei deposto, D. Manuel II, colocando de forma clara a “questão basilar da sua candidatura à coroa”, pronunciou-se abertamente contra o “carácter neutralista” daquele movimento, e o próprio rei de Espanha fez saber que lhe agradaria pura e simplesmente uma restauração. Mas o comandante Paiva Couceiro não transigiu: “negavase a ser um restaurador de dinastias. A sua espada não a punha ao serviço exclusivo de um rei, mas da Nação. A esta e só a esta cabia o direito de escolher o soberano”. [14 ] E foi assim que a incursão de Outubro se lançou sem substanciais apoios externos, com uma organização revolucionária confinada às províncias do norte do país, quase exclusivamente preparada pelos padres e por notáveis locais. O fracasso militar vai forçar Paiva Couceiro a alterar a sua estratégia. Diligencia então no sentido da restauração monárquica, reunindo esforços através de um acordo entre os dois ramos da Casa de Bragança. Obtido o acordo no “Pacto de Dover”, com D. Manuel II a ser reconhecido como o único candidato ao trono, [15] inscreveu a coroa na sua bandeira e partiu, em Julho de 1912, para segunda


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A Monarquia do Norte incursão a partir da Galiza com o explicito propósito de restaurar a Monarquia da Carta. [16 ] 2. O «Programa de Richmond» Derrotados no segundo raid, os monárquicos dispersaram pelos diversos locais de exílio - Paris, Lovaina, Londres..., com Paiva Couceiro a recolher-se a S. Jean de Luz. Ficara definitivamente consolidado o regime republicano? Haviam falido as últimas esperanças monárquicas? Quando e como estalaria de novo a revolta? Carlos Malheiro Dias, encarregado pelo Correio Paulistano de reunir depoimentos acerca do estado em que as falhadas incursões deixaram a causa monárquica, vai tratar detidamente aquelas questões. Chamando a depor “um anónimo mas assíduo f requentador de Richmond”, este ter-lhe-á dito que as conspirações já realizadas, e a realizar, podiam ser divididas em três períodos, segundo a classificação histórica de Augusto Comte: (1º) o teológico ou dogmático, (2º) o metafísico e (3º) o positivo. [17 ]

A 1ª incursão, feita em obediência ao “programa plebiscitário” de Couceiro, inscrevera-se no período teológico ou dogmático. Tendo sido baseada no primado da soberania popular, ao arrepio da mentalidade predominante no entourage de D. Manuel II, para mais feita de fora para dentro, sem ligação ou coordenação operacional com as forças internas e sem substanciais apoios materiais, estava destinada a encerrar-se num desastre. A 2ª incursão correspondia ao período metafísico. Ainda que firmada na união dinástica estabelecida pelo «Pacto de Dover», revelara-se exaustiva de dinheiro e de dedicação, mas incapaz de obter a vitória pela ausência de uma verdadeira coordenação operacional com a frente interna.

Era necessário ext rair lições daqueles fracassos e, sopesando com realismo as condições da luta política criadas pela implantação da República, entrar no período positivo das conspirações. Eis o essencial do “Programa de Richmond”: um futuro movimento restauracionista teria de f irmar-se na aspiração de paz, de ordem e de disciplina associado ao regime monárquico tradicional. Se bem que não se devessem descurar os factores internacionais – e a revelação do “programa” terminava com um longo excurso histórico ao papel das intervenções externas, no fazer e desfazer das políticas dos Estados desde o último quartel do século XVIII –, a acção a tomar teria de ser organizada e executada internamente, aproveitando o descalabro provocado pela incompetência e pelos erros dos republicanos. Entre os erros a aproveitar, além daqueles que a inexperiência e a corrupção dos governantes não conseguiriam evit ar, [1 8 ] dest ac avam- se os excessos jacobinos na questão religiosa já cometidos pelo Governo Provisório na publicação da legislação anti-religiosa e anticlerical. Mas ao movimento restauracionista não bastariam os erros cometidos pelos adversários. A reinstauração do trono teria de surgir como acção positiva e cientificamente fundada; era necessário estudar e “gizar um grande programa de realizações - não de utopias”. O processo adivinhava-se longo, mas não durou muito até que o programa de Richmond fosse posto em perigo pela impaciência de alguns. Entre Abril e Julho de 1913, terá havido conjugação de esforços de monárquicos e sindicalistas em algumas intentonas ou revoltas e, em 21 de Outubro, terse-á mesmo descoberto um complot monárquico na sequência da

Ma s ao m o v im e nto r e s ta ur a c io nis ta nã o b a s ta r ia m os e r r os come tidos pe los adv e rsár ios. A reinstauração do trono teria de surgir como acção positiva e cientificamente fundada; era necessário estudar e “gizar um grande programa de realizações não de utopias”.


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É esse índice, sob o título “monarquia trad icional, o r gâ nica , a ntiparlamentar”, que vem a ser a pr e se nta do no lançamento da revista Nação Portuguesa, em Abril de 1914, agregando, pois, jovens monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta (entre os quais se destacavam Hipólito Raposo, Almeida Braga, Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo), e jovens republicanos convertidos ao monarquismo por não se re co nhece rem no regime republicano recémimplantado (como António Sardinha, João do Amaral ou Dom ingo s Ga rc ia Pulido). N a s c ia o I nteg ra lis mo Lus ita no e nq ua nto mo v ime nto político-cultural.

vinda de João de Azevedo Coutinho a Portugal. [19 ] A intentona resumiu-se a um assalto ao Museu da Revolução, instalado no edif ício do Quelhas, onde se encontravam “os batéis em que embarcara na Ericeira a família real, a carabina e a pistola de que se tinham servido os assassinos de D. Carlos e D. Luís Filipe”. [20] Seguiu-se uma reacção de rua em defesa do regime instituído, com assaltos às redacções e tipografias identif icadas com os monárquicos; sendo presos, entre outros, o conde de Mangualde e Moreira de Almeida, director de O Dia, e suspensos os jornais A Nação, O Universal, e O Dia.[21 ] 3. O ascenso monárquico O “programa de Richmond” só teve começo de aplicação em 1914, sendo dois os acontecimentos que, intimamente ligados, explicam a viragem: a amnistia de 1914 e a criação do “Integralismo Lusitano”. Foi, na verdade, à sombra da actividade proselitista desenvolvida pelo Integralismo Lusitano, alicerçada em ampla renovação políticocultural e geracional[22 ] que, de 1914 em diante, se assistiu a um sensível crescimento da influência monárquica. E foi sob a sua influência e direcção que se deram os últimos e decisivos impulsos no sentido da tentativa restauracionista de 1919, no Norte e em Monsanto. A expressão “Integralismo Lusitano” tinha sido cunhada por Luís de Almeida Braga na revista Alma Portuguesa, editada na Bélgica, em 1913. Naquela revista, produzida por estudantes monárquicos exilados, o “Integralismo Lusitano” designava um projecto mais estético-filosófico do que político. Mas era em seu redor que se reuniam os ex-combatentes das incursões da Galiza, afinal os mais activos e empreendedores sobejos monár-

quicos que a República não “adesivara”: o manuelismo mais t radic ionalist a, o legit imis mo miguelista, e o que sobrava do nacionalismo católico formado nos últimos anos do rotativismo do regime da Carta. Quando aqueles monárquic os regressaram a Port ugal, na sequência da amnistia de 1914, vêm encontrar uma República crescentemente divorciada dos republicanos que nela tinham visto a via da regeneração portuguesa. Foi rápido e natural o encontro entre aqueles monárquicos não “adesivados” e os republicanos descontentes, depressa se transformando aquilo que era apenas um programa estético-filosófico, num índice de soluções políticas. É esse índice, sob o título “monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar”, que vem a ser apresentado no lançamento da revista Nação Portuguesa, em Abril de 1914, agregando, pois, jovens monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta (entre os quais se destacavam Hipólito Raposo, Almeida Braga, Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo), e jovens republicanos convertidos ao monarquismo por não se reconhecerem no regime republicano recém-implantado (como António Sardinha, João do Amaral ou Domingos Garcia Pulido). Nasc ia o Integralismo Lusit ano enquanto moviment o polít icocultural. O programa por eles apresentado, em 1914, não era verdadeiramente um programa político, era antes um índice no qual pretendiam alicerçar um vasto programa de estudos sobre a realidade portuguesa. Os integralistas lusitanos começavam, assim, por agarrar a componente não estrit amente política do “programa de Richmond”; estava por realizar, af irmavam, um longo trabalho de restauração monárquica nas inteli-


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A Monarquia do Norte gências. Do ponto de vista doutrinário, a voz dos integralistas representava uma terceira posição no campo monárquico, distinta, t a nt o do s “ mi g u e l i s t a s t rad ic io na l ist as”, c o mo d os “pedristas-constitucionais”. Ainda que ideologicamente se afirmassem parentes próximos dos primeiros, separavam-se deles na “questão dinástica”; aceitavam os fundamentos históricos da posição legitimista mas, baseando-se na doutrina escolástica seiscentista do poder régio (doutrina do pacto de sujeição), consideravam D. Manuel II, em 1914, como o rei que melhor servia o interesse nacional. Dos segundos, separavaos a doutrina e o projecto político. Esta emergência de uma corrente doutrinariamente tradicionalista, mas acatando o rei deposto, D. Manuel II, veio provocar abalo e acrescida dissensão ent re os mo nárquic os. Porém, se os monárquicos “constitucionais” inicialmente os temeram, pela dissonância ideológica que amiúde frisavam, também cedo perceberam a sua utilidade no terreno da luta político-ideológica. O ramo dinástico pedrista, até aí muito desacreditado, tinha doravante combatendo do seu lado alguns dos jovens intelectualmente mais brilhantes das Academias. Por outro lado, os integralistas lusitanos recuperavam, em novas bases, dando-lhe novo fôlego, o projecto de “reaportuguesamento de Portugal” lançado ainda em vida de Oliveira Martins pelo grupo dos “Vencidos da Vida”. Assim que o velho Ramalho Ortigão, entretanto regressado a Portugal, se inteirou dos propósitos integralistas, quis conhecer o seu mais categorizado e reconhecido líder, Hipólito Raposo. [23 ] Quando João do Amaral solicitou a Ramalho Ortigão colaboração para o jornal Restauração, recebeu em resposta a célebre Carta de um Velho a um

Novo - num emocionado “render da guarda”, em representação da el it e dos ve lhos, Ra ma lh o “inclinava-se rendidamente à elite dos novos.”[24] Na sequência da entrada em funções do ministério do velho general Pimenta de Castro, em 25 de Janeiro de 1915, era já visível o ascenso monárquico e o papel que nele vinha sendo desempenhado pelos integralistas. O seu trabalho propagandíst ico e organizativo junto das juventudes monárquicas académicas era já bem nítido, [25 ] e é a própria imprensa republicana quem, ao assinalar o súbito “tortulhar” dos monárquicos, vê com preocupação a agitação restauracionista, em especial a actividade d e s e n v o lv i d a p elos “cachopos monárquicos”. Em fins de Abril e princípios de Maio de 1915, alguma imprensa republicana denunc iava mes mo u ma «curiosa monarquite» - assistia-se a uma correria de republicanos inscrevendo-se nos novos centros monárquicos, podendo estar ali o prenúncio de uma restauração iminente. [26] Com os democráticos a retornarem ao poder, em 1915, deu-se de imediato o assalto às instalações da Liga Naval, quando ali decorriam as conferências integralistas acerca da “Questão Ibérica”. Os integralistas lusitanos que, até então, insistiam sobretudo na necessidade de restaurar a monarquia nas inteligências, viram-se de imediato guindados a uma notoriedade paralela à dos mestres de que se sentiam herdeiros (a Geração de 70, também sofrera a proibição das Conferências do Casino Lisbonense). Estava finalmente ultrapassado o seu rubicão no caminho de um activo intervencionismo político. Quando Portugal entrou na Grande Guerra, tornam público o primeiro manifesto político assinado pela Junta Central (em Abril de 1916, pouco depois

P or outro lado , os integ ra lis ta s lusitanos recuperavam, em novas bases, dando-lhe novo fôlego, o projecto de “reaportuguesamento de Portugal” lançado ainda em vida de Oliveira Martins pelo grupo dos “Vencidos da Vida”. Assim que o velho Ramalho Ortigão, entretanto regressado a Portugal, se inteirou dos propósitos integralistas, quis conhecer o seu mais categorizado e reconhecido líder, Hipólito Raposo.


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O Sidonismo nasceu de u m a c o n j u r a e s se n c ia lm e n te republicana, dirigida contra o Partido Democrático, com o fim de introduzir o princípio da dissolução p a r la me n ta r na Constituição. Tendo o complot nascido no seio do p a r tid o unio nis ta , e desabrochado nas sessões secretas do parlamento, veio a ter também por si o evolucionismo - a força remanescente do regime ainda que, velada ou abertamente, hostilizasse o v e nce d or do 5 de Dezembro.

da declaração de guerra da Alemanha), depressa se transformando de movimento de ideias em movimento político organizado: o Estatuto da organização foi publicado em Novembro; as Juntas Provinciais estão organizadas pelo final do ano; e, em Fevereiro de 1917, surgia o órgão A Monarquia – diário integralista da tarde. O ascenso monárquico manter-se-á muito vivo até que a revolta militar comandada por Sidónio Pais, em 5 de Dezembro de 1917, afastou o Partido Democrático do poder e destituiu o Presidente da República, Bernardino Machado. 4. No Sidonismo «com o osso da minoria» O Sidonismo nasceu de uma conjura essencialmente republicana, dirigida contra o Partido Democrático, com o f im de introduzir o princípio da dissolução parlamentar na Constituição. Tendo o complot nascido no seio do partido unionista, e desabrochado nas sessões secretas do parlamento, veio a ter também por si o evolucionismo - a força remanescente do regime - ainda que, velada ou abertamente, hostilizasse o vencedor do 5 de Dezembro. O movimento acabou por organizar-se depois isolada e revolucionariamente. Chegado ao poder, porém, Sidónio Pais apenas recolherá o apoio do Centro Católico e da generalidade dos monárquicos. Os primeiros, por receberem a promessa de satisfação das suas reclamações na “questão religiosa”, os segundos, no essencial pelas mesmas razões e por acatarem ordens de D. Manuel II. Como é que os integralistas lusitanos reagiram ao Sidonismo? Ainda na fase da sua instauração, em 14 de Janeiro, enquanto Sidónio Pais ia sufocando as intentonas que o procuravam pôr em causa, António Sardinha saudou-lhe a vitória sobre uma revolta dos marinhei-

ros,[27] chegando mesmo a afirmar, logo adiante, que o Presidente Sidónio estava a fazer “uma demonstração interessante do Integralismo”. [28] Três dias depois, a 17, Sardinha ainda prossegue na mesma toada mas, a 19, era já tempo de ir explicando aos mais precipitados ou ingénuos: “Não se assustem os republicanos que o senhor Sidónio Pais não derruba a república. Não se assustem os monárquicos, porque ele também a não consolida”; “Deste modo, sem derrubar a república, nem a consolidar, o Sr. Sidónio Pais não é uma solução. É uma etape a mais, uma experiência última, como que última hipótese”. [29] A situação era, pois, essencialmente caracterizada por um transitório empate político, propício à conquista de posições junto do poder. E aos primeiros sinais de simpatia da parte dos sidonistas, os integralistas, não se mostraram mal agradecidos, retribuindo com diversas colaborações, como o projecto do Casal de Família (baseado na Memória de Xavier Cordeiro acerca da Vinculação), a lei eleitoral, e mesmo um projecto de Constituição Política. [30] E não deixaram de fazer coro com o Centro Católico na questão religiosa. Luís de Almeida Braga, por exemplo, saudou efusivamente Sidónio Pais por se ter finalmente trancado “a lei iníqua que atirava para longe das dioceses alguns dos nossos mais eminentes prelados e afastava outros párocos da sombra querida do seu presbitério”, não perdendo a oportunidade, aliás, de sugerir a conveniência de um rápido reatamento das relações diplomáticas com o Vaticano.[31] Os impulsos de simpatia gerados por Sidónio Pais junto das massas populares, porém, rapidamente o fizeram entrar num caminho de regime pessoal, que procurará legitimar substituindo o parlamen-


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A Monarquia do Norte tarismo da “República Velha” pelo p re s id e nc ia l is mo de u ma “República Nova”. [32] Em 10 de Março de 1918, o “part ido monárquico” aprovou uma moção dando of icialmente auxílio ao Governo de modo a garantir-lhe a maioria nas eleições de 28 de Abril. Para si, os monárquicos apenas pretendiam “uma representação condigna”. Fazemse as eleições, mas os partidos republicanos – Democrático, Evolucionista e Unionista – escapamse pela porta da abstenção. Em 15 de Julho, o Parlamento abriu com uma confortável maioria do Governo, com os trinta e um deputados monárquicos sentados à direita da sala e os integralistas distribuídos pelas últimas cadeiras. Sidónio Pais, no seu discurso de abertura da sessão legislativa, aproveitou para recordar que “eleito e proclamado o presidente da República e constituído o Congresso”, o país entrava “em plena nor malidade const it ucional” – começava a «República Nova». Apesar de, como explicou Luís de Magalhães, os monárquicos terem dado “ao sidonismo a carne da maioria, ficando para si com o osso da minoria”, [33 ] Sidónio Pais não deixou de expor ali os seus mais profundos sentimentos republicanos: “é tão grosseiro o erro que se comete supondo a revolução de Dezembro reaccionária (isto é: monárquica), como supondo-a demagógica (afecta ao Partido Democrático). Fui sempre e sou republicano; por isso procurei manter e consolidar a república. (...) Se elementos republicanos não encarnassem em si as aspirações do país, a revolução poderia vir a aparentar a forma de uma restauração monárquica”. Se bem que as rédeas da governação parecessem f irmemente tomadas, ali mesmo se começou a revelar o propósito absurdo de fazer residir a viabilidade política

do novo regime num pacto estabelecido entre o ditador republicano e os dirigentes monárquicos. O apelo de Sidónio Pais às forças republicanas vinha tarde de mais. [34 ]

Os monárquicos ainda colaboraram em deter todas as manobras conducentes à subversão do regime e não deixam de se regozijar ao verem restabelecidas as relações entre a República e a Santa Sé. Uma semanas antes da chegada do núncio de Roma, Sidónio Pais, em visita a Elvas, é recebido na Câmara Municipal. António Sardinha profere um amistoso discurso de saudação. [35] Em resposta, Sidónio Pais reacende publicamente o seu intenso republicanismo, afirmando que “é tempo de findar o equívoco monárquico”. A resposta de António Sardinha surgiu nas páginas de A Monarquia, concluindo: “...o senhor Sidónio Pais vitoria assim a sua morte política. O equívoco é só de sua excelência, que tendo vencido uma república feita por republicanos, a pretende agora ressuscitar, fazendo-a com monárquicos”[36 ] Dão-se como bem documentados os últimos meses da presidência de Sidónio Pais. Em crescente isolamento político, Sidónio terá caminhado hirto ao encontro das balas assassinas, ficando a pairar as palavras desoladas que terá proferido num dos últimos Conselhos de Ministros, após a tentativa frustrada de 6 de Dezembro (numa cerimónia militar, um marinheiro disparou sobre ele, mas sem o atingir), em resposta à chamada de atenção para a morte que o rondava: “Ninguém deseja mais a minha morte do que eu!”. [37 ]

5. «A Monarquia ou a morte!» Morto Sidónio Pais, em 14 de Dezembro de 1918, os integralistas depressa descobrem a situação política propícia à restauração

Em 15 de Julho, o Parlamento abriu com uma confortável maioria do Governo, com os trinta e u m d e p u t a d o s monárquicos sentados à direita da sala e os integralistas distribuídos pelas últimas cadeiras. Sidónio Pais, no seu discurso de abertura da s e s sã o l e g is l a t i v a , aproveitou para recordar que “eleito e proclamado o presidente da República e constituído o Congresso”, o país entrava “em plena n o r m a l i d a d e constitucional” – começava a «República Nova».


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A Monarquia do Norte

No dia 15 de Janeiro, o g o v e r no a s s um ia a p le nitud e do p o d er executivo nos termos da Constituição de 1911 e, dois dias depois, procediase no Congresso à eleição presidencial do almirante Canto e Castro. Ou seja, liquidado Sidónio Pais, três dias bastaram para que os sidonistas da véspera deitassem por terra o presidencialismo esboçado na “República Nova”.

monárquica. Em pleno Parlamento, enquanto o corpo do Presidente repousava inanimado sob a nave dos Jerónimos, foi António Sardinha quem equacionou as consequências políticas do trágico momento. Do seu ponto de vista, apresentavam-se esgotadas as modalidades que o regime republicano possibilitava: o parlamentaris mo e o presidenc ialismo. Segundo António Sardinha, a instrutiva experiência de ditadura carismática, “saída de uma cavalgada de cadetes e alferes”, fora motivada por “uma poeira revolta de indivíduos que os ventos do caminho manobravam a seu belprazer”... Sidónio Pais impuserase pelo desejo de ordem, de harmonia e de estabilidade. “Ora a Ordem – explicava Sardinha - não é a repressão. E, porque não nasce espontaneamente dos factos em si, decerto bem precária ela seria se a sua existência andar ligada à existência sempre frágil de quem quer que seja o seu mantenedor” (...) “A democracia de Lisboa afundava-se vítima do demagogismo, seu cancro estrutural. Encarnando na sua dura necessidade esta lei fatal da história, Sidónio Pais representou a ditadura inevitável em todo o regime sem coesão nem disciplina (...) “Montou Sidónio Pais um dia a cavalo e, rapidamente, hei-lo transitando duma penumbra mais que discreta para os destaques ruidosos da notoriedade. Logo um equívoco lamentável se estabeleceu e esse equívoco levou Sidónio Pais à sepultura”. (...) “- E agora?” – interrogava por fim Sardinha “Agora? Agora como sempre, a Monarquia ou a morte!“ (...) “Não é o poder que rompe do acaso, engendrado, como um cão, no encontro dum sabre com os favores da rua. Esse poder, ou é Afonso Costa ou é Sidónio Pais. Oligarquia jacobina ou magistratura consular, se uma atenua os efeitos

da outra, não os remedeia, porém. A tara da República é o demagogismo e a República não se melhora senão destruindo-se. Tentou melhorá-la Sidónio Pais. Com isso não fez mais do que armar o braço que o abateu. Até na sua morte Sidónio Pais morreu como republicano. 0 direito de César é a sua popularidade. Na hora em que Napoleão foi vencido, na mesma hora caiu. Na hora em que a Sidónio faltassem os aplausos do Fórum, nessa hora o seu direito haveria caducado. E assim, para o povo o prorrogar indef inidamente, num regime de opinião em que tudo é surpresa e interinidade, Sidónio Pais caminhou sem hesitação para as balas do seu assassino, entregue apenas às forças cegas de uma estrela, depressa eclipsada” (...) “A morte de Sidónio Pais foi a consagração suprema do individualismo. Morreu como um varão da Antiguidade, morreu como um personagem máximo de D’Annunzio, na concepção naturalista dos heróis de Carlyle. Mas da sua acção o que ficou? O que ficou da sua coragem estóica? O que ficou do seu filantropismo cismador? Somente a memória do seu nome e com ela, na boca de todos, esta pergunta tremenda: «E agora?»”. [38 ] No dia 15 de Janeiro, o governo assumia a plenitude do poder executivo nos termos da Constituição de 1911 e, dois dias depois, procedia-se no Congresso à eleição presidencial do almirante Canto e Castro. Ou seja, liquidado Sidónio Pais, três dias bastaram para que os sidonistas da véspera deitassem por terra o presidencialismo esboçado na “República Nova”. Era uma clara vitória da corrente parlamentarista do regime republicano, mas não ficava encerrada a questão. É então que o poder das Juntas Militares se vai afirmar em defesa da f ormação de um “governo de força”, capaz de


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A Monarquia do Norte impedir o retorno ao poder dos partidos políticos da “República Velha”. Em 23 de Dezembro, após a desistência de Nunes da Ponte, o presidente Canto e Castro chamou Tamagnini Barbosa à chefia do governo. Saiu um governo remodelado, mas conservador e republicano. No mesmo dia, as Juntas Militares de Norte e do Sul mantêm a reivindicação de um “governo de força”, com o coronel João de Almeida a pronunciar-se e a concentrar em Monsanto algumas unidades da guarnição de Lisboa, e a Junta Militar do Norte a organizar de imediato uma Junta Governativa Militar. Mas, enquanto o coronel João de Almeida retrocede em Lisboa, no Porto é o coronel Silva Ramos, principal figura da Junta Militar do Norte, quem declara dissolvida a Junta Governativa, afirmando que recebera a promessa do presidente da República de que as suas reivindicações seriam satisfeitas. [39] Em 8 de Janeiro, Tamagnini Barbosa apresenta novo gabinete perante as Câmaras. Altearam-se as vozes de Cunha Leal (no parlamento) e de Machado Santos (no Senado), acusando o chefe do governo de cedências às Juntas Militares. Estava já em marcha um movi mento revolucionário em defesa da “República Velha”, que se entendia posta em perigo pela capitulação do governo ante as reivindicações das Juntas Militares. A revolta militar eclodirá na noite do dia 10, quase simultaneamente em Lisboa (Castelo de S. Jorge e Arsenal de Marinha), Covilhã e Santarém. Em Lisboa e Covilhã os revoltosos foram rapidamente dominados. Tal não aconteceu aos militares que, na madrugada do dia 11, se pronunciaram em Santarém. No essencial, os revoltosos pediam ao presidente da República a formação de um

“governo de concentração republicano” onde ficassem representados os partidos da “Republica Velha”. 6. Proclamando a “Monarquia do Norte” Com a reacção dos partidos a ganhar expressão militar em Santarém, para os integralistas soara a hora de agir. Enquanto no sul predominavam os republicanos sidonistas, no norte do país era nítido o predomínio dos monárquicos. As Juntas Militares, que haviam sido criadas com o propósito de impedir o retorno do parlamentarismo, teriam agora de aderir ao propósito restauracionista O Governo ainda terá chegado a discutir a possibilidade de substituir alguns comandos na capital, mas logo que é dada como falhada a tentativa de constituição de um governo militar em Lisboa, é o próprio Hipólito Raposo quem redige, em 14 de Janeiro, com Rui da Câmara e José Rino Fróis, na Pastelaria Marques, um memorando em que o Lugar-Tenente de D. Manuel II, Aires de Ornelas, vem a escrever a expressão inglesa «go on!» que o rei lhe dera um dia para, em certas condições, se poder levantar em Portugal a bandeira da Monarquia. Os integralistas já só necessitavam de um documento rubricado pelo Lugar-Tenente do rei para vencer as hesitações que ainda houvesse entre os comandantes militares do Sul, do cerco de Santarém e do Norte. Os revoltosos de Santarém só vêm a depor as armas no dia 15, perante o tenente Teófilo Duarte. Mas o papel que Hipólito Raposo apresentou na véspera ao conselheiro Aires de Ornelas dizia assim: “MEMORANDO” 1º Sobre a possibilidade do assentimento de V. Ex.a para um movi-

Os integralistas já só neces sita vam de um documento rubricado pelo Lugar-Tenente do rei para vencer as hesitações que ainda houvesse entre os comandantes militares do Sul, do cerco de Santarém e do Norte.


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“Go on! Palavras d’El-Rei Não vejo razão para plebiscito Nã o j ulg o dif íc il o reconhecimento Aires de Ornelas 14 Jan. 1919”.

mento militar de carácter monárquico. 2º Sobre o assentimento de V. Ex.a para um movimento militar, promovido por of iciais monárquicos e republicanos, para propor ao País a fórmula do plebiscito sobre o regime político. 3º Qual seja a opinião de V. Ex.a, em qualquer das hipóteses, sobre o perigo de uma intervenção estrangeira, obstáculo que não deteve os democráticos para a organização e execução do actual movimento revolucionário. 4º Sobre a opinião de V. Ex.a em caso de vitória, acerca do reconhecimento pelas nações estrangeiras da nova ordem de coisas políticos, levando em conta a acção diplomática de El-Rei e dos seus amigos junto do governo inglês e o seu notável prestigio junto dos outros governos aliados. 5º No caso do seu assentimento, indicação dos nomes que na opinião de V. Ex.a devem constituir a Junta do Governo Nacional, em nome de El- Rei. 6º Sem que tal facto importe menos crédito à palavra de V. Ex.a e à seriedade do portador, seria conveniente que as opiniões a expor fossem dadas por escrito, para assim lhes ser atribuído todo o valor que merecem pelos elementos de acção que precisam de ser consultados”. Aires de Ornelas escreveu à margem do documento: “Go on! Palavras d’El-Rei Não vejo razão para plebiscito Não julgo difícil o reconhecimento Aires de Ornelas 14 Jan. 1919”. [40 ] De imediato, e enquanto em Lisboa, sidonistas de ontem, democráticos, unionistas, e socialistas, se iam unindo ao governo de Tamagnini Barbosa, Paiva Couceiro seguia para o Porto onde o

aguardava terreno mais propício. A Junta Central do Integralismo Lusitano reuniu no dia 17 à noite. A decisão tomada é a de António Sardinha e Luís de Almeida Braga partirem para o Porto, investidos com a missão de “procurar suster o pronunciamento, até se ultimarem as ligações que viriam dar-lhe maior carácter de unanimidade em Lisboa e na Província”. [41] António Sardinha chegou ao Porto na manhã do dia 18, na véspera do pronunciamento, hospedandose no Hotel Borges; “ - Isto é um conto das Mil e Uma Noites!”, terá logo exclamado perante o espectáculo da mais absoluta facilidade revolucionária que acabava de encontrar. Pela tarde avistou-se com Paiva Couceiro, expondo-lhe os motivos da sua viagem, a conveniência de aguardar mais uns dias para que o pronunciamento das tropas, em Lisboa e no Porto, pudesse ser simultâneo”. Couceiro alegou que não havia outra oportunidade, “não só porque, em Lisboa, os comandantes militares, com as suas hesitações, continuariam no mesmo pé em que se haviam mantido em seguida à morte de Sidónio, como, já conhecedor o Governo do que se passava no Porto, não tardariam a ser substituídas por ele todas as autoridades militares e civis”. No dia seguinte - dia da proclamação da Monarquia - chegavam ao Porto, em comboio especial, acompanhados pelo ministro da Guerra da República, Silva Basto, os recémnomeados governador civil e o comissário de polícia, respectivamente, António Pais e Cristóvão Aires. Foram devolvidos a Lisboa sem tomar posse. Estava já hasteada no Monte Pedral a bandeira azul e branca. [42 ] A restauração declarava em vigor a Carta Constitucional e indicava como chefes: Luís de Magalhães, Sollari Allegro, Conde de Azevedo, Visconde do Banho, Coronel Silva Ramos. A


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A Monarquia do Norte Junta Governativa do Reino ficava sob o comando de Paiva Couceiro. Logo que foi conhecida a proclamação, o Integralismo Lusitano manifestou aceitar a nova ordem, agarrando “a parte prática e positiva da obra restauradora” - Primum vivere, deinde philosophare, era o princípio que adoptavam. [43 ] Da tentativa restauracionista ficará a ecoar o pensamento e as directivas políticas adoptadas pela Junta Governativa do Reino. [44] Luís de Magalhães, sua figura polít ic o- legislat iva det ermina nt e, apontou duas razões fundamentais para que aquela Restauração se fizesse pela reposição da ordem política estabelecida pela Carta deposta em 1910: em primeiro lugar, porque se entendia a República como “puro hiato político”, fruto de uma “usurpação violenta” jamais sancionada; em segundo lugar, porque se pretendia evitar a ditadura como regime de transição - querendo fazer-se uma restauração, não uma revolução, teriam que evitar a pratica dos republicanos de “estabelecer como lei básica da sociedade o arbítrio pessoal dos governantes”. [45 ] O próprio Luís de Magalhães tudo virá a resumir em imagem singela: havia que “atar a corda pelas pontas quebradas”. O Norte estava dominado, mas havia que restabelecer o contacto com as forças restauracionistas no Sul e proceder à restauração onde tal fosse exequível. Em Lisboa, na manhã do dia seguinte à proclamação do Porto, Hipólito Raposo suspendeu o jornal A Monarquia, seguindo de imediato para Belém, onde se estavam a concentrar os monárquicos (Regimento de Cavalaria 2). Havia que subir a Monsanto para ocupar o posto de T.S.F. e estabelecer contacto com o Norte. Entretanto, a Junta Governativa do Reino nomeara António Sardinha governador civil de Portale-

gre, com o intuito e a esperança de aí se poder vir a proclamar a Monarquia. Sardinha ficará junto de Paiva Couceiro, preso à missão prioritária de constituir o Gabinete da Presidência. Agregou a si Luís de Almeida Braga, João do Amaral e Nosolini Leão. Ter-se-ão sucedido dias tranquilos, mas sem notícias do Sul. Até que aí surgiu António Teles de Vasconcelos, para montar os serviços de comunicações ao longo da fronteira. É então que Sardinha é destacado para Badajoz, Luís Teles de Vasconcelos (irmão de António) para Cáceres, Joaquim de Almeida Braga para Tui, de onde penetrariam em Portugal com propósitos restauracionistas. Em Lisboa, entretanto, pouco passava das seis horas do dia 22 de Janeiro, quarta-feira, quando, do quartel de Lançeiros, começaram a sair os cerca de 70 homens comandados pelo capitão Júlio da Costa Pinto. O desfile dirigiu-se, a passo, pelo Alto da Ajuda até Monsanto. Quando aí chegaram, fizeram acampamento na Cruz da Oliveira, onde improvisaram um quartel-general, enquanto o capitão Delf im Maia ocupava o posto de T.S.F. Distribuídas várias vedetas pelos locais de acesso, ali se revezaram durante toda a noite nos turnos de sentinela. Na manhã seguinte, dia 23, aos primeiros raios de sol, o grosso da coluna dispôs-se em linha de atiradores junto ao moinho do Alto da Peça. Dadas as salvas do estilo, hasteou-se a bandeira azul e branca com “o símbolo real tremulando na altivez secular das suas quinas”.[46] A ligação entre o Porto e Lisboa ainda terá demorado, com o alferes António Pinto Castelo Branco, a repetir várias vezes a partir de Lisboa: «Aires de Ornelas e tropas monárquicas em Monsanto, pedem noticias». Estabelecido o contacto, mas “receando a hipótese de um ardil

A Junta Governativa do Re ino f ic ava so b o c o m a nd o de P a iv a Couceiro. Logo que foi conhecida a proclamação, o Integralismo Lusitano manifestou aceitar a nova ordem, agarrando “a parte prática e positiva da obra restauradora” - Primum v iv e re , de i nde p hilo so p ha r e , e ra o princípio que adoptavam. D a t e n t a t i v a restauracionista ficará a ecoar o pensamento e as d i r e c t iv a s p o l í t ic a s adoptadas pela Junta Governativa do Reino.


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O desastre de Monsanto ocorreu logo no dia seguinte, 24 de Janeiro. Enqua nto uns 30 monárquicos saíram da Cruz das Oliveiras em direcção à Ajuda, para ir tentar sublevar o quartel de Infantaria 16, os que ficaram no Monsanto não conseguirão suster as arremetidas das forças republicanas, entretanto a c r e s c e n ta d a s p e lo s numerosos voluntários que responderam ao apelo do Governo. Os monárquicos, em clara desvantagem numérica, ainda lutaram até ao fim da tarde. O capitão Júlio da Costa Pinto, com alguns feridos graves sob o seu comando - entre os quais Pequito Rebelo e Alberto Monsaraz -, acabou preferindo a capitulação à fuga.

de guerra, perguntavam do Porto: Quem foi buscar Aires de Ornelas a Carcavelos? De Monsanto respondia-se seguramente: «- António Sardinha». Logo a seguir, recebia-se a transmissão das boas noticias do Norte, em nome de Paiva Couceiro”. [47 ] O desastre de Monsanto ocorreu logo no dia seguinte, 24 de Janeiro. Enquanto uns 30 monárquicos saíram da Cruz das Oliveiras em direcção à Ajuda, para ir tentar sublevar o quartel de Infantaria 16, os que ficaram no Monsanto não conseguirão suster as arremetidas das forças republicanas, entretanto acrescentadas pelos numerosos voluntários que responderam ao apelo do Governo. Os monárquicos, em clara desvantagem numérica, ainda lutaram até ao fim da tarde. O capitão Júlio da Costa Pinto, com alguns feridos graves sob o seu comando - entre os quais Pequito Rebelo e Alberto Monsaraz -, acabou preferindo a capitulação à fuga. [48 ] António Sardinha, que nesse mesmo dia deixara o Porto, seguindo por Espanha na direcção de Portalegre, só soube da tragédia ao passar em Vigo, onde se demorou com Luís Teles de Vasconcelos, antes de seguirem viagem por Astorga até Salamanca. Não chegará a entrar em Portugal, sendo expulso de Badajoz a pedido do Cônsul de Portugal, por expressa disposição do Governo espanhol, em 13 de Fevereiro de 1919. O desmoronar completo do “efémero castelo de cartas” desses vinte e cinco dias da denominada Monarquia do Norte, foi notícia que acolheu António Sardinha já em Madrid. 7. No rescaldo O ambiente político, depois de Fevereiro de 1919, vai ser muito diferente: vencidos os sidonistas no Rossio, e os monárquicos em Monsanto e no Norte, a situação

portuguesa surgia consolidada para o regime parlamentarista republicano. A derrota dos Impérios Austro-Hungaro e Alemão parecia dar-lhe livre curso. Vitoriosos, os republicanos apertaram naturalmente o cerco aos monárquicos. Alguns conseguiram escapar para o exílio, mas acabaram enchendo-se as prisões, centenas de oficiais foram expulsos do Exército, muitos funcionários foram demit idos. No plano prático e imediato, para a Junta Central integralista, o resultado da frustrada tentativa restauracionista saldou-se em dois feridos graves no hospital de S. José (Alberto de Monsaraz e Pequito Rebelo), dois exilados (António Sardinha e Luís de Almeida Braga), e Hipólito Raposo escapando in extremis de ser preso em Monsanto. Mas, que caminho seguir, agora que o movimento restauracionista sofrera um novo revês? Derrotados militarmente, a prioridade para os integralistas era o reaparecimento do jornal A Monarquia. Hipólito Raposo assumiu a sua direcção, fazendo-o surgir nas bancas no dia 18 de Agosto, submetido ao regime especial de revista prévia da censura, a par dos órgãos Vanguarda (socialista) e Batalha (anarco-sindicalista) O cerco a Hipólito Raposo e ao integralismo, porém, mal começara. O regime que se revelara incapaz de o apanhar no fragor da luta, vai começar por desencadear a represália por via administrativa. [49 ] Seguiram-se os processos nos Tribunais: em Julho, haviam já sido instaurados dois processoscrime, um por crime de imprensa, a ser julgado na Boa Hora, e outro por crime contra a segurança do Estado, a ser julgado no Tribunal Militar Especial, em Santa Clara. [50 ]

No plano político, os integralistas vão apresentar os acontecimentos


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A Monarquia do Norte político-militares de Janeiro e Fevereiro de 1919, como “a prova trágica da incapacidade dos velhos chefes monárquicos”[51] - mais ainda do que as armas da Monarquia, tinham sido “vencidos os processos, os vícios e os erros do Constitucionalismo Liberal”. [52 ] Insatisfeitos com a atitude expectante de D. Manuel II durante os acontecimentos, e considerando que a sua postura política deixara de oferecer garantia de servir o interesse nacional, afastaram-se da sua obediência. Em torno de D. Man ue l II f ic a ra m os “constitucionalistas” ou “liberais”, acolitados pelo tradicionalismo hierocrático, de feição autoritário, entretanto formado em torno do grupo da Acção Realista, sob a liderança de Alfredo Pimenta. [53] Não tendo participado na tentativa restauracionista, e tendo mesmo confessado tudo desconhecer dos seus preparativos, ao escrever após aqueles sucessos, Alfredo Pimenta considerou que para o que restava do sidonismo só havia uma de duas saídas: ou a monarquia ou o governo militar. No seu entender, porém, as condições não estariam maduras para a primeira hipótese. O grosso do monarquismo tradicionalista vai passar a estar aglutinado em torno da Causa Monárquica portuguesa, juntando o Partido Legitimista e o Integralismo Lusitano no reconhecimento de D. Duarte Nuno como Chefe da Casa Real portuguesa. A Questão Dinástica virá a encerrar-se definitivamente na sequência da morte de D. Manuel II, em 1932, reconhecendo a Causa Monárquica o neto de D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança, como chefe da Casa Real portuguesa. Para os integralistas, porém, em 1919, morria definitivamente a Monarquia da Carta. [54 ] [1] Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911

-1914, Lisboa, C lássica Editora, 1993, pp. 9-20. [2] Ver Alberto de Oliveira, “O Nacionalismo na Literatura e as «Palavras Loucas», Lusitânia – Estudos Portugueses, Vol. I, p. 20; e Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947, pp. 89-96 (p. 90). [3] Ver Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911-1914, cit., p. 10; para Alfredo Pimenta, em 1920, a lição a reter era bem grave e formidanda: “o partido republicano, sem o auxílio e a cumplicidade dos partidos monarchicos, nunca teria tido forças para proclamar a Republica”; ver Alfredo Pimenta, A questão monarchica, Lisboa, Edição das Juventudes Monarchicas Conservadoras, 1920, pp. 4-5. [4] No plano político-ideológico opunhamse tradicionalistas e modernistas, enquanto permanecia, em grande medida paralelamente, a antiga divisão dinástica entre “legitimistas” ou “tradicionalistas”, partidários da descendência do rei proscrito D. Miguel I, e os “constitucionais” ou “liberais”, partidários do ramo reinante, descendente de D. Pedro (IV). [5] Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro. Volume I (1911-1925), Lisboa, Edições Gama, 1940, pp. XX-XXVI. [6] Ver Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 90-91. Couceiro terá tido conhecimento dos Documentos Políticos encontrados nos Palácios Reais depois da Revolução Republicana, por intermédio de João de Menezes que pretendia atraí-lo para a causa republicana. Esses documentos revelavam os bastidores nada edificantes dos últimos anos da monarquia. Só foram publicados em 1915, pela Imprensa Nacional, por ordem do Parlamento da República. [7] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Exército”, Junho de 1911, pp. 93-94. [8] Ver exemplo da campanha contra Paiva Couceiro, apresentado como cúmplice dos espanhóis, em A Capital, 27 de Junho de 1911. Ver também notas em José Relvas, Memórias políticas, vol. I, Lisboa, 1977, p. 287. [9] Carlos Malheiro Dias, Op. cit., “Declaração sobre a origem dos elementos alliciados no movimento da Galliza – Portuguezes e só Portuguezes” (12 de Junho de 1911), p. 95. [10] Ibidem, ver as três proclamações, dirigidas aos soldados, aos reservistas e ao povo, pp. 95-97. [11] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, 2ª ed., Lisboa., 1993, p. 205: “o porta-bandeira era o filho de João Coutinho, que fazia os maiores esforços para a não deixar desenrolar de modo que o povo não visse que ela não tinha a coroa Real”. [12] Nas exactas palavras que o comandante Couceiro dirigiu aos Soldados, a ban-

Vitoriosos, os republicanos apertaram naturalmente o cerco aos monárquicos. A l g u ns c o ns e g u ir a m escapar para o exílio, mas acabaram enchendo-se as p ris ões, centena s de oficiais foram expulsos do Ex ército, muitos f u n c i o ná r io s f or am demitidos. No p la no p rá tico e imediato, para a Junta Central integralista, o resultado da frustrada tentativa restauracionista saldou-se em dois feridos graves no hospital de S. José (Alberto de Monsaraz e Pequito Rebelo), dois exilados (António Sardinha e Luís de Almeida Braga), e H i p ó li t o R apo so escapando in extremis de ser preso em Monsanto.


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Derrotados militarmente, a p r io r id a d e para os inte g r a lis ta s era o reaparecimento do jornal A Mo nar quia . Hipó lito Raposo assumiu a sua direcção, fazendo-o surgir nas bancas no dia 18 de Agosto, submetido ao regime especial de revista prévia da censura, a par dos órgãos Vanguarda (socialista ) e Batalha (anarco-sindicalista) O cerco a Hipólito Raposo e ao integralismo, porém, mal começara. O regime que se revelara incapaz de o apanhar no fragor da luta, vai começar por desencadear a represália por via administrativa. [49] Seguiram-se os processos nos Tribunais: em Julho, haviam já sido instaurados dois processos-crime, um por crime de imprensa, a ser julgado na Boa Hora, e outro por crime contra a segurança do Estado, a ser julgado no Tribunal Militar Especial, em Santa Clara. [

deira azul e branca era o símbolo nacional vitorioso nos combates de Marracuene e Mufilo, Dembos e Magul, Namarraes, Coelela - “legendas da luminosa biographia nacional!” - ou, dirigindo-se a todo o Povo, o “signo da Pátria Livre” que se levanta contra os “tiranos da inquisição vermelha e verde; Ver C arlos Malheiro Dias, Op. cit., “Manifesto ao Povo Portuguez”, pp. 97101, cit. p. 101. [13] Fora a solução adoptada pelo general Prim, em 1868, ao apresentar-se em Cadiz para destronar a rainha Isabel. Quando D. José Topete lhe propôs a aclamação da duqueza de Monpensier, Prim avançou com a seguinte fórmula: “Cortes constituyentes y que el pais libremente decida de sua suerte”. [14] Ver Memórias do Sexto Marquês de Lavradio, cit., pp. 207-208, contendo o texto da Declaração de D. Manuel, datada de Richmond, em 31 de Outubro de 1911. [15] O “Pacto de Dover” (Inglaterra), estabelecido em 30 de Janeiro de 1912, foi um acordo no qual D. Miguel II reconheceu o direito ao trono de D. Manuel II, aceitando este, para o caso de não vir a deixar descendência directa, o direito à sucessão ao ramo de D. Miguel. [16] Ver, de entre numerosa bibliografia sobre as incursões de 1911-12, na perspectiva monárquica: Joaquim Leitão, A Bandeira dos Emigrados (Repellindo uma Affronta), Porto, Edição do Autor, 1912; idem, Couceiro, o Capitão Phantasma. Dos acontecimentos da Galliza á Marcha para a Segunda Incursão Monarchica, Porto, Edição do Autor, 1914; idem, Em Marcha para a 2ª Incursão. Da Concentração ao erguer do Bivaque de Soutelinho da Raia para o ataque a C haves, Porto, Edição do Autor, 1915; idem, O Ataque a Chaves, Porto, Edição do Autor, 1916. Na perspectiva dos adversários republicanos, veja-se Combates de Vila Verde e Chaves em 7 e 8 de Julho de 1912. Relatórios Oficiais..., Secretaria de Guerra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913; Operações militares das tropas do Sector entre Minho e Cávado em Julho de 1912. Relatórios Oficiais... Lisboa, Imprensa Nacional, 1913; e o estudo, à luz de fontes espanholas, de Hipólito de la Torre Gómez, Conspiração contra Portugal (1910 -1912). As Relações Políticas entre Portugal e Espanha, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. [17] Carlos Malheiro Dias, O Estado Actual da Causa Monárquica, Lisboa, 1912, pp. 103-117. [18] Os republicanos - considerava “o assíduo frequentador de Richmond” - detinham o poder “com os cérebros e as mãos vazias”, procurando resolver os problemas “com ministros de passagem, bacharéis em direito, em filosofia e medicina, com parlamentos sem cultura e competência apropriadas, ou pelo conselho de correctores gananciosos de empréstimos”; Ver Carlos Malheiro Dias, Op. cit., p. 110.

[19]; Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), História de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490. [20] Ver Ângelo Ribeiro, "Consolidação do Novo Regime" in Damião Peres (org.), História de Portugal, vol. VII, Barcelos, p. 490; e, de Ramalho Ortigão, a irónica descrição dessa primeira (então única) “fundação pedagógica do novo regime” in Últimas Farpas, 1911-1914, cit., pp. 37-38. [21] Ver David Ferreira, História Política da Primeira República Portuguesa, Lisboa, 1973. [22] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires – Das Ideais, das Almas e dos Factos no Advento do Integralismo Lusitano, 1913-1916, pol., Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1997; idem, “Os Monárquicos” in Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria (coord.), Humberto Delgado. As Eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173 (141-146). [23] O encontrou deu-se por intermédio de Eduardo Ortigão Burnay (neto de Ramalho), em Maio de 1914, na casa que Ramalho Ortigão tinha na Calçada dos Caetanos, em Lisboa; ver António Jacinto Ferreira, integralismo Lusitano – uma doutrina política de ideias novas, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1991, p. 48. [24] "Carta de Um Velho a um Novo", A Restauração, edição da manhã, de 12 de Setembro de 1914. Ver reedição integral, incluindo a resposta de João do Amaral, precedida de um estudo de Alberto de Monsaraz sobre a política de Ramalho, em Ramalho Ortigão, Carta de um Velho a um Novo, Lisboa, Edições Gama, 1947. [25] Ver José Manuel A. Quintas, Filhos de Ramires, cit., pp. 228-230. [26] Ver O Intransigente, 4 de Maio de 1915. [27] António Sardinha, “O Senhor Sidónio Pais”, A Monarquia, 9 de Janeiro de 1918. [28] Idem, “Nota Politica”, A Monarquia, 14 de Janeiro de 1918. [29] Idem, "Nota Politica", A Monarquia, 19 de Janeiro de 1918. [30] A legislação eleitoral (Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918) foi elaborada pelo Ministro da Justiça, Martinho Nobre de Melo, republicano nacionalista, com a colaboração dos integralistas António Sardinha e Hipólito Raposo. Ver Hipólito Raposo, Folhas do Meu Cadastro, pp. 36-38; Teófilo Duarte, Sidónio Pais e o seu Consulado, pp. 107 ss; 285 ss. Acerca do "regime de comunhão de mesa" de Hipólito Raposo e Martinho Nobre de Melo, Ver Hipólito Raposo, Op. cit., pp. 39-40. [31] Luís de Almeida Braga, “As relações com Roma”, A Monarquia, 23 de Janeiro de 1918. [32] Artigos 116º a 121º do Decreto nº 3 977 de 30 de Março de 1918.Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Editorial ABC, 1921, p. 182.


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A Monarquia do Norte [33] Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e a Nação, Coimbra, 1925. [34] Ou melhor - o apelo era precoce: o centrismo ainda não havia entrado nas mentes republicanas; o II Congresso do Centro Católico, aprovando a plataforma para a sobrevivência do regime republicano, só acontece em 1922. Ver Manuel Braga da Cruz, As Origens da DemocraciaCristã em Portugal e o Salazarismo, Lisboa, Presença, 1980. [35] Rocha Martins, Memórias sobre Sidónio Pais, Lisboa, Edição da Sociedade Editorial ABC, 1921, p. 182. [36] António Sardinha, “O discurso de Elvas”, A Monarquia, 4 de Julho de 1918. [37] Acerca do assassínio de Sidónio Pais ver Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Volume XI, Lisboa, Editorial Verbo, p. 216-219; e bibliografia referida, em especial José Luciano Sollari Allegro, Para a História da Monarquia do Norte, Lisboa, 1988, pp. 65 e segs. [38] Ver António Sardinha em A Monarquia, 15 de Dezembro de 1918. [39] Hipólito Raposo refere nas suas memórias que na tarde do dia de Natal de 1918 fora à Junqueira prevenir Paiva Couceiro das ordens discutidas no Ministério da Guerra visando substituir os comandos monárquicos da capital; Hipólito Raposo, Op. cit., p. 43. [40] Ver Hipólito Raposo, Folhas do meu Cadastro, pp. 44-45; com fac-simile do texto manuscrito original. [41] Leão Ramos Ascensão, O Integralismo Lusitano, Lisboa, Edições Gama, 1943, p. 56. [42] Os acontecimentos, aqui relatados, relativos aos acontecimentos do Monsanto e aos episódios da participação dos integralistas na Monarquia do Norte foram sobretudo recolhidos em Hipólito Raposo, Op. cit., pp. 45-79 (cit. p. 52), e em António Sardinha, "Conrado não guarda silêncio!" in Rodrigues Cavaleiro, Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte, Separata do nº 15-16 da revista Sulco (2ª Série), Lisboa, 1968, pp. 43-55. [43] A nota da Junta Central, assinada por António Sardinha e Luís de Almeida Braga, foi publicada em A Pátria, 22 de Janeiro de 1919. [44] Ver Diário da Junta Governativa do Reino de Portugal. C olecção C ompleta, nº 1 (19 Jan 1919) – nº 16 (13 Fev 1919), Porto, J. Pereira da Silva, 1919; Luís de Magalhães, Perante o Tribunal e a Nação, cit., pp. 57-64, e apendices. [45] Ver Luís de Magalhães, “Porque restaurámos a Carta em 1919”, C orreio da Manhã, 27 e 28 de Fevereiro de 1924. [46] Felix C orreia, A Jornada de Monsanto – Um Holocausto Trágico, Lisboa, Tip. Soares & Guedes, Abril de 1919, p. 17. [47] Ver António Sardinha, "Conrado não guarda silêncio!" em Rodrigues Cavaleiro,

Um Inédito de António Sardinha sobre a Monarquia do Norte , Se parata do nº 15-16 da re vista Sulco (2ª Sé rie), Lisboa, 1968, pp. 43-55. [48] Felix C orre ia, O p. cit., pp. 19-36. [49] Em 26 de Abril de 1919, através da cé lebre “le i do afasta” (De cre to 5 368, de 8 de Abril de 1919), Hipólito Raposo foi dem itido de che fe da 2ª Re partição da Dire cção Ge ral do Ensino Industrial e C ome rcial. C omo ainda lhe re stasse o ensino da 3ª cade ira da Escola da Arte de R eprese ntar do C onse rvatório de Lisboa, é o próprio “m inistro -filósofo” da Instrução Pública da Re pública, Leonardo Coimbra, que m acaba por se re solve r e m desce r à tesouraria dando ordem para que o vencime nto lhe não fosse pago; ve r Hipólito R aposo, Folhas do me u Cadastro, cit., pp. 88-91. [50] Do grotesco processo do Tribunal Militar me re ce re fe rê ncia a estre ia no foro de Afonso Lope s Vie ira, na de fe sa de Hipólito Raposo. Depõem a favor de Hipólito Raposo, Joaquim Manso, José de Ataíde e He nrique da Trindade Coe lho. Hipólito Raposo foi condenado em três mese s de prisão corre ccional, cumprindo a pena na Torre de São Julião da Barra, de 19 de Agosto a 17 de Nove mbro. [51] Le ão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 57. [52] Ve r A Q ue stão Dinástica – Docume ntos para a História m andados coligir e publicar pe la Junta Ce ntral do Integralism o Lusitano, Lisboa, Empresa Nacional de Industrias Gráficas, 1921, p. 3. [53] Alfre do Pimenta logrou m obilizar em re dor da Acção Realista alguns ade re nte s do integralismo como Cae tano Be irão ou Luís C have s, pe lo que algumas fonte s têm refe rido tratar-se de uma cisão no Integralismo Lusitano. Em rigor, não foi isso o que aconte ce u: Alfre do Pim enta não e ra inte gralista, e a Junta Ce ntral do Inte gralismo Lusitano não sofreu qualque r alte ração na sua com posição em re sultado do lançamento da Acção Re alista. Nas polém icas doutrinárias dese ncadeadas pe la “questão dinástica”, aliás, as duas organizaçõe s vie ram a afirmar distintas conce pções do pode r ré gio, com os integralistas a reafirm arem a doutrina seisce ntista do “pacto de suje ição” (que os le vara a come çar por de clarar obe diência a D. Manue l II, em 1914, e os le vava agora à ruptura) e os pimentistas a de fe nde rem as doutrinas hie rocráticas, firmando a conjugação do se u tradicionalismo com a obediê ncia a D. Manue l II, no respe ito que lhes me re cia a “pessoa sagrada” do rei; Ve r A Que stão Dinástica..., cit., e de Alfredo Pime nta, A que stão m onarchica, Edição das Juve ntudes Monarchicas C onse rvadoras, Lisboa, 1920. [54] Em 1943, essa e ra a lição re colhida por Leão Ramos Ascensão, Op. cit., p. 58: “A Monarquia de 1910 morria ali definitiva-

mente. Ineptos e impotentes, os constitucionais só tinham servido durante nove anos para embaraçar e enervar os melhores anseios de quem aspirava à restauração da Pátria pela Monarquia tradicional”.

Alfredo Pimenta considerou que para o que restava do sidonismo só havia uma de d uas s a íd as : ou a monarquia ou o governo militar. No seu entender, porém, as condições não estariam maduras para a primeira hipótese. O grosso do monarquismo tradicionalista vai passar a estar aglutinado em torno da Causa Monárquica portuguesa, juntando o Partido Legitimista e o Integralismo Lusitano no reconhecimento de D. Duarte Nuno como Chefe da Casa Real portuguesa. A Questão Dinástica virá a e n c e r r a r - s e d e f i n i ti va me n te na sequência da morte de D. Manuel II, em 1932, reconhecendo a Causa Monárquica o neto de D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança, como chefe da Casa Real portuguesa. Para os integralistas , porém, em 1919, morria de fi ni t iv a m e n te a Monarquia da Carta.



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Augusto Ferreira do Amaral

A Legitimidade de D. Duarte: D. Duarte é o sucessor dos reis e Portugal Introdução O reconhecimento do Senhor Dom Duarte como Pretendente ao Trono e legítimo sucessor dos Reis de Portugal tem sido de tal maneira consensual e pacífico no nosso País e no estrangeiro que os fundamentos jurídicos dessa identificação são mal conhecidos para a maior parte das pessoas, de tal maneira supérflua tem sido geralmente considerada a necessidade de os relembrar. Porém, algumas escassas vozes ignaras, sem qualquer credencial que lhes confira autoridade nem crédito sobre a matéria, surgiram ultimamente a pretender causar sensação levant ando dúvidas sobre aquela insofismável realidade. Vale a pena por isso recapitular os referidos fundamentos jurídicos, para que o público os tenha à disposição. 1. Le i aplicável Está em causa a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal, ou seja de quem seria Rei no caso de Portugal passar a ser uma Monarquia, isto é, de o Chefe de Estado passar a ser hereditária e vitaliciamente designado. Não existem normas expressas no actual direito positivo português que regulem directamente esta matéria. A Constituição, como é natural, e as leis ordinárias omitem totalmente a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal. E elas são igualmente omissas quanto à regulação da representação viva dos reis de Portugal. Também não há regras internacionais que sirvam de critério para a

determinação de quem são os pretendentes ao trono ou chefes das casas reais dos países que deixaram de ser Monarquias. Saliente-se ainda que, para o efeito são juridicamente irrelevantes as posições tomadas por Reis em exercício que contrariem as normas de sucessão vigentes. Já D. João II, apesar de todo o poder que então dispôs, não foi capaz de satisfazer o seu desejo de que lhe sucedesse um filho bastardo – apesar das tentativas que realizou nesse sentido – e teve de conformar-se em que lhe viesse a suceder seu primo D. Manuel I. Isto porque não era aos reis de Portugal que competia estabelecer as regras da sucessão, e muito menos as decisões desta, mas sim à lei fundamental, objectivamente aplicada e confirmada por um acto simbólico de Aclamação. Por muita importância histórica, pois, que tenham tido os chamados “pacto de Dover” e “pacto de Paris”, entre D. Manuel II e D. Miguel II, eles são irrelevantes para efeitos da designação do sucessor de D. Manuel II. Essa sucessão tem de encontrar-se, não naquilo que tivesse sido decidido pelo último Rei, mas sim nas normas constitucionais aplicáveis. Importa então saber qual a sede jurídica dessas regras de sucessão. Desde logo é de perfilhar o princípio de que à sucessão do Pretendente deverão aplicar-se as normas da sucessão do Rei. Não havendo especial norma, a analogia justifica-se plenamente. Ora, tratando-se duma qualidade

Está em causa a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal, ou seja de quem seria Rei no caso de Portugal passar a ser uma Monarquia, isto é, de o Chefe de Estado passar a ser h e r e d i t á r ia e vitaliciamente designado. Não ex is tem nor mas expressas no actual direito positivo português que regulem directamente esta matéria. A Constituição, como é natural, e as leis ordinárias o m ite m totalmente a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal. E elas são igualmente omissas quanto à regulação da representação viva dos reis de Portugal.


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A cisão que por cerca de século e meio dividiu os m o ná r q ui c o s (e n tr e c o ns t i t uc io na i s e absolutistas) poderia levar a uma he s i ta ç ã o preliminar, na opção entre a Carta Constitucional e as Le is Fu n d a me n ta i s anteriores. Nã o temo s d úv id as , porém, em optar pela Carta. Por várias razões. A mais decisiva é, como tem sido no ssa o r ie n ta ç ã o , partirmos do princípio de que, havendo que recorrer a preceitos escritos do tempo da Monarquia, importa preferir os que sejam mais próximos no tempo. E as normas legais que, na ordem jurídica portuguesa, ultimamente, até 5 de Outubro de 1910, regulavam a sucessão hereditária da chefia de Estado eram as da Carta Constitucional.

que encontra o seu fundamento num direito histórico, haverá que recorrer a normas escritas já passadas. A cisão que por cerca de século e meio dividiu os monárquicos (entre constitucionais e absolutistas) poderia levar a uma hesitação preliminar, na opção entre a Carta Constitucional e as Leis Fundamentais anteriores. Não temos dúvidas, porém, em optar pela Carta. Por várias razões. A mais decisiva é, como tem sido nossa orientação, partirmos do princípio de que, havendo que recorrer a preceitos escritos do tempo da Monarquia, importa preferir os que sejam mais próximos no tempo. E as normas legais que, na ordem jurídica portuguesa, ultimamente, até 5 de Outubro de 1910, regulavam a sucessão hereditária da chefia de Estado eram as da Carta Constitucional. Os artigos que, para o efeito, importa levar em conta são os seguintes. «Art. 5º – Continua a dinastia reinante da sereníssima casa de Bragança na pessoa da Senhora Princesa Dona Maria da Glória, pela abdicação e cessão de seu Augusto Pai o Senhor Dom Pedro I, Imperador do Brasil, legítimo herdeiro e sucessor do Senhor Dom João VI.» «Art. 86º – A Senhora D. Maria II, por graça de Deus, e formal abdicação e cessão do Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil, reinará sempre em Portugal. Art. 87º – Sua descendência legítima sucederá no trono, segundo a ordem regular da primogenitura e representação, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao meia remoto; no mesmo grau o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça. Art. 88º – Extintas as linhas dos

descendentes legítimos da Senhora D. Maria II, passará a coroa à colateral. Art. 89º – Nenhum estrangeiro poderá suceder na coroa do reino de Portugal. Art. 90º – O casamento da Princesa herdeira presuntiva da coroa será feito a aprazimento do Rei, e nunca com estrangeiro; não existindo a Rei ao tempo em que se tratar este consórcio, não poderá ele efectuar-se sem aprovação das cortes gerais. Seu marido não tomará parte no governo, e somente se chamará Rei depois que tiver da Rainha filho ou filha.» Importa, portanto, interpretar estes preceitos. Não se conhecem trabalhos preparatórios da Carta, constando que ela terá sido redigida em poucos dias, talvez pelo Ministro da Justiça brasileiro, Marquês de Caravelas. Os comentadores apontam a Constituição do Império do Brasil, outorgada por D. Pedro IV em 11 de Dezembro de 1823, como a possível fonte directa mais importante (Por todos ver Mário Soares, Carta Constitucional, in Dicionário da História de Portugal, vol. I, p. 495). No entanto, nesta matéria da designação do Rei e da sua sucessão, a nossa Carta Constitucional seguiu de perto outra fonte portuguesa: a Constituição de 1822. Com efeito, é o seguinte o texto desta última, no que toca à sucessão real. «Art. 31º – A dinastia reinante é a da sereníssima casa de Bragança. O nosso rei actual é o senhor D. João VI.» «Art. 141º. A sucessão à coroa do reino unido seguirá a ordem regular de primogenitura e representação entre os legítimos descendentes do rei actual o senhor D. João VI, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau o sexo


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A Legitimidade de D. Duarte masculino ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça. Portanto: I. Somente sucedem os f ilhos nascidos de legítimo matrimónio; II. Se o herdeiro presuntivo da coroa falecer antes de haver nela sucedido, seu filho prefere por direito de representação ao tio com quem concorrer; III. Uma vez radicada a sucessão em uma linha, enquanto esta durar não entra a imediata. Art. 142º. Extintas todas as linhas dos descendentes do senhor D. João VI, será chamada aquela das linhas descendentes da casa de Bragança que dever pref erir segundo a regra estabelecida no artigo 141º. Extintas todas estas linhas, as cortes chamarão ao trono a pessoa que entenderem convir melhor ao bem da nação; e, desde então continuará a regularse a sucessão pela ordem estabelecida no mesmo artigo 141º. Art. 143º. Nenhum estrangeiro poderá suceder na coroa do reino unido. Art. 144º. Se o herdeiro da coroa portuguesa suceder em coroa estrangeira, ou se o herdeiro desta suceder naquela, não poderá acumular uma com outra; mas preferirá qual quiser, e optando a estrangeira se entenderá que renuncia à portuguesa. Esta disposição se entende também com o rei que suceder em coroa estrangeira. Art. 145º. Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com português, precedendo aprovação das cortes. O marido não terá parte no governo, e somente se chamará rei depois que tiver da rainha filho ou filha.» Nesta matéria da sucessão real as disposições constitucionais, quer da Constituição de 1820, quer da Carta, inspiraram-se basicamente nas leis fundamentais portuguesas vigentes no antigo regime, as

quais, por isso, são importantes para integrar lacunas e precisar sentidos quando se procede à interpretação dos citados preceitos da Carta. Essas leis fundamentais constavam do Assento feito em Cortes pelos Três Estados, na aclamação de D. João IV, assinado em 5 de Março de 1641, e na Carta Patente de D. João IV em que iam incorporados os Capítulos Gerais dos Três Estados e Resposta a eles nas Cortes de Lisboa de 28 de Janeiro de 1641. E estes documentos seguiam princípios constantes da apócrifa acta das falsas Cortes de Lamego no reinado de D. Afonso Henriques, a qual, contudo, a partir da sua publicação em 1632, passou a ser entendida, na consciência generalizada dos portugueses, como consubstanciando a lei fundamental. Na verdade, a remota origem das regras sucessórias do trono achava-se nos costumes e nas cláusulas dos testamentos de D. Sancho I, D. Afonso II e D. Sancho II (Ver Martim de Albuquerque e Rui de Albuquerque, História do Direito Português, vol. I, 1984/85, pp. 400 e segs., Marcello Caetano, História do Direito Port uguês, 2ª edição, 1985, pp.211 e 212, F. P. de Almeida Langhans, Fundamentos Jurídicos da Monarquia Portuguesa, Lisboa, 1951, Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, 2ª edição, vol. III, p.p. 300 e segs., Paulo Merêa, Novos Estudos da História do Direito, pp. 47 e segs., António Caetano do Amaral, Memória V para a História da Legislação e Costumes de Portugal, ed. Civilização, 1945, pp. 31 e segs., J. J. Lopes Praça, Collecção de leis e subsídios para o estudo do direito constitucional portuguez, Coimbra 1893, p. XXII, e M. A. Coelho da Rocha, Ensaio sobre a história do governo e da legislação de Portugal, Coimbra, 1861, p. 49).

Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com por tuguês , precede ndo aprovação das cortes. O marido não terá parte no governo, e somente se chamará rei depois que tiver da rainha filho ou filha.» Nesta matéria da sucessão real as d is p os iç õ es constitucionais, quer da Constituição de 1820, quer da Carta, inspiraram-se bas icame nte nas le is fundamentais portuguesas vigentes no antigo regime, as quais, por isso, são importantes para integrar lacunas e precisar s e ntid o s q ua nd o se procede à interpretação dos citados preceitos da Carta.


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Os arts. 86º a 90º da Carta instituem quatro conjuntos de regras para a sucessão: definição do autor da sucessão, relação de parentesco, condição da nacionalidade, e condição da autorização régia para o casamento de princesa. O i t in e r á r i o d um a designação de sucessor régio é pois, basicamente, constituído pelos seguintes passos. Primeiro há que determinar a pessoa em relação à qual se apurará o parentesco definidor do sucessor. Depois fazem-se funcionar as regras do parentesco, com vista a apurar um candidato. Apurado este, importa saber se, quanto a ele, não ocorre algum dos factos que levam à exclusão da sucessão, isto é, se ele não deve ser afastado por razões da nacionalidade ou de casamento de princesa.

Segundo um dos doutores clássicos da Restauração, Francisco Velasco de Gouveia (Justa Acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV, 1644, p. 79), «entre as quatro qualidades, que se consideram, e atentam na sucessão dos bens vinculados, morgados, e Reinos, que por sua instituição hão-de vir a uma pessoa de certa geração, para se ver qual há-de preferir, e suceder neles, a primeira de todas, é a linha. A segunda, o grau. A terceira, o sexo. A quarta, a idade». E conclui que na crise de 1580 «o direito legítimo da sucessão destes Reinos pertencia à Infanta Duquesa Dona Catarina. Por melhor linha. Por igualmente melhor grau. Por capacidade do sexo. Pelo benefício da representação. Por vocação. Por agnação. E por ser Portuguesa, e casada com Príncipe Português» (ibidem, p. 78). Nesta síntese poderá verif icar-se como as normas constitucionais relativas à sucessão no trono seguiram, no essencial, princípios com muitos séculos de vigência. 2. Princípios decorrentes da Carta Constituc ional Qual, então, o regime de sucessão régia que decorre da Carta Constitucional? Desde logo se observe que, conforme resulta dos arts. 5º e 88º, nada impede que a sucessão caia em descendentes de irmãos de D. Pedro IV. Isto é, não se exige, como antigamente estava estabelecido, a aprovação das Cortes para a passagem do trono a um colateral, quando o Rei não tivesse descendentes. A Carta seguiu aí a orientação do art. 142º da Constituição de 1822, que, curiosamente, restringiu neste particular os poderes do Parlamento. Enquanto houvesse descendentes da Casa de Bragança, não era necessária a aprovação das Cortes para que na

coroa sucedesse um colateral do Rei. Os arts. 86º a 90º da Carta instituem quatro conjuntos de regras para a sucessão: definição do autor da sucessão, relação de parentesco, condição da nacionalidade, e condição da autorização régia para o casamento de princesa. O itinerário duma designação de sucessor régio é pois, basicamente, constituído pelos seguintes passos. Primeiro há que determinar a pessoa em relação à qual se apurará o parentesco definidor do sucessor. Depois fazem-se funcionar as regras do parentesco, com vista a apurar um candidato. Apurado este, importa saber se, quanto a ele, não ocorre algum dos factos que levam à exclusão da sucessão, isto é, se ele não deve ser afastado por razões da nacionalidade ou de casamento de princesa. Vejamos então esses passos em pormenor. 2.1. Quem é o autor da sucessão Aqui são regulados dois casos: a sucessão de D. Maria II, e a dos que viessem de futuro a sucederlhe no trono. Havia na Carta Constitucional uma expressa declaração de D. Maria II como Rainha. E nem sequer fora uma especialidade daquele documento, atribuível a circunstâncias únicas da vida política portuguesa, desencadeadas hist oricament e após a morte de D. João VI. Já a Const ituição de 1822, como vimos, tivera o cuidado de determinar pessoalmente que o Rei era D. João VI e que a dinastia reinante era a de Bragança. É de aceitar esta declaração, não tanto pela sua validade inicial e intrínseca, que aliás nos não cabe agora discutir, mas sobretudo porque a realeza de D. Maria II, teve efectividade, directa e indirecta-


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A Legitimidade de D. Duarte mente, na ordem jurídica portuguesa até 1910. Trata-se, de resto, do que a consciência generalizada, quer em Portugal, quer no estrangeiro, reconhecia como válido e regular nos últimos momentos da vigência da Monarquia. Apenas haverá que observar que esta designação de D. Maria II não era inovadora; não era constitutiva, mas sim meramente declarativa. Não rompia com a linha sucessória entendida como correcta, mas sim nela reconhecia a pessoa a quem competia a qualidade de sucessor dos anteriores reis portugueses. Verdadeiramente, só talvez nas cortes de Coimbra de 1385, com a aclamação de D. João I, houvera a criação duma nova dinastia. E, mesmo assim, o Mestre de Avis era filho dum Rei, para alguns em igualdade de parentesco, quanto à ilegitimidade, com os outros pretendentes, quer a filha de D. Leonor Teles, quer os de D. Inês de Castro. Mas, quer a dinastia dos Filipes, quer a brigantina, socorreram-se da invocação do direito a suceder no trono que fora de D. João I. No que diz respeito à pessoa real à data em que era emitida a Carta Constitucional, portanto, nenhuma dúvida. E quanto aos futuros reis? Dois caminhos alternativos poderiam teoricamente abrir-se para a determinação de quem, de futuro, seria o autor da herança, isto é, o Rei relativamente ao qual haveria que determinar quem, pela relação de mais próximo parentesco, competiria suceder no trono. Ou esse parentesco era sempre aferido relativamente ao Rei inicial, ao fundador, ou relativamente àquele que, em cada sucessão régia, tivesse sido o último Rei. Os teóricos sempre preferiram a primeira concepção, em tudo o que concerne à «sucessão dos reinos, dos morgados, dos usufrutos, dos bens da coroa, e, em geral, na

sucessão de todos e quaisquer bens, que, por morte da pessoa que os administra devem por Lei ou por instituição passar a outracerta e determinada pessoa» (D. Francisco de S. Luía, Obras completas do Cardeal Saraiva, tomo IV, 1875, p. 168). Nessas sucessões, o sucessor sucede «ex propria persona, jure proprio, e não pelo direito de seu pai, ou antecessor» (ibidem, p. 169). Aliás, se não fosse assim, isto é, se fosse preferida a segunda alternativa acima exposta, podiam suceder na coroa parentes do rei antecessor que não fossem descendentes do fundador da dinastia. Mas, no que respeita à sucessão real havia também a preocupação de garantir uma continuidade na linha sucessória. E, para o efeito, não seria satisfatória a adopção extreme da primeira alternativa. Se o parentesco fosse, pelo grau, reportado sempre ao fundador da dinastia, sem mais, resultaria a possibilidade frequente de o filho dum rei ser preterido por um irmão ou mesmo por um primo deste. Daí que a escolha do fundador como fulcro da relação de parentesco haja sido temperada por um tertium genus, o princípio da continuação da linha. Parece ter sido essa a solução preferida do legislador constitucional. O art. 87º dá a entender que o primeiro critério é o da descendência de D. Maria II; mas logo como segundo critério, antes dos demais, declara o da linha. Ora isso só pode signif icar que, enquanto uma linha se não extinguir, não pode suceder ninguém de outra linha, ainda que de parentesco mais próximo com D. Maria II. E há que levar em conta o esclarecimento expresso que era feito no próprio nº III do art. 141º da Constituição de 1822, que serviu de fonte àquele preceito da Carta:

E quanto aos futuros reis? Dois caminhos alternativos poder iam teor icamente a b r i r -s e pa r a a determinação de quem, de futuro, seria o autor da herança, isto é, o Rei relativamente ao qual haveria que determinar quem, pela relação de mais próximo parentesco, competiria suceder no trono. Ou esse parentesco era s e m pr e a f e r ido re la tivame nte ao Re i inicial, ao fundador, ou relativamente àquele que, em cada sucessão régia, tivesse sido o último Rei.


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A Legitimidade de D. Duarte «uma vez radicada a sucessão em uma linha, enquanto esta durar não entra a imediata». Quer dizer: a sucessão no trono apura-se pela relação de parentesco legítimo com D. Maria II. Mas, entre os parentes, a primeira preferência é pelos da linha mais próxima; enquanto esta não estiver extinta, não sucedem os parentes de outra linha. Com o Pretendente ao Trono não há razão para não aplicar exactamente esses princípios.

A primeira exigência é de que o parentesco seja «leg ítimo », ou s eja , basea do em filiações havidas de matrimónio. Já a Constituição de 1822 esclarecia que somente sucediam os filhos nascidos de legítimo matrimónio.

2.2. Re lação de parentesco O fundamento para a sucessão régia, na Monarquia portuguesa, era uma certa relação de parentesco entre o herdeiro da Coroa e um antecessor. Na Carta, como acima vimos, essa relação começa por ser apresentada quanto aos descendentes a Rainha. E só depois surge regulada a hipótese de a Coroa ir parar a colaterais. Vejamos então separadamente cada uma dessas relações. 2.2.1. Na descendênc ia Aponta o art. 87º uma série de critérios de apuramento do parentesco susceptível de gerar a condição básica de sucessor no trono. 2.2.1.1. Legitimidade A primeira exigência é de que o parentesco seja «legítimo», ou seja, baseado em filiações havidas de matrimónio. Já a Constituição de 1822 esclarecia que somente sucediam os f ilhos nascidos de legítimo matrimónio. E era regra antiga, como se vê, entre outros, por Afonso de Lucena (Allegações de direito… por parte da Senhor Dona Catherina…, etc. 1580, p. 93), e Francisco Alvarez de Ribera (De Sucessione Regni Portugalliae, 1621, p.p. 17 e segs.) Aqui colocam-se duas dúvidas. A primeira advém do desaparecimento, da ordem jurídica portu-

guesa, da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Será correcto, ainda, levar em conta a distinção estabelecida na Carta, entre descendentes legítimos e ilegítimos? Estamos em crer que sim. A interpretação preferível duma lei fundamental que, neste particular, gozou duma longuíssima estabilidade, terá de privilegiar a conservação do sentido histórico que era conferido aos preceitos. E tal sentido, neste particular, não pode deixar de manter como decisiva a exclusão da sucessão dos parentes cuja relação com o autor da herança não assente numa linha totalmente legítima, isto é, em sucessivas filiações decorrentes do matrimónio. A segunda dúvida é a de saber se será de admit ir, para basear a filiação legítima, o casamento civil. O problema está em que, à data da outorga da Carta Constitucional, os católicos por via de regra só podiam casar-se validamente por casamento canónico. Ainda a especial natureza destes preceitos, profundamente impregnados duma tradição muito estável, parece tornar preferível que apenas se considere como eficaz, para efeitos da geração de filiação legítima dos descendentes do Rei, o matrimónio religioso. Isto não implica a afirmação duma potencial Monarquia como Estado confessional, nem a exigência de confissão religiosa ao Pretendente. Apenas significa a preferência por uma interpretação favorável à rigidez das normas fundamentais reguladoras da sucessão régia. 2.2.1.2. «Segundo a ordem regular da primogenitura e represe ntação» Esta expressão, que resume dois dos mais característicos princípios da sucessão nos bens vinculados, tem interesse, não já pela referência à ordem da primogenitura, de


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A Legitimidade de D. Duarte que adiante se falará, mas sobretudo pela adopção do instituto da representação. Que significa esta? Que se, antes de o titular falecer, morrer o filho que devia sucederlhe, qualquer filho deste tem preferência, na sucessão, sobre os irmãos do titular. Tradicionalmente se admitia este instituto na própria sucessão de reinos. Disso dão conta autores como Afonso de Lucena (ob. cit., p.p. 46 e segs.), António de Sousa de Macedo (Lusitania Liberata ab injusto Castellanorum dominio Restituta, 1645, p.p. 258 e segs.), Velasco de Gouveia (ob. cit., p.p 151 e segs.), João Pinto Ribeiro, Injustas Successoens dos Reys de Leam, e de Castella. e izençaõ de Portugal, in Obras Varias, parte segunda, 1730, p. 102) e Francisco de Santo Agostinho de Macedo (Jus Succedendi in Lusitaniae Regu m Do minae Cat herinae, 1641, p.p. 50 e segs.). E era também pacífico o princípio de que, na linha recta descendente, a representação não tinha limites, isto é, podiam dar-se em duas ou mais gerações. Dizia Pascoal José de Melo Freire, a propósito da sucessão do Reino: «admittendam in linea descendentium repraesent at ione m i n i nf i nitum» (Institutiones Juris Civilis Lusitani, 1800, livro III, p. 120). A Carta é expressa em consagrar a regra da representação, naturalmente no sentido tradicional. Assim, tratando-se de representação na descendência do autor da herança, não se suscitam dúvidas sobre o modo de entender essa representação. Os problemas surgem, sim, quando se trata de sucessão de colaterais, como adiante se verá. Ainda uma questão é de pôr quanto ao correcto funcionamento do instituto da representação – o que sucede, quando o representado não poderia suceder, se vivo fosse

à data em que morre o autor da herança? 2.2.1.3. «Preferindo» Preferir é aqui estar antes, estar à frente de. Nenhuma dúvida descortinamos no uso de tal termo. No enunciado dos critérios de preferência, segue a Carta, uma vez mais a doutrina tradicional. Dizia Manuel Pegas a propósito da suc essão n os mo rg a d o s : «Enucleationem suppono vulgarissimam esse in jure nostro, et pro constanti ab omnibus traditam, quatuor qualitates in successione maioratus inspici, et attendi debere, prius lineam, postea gradum, tuns sexum, et ultimo aetatem» (Tractatus de Exclusione, Inclusione, Successione, et Erectione Maioratus, 1ª parte, 1685, p. 37). 2.2.1.3.1. «a linha ante rior às posteriores» Interessa saber em que consistia, na ordem jurídica da monarquia constitucional, a linha. O conceito não é exclusivo das leis fundamentais das monarquias. Foi fundamentalmente usado e tratado em pleno direito civil, no ramo das sucessões. Aí «se diz linha a série de gerações entre determinadas pessoas» (António R. de Lis Teixeira, Curso de Direito Civil Portuguez, parte segunda, 1848, p. 516). A linha é directa ou recta quando um dos parentes descende do outro; e colateral quando liga pessoas que não são ascendentes uma da outra, mas têm um progenitor comum (ibidem, e art. 1580º do Código Civil actual). Que será então uma linha anterior e uma linha posterior? A terminologia não é corrente do direito civil. E a Carta foi bebê-la à Constituição de 1822. Afigura-se-nos que uma linha será anterior a outra quando o progenitor comum entre a linha anterior e

A segunda dúvida é a de saber se será de admitir, para basear a filiação legítima, o casamento civil. O problema está em que, à data da outorga da Carta Constitucional, os católicos por via de regra só podiam casar-se validamente por casamento canónico. Ainda a especial natureza d e s te s pr e c e i to s , p r o f u n d a m e n t e i m p r eg n a do s d u ma tradição muito estável, parece tornar preferível que apenas se considere como eficaz, para efeitos da geração de filiação legítima dos descendentes do Rei, o matrimónio religioso. Isto não implica a a f ir m a ç ã o d um a potencial Monarquia como Estado confessional, nem a exigência de confissão religiosa ao Pretendente. A p e na s s ig nif ic a a p ref erê nc ia p or uma interpretação favorável à r ig id e z d as nor m as fundamentais reguladoras da sucessão régia.


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«No mesmo grau o sexo masculino ao feminino» Esta regra, posto que contrariando o princípio da igualdade dos sexos hoje muito generalizado na civilização ocidental, não apenas na ordem jurídica portuguesa, mas também na sucessão régia de a lg um a s m o na r q uia s europeias, deve continuar a manter-se enquanto as normas da Ca r ta Constitucional não for substituída por outra lei f unda me nta l q ue se aplique à sucessão régia ou do Pretendente.

o autor da herança seja de grau mais próximo que o progenitor comum entre a linha posterior e o autor de herança; ou, sendo o mesmo o progenitor comum das duas linhas com o autor da herança, quando provenha dum filho desse progenitor que prefira ao filho donde provém a linha posterior. Por preferir entenda-se aqui ser do sexo masculino e/ou mais velho. O princípio era o da prioridade absoluta da linha sobre o grau, o sexo e a idade, como critério de preferência na sucessão. A Carta afirmava-a implicitamente ao antepor a linha aos outros critérios. Mas baseava-se de resto na Constituição de 1822, que era expressa em declarar enfaticamente que, uma vez radicada a sucessão numa linha, enquanto esta durasse, não entrava a imediata. No que se conformava com o entendimento tradicional. Ensinava Pascoal José de Melo Freire (ob. c it a da , p. 1 20) : «successionem non nisi una linea extincta ad aliam transire». 2.2.1.3.2. «na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto» Os graus devem contar-se aqui segundo o direito civil. Tanto na linha recta como da colateral, contam-se as pessoas que formam a linha de parentesco, mas excluindo o progenitor comum (Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado pratico de Morgados, 3ª edição, 1841, p. 198, e art. 1581º do actual Código Civil). O grau mais próximo será o menor. 2.2.1.3.3. «No mesmo grau o sexo masculino ao feminino» Esta regra, posto que contrariando o princípio da igualdade dos sexos hoje muito generalizado na civilização ocidental, não apenas na ordem jurídica portuguesa, mas

também na sucessão régia de algumas monarquias europeias, deve c ont inuar a manter- se enquanto as normas da Carta Constitucional não for substituída por outra lei fundamental que se aplique à sucessão régia ou do Pretendente. 2.2.1.3.4. «no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça» Este preceito apenas levantaria dúvida séria quando estejam em causa gémeos do mesmo sexo. Mas não valerá a pena abordar-se tal pormenor, correspondente a uma hipótese rara. 2.2.2. Nos colaterais Quais as regras aplicáveis à sucessão de colaterais do autor de herança? Quanto à sua admissibilidade, não pode haver dúvidas. O art. 88º consagra a sucessão pela linha colateral de D. Maria II, quando deixar de haver descendentes legítimos dela. Suscitam-se contudo alguns problemas. Desde logo a Carta não regula expressamente a sucessão régia quando haja de seguir por linha colateral. Nem sequer remete para as regras da sucessão da descendência. Parece que o silêncio significará aí que, basicamente, se seguirão as normas constantes do art. 87º para determinar qual o parente colateral de D. Maria II que deve suceder no trono. Assim, não temos dúvidas de que também na sucessão de colaterais prefere a linha anterior, dentro dela o grau, dentro do grau o sexo masculino e dentro do sexo masculino a maior idade. Porém, as dificuldades aparecem quando se coloca a questão de saber se é aplicável a representação nesta sucessão por linha colateral.


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A Legitimidade de D. Duarte É de partir do pressuposto que a Carta, tal como a Constituição de 1822, empregou o conceito de representação no sentido técnicojurídico que ele à época tinha, e que a entendia regulada pelos princípios que então geralmente se entendia que a regiam. Importa pois recorrer à doutrina dominante da época. Segundo essa doutrina, existia direito de representação também na sucessão na linha colateral para sobrinhos, filhos de irmão. Tal fora instituído por Justiniano e os tratadistas aludem frequentemente a essa figura, sustentando inclusivamente que na sucessão civil a herança dos sobrinhos era por estirpes (Velasco de Gouveia, ob. cit. p. 203, Afonso de Lucena, ob. cit., p. 46, e Domingos Antunes Portugal, Tractatus de Donationibus Regiis, 1726, tomo 2º, p. 138) Por outro lado a representação, nos colaterais vai apenas até o segundo grau (António de Sousa de Macedo, ob. cit., p. 318, e Velasco de Gouveia, ob. cit., p. 204) 2.3. Condição da nacionalidade Como se viu a Carta não admite que na coroa suceda um estrangeiro (art. 89º). Por isso, uma vez apurado a pessoa a quem, pela relação de parentesco com o autor da herança, competiria sucederlhe, há que saber se é, ou não, português. 2.3.1 – Que deverá entenderse por estrange iro? Aplicar-se-á a lei da nacionalidade que presentemente vigora? Ou a lei da nacionalidade que vigorava à data em que a Carta foi outorgada? Ou a última lei da nacionalidade que vigorou durante a Monarquia? Ou deve encontrar-se um conceito especial, apenas para uso das normas constitucionais da sucessão?

A palavra, à data da outorga a Carta, significava o mesmo que não natural de Portugal, como afirmaram, por exemplo, M. A. Coelho da Rocha (Instituições de Direito Civil Portuguez, 4ª edição, tomo I, 1857, p.136) e D. Francisco de S. Luís (ob. cit., p.p. 137 e segs.). Diz este que as nossas leis «chamam sempre naturais, isto é, verdadeiramente Portugueses, os que nascem nestes reinos e seus senhorios». A naturalidade portuguesa à data da outorga da Carta, era regulada pelo título LV do 2º Livro das Ordenações, que preceituava: «…as pessoas que não nascerem nestes Reinos e Senhorios deles, não sejam havidas por naturais deles, posto que neles morem e residam, e casem com mulheres naturais deles, e neles vivam continuadamente, e tenham o seu domicílio e bens. 1. Não será havido por natural o nascido nestes Reinos de pai estrangeiro, e mãe natural deles, salvo quando o pai estrangeiro tiver seu domicílio e bens no Reino, e nele viveu dez anos contínuos … 2. E sucedendo que alguns naturais do Reino, sendo mandados por Nós, ou pelos Reis nossos sucessores, ou sendo ocupados em nosso serviço, ou do mesmo Reino ou indo de caminho, para o tal serviço, hajam filhos fora do Reino, estes tais serão havidos por naturais, como se no Reino nascessem. 3. Mas se alguns naturais se saírem do Reino e Senhorios dele, por sua vontade, e se forem morar a outra Província, em qualquer parte sós, ou com suas famílias, os filhos, que lhes nascerem fora do Reino e Senhorios dele, não serão havidos por naturais: pois o pai se ausentou por sua vontade do Reino, em que nasceu, e os filhos não nasceram nele… » A Constituição de 1822, enquanto

Como se viu a Carta não admite que na coroa suceda um estrangeiro (art. 89º). Por isso, uma vez apurado a pessoa a quem, pela relação de parentesco com o autor da he r a nç a , c o m p e tir ia suceder-lhe, há que saber se é, ou não, português.


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D. Francisco de S. Luís sustentava que o termo estrangeiro tinha, com vista à sucessão no trono, um conteúdo específico, não coincidente com o da lei civil. Era ele de opinião que um português, nascido em Portugal, que se tivesse naturalizado noutro país nem por isso deixava de ser português, para e fe ito s da Le i Fundamental. E que um e s tr a ng e ir o q ue se naturalizasse português, não deixava de ser um estrangeiro, inábil para s u c ed er na c or oa portuguesa

vigorara, regulara diferentemente. Estabelecia o seu art. 21º serem cidadãos portugueses: « I Os filhos de pai português nascidos no Reino Unido ou que, havendo nascido em país estrangeiro, vieram estabelecer domicílio no mesmo Reino; cessa porém a necessidade deste domicílio se o pai estava no país estrangeiro em serviço da nação … V Os filhos de pai estrangeiro que nascerem e adquirirem domicílio no Reino Unido; contanto que chegados à maioridade declarem, que querem ser cidadãos portugueses. VI Os estrangeiros que obtiverem carta de naturalização.» A Carta, por sua vez, estatuiu, no art. 7º: «São cidadãos portugueses: 1º Os que tiverem nascido em Portugal ou seus domínios, e que hoje não forem cidadãos brasileiros, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço da sua nação. 2º Os filhos de pai português, e ilegítimos de mãe portuguesa, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no reino. 3º Os filhos de pai português, que estivesse em país estrangeiro em serviço do reino, embora eles não venham estabelecer domicílio no reino. 4º Os estrangeiros naturalizados…» Houve alterações neste regime com a Constituição de 1838 (art. 16º) Reposta a Carta, a definição de cidadão português veio a ser feita pelo art. 2º do Decreto de 30 de Setembro de 1852 (lei eleitoral), em termos idênticos aos daquele diploma constitucional. Tempos depois entrou em vigor o Código Civil de 1867, que regulou a matéria no seu art. 18º, estabelecendo serem cidadãos portugueses: «1º Os que nascem no reino, de

pai e mãe portugueses, ou só de mãe portuguesa sendo filhos ilegítimos; 2º Os que nascem no reino, de pai estrangeiro, contanto que não resida por serviço da sua nação, salvo se declararem por si, sendo já maiores ou emancipados, ou por seus pais ou tutores, sendo menores, que não querem ser cidadãos portugueses; 3º Os filhos de pai português, ainda que este haja sido expulso do reino, ou os filhos ilegítimos de mãe portuguesa, bem que nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no reino, ou declararem por si, sendo maiores ou emancipados, ou por seus pais ou tutores, sendo menores, que querem ser portugueses; 4º Os que nascem no reino, de pais incógnitos, ou de nacionalidade desconhecida; 5º Os estrangeiros naturalizados…….» Era duvidosa a constitucionalidade deste artigo, na medida em que parecia contrariar o texto da Carta (José Dias Ferreira, Código Civil Portuguez Annotado, 1870, vol. I, p. 40). No entanto, a verdade é que se manteve até depois de 1910. Qual, então, a regulamentação que deve ser preferida, para integrar o conceito de estrangeiro, para efeitos, da exclusão prevista no art. 89º da Carta? Apesar de ser a própria Carta a regular a nacionalidade portuguesa, parece preferível a preferência por um conceito específico, elaborado em função do interesse muito especial que subjazia àquele artigo. Se se argumentasse com uma interpretação mais literal do diploma constitucional, sempre seria de responder que o art. 7º regula especificamente sobre quem é cidadão português. Ora o Rei não era cidadão português. Tinha, na Carta, outro tratamento. Por isso,


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A Legitimidade de D. Duarte à letra, as regras do art. 7º não lhe eram directamente aplicáveis. E a analogia não parece inteiramente adequada a suprir a falta de esclarecimento do sentido de estrangeiro usado pelo art. 89º D. Francisco de S. Luís sustentava que o termo estrangeiro tinha, com vista à sucessão no trono, um conteúdo específico, não coincidente com o da lei civil. Era ele de opinião que um português, nascido em Portugal, que se tivesse naturalizado noutro país nem por isso deixava de ser português, para efeitos da Lei Fundamental. E que um estrangeiro que se naturalizasse português, não deixava de ser um estrangeiro, inábil para suceder na coroa portuguesa (ob. cit. p. 141). Essa era a doutrina oficial, visível no Manifesto dos Direitos de Sua Magestade Fidelíssima a Senhora Dona Maria Segunda. «Estrangeiro opõe-se a Natural, isto é, ao que nasceu Português» (2ª edição, 1841, p. 24). Esta interpretação parece a mais conforme à ratio juris do princípio da exclusão do candidato estrangeiro ao trono. Se se admit isse que um estrangeiro, naturalizando -se, pudesse ser rei de Portugal, correr-se-ia o risco da perda da independência. E foi este o grande problema que emergiu em duas crises sucessórias da nossa História agitando os jurisconsultos (em 1385 e em 1580) e que muito contribuiu para o enunciado das regras constitucionais sobre a sucessão régia. Preocupação que ainda perdura na actual Constituição, a qual declara inelegível para a presidência da República quem não seja originariamente português (art. 125º). Deste modo, deverá entender-se que um candidato à sucessão no trono que seja originariamente estrangeiro e que só depois haja adquirido a nacionalidade portuguesa está excluído dessa sucessão.

2.3.2. Por outro lado, não é de aceitar que a chamada «dupla nacionalidade» portuguesa e brasileira atribuída aos cidadãos brasileiros satisfaça os requisitos para que algum destes possa suceder no trono português. A própria Carta, historicamente emergente da separação de soberanias entre Portugal e o Brasil, consagra um nítido afastamento entre a nacionalidade portuguesa e a brasileira, contrastando aí com o texto que fora da Constituição de 1822. No §1º do art. 7º exclui da cidadania portuguesa os cidadãos que fossem brasileiros, apesar de terem nascido portugueses. O brasileiro, ainda que tendo também nacionalidade portuguesa, deve ser considerado estrangeiro para efeitos do art. 90º da Carta Constitucional. Os direitos civis que ele tem, na ordem jurídica portuguesa, são os mais diversos. Mas, como dizia D. Francisco de S. Luís a sucessão dos tronos deve regular-se, não pelas leis civis, mas sim pelas leis e foros particulares de cada nação. E os problemas a cultura e as ligações do brasileiro são, de raiz, dum país que, embora com a mesma língua e um longo passado comum, está separado de Portugal há mais de século e meio. Os interesses do Estado recomendam que se não corra o risco de que na chefia dele se coloque quem não seja português de raiz. 2.4. Condição do casamento de princesa a aprazime nto do Re i e nunca com estrange iro Esta condição, que pode também levar à exclusão duma parente do sexo feminino que se achasse em posição de suceder, tem talvez a sua remota origem na crise do final da 1ª dinastia. O princípio enunciado pela falsa acta das Cortes de Lamego era o de que a filha do Rei, para suceder no trono, não casasse senão com

Ma s, como diz ia D. Francisco de S. Luís a sucessão dos tronos deve regular-se, não pelas leis civis, mas sim pelas leis e foros particulares de cada nação. (…) Os interesses do Estado recomendam que se não corra o risco de que na chefia dele se coloque quem não seja português de raiz.


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Tem sido por vezes s u s c i t a d a u m c o nd ic io na m e nt o da sucessão régia da linha descendente de D. Miguel com base na chamada “lei do banimento”. Esta foi uma lei ordinária, sem na tureza cons tituciona l emitida sob a forma de Carta de Lei em 19 de Dezembro de 1834. (…) Sucede, porém que se trata d uma lei sem natureza constitucional, que não pode prevalecer c o ntr a a r e g ula ç ão d if e r e ntem e nte na fundamental.

português nobre. A Constituição de 1822 estipulava que, se a sucessão caísse em fêmea, esta teria de casar com português e carecia de aprovação das Cortes. A Carta, através do art. 90º, introduziu algumas alterações. Estabeleceu que o casamento teria de ser «a aprazimento do Rei» e nunca com estrangeiro; embora, se não houvesse Rei ao tempo em que se tratasse do casamento, este não poderia efectuar-se sem aprovação das Cortes. Mas a mais significativa alteração é a de que a limitação se aplica, literalmente, apenas à Princesa herdeira presuntiva da coroa. Suscitar-se-ia a dúvida sobre se a letra da Carta não careceria, aí, duma interpretação extensiva, de modo a abranger também a Rainha, já entronizada. Não parece que assim deva ser. Desde logo porque a própria D. Maria II casou duas vezes com estrangeiro; e da segunda vez já falecera seu pai e não careceu de aprovação das Cortes. Depois porque não faria sentido o preceito na exigência do aprazimento do Rei se a noiva fosse já Rainha, pois então seria ela a aprazer a si própria. É de concluir, portanto que, se à data em que sucede, a Princesa não é casada, poderá vir a casar com estrangeiro e o seu casamento não carece de aprovação. Porém, se é casada, para poder suceder tem de ter o aprazimento do Rei; e o marido não pode ser estrangeiro. Não vemos razões para aplicar aqui, ao conceito de estrangeiro, um sentido diferente do que apontámos no número anterior. Quanto ao signif icado de aprazimento do Rei, parece ser o de ter a aprovação do Rei (que pode não ser o pai, mas também, por exemplo, irmão, primo, sobrinho ou tio da Princesa).

Parece de exigir uma aprovação expressa, e não meramente implícita. Não se trata de tirar conclusões de quaisquer factos indirectamente relacionados, que geram a ambiguidade. O texto constitucional não consagraria tão formal exigência se não houvesse uma preocupação de que o aprazimento do Rei fosse manifestado por um modo formal e minimamente solene. A própria fórmula utilizada, pela positiva – é que preciso que o casamento apraza ao Rei e não, simplesmente que não despraza – inculca a necessidade duma clara manifestação explícita da vontade real. Mas é de admitir que tal aprovação possa ser dada a posteriori, isto é, como ratif icação do casamento. Apenas essa aprovação tem de estar dada à data em que se abre a sucessão no trono, sob pena de, por falta desta condição, passar este ao parente imediato. 2.5. O hipotético banime nto Tem sido por vezes suscitada um condiciona mento da sucessão régia da linha descendente de D. Miguel com base na chamada “lei do banimento”. Esta foi uma lei ordinária, sem natureza constitucional emitida sob a forma de Carta de Lei em 19 de Dezembro de 1834. Pelo seu art. 1º «O ex-infante D. Miguel, e seus descendentes são excluidos para sempre do direito de succeder na Corôa dos Reinos de Portugal, Algarves, e seus Dominios». E o seu art. 2º preceituava: «O mesmo ex-Infante D. Miguel, e seus descendentes são banidos do territorio Portuguez, para em nenhum tempo poderem entrar nelle, nem gosar de quaesquer direitos civís, ou politicos …» Sucede, porém que se trata duma lei sem natureza constitucional, que não pode prevalecer contra a regulação diferentemente na lei


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A Legitimidade de D. Duarte fundamental. Por outro lado, a Carta Constitucional de 1826 foi objecto, depois de 1934 de uma reposição e de várias alterações, a saber, por um Acto Adicional em 5 de Julho de 1852, e revisões de 15 de Maio de 1884, de 24 de Julho de 1885, de 3 de Abril de 1896 e de 1 de Agosto de 1899. Em nenhuma delas se alteraram os acima referidos arts. 87º e 88º, apesar de terem sido modificados alguns preceitos do mesmo Título V ao qual pertencem aqueles dois artigos. Em nada se alterou a clareza e universalidade das regras constantes desses arts. 87º e 88º, segundo as quais, por extinção das linhas dos descendentes legítimos de D. Maria II, passaria o trono colateral, preferindo sempre a linha anterior às posteriores. Quer dizer, segundo esses preceitos, não havendo português legítimo descendente de D. Maria II, passaria a coroa à linha anterior dos colaterais, que seria a dos descendentes de D. Pedro IV; mas, não havendo portugueses legítimos descendentes de D. Pedro IV, passaria a coroa à linha seguinte, que era a dos portugueses legítimos descendentes de D. Miguel (o filho varão imediato de D. João VI). Nenhuma restrição a essa regra foi estatuída na Carta Constitucional nem nas suas várias revisões. Mais. Os arts. 86º a 90º da Carta Const it ucional represent am a regulação sistemática da sucessão régia. É essa, de resto, a epígrafe desse capítulo – “Da sucessão régia”. Aí reside a totalidade do sistema de sucessão da coroa, tal como vigorou a partir da vigência da Carta Constitucional até a implantação da República. Trata-se duma regulação “de sistema”, que exclusivamente rege a matéria.

Daí que não pode deixar de concluir-se que, no que toca às normas de sucessão régia, a supramencionada Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834, se não era inconstitucional á partida, foi revogada de sistema pela Carta Constitucional quando foi reposta ou quando foi revista. Não pode sobrepor-se nem muito menos contrariar, na medida em que regule a sucessão régia, os preceitos que regeram tal matéria até 5 de Outubro de 1910. 3. Aplicação aos factos dos princípios adoptados Tendo presentes as regras atrás enunciadas, caberá aplicá-las à situação de facto existente. À data em que faleceu o último Rei de Portugal, D. Manuel II – 2 de Julho de 1932 – não havia descendentes portugueses legítimos, de D. Maria II. A propósito note-se que uma tal Ilda Toledano, que se intitulou a si própria “Maria Pia de Bragança” e fez muito alarido nos anos 50 a 80 do séc. XX, sustentando que seria filha de D. Carlos e reclamando direito à sucessão na Coroa, não poderia ser entendida como incluída nessa categoria. Na verdade, mesmo que ela fosse filha de D. Carlos – o que de todo se discorda, pois a justificação que apresentou não tem a mínima credibilidade sob o ponto de vista histórico – ainda assim, sendo filha adulterina, e portanto, ilegítima, não detinha quaisquer direitos à sucessão no trono. Também em 1932 não havia descendentes portugueses legítimos de D. Pedro IV. Portanto, a sucessão régia, ou seja, a sucessão na qualidade de Pretendente ao trono de Portugal, coube ao descendente português, legítimo, de D. Miguel I que chefiava a sua representação – e esse era D. Duarte Nuno, neto paterno deste.

A propósito note-se que uma tal Ilda Toledano, que se intitulou a si própria “Maria Pia de Bragança” e fez muito alarido nos anos 50 a 80 do séc. XX, sustentando que seria filha de D. Carlos e reclamando direito à sucessão na Coroa, não poderia ser entendida como incluída ne ssa c a te go ria . Na verdade, mesmo que ela fosse filha de D. Carlos – o que de todo se discorda, pois a justificação que apresentou não tem a mínima credibilidade sob o ponto de vista histórico – ainda assim, sendo filha adulterina, e portanto, ilegítima, não detinha q uaisq ue r d ire ito s à sucessão no trono.


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A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados, que a ss im pe rm anece ram , excluídos das regras gerais da sucessão, depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª R e p ú b l ic a , q ue os respeitou. Quando D. Manuel II morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal e correcto destino e transmitiu-os para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa de Bragança – gerida por pessoas nomeadas pelos Governos e cujos rendimentos deixaram de ser fruídos, como deviam, pelo Chefe daquela Casa ou pela Família a quem, com o bens pr ivados , pertenciam.

Tendo sido deferida a sucessão nessa qualidade para D. Duarte Nuno, transmitiu-se por sua morte para seu filho primogénito, também português, o Senhor D. Duarte João Pio. Mas mesmo que se entendesse que a Carta de Lei de 1834 acima citada, permaneceria em vigor – o que de forma nenhuma se aceita pelas razões acima expostas, ainda assim haveria de reconhecer-se que é ao Senhor D. Duarte João Pio quem compete a qualidade de Pretendente ao Trono e sucessor dos Reis portugueses, pois é o descendente português, legítimo, de D. Pedro IV, que ocupa o primeiro lugar nessa linha. Isto, por sua mãe, a Senhora D. Maria Francisca de Orléans e Bragança, filha do Príncipe D. Pedro de Orléans e Bragança (1875-1940), a quem competia a chefia da descendência legítima de D. Pedro IV. E a Senhora D. Maria Francisca foi o mais velho dos filhos desse Príncipe D. Pedro que tiveram filhos portugueses.

morreu, Salazar prepotentemente subtraiu esses bens ao seu normal e correcto destino e transmitiu-os para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa de Bragança – gerida por pessoas nomeadas pelos Governos e cujos rendimentos deixaram de ser fruídos, como deviam, pelo Chefe daquela Casa ou pela Família a quem, como bens privados, pertenciam. D. Duarte não vive pois à conta de rendimentos daquela fundação, como seria seu direito se o ditador os não tivesse confiscado em 1933 por essa insólita arbitrariedade. D. Duarte também não aufere de qualquer fonte pública os seus rendimentos. Nada recebe do erário público. Ao invés: tem aplicado boa parte do seu rendimento pessoal em serviço do País, em causas de grande relevância nacional, como foi, exemplarmente, toda a persistente e intensa actividade que ao longo de anos desenvolveu, quase sozinho, pela causa da liberdade de Timor.

4. As tentativas de atingir D. Duarte As insustentáveis tentativas de algumas criaturas sem qualquer qualificação para dissertar sobre estes temas e para porem em causa estas evidências, têm por vezes resvalado para a pura calúnia relativa ao Senhor D. Duarte. Entre as mentiras que se tentam fazer passar figura a de que D. Duarte viveria à custa do Estado português, ou de dinheiros públicos. Nada de mais torpemente falso. D. Duarte não aufere quaisquer rendimentos da Fundação da Casa de Bragança. E deveria até ter direito a auferi-los. A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados, que assim permaneceram, excluídos das regras gerais da sucessão, depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1ª República, que os respeitou. Quando D. Manuel II

Parecer do Ministério dos Negócios Estrangeiros relativo à Questão Dinástica: Ministério dos Negócios Estrangeiros O Senhor Secretário Geral solicitou ao Departamento de Assuntos Jurídicos que emitisse a sua opinião relativamente ao caso do Sr. Rosário Poidimani e às suas actividades no estrangeiro envolvendo o nome de Portugal e da Casa de Bragança. Solicitado que foi o parecer deste Departamento, cumpre emiti-lo. I. DAS NORMAS DE SUCESSÃO NA CHEFIA DA CASA REAL DE PORTUGAL Cabe, de antemão, precisar as normas que regem a transmissão de títulos nobiliárquicos, em particular aqueles associados à realeza de Portugal, para enfim confrontar


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A Legitimidade de D. Duarte a legitimidade de Rosário Poidimani, por oposição a D. Duarte Pio de Bragança. As regras sobre a sucessão régia, ou neste caso sobre a sucessão na chefia da Casa Real, em Portugal a Sereníssima Casa de Bragança, fazem parte do direito costumeiro internacional, não se encontrando estabelecidas em nenhum texto consolidado, antes emergindo da ordem social europeia e dispersas pelos vários sistemas constitucionais europeus ao tempo das grandes Monarquias Europeias, dos quais hoje sobrevivem apenas alguns de que são exemplo o do Reino Unido, da Espanha, da Dinamarca, da Bélgica, do Luxemburgo, do Mónaco, etc. Em Portugal, algumas dessas normas encontraram expressão escrita nas Constituições Monárquicas Constituição de 1822, Carta Constitucional de 1826 e Constituição Política de 1838. Em 1911, com a primeira Constituição republicana, foram expressamente revogadas todas as disposições constitucionais anteriores, pelo que deixaram de valer na ordem jurídica portuguesa. Não deixam, contudo de servir de referência escrita mas apenas na parte que corresponde às mencionadas normas da tradição dinástica europeia. De tal tradição resulta que: 1. A sucessão da Coroa segue a ordem regular de primogenitura, e representação entre os legítimos descendentes do monarca reinante (ou do chefe da Casa Real, num regime não monárquico), preferindo sempre a linha anterior às posteriores e, na mesma linha, o grau de parentesco mais próximo ao mais remoto e, no mesmo grau, o sexo masculino ao feminino e, no mesmo sexo, a pessoa mais velha à mais nova. 2. Extinta a linha da descendência do monarca reinante (ou do chefe da Casa Real num regime não

monárquico) passará a Coroa às linhas colaterais e, uma vez radicada a sucessão em linha, enquanto esta durar, não entrará a imediata. 3. A chefia da Casa Real, bem como a Chefia do Estado, só poderá ser assumida por pessoa de nacionalidade portuguesa originária. 4. Extintas todas as linhas dos descendentes e colaterais, caberá ao regime (Cortes, Parlamento, Conselho da Nobreza ou Povo) chamar à chefia da Casa Real uma pessoa idónea a partir da qual se regulará a nova sucessão. 5. A descendência do chefe da Casa Real nascida fora do seu casamento oficial - entenda-se canónico - está afastada da sucessão da Coroa, salvo por intervenção expressa do regime (Cortes, Parlamento, Conselho da Nobreza ou Povo) e nunca do próprio monarca. 6. Mesmo em exílio, a sucessão real mantém-se, com todos os privilégios, estilos e honras que cabem ao chefe da Casa Real não reinante. II. DA SUCESSÃO NA CHEF IA DA CASA REAL DE BRAGANÇ A De acordo com aquele direito costumeiro, a sucessão na chefia da Casa Real Portuguesa deu-se do seguinte modo: - D. Pedro IV de Portugal, I do Brasil, irmão de D. Miguel, abdicou do Trono Português. - D. Maria II, seguinte na linha de sucessão, assumiu o trono. - A descendência de D. Maria II manteve o Trono até 1910, aquando da Implantação da República. - D. Manuel II, último Rei de Portugal, morreu no exílio, sem descendentes, nem irmãos legítimos. - A linha colateral mais próxima, mantendo a nacionalidade portuguesa, de acordo com as normas sucessórias era a linha que advi-

- D. Manuel II, último Rei de Portugal, morreu no exílio, sem descendentes, nem irmãos legítimos. - A linha colateral mais próxima, mantendo a nacionalidade portuguesa, de acordo com as normas sucessórias era a linha que advinha de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. Desse modo, o filho de D. Miguel, Miguel Maria de Assis Januário tornou-se legitimamente o novo chefe da Casa Real de Bragança por sucessão mortis causa de D. Manuel II. - Ainda no exílio, sucedeu a D. Miguel [agora, de Bragança], seu único filho varão D. Duarte Nuno de Bragança e a este o actual chefe da Casa Real, D. Duarte Pio de Bragança.


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Porque alguns defendiam que se mantinha em vigor a d is po s iç ão da Constituição de 1838 que excluía da sucessão a linhagem de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, e pa ra e x p l ic i ta m e n te reconhecer essa linha colateral como seguinte na sucessão a D. Manuel II, este ex-monarca e D. Miguel Maria de Assis Januário assinaram um d oc umento, co nhe cido como o Pacto de Dover, onde o primeiro reconhecia a legitimidade para a sucessão ao filho de D. Miguel, D. Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto era j u r i d i c a m e n t e desnecessário, pois com a Cons tituição de 1911 haviam sido revogadas to das as dispo siç ões constitucionais anteriores.

nha de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. Desse modo, o filho de D. Miguel, Miguel Maria de Assis Januário tornou-se legitimamente o novo chefe da Casa Real de Bragança por sucessão mortis causa de D. Manuel II. - Ainda no exílio, sucedeu a D. Miguel [agora, de Bragança], seu único filho varão D. Duarte Nuno de Bragança e a este o actual chefe da Casa Real, D. Duarte Pio de Bragança. - Em 1950, por Lei da Assembleia Nacional, a Família Real portuguesa foi autorizada a retornar ao território nacional. Porque alguns defendiam que se mantinha em vigor a disposição da Constituição de 1838 que excluía da sucessão a linhagem de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, e para explicitamente reconhecer essa linha colateral como seguinte na sucessão a D. Manuel II, este ex- monarca e D. Miguel Maria de Assis Januário assinaram um documento, conhecido como o Pacto de Dover, onde o primeiro reconhecia a legitimidade para a sucessão ao filho de D. Miguel, D. Duarte Nuno. Na verdade tal Pacto era juridicamente desnecessário, pois com a Constituição de 1911 haviam sido revogadas todas as disposições constitucionais anteriores. III. DA LEGITIMIDADE NO USO DO TÍTULO A QUE SE ARROGA ROSÁRIO POIDIMANI O Sr. Rosário Poidimani alega ser o legítimo sucessor do último Rei de Portugal, D. Manuel II e, como tal, pretendente ao trono de Portugal e verdadeiro chefe da Casa Real de Bragança. Invoca essa sua legitimidade com base nos seguintes factos: - No exílio, o último Rei de Portugal, D. Manuel II, entretanto casado com a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern- Sigmar ingen, veio a falecer em 1932 sem deixar

descendentes. - Terá, entretanto, sobrevivido uma filha ilegítima do Rei D. Carlos, pai de D. Manuel II, chamada D. Maria Pia de Saxónia Coburgo de Bragança, nascida em 1907, também conhecida por Hilda Toledano. - Esta filha ilegítima terá sido baptizada por vontade de seu pai, o Rei D. Carlos, numa paróquia de Alcalà de Henares, perto de Madrid, e o mesmo soberano terlhe-á atribuído, por carta, todas as honras, privilégios e direitos dos Infantes de Portugal. - Não tendo quaisquer outros sucessores, e considerando-se legítima pretendente ao trono português, D. Maria Pia de Bragança terá abdicado dos seus direitos em favor de Rosário Poidimani, por meio de documento presenciado por notário. III. A. Da bastardia Como referido anteriormente, a sucessão à chefia da Casa Real faz -se de acordo com as normas costumeiras que afastam da mesma sucessão a descendência ilegítima, out rora designada bastardia. Assim, mesmo provada a existência de uma f ilha ilegítima de El-Rei D. Carlos, mesmo por vontade daquele monarca, ela não poderia jamais suceder na chefia da Casa Real. Simili modo, quando El- Rei D. João II, que viria a morrer sem descendência legít ima, tentou “legitimar” seu filho bastardo, D. Jorge de Lencastre, não o conseguiu, tendo-lhe sucedido no trono o seu primo e cunhado D. Manuel I, Duque de Beja. De facto, o único descendente real ilegítimo que conseguiu subir ao Trono Português foi D. João I. Seu meio-irmão, D. Fernando I deixara como único herdeiro legítimo uma filha, D. Beatriz, casada com o Rei de Castela. Essa ainda chegou a ser Rainha de Portugal, mas por


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A Legitimidade de D. Duarte fortes oposições internas por temor de que Portugal perdesse a independência com aquela união real dos tronos de Portugal e de Castela, e após um sangrento interregno, tomou o Trono o Mestre de Avis, D. João I, bastardo de El- Rei D. Pedro I, com o apoio legitimante da Nobreza e do Povo portugueses. III.B. Do direito a outros títulos Na tradição dinástica europeia, e designadamente portuguesa, era prática reiterada que o monarca, quando fosse o caso, conferisse aos seus descendentes ilegítimos outros títulos para que, não obstante não poderem suceder-lhe na coroa, não ficassem de todo desligados da sua hereditariedade real. O próprio 1º Duque de Bragança era filho ilegítimo do mencionado Rei D. João I. D. Maria Pia, pretensa filha ilegítima de El-Rei D. Carlos, não reivindicou o uso de qualquer outro título que o Rei lhe tivesse concedido, porque apenas esse título poderia ter sido transmit ido ao Sr. Rosário Poidimani, com o aval do Chefe da Casa Real. III.C. Do acto de abdicação Mais se esclarece que quando u m titular abdica, não o pode fazer designando um sucessor. A designação do sucessor cabe às normas dinásticas vigentes. Assim, sem conceder que D. Maria Pia de Bragança fosse a herdeira de D. Manuel II, o acto de abdicação só seria válido per se, sem a designação de um sucessor cuja relação de parentesco com a abdicante é, minime, obscura. Mas, visto não ser D. Maria de Bragança a legítima sucessora, em nada adianta o acto de abdicação e menos ainda o facto de ter sido lavrado em notário que, não obstante a validade formal, é nulo porque carece de legitimidade.

IV. DO RECONHEC IMENTO E DO “APANÁGIO” À CASA REAL DE BRAGANÇ A E AO SEU LEGÍTIMO TITULAR Refere o Sr. Rosário Poidimani, uma comunicação do Consulado Geral de Milão, Março de 1992, em que se informa que D. Duarte Pio de Bragança usufrui de uma habitação oferecida pelo Governo da República Portuguesa (”usuf ruisce di una abitazione messa a sua disposizione dal Governo della Repubblica Portoghese”). Igualmente numa comunicação do mesmo Consulado, de Julho de 2005, se afirma que ao mesmo herdeiro da Casa Real é conferido também o respectivo apanágio (”anche del relativo appannaggio”). Por fim, em nome dos cidadãos portugueses, inquere o Sr. Rosário Poidimani, na mesma carta de Fevereiro de 2006 em que refere as anteriores comunicações, ao abrigo de que norma tem o Senhor de Santar direito ao uso de uma casa paga pelos contribuintes portugueses (”di quale provedimento il signor di Santar avrebbe in uso una casa a spese dei contribuenti portoghesi”) e em que capítulo de despesa [do Orçamento do Estado] se encontra aquele apanágio, qual o montante e se é conferido a título vitalício ou a prazo (”in quale capitolo di spesa sai inserito tale appannaggio, a quanto ammonta e se sia a titolo vitalizio o limitato nel tempo”). Embora de pouca relevância prática, impõe-se esclarecer a questão. De facto, a mencionada comunicação de 1992 informava erroneamente sobre a habitação do Duque de Bragança. Na verdade, o Estado Português nunca suportou qualquer habitação do herdeiro da Casa Real. Houve, de facto, uma imposição do Chefe do Governo, António de Oliveira Salazar, em 1950, para que a Fundação da Casa de Bragança - fundação privada de utilidade pública

Na verdade, o Estado Português nunca suportou qualquer habitação do herdeiro da Casa Real. Houve, de facto, uma imposição do Chefe do Gove rno , Antó nio de Oliveira Salazar, em 1950, para que a Fundação da Casa de Bragança f unda ção pr ivada de utilidade pública para testemunhar a história e manter os bens da Casa de Bragança após a morte de D. Manuel II, em cujo conselho de administração se e nc on t r a um representante do Governo - aquando do retorno da F a m í l i a R e a l , pr ovide ncias se a sua condigna instalação em Por tuga l, prec isamente para não ser o Estado a suportar tais despesas. Foi -lhes então cedido, a custas da fundação, o Palácio de S. Marcos em C o im b r a , on de se mantiveram até 1974.


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No conturbado período pós -revolução de 25 de Abril de 1974, o Duque de B r a g a nç a , p r o c ur o u as segu rar a s ua permanência adquirindo uma vivenda perto da Vila de Sintra que permanece, hoje, a sua residência e sede da Casa Real de Bragança. Esta casa e espaços circundantes, são propriedade pessoal do mesmo D. Duarte Pio de Bragança.

para testemunhar a história e manter os bens da Casa de Bragança após a morte de D. Manuel II, em cujo conselho de administração se encontra um representante do Governo - aquando do retorno da Família Real, providenciasse a sua condigna instalação em Portugal, precisamente para não ser o Estado a suportar tais despesas. Foi-lhes então cedido, a custas da fundação, o Palácio de S. Marcos em Coimbra, onde se mantiveram até 1974. No cont urbado período pósrevolução de 25 de Abril de 1974, o Duque de Bragança, procurou assegurar a sua permanência adquirindo uma vivenda perto da Vila de Sintra que permanece, hoje, a sua residência e sede da Casa Real de Bragança. Esta casa e espaços circundantes, são propriedade pessoal do mesmo D. Duarte Pio de Bragança. Quanto ao apanágio, entendido como tributo monetário, é de todo infundada a sua existência. O Estado Português nunca conferiu qualquer dotação orçamental para a manutenção da Casa de Bragança. Qualquer despesa ou remuneração da parte do Estado para com os Duques de Bragança foi e será sempre a título de serviços prestados em nome de Portugal, designadamente pela sua representação política, histórica ou diplomática. No que concerne ao apanágio, com o signif icado de privilégio, regalia ou tratamento de maior dignidade, a República Portuguesa não promove a distinção de classes, pelo contrário, propugna a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Por outro lado, o Estado Português, que é hoje uma República com quase 100 anos, viveu os anteriores 8 séculos de História de Portugal em regime de monarquia. A Casa de Bragança e o seu legítimo titular são, no presente, her-

deiros e sucessores da Casa que presidia àquele regime. Como herdeiros da t radição monárquica, é praxis do Estado Português que os Duques de Bragança testemunhem presencialment e os mais import ant es momentos da vida do Estado como algumas cerimónias oficiais, designadament e aquelas que envolvem a participação de membros da realeza mundial. De igual modo, são os Duques, várias vezes, enviados a representar o Povo Português em eventos de natureza cultural, humanitária ou religiosa [católica] no estrangeiro, altura em que lhes é conferido o Passaporte Diplomático ao abrigo do n.º 3 b) e do n.º 5 do art.º 2.º do Decreto-Lei nº 70/79, de 31 de Março (Lei dos Passaportes Diplomáticos). Importa, ademais, esclarecer que ao reconhecimento do Estado Português, se junta o reconhecimento tácito das restantes casas reais da Europa e do Mundo, com as quais a legítima Casa de Bragança partilha laços de consanguinidade, reconhecimento esse que encontra expressão nas constantes solicitações dessas mesmas casas para que os Duques de Bragança se associem aos seus mais dignos eventos. V. DO DIREITO À UTILIZAÇÃO DE OUTROS TÍTULOS, DO DIREITO A OSTENTAR BRASÃO, DA MES TRIA DA S ORDENS NOBILIÁRQUICAS E HONORÍF ICAS MONÁRQUICAS E DO TRATAMENTO POR “SUA ALTEZA REAL” A Guardia di F inanza em Gallarate, Itália, numa comunicação para o Consulado Geral de Portugal em Milão, de Março de 2006, procura saber se são reconhecidos ao Sr. Rosario Poidimani, pela República Portuguesa, os títulos de “Principe de Saxónia Coburgo de Bragança”, o tratamento de “Sua Alteza Real”


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A Legitimidade de D. Duarte e o título de “Pretendente ao trono de Portugal e Chefe da Casa Real de Portugal”, com o direito de ostentar o “brasão”, o direito de transmitir o título e outros direitos conexos ao Mestrado das Ordens dinásticas da Real Casa de Portugal. Pois bem, a utilização, em Portugal, do título de Príncipe respeita apenas ao sucessor do legítimo chefe da Casa Real de Bragança. Por tradição esse sucessor - hoje, D. Afonso de Santa Maria, filho primogénito de D. Duarte Pio de Bragança - adquire, com o nascimento, o título de Príncipe da Beira. De todo o modo, nunca seria um Príncipe da linhagem de SaxeCoburgo- Gotha porque tal linhagem terminou em Portugal com a morte de D. Manuel II. Ainda, pelo direito dinástico internacional e por tradição, o título de Presuntivo Herdeiro ao Trono de Portugal está reservado para o uso pessoal do Duque de Bragança, como verdadeiro sucessor dos Reis de Portugal. Do mesmo modo, a mestria das ordens nobiliárquicas e honoríf icas monárquicas compete ao legítimo sucessor dos Reis de Portugal, o Duque de Bragança. Apenas a ele compete conferir foros de nobreza e títulos honoríficos. Deve, porém, ressalvar-se que, para efeitos de documentação oficial, apenas são reconhecidos pelo Estado os foros e títulos conferidos antes de 5 de Outubro de 1910 e desde que o direito ao seu uso seja devidamente provado, nos termos do Decreto n.º 10537, de 12 de Fevereiro de 1925. Quanto ao tratamento por “Sua Alteza Real”, o Protocolo de Estado Português respeita as regras de deferência social e o protocolo internacional, pelo que nas cerimónias em que participam os Duques de Bragança, e na corres-

pondência oficial que lhe é remetida, é-lhes conferido o mesmo estilo de “SS.AA.RR.”. No que concerne a ostentação de brasões, ou armas de família, desde 1910 o regime encontra-se liberalizado em Portugal. Para efeitos de protecção jurídica, os brasões ou armas de família são equiparados a símbolos, logótipos ou marcas, devendo todavia respeit ar as re gras da não confundibilidade e da leal concorrência. VI. DA CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICAMENTE VINC ULANTES POR QUEM USA TÍTULO REAL OU NOBILIÁRQUICO Ainda que se considere provado, nos termos anteriormente referidos, o direito a usar um título nobiliárquico, o mesmo Decreto n.º 10537 estabelece que a intervenção em acto, contrato ou documento, que haja de produzir direitos e obrigações, é antes de mais exigido o nome civil. Se a esse se juntar a referência honoríf ica ou nobiliárquica, deverá de novo ser provado o direito ao seu uso. VII. DE IUS LEGATIONIS E DO RE C O NH E C IM E NTO C OMO SUJEITO DE DIREITO INTERNAC IONAL Consta da documentação fornecida que o Sr. Rosário Poidimani, e respectivos caudatários, têm aberto “representações diplomáticas” da Real Casa de Portugal, pelo território italiano. A capacidade de enviar e receber representantes diplomáticos, ou Ius Legationis, pertence exclusivamente ao Estados e às Organizações Internacionais. São eles os principais actores do Direito Internacional. O Ius Legationis é prioritariamente uma competência dos Estados, que são o substrato da Comunidade Internacional. A eles, Estados, cabe desenvolver relações amisto-

(…) a utilização, em Portugal, do título de Príncipe respeita apenas ao sucessor do legítimo chefe da Casa Real de Bragança. Por tradição esse sucessor - hoje, D. Afonso de Santa Maria, filho primogénito de D. Duarte Pio de Bragança a d q uir e , com o nascimento, o título de Príncipe da Beira.


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Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na q ualida de de contra interessados) associar-se, nos term os do Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma nova ac ção de responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e nãopatrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real d e B r a g a n ç a ; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.

sas com as outras nações, independentemente da diversidade dos seus regimes constitucionais e sociais (Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, celebrada em 18 de Abril de 1961). O Ius Legationis e o Ius Tractum (Direito de concluir Tratados), são as competências internacionais que mais evidentemente resultam da soberania dos Estados. Mas a formação das Organizações Internacionais e a evolução da comunidade internacional implicou em grande parte a transferência de algumas dessas faculdades soberanas, e a partilha de outras. Dotadas dessa soberania transferida pelos Estados, as Organizações Internacionais já podem, hoje, celebrar tratados e receber ou enviar representações diplomáticas. Ulteriormente, tem também ganho importância o indivíduo como sujeito de Direito Internacional, mas com evidentes limites: não dotado de soberania o indivíduo não possui as competências clássicas dos Estados. Ele é mero sujeito de direito Internacional na medida em que direitos e deveres nascidos de convenções internacionais, celebradas por Estados e/ ou Organizações Internacionais, recaiam na sua esfera pessoal. Porque nem o Sr. Rosário Poidimani, nem a sua “Real Casa de Portugal” dispõem de soberania, não lhes pode ser reconhecido qualquer Ius Legationis. E ainda que, como parece ser seu plano, pretenda instalar o seu “Estado” numa ilha do Mar Adriático, tal pretensão parece não ser exequível pois a constituição de um Estado está sujeita ao cumprimento dos seguintes requisitos: - existência de um Povo, cultural, histórica e axiologicamente organizado; - existência de um Território, independente. A compra de um território à Croácia, não confere inde-

pendência ao mesmo; - existência de um Governo, organizado; - efectiva conexão entre os três anteriores elementos. Ainda que a “Real Casa de Portugal” venha a formar o governo, se o povo é croata, não parece haver qualquer ligação entre os dois. Cumpridos aqueles requisitos, a soberania está ainda dependente do reconhecimento da comunidade internacional. VIII. DA OFENSA AO BOM NOME DE PORTUGAL E À CASA DE BRAGANÇA Do que é dado conhecer pela documentação fornecida, encontra -se em curso uma acção penal na qual é arguido principal o Sr. Rosário Poidimani, nas competentes sedes jurisdicionais italianas, pela alegada prática dos crimes de fraude, evasão fiscal, coacção, burla, extorsão e mesmo usurpação de funções públicas. Não obstante a acção penal em curso, a actuação como “Duca di Bragança”, Chefe da “Real Casa de Portugal” e “Príncipe de Saxónia de Coburgo e de Bragança”, e de, por esse meio, se ter feito passar por representante do Estado Português, ao ponto de ter, inclusive, aberto “Consulados” da “Real Casa de Portugal”, conferiu fé pública aos seus actos e revelou-se lesiva para o bom nome de Portugal e da legítima Casa de Bragança. Por outro lado, no que concerne à apropriação ilegítima do título de Duque de Bragança, entende-se e é nesse espírito que a Republica Portuguesa tem mantido a legislação sobre o uso de títulos nobiliárquicos (Decreto do Governo n.º 10537, de 12 de Fevereiro de 1925) - que os títulos ou forais correspondem a antigas tradições de família, pelo que elementos importantes da identidade pessoal e familiar. Mesmo em regime republicano, não proteger os legí-


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A Legitimidade de D. Duarte timos titulares do uso ou apropriação indevida dos seus títulos implica uma violação da norma prevista no art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa (direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem.). Acresce que o Sr. Rosário Poidimani tem ostentado um brasão que, até 1910, correspondeu ao brasão do Chefe de Estado de Portugal, acção que parece configurar um uso abusivo e ilegítimo de símbolos da soberania nacional, previsto e punido pelo Código Penal no art.º 332.º. De acordo com as considerações anteriores, considera-se conveniente, salvo melhor opinião, o Estado Português constituir advogado, através da Embaixada de Portugal em Roma, para que através desse mandatário, o Estado se associe, e, querendo, a Casa de Bragança na qualidade de contrainteressado, à acção penal em curso, nos termos dos números 3 e 4 do art.º 5.º do Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, que regula a compet ênc ia jurisdic ional em matéria civil e comercial, com o intuito de obter reparação dos danos de que resultou o desprestígio do nome de Portugal, da sua história e tradição, designadamente danos não-patrimoniais e patrimoniais (despesas administrativas, honorários dos advogados, etc.). E, se a lei italiana previr a protecção da imagem ou da honra do nome de um Estado ou dos seus símbolos históricos, ou de uma entidade histórica como a Casa de Bragança, possa, salvo melhor entendimento, ser despoletado o processo conducente à punição por violação dessas normas. Se, por fim, após terem sido encerrados os seus “consulados” e ter sido condenado na reparação

dos danos mencionados, o Sr. Rosário Poidimani insistir em prosseguir as suas actividades ilícitas e em int itular-se ilegiti mamente Duque de Bragança e Chefe da “Real Casa de Portugal” (cuja propositada semelhança com Casa Real de Portugal ou de Bragança conduz ao erro sobre a legitimidade daquela) configurará o crime de desobediência previsto pelo direito penal italiano e português.

IX. CONCLUSÃO Face ao que precede, conclui-se nos seguintes termos: - Não obstante ser Portugal uma República, o direito à sucessão na chefia da casa real não-reinante continua a ser regulado pelo direito consuetudinário internacional; - O Estado Português reconhece, de acordo com aquele direito consuetudinário, que a Casa Real de Bragança e o seu chefe, o Sr. D. Duarte Pio, Duque de Bragança, são os legítimos sucessores dos Reis de Portugal. A esse reconhecimento, associa-se o reconhecimento tácito das restantes Casas Reais do mundo; - Mesmo reconhecida oficialmente, a Casa de Bragança não tem qualquer capacidade de representação do Estado que não lhe tenha sido expressamente e ad hoc concedida. Não é, igualmente um sujeito de Direito Internacional dotado de soberania, pelo que não detém a faculdade de receber e enviar representações diplomáticas. - A actuação do Sr. Rosário Poidimani em Itália, designadamente a prát ica de crimes em nome da sua “Real Casa de Portugal” revelou-se lesiva para o nome de Portugal e para a honra da Casa Real de Bragança, desrespeitosa para a história e para os interesses do país e abusiva no uso dos símbolos e títulos outrora do chefe de estado de Portugal que agora pertencem à legít ima Casa Real de Bragança. Salvo melhor opinião, consider-se conveniente para o Estado Português (e igualmente para a Casa Real de Bragança na qualidade de contra-interessados) associarse, nos termos do Regulamento do Conselho 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, à acção penal em curso em Itália, se tal ainda for possível, ou intentar uma nova acção de responsabilidade civil pelos danos patrimoniais e não-patrimoniais que implicou a lesão da imagem, do nome e da honra do Estado Português e da Casa Real de Bragança; eventualmente, se a lei italiana o previr, despoletar igualmente uma acção penal com vista à punição por ultraje à imagem e aos símbolos da soberania de um Estado.



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A República vista à lupa...

República Velha António José Telo,

A República e os títulos nobiliárquicos Carlos Bobone

Qual e a coisa qual é ela que entra pela porta e sai pela janela? Nuno Resende Re pública Velha A proclamação da República surge em 1910 como um fenómeno estranho e bizarro, que apanha as capitais da Europa desprevenidas. O 5 de Outubro foi um movimento da capital, alargando-se no máximo a um arco de pequena dimensão em seu torno, onde se inclui Almada e Loures, que com muito boa vontade se pode prolongar até Setúbal e Alpiarça. No resto do país, o regime foi proclamado literalmente ''por telegrama'', na premonitória expressão de João Chagas, a mais brilhante pena de propagandista ao serviço dos republicanos. Mas fora de Lisboa estava 92% da população, num país predominantemente rural,[1 ] onde o sector primário ocupava 56% da população activa, enquanto a indústria activa reunia só 21% e, destes, só cerca de 3,5% (85 000 trabalhadores) estava em unidades com mais de 50 empregados, que eventualmente mereciam a classificação de fábricas. A República era a obra de uma minoria urbana activa, representada por uma frente de várias organizações, onde o elemento básico para a revolução foi a Carbonária, embora a direcção política pertencesse ao directório do Partido republicano, que não aceitou in-

cluir qualquer elemento da Carbonária no Governo Provisório. A República era sem dúvida um regime frágil, sem apoios externos significativos, com o permanente machado da ameaça espanhola sobre a sua cabeça, como a obra de Hipólito de la Torre muito bem prova (ver nomeadamente Conspiração contra Portugal. As Relações Políticas entre Portugal e a Espanha em 1910-1912, Lisboa, 1978, na Encruzilhada da Grande Guerra, Portugal-Espanha, 1913-1919, Lisboa, 1980). Era um regime que, em resumo, se baseou na aplicação bem sucedida de uma estratégia política de conquista e manutenção do poder pelo Partido De mocrático. [2 ] Esta estratégia passava pela marginalização dos partidos republicanos conservadores que não conseguiram criar uma resposta à altura da habilidade política de Afonso Costa, pela manutenção de uma relação muito particular com o movimento operário (repremido quando se radicalizava, mas imprescindível para aguentar o poder republicano nas alturas de crise), pela passividade do mundo rural, pela vigilância e contenção do corpo de oficiais do Exército, [3 ] pela ampla divisão dos adversários políticos e pela conquista do apoio mínimo da Ingla-

O 5 de Outubro foi um movimento da capital, alargando-se no máximo a um arco de pequena dimensão em seu torno, onde se inclui Almada e Loures, que com muito boa vontade se pode prolongar até Setúbal e Alpiarça. No resto do país, o regime foi proclamado literalmente ''por te le grama '', na premonitória expressão de João Chagas, a mais b r il ha n te p e na de propagandista ao serviço dos republicanos.


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A República vista à lupa... terra,[4 ] imprescindível para a contenção das ambições espanholas na Europa, e das alemãs e das sul -africanas no império. Todos estes elementos necessários para a equação política que mantinha o partido democrático no poder eram f rágeis, o que fazia que as crises fossem permanentes. A instabilidade passa a ser a palavra-chave de um aparelho central do Estado enfraquecido e incapaz de conter ou reprimir as recentes manifestações de mal-estar social. [...].

Assim foi possível chegarse a es ta situação , imprevisível segundo os cânones das classificações políticas: no ano de 1914 a polícia municipal de Lisboa, cumprindo ordens dadas por um Visconde, cerca as instalações de um dos mais c r e d e nc ia d o s j o r na is republicanos, “A Lucta”, proibindo a distribuição e circulação deste periódico. V iv ia -s e em p le na república radical, regime cujas características não se descrevem facilmente.

O período final da Grande Guerra pode ser entendido como um dos vários abalos conjunturais de uma crise mais longa do poder do Estado que se manifesta de forma aberta desde 1890 e que só será parcialmente superada nos anos 30. Em termos muito simples, podemos dizer que se trata da crise da transição de uma democracia liberal elitista, que marca o século XIX, para uma democracia de massas e urbana que ainda não tem condições de funcionar de forma a garantir a estabilidade política numa sociedade como a portuguesa. São, em resumo, os abalos da transição de um tipo de regime típico da Europa do século XIX para um outro, característico da Europa desenvolvida do século XX. O problema é que a ''democracia de massas'' exige condições sociais, económicas e de mentalidade que não existem no Portugal de começos do século XX. As ''ditaduras'' de D. Carlos, a República, o Sidonismo e até o Estado Novo, são manifestações desta longa transição de quase um século (1890-1974) entre dois tipos de democracia. O Estado Novo, no entanto, é já a superação da crise do poder do Estado, na medida em que assegura durante 48 anos o funciona mento minimamente estável da estrutura política que edifica.

[1] Mais de três quartos da população portuguesa viviam em zonas rurais em 1910. As duas únicas cidades que mereciam esse nome eram Lisboa e o Porto. [2] O autor que melhor estudou e definiu essa estratégia foi Vasco Pulido Valente (O Poder e o Povo, Lisboa, 1976); A República Velha 1910-1917, Lisboa,1997, embora a sua vontade de realçar o corte com a visão de propaganda o tenha levado a apresentar a República como uma feroz ditadura jacobina. Numa opinião pessoal, há sobretudo laços de continuidade entre os dois regimes, apesar das diferenças de forma, nomeadamente nos métodos de manter a oposição nos limites do admissível. Ambos eram democracias liberais e elitistas, típicas do século. [3] Vários autores estudaram a relação peculiar entre a República e as Forças Armadas. Realço a obra de José Medeiros Ferreira O Comportamento Político dos Militares, Lisboa, 1992. [4] A Inglaterra demorou mais de um ano a reconhecer o novo regime num processo difícil e complicado.

A Re pública e os Títulos Nobiliárquicos Os apologistas da primeira república (David Ferreira, por exemplo) mencionam, entre a grandiosa obra realizada pelo governo provisório, a abolição dos títulos nobiliárquicos. Escapa-lhes a efémera duração desta medida: menos de dois meses. Os títulos de nobreza, abolidos em 15 de Outubro de 1910 (Diário do Governo, nº 11, de 18 de Outubro de 1910), são restabelecidos em 2 de Dezembro do mesmo ano: aqueles que provarem o seu direito ao uso de títulos nobiliárquicos “podem continuar a usá-los; mas nos actos que tenham de produzir direitos ou obrigações, será necessário o emprego do nome civil para que esses actos tenham validade” (Diário do Governo, nº 60, de 15 de Dezembro de 1910). Alguns titulares que, por terem aderido à república, como o Visconde da Ribeira Brava, ou por serem funcionários públicos, como o Visconde de Faria, ocuparam postos de elevada responsabilidade na hierarquia do estado republicano, mantiveram-se no uso


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A República vista à lupa... dos seus títulos, mesmo quando desempenhavam funções oficiais. Eram tratados pelas autoridades do novo regime, em todas as circunstâncias, segundo a sua categoria nobiliárquica, e os diplomas que os nomearam para altos cargos, como o de governador civil de Lisboa ou o de cônsul de Portugal em várias cidades, não esqueciam a deferência devida a estes titulares, reconhecendo-lhes o título que haviam recebido da monarquia. Assim foi possível chegar-se a esta situação, imprevisível segundo os cânones das classificações políticas: no ano de 1914 a polícia municipal de Lisboa, cumprindo ordens dadas por um Visconde, cerca as instalações de um dos mais credenciados jornais republicanos, “A Lucta”, proibindo a distribuição e circulação deste periódico. Vivia-se em plena república radical, regime cujas características não se descrevem facilmente. Qual é coisa, qual é e la, Que entra pela porta e sai pela jane la? Afonso Costa não é, como escreveu A.H. de Oliveira Marques, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses. É, com certeza, uma das figuras mais ridículas e abjectas da História de Portugal, epítome do que constituiu a I República, ou seja, um regime de valetudo, de ameaças, de extorsões, de perseguições e ódios. Afonso Costa jamais foi querido. Foi sempre temido, odiado, repudiado e no fim respeitado, pois ser amado significava perder a força necessária à consolidação da sua obra. A República Portuguesa, sobretudo nos seus defeitos (sim, porque não podemos esconder-lhe algumas virtudes) foi da sua lavra. Desde a tentativa de erradicação da Igreja Católica, às sovas que deu ou mandou dar aos seus opositores, passando pelos pequenos

furtos ou os grandes roubos em que esteve envolvido, sem qualquer pejo, embaraço ou vergonha. Como escreveu Fernando Pessoa: «Não podendo Afonso Costa fazer mais nada, é homem para mandar assassinar. Tudo depende do seu grau de indignação.». Ora, a indignação de Afonso Costa teve vários graus, tantos ou mais do que aqueles que subiu na hierarquia da Maçonaria que o acolhia com fraternidade. Aliás, a raiva deste paladino da República nunca foi elitista, faça-se-lhe justiça: tanto se dirigia a monárquicos como a republicanos, dependendo de quem se atrevia a fazer-lhe frente. Político experimentado dos últimos anos do Rotativismo e da experiência do Franquismo, A. Costa sabia uma coisa: para governar um país como Portugal, a Democracia só podia vir depois. Mais, o primeiro passo para mandar nos portugueses, não é suspender o Parlamento, ou calar a Imprensa, é alimentar o mais possível o caciquismo e os clientelismos. Por isso, com uma mestria nem sequer igualada pelo seu sucessor das Finanças a partir de 1926, rodeou-se da família, criando uma Dinastia de Costas (a expressão aparece na sua correspondência), leal, forte, incorruptível (na qual a sua mulher teve um papel fundamental, mesmo apesar de às mulheres a República ter negado o direito ao voto), distribuiu benesses aos mais próximos, amigos ou inimigos, mantendo-os no bolso como qualquer bom gangster o faria. Contudo, Costa tinha um lado medroso que faz dele esse político tão extraordinário e vivo da nossa História. Rodeava-se da púrria (adolescentes vadios e marginais a quem oferecia bombas e armas para assustar a população) e ele próprio manejava a pólvora como ninguém; por outro lado era inca-

Afonso Costa não é, como escreveu A.H. de Oliveira Marques, o mais querido e o ma is od iad o d os Po r tug uese s. É, com certeza, uma das figuras mais ridículas e abjectas da História de Portugal, epítome do que constituiu a I República, ou seja, um regime de vale-tudo, de ameaças, de extorsões, de perseguições e ódios.


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Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir prender ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apupado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um atentado, apenas um curto -circuito…estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivinha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela?

incapaz de enfrentar um opositor num frente a frente. E tinha medo, muito medo, do próprio terror que lançara. Quando, em 1917, Sidónio o mandou ir prender ao Porto andou escondido em guarda-fatos e dali saiu apupado por uma fila de mulheres. Passou vexames inacreditáveis: viu a sua casa ser esbulhada de alguns dos objectos que ele tinha furtado nos Palácios Reais e um dia de Julho de 1915, seguindo num eléctrico atirou-se pela janela fora ao som e à vista de um clarão que pensava vir de uma bomba. Não fora um atentado, apenas um curto-circuito… estatelou-se no chão de onde foi levantado pelos transeuntes em estado grave e, durante meses e anos a fio, Lisboa transformou esta cena patética numa adivinha popular: Qual é coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela? Afonso Costa participou em negociatas e estranhos casos de favorecimento. Desapareceram processos durante o seu ministério na Justiça e não poucas vezes viu o Parlamento envo lvêlo na “roubalheira” de que fala Raul Brandão e na qual políticos e militares participavam. Em França um banqueiro virou-se para António Cabral, ex-ministro da Monarquia perguntando-lhe: “Conhece um tal de Afonso Costa, em Portugal”. António Cabral disse que sim, que o conhecia bem… ao que o capitalista respondeu – “Pois deve ser um dos homens mais ricos do seu país, dada a quantia que possui na conta que por cá abriu…” Nada o detia. Para além de manipular a legislação a seu favor (algo que facilmente podia fazer dado que controlava, a partir da proeminência do seu Partido Democrát ico, veja-se o

Caso das Binubas, de que hoje ninguém fala…) executava malabarismos financeiros, como o que envolveu a sua mulher para quem fez desviar, sob sob a desculpa da caridade, meio milhão de francos, destinados à Comissão de Hospitalização da Cruzada das Mulheres Portuguezas, de que a D. Alz ira Costa era presidente. Claro está que no meio de governos maioritários, ditatoriais e não fiscalizados, no meio do clima de terror que Afonso Costa ajudara a criar e mantinha para sua segurança e a da própria República, os roubos não só eram frequentes, como absolutament e s eguros (pro va-o a “habilidade” de Alves dos Reis, em 1925). Nenhuma investigação sendo efectivamente aberta levaria a alguma condenação. Não deixa de ser curioso que às despesas e aos roubos que os republicanos faziam questão de apontar antes de 1910 tornaram -se frequentíssimos durante a os loucos anos da I República: armamento, fardas militares, pro mis cuidades várias co m empresas estrangeiras, etc., etc. Através da figura de Afonso Costa é fácil entender as actuais comemorações do Centenário e como, a meio deste ano de 2010, os seus mandatários resolveram assumir a celebração dos primeiros anos da República, evitando assim o Estado Novo e, na 3.ª República, fugir à inevitável glorificação de uma certa “oposição” não socialista. É que a Primeira República, intolerante e exclusiva como hoje alguns dos seus admiradores é a melhor e talvez a única maneira de regressar às raízes e à autenticidade da República Portuguesa tal qual ela foi gizada.




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José Maria d’ Eça de Queiroz

Um espectador: Novos factores da política portuguesa * * publicado anonimamente na “Revista de Portugal” “Uma parte importante na Nação pe rdeu totalme nte a fé no parlame ntarismo, e nas classes governamentais que o encarnam; e te ndem a substitui-la por outra coisa, que e la ainda não definiu bem a si própria” Artigo de Eça de Queirós publicado anonimamente na «Revista de Portugal», publicação editada no Porto, mas que Eça dirigia desde Paris. Este artigo foi atribuído durante muito tempo a Oliveira Martins, mas Ernesto Guerra da Cal comprovou a existência do manuscrito original autógrafo. Neste artigo, Eça afirma que, com a crise política provocada pelo Ultimato britânico de 1890, a população portuguesa passou a pensar que «antes qualquer outra coisa do que o que está». O problema era saber o que era esta «outra coisa». Um governo autoritário, com base no exército, parecia improvável. Então o que se perfilava no futuro parecia ser ou uma «revolução feita de cima, uma concentração de força na Coroa ... que não seria compreendida pela Nação», ou uma revolução vinda de baixo - a República, que para Eça «seria a confusão, a anarquia, a bancarrota.» Acabava então perguntando, não apresentando naturalmente uma solução: - «Que resta pois? Resta, como esperança, o sabermos que as nações têm a vida dura, e que o nosso Portugal tem a vida duríssima.» Sabendo que «entre nós têm -se visto governos que parecem absurdamente apostados em

errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema.» A história veio comprovar que Eça de Queirós para além de ser um grande escritor, assim como um grande jornalista, como Filomena Mónica salientou, foi também um grande analista político. Este artigo previu os 40 anos seguintes. O reforço do poder real, com a «ditadura» de João Franco, apoiada por D. Carlos; a revolução republicana, que se tornou a anarquia que o autor previu, e a solução militar que era a menos previsível em 1890, mas que foi a que se mostrou a mais duradoira existindo durante 50 anos, de 1926 a 1976. Depois do ultimatum de 11 de Janeiro e do frémito de indignação que percorreu todo o País até às mais obscuras vilas, houve um momento em que justif icadamente se pôde supor que a Nação, enfim despertada do seu sono ou da sua indiferença, pronta a retomar a posse de si mesma, e certa de que a vida que vinha levando nestes últimos vinte anos a votava irrevogavelmente às humilhações e aos desastres, decidira, num ingente esforço de vontade, começar uma vida nova. Não escaparam a esta ilusão cabeças que se prezam de friamente raciocinadoras. E quem estas linhas escreve, apesar de dois lustres inteiros de desilusões, chegou a crer que realmente existia no fundo da Nação, sob a sua aparente apatia, uma grande reserva de força, capaz de inspirar e de impor, sem resistências possíveis, uma reorganização política e eco-

Depois do ultimatum de 11 de Janeiro e do frémito de indignação que percorreu todo o País até às mais obscuras vilas, houve um m o me n to em q ue justificadamente se pôde supor que a Nação, enfim despertada do seu sono ou da sua indiferença, pronta a retomar a posse de si mesma, e certa de que a vida que vinha levando nestes últimos vinte anos a votava irrevogavelmente às humilhações e aos desastres, decidira, num ing e nte esforço de vontade, começar uma vida nova.


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O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Ber trand , moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a m e mó r ia ) c he g ou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele p e r te nc e r a m a lg u ns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos p e l as s ua s i de i as autoritár ias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, as conferência s c hamadas do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política.

nómica do Estado. A ilusão, como dissemos, em breve se sumiu por esses ares. Poucas semanas bastaram a evidenciar que não há no país uma força latente de onde pudesse vir o movi me nt o de reorganização nacional, ou que, se a há (é sempre grato guardar uma esperança), o ultimatum do dia 11 e a perda de territórios maninhos de África, que quase ninguém sabia onde ficavam, não foi abalo bastante decisivo para a fazer despertar e operar. Nem todos os choques do ferro conseguem com efeito fazer saltar o fogo das entranhas da pedra. Mas se fora das regiões da Política, na massa geral da Nação, o ultimatum não logrou produzir um movimento que viesse trazer transformações essenciais à nossa vida administrativa e económica, sucedeu que, dentro dessas próprias regiões da Política, esse mesmo ultimatum, e as manifestações tumultuárias que o acompanharam, vieram alterar o equilíbrio dos elementos regulares com que a Política jogava, fazendo aparecer nela elementos novos, novos factores, com que é forçoso de ora avante contar, e que, coisa estranha!, fazem o Portugal de 1890 politicamente diferente do Portugal de 1889. É esta nova situação que convém estudar com clareza e franqueza. Estender sobre ela um véu pudico, disfarçar -lhe discretamente, por falsas e injustificáveis conveniências públicas, os perigos que ela contém, mão a querer dissecar abertamente com o temor de patentear realidades desagradáveis, seria o mesmo que impedir uma cura ainda possível pelo desejo de não aludir a um mal manifestamente certo. Seria um crime de leso‑patriotismo. I O Partido Republicano não é certamente de criação recente. Desde 34, desde 20, sempre em Portugal

existiram republicanos e jacobinos. Foi possível porém durante muito tempo contá-los, como se diz, pelos dedos de uma só mão. Eram ideólogos isolados, um pouco vaidosos do seu isolamento, vaidosos sobretudo da sua independência e isenção, e da superioridade intelectual que as suas ideias lhes davam ou lhes pareciam dar, de resto universalmente respeitados, e respeitadores eles mesmos do regímen sob que viviam e de quem por vezes aceitavam empregos. O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Bertrand, moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a memória) chegou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele pertenceram alguns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos pelas suas ideias autoritárias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, a s c o nf e r ê nc ia s c ha ma d a s do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política. Muito bem nos lembramos de ir lá ouvir o nosso saudoso amigo Augusto Soromenho, o erudito auxiliador de Alexandre Herculano, discorrer sobre Chateaubriand; e dias depois o Sr. Eça de Queirós apresentar, muito antes de Zola, as bases de uma nova estética, o Realismo. Apesar de não ameaçarem muito seriamente a ordem, ainda assim foram estas palestras julgadas subversivas pelo Duque


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Novos factores da política portuguesa (então Marquês) de Ávila, que as proibiu no dia em que um dos conferentes (o Sr. Batalha Reis, se não nos enganamos) ia falar sobre a «Divindade de Jesus». A imprensa de oposição exibiu a costumada indignação liberal; o Sr. Dias Ferreira fez uma interpelação ao ministério; e não se falou mais nas conferências do Casino, de que apenas resta como vestígio uma verdadeira jóia de crítica histórica, um folheto do Sr. Antero de Quental, hoje muito raro, sobre a Decadência dos Povos Peninsulares. O clube da rua do Príncipe morreu de inanição, e este ensaio jacobino fundiu-se ou perdeu-se no movimento socialista que, aí por 1871 e 72, ainda sob a iniciativa do Sr. Fontana e de outros, englobou em si uma considerável porção da classe operária de Lisboa. Esse movimento socialista, que era uma ramif icação entre nós da famosa Internacional, fracassou quando essa sociedade, por motivos que não vem para aqui compendiar, perdeu a sua acção sobre a massa dos trabalhadores europeus. Depois disso a corrente republicana, que várias causas tinham continuado a desenvolver surdamente, aflorou de novo à superf ície e fez sentir a sua acção por ocasião do centenário de Camões. E finalmente a sua entrada como partido organizado na sociedade política pode ser datada da questão de Lourenço Marques. Não tomámos a pena para fazer a história, ainda pouco acidentada, do Partido Republicano. Essa história, por enquanto, reduz-se principalmente a números. Um deputado republicano por Lisboa há quinze anos não reuniria cem votos. Nas últimas eleições os republ ic anos t iveram algu ns milhares de votos. E estes milhares de votos têm uma signif icação grave, não tanto por virem do apoio progressista (ainda que este apoio é também significativo e sin-

tomático), mas por virem de uma forte massa de eleitores independentes, pertencendo pela maior parte às classes liberais e à classe comercial, que até aqui se abstinham de votar. Um tal desenvolvimento de republicanos é obra recente destes últimos anos. E a sua causa tem sido simples e unicamente o descontentamento: isto é, o Partido Republicano tem-se alastrado, não porque aos espíritos democratizados aparecesse a necessidade de implantar entre nós as instituições republicanas, como as únicas capazes de realizar certos progressos sociais - mas porque esses espíritos sentem todos os dias uma aversão maior pela política parlamentar, tal como ela se tem manifestado, com o seu cortejo de males, nestes derradeiros tempos. O Partido Republicano em Portugal nunca apresentou um programa, nem verdadeiramente tem um programa. Mais ainda, nem o pode ter: porque todas as reformas que, como partido republicano, lhe cumpriria reclamar, já foram realizadas pelo liberalismo monárquico. De sorte que se vai para a república ou se tende para ela, não por doutrinarismo, por urgência de mais liberdade e de instituições mais democráticas, mas porque numa já considerável parte do País se vai cada dia radicando mais este desejo: antes qualquer outra coisa do que o que está! Esta é a mais recente e desgraçada fórmula política da Nação. É a fórmula que se ouve repetida por toda a parte onde dois homens se juntam a comentar as coisas públicas. Ora que pode ser essa outra coisa? Não pode ser o governo pessoal, fórmula para que apenas se inclinam alguns espíritos superiores, mas odiosa à generalidade da Nação, de todo democratizada, ou antes irradicavelmente impregnada de liberalis-

O Partido Republicano em Portugal nunca apresentou um p r o gr a m a , nem verdadeiramente tem um programa. Mais ainda, nem o pode ter: porque todas as reformas que, como partido republicano, lhe cumpriria reclamar, já foram realizadas pelo liberalismo monárquico. De sorte que se vai para a república ou se tende para ela, não por doutrinarismo, por urgência de mais liberdade e de instituições mais democráticas, mas p or q ue nu ma já considerável parte do País se vai cada dia radicando mais este desejo: antes qualquer outra coisa do que o que está!


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Novos factores da política portuguesa

Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos , e feita aparentemente com uma c o r d u r a , u m a generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil m a ne ir a s ind ir e c ta s , desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um r eg íme n po lítico ; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, q ua l qu er o bs cu ro articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material.

mo; tem pois, na ideia dos descontentes, de ser a república, uma república, que, eliminando pelo mero facto do seu triunfo todo o pessoal do parlamentarismo e as suas práticas, proceda, sem desatender os interesses conservadores, a uma reorganização administrativa e económica da Nação. Essa reorganização parece-nos, a nós conservadores, que poderia ser realizada dentro da monarquia. Mas os descontentes respondem que a monarquia se acha inevitavelmente, fatalmente vinculada e soldada a esse pessoal do constitucionalismo, cuja incompetência e corrupção eles julgam ter sido super abundantemente comprovada em anos já longos de desgoverno que resta portanto uma única solução, a república: e que o momento vem chegando de salvar por esse meio o País, que já não pode ser salvo pela monarquia. Cremos que ninguém, com uma clara inteligência das coisas, negará ser esta a corrente de ideias ou de impressões que tem desenvolvido o Partido Republicano. Do seu mais recente e inesperado engrossamento neste último ano houveram causas mais directas e mais especiais, internas e externas. Das internas a maior foi sem dúvida o último período da administração progressista. Não queremos por modo algum nestas páginas da REVISTA, onde só podem ter cabimento as apreciações genéricas de ideias, doutrinas ou movimentos sociais, fazer acusações específicas a grupos políticos. Mas ninguém hoje contesta, mesmo dentro das fileiras progressistas onde preclaramente sobram os homens sinceros e de bem, que os erros dessa administração foram fatais ao sistema parlamentar e à monarquia que é a sua expressão suprema. A parte sã da Nação ficou seriamente desgostosa. E as lamentá-

veis desordens parlamentares desse triste ano político, as violentíssimas e desmandadas polémicas, as mútuas e terríveis recriminações com que, obcecados pela paixão, os partidos se feriam uns aos outros na sua honra, deixaram no País, que assistia espantado a uma tallavagem pública de roupa suja, o sentimento desalentado que ele exprime por esta fórmula: - Tão bons são uns como outros! É esta uma outra das recentes e desgraçadas fórmulas da opinião pública em Portugal. Ora se, dos que estão, tão bons são uns como os outros no sistema parlamentar – para onde ir, para que apelar? Naturalmente para a república e para os homens novos e puros que ela possa trazer. Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos, e feita aparentemente com uma cordura, uma generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil maneiras indirectas, desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um regímen político; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, qualquer obscuro articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material. A revolução do Brasil tranquilizando os ordeiros, excitando os ambiciosos, e dando confiança a todos pela esperança de apoio e recursos positivos – foi um golpe que das instituições brasileiras repercutiu indirectamente sobre as nossas instituições. Não menor acção estimuladora trouxe aos nossos republicanos a


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Novos factores da política portuguesa consolidação da república em França, tão ameaçada, ainda antes das eleições de Setembro, pela c ol ig aç ão mo ná rqu ic o cesarista. A França, pelo simples facto de ser república e como tal prosperar, é hoje o mais poderoso instrumento de propaganda republicana entre os povos latinos. Não se reflecte bastante que às qualidades da sua raça, não à forma das suas instituições, deve ela a sua prosperidade; e que a Exposição seria tão brilhante sob o reinado de Filipe V, como foi sob a presidência de Carnot. O que se vê é a República robustecendo o exército e a armada, construindo enormes obras de defesa, reorganizando superiormente os seus novos domínios, alargando imensamente a instrução, favorecendo o movimento dos negócios a ponto de tornar o próprio capital republicano, mantendo admiravelmente a ordem, e, apesar da sua democratização, conservando todas as elegâncias da vida e da sociedade. Tudo isto se atribui à república, quando é unicamente obra da França. Finalmente entre as causas estranhas se p o de c o nt a r o ultimatum do dia 11, que, se não arrancou o País à sua apatia, lhe deu subitamente o sentimento mais claro, e por assim dizer agudo, da sua própria f raqueza e desorganização; fraqueza e desorganização que, aparecendo dentro deste regímen, podem ser (e são) obra de certas fatalidades, mas são evidentemente também obra desse regímen.«Aqui está onde nós chegamos!» foi então a dolorida exclamação que resumia o sentir público. Assim, progressivamente, se tem ido o Partido Republicano recrutando entre todas as classes e todas as profissões, a advocacia, a magistratura, o professorado, o comércio, e mesmo a propriedade rural, pela acção lenta de causas

diferentes, das quais a maior incomparavelmente, e a única que incessantemente opera, é a de um forte descontentamento político. E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que ele tem o estímulo constante de um imenso descontentamento individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado. O célebre publicista Edmundo About afirmava que nada era mais favorável aos governos em França do que o vento do sudoeste -porque é ele que traz as chuvas e prepara as boas colheitas. A oposição a um governo ou a um regímen nunca toma com efeito um carácter impaciente, violento e destrutivo quando cada um tem pão bastante na prateleira ou um saldo favorável no seu banco. Todo o regímen parece bom, pelo menos perfeitamente tolerável, ao pai de família que se sente na abundância. A mudança de regímen, e as perturbações sociais que lhe vêm inerentes, só lhes inspiram então inquietação, por poderem alterar ou anular as condições favoráveis em que a sua prosperidade se produziu. Entre nós é justamente o contrário que sucede. Ninguém vive na abundância e todos se encontram em dificuldades. Sofre o empregado pela pequenez dos ordenados; sofre o operário pela escassez dos salários; sofre o lojista pelos limitados meios de comprar de que dispõe o público; sofre o comerciante pela estagnação das transacções; e sofre o agricultor pela longa crise agrícola que lhe desvaloriza a propriedade. T odos sofrem; e ainda que muitos só se deveriam queixar da sua falta de

E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que e le tem o es tímulo constante de um imenso d e s c o n te n ta me n to individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado.


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Novos factores da política portuguesa

E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são nec e s sa r ia me nte obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão.

iniciativa, de persistência, e mesmo de coragem civil, todos à uma se voltam contra um regímen que eles consideram como o causador de todos esses males públicos de onde datam os seus males particulares. Em todas estas classes se encontra com efeito a mesma opinião expressa pela mesma fórmula: -isto assim não pode continuar! Isto é a desorganização administrativa, política e económica. Constitui esta massa já considerável de descontentes um partido militante e organizado? Não, certamente. Esta massa não está ainda filiada no Partido Republicano, não pertence ainda a clubes, não obedece ainda a um programa. Quando muito lê o Século. Mas constitui essa classe, por assim dizer, não-monárquica, que no Brasil permit iu que se fizesse a Revolução no espaço de duas horas, e que é tão perigosa para a segurança das instituições pela sua total indiferença e desamor, como o seria pela sua intervenção hostil e combatente. Tais são os elementos de que já efectivamente se compõe ou com que condicionalmente já conta o Partido Republicano. É todavia este partido um perigo imediato e iminente para as instituições? Longe de toda a ilusão optimista, afigura-se-nos que esse partido, no dia de hoje, oferece um perigo ainda mínimo, porque tem a impotência de uma multidão a que falta a direcção. Entre os republicanos organizados, filiados, arregimentados, quantos se contarão que sintam confiança real no seu directório e seus chefes oficiais? Raros, segundo nos afirmam aqueles que por experiência própria o sabem. Pode haver, e há, por esses chefes simpatia individual; pode haver, e há, crença na sua sinceridade. Mas não há já a fé na sua coragem, na sua habilidade, ou na sua competência como organizadores de um

movimento. E enquanto à massa dos descontentes, dos que chamamos não- monárquicos, esses nunca consentiriam certamente em admitir como chefes, e portanto como futuros promotores da reorganização nacional, os indivíduos, aliás pessoalmente estimáveis, que hoje têm a direcção aparente, e queremos supor que real, dos interesses republicanos. E sem desejar ser descorteses para com personalidades, – somos forçados a constatar que os actuais chefes republicanos, como tais, como chefes, fazem sorrir toda a parte séria da Nação. Isto todavia adia simplesmente o perigo até ao momento em que homens de capacidades mais altas, ânimos mais decididos, e sobretudo de mais hábeis manejos, tomem conta do partido já organizado e da multidão descontente que em torno deles se agita, e dêem a este conjunto de forças vagas a direcção que elas reclamam e parecem prontas a aceitar de quem lhes traga uma garantia de êxito. Mas ainda mesmo sem direcção, ou com uma direcção impotente porque incompetente, o Partido Republicano existe, exibe-se, fala, escreve, vota; e por este mero facto de existir obriga as classes governamentais a uma atitude legítima de defesa e de resistência. E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são necessariamente obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão. Os próprios republicanos por mais fanáticos não esperam decerto que o governo lhes


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Novos factores da política portuguesa entregue espontanea mente as secretarias, o tesouro e a direcção dos serviços públicos. Desde que do seu lado comece a acção – do lado do Poder deve começar a repressão. Ora esta repressão só se pode efectuar coarctando certas liberdades, - liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de associação - que entre nós penetraram profundamente nos costumes públicos, e que formavam além disso o único recurso deixado ao descontentamento para desafogar e se consolar. A perda do direito de usar (e sobretudo de abusar) dessas liberdades vai portanto originar uma imensa irritação, e um acréscimo de descontentamento tanto mais intenso quanto mais comprimido. As repressões são sempre as grandes fautoras das revoluções. Um partido perseguido cresce na proporção geométrica dessa perseguição. Na Alemanha, há sete anos, os soc ialistas reuniam menos de uma dezena de milhares de votos; vieram as famosas leis de repressão, e a política terrorista de Bismarck; e ao fim de seis anos os socialistas obtinham mais de um milhão de votos, e o próprio Bismarck caía. As classes governamentais sabem isto perfeitamente bem, e não procedem por obcecação ou por um leviano desdém das repetidíssimas lições da História. Fazem o que não podem deixar de fazer – o que é o seu dever que façam; sobretudo quando o partido de revolução reclama não um conjunto de justas reformas, que elas deixam oportunamente conceder, mas a derrocação pura e simples de todo o regímen constituído, sem um programa melhor de ideias para substituir as dele, só com o fim de destruição e de deslocação de pessoas. A repressão porém só se pode fazer com certeza de êxito pacífico quando exista por trás, a sustentá-la, uma quase

unânime corrente de opinião, uma larga maioria nacional, fielmente vinculada e aferrada às instituições monárquicas, só delas esperando a salvação, e não compreendendo que a Nação possa sem elas ser nação. Foi esta funda corrente de opinião, esta forte maioria nacional que faltou no Brasil ao ministério Ouro Preto. Existe essa maioria nacional entre nós, uma maioria amando tanto as Instituições que esteja pronta, e com alacridade, a dar por elas o dinheiro dos seus cofres e o sangue das suas veias? Infelizmente, por mais que lhe contemos e recontemos os elementos, não nos parece que exista. Na classe média uma minoria é republicana; uma parte importante é indiferente senão hostil; e uma outra parte tende para a hostilidade pelo mero facto de estar excluída do Poder e dos seus benefícios. No povo, o das cidades é republicano; e o do campo, alheio a princípios políticos, nunca se move e nunca se moverá talvez senão para defender o seu pão, se novos e fortes impostos lho ameaçassem. Resta portanto uma metade da classe média fiel às instituições, porque fiel ao partido político que nesse momento as defenda. Mas foi essa mesma metade da classe média que no Brasil, acabando de dar uma larga maioria parlamentar ao ministério Ouro Preto, e estando justamente a promover uma subscrição para levantar uma estátua ao visconde de Ouro Preto (!) - ficou muito quieta nas suas casas, nos seus empregos ou nos seus escritórios, quando alguns jornalistas e alguns tenentes que iam reclamar uma mudança de ministério se lembraram de proclamar uma mudança de regímen! Esta curiosa lição da História actual, se outras não tivéssemos, bastaria a mostrar que confiança se pode ter, neste último quartel

Na classe média uma minoria é republicana; uma parte importante é indiferente senão hostil; e uma outra parte tende para a hostilidade pelo mero facto de estar excluída do Poder e dos seus benefícios. No povo, o das cidades é republicano; e o do campo, alheio a princípios políticos, nunca se move e nunca se moverá talvez senão para defender o seu pão, se novos e fortes impostos lho ameaçassem.


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Mas pelo simples facto do exército ser a força essencial com que conta o regímen constituído, e com que conta o partido de r evo lução , ele toma f a ta lm en t e uma preponderância inesperada nos nos sos de s tinos políticos. Dele parece depender tudo, e portanto ele torna-se tudo. Assim como em Inglaterra, e já agora em França, o boletim de voto é tudo, e sobre ele se exerce a rde n te men t e a propaganda dos partidos, assim entre nós parece desenhar-se o momento em que a espada do exército será tudo, e sobre ela, e só sobre ela, se concentrará a acção e a i nf luê nc ia dos q ue legitimamente possuem, ou que subversivamente pretendem, o poder.

do século XIX, na fidelidade política da classe média. Ora se esta maioria nacional falta às instituições, elas têm de se apoiar necessariamente nu ma outra força que, entre nós, só pode ser o exército. II Em geral desde que o regímen constit uído, para se manter, necessita o apoio de uma força disciplinada; e quando, por outro lado, existe um partido de revolução que não pode tirar dos seus próprios elementos populares os meios precisos de acção, e só poderia triunfar pelo auxílio de uma força indisciplinada - o exército torna-se necessariamente o ponto para onde convergem todas as esperanças e o elemento de êxito com que contam todos os interesses políticos. O exército é assim fatalmente arrastado para dentro da esfera dos partidos; e começa logo a haver em torno dele uma surda e constante campanha de sedução ou de pressão. Pela lógica das afinidades e das ligações naturais, o partido de revolução procura atrair o sargento que é o mesmo que conquistar o soldado; e o regímen constituído procura muito justamente e com honrosa facilidade, conservar fiéis os coronéis e os generais. É isto o que durante longos anos se deu (e ainda se dá) na Espanha; e é isto o que desde já se vai anunciando entre nós, onde, como dizia ultimamente um oficial superior, «o exército está sendo requestado como uma menina rica». A responsabilidade da desorganização assim introduzida no corpo social (e quanto é formidável essa responsabilidade, a anarquia do Brasil o prova) pertence toda e exclusivamente, está claro, ao partido de revolução. Não tratamos porém aqui de averiguar a quem pertencem as responsabilidades de que a História mais tarde julgará, mas de constatar e enfileirar os factos

tais como eles são e de os seguir nas suas consequências. Ora o facto incontestável (e que seria antipatriótico disfarçar) é que o Partido Republicano procura atrair o exército; e que, forçado a defender-se, o regímen constituído apela por seu turno para o concurso leal do exército, decerto inabalável na sua lealdade. Mas pelo simples facto do exército ser a força essencial com que conta o regímen constituído, e com que conta o partido de revolução, ele toma fatalmente uma preponderância inesperada nos nossos destinos políticos. Dele parece depender tudo, e portanto ele torna-se tudo. Assim como em Inglaterra, e já agora em França, o boletim de voto é tudo, e sobre ele se exerce ardentemente a propaganda dos partidos, assim entre nós parece desenhar-se o momento em que a espada do exército será tudo, e sobre ela, e só sobre ela, se concentrará a acção e a influência dos que legitimamente possuem, ou que subversivamente pretendem, o poder. Isto, se não nos enganamos, pode importar proximamente no advento do militarismo. Dirão (e dizem) os optimistas que o exército em Portugal nunca sairá da sua devida submissão ao poder civil. Assim o supomos. Mas nunca se deve basear um sistema de acção política no optimismo, na hipotética perfeição dos homens e das coisas, e em frases. O exército não é composto de entidades abstractas, e impessoais como princípios: é composto de homens de carne e osso, susceptíveis de todas as fraquezas e de todas as tentações humanas. Ora desde que uma classe sente que só ela é a força única, e que tudo gravita em torno dela, pode, mesmo mau grado seu, e pelo irresistível impulso da sua própria força, ser levada a tudo querer dominar, e fazer prevalecer, como superior a todos, o


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Novos factores da política portuguesa seu interesse de classe. Pode-o mesmo fazer por uma nobre ilusão patriótica, considerando que, desde que tudo em torno dela é fraco e impotente, e está morrendo dessa impotência e dessa fraqueza, no predomínio da sua força reside a salvação da pátria. Decerto ao General Deodoro foi agradável e vantajoso passar de um comando numa província remota ao governo absoluto da nação, com cento e vinte contos de lista civil, um palácio para habitar, honras régias e a adulação de todos: mas é bem possível que o General Deodoro muito sinceramente acreditasse (visto que assim lho afirmavam os que da sua espada necessitavam) que ele, e só ele, podia fazer a felicidade do Brasil. E de resto a história está cheia de exemplos em que chefes militares muito candidamente viram no seu engrandecimento pessoal o meio único de promover a regeneração nacional. É claro, claro como o sol, que não há o mínimo, o mais remoto sintoma de que possa surgir entre nós um general ambicioso. Mas dar uma importância suprema ao elemento militar é preparar o terreno propício ao desenvolvimento possível dessas ambições. Querer sistematicamente afastar esta suposição, declarando que «tal é impossível, que nunca tal se dará na nossa terra, porque o exército sabe o que deve à honra e à pátria, etc.», é fazer acto de imprevidência ou de ingenuidade, ambas culpadas. O homem de estado, digno desse nome, deve tudo prever, tudo calcular – e ter sempre presente que os homens são homens, nascidos com as paixões humanas, e não anjos, abstracções ou princípios encarnados. Eis de resto tudo o que convém dizer; porque nisto se encerra tudo o que convém meditar. III Assim viemos expondo, tais como

os compreendemos, os elementos da crise política que se desenha, e que, nascendo da nossa crise crónica, a crise económica, se vai ajuntar a ela ajudando a agravá-la por diversos modos. A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por um impulso que irresistivelmente a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam? Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a confusão, a anarquia, a bancarrota. Além disso (é de urgente patriotismo falar com franqueza) a República entre nós não é uma questão de política interna, mas de política externa. Um movimento insurreccional em Lisboa, triunfante ou semi-t riunfante, seria no dia seguinte um exército de intervenção marchando sobre nós da fronteira monárquica da Espanha. E se a Espanha, pela morte da criancinha inocente que é rei, se convertesse numa república conservadora - um movimento paralelo em Portugal, apoiado por ela e coroado de êxito, seria o fim da nossa autonomia, da nossa civilização própria, da nossa nacionalidade, da nossa história, da nossa língua, de tudo aquilo que nos é tão caro como a própria vida, e por que temos, durante séculos, derramado sangue e tesouros. Por outro lado uma «revolução feita de cima», uma concentração de força na Coroa (que a muitos espíritos superiores, e que vêem claro, se apresenta como a nossa salvação), concent ração, que, apoiada na parte mais inteligente e mais pura das classes conservadoras, procedesse às grandes

A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou b ur o c r á tic a s q ue o encarnam; e tende, por um im pu ls o q ue i r r e s i s t iv e l m e n t e a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam? Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a conf usão, a anarquia, a bancarrota.


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Entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em e rra r, e rrar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema. Há períodos em que um erro mais ou um erro menos realmente pouco conta. No momento histórico a que chegamos, porém, cada erro, por mais pequeno, é um novo golpe de camartelo friamente atirado ao edifício das ins tituiçõ es ; ma s ao mesmo tempo tal é a inquietação que todos temos do futuro e do desconhecido, que cada acerto, cada bom acerto, é uma estaca mais, sólida e duradoura, para esteiar as instituições. Toda a dúvida está em saber se ainda há, ou se já não há, em Portugal, um governo capaz de sinceramente se compenetrar desta grande, desta irrecusável verdade.

reformas que a consciência pública reclama, não seria compreendida pela Nação irre mediavelmente impregnada de liberalismo e que nessa concentração de força só veria uma restauração do absolutismo e do poder pessoal. Que resta no meio destas duas soluções? Restaria ainda a solução quase milagrosa de que as classes conservadoras e parlamentares, cônscias enfim dos perigos que as envolvem, procedessem heroicamente à sua própria depuração e moralização; e, tendo readquirido por esse nobre regeneramento o apoio da maioria sã do País, se lançassem à obra patriótica e exclusiva de reorganizar a Nação administrativa e economicamente. Mas este milagre não é provável. Não há exemplo na História dos séculos de que uma classe conservadora, por uma lenta evolução da consciência, a si mesma se regenere, se depure e se moralize. Que resta pois? Resta, como esperança, o sabermos que as nações têm a vida dura, e que o nosso Portugal tem a vida duríssima. E se os que estão no poder porfiarem sempre em cometer a menor soma humanamente possível de erros e realizar a maior soma humanamente possível de acertos, muitos perigos podem ser conjurados e a hora má adiada. O interesse de quem tem o poder (como dizia ultimamente, nestas mesmas páginas, tratando do Brasil, o Sr. F rederico de S) est á todo e unicamente em acertar. Senão já por dever de consciência e de patriotismo, ao menos por egoísmo, por vantagem própria e individual, por ambição mesmo do poder, o esforço constante de um governo deve ser acertar. Entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema. Há períodos em que um erro mais ou um erro menos

real ment e pouc o c ont a. No momento histórico a que chegamos, porém, cada erro, por mais pequeno, é um novo golpe de camartelo friamente atirado ao edifício das instituições; mas ao mesmo tempo tal é a inquietação que todos temos do futuro e do desconhecido, que cada acerto, cada bom acerto, é uma estaca mais, sólida e duradoura, para esteiar as instituições. Toda a dúvida está em saber se ainda há, ou se já não há, em Portugal, um governo capaz de sinceramente se compenetrar desta grande, desta irrecusável verdade. Um espectador.

Fontes: Eça de Queirós, «Novos Factores da Política Portuguesa», Revista de Portugal, Volume II, Abril de 1890, págs. 526 – 541. Obras de Eça de Queiroz, Volume IV, (Introdução e fixação dos textos de Aníbal Pinto de Castro), Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, págs. 1022 – 1033. A le r: Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Lisboa, Quetzal Editores, 2001, págs. 272 – 281.




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