A Solidรฃo do Duque (Cavalheiros I)
Dama Beltrรกn
Sinopse
A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza após bater-se em um duelo de honra com um marido enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio, decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus domínios.
Quando
abre
os
olhos
depois
de
uma
desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que desfrute com a leitura que guardam estas páginas. Atenciosamente, Dama Beltrán.
Para Almudena com muito carinho. Obrigada por tudo.
«O amor tudo pode, tudo cura, tudo transforma». Dama Beltrán.
Prólogo
Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform. ― Desafio-o, senhor! Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros? ―
Pela
honra
de
quem?
―
Perguntou
William
redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses desafios que já não lhe produziam alteração alguma. ― Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ― respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de vergonha e de dor.
― Juliette? A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra palma para a escassa barba que cobria seu rosto. ― Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ― continuou com voz serena e sem interesse por continuar a conversação. ― Acusa-a também de mentirosa? ― As bochechas do desonrado se encheram de um vermelho intenso. O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa. Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava que se deitou com sua esposa por ter sido enganado, provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se sobre este e lhe golpear com força. ― Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ― disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ― O duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo porque
nestes
momentos
cavalheiro,
encontro-me
tremendamente aflito… ― comentou com zombaria e sem subir nenhuma nota em seu tom de voz. Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e partisse com a cabeça baixa, mas respirando. ― Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem desejar. ― O homem golpeou suas botas, girou-se e inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes de afastar-se. Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado de seu lar. Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários maridos indignados irromperam no clube ao saber da presença do futuro duque no salão. ― Senhores…, ― disse enfim após depositar as cartas sobre a mesa e descobrir a última jogada ― já podem ir despedindo-se de seu dinheiro. ― É incrível! ― Exclamou Federith Cooper, um dos melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ― Como pode ter tanta sorte? ― Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz desoladas
esposas,
acaso
estamos
loucos
por
seguir
mantendo sua amizade? ― Roger Bennett, quem algum dia
chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy. ― A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa ― respondeu William colocando as moedas em seu lado da mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação. ― Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ― continuou zombador Roger. ― Não pode zombar assim de um homem que amanhã se debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu lado ― falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no semblante uma atitude cômica. William se levantou do assento e caminhou para o cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já sofriam a agonia do seguinte. ― Essa mulher… ― disse William pensativo enquanto caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até Southwark. ― Quem, lady Blatte? ― Inquiriu Federith levantando a bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu. ― Juro-lhes que me disse que não estava casada. O perguntei mais de um milhão de vezes… ― respirou com
profundidade e logo jogou o ar devagar. ― Cada vez que a visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou viúva» ― comentou com desdém. Logo levantou o olhar do chão e exclamou: ― Mulheres! ― Sim, Rutland, mulheres. ― Roger interveio com voz zombadora. ― Mas está falando de uma mulher que nasceu com um corpo digno de um duelo. ― Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ― comentou William com palavras cheias de luxúria. ― Possui uns seios lindos… suas coxas sempre estão quentes e quando me introduzia em seu interior... ― Basta! ― Interrompeu-lhe Federith. ― Acaso não recorda o que significa ser um cavalheiro? ― Não se zangue, Federith. Deve compreender que preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual amanhã estarei a ponto de morrer… ― comentou entre risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em Londres. ― Falando de morrer… escutou o trágico final da filha do barão de Montblanc? ― Perguntou-lhes Roger fazendo com que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ― Ao final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta manhã era o único tema de conversação que se escutava em todo Richmond.
― O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma auditoria? ― Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato, despreocupado e farrista que foi com vinte. ― Sim ― respondeu com tom firme. Abaixou levemente a cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e, embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família. Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez, com a morte desta, descansariam enfim em paz. ― O barão foi visitar-te? ― Roger avançou atrás de William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto. ― O que desejava de ti esse pobre homem? ― Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria esclarecer o caso de sua filha… ― respondeu sem querer mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não devia sentir. ― O que pretendia? ― Roger, animado pela curiosidade, seguiu com seu interrogatório. ― Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a temporada social. ― Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à
Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível no campo ― acrescentou Federith. ― Quando foi anunciado como merecia ― continuou William ― na última festa que nossa adorável senhora Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas, apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma filha solteirona. ― Mas? ― Roger escutava com entusiasmo toda a conversação e desejava saber como uma jovem que vivia placidamente
e
a
quem
não
faltavam
propostas
de
matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera. ― Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na festa ― prosseguiu William. ― A família da jovem mantém que o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava. Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe outorgar a posição de uma amante. Como a esta não interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada. ― E claro está, depois do escândalo e de não conseguir seu propósito, desaparece para sempre… ― asseverou Roger. ― Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa
aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico era
que
terminasse
argumentou
William
fazendo sem
o
correto:
mostrar
suicidar-se
nenhum
tipo
― de
sensibilidade em suas palavras. ― Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ― Federith se mostrou tão alterado que William chegou a perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham proposto matrimônio e foi rechaçado. Durante uns instantes o futuro duque tentou que a mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva desejosa de calor masculino e a satisfação que achou escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady Baithlarin. ― Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood ― disse cortante. ― As mulheres como puderam observar durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e… acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo.
Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer… ― sorriu de lado. ― Algum dia, William Manners, futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ― retrucou Federith com tom desafiante. ― Apaixonar-me? Jamais! ― Sentenciou após jogar o braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ― O que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse? O que seria desses pais que, com tanta amabilidade, oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso entristecer toda essa gente. Devo a eles… ― Federith soltou um impropério enquanto que Roger e William não paravam de gargalhar. Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com passo firme avançou para eles. ― Parecem aborrecidos ― disse a modo de saudação. ― Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo sabe como terminarão ― respondeu Roger tomando a capa que o recém-chegado lhe oferecia. ― E como terminarão? ― Arqueou as sobrancelhas e o olhou aos olhos.
― Contará os passos, girará e, justo quando seu desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido depois
do
descobrimento
da
infidelidade
é
mais
que
suficiente. Equivoco-me? ― Roger arqueou as sobrancelhas e sorriu, assim como fez William. ― Espero que seja assim… ― interveio Federith. Ambos os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com interesse ― até agora lhe desafiaram homens aos que de verdade não lhes importava a afronta e se conformavam recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para restaurar sua honra. ― Senhores…, ― interrompeu-os um dos padrinhos do competidor ― o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as pistolas, dez passos e... a morte. ― A morte! ― Exclamou Roger atônito. ― Não podemos permiti-lo! ― Não importa, ― William interrompeu seu amigo alarmado pela gravidade do assunto ― tem direito a escolher a forma em que sua honra será restaurada. ― Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado daremos início. Os
três
ficaram
calados
durante
uns
instantes.
Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair
ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com uma camisa branca e umas calças muita estreita esperavalhe com os olhos injetados em sangue. ― Senhor… ― William o saudou com cortesia, mas este não se dignou nem a olhá-lo. ― Quando estiverem preparados… ― a testemunha olhou a ambos os homens e estes assentiram. ― Contem dez passos e girem-se. Que Deus os proteja. William sentiu as costas de seu competidor na cintura. Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos. De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte, ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro. Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o
chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes sobre algo bastante duro.
I
Londres, seis meses depois. O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas do duelo o tinham convertido em um ser dependente. Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a Deus por continuar respirando. Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.
Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio. Por que não girou para a direita para evitar o terrível impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre. Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi. Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha azedado seu afável caráter para converter-se em um ser antissocial e desprezível. ― Excelência… ― o criado cravou os olhos no chão e lhe fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho. O duque caminhou para a janela apoiando-se na bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava mais ira do que a necessária. Não era igual passar as penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o ar do exterior. Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou. Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou
que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã que havia sobre a mesa. ― Sua Excelência… ― o mordomo se aproximou e, depois de uma breve reverencia, continuou: ― o senhor Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você. Federith, um de seus melhores amigos a quem não tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para um duque. William tinha rido dele, zombado de seus incessantes discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe seria
concedido
por
nascimento.
Mas,
apesar
das
brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao seu lado como se o passado não tivesse existido. ― Deixe-o entrar… ― disse calmamente. Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em frente ao espelho que William Manners se convertera em um monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque, embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando nem ele mesmo conseguia respeitar-se?
Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou, depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os passos deste para a sala de café da manhã. Antes que Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção. ― Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta horrenda manhã? ― Caminhou para ele e, ao compreender que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e se sentou ao seu lado. ―
De
péssimo
humor…
―
murmurou
com
aborrecimento. ― Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azedanos o caráter ― continuou mostrando um leve, mas gentil sorriso. ― A que se deve sua visita, Federith? ― Grunhiu. ― Não se alegra de me ver? ― Respondeu à sua vez. ― Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que esteja em meu lar antes do meio-dia? ― Voltou a beber do café sem apartar o olhar de seu amigo. ― Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ― Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca,
prosseguiu: ― Queria te dar uma notícia antes que lhe cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline. ― Matrimônio? ― Arqueou a sobrancelha esquerda abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se reclinando sobre as costas do assento. ― Diz-o a sério? De verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio, que decidiu se casar? ― Abriu tanto seus olhos que Federith por fim conseguiu averiguar a cor destes. ― Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira, Caroline me ama tanto quanto eu a ela ― disse sem mostrar remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ― Decidi que ― prosseguiu Federith aferrando suas mãos como se tivesse a intenção de começar a rezar ― retornarei a Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado para formar uma família respeitável. ― Então… ― William entrecerrou os escuros olhos e os cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava uma decisão tão importante. ― Então… ― repetiu para captar a atenção de seu camarada. ― Ela está grávida e precisam se
afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira razão desse precipitado enlace matrimonial, não é? ―
Santo
céu,
Manners!
―
Exclamou
Federith
empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o como o fazia, sabia que isso seria impossível. ― Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que possa te prejudicar ― continuou com o cenho franzido enquanto observava a crescente tensão de Federith. ― Espero que não tenha esquecido o que significa ser um cavalheiro. ― Seus punhos se apertaram. As palavras brotaram dele com um tom repleto de ameaças. Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta. Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse qualquer crença sensata. ― Há valores que nunca se perdem ― respondeu William ao pequeno ataque. ― Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se entre estas paredes e há mais de três meses não recebe visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na mente do cavalheiro mais racional? O duque o observava com atenção. Federith seguia com os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de
olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia sentir após descobrir seu pequeno segredo. ― É o melhor lugar para habitar um monstro, não acredita? ― Monstro? Assim é como se considera o duque de Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais coragem… Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que, nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a passada temporada social. Seu amigo partiu antes do acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência repentina de um homem tão importante. Supôs que tal marcha se deveu à imensa pressão que William estava sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título. Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava
repugnância, asco. Que dramático final para um homem que acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos! ― Perdi-a depois do disparo ― respondeu em tom vazio, sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo marcado. ― Voltando para o motivo pelo qual me visita… ― Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton. ― Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso do mundo. ― Sim ― respondeu ignorando a ironia de sua afirmação. ― É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família que criarei. ― A visita estava chegando ao seu fim. Federith tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada. Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo para que este a tomasse e disse: ― Veremos-nos em outro momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o sorriso. ― Antes de ir…, ― aferrou com força à mão de Federith e olhou-o nos olhos ― eu gostaria de te fazer uma última pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é claro. ― É óbvio. ― Estou me perguntando… que classe de inconsciente pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em seu seio o filho de outro? ― Soltou sem tomar ar.
O assombrado homem não respondeu a impertinente pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme. William
ficou
calado
refletindo
durante
um
bom
momento. A decisão de Federith a nível social era a mais correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto, quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre a sua esposa. Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doíalhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith obtivesse a vida que merecia. ― Deseja algo mais, Excelência? ― Um dos criados lhe fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que entrava no salão e esperava o próximo mandato. ―
Preparem
a
bagagem.
partiremos para Haddon Hall.
Amanhã
ao
amanhecer
II
Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens, mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara. Chegara ao seu lar. O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia contente em retornar à casa de sua infância. Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham
enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo, com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não terminassem se machucando, converteram-se em pessoas dignas de sua confiança. Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em Derbyshire, o tempo parecia deter-se. O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas amantes. William fechou os olhos. A palavra amante se converteu em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e manter os olhos cravados no chão.
Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir, de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e continuou sozinho. Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com eles. ― Milord… ― o mordomo se colocou com sutileza atrás de suas costas e começou a lhe informar. ― Sua habitação está preparada para que descanse. Imagino que depois da viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um banho de água quente. ― Obrigado, Brandon ― disse com tom suave. ― Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma honra trabalhar para você. ― Brandon, sem afastar-se do senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a
cabeça seus novos empregados. ― Tenho que lhe comentar que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites. Embora
tenha
anunciado
que
deseja
descansar
uma
temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo mundo deseja conhecê-lo e falar com você. O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas ordens. Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as doenças que lhe açoitavam sem piedade. ― Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua Excelência? ― Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com habilidade. ― Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ― respondeu o duque. O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do quarto. ― Não está tudo como deseja, Excelência?
― Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo ― ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de um ambiente sereno e aprazível. ― Com o mesmo salário, sua Excelência? ― Com o mesmo salário… ― repetiu. ― Alguma petição especial? ― Quis saber. Em Londres o duque tinha procurado durante muito tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher: podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou, pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que… como conseguir outra agulha em um palheiro? ― Já sabe quais são os requisitos ― disse com grosseria. ― É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara que pode acessar ao dormitório? ― Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o chamarei quando o necessitar. ― Como desejar… ― disse antes de retirar-se. William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino.
Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e sim para esquentar a cama com sua legião de amantes. William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de encher seus bolsos de moedas.
Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste, anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão principal, lugar onde receberia a todos seus convidados, William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de maneira correta. ― Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas incapacidades ― explicou o reverendo com um sorriso. Ao qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se pudesse.
― Veio ao melhor lugar para descansar. ― A senhora Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na conversação para salvar as inoportunas palavras de seu marido. ― Isso espero ― comentou o duque esboçando um leve sorriso. ― Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar tranquilo e aprazível. ― As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais do que nossas possibilidades nos oferecem. ―
Entretanto,
às
vezes
sofremos
certos
constrangimentos. ― Outra vez a encantadora mulher tentava salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ― Virá à Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está transbordante de crentes. ― Se puder, estarei encantado de admirá-la ― respondeu William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo? ― Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ― Perguntou o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá. ― São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ― Parecia uma desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era
responsável pela quantidade de convites que lhe tinham enviado nem se os aceitaria. ― Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos onde seja requerido – sorriu-lhe. De verdade que um simples gesto de piedade podia interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer. Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e empregasse a primeira que gostasse do pagamento. ― Já é tarde, Lídia ― disse o reverendo olhando com ternura para sua esposa. ― Milord… ― levantou-se e moveu a cabeça
devagar
para
diante.
―
Voltaremos
em
outro
momento, se lhe agradar. ― É óbvio, sempre serão bem-vindos. Lídia,
como
a
tinha
chamado
o
senhor
Brace,
aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrandose ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a mente. ― Conseguiu a cortesã? ― Perguntou de mau humor e impedindo que o servente começasse alguma conversação que o distraísse de seu verdadeiro propósito. ― É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você quiser ― explicou o mordomo com certa preocupação.
Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência, por muito que ela tivesse insistido no contrário. ― Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta noite provarei seus serviços. ― Levantou-se com vigor e caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite. Depois do jantar, que durou a metade do acostumado, decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria. Odiava escutar as conversações de certos homens que se denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens. Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma boa banheira de água quente e a teria preparado para o momento.
Enquanto
seu
ajudante
lhe
colocava
com
habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta? Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres, possivelmente porque sua estatura era bastante considerável para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno tamanho. William franziu o cenho.
Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar, recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom palhaço para um desses circos que visitavam a cidade. Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao seu lado uma mulher alta, muito alta. Andou pela habitação durante uns minutos. Estava ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o reverendo teria se encarregado disso. Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a. Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-
lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se em voz alta. ― Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer sua futura esposa! Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava agitado, agora tinha parado em seco. ― Pode entrar ― disse com tom aparentemente sereno. Uma pequena figura apareceu na penumbra. William franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros. Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu rosto? ― Aproxime-se ― sussurrou o duque estendendo a mão direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou. Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e William entendeu que se surpreendeu. ― Não acredito que deva te explicar para o que veio, não é? ― Ela assentiu. ― Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ― Seu tom se endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez? ― Só prazer… sua Excelência ― murmurou a mulher sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou
frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a mão deste pôde alcançar um seio. ― Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ― continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas… o que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada ao vê-lo que não sabia nem como atuar. A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo. William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos, seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias. Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho. Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette. Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou como a semente brotava de seu interior banhando a língua da
moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe importava, para que saber o nome de uma mulher que, depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola, girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com tom sério e furioso: ― Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado. A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto. Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até que adormeceu.
III
Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um tempo que as reservas que tinha guardado para poder sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido. Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e comer-lhes. «Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas. Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora? Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas, coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas
circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela. Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e numerosas festas e a localidade se encheria de nobres curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um muito
singelo
de
compreender:
trabalho.
Lavadeiras,
costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar escapar. Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque, ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu estômago
que
não
esperaria
que
se
convocassem
as
esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande entusiasmo. O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe importar que em mais de uma ocasião seu vestido se manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a
cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o único que lhe ajudaria a continuar viva. Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus pais chamavam grandeza a uma décima parte do que observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio, muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se assemelhava a uma prisão. Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de trabalho. Depois de conseguir um pouco de calma e separar de sua
mente
todo
pensamento
doloroso
produzido
pela
lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo jardim sem descanso até que subiu as escadas que a conduziram para a porta principal. Parada frente a esta, duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de repente escutou umas vozes que procediam da lateral do
edifício. Assustada e com o coração galopando em seu interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas preces e os que falavam sem parar não repararam em sua presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de serviço. Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta se abriu. ― Quem é você?! ― Exigiu saber com uma mescla de surpresa e medo uma mulher de avançada idade. ― Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir trabalho ― explicou olhando ao chão. ― A pedir trabalho?! ― A mulher abriu os olhos de par em par e levou a mão à garganta. Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto que
tinha
provocado
à
mulher.
Quem,
em
seu
são
julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em
seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu corpo e de sua mente. ― Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo dias sem comer… ― implorou a moça. ― Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego, volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a porta. ― Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem tampouco uma palidez tão fantasmal. ― Rogo-lhe. Ajude-me… ― continuou com voz tão baixa que a anciã mal a escutou. A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que ninguém poderia
descobrir que
abrigaria durante
uns
minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a mão e aferrou com força o braço da moça. ― Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se sustentar com algo mais… do que tenha se alimentado até agora. Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela. Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria
dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu lugar. Enquanto notava o calor da comida em seu interior pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e começou a fazer nós com o tecido do vestido. ― Quem é e o que faz aqui? ― Brandon a observou com perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu o cenho. ― É uma jovem que veio pedindo um emprego… ― expôs a cozinheira limpando as mãos no avental. ― Do que, de limpadora de chaminés? ― Disse de mau humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam. Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um
aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse terminaria empesteando toda a mansão. ― Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas domésticas… ― murmurou sem levantar a vista do chão. ― Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter muito claro o que significa isso… ― O mordomo cruzou os braços e entrecerrou os olhos. ― Brandon! Como pode falar assim? ― Hanna explodiu e,
diante
de
Beatrice,
tratou-lhe
com
familiaridade,
advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais afetiva do que aparentavam. ― Esta moça tem que sair daqui o antes possível, senhora Stone ― explicou com tom sereno e firme. ― Eu não gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo que nem sequer me corresponde. ― Suplico-o, senhor ― interveio Beatrice entre soluços. ― Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da senhora Stone, mas amanhã… do que me alimentarei amanhã? Brandon, que tinha se girado para que Hanna não observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e se voltou para esta.
― Já esteve alguma vez com um homem? ― Enrugou a testa e a olhou diretamente aos olhos. Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca. Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão. ― Como? ― Apesar de ter as bochechas cobertas de barro, o rubor era visível em seu rosto. ― É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar o leito de um homem? ― Continuou com o inesperado interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer com
que
Hanna
tentasse
acolhê-la
tal
como
parecia
pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta. Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento. Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a inocência com ele, mas… tinha que explicar como e em que circunstâncias a tinham desflorado? ― Vejo que está pensando… ― um sorriso zombador apareceu no rosto enrugado. ― Não… ― disse enfim Beatrice apertando os punhos e armando-se de coragem. ― Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o
pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses serviços. Sabe agradar a um homem? Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua dignidade intacta. ― Sim ― respondeu com firmeza. Levantou seu olhar, elevou o queixo e prosseguiu: ― Todos os homens que passaram pelo meu leito partiram satisfeitos. Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível. ― Perfeito então. Senhora Stone, ― disse à cozinheira que não era capaz de olhá-lo ― já temos uma prostituta. Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para que a prepare de maneira adequada. Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta
lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um destino turvo, escuro. ― Senhora Stone? ― Inquiriu Brandon para certificar-se de que o tinha escutado. ―
Sim,
senhor
Stone,
prepararei-a
―
respondeu
apertando a mandíbula. Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé, incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola? Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros animais com os quais poderia sobreviver durante bastante tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha? Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o seu. «Viver para lutar», pensou para si. Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de inquietações. Devia fazê-lo e ponto. ― Sinto-o… ― escutou a cozinheira murmurar. ― Tudo isto foi por minha culpa…
― O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado ― indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas da anciã. ― Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua necessidade e jamais o perdoarei ― gritou enfurecida enquanto levantava a panela com raiva. ― Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a você poderei sobreviver uns meses mais. Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada, seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a residência
que
o
atual
duque
de
Rutland
tinha
em
Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência. Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra manchada de sua filha, mas… o que fez o futuro duque? Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood. Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe, assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e não a abandonou nem sequer para realizar as funções humanas
normais,
o
barão
descuidou
de
suas
responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que
riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à sua desventurada vida. Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no caminho. Recordava que durante
as longas horas de
caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía em seus territórios. Em algumas conversações nas quais tinha estado presente, o principal tema era a riqueza das terras que herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas alguém comentou que tinha ido para caçar e que se resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a ter um teto onde poder viver. ― Direi-lhes que subam a água quente… ― a suave voz da senhora Stone interrompeu suas meditações. ― Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja preparado ― voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela
boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu. ― Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a oferta. ― Não partirei ― respondeu com um suave fio de voz. ― Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro, senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um pedaço de pão para levar à boca. ― Isso tem solução! ― Exclamou a mulher com rapidez. ― Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma semana. Quando terminar, retorne. ― Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por cuidar de mim. ― Beatrice pousou uma mão sobre o ombro da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a apertou entre seu corpo com força. ― Você é uma menina… ― murmurou. ― Mas esta menina tomou uma decisão ― respondeu sem apartar-se dela. ― Há outras alternativas… ― Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas necessitarei da sua ajuda ― murmurou apoiando a testa sobre o peito da anciã. ― Estarei ao seu lado quando precisar da minha presença, prometo-lhe isso.
― Obrigada ― disse ao mesmo tempo em que Hanna abria os braços e ela se apartava. ― Tem mais fome? ― Perguntou a anciã enquanto se dirigia para a despensa. ― Estou bastante satisfeita e acredito que depois do acontecido meu estômago não aceitaria nada mais. ― Seu estômago não poderá resistir a isto. ― Pousou uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e, orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as palmas na cintura. ― É uma receita da minha mãe. Ela a herdou da minha avó. Antes o chamavam… como era? ― Pôs os olhos em branco tentando recordar o nome. ― Pudim! ― Gritou a moça ao apartar o pano que cobria o recipiente. ― Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ― Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa tão deliciosa? ― Faz tanto tempo que nem o recordo… mas hoje vou rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço? ― Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina pequena. ― Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho guardado na despensa muito leite, ovos e mel. Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última
vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado: «Faz tanto tempo que nem o recordo…».
IV
Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo. Apesar de estar escondida em uma das habitações mais afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a primeira visita que recebia o duque e supôs que esse acontecimento devia ser muito importante para todos os que habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os primeiros em aparecer em Haddon Hall. Depois
de
tirar
a
roupa
e
deixá-la
de
maneira
descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que não se banhava em um recipiente que albergasse por completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve durante uns instantes a respiração. Quando a elevou, começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo
lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador. Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade. Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada. Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem comentar à sua Excelência que o estado em que se encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse uma lixeira. O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ― Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi outro senão ele mesmo.
Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo. ― Você está certa disso? ― A chapeleira a quem estava acostumada a visitar para saber se alguém demandava os serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com bastante entusiasmo. ― Muito certa ― respondeu a cliente em tom sério. ― Quando você disse que aconteceu? ― Continuou o interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da chapeleira. ― Segundo minhas fontes, antes da primavera. O marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ― prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e tocava
os
temporada.
novos
chapéus
adquiridos
para
a
próxima
― Entre brincadeiras? ― A chapeleira se aproximou de uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes plumas azuis. ― O marido não media mais de… ― elevou a mão até o contorno de seu peito para assinalar a possível altura. ― Pobre duque! ― Exclamou a chapeleira tampando a boca escandalizada. ― Nunca se deve subestimar um adversário, por mais indefeso que pareça ― disse a mulher enquanto colocava o chapéu que lhe tinha mostrado. ― Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de outro homem. ― Você… não conheceu ao duque, não é? ― A mulher girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse acreditar em sua afirmação. ― Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua Excelência partiu à Londres. ― A chapeleira abaixou a cabeça ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o chão. ― Entendo… ― Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ― Só lhe direi que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime… ― colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no lado direito e prosseguiu: ― E agora… é um monstro. ― Um monstro? ― Perguntou a chapeleira assombrada.
― Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas com as cordas que utilizam os piratas em seus navios. Também contam que deixou de mover o braço esquerdo. Agora… como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais de suas amantes? ― Perguntou antes de soltar uma grande gargalhada. ― O que te parece? ― Inquiriu à chapeleira olhando-se de novo no espelho. ― Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a palidez de sua pele ― respondeu a chapeleira sorrindo. ― Levarei esse! Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis? Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele. Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se, pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone aparecesse pela porta e a expulsasse.
Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos. Apesar
de
tentar
com
vigor,
resultava-lhe
impossível
despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou. Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu ombro e a girava para a direção em que se encontrava... ― Senhora Stone… ― murmurou Beatrice ao descobrir a anciã ao seu lado. ― Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ― Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura. ― Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada do que imaginava ― respondeu inclinando-se e tampando sua magra figura com o lençol. ― Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem limites e não recordamos que somos seres humanos, não deuses. ― Levantou-se e caminhou para uma cadeira que havia junto à cama. ― O que acontece, senhora Stone? ― Quis saber a jovem ao notar certa inquietação na mulher. ― O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ― comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou descobrir o que havia dito.
― Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ― Acreditei que… ― Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ― indicou enquanto procurava algo de um baú. ― Tratou-a bem? Refiro a… ― Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é imaculada, adequada ao título que ele detém. ― Embora não quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque mais do que tentava mostrar. ― Nunca ― prosseguiu a cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que tinha obtido do baú ― necessitou dos serviços de uma concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento, todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de sua excelência. No entanto, depois de ... ― tragou saliva incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe provocava falar daquilo. ― Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora Stone. Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a vestisse. ― Foi uma tragédia para todos os que respeitam e servem ao senhor ― disse ao mesmo tempo em que esticava a camisola. ― Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.
― Quem disse tal barbaridade? ― Hanna a olhou mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento. ― As infidelidades… ― E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da residência
e
com
a
desculpa
de
conversar
com
sua
Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo. ― Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os oferecimentos dessas libertinas… ― Acredito que ainda não conheceu um homem de verdade… ― resmungou. ― É sério que pensa que é fácil negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano? ―
Senhora
Stone!
―
Exclamou
assombrada.
Não
esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de algo tão escandaloso como as relações carnais. ― O duque não te obrigará a fazer nada que não queira ― expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ― Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo. Tem-no muito enredado. Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha conseguido adquirir a força necessária para chamar. De verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez foi.
Trataria-a
bem?
Seria
atencioso
com
ela
ou
se
comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se arrepiava pelo medo. Cem moedas… ― meditou para si. Cem míseras moedas que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida, continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão tremente para a maçaneta e a girou devagar. A primeira palavra que surgiu em sua mente quando acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar. Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e começou a enredar uma mecha com um dedo. ― Pode entrar ― escutou a suave e aveludada voz do duque. Beatrice continuou sua marcha até que a distância entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria sangue por suas veias.
― Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela. ― Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ― Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo começava a esconder-se entre os outros fios. ― Não albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma relação afetuosa, só quero prazer ― prosseguiu, mas desta vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente. Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria essa noite. A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem. Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto, essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas. Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para um homem tão bonito e para todas as suas famosas admiradoras, seriam aterradoras. ― Só prazer… sua Excelência ― murmurou Beatrice após escutar um grunhido do duque. Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o
duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes. Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe tinha devotado. ― Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e faça por merecer o salário que obterá quando partir ― comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a jovem teria imaginado. Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de Rabbitwood a obrigou a praticar. Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina, não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos, suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar. Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não
era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite. Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar ocultar dos outros aqueles olhares lascivos. Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar sobre sua vida e descobriu que havia outro homem. Em um momento de descuido maternal, um dos criados lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou um momento para correr para o lugar designado. Seu coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo depois de uns dias de distanciamento. Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor. Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido
áspero se moveu com intensidade no momento em que escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos capturados pelo sexo. Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado, ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria descaradamente. Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito. O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o
homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto, manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria. Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas, veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la sozinha, atirada no chão, destroçada e… morta. A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas. Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente começou a vagar por sua garganta. Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em seu interior de algum jeito, mas… como? Escutou algo. Não soube com claridade o que. Mas depois de observar que o duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de madeira, imaginou que a despachava de seu lado. Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não
era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina, era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação, baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da mansão. Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu corpo se partia em dois. Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar, mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.
V
Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes recebendo
ou
devolvendo
visitas,
todos
os
dias
eram
intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia suportar-se. Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiarse em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma
cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e ficaria cego pelo impacto? William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as chamas além de manter o ambiente quente, também proporcionavam a luz necessária para observar sobre a escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los, descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão, as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que não podia fazer nada para mudar o destino? William fixou os olhos na intensidade das chamas e as associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes, invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas chamas,
apaga-las-ia
no
momento.
Só
ficaria
carvão.
Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à intensidade do fogo inicial.
― Sua Excelência, ― Brandon apareceu levando uma pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu com brutalidade a meditação do homem ― chegou o correio. O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse sua perícia ao escrever para responder as cartas que necessitassem de resposta. William as olhou pela extremidade do olho e passou a mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já formava parte de seu passado. Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recémadquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que possuía o nobre em Hemilton. O periódico era de três semanas atrás e embora Federith já
lhe
anunciasse
suas
intenções
antes
que
William
abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco antes de lançar o maço de papéis para o fogo. ― Más notícias, senhor? ― Perguntou o mordomo com assombro. ― Depende para quem ― respondeu tosco enquanto observava como o papel ardia.
― Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ― indicou o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e tentava afastar-se. ― Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio. ― O senhor Cooper se casou? ― Disse com uma mescla de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão? A verdade é que não estava acostumado a dar muita importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e muito menos quando incluía nessas conversações o duque. Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre, para esquentar as camas de outros maridos, para observar as vidas familiares de outros à distância. ― Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ― comentou William com maldade após refletir na resposta adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.
― Deseja lhe responder, senhor? ― Perguntou o ancião enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente para que o duque pudesse pegá-la. ― É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado, encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe, pegou um papel em branco e uma pluma para escrever. ― Meu querido Federith ― começou a ditar. ― Como bem sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William. Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas, maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e bons desejos. ― Quer que a leia em voz alta? ― Perguntou o mordomo levantando do assento. ― Não precisa, sei o que eu disse ― respondeu com rudeza.
― Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os arranjos para enviá-la esta mesma manhã. ― Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ― Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao mandato. Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse aquele comportamento errático e malicioso. E com essa intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à cozinha. William seguia observando o fogo sem sequer piscar através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre as
ardentes chamas.
Seria
igual o
inferno? Estariam
dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava, sonhar
de
novo
com
o
homem
que
uma
vez
foi.
Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar sem apoiar-se nela.
Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o Brandon para que as aproximasse. — Maldito seja, William Manners, maldito duque de Rutland! ― gritou. ― Levante-se e faça-o você mesmo! O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça. ― Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por ti mesma. Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem controle e sua mente tinha perdido toda sensatez. Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou sem cessar. ― Sim, Excelência? ― Perguntou Brandon ao ser requerido com tanta urgência. ― Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou dar um passeio por minhas terras ― comentou entre balbuceios. ― Meu senhor… ― começou a dizer o mordomo.
― Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a destruir seus ouvidos? ― Desafiou-lhe. ― Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um conselho… ― Não quero conselhos de ninguém! ― Exclamou elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o chão. ― Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço. ― Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no fogo. ― É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o agasalhe adequadamente? ― Não. Será um passeio breve. ― Como desejar… ― Brandon se inclinou levemente para frente e com passo firme saiu do salão. Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha deixado
sua
mulher
resmungando
pelas
palavras
tão
inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu amigo. ― Quer sair para montar ― disse desesperado quando entrou na cozinha. ― O que?! ― Perguntou a mulher atônita. ― Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja passear pelas terras ― prosseguiu. ― Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ― Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.
― Não quer escutar. Acredito que bebeu muito… ― Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua alma! ― Hanna! ― Gritou Brandon agarrando-a pelo braço para impedir que saísse dali. ― Temos que lhe deixar ver que não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir. ― E nós… o que faremos enquanto isso? ― Sua voz era suave, quase imperceptível. ― Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe dispararam ― respondeu aflito.
VI
Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade. Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.
Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora estava cheia de vida. Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos, verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe. Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto que mal pôde dar um bocado. «Algum dia, ― disse ― tudo voltará para a normalidade e aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas com a desgraça da condenação». Mas… seria verdade? Retornaria de novo para lutar por sua
honra?
Estava
escondida
mais
de
meio
ano
do
acontecido, pensou que se separando de sua família, dos olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor? Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e tentava resolver essa sensação conversando com seus
animais,
mas
exceto
algum
zurro,
choramingação
ou
grasnido, não encontrava nada mais. Zangada
por
entristecer
um
bonito
dia
com
pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a loucura torturante com as pontas dos seus dedos. Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto. Um cão… ― pensou enquanto caminhava. Seguia pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria, refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore. Seguia pensando no animal e em como chamá-lo quando um bando de pássaros voou entre as copas das árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído,
tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e olhou para o lugar de onde procedia o som. Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados? Só
podia
achar uma
resposta a
esse
comportamento
aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona, levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem afastar-se de uma possível presa. O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros, a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez. O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações fossem suficientes para espantar um possível mal. Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu
caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe provocava alucinações. Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E então… aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada, cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem poder
elevar
os
olhos.
Esperou
o
suficiente
até
que
comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão de sua queda. ― Santo Deus! ― Exclamou ao mesmo tempo em que se aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta. Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de sua premissa e gritou: ― OH, Senhor! Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em
suas terras de maneira clandestina? A única resposta plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer, aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma. A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia, aproximou-se do duque e o observou com atenção. «Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando percebeu que ainda respirava. Nesse momento outro bando de pássaros voou com frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou sem descansar até que suas costas tocou o cercado que rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem. Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a porta com o trinco.
Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada. Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão horrendas como diziam, embora para um homem tão formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo. Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião, da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do incidente. Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não era.
Esperou sentada junto à chaminé outra reação do homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava em uma situação parecida e embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes ajudar por solidariedade. Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma mancha de sangue que não tinha visto com antecedência. Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se, preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar
o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um arranhão muito comprido. Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado, os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser a mulher que foi. Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.
VII
Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão. O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio, mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia, achava-se em um lugar que não conseguia distinguir. Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um
aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava a ele. ― Desculpe… ― sussurrou após respirar várias vezes e procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la. ― Já despertou? ― Perguntou Beatrice dando um salto. Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes. ― Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado por... ― deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximouse da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e, depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e o rosto. ― Terá que ficar um tempo de repouso, embora as feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos para que sarem adequadamente. O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.
― Onde estou? ― Ao sentir o suave tato da mão feminina pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para que cessasse imediatamente. ― Em minha casa. ― Beatrice o olhou apertando os olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado. William, ao ser consciente de seu inoportuno ato, soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão. Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o tilintar das botas do duque ao golpear-se. ― Deve recuperar-se… seu… senhor. ― Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas recentemente… ― seu tom soou débil, inclusive triste. ― Mas apesar disso deve descansar. ― Levantou-se e se dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu em uma terrina. ― Acredito que isto lhe virá bem… ― retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios. ― Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe
reconfortará. ― E antes que o duque pudesse negar-se, Beatrice o fez tomar. William esticou a mão para o recipiente e ajudou à moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar. ― Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você entenda que não desejo ser uma carga… ― disse-lhe sem apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus tornozelos. ― Meu… quem? ― Deu uma volta sobre si mesma com brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais do
devido e
que
o
duque
descobrisse
umas
magras
pantorrilhas sem meias. ― Seu marido… a pessoa que haverá me trazido até aqui ― esclareceu. ― Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o transladou. ― Colocou-se em frente a ele com as mãos apoiadas em sua cintura. ― Você carregou o meu peso? ― Perguntou assombrado e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e,
notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma jovem de sua idade. ― Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me custou a minha ― sorriu. Quando William a observou sorrir acreditou ver um anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos para a cicatriz, para franzir o cenho? ― Então… devo lhe agradecer o esforço que realizou para me salvar ― disse após sua reflexão. Tentou levantar-se de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou imediatamente. ― Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se. ― Obrigado ― disse depois de uns momentos de silêncio que
empregou
para
saber
como
deveria
continuar
a
conversação. ― Se por acaso não se deu conta, sou um incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar. Minha perna… bom, ela tenta recuperar um pouco de funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu lar.
― O que lhe aconteceu? ― Colocou-se ao lado da chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade. ― Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante tempo… ― Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ― Interrompeu-lhe. ― Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se assustou e… bom, eu fui jogado. ― Suspirou e olhou para o teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que o tinha salvado de uma morte segura. Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se calada esperando que o duque continuasse, mas ele se manteve em silêncio. ― Há lobos pela região ― explicou para romper o mutismo entre ambos. ― Talvez seu cavalo se assustasse ao escutá-los e atuou preso do medo. ― Pode ser… ― respondeu sem apartar a vista do teto. ― Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda. Estou segura de que alguém estará preocupado por seu desaparecimento. ― Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou possivelmente era ela a que se encontrava nervosa. William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava
observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade de suas cicatrizes. ― Posso lhe perguntar seu nome? ― Inquiriu William quando ela retornava para a chaminé. ― Meu nome é Beatrice ― respondeu. ― Só Beatrice? ― Beatrice Brown ― mentiu. ― Senhorita Brown, ― disse o duque com um tom sério e firme ― como compreenderá, estou em dívida com você e seria um cretino se não a saldasse. ― Não precisa me prometer nada… ― Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecereilhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta, salvou-me a vida. ― Não necessito de nada… ― murmurou com suavidade. ― Não quero que me responda agora, não é necessário. Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de escutá-la
―
insistiu
sem
relaxar
aquele
tom
de
venerabilidade. À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma propriedade
dele
e
precisava
seguir
permanecendo
ali
durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um sorriso em seu rosto e disse:
― Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço. ― Juro por minha honra… ― Shhh ― avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível. ― É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais. William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez nem um nem outro, ficou observando-a durante uns instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir. Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado com repulsão e o tratava com ternura. Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda do duque. Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se
veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por que vivia em um lugar que não lhe pertencia. A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e correr para a residência. Durante o caminho sopesou a atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer tudo o que tinha acontecido. Como sempre, a magnitude do edifício a deixou perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um estranho e horrendo silêncio. ― Menina! ― Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ― O que faz aqui? ― Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ― respondeu com voz equilibrada. ― Retornou para…?
― Não! ― Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor vermelha. ― Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender. Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e… ― O duque está em minha casa – interrompeu-lhe. ― O que está dizendo, moça? ― Os olhos inchados da anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o duque estava desaparecido, abriram-se de par em par. ― Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive cuidando após ― explicou Beatrice. ― Obrigado, meu Deus! ― Clamou antes de lhe dar um forte abraço e enchê-la de beijos. ― Muito obrigada, criatura do Senhor, por salvá-lo. ― Depois de uns momentos nos quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e correu para a porta gritando: ― Senhor Stone! Senhor Stone! ― O que acontece? A que vêm esses gritos? ― Tal como se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe disse: ― O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando mais? ― Brandon! ― Gritou Hanna zangada. ― Por que é tão…? ― Tão? ― Arqueou as sobrancelhas e uniu com suavidade as pestanas.
― A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o esteve cuidando ― esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego. ― Onde está? ― Exigiu sem baixar a intensidade de seu tom. ― Está em minha casa ― anunciou abaixando a cabeça. As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela noite lhe tinha criado um grande pavor. ―
Diga-me
agora
mesmo
onde
se
encontra
sua
Excelência! ― Exclamou com ira. ― Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes informar que se encontra bem. ― Onde está? ― Repetiu Brandon com os dentes apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la. ― Na pequena casa que há no bosque. É o… ― murmurou devagar. ― Refúgio de caça ― terminou a frase. ― Está bem, mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu bem, que se encontre em ótimas condições porque do contrário… ― Não desejo escutar nada sobre isso, ― agora foi ela quem não lhe deixou terminar a frase ― vim voluntariamente lhe indicar onde se encontra. Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar
ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de apanhar a moça, já não estava. ― Por que não impediu que se fosse? ― Perguntou zangado à sua mulher. ― Pensa que minhas pernas podem correr como os galgos? Além disso, não crê que se comportou como um idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa. ― Mas… ― Não tem “mas”! ― Exclamou levantando a mão para lhe fazer calar. ― Hoje não espere nenhum tipo de afeto em nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a noite, que durma em outra habitação. ― Depois de ameaçá-lo, girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à comida que estava cozinhando. Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da casa, moveu a cabeça para sua direção. ― Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ― Perguntou sem mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção. ― Sim ― respondeu enquanto se aproximava e se colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmouse e continuou: ― Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito. Tenho poucos recursos…
― Andou até Haddon Hall… sozinha? Apesar de me haver indicado que há uma manada de lobos rondando no bosque? ― William estava zangado. Mais do que se havia proposto. Um momento depois de recostar-se escutou a porta, despertou e, por muito que a tinha chamado para que não partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantarse, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado e suas consequências. ―
Não
se
preocupe
comigo,
Excelência.
Estou
acostumada a contornar certos perigos. ― Tirou-se a capa e a colocou sobre uma cadeira. ― Mesmo assim, você é uma inconsciente ― disse com aborrecimento. ― Uma inconsciente? ― Beatrice entrecerrou seus olhos e franziu o cenho. ― De verdade que um homem como você é capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com limitações? ― Fechou com rapidez a boca. O que menos desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque
cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham feito mal, mais do que pretendia. ― Você tem razão… ― sussurrou William. ― Por isso quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível, antes que eu parta. ― Só preciso ficar sozinha… ― murmurou muito devagar. Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e esticou as mãos para esquenta-las. William se dispunha a replicar suas palavras quando a porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas. Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de câmara.
Ficaram
olhando-os
durante
uns
instantes
esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo. ― Sairei para que o assistam como é devido ― comentou Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a saída. Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a partida.
Desejava
com
todas
as
suas
forças
que
a
normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum bem.
Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentouse nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e William se apoiava em um deles para poder caminhar. Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando passou por seu lado, o duque fez com que parassem. ― Temos uma conversação pendente, senhorita Brown. Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais cedo possível. ― Não temos nada do que falar, milord ― disse abaixando a cabeça. ― Não me deve nada. Os
criados
entenderam
que
a
conversação
tinha
finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem. Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe devo minha vida, senhorita Brown».
VIII
― Está seguro? ― William tomava o café da manhã enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe explicava que o criado enviado para que acompanhasse a senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez sozinho. ― Sim, sua Excelência ― afirmou o mordomo depois de um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela, estava sendo uma verdadeira agonia. ― É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram em sua busca? ― Pegou a xícara de chá e a levou para a boca para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios. Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais, se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz de albergar um estranho em seu lar sem pensar na repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além disso… desde quando uma frágil moça salvava a vida de um desconhecido pondo em perigo a sua?
― Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está em casa desde o infortúnio ― esclareceu. ― Bom, então acredito que a melhor opção é me apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo de suas contínuas negativas ― indicou pousando a xícara sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se levantar. Pegou com força a bengala e caminhou para onde se encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a terceira
negativa
chegou
até
seus
ouvidos.
Entretanto
esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com energia suficiente para assumir as consequências de seu destino. William estranhou sua repentina mudança de atitude. Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes possível o por que. ― Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião. ― Como desejar, sua Excelência. Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a
experiência necessária para compreender que as decisões do duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o. Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez… tinha-lhe acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu autêntico lar. «Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas. ― Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ― explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do duque aparecia pelas cavalariças. ― Espero que desta vez as cintas não se rompam ― apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o animal eleito.
― São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o criado sem lhe olhar nos olhos. ― Têm o dobro de grossura e proporcionam uma amarração mais segura. ― Bem… ― disse mal reparando na explicação do jovem. Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão, perguntou ao criado: ― Continuam a busca pelo Dalión? ― Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que a terra o tragou… ― É mais fácil ter sido devorado por uns malditos lobos… ― murmurou com os dentes apertados antes de açular ao animal. Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que se
encontrava
e
na
facilidade
que
teriam
aqueles
depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixála à mercê do nada. Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ― Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não abandonará esse lugar jamais.
Mas apesar de saber que a negativa seria sua única resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente para que seus criados construíssem um muro de pedra ao redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a uma
multidão
de
inquietações
produzidas
pela
ditosa
senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como teimosa. Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais. Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado, corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal, voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que havia no terreno.
― Espero que isto a ensine a não fugir de mim ― dizia ao animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para resguardar-se junto ao rebanho. Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada. Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo, dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque, assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se ali nem que morresse de fome! ― Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir em sua busca. Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção: a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido. Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele
que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o famoso duque de Rutland. ― Bom dia, Excelência ― respondeu baixando as mãos e abaixando a cabeça. ― Bom dia, senhorita Brown ― disse mostrando um grande sorriso. ― Vejo que continua desafiando a morte. ― Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e decida me salvar ― indicou com zombaria. ― Você confia muito na piedade dos outros… ― replicou antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa que a olhava era o duque. ― Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas como já sabe… ― o tom zombador do duque desapareceu de repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive com um toque de tristeza. ― Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso, poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ― explicou ao mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.
Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita fosse lhe recordar a ditosa promessa. ― Senhorita Brown… ― disse enquanto fazia com que seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ― Por que se negou a aceitar meu convite? ― Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não posso perder tempo aceitando visitas que… ― Meu convite lhe faria perder tempo? ― William arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente. Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e cobrir-se de lodo. ― Não quis dizer… ― começou a desculpar-se, mas depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e lhe perguntou de mau humor: ― A que devo a honra de sua visita, senhor? ― Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu gostaria
de
resolver
tal
argumentou com seriedade.
questão
o
antes
possível
―
― Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com uma mulher? ― Sorriu de orelha a orelha triunfante. Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a deixasse por fim em paz. ― Insônia… ― virou os olhos para a esquerda como se estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ― Não, eu não o denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba minha mente. ― Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa pode fazer tal coisa? ― Prosseguiu com um tom mordaz. ― Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os olhos só vejo você ― explicou com tom sereno, impessoal, embora por dentro não cessasse de rir. ― Como diz?! ― Beatrice abriu os olhos como pratos e sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés. ― Ai! ― exclamou de dor. William agarrou com força as rédeas do cavalo com a mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão. Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da
mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma centena de lágrimas. ― Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que estávamos mantendo em nossa conversação. ― Aproximou-se tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ― Deixe-me examinar seu pé. ― Estendeu a mão útil e tocou com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da jovem. ― Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida? Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você… ― voltouse para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania que existia entre eles. Durante uns escassos instantes, Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos na cintura e indicou: ― Como lhe disse com antecedência, não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso dormir sob um teto. ― Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me
comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ― explicou ao mesmo tempo em que se elevava do chão. ― Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ― Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos escutaram o eco da risada no bosque. ― Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a vida. ― William se mantinha de pé a curta distância da mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para onde estava, começou a perambular de um lado para outro. ― Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade. Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ― declarou mal-humorada. ― Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação de protegê-la igual você fez comigo. ― Seu tom de voz tinha recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade próprias de seu título. ― Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ― Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o homem e o olhou desafiante. ― Não! ― Exclamou o duque. ― Deixá-la em meio de um nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me parece uma opção acertada! ― Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que
um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e se encontre com um corpo esquartejado? ― Elevou tanto a voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava oferecendo a um homem de sua classe. ― Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ― disse William caminhando para ela com passo firme e esquecendo a dor constante de sua perna ― que um dia apareça por estas bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada minha conjectura, senhorita Brown? Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto do mundo. ― Está bem ― disse Beatrice depois de um leve silêncio. ― Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse desejo. ― Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição? ― William franziu o cenho e apertou a mandíbula. ― Sim, isso é o que anseio ― afirmou em um tom mais tranquilo e olhando para o chão.
― Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que obterá. Bom dia, senhorita Brown. ― Golpeou as botas pelos calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao cavalo. Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do esperado.
IX
― O senhor quer lhe ver na biblioteca. ― Mathias, o cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia poucos minutos. ― Como que não requereu os meus serviços para desmontar? ― Perguntou inquieto Brandon. O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar. ― Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ― explicava com certa excitação.
― Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ― Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes. ― Encontrava-se muito agitado. Acredito que também bastante zangado ― respondeu Mathias. ― O que lhe terá acontecido? ― Disse a mulher ao mesmo tempo em que retomava ao trabalho. ― Está bem, pode voltar para as cavalariças ― indicou Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua esposa. Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela, apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns instantes cortando verduras, perguntou-lhe: ― O que ronda nessa sua cabeça? ― A mim? ― Respondeu abrindo os olhos como pratos e elevando as grisalhas sobrancelhas. ― Nada, não penso nada. ― Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz quando sua mente não para de refletir. Vamos ver… o que você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor teve durante estes dias? ― Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho. ― Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ― O semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de tristeza.
― Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a resposta ― indicou com tom suave e quente. ― Hanna, por favor… ― Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ― Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias, mais exatamente desde que o duque retornou do incidente, rondando em seu cérebro. ― Se retroceder um pouco no tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião comentou que não entendia como um homem podia pentearse como uma mulher, não é? ― Brandon assentiu. ― E de repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de escuridão. Lembra-te quando foi? ― Dois meses depois de celebrar o duelo ― respondeu com rapidez. ― Em efeito, e a razão foi…? ― Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido. ― Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam. Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava contemplar. ― Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ― Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.
― Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem, catalogar
certos
aspectos
importantes
como
banais.
Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher, descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã? Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto. ― Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta ― manifestou a mulher depois de observar como seu marido entrecerrava os olhos. ― Só estou pensando… ― Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando… ― agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe escapavam. ― O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que hoje teve sua Excelência? ― De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu? ― Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe ofereceram.
― Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um cão pulguento ― indicou zangada. ― Como queria que a tratasse? Se por acaso não o recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me informou que lhe negasse a entrada de novo. ― Mas lhe salvou a vida! ― Exclamou irada. ― Além disso, ele não sabe que ela… ― ficou em silêncio pensando se cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o acontecido àquela noite. ― Hanna! ― Chamou Brandon ao vê-la calada e refletindo algo que parecia entristecê-la. ― O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso cabelo, não é? ― Alterou a consciência para a direção que tinha tomado à conversação. ― Certo. ― E não perguntou a que se devia essa mudança de opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque e que era perigoso passear por ele.
― Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o cabelo ― explicou exasperado cruzando seus braços no peito. ― De verdade que não é capaz de entendê-lo? ― Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão frustrada. ― Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que me explica. ―
OH,
querido!
Por
que
não
abandona
esses
pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu coração? ― A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura. ― Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a desenvolvi mais do que outras pessoas. ― Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia pedir o duque quando aparecer ante ele, não é? ― Pode pedir qualquer coisa… ― Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem vivendo na cabana o tempo que desejar. ― Aproximou-se dos lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo. ― Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar por que retornou tão enfurecido após visitá-la.
― Querido meu, nosso duque está acostumado a ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha, vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não são certos. ― Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou a mover a comida que serviria em breve. Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo, sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim. Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.
William perambulava de um lado para outro sem notar a dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se
dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo importante, mais do que se imaginou alguma vez. ― Mulher teimosa! ― Exclamou com energia antes de girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas de bebidas colocadas sobre uma cômoda. Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa tão importante ao Brandon em um estado péssimo de embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez porque do contrário seu mandato seria desprezado. Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio. Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar. ― Excelência ― disse o homem ao mesmo tempo em que realizava uma ligeira inclinação. ― Desejava ver-me?
― Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se deve a demora? ― Perguntou zangado. ― Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ― explicou. ― Aconteceu algo à senhora Stone? ― Perguntou um pouco mais acalmado. Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma ou outra traquinagem. ― O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve acrescentar mais verduras ao menu do dia ― indicou. Esperava
que
aquela
desculpa
lhe
contentasse
e
deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a Deus por sua benevolência. ― Hoje parece que o sexo feminino está inquieto… ― comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se. Nesse instante, ao entender que não era o único homem que tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras terríveis que emitia a perna machucada.
― Como diz? ― Quis saber Brandon ao não entender muito bem o comentário do duque. ― Nada. Foi só uma consideração. ― Reclinou-se no assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor. ― Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ― O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas terríveis dores. Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque demandava sua presença porque precisava ser atendido por sua dor. ― Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à Haddon Hall o antes possível ― apontou com calma ao mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada. ― O senhor Gibbs? ― Perguntou surpreso antes de morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir explicações. ― Sim ― respondeu William evitando a inquietação do mordomo. Sabia que chamar seu administrador causaria alguma incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto, desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de sua mãe, destruido-a. ― Preciso falar com ele o antes
possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais… ― girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu com suavidade a cabeça para ele: ― Acontece algo? ― Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que sua chamada se devesse ao interminável padecimento que sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que realizou pelo bosque ― disse entre desculpas. Esperava que o duque não fosse capaz de perceber a insistência para averiguar o que pretendia. ― Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ― comentou William entreabrindo os olhos. ― Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua proposição?
― Insistiu
sem
mostrar
em
seu
rosto
a
importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua esposa porque, outra vez, estaria certa. ― Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de responder à sua piedade ― falou com raiva – rogando-me que a deixe desamparada naquele lugar miserável. ― Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence? ― Soltou sem pensar. ― A questão não é se deseja viver na cabana de caça, mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão inóspito ― explicou apertando a mandíbula.
― Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente isso lhe tivesse mudado… ― Senhor Stone! ― Gritou William zangado. ― Acredita que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha merece esse trato tão depreciativo? ― Sinto muito, Excelência ― manifestou abaixando a cabeça e cravando o olhar no chão. ― Desculpe minhas palavras, mas tem que compreender que se a senhorita Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua saúde. ― Esquecerei seu comentário porque tanto você como a senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu combinamos se cumprirá. ― Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça saber que você deseja vê-lo o antes possível. ― Brandon jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse à conversação. ― Necessito de uma coisa mais… ― assinalou antes que o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver
de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ― De todos os que trabalham para mim, ― prosseguiu em tom firme ― há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ― Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou: ― Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que alguém me ofereça informações sobre ela. ― Mas, milord, por onde começaremos? ― Brandon abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de refugiar-se na cabana? Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso. Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez indagasse mais sobre isso. ― Brandon! ― Exclamou William ao observar a palidez do rosto deste. ― Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre a pergunta que me realizou ― mentiu e voltou a pedir piedade a Deus. ― E? ― Insistiu. ― Neste momento a única pessoa em que confio, além de em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um
cão e mais calado que um mudo ― disse com solene segurança. ― Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário não conheceria este lugar. ― Pensou meu senhor, que poderia não ser seu verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade ao lhe perguntar por seu nome. ― Brandon não queria que o duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o que encontrasse não fosse de seu agrado? ― Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ― Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do ancião não cessava de lhe golpear a cabeça. Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome, Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar sozinha.
― Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer, agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes possível com seu novo trabalho. ― Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém disto ― acrescentou. ― É óbvio. ― Depois de despedir-se como era devido, Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para a cozinha. Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pedirialhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua benevolente esposa era mentira.
X
O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo, mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a porta para confirmar que no galpão de lenha não havia nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e encher seus estômagos.
Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não a convencia. Achava-se no meio do nada com comida suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de ferver, e sentia cada vez mais frio. Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e aceitando
sua
única
condição.
Beatrice
suspirou
profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a
consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas. Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo. Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora fosse somente em sonhos. Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas pelas
joias
penduradas
em
seus
pescoços.
Zangada,
depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e se levantou do assento. ― Não pode me obrigar a isso, mãe! ― Bramou irada. ― Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao qual deve assistir ― indicava com calma. ― Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a realizar algo que não desejo? ― Arqueou as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura. ― Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem tão… Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.
― Meu Deus! ― Gritou com força ao observar a cena mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava sobre a parede de pedra. ― Malditos sejam! Deixem-nos em paz! ― Continuou vociferando. Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice, ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou para defender-se. Parecia que não lhes importava sua presença, como se seus ataques não fossem perigosos. Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo, notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se reduziram com mais rapidez quando observou atônita e impotente
como
os
lobos
apertavam
com
força
suas
mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os arrastavam para o interior do bosque. Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando
a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a atemorizava com seus intensos uivos. Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera. Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o cristal, a atroz besta não poderia acessar. Conforme passava o tempo e compreendia que estava a salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil, ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último suspiro.
William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos. Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar todos os que apareciam em sua casa, momento que aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como uma tarefa tão singela estava se convertendo em um tremendo calvário. Durante as semanas seguintes à conversação com a moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar nenhum descendente para continuar com seu legado. O duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia. Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito
do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua vida para salvar a de um desconhecido. Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que tinha deixado crescer de novo após compreender que ninguém mais voltaria
a observá-lo com
normalidade.
Ninguém exceto ela. Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido, abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um matiz
menos
sinistro.
Mas
o
perigo
espreitava
constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de uma
ocasião
sentiu
medo,
apesar
de
encontrar-se
resguardado na mansão. No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando. Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a porta e começou a gritar o nome de seu mordomo. ― Sim, sua Excelência? ― Brandon aparecia em meio a se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu uniforme.
― Faça com que preparem o antes possível uma carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que partiremos para o refúgio de caça assim que estejam preparados. ― O que ocorre, milord? ― O senhor Stone não saía de seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido, soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo. ― Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão. ― Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de câmara que vá à sua habitação? ― Está demorando muito! ― Clamou ao mesmo tempo em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele mesmo a camisola com o qual dormia. Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado, golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão, levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito desde menino: rezar. Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que
se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e o coche parou abruptamente. ― Deus santo! ― Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi obra do próprio diabo! William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o olhar para o cenário que seus homens contemplavam atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão, dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue. Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza. ― Que diabos aconteceu aqui? ― Perguntou estupefato um deles. William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio indicava que a morte tinha devastado qualquer possível
fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada. Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse sido ele. ― Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram estes pobres animais, encherei-o de chumbo ― comentou com firmeza o cocheiro. William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel enquanto observava como o servente direcionava sua arma para a porta e tentava abri-la. ― Está pesada! ― Gritou após vários intentos falhos. ― Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir o que me impede entrar ― ordenou ao jovem que não cessava de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as atrocidades provocadas pelo demônio. O jovem se aproximou do cristal com passo lento e inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado
para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade. Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a viseira de uma boina e gritou: ― É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que… Deus santo bendito, aí há alguém! ― Abre-a! ― Exigiu William mais assustado que nunca. ― Terei que golpear com força e poderia… ― começou a explicar o homem. ― Abre-a! ― repetiu com mais vigor ainda. O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que obteve, mas o suficiente para acessar o interior. ― É uma mulher! – Exclamou. ― É uma mulher! ― Repetiu agitado. ― Graças a Deus, parece que ainda respira! William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele mesmo. O rosto da moça estava pálido e os braços lhe penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser humano. ― Deite-a no interior da carruagem! ― Gritou o duque. ― Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o coche? ― O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ― Pois
desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley, necessito que leve o médico a Haddon Hall. Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice era
depositada
com
cuidado
sobre
o
sofá
direito
da
carruagem, na posição adequada para que William a auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria, mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa, tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o rosto, queria observar se continuava respirando, queria que seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e determinação. De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.
XI
Não desviou o olhar dela até que a carruagem parou com brutalidade. William se reclinou para diante devido à brutalidade da freada e sua testa golpeou o assento que tinha diante. Fez uma careta de dor e em seguida o ignorou prestando toda sua atenção nela. Antes de poder girar-se para a porta, esta se abriu com rapidez. ― Meu senhor! ― Exclamou Brandon assustado. ― O que ocorreu? ― Ajude-me a me levantar ― indicou esticando a mão direita. Quando ao fim conseguiu sair do veículo, prosseguiu: ― foi atacada pela manada de lobos. Todos os seus animais pereceram e ela saiu ferida gravemente. No trajeto mal a escutei respirar. Necessito que preparem como é devido meu quarto. A senhorita Brown será atendida ali. Ordenei ao Mathias que traga o doutor… ― Aos seus aposentos? ― Perguntou assombrado o mordomo interrompendo a argumentação do duque. ― Não seria mais adequado…?
― Não discuta minhas ordens ― resmungou com ferocidade. ― Hoje não ― sentenciou. Brandon fez uma pequena reverência e se afastou correndo para a casa para transmitir as ordens do duque ao pessoal que esperava sobressaltado ao pé das escadas. ― Pelo amor de Deus! ― Exclamou Hanna ao ver a moça nos braços do cocheiro. ― O que aconteceu? ― Sem esperar a resposta deu uns passos para a jovem e ficou frente a ela impedindo que o cocheiro avançasse. Apartou com cuidado as mechas que escondiam seu rosto e, depois de observá-la mais de perto, levou as mãos ao rosto e começou a chorar. ― Foi atacada pelos lobos, senhora Stone ― esclareceu William com certo pesar. ― OH, meu Deus, pobre moça! ― Exclamou entre soluços. ― Necessito de sua ajuda. Ordenei ao senhor Stone que a acomodem em meu quarto, é o maior e mais luminoso. ― Depois de sua exposição olhou à anciã esperando que debatesse sua decisão, como tinha feito com antecedência seu
marido,
mas
no
rosto
enrugado
não
encontrou
recriminação alguma, feito que lhe satisfizesse. Soube que, como sempre, Hanna era uma boa aliada. ― Lorinne, ― A cozinheira olhava à assustada criada que andava atrás dos passos de seu marido ― prepara vários caldeirões com água quente e recolhe todos os panos que possa encontrar. William inspirou profundamente ao escutar como a anciã tomava o controle e dava as instruções que ele era
incapaz de fazer. A fadiga o debilitava. Havia lhe custado horrores subir os degraus e avançar ao ritmo do homem que levava Beatrice. Dirigiu o olhar para ela e franziu o cenho. Odiava não ser ele quem a segurava entre seu corpo e a conduzisse até o leito. Odiava não poder lhe sussurrar que sob seu cuidado estaria protegida. Como ia afirmar tais coisas se ele era o primeiro que necessitava de ajuda para realizar tarefas tão singelas como alimentar-se? Nesse momento amaldiçoou seu passado, desprezou ao ser que foi, a vida desonesta que tinha tido, o duelo e aborreceu-se de suas inadequadas decisões. ― Sua Excelência… ― escutou a voz de Brandon. Desta vez era muito suave e inclusive tremente, como se tivesse medo de interromper seus pensamentos. ― Sim, Brandon, encontro-me bem. Estarei no salão descansando um pouco enquanto instalam a senhorita Brown. Assim que estiver pronta e o doutor chegar a Haddon Hall quero que me informe. ― É óbvio, senhor. Avisarei-lhe. ― E estendeu algo que tinha segurado desde que a carruagem do duque apareceu no jardim. ― Muito obrigado e perdoa minha atitude. ― Agarrou a bengala e, mancando, caminhou para o salão principal. Apesar de ter as portas fechadas escutava os criados correrem de um lado a outro. Todo mundo atuava com frenesi menos ele que, depois da minúscula tarefa, devia permanecer sentado na poltrona para poder recompor-se. Levantou a bengala e com vigor golpeou a perna que lhe causava
transtorno. Sentiu uma terrível dor, mas não emitiu nem um minúsculo gemido. Merecia-o. Merecia isto e muito mais. «Deus é justo e ao final toda essa arrogância será seu padecer», havia lhe dito em mais de uma ocasião seu amigo Federith.
Nunca
tinha
meditado
naquelas
palavras,
entretanto, naquele momento não cessavam de aparecer em sua mente. Sim, é óbvio que Deus era justo e lhe estava devolvendo todo o dano que ele mesmo ocasionou a outras pessoas porque, se a senhorita Brown falecesse, se ela não fosse capaz de lutar contra a morte com a intensidade que deveria, ele, o presunçoso duque de Rutland, cairia em um estado apático do qual não despertaria jamais. Dirigiu o olhar para o fogo e inspirou profundamente. Não entendia como não tinha sido capaz de velar por ela, cuidá-la, salvá-la daqueles monstros. Em vez de indagar sobre a procedência ou o passado de Beatrice, tinha que ter preparado uma batalha contra aquelas feras e as haver eliminado de suas terras porque, por muito que o clérigo lhe informasse que os animais também eram seres do Senhor e que foram criados para executar uma função no mundo, ele podia espantá-los, afastá-los da cabana. Mas não o fez. A tarefa mais singela era rebuscar no passado de uma mulher e não reclamar a ajuda de outras pessoas para que realizassem o trabalho que ele, por si mesmo, não podia fazer. Apertou com tanta força o punho da bengala que o desenho ficou gravado em sua palma. Sentia-se tão inútil, tão insignificante, que não era capaz de aguentar aquela agonia.
Estava a ponto de golpear-se outra vez quando alguém bateu na porta. ― Adiante ― disse depois de colocar o bastão na parte direita da poltrona. ― Sua Excelência, o doutor acaba de chegar ― informou Brandon. Sem dizer nenhuma palavra mais, agarrou de novo a vara de madeira e caminhou para o hall, onde o doutor lhe esperava. ― Bom dia, Excelência – Saudou-lhe o homem tirando o chapéu. ― Seu criado não me explicou muito, só que necessitava dos meus serviços com urgência. ― Jogou uma rápida olhada ao corpo do duque e entrecerrou os olhos. ― Voltou a sentir dores na perna? ― Bom dia, senhor Wadlow. A chamada não foi por minha causa, e sim para outra pessoa ― esclareceu. ― Há alguém doente? ― Dirigiu o olhar para o senhor Stone procurando uma explicação, mas o mordomo tinha o olhar cravado no chão, sem querer intrometer-se desta vez na conversação. ― Se for tão amável de me seguir conduzirei-lhe até ela ― indicou William adiantando-se ao senhor Wadlow. Enquanto se dirigiam para a habitação do duque, comentou ao doutor que tinha encontrado a jovem no bosque e que, ao seu parecer, resguardou-se na casa de caça. Também lhe informou que, possivelmente, tinha sido atacada pela manada de lobos que habitava em suas terras. Como era lógico, evitou lhe contar o motivo pelo qual ela se achava
naquele lugar e outros pormenores. Quando chegaram em frente à porta, William bateu com suavidade. ― Está preparada? ― Inquiriu à Hanna, a mulher que abriu. ― Sim, sua Excelência ― afirmou. O duque não pôde apartar o olhar do semblante da cozinheira. Tinha os olhos inchados de tanto chorar e mostrava medo, tanto medo que o transmitiu a ele. O senhor Wadlow entrou na habitação seguido muito de perto pelo duque e se apressou a aproximar-se da cama. Ele, em troca, permaneceu calado observando a moça. Hanna e a donzela a tinham lavado um pouco e a extensão de suas feridas foi vista com mais clareza. ― As lesões que possui nessa perna têm um aspecto preocupante ― expôs o médico ao mesmo tempo em que deixava sobre um baú a maleta, tirava-se a jaqueta e arregaçava a camisa. ― Senhora Stone, atenda qualquer petição do doutor. Eu esperarei lá fora se por acaso me necessitarem. Girou-se com lentidão, não sem antes jogar uma olhada ao corpo de Beatrice. Ao vê-la com tão pouca vida, apertou a mandíbula, agarrou com força a bengala e saiu apressado para o corredor. Escutou a porta fechar-se após sua saída. Também ouviu o doutor ordenar que lhe elevassem o vestido, girassem-na e lavassem aquelas zonas que desejava observar. Em cada mandato, em cada indicação, o senhor Wadlow exclamava palavras de desespero. William fechou os olhos em
várias ocasiões e voltou a rezar para que Beatrice tivesse alguma
esperança
de
sobreviver.
Não
só
para
fazer
desaparecer sua culpa, mas sim porque a ideia de perdê-la o destroçava. Era a única mulher que tinha feito algo por ele depois do duelo, era a única mulher que tinha cuidado do rosto desfigurado e não tinha sentido asco, era a única mulher a quem lhe devia o continuar respirando e ele não foi capaz de lhe cuidar. ― Sua Excelência. ― A voz do doutor o sobressaltou. ― O que necessita? ― Seu consentimento para dar à paciente uma pequena dose de clorofórmio. Preciso operar a perna ferida o quanto antes, senão poderá perdê-la. ― Tem-no ― respondeu com sobriedade. ― Você tem todo o consentimento que precise para ajudá-la. ― Pode enviar outra donzela? As mulheres que estão lá dentro não poderão segurar a moça se ela acordar no meio da intervenção… ― É óbvio, agora mesmo avisarei ao meu mordomo. O doutor retornou à habitação e William caminhou para o final do corredor para reclamar a presença do senhor Stone. Quando lhe expôs o motivo de sua chamada, este não duvidou em fazer subir a criada adequada para tal função. Era uma mulher imensa. Seus braços eram do tamanho de dois do dele e mal tinha pescoço. Estava seguro de que se Beatrice tentasse levantar-se ela a imobilizaria no ato. ― Siga todas as indicações do doutor ― comentou o duque enquanto ela cravava com firmeza seu olhar no chão.
― Sim, sua Excelência. É óbvio. ― Fez uma reverência e caminhou depressa para o dormitório. William ficou sentado em uma das cadeiras que havia próximas à porta. Apesar da insistência de Brandon por reconduzi-lo para o salão e de lhe fazer esperar ali qualquer notícia sobre a intervenção, recusou de mau humor. Queria estar perto de Beatrice e ser o primeiro em ver o doutor sair com um sorriso triunfante após seu intenso e árduo trabalho. Mas permanecer ali lhe provocou mais terror que serenidade. Os gritos de dor que procediam da boca da moça lhe encolheram o coração, a garganta e lhe diminuíram os pulmões. Gritava com tanto desespero que sentia o horror da mulher correr por seu próprio corpo. Em várias ocasiões se levantou do assento e desejou com todas as suas forças abrir a porta e ficar a vociferar para que acalmassem aquela terrível agonia. Entretanto pensava-o melhor e retornava à cadeira, não sem deixar de meditar como um corpo tão pequeno, tão débil, tão delicado, podia suportar tanto sofrimento. O tempo se fez eterno. Não soube se tinham passado duas, três ou quatro horas quando a porta se abriu depois que a terceira criada acessou o seu interior. Mas enfim aparecia o senhor Wadlow. Olhava para suas mãos, que limpava minuciosamente, a barba grisalha e o nariz adunco enfatizavam um semblante abatido. William tentou manter a calma, mas não o conseguiu, antes que ele desse dois passos, aproximou-se e lhe perguntou ansioso: ― Como está?
― Necessitará de muito repouso. As feridas eram muito profundas e, embora haja utilizado todo o antisséptico que levava no estojo de primeiros socorros, estavam bastante infectadas. Um de seus criados deverá me acompanhar de volta e eu mesmo lhe proporcionarei outra garrafa de antisséptico. Deverão limpar a ferida pelo menos uma semana mais ― explicou. ― É óbvio ― afirmou sem apartar o olhar do médico. Tinha o colete manchado de sangue, assim como os antebraços, os quais ainda não tinha conseguido limpar. William franziu o cenho. O que teria acontecido lá dentro? ― Foram os lobos? ― Perguntou o doutor com voz reflexiva, mas não curiosa. ― Em efeito. Há um pequeno grupo vivendo no bosque. ― Acreditei que tinham partido ― prosseguiu com o mesmo tom. ― Retornaram. Ambos os cavalheiros andaram pelo comprido corredor, desceram as escadas e William, em agradecimento, ofereceulhe uma taça no salão. O senhor Wadlow, depois da árdua tarefa, aceitou de bom grado tomar um gole do melhor uísque do condado de Derbyshire. ― Foi uma sorte que a tenha encontrado a tempo ― expôs a seguir. Pegou o copo que o anfitrião lhe oferecia e esperou que este se servisse de um. ― Um golpe de sorte, diria eu ― apontou o duque com tranquilidade. Estava acostumado a reconhecer quando uma
conversação ia ser mais profunda do que aparentava e, se não se equivocava, o doutor estava meditando como iniciá-la. ― Quando se recuperar, essa moça terá uma dívida pendente com você. Estou seguro de que se não chegasse a dar esse passeio, ela teria perecido ― indicou antes de elevar o copo, fazer um pequeno brinde e dar um longo trago à bebida. ― Então brindarei por essa inesperada ansiedade por percorrer meus terrenos ― disse antes de imitar o médico. Durante uns momentos o silêncio foi o rei da habitação. Ambos os homens contemplavam as chamas do fogo como se o terceiro conversador fosse o dito elemento e esperassem com tranquilidade suas palavras. O ranger da lenha se ouvia com nitidez assim como o chiado das brasas. O doutor acariciou a borda de pedra da chaminé, colocou a ponta de sua bota na borda da mesma, voltou a beber e instantes depois olhou ao duque com severidade, o qual estava reclinando-se sobre a poltrona. ― Desde menino, ― começou a falar – escutei uma infinidade de rumores sobre o sobrenome Rutland. ― Está acostumado a acontecer quando se tem uma dinastia tão extensa. ― William bebeu devagar, cravou o olhar no
homem
e
arqueou
com
suavidade
as
espessas
sobrancelhas escuras. Aí estava o início do que já supunha, agora ficava por saber para onde dirigiria o bate-papo com o bom doutor. ― Mas jamais pensei que fossem reais ― afirmou.
― Bom, se puder me esclarecer a que se refere, eu tentarei limpar o bom nome que possuo ― disse com sarcasmo. ― Como pôde fazer um ato tão desprezível? ― Inquiriu zangado ao mesmo tempo em que girava seu corpo para o duque. ― Como? Pode esclarecer que ato desprezível cometi? ― Baixou a mão que sustentava sua taça e a apoiou no braço da poltrona. ― Como é capaz de menosprezar tanto as pessoas? Acredita que por possuir um título nobiliário de tal índole pode alcançar o nível que ostenta nosso Deus? ― Demandou zangado. ― Sigo sem entender o que… ― Pelo amor de Deus! Não tente evadir-se de minhas perguntas! ― Até este momento, meu prezado senhor Wadlow, ― disse William com uma voz repleta de autoridade ao mesmo tempo em que se levantava do assento e avançava para o desafiante ― comportei-me com cavalheirismo porque me ajudou a salvar a vida de uma dama, mas se seguir com esse trato insolente para com a minha pessoa, pediria-lhe que, depois de esclarecer os términos que lhe levaram a tal conclusão, parta o antes possível. ― Refiro-me à dama. Acaso não é sua prostituta? Acaso você não a abandonou nesse lugar perdido do Senhor para utilizá-la
a
inevitáveis?
seu
prazer,
apesar
de
expô-la
a
perigos
― Equivoca-se por completo. Essa ideia não é… ― E o que, se não for o sexo, o principal motivo pelo qual um homem de sua estirpe abandona o lar antes da alvorada? ― Respondeu-lhe irritado. ― Eu não sei os motivos que você tem para fornicar com sua amante ou as horas que se programa para fazê-lo porque sua senhora se ache em casa. Minha resposta a tais consultas inapropriadas é só uma: parta agora mesmo dos meus domínios! ― Não pôde levantar o dedo inquisidor porque segurava o copo, mas vontade não lhe faltou. E mais, se não tivesse saído ferido gravemente de seu último duelo, lhe teria desafiado a um nesse momento. ― Não negue… ― comentou desafiante o senhor Wadlow. ― Não me deu tempo para isso, você tirou suas conclusões sem querer escutar a verdade. ― Manteve-se ereto mais do que o habitual. No passado aquele estado de retidão era perene, mas com o passar do tempo e a vida que tinha, esqueceu-se da arrogância genética de seu sobrenome. Entretanto, que alguém tratasse Beatrice dessa forma, embora fosse para defendê-la, estava tirando-o do sério. Tal era sua agitação que lhe passou pela cabeça arrojar a taça ao chão, agarrar o atiçador da chaminé e lhe golpear até que sua sede de vingança se acalmasse. ― Está tentando me convencer que uma jovem de uns vinte anos de idade passeava pelo bosque de maneira descuidada e desprotegida? ― Insistiu o médico.
― Estou lhe dizendo que parta e saliento que o que você pensa sobre a relação existente entre essa moça e eu não me importa. Boa tarde, senhor Wadlow, e obrigado por sua visita. O homem depositou o copo de maneira descuidada sobre a mesa, golpeou as botas, fez uma ligeira e direta inclinação e partiu do salão sem mediar palavra. Fora, no hall, William escutou a voz de Brandon. Parecia manter um pequeno bate-papo com o doutor antes que este abandonasse Haddon Hall. Depois de ouvir como se fechava a porta principal, uns passos retos, firmes e compassados se dirigiram para onde se encontrava. ― O senhor Wadlow partiu ― explicou embora fosse óbvio. ― Recompensou seu tempo? ― William tinha se sentado de novo. Sua mão seguia segurando com firmeza o copo de bebida, possivelmente o fazia para que sua mente deixasse de estimulá-lo sobre o outro possível uso do atiçador. ― Sim, sua Excelência. Uma bolsa de cento e cinquenta soberanos é pagamento suficiente pelo trabalho que realizou com a senhorita Brown. ― Brandon tinha uma vontade terrível de perguntar o que tinha acontecido, mas a mandíbula apertada do duque, o olhar perdido e o cenho franzido com vigor lhe indicavam que, nesse momento, manter-se calado era a melhor opção. ― Como está? Despertou? Disse algo? ― Quis saber. ― Segundo a senhora Stone, está calma. O doutor lhe deu uma boa dose de clorofórmio e a moça se encontra em um estado de semiconsciência ― explicou.
― Está bem, quando conseguir beber esta maldita taça subirei para confirmar que é atendida como é devido. ― Senhor, não se preocupe, na habitação há várias… ― apertou os lábios e não prosseguiu. Aquele olhar repleto de ira o dizia tudo. Se ele queria subir, subiria. Se ele queria estar com ela, estaria. Se ele queria cuidá-la e esquecer-se de que não se encontrava em plenas faculdades para ocupar-se nem dele mesmo, cuidá-laia e se esqueceria. Esse era o verdadeiro temperamento Rutland e, por muito que o tentasse ocultar, Brandon se sentia feliz ao ver que por fim o duque tinha recuperado o estímulo que lhe faltava para converter-se de novo em sir William Manners.
XII
Tal como tinha decidido, depois de finalizar a taça William abandonou o salão e subiu as escadas que lhe conduziam para os aposentos. Com lentidão aproximou-se da porta de seu quarto, estendeu a mão para a maçaneta e a girou devagar para não fazer ruído e não dificultar o trabalho das criadas. Quando acessou a habitação a encontrou em penumbra. Tão só a luz de dois candelabros com quatro velas em cada um iluminava o interior. Depois de fechar atrás de sua entrada, fixou o olhar em Beatrice e suspirou. A jovem estava coberta com um lençol e só sua espessa e longa juba escura e seu semblante pálido estavam à vista. Dirigiu seus olhos para a senhora Stone e a observou em silêncio. Aquela sensação, a de encontrar-se em um velório mais que em um quarto onde uma doente se recuperaria após descansar, encheu-lhe de pânico. Nem sequer a morte de seu pai, supostamente um homem importante para ele, produziu-lhe tanto espanto. A razão? Nem ele mesmo conseguia responder com certeza.
Que lhe salvasse a vida e que ele não tivesse atuado em consequência, não eram motivos suficientes para explicar por que seu coração se oprimia com tanta força ao pensar nela, por que lhe resultava difícil respirar ao ver a moça em tão mal estado, por que desejava que despertasse e que escutasse sua voz junto a ela. ― Precisa descansar ― disse em tom suave Hanna. ― Sei ― respondeu William caminhando para o sofá onde pensava permanecer bastante tempo. ― Tomou o café da manhã, milord? ― Tomei uma taça ― comentou com relutância. Sabia o que aconteceria após aquela afirmação. A senhora Stone franziria o cenho, colocaria as mãos na cintura e, ignorando a linhagem de seu sangue, repreenderia-lhe como faria uma mãe preocupada com o bem-estar de seu filho. ― Farei com que lhe subam o café da manhã, o qual deveria ter tomado há umas horas ― explicou ao mesmo tempo em que tomava ar para controlar o aborrecimento que expressava seu rosto. ― É uma boa opção, senhora Stone. ― Colocou-se em frente ao sofá e foi descendo com cuidado sem apartar o olhar de Beatrice. Não era capaz de falar vendo-a daquela forma e tampouco seria capaz de comer nada do que lhe servissem. Mas não comentaria tal coisa à anciã porque se o fizesse, toda a atenção para a jovem ficaria em segundo lugar e ele queria que ela fosse o mais importante nesses momentos.
― Esta noite será muito dura, milord. Conforme nos indicou o médico a febre subirá muito e lhe provocará delírios, ninguém que estiver ao seu lado poderá descansar. ― Tentou que seus argumentos fossem suficientes para que o duque pensasse com sensatez e abandonasse a ideia que lhe tinha conduzido até ali. Hanna não estranhou que seu marido a visitasse depois da marcha do senhor Wadlow, mas sim a desconcertou escutar os propósitos do dono de Haddon Hall. Como ia ficar ali sentado durante o tempo que a jovem necessitasse para recuperar-se? Impossível! Ela faria tudo o que estivesse em sua mão para evitá-lo. Entretanto, ao vê-lo entrar com aquele semblante, seu corpo curvado e um brilho intenso nos olhos escuros, partiu-lhe o coração. Nunca, nos trinta e um anos que tinha o jovem, tinha-o visto tão abatido, tão desolado. ― Ficará aqui comigo? ― Perguntou-lhe William sem voz. ― É óbvio. Se você desejar que esta velha não se mova do quarto, não o farei. ― A cozinheira sentiu como seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto lhe tremiam as mãos e um nó na garganta lhe impedia de tragar a pouca saliva que produzia sua boca. Tinha descoberto algo e esse algo era mais importante do que seu marido supunha. Ele sempre falava do dever, da piedade e misericórdia inerentes a um homem com honra, embora o que ela tinha descoberto naqueles olhos tristes não tinha nada a ver com as hipóteses de seu querido marido. Como sempre, a lógica e a razão voltavam a falhar quando se tratava de sentimentos.
Hanna ordenou às criadas que se retirassem e que subissem uma boa xícara de café e um par de torradas para que o duque se alimentasse. Quando partiram, o homem se levantou da poltrona e andou até a cama, sob o atento olhar da anciã sentou-se sobre ela, esticou a mão e acariciou com suavidade o rosto de Beatrice. ― Arde ― disse sem trocar a posição de seu olhar. ― Não se preocupe, voltarei a passar um pano de água fria. Isso a aliviará – assegurou-lhe antes de inundar de novo o pano na bacia, depois o escorreu com força e o colocou na testa da jovem, que ao sentir o frescor do objeto em sua pele franziu o cenho e abriu um pouco a boca. William
contemplou
aqueles
lábios,
aquele
nariz
pequeno e arrebitado e como o peito se elevava ao respirar. Era a primeira vez que a observava sem que o lodo a cobrisse. Estava tão perto dela que pôde perceber as sardas diminutas que adornavam as bochechas agora vermelhas como o fogo. ― É uma garota forte, sua Excelência. Sairá desta ― comentou com tom suave. ― Sinto-me tão culpado… ― confessou sem lhe importar que Hanna estivesse junto a ele e observasse a debilidade que sentia. Não seria a primeira vez que o veria abatido. ― Não deve fazê-lo, senhor. Você insistiu em que permanecer naquele lugar tão espantoso era uma loucura. Recorde que todos aos que enviou para conduzi-la até aqui fracassaram. Foi sua própria decisão ― sentenciou com muita calma.
― Mas se eu… ― William voltou a roçar com sua mão a ardente bochecha. Seu calor era tão potente que o queimava. Aproximou a mão ao seu rosto e deixou que se refrescasse com sua própria frieza. ― Sabe de uma coisa, sua Excelência? ― Esperou que ele a olhasse para ter certeza de que tinha toda sua atenção. ― Deus faz coisas que ninguém consegue compreender, mas estou segura de que desta vez, assim como tem feito durante séculos, tem um bom motivo ― disse ao mesmo tempo em que introduzia de novo o pano na bacia para esfriá-lo. O
homem
iria
debater
tal
ideia
expondo
certos
argumentos que não lhe pareciam lógicos e que tinha presenciado com seus próprios olhos, mas alguém bateu na porta e, para evitar rumores absurdos, mais dos que o senhor Wadlow estaria divulgando no povoado, William retornou à poltrona para adotar uma pose serena. ― Adiante ― ordenou Hanna depois de confirmar que o duque voltava a mostrar integridade. ― Trouxe o que pediu ― indicou Lorinne mostrando uma bandeja. ― Deixe-a nessa mesa e consiga mais caldeirões de água fria. Necessitaremos de muitos para acalmar a febre da moça ― disse a cozinheira. ― É para subir com eles agora? ― Perguntou a criada um tanto desconcertada. ― Não, coloque na cozinha e faça o senhor Stone saber, ele lhe avisará quando os necessitar. ― Espremeu com tanta força o trapo que respingou a cômoda de água.
― Mais alguma outra coisa? ― Quis saber. Esta olhou primeiro à Hanna e depois ao duque, esperando que algum deles respondesse, mas quando nenhum deles o fez, partiu. Não se falou nada mais durante um bom momento. Nesse tempo repleto de silêncio, Hanna não cessava de molhar o pano e cobrir as bochechas e os pulsos de Beatrice. No momento que a anciã estendeu os braços da jovem sobre o lençol, William emitiu um pequeno grunhido de espanto. Eram tão magros e delicados que escapava ao seu raciocínio que eles tivessem trabalhado com firmeza para cuidar-se, para romper aqueles troncos grossos, para segurá-lo com força e arrastá-lo até o interior da cabana. Como tinha sido tão estúpido e deixado-a desamparada? Acaso não percebeu a debilidade da jovem ao tê-la em frente a ele? Por que não se deu conta? Que sentimento lhe tinha distorcido tanto a mente para não atuar com sensatez? Seguia sem poder responder-se ao sem-fim de questões que se fazia. Cada instante que passava junto à moça, mais perguntas surgiam. Esse estado de ansiedade lhe consumia com tanto ímpeto que, por momentos, sentia correr por suas veias o frio da morte. Sim, ele morria. Não de enfermidade, mas sim de vergonha. Então, quando sentiu que havia atingido o fundo, meditou
algo
que
nunca
tinha
sopesado:
aquele
comportamento não se parecia com o de seu pai, aquele que tinha odiado desde que tinha o uso da razão? As amantes, a frieza para as pessoas que lhe estimavam, a prepotência de ostentar um título herdado por sangue e não pelo que
realmente significava: sensatez, justiça e, sobretudo amparo para aqueles que lhe rodeavam. Não, tanto seu pai como ele se aproveitaram do sobrenome para sentirem-se superiores. Agora, por muito que lhe custasse admiti-lo, começava a entender a atitude de sua mãe: quem poderia viver ao lado de um monstro? Apertou com força a mão e a fechou em um punho sólido como o aço ao mesmo tempo em que refletia a melhor maneira de mudar todo o desastre que tinha provocado. É óbvio que começaria por ela… dirigiu o olhar para Beatrice e sentiu de novo seu coração parar. Seria essa a razão pela qual Deus a tinha conduzido até sua presença? Queria que visse com seus próprios olhos a destruição que estava ocasionando? Se Hanna tivesse razão, se suas teorias sobre a metodologia que Deus empregava para conseguir seus fins eram certas, ele tinha recebido a mensagem com claridade. ― Meu senhor. ― Hanna interrompeu seus pensamentos com um suave tom de voz. ― Preciso me ausentar durante um momento. ― Acontece-lhe algo, senhora Stone? Está cansada? Quer que alguém ocupe seu lugar? ― Preocupou-se. ― Não. Encontro-me bem. É algo que… bom… só eu posso fazer por mim mesma. ― Envergonhou-se tanto que um pequeno rubor cobriu as rugas de seu rosto. ― Não se preocupe, ausente-se o tempo que necessitar. Eu ficarei com ela. ― William se elevou do assento e sentouse sobre o leito junto a Beatrice.
― Não demorarei, asseguro-o. Enquanto isso, só deve cobrir a testa com o pano. Pode fazê-lo ou peço…? ― Duvidou se continuava com o plano que tinha construído em sua mente durante o período de sigilo. Sabia que deixá-lo só poderia ocasionar alguma briga inesperada, mas o duque precisava ficar com ela a sós e deixar que o sentimento que arruinou seu interior crescesse como o fazem os brotos esverdeados das roseiras com a chegada da primavera. A moça, sem pretendê-lo, iria se converter em uma pessoa muito importante para o duque e rezava
com
todas
suas
forças
para
que
quando
ela
despertasse sentisse o mesmo por ele porque do contrário… não! Não queria pensar nisso. Deus a tinha levado até Haddon Hall para salvá-lo e talvez a jovem também se salvasse dessa desdita da qual fugia freneticamente. ― Posso fazê-lo ― respondeu com um leve sorriso. Hanna colocou o pano em Beatrice, olhou William para que compreendesse como devia fazê-lo e quando ele assentiu, deixou-os a sós. Depois de fechar a porta, a primeira cara que encontrou foi a de seu marido. Este abriu os olhos como pratos ao ver que deixava sozinho seu senhor com a doente. ― Como pode ser tão insensata? ― Grunhiu em voz baixa Brandon. ― Lembra-se daquele pequeno incidente na cozinha e de como bateu na minha porta depois de três noites dormindo fora de nosso leito? ― Arqueou as sobrancelhas grisalhas e o olhou com mais raiva do que lhe tinha mostrado. ― Pois se
quer passar pelo mesmo de novo, entra na habitação e interrompe o que nosso duque está desejando fazer. Ante tal ameaça Brandon soprou e acompanhou a sua esposa à cozinha ao mesmo tempo em que rezava, com esforço, para que nada de grave acontecesse. William tinha dado já duas voltas ao pano molhado. Compreendendo que devia desdobrar o lenço para coloca-lo de outra forma, pousou-o em seus joelhos e, com grande esforço o estirou, dobrou-o ao contrário e voltou a coloca-lo na testa. A jovem, ao sentir o frescor, gemeu com suavidade. Esse pequeno detalhe, o de poder ajudá-la a se acalmar, fezlhe tão feliz que seus olhos brilharam de novo. Tentou piscar para deixar de ver impreciso, mas o que aconteceu lhe chamou mais a atenção: brotaram umas pequenas lágrimas que percorreram com liberdade o rosto. Desde quando não chorava? Tinha-o feito no funeral ou no enterro de seu pai? Não. Ele não tinha chorado desde aquele dia… Apesar da proibição de aparecer no dormitório de seu progenitor quando este permanecia em Haddon Hall, ele engenhou para abrir a porta e saltar sobre a cama do duque. Queria saudá-lo, queria abraçar àquela pessoa que lhe tinha dado a vida e quase nunca estava no lar, mas encontrá-lo com uma mulher que não era sua mãe desconcertou-o tanto que deu um grito e despertou a ambos. O duque, furioso, conduziu-lhe para sua habitação e, sem pensar duas vezes, começou a lhe golpear nas costas e no traseiro com um cinturão que tinha pegado do quarto. Ele gritava que não voltaria a fazer mais, que lhe perdoasse, mas
em seu pai não havia clemência. Então a porta do dormitório se abriu e apareceu Hanna suplicando ao senhor que não continuasse com o castigo: «Mais quatro cintadas e darei por concluído seu castigo ― disse olhando de esguelha a servente. ― Ou os proporciono a ele ou as recebe você». É óbvio, ela escolheu a segunda alternativa e ele, assustado pelo que ia acontecer, observou imóvel como Hanna terminava com seu castigo. «Se voltar a se repetir, ― ameaçou ― as próximas chicotadas irão diretamente às suas costas, criada». Quando ficaram sozinhos, correu para a mulher para abraçá-la e, sob seu amparo, chorou desconsolado. Aquele dia aprendeu duas coisas: nunca mais procuraria seu pai e que aquela mulher jamais se separaria de seu lado porque, de todos os que lhe rodeavam, ela era a única pessoa que o amava de verdade. William soprou ao rememorar aquele momento. Não estava acostumado a voltar para o passado para indagar por coisas
dolorosas,
mas
se
encontrava
tão
fraco
emocionalmente que seu muro contra os sentimentos se derrubou. Olhou de novo Beatrice e sorriu ao ver que já não lhe ardiam as bochechas como na última vez. Parecia que a febre estava remetendo e isso era bom sinal. De repente, seus olhos foram captando cada milímetro daquele rosto. As sardas, seu nariz, as pestanas, seus lábios… era uma moça muito atraente e a beleza aumentava quando não estava coberta de barro. Uma estranha sensação lhe percorreu pelo corpo, tão singular que seu pêlo se arrepiou. Parecia sentir-se feliz, mais
do que devesse, tendo sob seu cuidado uma mulher ferida gravemente.
Seria
porque
levava
muito
tempo
sem
permanecer ao lado de uma mulher formosa? Não, não se tratava de um aspecto meramente sexual, era algo diferente. Uma onda de calor e um sentimento estranho para ele se mesclavam para surgir de uma forma incomum. Com suavidade e um tanto temeroso pelo que ia fazer, foi baixando seu rosto para o dela. Aproximou-se tanto que sentia sua respiração no rosto. Devagar, como se se tratasse de uma delicada flor, foi descendo os lábios até pousá-los nos da jovem. Então aconteceu algo perturbador, notou que seu coração se alargava e palpitava a grande velocidade, percebeu o correr do sangue por todo seu corpo como se estivesse em plena corrida de galgos e um brilho incrível lhe sacudiu a cabeça. Perturbado por tais sensações elevou a cabeça e, no meio daquele inesperado desconcerto observou que os olhos da jovem se abriram e o olhavam assustada. ― Não! ― Gritou Beatrice sacudindo com tanta força seus braços que, ao golpeá-lo, jogou-o no chão. ― Não! ― O que acontece, milord? ― Hanna, assustada pela intensidade dos gritos, acessou ao interior da habitação horrorizada. ― Deixe-me em paz! Não prossiga! ― Continuava vociferando Beatrice sem cessar de mover seu corpo, face às terríveis dores que deveria suportar. ― Solte-me! Não o faça! Tenha piedade! ― Meu senhor, é uma alucinação daquelas que dizia o médico ― explicava Hanna segurando com força a moça. ―
Por favor, diga ao senhor Stone que faça subir a Jimena, eu sozinha não poderei contê-la por muito tempo. William caminhou depressa para o corredor e chamou Brandon com todas as suas forças. Este foi ao seu chamado com prontidão e após lhe explicar o acontecido, o mordomo correu para a ala da servidão, minutos depois ele e a criada se introduziram na habitação. De onde se encontrava seguia escutando os gritos de Beatrice, um pranto agonizante que lhe rompia a alma, e como Hanna tentava consolá-la com suas típicas palavras de ternura. Aquele episódio horrendo não se dissipou até bem entrada a madrugada. William não pôde mover-se do corredor até que Brandon saiu e lhe confirmou que tudo tinha sido um delírio provocado, tal como indicou o senhor Wadlow, pela grande
quantidade
de
clorofórmio
que
lhe
tinha
subministrado. Entretanto, as palavras não o tranquilizaram. Ela o tinha olhado e, depois de observá-lo, começou a gritar. Ele era o culpado dessa tortura, ele e só ele. Aflito, caminhou cabisbaixo para o salão, necessitava de uma taça. Precisava esquecer a estupidez que tinha feito e a sensação tão assombrosa que lhe causou um simples roce de lábios.
XIII
Beatrice abriu os olhos e o observou de novo ali sentado, adormecido. Era, segundo seus cálculos, o oitavo dia que o fazia. Acreditou que alguma noite deixaria de ir ao quarto, de perguntar à donzela como tinha passado o dia e de sentar-se na poltrona para velar por ela. Mas não o fez. Seguia aparecendo em sua habitação cada noite e partia ao amanhecer. Nos primeiros dias se sentiu incômoda quando o viu junto a ela. Por que o fazia? O que pretendia? Entretanto, a ansiedade que lhe criavam tais perguntas se foi dissipando. Agora estava segura de que se elevasse suas pálpebras e não o encontrasse, entristeceria-se. Por muito estranho que lhe parecesse,
a
presença
do
duque
lhe
reconfortava,
possivelmente inclusive mais do que devesse. Quando abriu os olhos pela primeira vez e se achou em um lugar diferente de onde acreditava estar, assustou-se. Onde se encontrava? Quem a salvou de uma morte inevitável? A angústia do desconcerto a fez saltar da cama,
mas a dor intensa em sua perna a fez gritar e tombar-se de novo. Nesse instante apareceu um anjo ao seu lado. Um anjo com rosto ancião, um avental e um sorriso que lhe cobria o rosto. «Calma, pequena, está a salvo», indicou-lhe Hanna, mas sem dizer nada sobre como tinha chegado até ali. Explicou-lhe
que
o
doutor
lhe
tinha
realizado
uma
intervenção, que as feridas saravam adequadamente e que logo estaria em condições de correr pelo bosque de novo. Por mais que insistisse Beatrice em averiguar a razão pela qual se encontrava em Haddon Hall e como tinha conseguido alcançar a residência, a anciã lhe respondia com evasivas. «Deve se alimentar. Precisa descansar. Não se mova tanto». Só foi depois do terceiro dia que suas dúvidas se dissiparam ao escutar as criadas que a atendiam. Conforme lhe comentaram, graças a um repentino desejo por vigiar seus territórios, o duque encontrou-a ferida gravemente e ele mesmo a conduziu até a mansão. Também lhe narraram que todo mundo ficou atônito quando indicou ao mordomo que deviam alojá-la em seu próprio dormitório. Segundo as criadas, ninguém tinha visitado a habitação do duque enquanto elas o assistiam. Mas Beatrice sabia que isso não era certo, ela o tinha feito, embora recordá-lo lhe provocava angústia. Durante os seguintes dias de recuperação não cessava de pensar que razão teria para instalá-la ali. Por que não escolheu outra habitação para acomodá-la? Um repentino calafrio açoitou seu corpo. Aquilo que imaginou não podia ser certo, confiava no senhor e na senhora Stone. Sabia que eles
jamais revelariam o segredo. Então… que causa lhe fez atuar assim? Voltou a olhá-lo. Permanecia com os olhos fechados, as pernas estiradas sobre um apoio para os pés e a mão agarrada com força à poltrona. Beatrice inspirou devagar para não alterar o sono da pessoa que lhe tinha salvado a vida. Agora estavam em paz. Agora não havia nada que lhes unisse. Agora tinha que recuperar-se e afastar-se o antes possível de seu lado. De repente o duque grunhiu. A moça fechou os olhos para que não a descobrisse, mas depois de uns instantes nos quais percebeu que seguia dormindo, voltou a abri-los e nesse momento observou como este franzia o cenho, como apertava com força o tecido da poltrona e como gritava não. Depois do grito despertou sobressaltado e ficou de pé de repente, caminhando de um lado para outro. Beatrice seguia admirando-o entranhando. Não entendia que classe de pesadelo teria alterado o aprazível sonho. Com os olhos entreabertos para não chamar a atenção do duque, continuou olhando-o. Sua curiosidade crescia cada vez mais, posto que a agitação do homem pudesse senti-la ela mesma. A causa de sua agonia seria ela? Estaria arrependido de seu ato de piedade? Se a resposta fosse afirmativa logo deixaria de sentir-se inquieto, porque se nessa manhã ao levantar-se por fim pudesse caminhar sem sentir dor, partiria. ― Senhorita Brown, está acordada? ― Perguntou William ao notar que respirava intranquila. Ao não escutar uma resposta acreditou que seguia descansando. Com passo lento se dirigiu para ela, parando
no limite do leito. Olhou-a fascinado, igual um entomólogo contemplando uma nova espécie de mariposa. Dirigiu a mão para o rosto e lhe apartou com cuidado uma mecha de cabelo. Não devia fazê-lo. Não devia tocá-la depois do acontecido naquela noite, mas lhe resultava impossível conter-se. As emoções que lhe produziram aquele suave tato nos lábios o tinham desconcertado. Nunca havia sentido aquela sensação estranha no estômago quando beijava suas amantes. Nunca havia sentido como se sua pele queimasse ao tocá-las e nunca tinha escutado seu coração pulsar com tanta força. Desejou fazê-lo de novo, aproximar-se e beijar os lábios femininos para que toda aquela inesperada magia desaparecesse, mas tinha tanto medo pelo que aconteceria depois, que se refreava. William
elevou
a
cabeça
ao
escutar
uns
passos
aproximando-se da habitação. Vinham para despertá-la e limpar de novo as feridas que, para sua gratificação, melhoravam com rapidez. Entretanto, aquilo que lhe produzia alegria também lhe entristecia. O que faria a jovem quando se recuperasse? Partiria, retornaria à cabana? Se essa fosse sua decisão ele não poderia opor-se, mas desta vez lhe colocaria uma condição, não partiria de Haddon Hall até que construíssem um muro sólido ao redor do refúgio de caça e, mesmo assim, ela não poderia lhe proibir que passeasse por seus territórios quando quisesse. Franziu o cenho ante tal pensamento. Não gostava da ideia de que ela se afastasse da mansão porque possivelmente na próxima vez não teria tanta sorte.
De repente desenhou um leve sorriso. Tinha outro plano. Um que não podia falhar. Retirou-se com rapidez do lado da jovem ao ouvir que alguém se encontrava atrás da porta. ― Bom dia, sua Excelência – saudou-lhe a donzela encarregada de cuidar de Beatrice. ― Bom dia ― respondeu sem nem ser consciente disso. Não cessava de refletir sobre sua estupenda alternativa. ― Passou bem à noite à senhorita Brown? ― Quis saber a moça. ―
Sim.
Descansou
bastante
bem
―
respondeu
apressadamente. Queria dirigir-se para a cozinha onde sabia que encontraria Hanna preparando o café da manhã. Falaria-lhe de seu plano e esperaria que lhe confirmasse que era uma ideia estupenda. William fechou a porta depois de sair. Como cada manhã ficava ali durante uns instantes esperando escutar a voz de Beatrice e certificar-se do bom tom desta. Como era de esperar a ouviu de novo e, para sua preocupação, pareceulhe que soava com energia. Em efeito, melhorava muito a cada dia e por isso não havia tempo a perder. Alterado, desceu as escadas e se dirigiu para a cozinha. ― Bom dia, senhorita Brown – saudou-a a donzela ao mesmo tempo em que amarrava as grosas cortinas em ambas as laterais. ― Faz um dia lindo. Note, o sol ilumina e esquenta nossos campos com bastante intensidade. ― Girouse para ela e esperou uma resposta.
― Bom dia, Lorinne. Tem razão, o dia é lindo. Alegra-me que por fim as terras possam secar-se e as plantas recebam os raios solares que tanto precisam ― disse ao mesmo tempo em que apartava o lençol de seu corpo. ― Encontra-se melhor? Descansou o suficiente? ― Quis saber a moça ao observar como Beatrice se esticava e tentava apoiar o pé com força sobre o chão. ― Dormi bastante bem e olhe, parece que a dor começa a desaparecer ― respondeu sorrindo. ― Você é muito forte, senhorita Brown. Se uma besta me tivesse atacado como a que lhe mordeu, teria morrido nesse mesmo momento. E mais, não acredito sequer que tivesse a coragem de viver sozinha em um lugar tão afastado da mão de nosso Deus ― comentava a criada ao mesmo tempo em que pegava um dos vasos que tinha preparados à tina e começava a verter a água quente no interior. ― Com certeza teria tido coragem suficiente para subsistir ― respondeu subtraindo importância ao assunto e evitando falar sobre sua vida na cabana. Franziu
com
suavidade
o
cenho
ao
apoiar
com
integridade o pé, esperava que em algum momento a alegria desaparecesse após perceber que as cãibras a açoitariam de novo, mas não foi assim. Começou a caminhar pelo quarto sem nem sentir incômodo. ― Pelo que posso apreciar, hoje tem mais força que ontem ― falou a moça com tom suave e alegre ao ver como se movia a jovem sem emitir pequenos soluços.
― Sim. Encontro-me tão bem que tentarei sair desta habitação. ― Beatrice selou seus lábios com rapidez. Não queria que Lorinne saísse a procurar à senhora Stone e lhe informasse sobre suas pretensões porque se fosse assim, a anciã bateria na porta e, depois de lhe soltar um sermão sobre como devia atuar para que suas feridas sarassem adequadamente, ficaria outro dia mais encerrada no quarto. ― Alegro-me! ― Exclamou com tanta animação a criada que Beatrice abriu os olhos como pratos ante tal entusiasmo. Ao ver a expressão desta, a donzela continuou falando. ― Perdoe minha euforia, senhorita Brown, mas tenho uma surpresa para você e esperava com impaciência o momento para comunicar-lhe. ―
Uma
surpresa?
Para
mim?
―
Arqueou
as
sobrancelhas e se dirigiu para a tina. ―
É
óbvio
que
é
para
você.
―
Respirou
com
profundidade e após meditar a melhor forma de lhe fazer saber a notícia, prosseguiu. ― Conforme me comentou Jimena, que a sua vez foi informada por Theodore, a ajudante da senhora Stone, o próprio duque se apresentou faz quatro dias na cozinha e lhe pediu que o acompanhasse a Rowsley. ― Pediu à ajudante? ― Inquiriu Beatrice ao não entender bem o que explicava. ― Não, à senhora Stone – esclareceu. ― Rogou-lhe que viajasse com ele ao povoado para poder comprar certos objetos que necessitava. Ao princípio, a senhora Stone se negou, mas após lhe explicar sua Excelência que requeria de
sua experiência para adquirir alguns vestidos para você, ela terminou aceitando. ― Para mim? ― Repetiu incrédula. ― Claro! Para quem se não? ― E atrás de suas palavras soltou uma gargalhada nervosa. ― Não acredito que deva… ― murmurou Beatrice. ― É lógico que sua Excelência lhe compre um pouco de roupa. Você entenda que quando a trouxeram para Haddon Hall seu vestido estava rasgado e coberto de sangue ― argumentou a moça enquanto lhe tirava a camisola e a ajudava a introduzir-se na banheira. ― Se pretende sair desta habitação terá que ir vestida corretamente, não lhe parece? Além disso, acredito que nosso duque pensa que deve protegê-la depois do acontecido. Acaso não o viu velando seus sonhos? ― Agradeço a generosidade de sua Excelência, mas essa decisão não lhe concernia ― disse. Meditou durante uns instantes a maneira correta de evitar o tema ao que fazia referência. Não podia, nem devia lhe fazer saber que ela tinha visto o duque ao seu lado. ― E mais, ― seguiu ― não tinha que haver se incomodado em viajar até o povoado em seu estado, posto que qualquer uniforme de empregada me virá bem. ―
Está
dizendo
a
sério?
―
Perguntou
a
criada
surpreendida. ― É óbvio. Tem que compreender, assim que possa andar o suficiente, partirei para meu lar, tanto faz que roupa cubra meu corpo. Minha felicidade aumentará por voltar para
casa sem estar embelezada com um objeto que não me corresponde ― afirmou sem hesitações. ― Não acredito que o senhor goste dessa ideia… ― sussurrou a donzela ao mesmo tempo em que vertia água sobre o cabelo de Beatrice. ― Pois terá que aceitá-la, o duque não é meu dono ― sentenciou. ― Mas a salvou… ― E eu salvei a ele. Assim estamos quites ― afirmou com brio. Lorinne estava incômoda após descobrir os propósitos de Beatrice e ela pôde notar quando lhe ensaboou o cabelo. Seus dedos se apertaram com muita força à cabeça e em mais de uma ocasião sentiu incômodo. Tentou estabelecer outra conversação sobre o bonito dia que tinha surgido, mas a mudança de tema não fez com que a criada abandonasse o silêncio em que estava absorvida. Finalmente desistiu e deixou de esforçar-se. Quando a donzela a vestiu tal como lhe tinha indicado, com um vestido
do
serviço, despediu-se dela e saiu
apressadamente da habitação. Não lhe cabia dúvida para onde correria e a quem informaria sobre sua decisão. Entretanto, Beatrice não iria ceder. Por muitos argumentos que a senhora Stone lhe oferecesse, ela não colocaria um vestido comprado pelo duque. Ficava um pouco de dignidade e a usaria para esclarecer certos termos e poder retornar ao seu desejado lar.
Lorinne baixava as escadas de dois em dois. Tinha muita pressa por chegar até a cozinha e explicar à senhora Stone a decisão que tinha tomado a senhorita Brown. Enquanto andava com urgência tentava convencer-se de que não tinha a culpa. Falou-lhe da oferenda do duque com carinho, com entusiasmo, sem dar uma visão distorcida. Entretanto, ao recordar a cara que tinha posto a jovem depois da informação, parecia que lhe tinha colocado uma adaga no peito. Como era capaz de rechaçar um presente da pessoa que
lhe
tinha
salvado
a
vida?
Absorvida
em
seus
pensamentos, abriu a porta com tanta força que ela bateu na parede.
Ao
dirigir
o
olhar
para
as
pessoas
que
se
encontravam no interior as bochechas de Lorinne arderam. ―
Sinto
encontrava…
muito, ―
Excelência,
tentou
não
desculpar-se
sabia
que
realizando
se uma
reverência e cravando o olhar no chão. ― O que acontece? ― Intercedeu Hanna atônita. ― Senhora Stone, eu… ― balbuciou assustada a jovem. ― O que acontece? ― Repetiu a cozinheira com um tom mais suave. ― A senhorita Brown rechaçou os vestidos. Preferiu vestir-se como uma empregada ― explicou sem elevar o olhar. William se apoiou sobre a parede, dirigiu a mão direita para o queixo e, depois de entrecerrar os olhos, acariciou-o. ― Insistiu? ― Perguntou a anciã observando de lado a atitude que adotou o duque ante a notícia. ― Sim, senhora, eu iz isso. Mas minhas palavras não serviram de nada ― esclareceu com pesar.
― Está bem, pode partir ao quintal, Jimena tem muita roupa que estender e lhe virá bem uma ajuda. ― Sim, senhora. Sua Excelência… ― fez outra rápida reverência e partiu. Depois de que Lorinne fechasse a porta com mais suavidade
que
quando
entrou,
ambos
permaneceram
calados. William seguia com o olhar perdido ao mesmo tempo em que se acariciava a barba e Hanna começou a cortar umas cenouras com mais força da requerida. Ambos meditavam sobre a atitude de Beatrice, mas com apreciações diferentes. O duque sabia que ela não aceitaria os presentes e inclusive adivinhou o aborrecimento que sentiria ao descobrilos. Isso lhe dava a oportunidade de poder lhe oferecer aquilo que tinha refletido, embora Hanna tivesse berrado quando lhe falou de seu plano. Não havia outra opção, se ela desejava voltar para a cabana e continuar com seu desejo de viver em solidão, deveria aceitar suas condições, porque do contrário… «Isso não acontecerá ― disse a si mesmo. Ela terá que aceitar. Não acredito que por um absurdo orgulho resolva afastar-se daqui». Essa ideia lhe oprimiu o coração. Não podia permitir que ela partisse, ainda não. Não entendia bem a razão pela qual desejava tê-la perto, mas o fazia. Por isso guardava um ás e devia ocultá-lo até que Beatrice mostrasse suas cartas, então, só então, ele colocaria sobre a mesa as suas. Por outro lado, Hanna não parou de imaginar a raiva que a garota teria mostrado depois da descoberta. Estava
segura que a jovem teria chegado à conclusão de que seu marido ou ela mesma tinham revelado ao duque o segredo que os três guardavam e por isso lhe comprou vários vestidos. Nenhum cavalheiro que se aprecie de sê-lo gosta de ver sua concubina vestida com farrapos. «Meu Deus ― suplicou em silêncio – ajude-me a ajudalos». ― Segue pensando que meu plano é desatinado? ― Perguntou William ao mesmo tempo em que começava a dirigir-se para a porta. ― Sigo acreditando que não o aceitará, meu senhor. Já escutou como se enfureceu por umas miseráveis roupagens… ― Aceitará ― disse enfaticamente. Segurou com força a maçaneta da porta e iria partir quando escutou Hanna murmurar. ― Se não o explicar de forma delicada, assustar-lhe-á e ela fugirá para sempre. É o que deseja meu senhor, não a ver mais? De verdade quer apartá-la de sua vida como se nunca tivesse existido? William franziu o cenho, agarrou com mais energia a maçaneta e após soprar mal-humorado, dirigiu-se para a biblioteca. Uma vez que encontrasse o controle necessário para poder falar calmamente com a senhorita Brown, ordenaria ao senhor Stone que a informasse sobre seu desejo de ter uma reunião com ela o antes possível.
XIV
Não sabia que pose adotar para receber Beatrice. Sentou-se em sua poltrona junto à chaminé e, depois de olhar para a porta, pensou que parecia muito arrogante. Não pretendia alterar a moça com uma aparência inoportuna, queria que se sentisse cômoda ao seu lado, que ambos tivessem um bate-papo relaxado e conseguir, de uma forma agradável, que aceitasse o trato. Assim, após meditar muito, levantou-se e caminhou para a janela. Aquela retidão casual, aquela maneira familiar de recebê-la, tinha que ser a adequada. De repente escutou uns passos aproximando-se da porta. Em um princípio acreditou que eram do senhor Stone, ele estava acostumado a mover-se dessa forma: com um caminhar lento, possivelmente devido à fadiga de sua avançada idade. Mas seu coração palpitou com intensidade, sua boca ficou seca e a mão começou a agitar-se sem cessar ao descobrir que se tratava dela.
― Adiante ― respondeu ao escutar os suaves toques na entrada. Olhou-se para certificar-se de que sua vestimenta estivesse perfeita e desenhou em seu rosto um leve sorriso. ―
Bom
dia,
sua
Excelência.
Informaram-me
que
desejava me ver ― disse Beatrice ao introduzir-se na biblioteca. A jovem vestia-se com um traje escuro e um avental branco. William eliminou o sorriso ao vê-la. Não lhe parecia correto que ela se apresentasse dessa forma, mas tal como tinha escutado a donzela explicar à senhora Stone, tinha recusado categoricamente seus presentes e, por muito que lhe desagradasse, tinha que aceitar tal decisão se pretendia conseguir seu objetivo. ― Bom dia, senhorita Brown. Obrigado por aceitar meu convite ― indicou com voz suave. ― Acaso poderia rechaçá-la? Porque nas palavras do senhor Stone não escutei nada a respeito. ― Arqueou as sobrancelhas e o olhou fixamente aos olhos. ― Desculpe a atitude do mordomo, só se preocupa com meu bem-estar ― explicou em voz baixa. — Vejo-a bastante recuperada. ― E eu posso apreciar que as feridas que sofreu na queda desapareceram ― respondeu com firmeza e com aparente serenidade. Enquanto se dirigia para a biblioteca não cessou de pensar a melhor forma de lhe agradecer por salvá-la, por cuidá-la e por mantê-la, sem expor os pequenos sentimentos de
carinho
que
tinham
crescido
nela
durante
sua
hospedagem. Por muito que tentasse fazê-los desaparecer, não o obtinha; vê-lo a cada manhã ao seu lado, velando por seus sonhos, protegendo-a e preocupando-se com seu bemestar resultou-lhe tão desconcertante como maravilhoso. Sem dúvida era a primeira pessoa que o fazia em muito tempo e possivelmente o fato de sentir-se tão só e desprotegida intensificaram, sem poder evitá-lo, aquelas emoções de afeto até tal ponto que, em mais de uma ocasião duvidou que o jovem pelo qual esteve profundamente apaixonada tivesse atuado da mesma maneira. ― Touché! ― Exclamou enquanto se afastava da janela e caminhava para a poltrona. Embora tivesse dado por descartado permanecer sentado durante a conversação, o tom sarcástico de Beatrice lhe fez mudar de ideia. ― Bom, senhorita Brown, que planos tem? ― Sobre o que, Excelência? ― Ela seguiu no mesmo lugar, a três escassos passos da porta. ― Sobre
sua vida, seus desejos, seu futuro? ―
Respondeu com ironia. William cruzou as pernas, reclinou-se no respaldo da poltrona e, sem deixar de tocar a barba, olhou-a sem mal piscar. ― Como pôde apreciar, hoje me encontro muito melhor que em dias anteriores. ― Fez uma pequena pausa esperando que ele comentasse algo. Ao não o fazer, prosseguiu: ― Imagino que em um par de dias poderei retornar ao refúgio de caça. Depois do acontecido tenho muito trabalho que fazer para conseguir chamá-lo de lar novamente.
― Então… voltará a enfrentar só aos infortúnios da vida? ― Isso é o que eu desejo ― disse com firmeza. ― Recorda que vive em um pequeno pedaço dos meus domínios, não é? ― Seu tom brotou severo, duro. ― Recorda que me cedeu isso por lhe salvar a vida? ― Respondeu com a mesma intensidade que ele. ― Mas eu salvei a sua e considero que estamos quites. ― William se repreendeu por essa forma de falar. A conversação não cursava como tinha planejado. Ele tinha imaginado que, depois de expor sua proposta, a jovem meditaria durante um tempo sobre ela e que ao final terminaria aceitando-a, mas o ambiente que começava a criar-se entre eles não parecia o apropriado para isso. ― Chamou-me para me indicar que como ambos nos salvamos de uma possível morte, já não posso permanecer na cabana? ― Beatrice deu uns passos para diante, queria ver com mais nitidez as expressões do duque. Estava confusa. Acreditou que o verdadeiro caráter do homem era o que tinha tido durante sua convalescença: carinhoso, terno, atento… mas se equivocou. Atrás da aparência de um homem encantador seguia residindo um presunçoso, um petulante duque. ― Chamei-a, senhorita Brown... ― levantou-se de novo e caminhou para ela ― para lhe oferecer essa cabana que tanto deseja em troca de uma condição. ― Uma condição? ― Beatrice entrecerrou os olhos e apertou com força os punhos.
― Sim, uma condição, embora pudesse tratar-se de uma proposta, melhor dizendo. ― Freou de repente para girar-se e lhe dar as costas, ato do qual se arrependeu com rapidez. Como podia ser tão cretino para menosprezá-la? Jamais tinha dado as costas a uma mulher e o fazia à pessoa que menos merecia. De repente descobriu que ela não falava, mantinha-se muito calada. ― Não diz nada? ― Perguntou com interesse. ― Estou esperando sua proposta ― disse reticente. ― Como poderá supor, sou um homem bastante ocupado. Meu título de duque de Rutland implica afazeres diários que devo atender e não podem ser interrompidos por decisões absurdas ― comentou dando uns pequenos passos para frente. Voltou a parar e girou-se de novo. Seus olhos se cravaram nela e se entristeceu ao observá-la com a cabeça abaixada e apertando os punhos com tanta intensidade que seus nódulos estavam brancos. William tentou acalmar-se e retornar ao tom amável com o qual tinha iniciado a reunião, mas muito temia que a única maneira de conseguir seu propósito era mantendo-se firme. Se todo mundo respeitava suas decisões quando mostrava um caráter dominante, por que ela iria ser diferente? ― De que maneira poderia interromper seus afazeres de duque minha volta à cabana? ― Atreveu-se a perguntar sem levantar o olhar do chão. ― Estaria pensando em você, senhorita Brown. Teria meus pensamentos ocupados imaginando como poderá
contornar os inumeráveis perigos aos quais enfrentará diariamente ― expôs com uma voz mais relaxada. ― OH, Meu Deus! ― Exclamou Beatrice de repente. ― É verdade, lembro que me avisou com antecedência. ― Elevou o rosto, olhou-o desafiante e mostrou um pequeno sorriso malicioso. ― Se tiver sua mente ocupada em meditações sobre minha pessoa, não poderá rememorar os momentos sexuais que teve com suas amantes, não é? William caminhou para ela com passo firme. Não parou de andar até que esteve em frente a ela. Olhou-a com raiva, mais do que deveria. Seus olhos escuros se abriram de par em par e apertou a mandíbula com raiva. ― Esse comentário está fora de lugar, senhorita Brown ― resmungou. ― Esse comentário é o mesmo que você me fez no dia em que me visitou e aceitou meu pedido. ― Não se amedrontou. Tê-lo tão perto lhe provocava certa inquietação, mas não podia
baixar
a
guarda.
Tinha
que
seguir
mostrando
integridade. Ela era uma mulher que, depois da desgraça, tinha crescido, tinha maturado se feito forte e nenhum homem a desprezaria jamais. ― Pois esteve fora de lugar quando o disse e está fora de lugar neste momento ― seguiu com tom severo. ― Dir-me-á no que consiste sua proposta ou seguiremos discutindo sobre as incoerências que disse em minha presença? ― Insistiu a jovem elevando ainda mais o rosto até que ambos os semblantes estiveram muito perto.
― Partirá para a cabana, será sua se assim o desejar, mas antes de retornar terá que aceitar uma pequena mudança. ― William sentia seu peito elevar-se mais do que o habitual. Notava como seu coração galopava no interior e, apesar de dizer a si mesmo que seu comportamento era mesquinho e ultrajante, não podia controlar-se. Então, justo quando esteve a ponto de dar uns passos para trás, servir um brandy e desistiu em seu empenho, as palavras de Hanna voltaram para sua mente: «Se não o explica de forma delicada, assustar-lhe-á e fugirá para sempre. É o que deseja, meu senhor, não a ver mais? De verdade deseja apartá-la de sua vida como se nunca tivesse existido?». Achar a resposta a essas perguntas tinha causado uma destruição pessoal. Ele, quem se gabava de não necessitar de uma dama ao seu lado, encontrava-se em um dilema mais profundo do que se supunha. Não, é óbvio que não desejava perdê-la. Seguia sem conhecer com exatidão a razão disso, embora tivesse claro que lhe resultaria muito difícil fazer desaparecer a moça de sua cabeça. ― Desculpe-me, senhorita Brown, não era minha intenção lhe falar desse modo ― disse com suavidade, aproximando-se da chaminé cabisbaixo. ― Não quero que seja ferida de novo. Devo-lhe minha vida, é algo que nunca poderei esquecer, por isso quando a vi na cabana coberta de sangue e sem mal respirar senti-me o homem mais miserável do mundo. Se você tivesse morrido… se não tivesse conseguido auxiliá-la a tempo… ― William mostrou o pesar que lhe corroía por dentro, esquecendo tudo o que lhe tinham
ensinado do berço: não revelar os verdadeiros pesares a outros porque o faziam vulnerável. Entretanto, com ela não podia ocultar-se. Necessitava que Beatrice entendesse que não era uma pessoa a mais e sim alguém muito importante, mais do que possivelmente deveria. Mas essa parte não a faria saber. Ainda não. ― Não foi sua culpa. Tomei uma decisão e você a aceitou. Os perigos aos quais estou exposta vivendo ali são minha responsabilidade, não sua ― esclareceu. Teve que respirar muito fundo para lhe falar. Um nó na garganta lhe apertava com tanta força que mal saiu um pequeno fio de voz. Aí estava, em frente aos seus olhos, o homem ao qual via a cada dia ao despertar, o mesmo que se preocupava com ela e tinha um coração por muito que tentasse ocultá-lo. E que conseguia, à sua vez, que o dela pulsasse com força. De repente, uma debilidade afligiu o corpo de Beatrice. Foi uma sensação tão estranha quanto preocupante. Sua ira, aquela que a mantinha erguida, desapareceu e seus joelhos se dobraram sem querer. ― Embora me desculpe do acontecido, ― começou a dizer girando-se para ela e sentindo prazer ao ver que a rigidez do pequeno corpo tinha desaparecido ― eu sou incapaz de fazê-lo. Durante esta semana sofri cada grito que emitia, cada dor que padeceu, cada tortura que aguentou. ― Não deveria… ― murmurou. ― Não deveria o que, senhorita Brown? Sentir-me assim? Esquecer que me comportei como um maldito cretino ao abandoná-la naquele lugar repleto de ameaças? ―
Caminhou para ela de novo até que a distância entre ambos não fosse mais de dois palmos. ― Por favor, rogo-lhe, aceite minha proposição e depois poderá abandonar Haddon Hall. Prometo-lhe que a deixarei viver em paz. ― O… qual é a proposição? Tinha sido capaz de dizer algo? Porque não estava muito segura disso. Estava atônita, desconcertada e seu coração não cessava de pulsar a um ritmo frenético. O duque permanecia tão perto como a vez que ambos se sentaram nas escadas e, depois de um movimento involuntário, quase roçaram seus lábios. Esse instante, esse preciso momento, tinha-o recordado com raiva durante o tempo que esteve sozinha na cabana, mas agora toda aquela ira desapareceu e o único que desejava era que a vida lhe oferecesse outra oportunidade como aquela. Assustada por tais divagações, apartou-se
e
abaixou
a
cabeça.
Não
podia
seguir
contemplando ao duque dessa forma. Não era sensato cair em um poço sem fundo. ― Rogo-lhe que alongue sua permanência em meu lar até que se construa um muro de pedra ao redor da cabana ― expôs sem hesitações. ― Quanto tempo demorariam em construi-lo? ― Seguia com o olhar encurvado e suas mãos se enredavam no avental. ― Duas semanas, no máximo três. E lhe juro por minha honra que quando os criados me informarem sobre a finalização do muro, você poderá partir ― sentenciou com firmeza.
― Com uma condição ― disse com uma atitude aparentemente serena. ― Diga qual ― respondeu William sem mover um músculo de seu corpo. ― Pagarei os gastos que ocasione minha estadia aqui realizando algum tipo de serviço ― determinou. ― Parece-me coerente ― expôs depois de uma pequena reflexão. ― Informarei ao senhor Stone sobre isso e lhe oferecerá um posto adequado. ― Colocou a mão direita nas costas e sorriu. ― Posso me retirar, sua Excelência? ― Precisava sair dali. Não podia permanecer naquela habitação por mais tempo. Tudo começava a lhe dar voltas e notava um suor frio nas mãos. ― É óbvio, senhorita Brown, e muito obrigado por aceitar. Fez-me um homem muito afortunado ― disse como despedida. Beatrice saiu da biblioteca cambaleando-se. Era incapaz de manter-se em equilíbrio posto que as emoções que invadiam seu pequeno corpo a açoitavam sem cessar. Apoiou as costas sobre a porta, olhou para as escadas e após respirar com profundidade, começou a chorar. Não podia continuar com aquela tortura emocional, não era razoável deixar se levar por aquelas sensações de afeto para com o duque. Tinha que distanciar-se dele e evitá-lo, na medida do possível, durante o tempo que permanecesse na residência. Não cabia outra alternativa. Apertou de novo suas mãos e, depois de apartar as lágrimas que banhavam seu rosto,
dirigiu-se para o quarto. O primeiro que indicaria à donzela seria que a trocasse de habitação nessa mesma manhã. Por outro lado, William permaneceu imóvel. Olhava fixamente para a direção por onde tinha saído Beatrice. Seguia com o coração alterado, o corpo inquieto e a mente refletindo mil ideias de como obter algo que nem ele mesmo sabia com exatidão o que era. Fosse o que fosse tinha um prazo de três semanas para alcançá-lo. Abatido pela confusão de sentimentos que sofria após estar tão próximo à moça, dirigiu-se para a poltrona, sentou-se e cravou o olhar nas dançantes chamas do fogo.
XV
De maneira estranha nessa mesma tarde a ajudante de cozinha abandonou seu posto para ocupar um ao lado de Jimena, encarregada da lavanderia e, como era lógico, sua vaga foi atribuída à Beatrice. À moça não cabia a menor dúvida de que a cozinheira se inteirou de seu acordo com o duque e quis acolhê-la sob seu amparo, decisão que a fez muito feliz. O
resto
da
jornada
foi
tranquila.
Lorinne
lhe
proporcionou outra habitação e ambas a prepararam para fazê-la mais acolhedora. Isso era algo que desconcertava Beatrice. Não entendia como um lugar tão imenso e aparentemente cheio de vida podia ser em seu interior tosco e frio. Nem sequer os móveis, adornos ou abajures da casa mostravam calidez ou familiaridade. A jovem suspirou em várias ocasiões ao comparar Haddon Hall com seu lar, a residência Montblanc. Não albergava a mesma magnitude, mas ali onde seus pais adornavam a entrada com flores colhidas de seu próprio jardim, os criados do duque se
conformavam limpando o pó dos candelabros, dos majestosos quadros que exibiam a quem tinha ostentado o título com antecedência e de manter impolutos os extensos tapetes que cobriam os chãos. A primeira conclusão de Beatrice ao examinar com mais atenção os salões, corredores e demais habitações foi que o lar queria expressar o caráter do duque: distante, orgulhoso, solene e poderoso. Entretanto, depois da conversação na biblioteca, a jovem começava a duvidar. O duque escondia algo em seu interior e, embora não fosse uma ideia sensata, estava disposta a descobrir quem ele era em realidade. Antes que o entardecer obscurecesse as proximidades de Haddon, Beatrice decidiu passear um momento. Precisava sair dali e respirar o ar limpo dos jardins. Com passo lento e delicado, tanto que mal escutava seus próprios passos, a jovem saiu ao exterior. Os tênues raios solares a receberam e ao sentir em sua pele a cálida luz se estremeceu. Fazia tanto tempo que não desfrutava de uma caminhada sem ter que preocupar-se com o perigo, que o mero feito de poder andar tranquila a inquietou. Baixou as inumeráveis escadas de pedra agarrando-se com força ao corrimão. Quando ao fim o calçado tocou a grama, sorriu. Mal tinha sentido dor. Emocionada, apressou-se a continuar sua aventura pelo extenso jardim. Uma diversidade de colorido a acolheu ao introduzir-se nele. Flores de várias cores e aromas lhe davam as boas vindas como se fosse a primeira pessoa que as visitavam depois da chegada da primavera. Esticou a mão direita e foi
tocando as tenras pétalas que conseguia alcançar. Seu tato era tão delicado que temeu lhes fazer dano e romper a harmonia que emanavam. Olhou para o horizonte para compreender a magnitude do maravilhoso jardim e, justo ao observar o final deste, o peito se encolheu e a respiração se fez débil. Ali, entre tanta beleza, havia uma pequena clareira onde um tipo de flor crescia à sua mercê. Sem duvidar um só instante aproximou-se delas, agachou-se e deixou que seu nariz recebesse o seleto aroma, enchendo seus pulmões com a
delicada
fragrância
a
frutas.
Em
meio
a
essa
compenetração, Beatrice soluçou e, apesar de não querer lhes fazer dano, cortou um caule e o aproximou-o dos lábios. ― Crescem selvagens. Minha mãe trabalhou muito para cultivá-las quando se casou com meu pai e vieram viver aqui e, embora ninguém cuide delas, seguem brotando ― explicou uma voz atrás da jovem. Beatrice girou-se com tanta rapidez que se William não a tivesse segurado com firmeza teria caído ao chão. Pôde notar a intensidade do aperto no braço e o assombro dele, por mais incrível que parecesse, a brutalidade do movimento não o sacudiu, seguia imóvel e com os pés fixos no chão. ― Sinto se a assustei, senhorita Brown. Não foi minha intenção ― esclareceu depois de lhe soltar o braço. ― Excelência... ― murmurou. ― Gosta? ― William moveu devagar seu corpo para onde se encontrava a plantação silvestre. Queria fazer desaparecer o
quanto
antes
possível
àquela
ansiedade
que
tinha
começado a emergir em seu interior. Estava louco, mais do
que se imaginava porque não era de pessoas sãs sentir-se tão excitado, tão emocionado, tão alterado com um mísero roce. ― Muito. São as mais bonitas de todo o jardim – aventurou-se a dizer. ― Têm um aroma peculiar, é uma estranha mescla de… ― Interrompeu-se para meditar o que ia dizer. Fazia tanto tempo que não se aproximava delas, porém não acertava com o que as comparar. ― É uma combinação de frutas. Esta que tenho em minha mão cheira a laranja. ― E sem meditar duas vezes a aproximou-lhe do nariz para que inspirasse o aroma. Quando foi consciente do gesto tão inapropriado, retirou a flor com rapidez. ― Sinto muito… ― Tem razão, ― disse desenhando um enorme sorriso ― cheira a laranja. William não sabia do que falar com Beatrice. Não queria lhe perguntar a razão pela qual tinha mudado de habitação ou por que tinha saído sem uma donzela, embora ambas as dúvidas fossem as que o motivaram a sair atrás dela. Tinha-a visto da janela da biblioteca, onde admirava o entardecer enquanto tomava sua quarta taça de licor. Ao notar como seu aborrecimento crescia ao contemplá-la de novo desprotegida, saiu da habitação e, com passo firme, dirigiu-se para os jardins. Beatrice voltou a contemplar o pequeno canteiro de flores dirigindo seus pensamentos à mulher que tinha ordenado plantá-las e depois as tinha abandonado. Por que teria tomado tal determinação? O que teria acontecido entre
mãe e filho para que este tentasse eliminar aquilo que ela amava? Olhou de esguelha ao duque e o observou com o cenho franzido. A lembrança de sua mãe lhe produzia dor? Por quê? ― Posso lhe pedir um favor, sua Excelência – encorajouse a dizer rompendo o estranho silêncio surgido entre eles. ― Depende… ― Voltou seu rosto para ela e entrecerrou os olhos. Se voltasse a insistir em partir só à cabana, apesar do trato que tinham combinado, obrigá-la-ia a retornar à mansão e a encerraria com chave em seu novo quarto. A moça soltou uma pequena gargalhada ao ver a rigidez que adotava o duque. ― Poderia colher algumas destas preciosidades para adornar meu dormitório? ― Pegue as que desejar ― disse depois de notar como a tensão de seu corpo se desvanecia. ― Muito obrigada, milord. Fez-me uma mulher muito afortunada ― respondeu repetindo as mesmas palavras que o duque usou quando ela aceitou ficar em Haddon Hall. Estranhamente Beatrice guardava em sua memória cada frase, cada palavra e cada gesto do homem, e cada vez que podia, rememorava-os. ― Gosta dos cavalos, senhorita Brown? ― Muito ― respondeu levando a flor de novo ao seu nariz. ― Gostaria de me acompanhar aos estábulos? É ali para onde me dirigia antes de perceber sua presença no jardim ― mentiu.
Explicar-lhe os verdadeiros motivos pelos quais se encontrava ao seu lado não era conveniente. Esperaria que o tempo lhe desse a oportunidade de entender os sentimentos que tinha pela senhorita Brown. ― Posso me negar ao seu convite ou talvez…? ― Disse divertida. ― Não tem obrigação de nada ― respondeu com sobriedade. ― Se me desculpar… ― William tinha erguido de novo sua figura, apertava com vigor a mandíbula ao falar e avançou uns passos para a direção tomada quando notou que seu braço esquerdo era segurado com suavidade. Ao dirigir o olhar para este viu uma pequena mão que o liberou com rapidez. ― Ficarei encantada de lhe acompanhar aos estábulos, se
seguir
desejando
minha
companhia
―
expôs
sem
envergonhar-se de seu repentino descaramento. O único que fez o duque foi assentir com a cabeça e caminhar para as cavalariças. Beatrice andava dois passos atrás dele, não se colocou ao seu lado por mais que o desejasse. No pequeno caminho, William falou sobre o nascimento de Haddon Hall, de seus ancestrais e de como a residência chegou a ter a magnitude do momento. A jovem o escutava com atenção, percebendo com claridade como a voz melodiosa de William ia mudando segundo as anedotas que contava; entusiasta, divertida ou pelo contrário, triste e abatida, sobretudo quando falava da época em que seu pai herdou o título e suas extravagâncias com aquele paradisíaco lugar.
Não havia dúvida alguma sobre o ressentimento do duque com os seus progenitores e Beatrice se perguntou se a senhora Stone saberia a razão. Deveria ser muito cautelosa para falar com a cozinheira sobre a vida do duque, era uma mulher muito perspicaz e poderia descobrir o carinho e o respeito que começava a sentir por esse homem. ― Sua Excelência ― saudou Mathias com uma pequena reverência. Logo dirigiu o olhar para Beatrice e sorriu ao vê-la melhor. ― Senhorita Brown, alegro-me de vê-la com tão bom aspecto. ― Obrigada, Mathias. ― Ela se aproximou do moço e segurou as mãos masculinas entre as suas. ― Devo-te minha vida. Lorinne me contou que partiu ao povoado para pedir auxílio. O moço levou uma mão para a boina, apartou-a e começou a arranhar a cabeça enquanto suas bochechas ardiam e balbuciava com certo atordoamento. Como era lógico, aquela amostra de afeto não passou despercebida pelo duque, que de novo não pôde evitar esticar-se mal-humorado. Não entendia como a moça era amável com todo mundo, salvo com ele. Se tinha sido ele quem ordenou procurar o doutor! Ante a ira incontrolada que sentiu, colocou sua mão direita na parte de trás de sua cintura e caminhou com solenidade para o interior do estábulo. ― Ainda não encontrou meu garanhão? ― Perguntou com secura.
― Não, senhor. Temo que Dalión foi presa daqueles malditos lobos. Ao escutar sua afirmação, Beatrice se encolheu e mostrou um imenso horror em seu rosto. As imagens da fera apertando com força as mandíbulas em sua perna a aterrorizaram de novo. Mathias, ao descobrir seu medo, agarrou-lhe as mãos e as apertou com força. ― Não tema, senhorita Brown ― disse. Nesse momento William se voltou para descobrir o que acontecia à moça, seus olhos expressavam pavor e o pequeno corpo se encurvava. ― Quando finalizarem o muro estará a salvo desses filhos do diabo. ― Senhorita Brown? ― William chamou a atenção da jovem para que o olhasse, mas não reagia. Parecia encontrarse em uma espécie de transe. ― Senhorita Brown? ― Repetiu. Ao não obter resposta, William se aproximou apartando o moço. ― Não deve temer, escuta-me? Nada nem ninguém poderá lhe fazer dano de novo, ouviu o que lhe disse? Nada nem… ― Não pôde continuar com aquela severa sentença. A jovem, ainda presa do medo, equilibrou-se sobre ele e o abraçou com força. Atônito por senti-la tão perto e tão débil, William lhe acariciou o cabelo amaldiçoando o fato de não poder segurá-la com as duas mãos e consolá-la como era devido. ― Quer que chame o senhor Stone, sua Excelência? ― Perguntou o jovem inquieto.
― Não, a senhorita Brown se acalmará com rapidez, não é? ― Ela, apoiada ainda ao seu peito, assentiu com suavidade. ― Se o desejar, senhor, poderíamos organizar uma batida de caça amanhã ao amanhecer. Estou seguro que… ― Não! ― Exclamou Beatrice com vigor. ― Não podem matá-los! Apartou-se com lentidão do corpo de William e o olhou aos olhos. As lágrimas da moça percorriam o pálido semblante e seus lábios eram, segundo o duque, mais voluptuosos do que lhe pareceram em princípio. ― Não se fará tal batida, prometo. E agora retornemos para a casa. Precisa descansar. ― Quis esticar sua mão e lhe tirar as lágrimas do rosto. Quis voltar a senti-la junto a ele. Quis que aquele maldito duelo jamais tivesse acontecido... William, contrariado pelo dever e o desejo, teve que adotar uma pose serena, sem exibir a ansiedade que sentia em seu interior. Caminhou sem hesitações até o interior do lar com Beatrice lhe seguindo dois passos atrás. Cada vez que podia a olhava de esguelha para certificar-se de que seguia junto a ele apesar de encontrar-se em choque. Uma vez que conseguiram chegar à entrada chamou com ímpeto ao senhor Stone, que apareceu justo no momento que soava a última letra de seu nome. ― Diga à donzela que atende as necessidades da senhorita Brown que é requerida agora mesmo ― disse com firmeza.
O mordomo correu para o salão principal onde Lorinne limpava a cristaleira. Depois de ser informada, apresentou-se na entrada com prontidão. Olhou ao duque, fez uma pequena inclinação e avançou até chegar a Beatrice, que se abraçava com força e expressava um imenso horror em seu semblante. ― Conduza-a de novo ao meu quarto. Esta noite descansará lá ― sentenciou. Ninguém se opôs a tal decisão, nem sequer a senhora Stone que aparecia pela parte direita da escada e colocava sua mão na boca para aplacar um possível grito. William ficou imóvel enquanto observava como a donzela subia as escadas
segurando
Beatrice.
Uma
vez
que
ambas
as
mulheres se giraram para o corredor que conduzia ao dormitório, olhou de esguelha ao mordomo e, sem relaxar um ápice a tensão de seu corpo, indicou: ― Acompanhe-me, Brandon, tenho que te explicar certas mudanças que serão levadas a cabo a partir de manhã. ― Sim, sua Excelência. ― E sem mediar palavra, o senhor Stone caminhou à distância protocolar atrás do duque.
XVI
Um horrível pesadelo a tinha alterado durante a noite. Foi tão espantoso que em várias ocasiões despertou gritando e soluçando, mas por mais estranho que lhe parecesse, contemplá-lo ali sentado, cuidando-a e protegendo-a cada vez que lhe sussurrava palavras tranquilizadoras, fazia com que aquele medo atroz desaparecesse e conseguisse conciliar o sono de novo. Quando os primeiros raios apareceram entre as cortinas, Beatrice abriu os olhos e, em silêncio, contemplouo. Descansava sobre a poltrona, seus pés se estendiam para o leito onde ela permanecia, a mão que era incapaz de mover jazia flácida no lado esquerdo da poltrona, enquanto que a direita suportava o peso da cabeça masculina. Tirou-se a jaqueta, ficando só com a camisa branca e o colete escarlate. A barba lhe tinha crescido bastante, assim como seu cabelo, que naquele instante se liberou da amarração ao qual era submetido e cobria a testa e certas partes do rosto varonil.
Até
aquele
momento
não
tinha
reparado
na
atratividade incrível do homem. Era, sem dúvida, o cavalheiro mais bonito que tinha conhecido. De repente, Beatrice notou uma terrível dor em seu estômago, como se alguém lhe houvesse dado um golpe. Mas não se tratava de alguém, e sim de algo, um sentimento que cada vez se fazia mais forte, que cada vez era mais intenso. Repreendeu-se por tais emoções e tentou recordar o duque que recusou ajuda ao seu pai. Quis rememorá-lo sob a cortina, amando a outra mulher, mas não pôde. Não encontrou nada que pudesse assemelhar-se ao homem que tinha ao seu lado com o que conheceu no passado. Eram duas pessoas completamente diferentes e não só pelas marcas em seu rosto ou a lesão em seu braço. Não entendia como não tinha prestado atenção a essa imobilidade nos encontros anteriores, possivelmente porque não lhe pareceu estranho que aquela mão sem energia para realizar pequenas funções cotidianas permanecesse sempre escondida atrás das costas do duque, graças às alças que agora podia ver por ele estar sem a jaqueta. Ao ficar à vista, inerte sobre o tecido do assento, a curiosidade da jovem aumentou. Poderia sentir através dela? Alguém tinha tentado dar vida a esse membro morto ou desistiram depois do dramático acontecimento? Ela o tinha segurado no jardim para reter sua marcha, mas até aquele momento não caiu em si que o contorno da extremidade sã era três vezes maior que a outra. Por quê? Por que tinha diminuído sua força naquele braço? Um repentino
desejo por tocá-lo e responder as suas perguntas à fez levantar-se da cama. Apoiou devagar os pés no chão, incorporou-se com mais suavidade ainda e caminhou sobre o tapete fazendo o menor ruído. Inclinou a cabeça mordendo o lábio sem deixar de olhar fixamente as pálpebras fechadas do duque. Não sabia o que diria se ele abrisse os olhos naquele momento, mas seu impulso era muito forte para ignorá-lo. Aproximou devagar as gemas dos dedos da superfície suave do dorso e a tocou do pulso até os nódulos dos dedos. Um calafrio percorreu o braço de William lhe arrepiando o pêlo até o cotovelo e despertando-o de repente. ― Bom dia, senhorita Brown ― saudou-a um tanto aturdido. Levantou-se com tanta rapidez da poltrona que tropeçou e teve que segurar-se no respaldo. Sua voz soou débil, como se lhe tivessem apertado a garganta para asfixiá-lo. O mero feito de descobrir que Beatrice se levantou da cama semidesnuda e que havia tocado aquela mão lhe provocou um ódio imenso por si mesmo, produziu-lhe um amontoado de sensações que não soube assimilar. ― Bom dia, sua Excelência ― respondeu sem reparar no pequeno detalhe de sua vestimenta. Estava
acostumado
a
lhe
acontecer
quando
se
empenhava em averiguar uma coisa, não era consciente do que acontecia ao seu redor até que o conseguia. Segundo sua mãe era um horrível defeito procedente da família Lowell, mas graças ao qual tinham sido grandes triunfadores na vida. Um
bom exemplo disso era seu avô Notheber, que se converteu em barão de Montblanc após salvar o rei de uma perigosa enfermidade. ― Encontra-se melhor? ― Perguntou. Quis evitar que a centena de pensamentos ímpios continuasse perturbando-o, mas foi impossível. Não só notava como o coração se acelerava, mas sim, depois de muito tempo, suas calças pareciam mais estreitas do que o habitual. ― Muito melhor. ― Olhou-o com descaramento e sorriu ao notar certa inquietação no homem. Aquela fortaleza e arrogância tinham desaparecido e em frente a ela se mostrava um homem vulnerável. Aquele a quem ela começava a adorar. ― Obrigada por permanecer ao meu lado. Não devia… ― É minha convidada e como tal devo me ocupar eu mesmo de seu bem-estar ― respondeu após respirar com profundidade para obter um pouco de quietude. ― Entendo… ― Sorriu com suavidade. Girou-se para a cama, deu dois passos e se agarrou a um dos quatro dosséis de madeira que a adornavam. ― Isso quer dizer que não sou a primeira mulher a quem vela o sono, não é? ― Disse zombadora. Não entendia por que desejava enfurecer ao duque, possivelmente precisava averiguar até que ponto aguentaria suas rabugices. ― Como diz? ― William abriu os olhos como pratos ao escutar a insinuação descarada da moça. Logo franziu o cenho, colocou sua mão direita nas costas, deu uns passos para a porta e continuou: ― Informarei à senhora Stone de
sua melhora. Acredito que agradecerá sua presença na cozinha
porque
não
conseguiu
cuidar
de
todos
os
preparativos que precisava fazer para hoje. ―
Terá
convidados?
―
Perguntou
com
zombaria.
Durante sua estadia em Haddon Hall ninguém tinha aparecido e lhe resultava estranho que alguém desejasse visitar o duque. ― Acredita que sou uma pessoa tão espantosa para não ser visitado por outros seres humanos, senhorita Brown? ― Beatrice não respondeu. Manteve-se agarrada ao dossel e olhou para os lençóis da cama. ― Imagino que seu silêncio responde de maneira negativa à pergunta que acabo de lhe realizar. Não se preocupe, não será a primeira nem a última mulher que pensa que sou um miserável e logo depois de permanecer ao meu lado descobre um homem encantador. Agora, se me desculpar, tenho que atender meus afazeres como duque posto que, como já lhe disse, não posso ocupar todo meu tempo em atendê-la. Bom dia. Quando fechou a porta, William permaneceu uns instantes atrás dela. Ao escutar um suave grito de Beatrice, sorriu e desceu as escadas assobiando uma melodia. Como podia ser tão petulante? A jovem caminhava pela habitação agitada. Respirava e exalava com força. Colocou as mãos na cintura, logo as levou ao rosto para apartar as mechas do cabelo e finalizou as apertando em forma de punhos. Estava muito zangada, muito para sair da habitação e desenhar um sorriso em seu rosto. Não chegava a
compreender como era possível que em uma conversação em que ela ia ganhando, ele terminasse triunfante. Sempre obtinha o que desejava, primeiro que ela permanecesse em Haddon, segundo que voltasse para a habitação e para cúmulo havia tornado a lhe recordar que ela seguia atrapalhando suas reflexões. ― Maldito seja, duque de Rutland! ― Exclamou ao mesmo tempo em que golpeava com força o travesseiro. ― Bom dia, como se encontra…? ― Lorinne entrava na habitação sem pedir permissão quando observou a moça enfurecida e golpeando com insistência o almofadão. ― Seja o que for, estou segura de que o travesseiro não tem culpa ― afirmou antes de soltar uma sonora gargalhada. ― Bom dia, Lorinne. Não estava lhe dando uma surra, se por acaso o pensou ao ver-me, só estou tentando amaciá-lo. Esta noite mal pude conciliar o sono por senti-lo incômodo – desculpou-se. Colocou o travesseiro sobre o colchão e o acariciou com suavidade. ― Jimena o trocou ― comentou para finalizar o tema. Tinham muitas coisas que fazer e não havia tempo para esbanjá-lo em tolices. ― Bom, preparada para uma manhã intensa? ― Intensa? ― Repetiu enquanto Lorinne apartava as cortinas e abria as janelas. ― Muito. Faz uns dias o senhor Stone nos advertiu que teríamos uma visita um tanto peculiar ― expôs ao mesmo tempo em que ajudava Beatrice a colocar o traje de donzela que se empenhou em usar.
― Peculiar? Está tentando me dizer que a duquesa de Rutland nos visitará? ― Perguntou emocionada. ― Não! ― Exclamou entre risadas. ― Por quê? ― Quis saber Beatrice. ― Odiava este lugar, ainda mais quando descobriu que seu marido não respeitava o lar familiar, o lugar onde se criavam seus filhos. ― Não entendo… ― disse ao mesmo tempo em que atava o avental ao seu corpo com um laço. ― A senhora Stone não está acostumada a falar a respeito, ama ao nosso senhor como se fosse seu próprio filho, mas uma vez explicou que o pai de nossa Excelência era um tirano, um filho do diabo que só causava maldade no mundo. ― O que aconteceu? ― Olhou-a com atenção enquanto Lorinne sacudia almofadas e tapetes. ― Não sei. Ela jamais faz referência a isso. Bom… ― Aproximou-se de Beatrice, sorriu e a fez avançar para a porta. ― Preparada? ― Claro ― asseverou. Teve que agarrar-se com firmeza ao corrimão quando percebeu
as
mudanças
ao
sair
do
dormitório,
o
aborrecimento que tinha crescido depois do encontro com o duque se dissipou completamente. Desceu muito devagar porque seu corpo tremia e sentia como se o coração se abrandasse pouco a pouco. Não podia ser certo, aquilo devia ser uma alucinação. Olhou de esguelha à Lorinne e a encontrou sorrindo, entusiasmada com as modificações.
Retornou o olhar para baixo para confirmar que era verdade, que seus olhos não lhe enganavam e o confirmou: toda a entrada, aquela que ao acessar ao lar mostrava frieza e sobriedade, era um imenso e colorido jardim. Os
vasos,
anteriormente
vazios,
encontravam-se
transbordantes de flores, mas não de qualquer tipo de flor e sim da sua, a que mostrou ao duque na tarde anterior. Continuou sua descida, com muita dificuldade conseguiu chegar até o final. Seguia atônita, imersa em si mesma. O teria feito por ela? Mas então apareceu em sua mente as palavras de Lorinne, aquelas que lhe informavam sobre os convidados peculiares que seriam acolhidos em Haddon Hall. Não, claro que não o tinha feito por ela, mas sim para mostrar certa aparência para seus hóspedes. Açoitada como quem é despertada enquanto sonha com algo precioso, Beatrice tomou forças e se dirigiu para a cozinha. Tinha um dever a cumprir e precisava centrar-se nisso para eliminar os pensamentos desatinados que sua mente lhe oferecia. ― Bom dia, pequena. Conseguiu descansar? Eu estava preocupada. Jamais vi um rosto tão pálido nem um corpo tão debilitado como o que apresentou ontem. ― A cozinheira, ao vê-la aparecer, deixou o que estava fazendo e se aproximou dela para abraçá-la. ― Sim, senhora Stone, dormi placidamente ― respondeu com suavidade. Sentir o corpo acolhedor da mulher junto ao seu fez que com que sua repentina desilusão desaparecesse. ― Avisaram-me que hoje terá muito trabalho – prosseguiu. ― Se for amável de me indicar como ajudá-la…
― OH, meu Deus! Tem razão! ― Separou-se dela e correu para a mesa para seguir com sua tarefa. ― Pega essa cesta de batatas, terá que as cortar o mais rápido possível. ― Olhou a jovem e meditou sobre o que ia dizer em seguida. ― Sabe cozinhar um pouco? Alguma sobremesa, talvez? ― Só o pudim… ― disse com certo pesar. ― Bom, pois deixe para mim as batatas e prepare um suculento pudim. Beatrice correu para a despensa e apareceu com os ingredientes
necessários
entre
suas
mãos.
Enquanto
recordava que passos deveria seguir, cantarolava uma canção. Por uma vez, desde muito tempo, esqueceu-se de todo o acontecido no passado e se divertia com seu presente. Hanna a escutava com atenção ao mesmo tempo em que cortava os tubérculos. A moça não era consciente do que acontecia ao seu redor nem o escândalo que se produziu ao ser amparada sob a proteção do duque. Entretanto, tal como tinham suposto, o doutor trabalhou em propagar por Rowsley que o senhor de Haddon Hall albergava na residência sua concubina, assim como fez seu progenitor no passado. Tais notícias inapropriadas chegaram aos ouvidos do pároco e este mandou uma missiva de urgência ao milord. Informava-lhe de sua pretensão de ir visita-lo e o desejo de esclarecer certos rumores que se estendiam por Rowsley. Tanto Brandon como ela acreditaram que William adiaria a visita até que a moça retornasse à cabana, mas não foi assim. Depois de ler a carta várias vezes, o duque aceitou o convite sem titubear.
Como era de esperar, seu marido falou sobre a vunerabilidade do duque e que aceitar aquela imposição do reverendo se devia a querer esclarecer a verdade. Embora ela não estivesse de acordo com aquela hipótese tão absurda. Sabia que o homem escondia algo em seu interior. Algo que ainda, por sua inexperiência no amor, não sabia nomear. Acaso seu marido estava cego? Desde quando adornavam o interior da residência com flores? Como não deduziu uma coisa tão singela? Possivelmente porque não o tinha pensado de um ponto de vista lógico. Era muito fácil de compreender, na tarde anterior tinha estado com ela no jardim, todo mundo pôde observá-los posto que eles não se escondessem e, nessa mesma noite, o duque ordenou colher às mesmas flores que estavam observando para encher os vasos da casa. «Homens…», sussurrou para si a anciã. ― Senhora Stone, posso lhe fazer uma pergunta? ― Solicitou Beatrice depois de um momento em silêncio. ― Se puder respondê-la, farei-o ― respondeu levantando o rosto para a jovem e tentando averiguar o que lhe rondava pela cabeça. ― Quem são os convidados que almoçarão com o duque? ― Girou-se para a mulher e apoiou a cintura na pedra da bancada. ― Por que deseja saber, moça? ― Levantou-se do assento e inundou as batatas cortadas em um caldeirão de água fria. ― Não sei… tanto mistério me deixou muito intrigada. ― Não se preocupe, o duque saberá contornar qualquer problema ― disse sem pensar.
― Problema? De que tipo de problemas fala? ― Aproximou-se tanto da mulher que podia tocar suas costas com sua respiração. ― Como te disse… ― ao girar-se a encontrou de frente. O rosto da jovem mostrava tanta preocupação e ansiedade
que
Hanna
duvidou
se
prosseguia
com
a
conversação ou mudava radicalmente. Entretanto, se suas deduções fossem corretas, ela devia saber a verdade por mais dolorosa que fosse. ― Suplico-o… ― rogou. ― É só o senhor e a senhora Brace ― expôs enfim. ― O pároco e sua esposa? ― Perguntou assombrada. ― Sim. Não é a primeira vez que visitam Haddon Hall e imagino que desejam conversar de novo com lorde Rutland ― disse subtraindo importância ao acontecimento. ― Esses dois geralmente não visitam ninguém, a menos que estejam tramando algo ― murmurou pensativa. ― Bom, talvez seja só outra visita de cortesia. ― Afastouse da moça e retornou à mesa para pegar outras verduras que devia descascar. ― Oculta-me algo, não é, senhora Stone? E se tem certo cuidado em me dizer a verdade é porque o propósito da… ― ficou calada. Olhou fixamente à anciã e ao observar que esta se encontrava mais inquieta do que o habitual, soube que ela tinha algo a ver com aquilo. ― Rogo-o, conte-me o que acontece. Hanna a olhou com tristeza e sopesou se aquela criatura poderia suportar a verdadeira razão. Não só porque ela foi
uma vez a concubina do duque, mas sim porque isso lhe produziria um pesar irreparável. Estava segura de que fugiria de Haddon Hall, possivelmente até abandonaria a miserável cabana em que habitava e, para desgraça do duque, não voltaria a encontra-la jamais. ― Senhora Stone… ― suas suaves palavras ao lhe haver colocado a delicada mão sobre seu ombro, despertaram-na de suas reflexões. Ia dizê-lo e que Deus a amparasse se se equivocava. ― Quando o duque te recolheu da cabana chamou o médico de Rowsley. Depois de lhe cuidar das feridas teve um enfrentamento com o duque. Acusou-lhe de te enviar àquele refúgio para te usar como prostituta e te abandonar naquele lugar desprotegido. Apesar dos intentos de nosso duque para esclarecer a verdade, o senhor Wadlow não atendeu à sensatez. Partiu convencido de sua teoria e a difundiu pela cidade ― expôs com voz entrecortada. ― Por quê? Que motivo teve para pensar algo assim? ― A jovem apertou a mandíbula e segurou seu avental com força. ― O anterior duque de Rutland não tinha princípios nem respeito por ninguém. Cada vez que retornava convidava à Haddon Hall todas as prostitutas que encontrava em sua viagem. Isto já não era um lar pequena, era um prostíbulo. Não lhe importava que seus filhos brincassem de correr na mesma casa em que ele se embebedava e fornicava com as fulanas. Todo mundo sabia o que acontecia aqui e para que a desastrosa fama dos Rutland não alcançasse a honradez de nenhuma família, separaram-no da respeitável sociedade a
qual pertencia. Esse homem trouxe a desgraça ao sobrenome Manners,
destroçando
o
trabalho
que
seus
ancestrais
realizaram pelo condado de Derbyshire. Como pode supor, a duquesa era incapaz de aparecer por este lugar quando descobriu as façanhas de seu marido e inclusive terminou abandonando seus próprios filhos. Estava acostumada a dizer
que
as
desventurada
pobres era
ao
criaturas
lhe
casar-se
com
recordavam aquele
quão
monstro.
Finalmente, o senhor Stone e eu tivemos que tomar conta daqueles meninos desamparados. ― Meu Deus! ― Exclamou Beatrice dirigindo sua mão direita para a boca e deixando que as lágrimas vagassem pelas bochechas. ― Ele não é como seu pai, por mais que tenha acreditado sê-lo no passado. Não o é! Mas não descobriu sua verdadeira condição até que foi muito tarde… ― Hanna soluçou e cobriu seu rosto com as palmas. ― Ele não merece isto, Beatrice. Ele não merece carregar com destruição a maldade de seu pai. A jovem abraçou com força a anciã para consolá-la, embora por mais que o tentasse, não o obteve. Tal como tinha deduzido em mais de uma ocasião, aquela mulher se comportava como a mãe que o duque nunca teve ao seu lado. Depois de respirar com profundidade, separou-se da anciã e se dirigiu para a porta. ― Aonde vai? ― Inquiriu Hanna assustada. ― Vou explicar o que realmente aconteceu. ― Abriu a porta e correu escada acima procurando Lorinne entre as
habitações. ― Recorda onde estão os vestidos que o duque comprou? ― Perguntou ao encontrá-la. ― Sim, guardei-os em… ― não terminou. Beatrice a segurou pelo braço e a arrastou ao corredor. ― Pega o mais bonito e traga ao meu quarto! ―
Senhorita
Brown!
―
Exclamou
a
donzela
desconcertada. ― Faça o que te digo e não perca tempo, tenho que fazer algo importante. ― Finalizou seu mandato e correu em volta da habitação que tinham preparado no dia anterior.
XVII
William tomou sua segunda taça de licor sentado na poltrona do salão enquanto esperava a inoportuna visita do senhor
e
senhora
Brace.
Meditava
intranquilo
como
conduziria a conversação que devia enfrentar sem ter que danificar a honra da senhorita Brown. Não era justo que as barbaridades de seu pai repercutissem sobre a jovem. Acaso não bastava tê-lo como único centro de zombarias? Os rumores que seu título carregava entre a alta sociedade não lhe
preocupavam,
mas
sim
lhe
enfureciam
se
estas
machucavam a uma moça indefesa e alheia ao dito passado. O duque olhou de novo o fogo e o contemplou com atenção. Como nas vezes anteriores, as chamas dançavam ao seu desejo, livres, subindo pela chaminé sem nada que as detivesse. Franziu o cenho e sopesou se em realidade ele também tinha tido algo de culpa no acontecido com Beatrice. Possivelmente se não a tivesse deixado desamparada naquele lugar, se lhe tivesse obrigado a abandonar um terreno que não lhe pertencia, se não tivesse cavalgado aquela tarde, se
não o tivesse cuidado com ternura… mas então uma forte dor emergiu de seu peito. Fazê-la desaparecer de sua vida não era a opção adequada e tampouco se arrependia de seus atos após conhecê-la, embora seguisse culpando-se pelo dano que lhe ocasionaram os lobos. Sem acertar o motivo pelo qual se sentia tão absorto na jovem, sentenciou que, apesar da reprovação do matrimônio, a moça permaneceria todo o tempo que o fosse possível em Haddon Hall. Algo em sua cabeça lhe gritava que não podia deixá-la partir até que indagasse um pouco mais sobre o motivo
pelo
qual
lhe
proporcionava
tanta
felicidade
contemplá-la dormir placidamente, a razão pela qual ela, ao escutar sua voz, acalmava-se dos sonhos inquietos e, sobretudo, queria averiguar por que até essa manhã em que ela se apresentou junto a ele em camisola, seus desejos sexuais não tinham despertado como aconteceu no passado quando tinha uma mulher ao seu lado. William se elevou da poltrona e caminhou devagar pela amplitude da sala. Este último pensamento o tinha açoitado desde que saiu da habitação. Era certo que tinha evitado desejar a senhorita Brown com a mesma ansiedade que desejou suas amantes, mas um certo nervosismo crescia quando ela estava ao seu lado, quando a sentia próximo ao seu corpo, quando o olhava com aqueles olhos repletos de malícia infantil. Entretanto, aqueles sentimentos eram o começo do que Federith denominava amor? Tampouco soube responder-se de maneira concreta. O único que se atrevia a explicar era que cada vez que Beatrice estava ao seu lado um
sentimento quente, terno e intenso brotava sem poder evitálo, algo que não tinha padecido com antecedência. Se não recordava mal, quando uma mulher caía em seus braços, tratava-a com mimo, como devia fazer todo homem que se autoproclamava
cavalheiro.
Mas
depois
do
ato
sexual
levantava-se do leito, vestia-se e esquecia quem o tinha agradado naquele momento. O mero feito de afastá-la de seu lado lhe provocava tal angústia que ficava sem ar para respirar. ― Milord, o senhor e a senhora Brace acabam de chegar ― informou Brandon. ― Deseja que lhes faça entrar ou lhes receberá no hall? ― Melhor eu sair para recebê-los. ― Com passo firme avançou até a porta, tomou ar e, desenhando um sorriso em seu rosto, recebeu-os: ― Boa tarde, prezado senhor Brace ― estendeu a mão para este. ― Boa tarde, Excelência, obrigado por aceitar nossa visita. ― Também estendeu sua mão e segurou com força a do duque. ― Senhora Brace… ― William inclinou levemente a cabeça ao mesmo tempo em que a esposa do pároco realizava uma pequena reverência. ― Sinto se meu marido não lhe ofereceu uma alternativa para negar-se milord, mas tem que entender que depois de todos esses maliciosos rumores que se propagaram como fogo por
Rowsley,
deveríamos
nos
apressar
em
fazê-los
desaparecer ― argumentou a mulher sem apagar o sorriso de seu rosto.
― Entendo-o. Os rumores infundados sobre a senhorita Brown devem parar neste mesmo momento. Assim, se forem tão amáveis de me acompanhar, poderemos falar sobre isso na sala de jantar enquanto nos servem o almoço. ― Continuou com o sorriso no rosto e tentou aparentar uma serenidade que não tinha. ― Permita-me lhe dizer que converteu seu lar em um bonito jardim. Nunca tinha tido o prazer de contemplar umas flores tão coloridas e com tanta essência. Têm um aroma característico como se fossem… ― Frutas ― terminou a frase o duque. ― Sim, cada uma delas cheira a uma fruta diferente. Se desejar aproximar-se das brancas... ― caminhou para elas para que a senhora Brace avançasse atrás dele. ― Pode cheirar-las? Não lhe parecem que desprendem um aroma muito semelhante ao das laranjas recém-cortadas? ― Sim, assim é! ― Exclamou entusiasmada a mulher. ― Que preciosidade! ― Lídia, por favor, não entretenhamos ao duque com uma inoportuna aula de botânica. Viemos com um objetivo e quanto
antes
resolvermos,
será
melhor para todos
―
esclareceu amargamente. ― Você tem razão ― comentou William adiantando-se aos seus convidados para conduzi-los à sala de jantar. A mulher contemplou maravilhada a dimensão da sala ao entrar. Era bastante ampla, mais do que ela tinha imaginado. Sem apartar seus olhos dos abajures de cristal, das toalhas de mesa que cobriam os aparadores, dos
candelabros de prata e dos inumeráveis quadros que preenchiam as paredes, avançou ao lado de seu marido. ― Aceita uma taça, senhor Brace? ― Perguntou o duque ao mesmo tempo em que se dirigia para o móvel de madeira esculpida que havia justo ao lado de outra, das imensas chaminés de pedra que tinham sido construidas na mansão. ― Claro. ― Avançou para ele e agarrou com cuidado a taça enquanto o duque a servia. ― Melhorou bastante ― disse após observar como ele não balançava a garrafa. ― Não me ficou outra opção. Arqueou as sobrancelhas esperando que o pároco respondesse com alguma rabugice, mas não foi assim, apenas assentiu e retornou junto à sua esposa. ― Bom, milord. Como já sabe, nossa visita não é de cortesia, temos que tratar de um tema bastante difícil de aceitar ― começou com sua exposição. ― É óbvio, prossiga, escuto-lhe ― disse em tom sereno ao mesmo tempo em que dava o primeiro sorvo e permanecia de pé junto ao calor do fogo. ― Depois da visita que o senhor Wadlow realizou para curar a famosa senhorita Brown, disse no povoado que você prosseguia com a desdita que seu pai começou ― expôs sem hesitações. ― Como pode compreender, embora não seja de nossa incumbência nos misturar em assuntos tão pessoais, os cidadãos de Rowsley temem pela reputação de seu povoado. Não desejam que lhes volte a relacionar com assuntos tão escandalosos.
― Entendo… ― murmurou sem apartar o olhar do homem e tomando outro gole. ― Ao seu favor direi que o conheço desde sua infância e o afeto que isso me gera, fez-me tomar a decisão de vir a Haddon Hall. Quero escutar de sua boca a verdadeira versão dos fatos. Custa-me pensar que, depois do horror que deve ter
experimentado
quando
seu
pai
transformou
um
respeitável lar em um sujo prostíbulo, deseje continuar pelo mesmo caminho. ― Se for tão amável de me explicar qual é a versão que se comenta pelas ruas de Rowsley, eu lhe darei a minha. ― William segurou com tanto ímpeto a taça que acreditou ter escutado como o cristal se rachava. Não só desprezava que o comparassem com seu pai e lhe recordassem a maldita infância que teve que suportar, mas sim o de compararem Beatrice com uma das mulheres que rondavam o
lar quando seu progenitor aparecia,
provocava-lhe uma ira tão descontrolada que, se nesse momento o bom doutor tivesse aparecido pela porta, teria o agarrado pelo pescoço e o teria estrangulado. ― Conta-se que você trouxe uma concubina de Londres e a alojou no refúgio de caça que tem perto do rio Wye ― esclareceu a senhora Brace até este momento calada. ― Alguma coisa mais? ― Inquiriu o duque apertando a mandíbula. ― Que a deixou desprotegida, virtualmente abandonada e que por sua falta de compaixão ela foi atacada pela manada de lobos que habita no bosque ― prosseguiu a mulher.
― Entendo… ― repetiu. William caminhou para a mesa, pousou a taça, elevou o olhar à criada e, depois de um leve gesto, esta começou a realizar os preparativos para começar a servir. ― Se forem tão amáveis de sentar-se ― disse em tom aparentemente sereno. ― Não teremos a honra de conhecer a senhorita Brown? ― Perguntou de repente a esposa do reverendo ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas e cravava seus azulados olhos no homem. ― Esta tarde, a senhorita Brown… ― não conseguiu terminar a desculpa que inventaria quando a porta do salão se abriu com tanto ímpeto que parecia ter acontecido um furacão. ― Boa tarde, perdoem minha demora. Hoje a donzela não estava tão eficiente como se requeria. Beatrice apareceu sorridente na habitação, e para surpresa de William tinha decidido usar o vestido turquesa que lhe tinha comprado no povoado. O contraste com a cor de seu cabelo a embelezava ainda mais. O cabelo, amarrado em um perfeito coque, deixava em liberdade várias mechas convertidas em ondas. Com um passo incrivelmente elegante, dirigiu-se para os convidados. ― Senhorita Brown? ― Perguntou atônito o senhor Brace ao mesmo tempo em que caminhou para ela. ― E você deve ser o pároco de Rowsley, não é? ― Respondeu sorridente enquanto lhe oferecia a mão e o paróco a beijava com suavidade.
― Ouviu falar de mim? ― Quis saber o homem sem diminuir seu entusiasmo. ― É óbvio! Todo mundo fala dos incríveis discursos que oferece aos domingos na igreja. Sinto se ainda não pude desfrutar deles, mas compreenderá, depois do desafortunado encontro que sofri há uns dias com uma selvagem manada de lobos, não tive forças para sair daqui. ― Não se preocupe. Com certeza poderá escutá-los quando se encontrar melhor. Se me permitir isso, quero lhe apresentar a minha esposa. ― Ambos dirigiram-se para onde se encontrava a senhora Brace e esta, em vez de saudá-la da maneira correta, abraçou-se à moça como se se tratassem de duas boas amigas. ― Minha querida moça, alegra-me encontrá-la em tão fabuloso estado. O senhor Wadlow nos comentou que as feridas que lhe causaram esses ditosos animais poderiam havê-la matado ― explicou sem mal respirar. ― Foi uma imprudência me aventurar a passear sem o amparo do duque. Ele insistiu em reiteradas ocasiões que era um
lugar
perigoso
para
caminhar,
mas
devido
à
impetuosidade da minha juventude não lhe escutei. ― Mas não foi ele quem a encontrou? ― Lídia primeiro olhou ao duque e depois à moça. ― É óbvio, quando lhe informaram que não me encontrava em meus aposentos soube, com exatidão, onde poderia me encontrar ― sorriu novamente. ― Senhorita Brown... ― intercedeu o duque.
Mal lhe saíam as palavras. Estava em um estado de atordoamento tão irracional que lhe era difícil pensar com claridade, não só sua aparição, mas sim sua beleza, seu comportamento e a melodia de sua voz fizeram com que William se debilitasse tanto que, sem esperar os outros, teve que sentar-se. ― Sim, sua Excelência? ― Perguntou a moça sem apagar o sorriso em seu rosto e mostrando um olhar cheio de ternura para ele. ― Estava lhes oferecendo… ―
Sinto
muito!
Interrompi
algo
importante?
―
Manifestou com cara de espanto. ― Não se preocupe. ― Lídia lhe dava uns pequenos golpes na mão esquerda para acalmar a suposta ansiedade da moça. ― Estávamos a ponto de nos sentar para começar o almoço. ― OH, graças a Deus! ― Voltou a exclamar. Desta vez com menos ênfase. ― Pensei que minha companhia não fosse agradável. ― Como pode pensar tal insensatez? Por favor, sente-se ao meu lado ― indicou Lídia. ― Enquanto eles falam de temas sem
importância,
nós
conversaremos
sobre
esse
desafortunado incidente. Os olhares entre Beatrice e William eram cada vez mais intensos. Ele tentava lhe perguntar que demônios fazia ali e ela, com um sorriso malicioso, indicava-lhe que não se preocupasse.
Os criados começaram a servir a comida. Brandon, como sempre, ajudava ao duque nos pequenos contratempos que surgiam. O mordomo, com discrição, separou-se dos olhares dos convidados para cortar a carne, logo se aproximou e posou o prato com mestria ao lado do duque. Embora, ao que parecesse, William estava mais interessado em manter sua taça cheia de vinho que em comer. Não podia apartar os olhos da jovem. Observou como se sentava corretamente, como segurava os talheres com desenvoltura e como levava a comida para a boca para mastigá-los sem mal movê-la.
Seus
olhos
brilhavam
e
suas
bochechas
se
ruborizavam quando o pároco lhe falava sobre sua juventude e
seus
encantos.
De
vez
em
quando
abandonava
o
guardanapo sobre o regaço e apartava uma mecha que, rebelde, tentava ocultar o lado esquerdo de seu semblante. Um intenso calor percorreu o corpo de William, não soube com claridade se essa sensação era produzida pela grande quantidade de álcool ingerido ou pelos contínuos sufocos que lhe criavam os sutis movimentos da moça. Apesar de evitá-lo com todas as suas forças e de tentar responder às suas inumeráveis perguntas com evasivas, já não havia dúvida alguma, estava apaixonado por ela. Não entendia a razão pela qual seu coração tinha permitido entrar esse absurdo sentimento, mas o tinha feito. Agora só tinha que fazer uma coisa: fazê-la apaixonar-se, embora muito temesse que aquele trabalho fosse quase impossível. ― Então, senhorita Brown…
― Chame-me de Beatrice, por favor – Interrompeu-lhe com delicadeza. ― E você pode me chamar de Brennet, se o desejar ― sugeriu após sorrir com tanto ímpeto que mostrou sua dentadura, aquela que William quis fazer desparecer com um murro. ― É um nome lindo! ― Exclamou sorridente. ― Muito obrigado – ruborizou-se. ― Então, Beatrice, pode nos explicar como o destino a conduziu até este lugar? ― Sim, Beatrice, ― intrometeu-se Lídia – explique-nos como uma jovem tão elegante e educada decidiu abandonar seu lar para instalar-se em… ― Não estará tentando dizer que Haddon Hall não é um lugar adequado para ela, não é senhora Brace? ― Por fim, depois de um eterno silêncio, William falou e o fez expressando todo o sarcasmo que podia mostrar. ―
Deus
me
salve
se
minhas
palavras
quiseram
expressar essa atrocidade! ― Exclamou a mulher antes de abanar-se com a mão para acalmar seu embaraço. ― Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland… ― começou a explicar com certo entusiasmo ao descobrir o malestar que tinha provocado a mulher em William ― foi informada sobre o magnífico tutor que é sua Excelência e, depois que minha última instrutora decidiu abandonar seus afazeres como professora para empreender uma vida de matrimônio, minha mãe decidiu, depois da aceitação do duque, enviar-me a Haddon Hall.
― Não conhecia essa sua faceta de professor ― disse Brennet olhando sem piscar ao duque. ― Bom, a gente não pode alardear de tudo o que sabe fazer, não é? ― E sem apartar seus olhos de Beatrice bebeu de novo, embora desta vez apurasse o conteúdo de um sorvo. ― E como é sua Excelência na faceta de educador? ― Quis saber Lídia com curiosidade. ― Muito rigoroso. Pensa que todo mundo é tão inteligente quanto ele e não se dá conta de que nem todos nasceram com essa bênção divina. ― Dirigiu suas mãos para os talheres e continuou saboreando a comida que se esfriava no prato. ― Um defeito insano ― pronunciou William simulando um profundo pesar. Levantou a mão e o criado voltou a lhe encher a taça. Depois dessa conversação, os comensais se ocuparam em finalizar o suculento almoço, exceto o duque, cujo prato foi retirado intacto. Depois de recolher a mesa, a criada serviu umas pequenas terrinas com a sobremesa. ― Pudim! ― Exclamou Lídia eufórica. ― Gosta? ― Perguntou Beatrice. ― O que... se eu gosto? Eu adoro! ― Disse com entusiasmo a mulher. ― Lídia… ― murmurou Brennet olhando-a com o cenho franzido. ― Sim, sei, mas prometo que só comerei o que me oferece ― afirmou com certa reserva.
― Bom, senhor, ― falou de novo o pároco ― acredito que lhe devo uma desculpa. ― Uma desculpa? ― intrometeu-se a moça. ― Sim, Beatrice, tanto ao duque como a você, devemos uma desculpa. ― Por qual motivo, Brennet? ― Abandonou a colher sobre a mesa, deixou o guardanapo em seu regaço e prestou toda sua atenção. ― Não me deve nenhuma desculpa ― intercedeu William com rapidez. Não queria que a jovem descobrisse o rumor que se propagou por Rowsley. Na verdade, não queria vê-la sofrer e menos ainda naquele momento no qual a alegria e o entusiasmo se apoderaram dela atuando como sua inocente e confiante pupila. ― O senhor Wadlow, o doutor que a atendeu, ― começou Lídia a falar ― pensou que… ― O que? ― Beatrice pousou sua mão sobre a dela e mostrou um semblante cheio de incerteza que esperava fizesse a desbocada mulher continuar. ― Que você era a concubina de sua Excelência ― explicou enfim. ― Sua concubina? Quer dizer que esse homem foi dizendo a todo mundo que eu era a prostituta do duque? ― Levou-se as mãos para o rosto e soluçou. ― Pelo amor de Deus! Como pôde pensar tal aberração? William se levantou com rapidez do assento, apesar de encontrar-se
um
pouco
transtornado,
caminhou
para
Beatrice para consolá-la, mas ela, ao vê-lo tão próximo e
sendo
consciente
do
assombro
que
expressavam
os
convidados, levantou a mão e fez que abandonasse suas pretensões de consolo. ― Acaso não se deram conta da situação atual deste homem? ― Perguntou com aparente aborrecimento. ― Como podem sequer imaginar que uma pessoa que não pode nem abotoar a jaqueta, nem pode se alimentar sem a ajuda de seu mordomo, iria albergar em seu lar, um respeitável e honorável lar, uma prostituta com a qual fornicar? William abriu os olhos como pratos, deu uns passos para trás e, ocultando a tristeza e a possível quebra de seu coração, retornou ao seu assento. Jamais teria acreditado que a moça pensasse isso dele. Jamais imaginou que ela o considerava um ser inerte, débil e imprestável. ― Sinto muito, Beatrice ― disse Brennet tentando aplacar a ira da moça. ― Não era nossa intenção… ― Mas embora não tenha sido sua intenção, ― falou com pesar ― o dano já está causado. Diga-me, senhor Brace, como posso recuperar agora minha honra manchada? ― Umas lágrimas apareceram em seu rosto e todos os que a observavam ficaram quebrados de dor. ― Pobrezinha… ― murmurou Lídia antes de abraçá-la. ― Isto deve ser muito duro para ti. ― Não imagina o quanto, senhora Brace… ― continuou fingindo seus soluços. ― Brennet, poderíamos fazer algo para recuperar essa honra ― comentou Lídia sem deixar de abraçar a moça.
― Não sei o que… ― o pároco estava pálido, quase tão branco quanto o duque. ― Senhor, se você decidisse apresentar a senhorita Brown em sociedade como merece, todo mundo descobriria a verdade ― insinuou a mulher. ― Uma festa? ― Beatrice levantou o rosto estupefata e observou
ao
duque,
cujo
rosto
estava
desgrenhado,
descolorido e com um estranho fogo em seus olhos. Nesse momento a moça sentiu lástima por ele e pensou que devia ter contado a Hanna qual era seu plano para que o homem não sentisse o pesar que naqueles momentos o fazia sofrer. Mas sua parte malvada, aquela que de vez em quando brotava sem avisar, indicava-lhe que não lhe estava mal empregado aquele sofrimento, posto que ele fosse o culpado do início dos falatórios. Entretanto, sua metade boa se entristecia por sua agonia. Possivelmente o correto seria lhe explicar, quando os convidados partissem, que tudo era mentira. ― Claro! É uma ideia estupenda. Como não me ocorreu antes? ― Brennet dirigiu o olhar para o duque. ― Se você organizasse uma celebração e convidasse todas as pessoas influentes de Rowsley, poderia apresentá-la como é devido e se resolveria com rapidez o tema. ―
Acreditam
que
assim
cessarão
esses
malditos
rumores? Porque eu não estou tão seguro ― disse com voz impessoal, sem emoção, enquanto esvaziava outra taça em seu estômago.
― É óbvio! É a melhor opção! ― Respondeu o pároco entusiasmado. ― Pois então farei. Ordenarei meu mordomo que nesta tarde mesmo se redijam os convites e os leve em pessoa. ― Perfeito! ― Exclamou Lídia abraçando com mais brio a jovem. ― Já verá como tudo se soluciona e voltará a recuperar aquela honra perdida. ― Isso espero. ― E voltou a olhar ao duque que continuava bebendo o álcool que havia em sua taça.
XVIII
Deveriam ter atuado tal como ditavam as normas, os homens partindo à outra sala enquanto falavam de assuntos sociais e elas ficando a sós ao mesmo tempo em que se aproximavam do fogo para conversar sobre outros rumores importantes de Rowsley, mas o duque não mostrou nenhuma intenção de abandonar a sala onde se encontravam, então ninguém o propôs. O senhor Brace enumerou uma lista interminável de célebres personagens aos quais deveriam convidar e que Brandon, atento como sempre, foi anotando em uma folha. ― Redija as missivas o antes possível, senhor Stone. Quero que sejam enviadas nesta mesma tarde ― disse William fazendo com que o mordomo abandonasse o salão. Depois da saída de Brandon, o senhor e a senhora Brace falaram sem parar sobre o acontecido em Rowsley durante a ausência do duque: a chegada de novos vizinhos, as novas construções que se realizaram, a inapropriada repercussão que tinham tido certas influências europeias na sociedade, de
religião… tagarelaram tanto que chegou um momento no qual William inclusive bocejou de aborrecimento, entretanto, Beatrice escutava com atenção e um excessivo entusiasmo. Só quando a senhora Brace narrou o desafortunado incidente da filha de um servente dos Salwin a moça se congelou e seus olhos se encheram de lágrimas. Teve um impetuoso desejo de sair correndo e encerrar-se em seu quarto para chorar, mas reuniu suas forças e aguentou estoicamente o relato sobre a violação da jovem por uns assaltantes. ― A pobre garota não pôde superar a desgraça ― indicou Lídia com tristeza. ― Enfim, seus pais investiram a pouca fortuna que guardavam para sua velhice e a enviaram para uns parentes que vivem na pequena aldeia de Hargate Wall. Estou segura de que em um lugar tão afastado esquecerá o acontecido e poderá viver em paz. O nó que se produziu na garganta de Beatrice lhe impediu de responder aquilo que pensava, só pôde assentir ao mesmo tempo em que Lídia, ao vê-la tão angustiada pela história, dava-lhe uns suaves tapas na mão para consolá-la. De repente, o aborrecimento que suportava William com tanto bate-papo desapareceu com rapidez ao observar a reação da jovem. Em certo modo podia entender que ela não tivesse pensado que poderia lhe ocorrer algo similar vivendo na cabana, até esse momento ele tampouco tinha meditado sobre isso, feito que o enfurecesse de maneira sobre-humana. Entretanto, aquelas lágrimas que lutavam por brotar, o encolhimento
de
seu
pequeno
corpo,
a
respiração
entrecortada e a palidez do rosto terminaram por levar seus pensamentos para uma possibilidade que lhe horrorizava. Disse-se a si mesmo que a ingestão de álcool o estava dirigindo para divagações inapropriadas. ― Bom, temos que partir ― disse o senhor Brace após dar por concluída sua visita e levantando-se de seu assento. Ato que imitaram sua esposa e Beatrice. ― Não é adequado lhes fazer perder mais tempo com nossa companhia. Senhorita Brown... ― aproximou-se da moça e estendeu sua mão para lhe fazer chegar a sua e assim poder beijá-la com suavidade ― foi um prazer conhecê-la. ― Muito obrigada pela visita e recorde que será uma grande honra para nós poder gozar de sua presença na festa ― expôs a moça sorridente. ― É claro! ― Exclamou Lídia abraçando-a de novo. ― Estaremos ao seu lado em todo momento e estou segura de que sua honradez se restabelecerá. William se levantou da poltrona com dificuldade. O estado de embriaguez estava começando a cobrar seu preço, mas tentou não mostrar, caminhando o mais reto possível. Uma vez na saída, esperou ansioso a partida de seus convidados. Tinha assuntos pendentes com a senhorita Brown e, embora reconhecesse que não se encontrava nas condições apropriadas, não podia esperar. ― Milord… ― despediu-se a senhora Brace com uma reverência. ― Senhora Brace… ― respondeu William com um suave movimento de cabeça.
― Até sábado. ― Brennet estendeu sua mão para o duque e depois de um apertão caminhou para sua esposa, segurou-a pelo braço e abandonaram Haddon Hall. Tanto Beatrice quanto William lhes acompanharam para o exterior da casa. Até aquele momento ela se comportou de acordo com o planejado, mas uma vez que a carruagem desapareceu da vista de ambos, Beatrice recuperou sua compostura e, desaparecida a inquietação que aguentava, deu um enorme suspiro, ajeitou seu vestido e girou-se para retornar ao interior. ― Não parta ainda, senhorita Brown ― pediu antes que esta desse dois passos. ― Temos uma conversação pendente. ― Não acredito que deva perder mais tempo, senhor. A senhora Stone necessitará da minha ajuda na cozinha – desculpou-se. ― Verei-a na biblioteca em cinco minutos. Se não aparecer, irei eu mesmo buscá-la ― sentenciou. E deixando a moça incapaz de avançar, caminhou com certa dificuldade para a habitação. Beatrice andava devagar. Os pés lhe pesavam tanto que não era capaz de levantá-los. Seu corpo tremia e podia sentir o agitado palpitar de seu coração. Tinha uma leve ideia sobre o tema da conversação e estava segura de que não haveria palavras de agradecimento. Falou-lhe com desprezo, assinalou que diante do matrimônio ele era um ser inútil, incapaz de realizar uma mísera tarefa sem a ajuda de outros. Muito ao seu pesar fez mal, mais do que pretendia. Entretanto, as conversações
aconteceram de maneira inesperada. Ela imaginou que logo que reparassem em sua presença, o duque teria a voz predominante na reunião e depois de esclarecer que ela não era uma concubina, tudo finalizaria. Jamais sopesou que sua assistência entorpeceria a reunião, nem que a senhora Brace fora tão rápida em oferecer alternativas para restabelecer sua honra. «Uma festa… ― meditou a jovem quando recuperou o domínio de si mesma o suficiente para entrar no lar. ― Uma festa a qual assistirá uma grande quantidade de pessoas que cravarão seus olhares em mim. Como não neguei tal loucura! Acaso perdi a razão? Meu Deus! E se alguém me reconhecer? E se alguém descobre quem sou na realidade?». Aterrorizada, Beatrice ficou parada na entrada. Olhou para as escadas e logo dirigiu seus olhos para a porta onde o duque a esperava. O que devia fazer? Fugir? Afastar-se dali nessa mesma noite? Estava segura de que o homem alegaria qualquer desculpa quando a cerimônia fosse cancelada, mas antes de começar a caminhar para a escada, escutou que alguém reclamava sua atenção. ― Senhorita Brown ― sussurrou-lhe Brandon. O homem se escondia entre as sombras que lhe proporcionava o lado direito da escada. ― O que acontece? ― Perguntou em voz baixa ao mesmo tempo em que avançava para ele. ― Preciso lhe pedir um favor, conceder-me-ia isso? Beatrice ficou pasmada. Era a primeira vez que o mordomo se dirigia a ela daquela forma, inclusive percebeu
no rosto do ancião um mal-estar inesperado. Durante o tempo que levava conhecendo-o, sempre tinha mostrado um semblante sereno e impessoal, ninguém, salvo sua mulher, poderia
adivinhar
Entretanto,
nesse
os
estados
momento,
emocionais Beatrice
de
Brandon.
percebeu
sua
preocupação sem que a expressasse com palavras. ― Diga-me o que necessita, está me assustando. ― Dirigiu suas mãos para o tecido do vestido e o segurou com força. ― Rogo-lhe, não permita que nosso senhor continue bebendo. No almoço ingeriu mais álcool do que pode suportar e temo que em seu estado possa fazer alguma tolice ― explicou com suavidade. ― Lembre-se que a última vez… ― Não se preocupe, evitarei que volte a tomar outra taça – prometeu. ― Algo mais? ― Brandon negou com a cabeça. ― Nesse caso, não lhe farei esperar mais tempo. ― Caminhou para a porta da biblioteca, ofereceu ao homem um pequeno sorriso e escutou um «obrigado» antes de introduzir-se na sala. Tal como imaginava o fiel mordomo, William servia-se de outro copo de uísque enquanto a aguardava e, quando ela entrou encontrou-o cambaleando para o centro da habitação. Beatrice observou surpreendida que já não levasse posta a jaqueta e que liberava da alça, que as costureiras costuravam em todas as roupas, a mão esquerda. Era a segunda vez que ele se apresentava ante ela dessa maneira. Parecia não lhe importar que pudesse ver o que escondia com esforço de outros.
A moça tragou saliva ao recordar o salto que William deu quando ela conseguiu tocá-lo e o desconforto que lhe produziu a suave aproximação. Por que se levantou tão temeroso? Por que não lhe importava que ela o observasse assim? Apagando de sua mente as incessantes perguntas, centrou-se na promessa que tinha feito ao Brandon e aliviou seu passo até alcançar o duque. ― Não acredita que já bebeu o suficiente, senhor? ― Perguntou resmungando ao mesmo tempo em que lhe tirava a taça e o impedia de dar o primeiro gole. ― Não... acredito que ainda posso tomar um pouco mais ―
respondeu
William
surpreso
pelo
comportamento
descarado da jovem. ― Tal como pensava, não se encontra em plenas faculdades mentais para decidir nada nem cercar uma conversação coerente. Não pode nem se manter em pé ― opinou sem duvidar. Foi para o móvel, depositou o copo sobre ele e logo caminhou depressa para a janela. No trajeto, o vestido se sacudia
com
a
mesma
intensidade
de
seu
caminhar
provocando que, ao aproximar-se do duque, o tecido do vestido tocasse as pernas deste com suavidade. ― Sabe que este tipo de comportamento para um homem como eu tem sérias consequências? ― Comentou com aparente mau humor enquanto começava a persegui-la. ― Você vai me castigar? ― Girou-se para a voz e nesse instante o encontrou ao seu lado olhando-a com atenção, sorridente, mais do que esperava após suas palavras.
Beatrice Estremeceu-se
o ao
contemplou encontrá-lo
durante tão
uns
próximo,
segundos. tão
perto.
Conseguiu cheirar seu aroma, uma mescla de colônia, vinho e uma peculiar e atraente essência viril. Pôde apreciar também como o peito masculino subia bruscamente ao respirar, roçando sem pretender seu queixo e, se fechasse os olhos para prestar atenção, escutaria sem dificuldade as agitadas pulsações do coração do homem. ― Não vou castigar a ninguém ― disse com suavidade. Em seus olhos negros se projetava a escuridão que havia no exterior da casa. Beatrice fixou o olhar nos lábios masculinos. Apenas se apreciavam com claridade pela espessura de seu bigode. Embora seguissem sendo grossos, fortes, muito vermelhos e, sobretudo voluptuosos. De repente se perguntou se aqueles lábios beijariam como os de seu antigo amor: suaves e inexperientes, ou pelo contrário, conseguiriam o que tantas mulheres murmuravam, criar tanta paixão que perdiam a prudência. Um intenso calor percorreu o corpo da moça até o ponto que
suas
bochechas
exibiram
um
tom
avermelhado
impossível de dissimular. Com estupidez girou-se para voltar a olhar para o exterior enquanto tentava acalmar o pequeno estado de excitação que surgiu depois dos inoportunos pensamentos. ― Você notou como é rara à noite em que a lua brilha com liberdade? ― William esperou uma resposta, ao não a escutar prosseguiu. ― As culpadas disso são as nuvens. Sempre as ocultam para que não consiga exibir sua beleza.
Aproximou-se com lentidão do corpo de Beatrice e apoiou a mão no marco da janela, pôde inspirar a deliciosa essência a sabão que emanava do cabelo da moça. William fechou os olhos e deixou que uma estranha paz acalmasse toda a ansiedade que lhe açoitava desde que descobriu que seus sentimentos para com ela eram mais profundos do que imaginava. Estava inundando-se em um transe de quietude quando percebeu que a jovem tinha conseguido afastar-se dele. Abriu os olhos, voltou-se para ela e esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao perceber que colocava de novo suas mãos na cintura e franzia o cenho. ― Pode me dizer para que me fez vir? Porque estou segura que em seu estado não desejará começar uma aula de astronomia, não é? ― Ficou imóvel na metade da sala mostrando uma atitude desafiante, altiva. ― Não, é óbvio que não ― afirmou sem apagar o sorriso que lhe tinha provocado. ― Em primeiro lugar eu gostaria de lhe agradecer por sua magnífica atuação desta tarde. Lástima que não possa aplaudi-la! ― exclamou com zombaria. ― Não o fiz por você, mas sim por mim. Como compreenderá, não é agradável descobrir que todo mundo pensa que sou uma prostituta vulgar ― declarou elevando o queixo. ― Entendo-a e se eu permanecesse junto a uma pessoa imprestável, inútil e incapaz de fazer as coisas por si mesmo, também tentaria explicar a todas as pessoas que duvidassem da minha honra, que não há por que temer de um incapacitado. ― Sorriu mostrando os dentes.
― Não era minha intenção… ― murmurou abaixando a cabeça e agarrando com força o tecido de seu vestido. ― Não se arrependa do que disse, senhorita Brown. Esteve certa. Como pôde comprovar pela mudança de atitude de nossos convidados, essa argumentação foi bastante convincente. ― Deu uns passos para ela e parou antes de voltar a aproximar-se. Não podia perder a pouca sensatez que ficava, maravilhando-se com seu aroma, com seus lábios e lhe dando atenção à parte de seu cérebro que lhe gritava que estendesse a mão, segurasse-a com força e sentisse o calor que emanava seu pequeno corpo. ― Por outro lado, eu gostaria de lhe fazer saber que apesar de todos os intentos que faça nessa maldita cerimônia para restabelecer sua honra, todo mundo seguirá pensando que me vi obrigado, para limpar meu bom nome e jamais deixarão de pensar que você é minha concubina pessoal. ― Não estou tão segura disso… ― comentou sem levantar seu rosto. ― Posso lhe garantir por experiência própria que se as pessoas tiverem uma ideia preconcebida, por muito que tente mudá-la, não o conseguirá ― sentenciou mal-humorado. ― Se tiver o apoio do senhor Brace e de sua esposa, isso não acontecerá. Falarão com o senhor Wadlow e este, como homem honorável, retratar-se-á ― afirmou sem hesitações. ― Acredita que o senhor Wadlow é um homem honorável? ― perguntou levantando as sobrancelhas e soltando uma grande gargalhada. ― Permita-me que lhe conte uma coisa, minha querida senhorita Brown, e logo você
mesma faça as conjecturas oportunas sobre a honra do cavalheiro. ― Beatrice, quando elevou por fim seu rosto para olhá-lo, viu-o com os olhos entrecerrados e com o cenho franzido. O que pretendia lhe expor? O que seria tão doloroso para sentir a angústia do homem com tanta facilidade? ― Acredita que todos esses homens aos quais você chama de honoráveis o são de verdade? Quer me fazer acreditar que você é tão ingênua que é incapaz de imaginar que esses que se consideram juizes de outros não cometeram adultério? ― Suas palavras começaram a soar com vigor, igual ao seu caminhar. William dava passos tão largos e cravava com tanta força as solas dos sapatos no chão que a jovem se assustou. ― Muitos dos que se autoproclamam homens respeitosos, não o são. Possivelmente o passar do tempo os tenham feito esquecer o que fizeram junto com meu pai, mas a mim não ― sentenciou. ― Senhor… ― murmurou a moça assustada ante a agitação do homem. ― As suspeitas em relação a ele são só consequências de um passado libertino ― respirou fundo, afrouxou a tensão de seus ombros, girou-se por volta da moça e a olhou sem piscar. ― Meu querido pai visitava Haddon Hall uma vez ao mês. Em suas viagens recolhia as melhores cortesãs que encontrava no trajeto e as mantinha aqui durante o tempo que durava sua estadia. Entretanto, essas mulheres não só se ocupavam de satisfazer os prazeres sexuais do grande duque de Rutland, mas também ofereciam seus serviços a todos aqueles que apareciam nesta casa. ― Beatrice mostrou
cara de espanto e, por um momento, William quis resolver o tema para não lhe produzir mais pavor, mas se na verdade desejava levar a cabo a festa, tinha que estar preparada para qualquer contratempo. ― Dois dos melhores amigos do meu pai vinham com assiduidade. Pode-se fazer uma ideia de quem eram essas pessoas? ― Sorriu com zombaria. ― Sim, claro que sabe, vejo-o em seus olhos. Em efeito, o honorável senhor Wadlow e o pai de seu querido e rigoroso senhor Brace. Ambos, por aquela época, homens encantadores e de reputações
irrepreensíveis,
―
continuou
reticente
―
esqueciam os famosos preconceitos sociais quando cruzavam as portas de Haddon, onde escondidos em seus quartos viviam e cresciam uns meninos sob a tutela de um piedoso matrimônio. Não ponha essa cara de espanto, senhorita Brown. Era lógico que a duquesa, depois de ser informada das atrocidades de seu marido, decidisse não aparecer sem lhe importar que seus filhos, aqueles que saíram de suas vísceras, ficassem à mercê dos criados. Com o passar do tempo, ― continuou depois de tomar ar e tentar apagar a dor que lhe causava rememorar o passado ― o famoso duque quis que seus filhos, aqueles aos quais não lhe interessou proteger, educar e dar o carinho que devia, continuassem seu corrompido legado. Como era de se esperar, ambos os rebentos recusaram categoricamente essa opção e partiram para o único lugar no qual poderiam encontrar uma vida próspera: Londres. Tiveram a esperança de encontrar a única pessoa que poderia lhes ajudar, sua mãe. Entretanto, a primeira coisa que fez foi lhes recordar que, por muito que
tentassem fugir de seu pai, seu próprio sangue corria por suas veias e terminariam convertendo-se no monstro que era seu marido. ― Meu Deus… ― sussurrou a jovem tampando a boca. ― Lausson teve sorte. Conseguiu que uns tios de minha querida mãe o acolhessem e eles lhe ofereceram a vida que tanto ansiava. Quem ostentaria por nascimento o título de duque não teve essa sorte. Começou a perambular de novo pela sala, inquieto ante a perspectiva de que ela o abandonasse ao abrir seu coração daquela maneira. Estava fazendo o correto? Era sensato lhe mostrar a tortura que o tinha açoitado durante sua vida? E, sobretudo… por que tinha a necessidade de lhe revelar aquilo que tinha ocultado durante tanto tempo? ― Fiz o impossível para demonstrar que eu era diferente do que eles acreditavam, ― continuou com voz pesarosa ― mas as pessoas continuaram pensando que sob uma aparência falsa de cavalheiro se escondia outro futuro libertino. ― Deu-lhe as costas e se dirigiu para a chaminé onde, cabisbaixo, pousou sua mão sobre a cornija de pedra. ― Com o tempo me cansei de insistir em lhes dar aquilo que queriam ver: ao futuro duque de Rutland. Embora, como pôde apreciar... ― girou-se para ela e levou a mão direita para as marcas de seu rosto ― minha vida dissoluta se viu truncada com rapidez. Beatrice ficou em silêncio. Meditou nas palavras do duque com supremo cuidado, concluindo que aquele homem, em realidade, só era uma vítima de um pai doentio.
Entretanto, uma parte também lhe recriminava que não tivesse posto mais interesse em fazer desaparecer aquelas apreciações sobre seu nome. Embora… como apagar as sequelas que outros deixaram com tanta firmeza? ― Contei-lhe isto, ― interveio William ao contemplá-la em silêncio e com o olhar perdido ― para que considere seriamente a descabelada ideia dessa festa. ― Por quê? ― Beatrice caminhou para ele de maneira decidida. ― Por que se preocupa tanto pelo meu futuro se mal me conhece? ― Porque sei que, se não quiser ver-se envolvida em um mundo do qual lhe custará sair, existe uma possibilidade para liberar-se ― disse com quase nenhuma força em suas palavras. ― A que se refere? ― Parou seu passeio nervoso quando esteve em frente ao homem. Apenas lhes distanciavam dois palmos. Beatrice elevou o queixo e o olhou aos olhos de maneira desafiante, esperando a resposta que acreditava saber. ― Poderia partir, afastar-se daqui agora mesmo se quisesse. Encarregaria-me pessoalmente de enviar um criado de minha confiança para que a acompanhasse até onde você desejar ― comentou sufocado. Não queria lhe oferecer essa alternativa
porque
a
ideia
de
perdê-la
o
destroçava,
debilitava-o, matá-lo-ia com o passar do tempo. Mas era consciente de que se permanecesse ao seu lado seria desventurada.
― Isso é o que deseja? Quer que eu parta? ― Atreveu-se a perguntar. As palavras não saíam com fluidez de sua boca. Uma estranha tristeza brotou em seu interior e lhe oprimiu com força o coração. Apesar de ter considerado a mesma ideia antes de entrar na biblioteca, agora, por um motivo que estava fora de toda prudência, não queria afastar-se dele. Aquele homem que a olhava com aflição era o mesmo que tinha velado seus sonhos, quem lhe sussurrou palavras de consolo para tranquilizá-la, quem tinha estado ao seu lado durante sua árdua recuperação e o homem que, acreditando que não o escutava, prometia-lhe que a cuidaria pelo resto de sua vida. E nesse momento cumpria sua promessa lhe dando a liberdade de escolher. ― Posso lhe fazer uma pergunta antes de responder? ― Perguntou abaixando a cabeça e estendendo suas mãos pelo vestido. ― É claro. ― William mal podia falar. Sentia uma pressão tão forte em seu peito que lhe impedia de respirar. Não era capaz de conceber que possivelmente esse momento fosse a última vez que contemplaria a moça. ― Por que, quando lhe salvei a vida, não me ofereceu dinheiro como pagamento de sua dívida? ― Seguia olhando o chão. Suas mãos seguraram o tecido do vestido com força. Notava o palpitar de seu coração na garganta e como se debilitavam seus joelhos. ― Mudaria algo em sua decisão? ― Quis saber.
William percebeu a tristeza da jovem e se amaldiçoou por isso. Ele era o culpado desse estado de angústia, de tudo o que estava acontecendo e inclusive se acusava de havê-la conduzido para um desagradável futuro. ― Pode me responder? ― Levantou seu semblante e deixou que o homem apreciasse as lágrimas que molhavam suas bochechas. ― Pelo amor de Deus, Beatrice! ― Exclamou com energia. ― O que quer escutar? ― A verdade… ― murmurou a jovem sem amedrontar-se. ― A verdade? ― Disse com sarcasmo. Em um intento de evadir-se do que ela pedia, William tentou afastar-se de seu lado para recuperar a compostura, mas não o conseguiu, a pequena mão da moça alcançou seu braço e lhe impediu de levar a cabo seu propósito. ― A verdade, Beatrice, é que sou um vilão. Um homem egoísta, insensível e, como todo mundo comenta, um libertino sem escrúpulos. ― E? ― Inquiriu sem liberá-lo. ― E fui incapaz de me afastar da única pessoa que me contemplou como o monstro que sou e não mostrou repulsão ― expôs ao fim. ― Bem… ― voltou a sussurrar a jovem. Abriu a mão e deixou que o duque caminhasse para o centro do salão. ― Bem? Parece-lhe bem que um ser humano se crê com o direito de coibir os desejos de outros? ― Perguntou aturdido. ― Acredito, sua Excelência, ― começou a falar com firmeza ao mesmo tempo em que esticava o tecido de seu
vestido ― que a conversação deve finalizar aqui, neste mesmo momento. ― Perfeito. Chamarei o senhor Stone para que lhe prepare uma carruagem e… ― Não me entendeu bem – interrompeu-lhe ao mesmo tempo em que avançava por volta dele e cravava seus verdes olhos nos seus. ― Não vou partir esta tarde, nem amanhã, nem depois, mas sim o farei após essa festa em que todo mundo descobrirá que eu não sou uma prostituta nem você um ser desprezível. Comportar-se-á como deve atuar o tutor de uma jovem inocente e eu realizarei o papel que me atribuí. E agora, se me desculpar, tenho muito que fazer e não quero perder mais tempo em escutar tolices. Com passo firme, esticando o pescoço e aparentando uma serenidade e sobriedade que não tinha, Beatrice passou junto ao duque, olhou-o de soslaio e, depois de fazer uma pequena reverência, abriu a porta e partiu. William ficou atônito sem saber como deveria reagir ante tal comportamento. Continuou olhando por onde a moça partira sem sequer poder respirar de forma apropriada. Depois de esboçar um sorriso que cobriu o rosto, gritou: ― Brandon! Brandon! Onde demônios está? ― Aqui estou, meu senhor. O que
acontece? ―
Perguntou o mordomo assustado. ― Enviou os convites? ― Consultou enquanto retornava ao calor da luz. ― Sim, fiz assim que o senhor e a senhora Brace partiram.
― Bem, pois se sente e escreve dois convites mais ― declarou com vivacidade. ― A quem irão dirigidas? ― Quis saber o senhor Stone após sentar-se com urgência, pegar papel e pluma. ― Uma em atenção ao senhor Federith Cooper e a outra ao senhor Roger Bennett ― sentenciou.
XIX
Não pôde fazer nada do que tinha programado durante a noite de insônia. Seu primeiro objetivo era não sair da cozinha para ajudar a pobre senhora Stone em tudo o que pudesse, mas justo à manhã seguinte, quando se dispunha a perguntar a Hanna por onde devia começar, Brandon apareceu com um mandato do duque: «O senhor decidiu, posto que seja uma festa em sua honra, seja a encarregada de prepará-la corretamente». Após escutá-lo, Beatrice levou as mãos ao peito, empalideceu e se sentou na primeira cadeira que teve ao seu alcance. Como iria ocupar-se de todos os preparativos necessários para organizar uma cerimônia para tantos convidados? Acaso o duque desejava que a festa fosse um fiasco? Acreditaria que assim deixariam de fofocar sobre a razão pela qual mantinha sob seu teto uma concubina? A moça, depois de recompor-se do choque, quis levantar-se, dirigir-se para onde se encontrava o duque e lhe gritar se estava louco ou continuava embriagado pelo vinho da noite anterior. Mas como era lógico, não o fez.
Olhou o ancião assustada e, depois de receber um semfim de palavras de incentivo, recuperou a serenidade e começou a elaborar um plano. Conforme recordava, nas poucas celebrações que se ofereceu em seu lar, sua mãe controlava até o detalhe mais insignificante e, embora terminasse exausta, todo mundo saira bastante contente. Ela procurou fazer o mesmo. Elaborou uma meticulosa lista em que abrangeram da preparação do salão onde se celebraria o banquete, a comida que se serviria, nos diferentes pratos, as bebidas
adequadas,
quantos
criados
deveriam
atender
durante o jantar, o lugar apropriado para celebrar o baile, os músicos que deviam contratar… tudo o que conseguia lembrar, anotava-o nas folhas que o senhor Stone lhe facilitou para não se esquecer de nada. ― Deve comer ― disse a cozinheira ao observar que a moça não tinha provado nem um bocado. Era o almoço da terça-feira e depois da jornada do dia anterior e de ser consciente do que poderia acontecer se tudo saísse mal, não tinha apetite. ― Sou incapaz de fazê-lo, tenho o estômago tão pequeno que não me cabe nem uma ervilha ― comentou depois de levantar-se e levar em suas mãos o prato. ― Se não se alimentar, não terá forças para tudo o que tem que fazer, e então esses temores que sacodem sua cabecinha se farão realidade. Hanna lhe impediu o passo e a fez retornar ao seu assento para que terminasse de comer a carne com verduras.
― Mas, senhora Stone, por favor, pode me explicar por que sua Excelência me castiga com esta tarefa? ― Queixou-se aflita. ― Acaso não se dá conta de que é uma loucura? ― As loucuras, querida menina, não têm lógica, nem sentido, nem razão, fazem-se e ponto ― disse com um enorme sorriso. ― Devia ter aceitado. Tinha que ter partido… ― sussurrou ao mesmo tempo em que segurava o garfo e cravava com inapetência uma batata cozida. ― O que disse? ― Perguntou a anciã enrugando a testa e cravando seus marrons e penetrantes olhos nela. ― Que deveria ter aceitado a proposta do duque ― respondeu um tanto assombrada pela mudança de atitude da mulher. ― Valha-me Deus! Santo Céu! ― Elevou as mãos para o teto e logo voltou a baixa-las com rapidez. ― Essa foi a opção que te propôs esse teimoso? Que partisse? ― Sim ― afirmou temerosa pelos dramalhões que realizava, até agora, a sensata cozinheira. ― Está pior do que eu imaginava! ― Exclamou antes de dar a volta e começar a mover algo na panela que estava fervendo no fogo. ― Eu disse algo que…? ― Tentou dizer. ― Não disse nada e disse tudo! Faça o favor de comer o que te servi e continuar com o que deve fazer. Assim que tiver um instante livre falarei com o senhor Stone para que se converta em sua sombra. Ele te ajudará em tudo o que não possa conseguir ― explicou com aparente aborrecimento.
― Mas eu… ― Não há mas, nem menos! Temos que preparar a melhor festa que tenha tido o condado de Derbyshire até o momento! ― Sentenciou antes de continuar removendo com firmeza aquilo que estava a ponto de cair ao chão pelo brio de seus movimentos. Beatrice comeu em silêncio enquanto evitava olhar à senhora
Stone.
Não
entendia
a
razão
pela
qual
se
sobressaltou tanto por um comentário insignificante. Que problema teria tido o duque se ela tivesse decidido partir? Possivelmente se referia à repercussão social que teria se, depois de fazer chegar os convites, cancelasse o evento? Em sua curta vivência em sociedade tinha aprendido que as aparências eram vitais para poder levar uma vida tranquila, mas… isso acaso tinha importado alguma vez ao duque? Sua famosa vida de libertino, galã, presunçoso e, sobretudo, rico eram temas recorrentes em qualquer conversação londrina. Depois do duelo ela não sabia o que teria mudado nesses bate-papos, embora muito temesse que no sábado o descobrisse. Sem sequer fazer ruído se levantou, colocou o prato na pilha e, depois de confirmar que a senhora Stone seguia grunhindo, decidiu abandonar a cozinha e dirigir-se para o salão principal. Ali se ofereceria o baile para os convidados e devia assegurar-se que o lugar eleito para os músicos era o adequado para que a melodia se escutasse em todo o salão. Ao abrir as colossais portas, observou atônita as mudanças efetuadas, tinham desaparecido a extensa mesa
central e as cadeiras que a rodeavam e os criados tinham construído um pequeno cenário ao fundo, justo ao lado do acesso que conduzia até o balcão. Sorriu satisfeita pela eleição, pois se algum casal desejasse intimidade ali fora a obteria sob a multidão de aromas do extenso jardim. Além disso, se o tempo o permitisse, haveria uma linda lua cheia. Com uma incrível emoção andou pela sala imaginando o baile: casais dançando pelo lugar ao compasso de uma música suave, rítmica. Beatrice fechou os olhos, colocou-se como se segurasse a um par e escutando em sua cabeça uma leve melodia, começou a dançar. Em seus giros podia notar o movimento do vestido, seus passos deslizar-se sobre o chão com sutilidade e a felicidade que percorria seu corpo. Fazia tanto tempo que não dançava que não recordava como a fazia sentir-se. Atravessou a sala com lentidão, atordoada pela placidez do momento. De repente se sentiu observada, parou sua dança e olhou para a entrada do salão. Ali se encontrava o duque, calado, imóvel, contemplando aquele ato infantil. Vestia um impecável traje azul marinho, uma camisa branca e, embora parecesse incrível, tinha trocado seu colete por um cinza. Beatrice cravou o olhar no rosto masculino e se surpreendeu ao ver que não mostrava aborrecimento, mas sim fascinação. ― Sua Excelência… ― murmurou abaixando a cabeça para que o homem não descobrisse a vergonha que sentia naquele momento.
― Boa tarde, senhorita Brown. ― A saudação soou rude, tosca, mais do que tivesse pensado após perceber a expressão de seu rosto. ― Dispunha-me a… ― tentou dizer quando percebeu que este caminhava para ela com passo firme e com o queixo elevado. ― Segue cobrindo seu corpo com roupa de criada? ― Perguntou muito zangado. ― Acaso não tem roupas mais dignas para usar? ― Não queria danificar os vestidos que me deu de presente, senhor ― mentiu. Lorinne discutiu com ela nessa mesma manhã sobre a vestimenta que devia usar, insistindolhe que a pupila do senhor não podia ir com trapos destinados à servidão, mas seu orgulho a fez negar-se terminantemente, acreditando que era o mais correto. Entretanto, ao descobrir a ira que tinha provocado no duque, já não estava tão segura de sua eleição. ― No caso improvável de que se danificasse algum vestido, uma criada poderia acompanhá-la até Rowsley para comprar o que precisasse ― disse aplacando um pouco aquele tom sóbrio. ― Mas não há tempo para isso. Tenho muito trabalho a fazer. ― Segurou com força o avental ao mesmo tempo em que escutava a respiração agitada do homem, que de novo se colocou em frente a ela, muito próximo, provocando-lhe uma terrível dor no estômago. ― Pois deverá adiá-lo ― comentou ao mesmo tempo em que se dirigiu para o lado esquerdo. Andou uns passos e,
como iria sendo bastante habitual, deu-lhe as costas. ― Temos que fazer outras coisas mais importantes. ― Mais importantes que adequar este lugar para sábado? ― Deu meia volta e se colocou atrás dele. Agora era ela quem estava zangada, tanto que elevou o queixo tão alto quanto pôde. ― Esta manhã recebi várias respostas dos nossos convites ― explicou mais calmo. Colocou seu braço direito nas costas e se manteve quieto com o olhar cravado ao fundo. ― Nelas me informam que, dado o incessante rumor que percorre as ruas do povoado, desejam conhecê-la e verificar que se trata de uma falácia desprezível. ― Meu Deus! ― Exclamou aterrorizada. Beatrice não tinha meditado sobre isso. Estava tão ocupada com as tarefas que esqueceu os protocolos que se deveriam levar a cabo ante um convite. ― Na hora do chá teremos a visita honorável do senhor e da senhora Wadlow. Sabe de quem falo, não é senhorita Brown? ― Girou-se para a moça e observou que ela não evitou mostrar o aborrecimento que lhe produzia escutar o sobrenome. Ele tampouco pôde reprimi-lo ao abrir a carta e ler que o doutor não assistiria à festa se não fosse recebido antes em Haddon Hall e a própria jovem confirmasse a nova versão. ― Receber-lhe-emo com um grande sorriso ― disse apertando os dentes. ― Sua decisão me deixou sem palavras ― revelou com um suave sorriso. ― Durante o trajeto até aqui meditei como
lhe informar de tal acontecimento. Pensei que iria gritar ao céu e que os receberia a pedradas. Entretanto, acredito que essa atitude é a mais acertada. Não se deve mostrar aos outros os sentimentos que possui ― disse um tanto assombrado e orgulhoso pelo coerente comportamento da moça. ― Recorda que minha principal tarefa é ajudar à senhora Stone na cozinha, não é? ― Expôs arqueando as sobrancelhas e exibindo um rosto maquiavélico. ― Pois não imagina quantas coisas podem cair em uma xícara de chá e provocar uma rápida indisposição. Uma enorme gargalhada retumbou na habitação. A moça quase teve que tampar os ouvidos para que o eco não retumbasse em sua cabeça, mas de repente o duque mudou o sorridente rosto, ficou sério e olhou Beatrice com os olhos entrecerrados. ― Não terá pensado alguma vez em me fazer tal coisa, não é? ― Centenas, possivelmente milhares de vezes, mas estou segura de que sua cozinheira, quem o adora embora ainda não saiba muito bem por que, degolaria-me como faz com as pobres galinhas ― afirmou entre risadas ao mesmo tempo em que William voltava a gargalhar. Beatrice o olhou com atenção. Se não recordava mal, era a primeira vez que o escutava rir com tanto entusiasmo. Seu rosto se mostrava diferente ao que estava acostumado a apresentar quando a retidão de seu comportamento se impunha. Umas pequenas rugas se desenharam nas laterais
de seus olhos escuros, seus lábios se revelavam sem pudor, mostrando uma bonita forma de coração e a barba era ainda mais densa, se possível. O duque continuou rindo um pouco mais. Logo, depois de descobrir que a tensão entre eles havia desaparecido, atreveu-se a perguntar. ― Gostaria de dar um passeio? Faz uma tarde linda e eu gostaria de desfrutá-la antes da perturbadora visita. ― O mais conveniente seria que eu me retirasse ao quarto e começasse a… ― Rogo-lhe, acompanha-me. Prometo-lhe que será uma caminhada curta. ― Olhou-a aos olhos e lhe sorriu como se se tratasse de um menino rogando para que lhe dessem o que tanto deseja. ― Muito bem ― sucumbiu ao fim. Beatrice pretendia andar dois passos atrás dele, mas o duque o evitou diminuindo seu ritmo até que ambos permanecessem juntos. ― Quando as nuvens deixam o sol brilhar, a paisagem que se aprecia é maravilhosa ― comentou William quando seus pés tocaram a grama. ― É impressionante… ― comentou Beatrice exalando em cada palavra como se lhe faltasse o fôlego. ― Nunca tinha visto um lugar tão imenso. ― Tudo o que tenho devo ao meu avô. Foi um homem muito trabalhador. Conforme tenho entendido se propôs a adquirir as terras adjacentes à mansão e não cessou em seu empenho até que o conseguiu ― explicou orgulhoso. Olhou
para o horizonte, suspirou, colocou seu braço direito para trás e avançou com passo lento. ― Ao que parece foi o único duque de Rutland que fez honra ao título. Beatrice o olhou de esguelha, apertou os dentes para não replicar tal afirmação e prosseguiu seu caminhar. ― É muito jovem, senhor. Pode ainda mudar seu destino ― disse depois de uns minutos em silêncio. ― Mas como já lhe expliquei, as ideias preconcebidas da… ― Por que essa fonte se encontra em tão mal estado? ― Perguntou Beatrice interrompendo a reflexão de William ao mesmo tempo em que se dirigia para a construção de pedra que se achava na metade do jardim. Tudo ao seu redor desprendia beleza e um meticuloso cuidado, entretanto, o pequeno manancial estava quebrado, destroçado por alguma estranha razão. ― Resulta-me desconcertante que ninguém se preocupou em restaurá-la. ― Não vale a pena perder tempo nela ― esclareceu posicionando-se atrás da jovem. ― Por quê? ― A moça se voltou para ele e esperou a resposta. ― Porque é perigosa ― apontou com certo pesar. ― Que ameaça pode supor uma fonte, além de terminar molhado? ― Arqueou as sobrancelhas e o olhou ansiosa. ― É uma longa história… ― Daremos, então, um comprido passeio ― replicou. ― É dolorosa. ― Poderei suportá-lo ― insistiu.
William a contemplou com atenção e notou como a dor no peito aparecia de novo. Era uma estranha queimação que não havia sentido jamais. «Possivelmente, ― disse ― porque não encontrou uma mulher que lhe provocasse isso». Ante tal reflexão, tomou ar, soprou, levantou a cabeça e olhou para o bosque. ― Quer que eu lhe suplique? ― Colocou as mãos na cintura e franziu o cenho. ― Não. ― Então, a que vem tanto mistério? ― Não deveria… ―
Está
bem!
Como
deseja!
―
Exclamou
com
aborrecimento. ― Se me permitir, tenho muitas coisas que fazer em… ― Aconteceu faz pouco mais de quinze anos. ― William a segurou pelo braço para que deixasse de afastar-se e começou a triste narração. ― Lausson e eu passeávamos por aqui enquanto falávamos do futuro que nos proporcionaria em Londres quando enfim pudéssemos abandonar Haddon Hall. As crianças dos criados brincavam de correr ao nosso redor tentando nos fazer partícipes de suas diversões. Como foram tão persistentes, terminamos cedendo. Entre esses pequenos se encontrava Anne, a filha dos Stone, de uns cinco anos de idade. Ao Lausson ocorreu entretê-los brincando de esconde-esconde,
então
enquanto
os
procurávamos,
poderíamos continuar com nossas divagações infantis. Um criado requereu minha atenção ante a chegada de uma notificação que nos enviou o senhor Gibbs. Sem pensar que
meu irmão só contava com treze anos e era mais menino que aqueles que se ocultavam no jardim, parti deixando-os sozinhos. ― Respirou fundo mostrando sem evitar a intensa aflição que sentia, ao mesmo tempo em que prosseguia a caminhada. ― Um momento depois, alguém gritou na entrada principal. Os alaridos eram tão intensos que, sem ter que sair da habitação, soube com certeza que algo grave tinha acontecido. Corri para o exterior rezando a Deus que não tivesse ocorrido nada ao Lausson, mas não se tratava dele e sim da Anne. Quando desci essas escadas... ― indicou-as com um suave movimento de sua cabeça ― vi horrorizado os incessantes intentos de um pai por salvar a vida de sua pequena e como uma mãe gritava e chorava ante o desastre. ― O que ocorreu? ― Beatrice parou sua caminhada, agarrou-o pelo braço e o girou para ela para poder contemplar em seu rosto a tristeza que expressavam suas palavras. ― Anne, ao correr para que não a encontrássemos, tropeçou com a fonte e caiu nela. Deu-se um golpe na cabeça. Foi um muito pequeno, mas a deixou tão aturdida que não conseguiu mover seu rosto para conseguir respirar e terminou afogando-se. Nossa pequena Anne perdeu a vida nessa maldita fonte ― exalou com força. ― Depois de enterrála, Lausson se inundou em um estado de choque que não conseguiu superar até que abandonou esta casa e os Stone partiram. Não podiam suportar viver no lugar no qual sua filha havia falecido.
―
Mas
retornaram…
―
murmurou
Beatrice
com
suavidade sem soltar o braço do duque. ― Retornaram um ano depois. Abri-lhes as portas esperando qualquer recriminação, mas não o fizeram. Só observaram que, ao pôr os pés em Haddon Hall, encontraram a fonte sem água e destroçada pelo arrebatamento enfurecido de um adolescente que perdeu nela a sua verdadeira família. ― Pobre senhora Stone… ― sussurrou liberando o duque para aproximar-se da fonte. Abaixou-se e tocou com uma mão as pedras quebradas pelos golpes. ― Como pode compreender, entre os Stone e eu cresceu um vínculo mais forte, se possível. Eles sempre foram e serão meus verdadeiros pais ― afirmou com veemência. ― Por isso senhor, jamais poderei envenená-lo embora o anseie com todas as minhas forças ― disse como se dito ato lhe provocasse uma terrível decepção. ― Possivelmente se tentasse em Watford, teria mais sorte. Acredito que a duquesa estaria encantada de me oferecer ela mesma o veneno ― voltou a gargalhar. ― Deus lhe castigará por pensar esse tipo de coisas sobre sua mãe ― comentou com um fingido aborrecimento. ― Não acredita que Deus já me castigou o suficiente? ― Perguntou sério. Seu corpo se endureceu e toda a felicidade desapareceu com rapidez. William respirou profundamente e tentou fazer apagar de sua cabeça os suplícios aos quais se enfrentava dia a dia.
―
Sinto
muito…
não
quis
dizer
–
desculpou-se,
levantando-se rapidamente e aproximando-se do homem. ― Bom, senhorita Brown, é hora de retornar. Devemos nos preparar para aqueles respeitáveis convidados ― declarou com voz serena, impessoal. Beatrice andou cabisbaixa ao lado do duque. Não sabia como romper o silêncio incômodo que se criou entre eles. Sentia-se mal por ter encaminhado uma conversação afável a uma lembrança tormentosa. Não era sua intenção. Não desejava lhe machucar. Não desejava ser como os outros. ― Agora que o penso… ― falou William parando sua marcha. ― Você sabe muito sobre mim, mas eu mal sei algo de você. ― Não há muito o que contar ― manifestou aturdida. Era certo que até aquele momento tinha evitado mencionar seu passado e como terminou vivendo na cabana, mas parecia que o tempo de seguir contornando essa história tinha finalizado. ― Sou todo ouvido. Não imagina quantas vezes tentei lhe perguntar sobre isso e não consegui saber como iniciar a conversação ― esclareceu com voz serena. Sua mão direita retornou às costas e, olhando-a com atenção, esperou a ansiosa história. ― É muito breve e menos extensa que a sua ― começou a narrar enquanto começavam a subir os degraus. William, por cortesia, deixou-a avançar na frente dele. ― Meus pais eram uns humildes lavradores e, com a esperança de achar à
sua única filha um futuro melhor, conseguiram-me um trabalho na casa de um homem rico. ― De onde eram seus pais? Onde a levaram? ― Inquiriu sem mal respirar. ― Porque conforme pude investigar, ninguém a conhece em Rowsley. ― Indagou sobre mim? ― Girou-se para ele e colocou de novo as mãos na cintura ao mesmo tempo em que franzia o cenho. Ao subir um degrau acima do duque, ambos os rostos ficaram frente a frente. Seus olhos verdes observavam diretamente os escuros do homem. O ar que desprendia um, podia respirá-lo o outro. Beatrice se sentiu enjoada ao inalar aquela mescla de colônia e essência viril. Tragou saliva ao pensar que, em um leve movimento, ambas as bocas podiam roçar-se. Embora não fosse apropriado imaginar tal coisa, fantasiou outra vez como beijariam aqueles lábios. Sua mente lhe respondeu com todas as sensações que poderiam lhe ocasionar aquele beijo, então uma intensa dor surgiu em suas vísceras, como se em seu estômago revoassem milhares de percevejos que lhe cravavam sem cessar os ferrões. Mas foi outra doença ou queimação a que quase provoca sua queda ao chão, notou, pela primeira vez em sua vida, um estranho calor que procedia do baixo ventre. Aturdida, zangada e terrivelmente assombrada ao descobrir que o homem que se encontrava em frente a ela despertava um desejo impuro, deu-se a volta para prosseguir seu caminho para o interior da casa.
― Não se zangue comigo. O rogo, mas tem que entender que me preocupei ao vê-la tão desamparada no refúgio ― explicou com angústia William. A proximidade entre eles lhe tinha provocado o impudico desejo de beijá-la, de abraçá-la e de sentir a calidez do pequeno corpo. Tentou centrar sua mente em cavalos, na festa, em Roger e terminou pensando em Federith. Milhares de impropérios apareceram em sua cabeça e todos estavam dedicados ao seu amigo: «Algum dia, William Manners futuro duque de Rutland, apaixonar-se-á e essa mulher te fará pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos», essas tinham sido suas palavras na mesma manhã do fatídico duelo. Em efeito, o dia tinha chegado e, tal como previu, estava pagando todas as atrocidades que provocou. ― Quando retornei ao meu lar depois de saber que meus pais estavam doentes, já haviam falecido por causa da cólera. Pensei que podia viver no lar onde cresci e subsistir com o pouco que me oferecia a terra, mas não foi assim. As dívidas que geraram os falsos remédios para curá-los foram saldadas com essa casa. Ao ver-me sem nada comecei a andar e não parei de fazê-lo até que cheguei à cabana. Como não a habitava ninguém, converti-a em meu novo lar ― disse apertando a mandíbula, os punhos e estrangulando sua alma. ― Sinto muito… ― murmurou com pesar. ― Não o sinta, é lógico que deseje saber a quem tem sob seu teto. Embora como pôde comprovar não sou nenhuma ladra, nenhuma assassina, tão somente uma vítima do
infortúnio. E agora, se me desculpar, tenho que me preparar para receber de forma correta os seus convidados. Sem levantar a cabeça acelerou o passo e entrou na mansão sem olhar para trás. Umas pequenas lágrimas percorreram seu rosto ao mesmo tempo em que subia as escadas. Não só sofria porque tinha saudades de seus pais e da vida aprazível que tinha vivido com eles, mas também porque estava segura de que o duque ficara, após escutar a história, imóvel e aflito em frente à porta.
XX
― Deveríamos ter escolhido o dourado... ― disse Beatrice movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso para aquela ocasião ― tem bastante decote… ― Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca evita que se aprecie ― argumentou Lorinne enquanto tentava colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça. ― Não pensa que é muito atrevido? ― Perguntou ao mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa. ― O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora Stone permitiu sua compra ― expôs antes de emitir um sorrisinho perverso. ― Mas é lindo… ― murmurou a jovem caminhando para o objeto e tocando com cuidado o tecido.
― Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor terrível no flanco ― comentou a donzela zombadora. ― Por quê? ― Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a com atenção e caminhou para ela. ― Não imagina por quê? ― Assinalou com seriedade. Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se referia, explicou-lhe. ― Como acredita que atuarão as esposas desses maridos? ― Esperou uma resposta e ao não obtê-la, continuou.
―
Minha
querida
senhorita
Brown,
esses
desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros cotovelos de suas mulheres ― disse antes de soltar uma gargalhada. ― Não seja boba… ― sussurrou desenhando um leve sorriso em seu rosto. ― Ninguém será capaz de me olhar dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo mundo teme zangá-lo. ― Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares… De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta. Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério, frio, imperturbável. ― Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los. ― Descerei agora mesmo ― manifestou depois de tragar saliva. ― Obrigado ― respondeu o mordomo antes de despedirse.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior. Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela não era uma cortesã? E, sobretudo… como atuaria o duque se o homem se comportasse indevidamente com ela? De repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis. ― Não se preocupe, tudo sairá bem ― sussurrou Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ― O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso daqui ― sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da habitação. Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar em um homem que se caracterizava por manter uma extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa, inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente era o momento de recebê-la. Com suavidade desceu as escadas sem deixar de observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a perturbação
não
desaparecesse,
a
história
mentirosa
terminaria em um fracasso inevitável. William não tranquilizou sua mente nem um só instante desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado. Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava havê-la conduzido para a situação em que se encontrava agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E
tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender a viver sem ela. «Se tanto a necessito, ― disse ― deveria atuar com rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe prometi, terei que deixá-la partir». Mas a única forma encontrada para evitar aquela desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os sentimentos que ela tinha para com ele. ― Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele. ― Desculpe-me, não a ouvi descer… ― começou a dizer William enquanto dava a volta para receber como era devido à jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade? ― Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que permaneça uns passos atrás? ― Perguntou. Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma imensa zombaria. ― Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido marido após sofrer um desmaio? ― Respondeu William à dita brincadeira.
― Então, a melhor opção será que fique ao seu lado, mas com certa distância ― disse ao mesmo tempo em que dava uns passos para sua esquerda. As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta, Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com suavidade. ― Esqueci-me de lhe dizer que está linda. Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma. ― Se forem tão amáveis de me seguir ― falou o senhor Stone. ― Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência. ― Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ― Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que se achava ao seu redor. ― Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar
sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a verdade. ― Não se preocupe querido ― disse sorrindo e lhe dando uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a sustentava. ― Encontrarei-a antes de beber o último gole de chá. Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso. ― Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ― saudou o duque com voz grave. ― Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ― comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ― Alegro-me de vê-la em tão bom estado, senhorita Brown. ― Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ― comentou sorridente. ― Querida, esta é a jovem de quem te falei ― explicou Graham apartando-se para a direita para que a mulher se aproximasse de Beatrice. ― Senhorita Brown, minha esposa, a senhora Wadlow. ― Encantada ― disse a moça mostrando o mesmo sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o doutor. Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela
fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade. ― Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ― explicou com aparente horror. ― Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ― sorriu outra vez. ― Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o bate-papo ― interveio William perplexo ante a hipócrita atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o deixava assombrado, atônito e orgulhoso. ― É claro ― afirmou a moça. ― Os cavalheiros poderiam ir à frente ― murmurou à Irina segurando-a pelo braço com familiaridade. ― Estou segura que ambos conhecem o caminho melhor que nós. ― Confunde-se, senhorita Brown ― interveio com rapidez o doutor. ― Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais estive neste lugar ― resmungou Graham ante tal atrevimento.
― Desculpe-me! ― Exclamou Beatrice com semblante desconcertado. ― Acreditei escutar que você era amigo do anterior duque de Rutland. ― Que nada! ― Deixou escapar Irina ante tal afirmação. ― Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta mansão durante as aparições daquele homem. ― Ah, não? ― Perguntou com um aparente assombro. ― O pai de sua Excelência, ― começou a explicar a mulher depois dos passos dos cavalheiros ― era um homem desonroso e abrigava sob seu teto mulheres… como o diria eu para não escandalizá-la? ― Prostitutas ― apontou William com voz séria. Embora seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetirse que a reunião iria ser mais amena do que pensava. ― Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua… ― Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento. A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a jovem para examiná-la. ― Não se preocupe ― disse a moça recompondo-se. ― Foi só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer. ― Encontra-se melhor? ― Interrompeu William tentando aparentar preocupação. ― É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu lado
permanecia
absolutamente
em
o
doutor silêncio.
com
o
Depois
cenho deles
franzido andavam
e as
mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas, onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram permanecer de pé ao seu lado. ― Então, ― rompeu o silêncio Irina ― conforme nos informaram, é você a pupila de sua Excelência. ― Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland, encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ― explicou olhando-a fixamente aos olhos. ― Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento, milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem, tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar. ― Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas depois de minha desgraça, de me converter em um ser incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a melhor opção para limpar o bom nome que ostento ― sentenciou. Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os
dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era capaz de assimilar. ― Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar – interveio. ― E como tutor, não tenho queixa alguma, embora eu lhe diga que é bastante exigente. O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes, como se ainda não acreditassem na versão contavam. ― É o momento do chá ― esclareceu William. Caminhou para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone. ― Sim, milord? ― Estamos preparados para tomar o chá ― afirmou. Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos umas bandejas de prata com as xícaras e massas. Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça sobre a mesa e se levantou com decisão. ― Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ― Perguntou enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do
salão. ― Se a memória não me falhar, nosso duque, quando tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista. William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado. Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo que o tirasse do apuro, mas foi impossível. ― Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon Hall, salvo quando me visitou? ― Beatrice, assombrada pela maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade. ― Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde Rutland com este instrumento ― sorria de orelha a orelha. Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação. Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto. Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um estudo tão importante como a arte da música. ― Sim, por favor, toque alguma peça! ― encorajou Irina a decisão de seu marido com grande exaltação. ― Eu adoraria escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me disse meu último professor, não tenho um bom ouvido. ― Como podem apreciar ― interrompeu William malhumorado. ― Não sou o homem apropriado para instruir com precisão nessa habilidade. Muito temo que… ― É claro! ― Exclamou Beatrice elevando-se de seu assento e caminhando para onde permanecia o senhor
Wadlow e o instrumento. ― Como já disse, o duque é um bom tutor
e,
embora
não
possa
me
deleitar
com
uma
interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmitilo. Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte das partituras e olhou-as com atenção. ― Alguma peça em especial? ― A jovem arqueou as sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou ao duque. Este estava absorto em algum pensamento doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e apertava
a
mandíbula.
Quis
lhe
sorrir,
transmitir-lhe
serenidade para acalmar sua inquietação, mas… quem a calmaria? ― A que você desejar ― respondeu Graham sem deixar de regozijar-se. Nesse momento e ante o assombro dos três, William se levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com suavidade e lhe sussurrou: ― Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa melodia. Durante os quatro minutos e meio que durou Spring Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de moverse para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não puderam
respirar
pela
elegância
e
os
sentimentos
transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com um interminável repertório. Aquela composição em especial os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma sociedade repleta de insensibilidade. Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente. Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador, pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada, ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe
apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam seus queridos pais depois do penoso anúncio. Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e, depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a, protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças. Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por ele.
Seus
aborrecimentos,
suas
atitudes
altivas,
dos
incontáveis enfrentamentos… e soube por que tinha lutado com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o amava. Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua alma e isso lhe produzia pavor. ― Lindo… ― murmurou Irina levantando-se de seu assento para dirigir-se a ela. Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
― Sinto muito todo o ocorrido ― disse o doutor ao contemplar a cena entre ambos. ― De verdade que o sinto e se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o. ― O convite segue em pé ― comentou com firmeza. Não lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade. ― É hora de partir ― apontou Irina segurando seu marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ― Não se incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá como sair daqui. ― William só pôde assentir com um leve movimento de cabeça. Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou. ― Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a futura duquesa de Rutland. O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse, enquanto lhe sussurrava palavras de consolo. «Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo. Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu lado, necessitava que jamais se afastasse dela. ― Minha pequena Beatrice… ― murmurou apartando-a com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com
o esquerdo. ― Não sei de onde veio, nem como conseguiu chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em minha vida. Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la. Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele, hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era adequado
sentir,
depois
do
acontecido,
um
desejo
incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas lhe resultava difícil não o fazer porque o amava. William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse. Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível gemido
de
necessidade,
voltou
a
estender
a
mão
e,
segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo,
convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido, enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era só dele. ― Desculpe minha ousadia ― disse William quando se separou dela para que não pudesse captar a excitação que lhe tinha provocado à aproximação. ― Não devia me aproveitar de sua aflição. ― Não se desculpe, foi culpa de ambos ― comentou com pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la. ― Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu consentimento ― esclareceu dando uns passos para trás. ― Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu quarto. ― É claro ― respondeu aflito. Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou a porta e se tombou na cama para chorar. Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um sorvo.
XXI
Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar, tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado? Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca, o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo. «Se tivesse sido em outro tempo, ― meditou na tarde do sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de Lorinne
―
acreditaria
que
se
aproveitava
da
minha
debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e petulante morreu». Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o duque se desculpou, quando bateram na porta. ― Adiante ― deu permissão em voz baixa. ― Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados com os flancos doloridos? ― Comentou a donzela com um sorriso. ― Estou esgotada… ― indicou ao mesmo tempo em que se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ― Não poderiam postergá-la? ― Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta habitação há mais de duas horas! ― Lorinne se aproximou dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ― Não temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone, logo chegarão os primeiros convidados. ― Tão cedo? ― Soltou a moça assombrada.
― Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas muito importantes para ele e, conforme comentam, pediulhes que viessem antes da cerimônia ― explicou enquanto se dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama. Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse tipo de objetos. ― Quem são essas pessoas? ― Aproximou-se da donzela, girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa. ― Amigos do duque. ― Apertou tanto os cordões do espartilho
que
deixou
a
moça
sem
respiração.
―
Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa, mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes deles. ― Voltou a girá-la para certificar que o objeto se ajustava
como
devia
ao
pequeno
corpo.
Quando
se
conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a jovem. ― E o outro? ― Beatrice levantou os braços para que Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo
mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão incauto de lhe enfurecer em sua própria casa? ― Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a missiva nos contaram ― disse com uma aura de mistério. ― E? – Insistiu, na espectativa. ―
Chama-se
Roger
Bennett,
futuro
marquês
de
Riderland. Conforme tenho entendido... ― deu a volta à moça e abotoou suas costas ― o senhor Stone jamais se agradou dessa amizade ― disse ao mesmo tempo em que colocava suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a penteadeira para penteá-la. ― Parece ser um homem inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho. ― E esse tal Roger… decidiu vir? ― Perguntou com certa inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou qualquer aproximação com estes, mas… eles teriam reparado em sua presença? ― Sim! Claro que virão! ― Exclamou entusiasmada. ― E por fim descobriremos o rosto desse fantasma! Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava com afinco para realizar um penteado que, conforme apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso
decote.
Tampouco
prestou
atenção
aos
intermináveis
comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento. Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu pêlo se arrepiou. ― Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ― tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se tivesse frio. ― Levante-se! Deixe que a contemple! Beatrice
se
levantou
devagar
e
olhou
os
pés
embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda aquela felicidade começou a desaparecer.
― Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ― Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou uma caixa marrom. ― O que é? ― Perguntou curiosa. ― Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ― disse sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias fechada. ― Estava aí fora, no corredor te esperando? ― Perguntou alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no máximo e observou a caixa com medo. ― Penso que pretendia te chamar à porta para oferecerlhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos ― continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o serviço
era
consciente
dos
sentimentos
que
o
duque
professava para com a moça e os dela para com ele. Só esperavam que ambos fossem conscientes. ― Abrirá em algum momento? ― Insistiu a donzela ao ver o estupor no semblante da moça. Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias. Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne segurou-a pelo braço para que não caísse no chão. ― Não posso aceitar… ― murmurou ao mesmo tempo em que tentou recuperar as forças. ― Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa gente nua? ― Perguntou a donzela zangada.
― É um presente muito… ― sussurrou dando a volta e abaixando a cabeça. ― Está segura de que é um presente? Não cabe a possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ― Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela para lhe mostrar de novo as joias. Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes unidas entre si no centro por uma grande aguamarina ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo com ambos os complementos salvo que estes eram muito pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia medir uma décima parte de uma polegada. ― Muito ostentoso! ― Exclamou depois de admirá-las. ― Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ― afirmou. A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor, ofereceriam-lhes outro mais suculento.
― Pode abrir os olhos… ― sussurrou a donzela ao finalizar. A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia usá-las. ― Sigo pensando que… ― começou a dizer ao mesmo tempo em que girou-se para Lorinne. Uns golpes interromperam o que pretendia expor. Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor Stone era o causador de não poder finalizar o que ia comentar a Lorinne. ― Sim, senhor Stone? ― Perguntou preocupada. ― Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o antes possível. ― O mordomo a observou com atenção e, para assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ― Se me permite a ousadia, senhorita Brown, está magnífica. ― Obrigada, senhor Stone, ― sorriu-lhe ― é um elogio muito adulador vindo de você. ― Bom, se não precisa de minha ajuda, ― interveio Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório ― continuarei com outros afazeres. A
moça
entrecerrou
os
olhos
e
a
olhou
com
aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços, porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do
intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta, suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse. William, como de costume, encerrou-se na biblioteca para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo. Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os ataques verbais que as visitas ofereciam a ele. De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrouse da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal minimizou
suas capacidades
como
tutor.
Defendeu-lhe
argumentando que para ser um bom professor não devia exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos, quem era em realidade? E… por que tinha castigado a si mesma afastando-se do resto do mundo? ― Milord, ― interrompeu suas divagações o senhor Stone ― o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar. ― Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo. O
mordomo
se
retirou
e
William
respirou
profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o açoitava. «Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se, pensou um não com veemência. ― Meu querido Manners! ― Exclamou Roger ao vê-lo aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu um forte abraço. ― Te vejo muito bem, meu amigo. ― O mesmo digo de ti, vilão ― respondeu sorridente. ― Não me diga isso que me rompe o coração ― disse com falsa tristeza. ― Como denominaria você a um amigo que não oferece notícias
às
pessoas
que
o
apreciam?
―
Arqueou
as
sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso. ― Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me enlouquecendo e quis mudá-lo ― explicou com zombaria.
― E? ― William seguia com as sobrancelhas elevadas. ― OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1) Assim por muito que trabalhei em me curar dessas enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ― afirmou com uma aparente tristeza. ― Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho patife de sempre? ― Perguntou o duque sem deixar de rir. ― Muito ao meu pesar, sim ― respondeu com aflição. ― Ham-ham ― pigarreou Federith na entrada. ― Federith! ― William caminhou para ele e o abraçou com força. ― Obrigado por vir. ― Olhou atrás do homem e ao não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ― E a senhora Cooper? ― Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais complicada do que esperávamos ― explicou com serenidade. ― Gravidez? ― Clamou Roger movendo seu corpo para Federith. ― Não sabe? ― Disse William. — Nosso querido Cooper se casou com lady Caroline e logo se converterá em um estimado pai. ― William… ― advertiu-lhe o aludido. ― Federith não eleve suas armas antes de confirmar que a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro me tem feito entender que cada um deve assumir suas próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de
Ah, meu amigo... nada mudou. As mulheres são muito afetuosas na França e os homens são excelentes jogadores. 1
acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo, apóio-te e te apoiarei sempre ― afirmou sem hesitações. ― Bom, ― interveio Roger ― onde está essa concubina cuja honra devemos salvar? ― Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a pupila do duque de Rutland ― sentenciou Beatrice no alto das escadas. William elevou o olhar para ela no preciso instante que iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que brotasse
de
sua
boca
nem
um
minúsculo
ruído.
A
deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina. Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas que
entorpecessem
a
visão
de
seu
rosto,
nem
que
incomodassem a moça ao menear a cabeça. Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias anteriores
evitou
encontrar-se
com
ele
para
falar
do
acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com
a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam imóveis seus amigos. ― Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer, retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ― asseverou em tom irritado. ― Bien sûr! Je suis très désolé(2) ― respondeu Roger inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de vous connaître, mademoiselle.(3) ― Moi aussi, monsieur(4) ― replicou Beatrice com um perfeito acento francês. ― Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o idioma do amor ― disse olhando-o de canto de olho. ― Pois se a memória não ficou transtornada pelo disparo, ― comentou com assombro ― jamais o estudei. ― Uma irmã de meu pai, ― começou a dizer como desculpa ao seu lapso ― ficou viúva e decidiu viver conosco
2 3 4 5
— — — —
Claro, sinto muito. Prazer em conhecê-la, senhorita. Eu também, senhor Fantástico
durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro francês e ela teve que aprender a língua. ― OH, que tragédia! ― Interveio Federith até agora em silêncio e atento à situação que observavam seus olhos. ― Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único amigo que possuo desde minha infância. ― Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar maravilhas sobre você ― declarou ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mão para que a beijasse. ― Que honra! Foi William quem lhe informou? ― Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu amigo de esguelha. ― Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você, o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ― olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando escutasse o que se propunha ― o senhor Bennett, futuro marquês
de
Riderland
e
de quem
dizem
que é
um
irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem culpam da vida inapropriada do nosso duque. William
liberou
uma
grande
gargalhada
que
foi
acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto, Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia. ― Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas calúnias ― disse mal-humorado. ― Tenho que me bater em duelo por minha honradez. ― A sinceridade dói, não é? ― Comentou jocoso Federith golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
― Bom, ― atuou William ― seria conveniente que nos dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido. Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque, os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o duque
se
sentia
mais
seguro:
a
biblioteca.
Beatrice
considerou andar atrás dos passos deles, observando as figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto, o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a intensidade era similar. «Três cavalheiros, ― disse para si ― três homens tão extraordinários quanto perigosos». ― Então… ― começou Federith a falar quando Beatrice fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava acostumado a ocupar William ― você vivia na suja cabana
que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ― A moça assentiu e este começou a perambular com as mãos agarradas atrás das costas. ― Ele a descobriu e por alguma inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver ali. ― A jovem confirmou de novo com um suave movimento de cabeça. ― Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ― arqueou as sobrancelhas ― decidiu passear à alvorada por suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon, chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com a cortesã. Correto? Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall. Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor Cooper, mas William se adiantou às suas palavras. ― Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém duvida de que sou outro monstro ― esclareceu com serenidade. ― Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ― Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares para enfrentar o duque.
― Eu o pedi ― respondeu rápidamente a moça. ― O que lhe pediu, o que? ― Participou Roger até agora calado e atento. ― Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ― respondeu elevando seu queixo e com aparente aprumo. ― Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se tivesse morrido? ― disse com aborrecimento e aproximandose da moça com passo firme. ― Roger… acalme-se. ― William ao observar a ira de seu amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no peito. ― Não estamos aqui para julgar as decisões da senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha prostituta. ― Nem tampouco sua pupila, William! ― Exclamou Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ― Não recorda o que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita Brown tampouco ― sorriu maléfico. ― Roger! ― Gritou Federith tentando que deixasse de falar. ― Se por acaso não foi informada desse incidente, minha querida senhorita Brown, ― disse com ironia ― a causa daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que, 6
— Meu Deus!
deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer parte que era viúva. ― Cale-se, Roger! ― Voltou a clamar Federith. ― Eu gostaria que partisse da minha casa ― falou William com dureza. ― Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso esqueceu o que significa a amizade? ― Perguntou Roger sem diminuir sua fúria. ― Não, meu amigo. Não vou partir, seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com veemência qualquer coisa que me peça. William se afastou da moça. Antes de dar dois passos para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do mordomo. ― Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais estão em perfeita ordem ― ordenou ao Brandon ao entrar na habitação. Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e
os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem, mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se dirigiu para o mordomo. ― Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece duas bolas ou três de sorvete. ― Falou com calma e, para surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado. Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem. William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava. Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia. ― Devemos nos acalmar. ― Federith foi o primeiro em falar depois que a porta se fechou. ― E William, tanto Roger como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto afinco. O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço sobre a pedra e abaixou a cabeça. ― Amo-a ― disse sufocado. ― Amo Beatrice com todo meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu lado, morrerei. ― Mon dieu! ― Exclamou Roger aplacando sua ira com rapidez. ― Podia ter começado por aí! ― Caminhou para seu
amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando William girou para ele, deu-lhe um forte abraço. ― Sabia que algum dia encontraria a mulher que te roubaria esse coração gelado ― comentou Federith sorridente e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ― Mas tem que pensar com clareza, William. Embora não se importe de onde procede a moça, deve averiguar quem é em realidade. ― Não me importa! ― Exclamou o duque com firmeza. ― Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode ocultar uma jovem como ela? ― Federith olhou com atenção seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem se apaixonou. Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar quando era o melhor momento para revelar a identidade da jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII
Beatrice,
apesar
de
seus
intentos
por
aparentar
entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e, por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o encarcerariam
sem
duvidá-lo.
Aflita
pela
loucura
que
cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha. ― O que te acontece, pequena? ― Perguntou Hanna aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha. ― Posso lhe fazer uma pergunta? ― Seu fio de voz era tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado. ― Todas as que desejar ― respondeu agarrando com força as mãos da jovem. ― O que teria acontecido se o duque não tivesse me encontrado na cabana?
― Quando foi ferida? ― Hanna arqueou as sobrancelhas. ― Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei ferido ― esclareceu. ― Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido e todos os que habitam nesta casa também ― afirmou sem duvidá-lo. ― Apesar dos intentos que tem feito as pessoas para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é certo. ― E se eu houvesse falecido depois do ataque? ― Girouse para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua expressão. ― Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas ele… ― levantou-se do assento e caminhou para os fogões. ― Mas ele? ― Insistiu elevando-se também da cadeira e posicionando-se ao seu lado. ― Ele não se recuperaria jamais da perda ― sussurrou. ― Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia que me responderia isso? ― Seu tom soava afogado, como se alguém a estivesse estrangulando. ― Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á a verdade. Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca decidida continuar a conversa que começara, a porta da cozinha se abriu.
― Estava procurando-a ― disse William com uma emoção
estranha.
―
Acabam
de
chegar
os
primeiros
convidados e temos que recebê-los adequadamente. ― Dirigiu o olhar para Hanna e lhe falou. ― Senhora Stone, tudo preparado? ― É claro! ― Exclamou com entusiasmo. ― Não haverá uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ― Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa. ― Nesse caso, ― estendeu o braço para Beatrice ― se for amável em me acompanhar. A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção. Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu coração. Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia, não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e desenhar um enorme sorriso no rosto. Os convidados subiam pelas escadas saudando com entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-
lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles, apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou a
notar
certo
sufoco
percorrer
seu
corpo,
as
mãos
escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito quente. ― Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais remedeio que enfrentar a minha ira. ― E sem pensá-lo, aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu um terno beijo. ― Sua Excelência... ― advertiu Brandon com seriedade ― o senhor e a senhora Jenkins. ― Boa tarde, milord ― saudou um homem de avançada idade que apertava com força um monóculo em seu olho esquerdo. ― Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou muito feliz ao receber a notícia ― estendeu a mão para afiançar a saudação.
― Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que só sua esposa recebeu com agrado a missiva ― disse sem apagar o sorriso de seu rosto. ― Não dê atenção a este resmungão! ― Exclamou rapidamente a senhora Jenkins. ― Ele também se sentiu ditoso. ― A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o pescoço. ― Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à senhorita Brown, minha pupila. ― É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ― disse o ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para beijá-la. ― Em Rowsley não há outro tema de conversação salvo a sua inesperada aparição. ― Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já bem foi dito, sua pupila ― expôs sem hesitações. Não lhe tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados, mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a emergir do mais profundo de seu ser. ― Falatórios! ― Exclamou a anciã mal-humorada. ― As pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém
alcançou. ― Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro beijo. ― E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ― Perguntou sorridente. ― Seu coração ― sentenciou antes de agarrar o braço de seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos criados. ― Sua Excelência ― o voltou a reclamar Brandon. ― O senhor e a senhora Brace. ― Milord, senhorita Brown ― disse o pároco com cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e logo fez o mesmo com a moça. ― Beatrice! ― Exclamou Lídia abraçando a jovem com força. ― Está linda! Parece uma autêntica rainha. ― Boa tarde, Lídia ― respondeu em voz baixa. Ainda se encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que, conforme diziam, não possuía? ― Bem-vinda ― exalou quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e pôde tomar um pouco de ar. ― Está bem? ― Arqueou a mulher as sobrancelhas ao vê-la tão pálida. ― Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando muito cansada com a preparação ― expôs. ― Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de seu ouvido para sussurrar ― segundo os novos rumores, toda Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
― Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma ofensa ― disse Beatrice sorridente. ― Bobagens! Já verá como ao final todos esses arrogantes terminarão comendo em sua mão! ― Lídia, por favor, comporte-se! ― Exclamou o senhor Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher. ― Sua Excelência ― voltou a interromper Brandon. ― Bom, queira nos desculpar, ― comentou a senhora Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro criado lhes conduzia ― deixaremos que outros tenham também seu tempo de recepção. ― O senhor e a senhora Payne ― prosseguiu o mordomo. Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes, por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir manter-se em equilíbrio. ― Relaxe, ― sussurrou-lhe William ― o mais difícil já passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar. Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar de suas constantes palavras de encorajamento, ela não achava a paz que necessitava para poder aguentar as próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para
o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em qualquer infortúnio. ― Gostaria de nos dar sua opinião? ― Perguntou a esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos afortunados investimentos no estrangeiro. ― Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata, tentarei-o ― disse a moça sorridente. ― A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos se verão influenciados satanicamente pela moda europeia. Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário, nos fortalecerá ― expôs com seriedade. ― Isso é absurdo! ― Exclamou Lídia sufocada. ― Uma mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos? ― Possivelmente algum dia possamos votar ― murmurou com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora Jenkins. ― É muito jovem para pensar essas coisas – respondeulhe com ternura a senhora Wadlow. ― Embora se isso for verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que eles fazem sem pensar, seriam desculpadas. Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após
escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu. ― Se forem tão amáveis, ― disse o duque em voz alta depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde nos servirão um suculento jantar. Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e ocorria o mesmo. ― Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ― comentou Roger atrás dela. ― Venha comigo, acompanharei-a ao seu assento. ― Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão com
delicadeza.
―
Encontra-se
bem?
Tratou-a
adequadamente esse grupo de galinhas? ― Beatrice esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve e só esboçou um leve sorriso. ― Não imagina o que pensam essas galinhas – sussurrou-lhe divertida. ― Muitas delas lhes deixariam sem essa virilidade que tanto desejam aparentar.
― OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional e não se apaixone por uma mulher assim. ― Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito parecida com você ― disse zombadora. ― Será jovem? ― Arqueou as sobrancelhas. ― Se Deus for justo, não ― sentenciou com o mesmo tom jocoso. Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar, petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão para acomodar-se nele. ― Então, senhorita Brown... ― começou a falar o ancião senhor Jenkins ― você é a pupila de lorde Rutland. ― Sim, senhor ― respondeu tentando não derrubar os talheres que segurava nas mãos. ― E, que tal é como professor? ― Excelente! ― Exclamou Irina com rapidez. ― Outro dia tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutálo com nossos ouvidos. ― Ah, sim? ― Perguntou o ancião arqueando as sobrancelhas. ― A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa valsa de Chopin ― interveio o senhor Wadlow. ― Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição de inumeráveis valsas.
― Primavera ― disse William em tom sério, protetor, dominante. ― A valsa mais formosa que Chopin tem composto em sua famosa vida. Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela. ― Conforme contam, ― interveio Federith ― essa valsa o compôs
para
uma
jovem
pela
qual
se
apaixonou
perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando descobriram sua enfermidade. ― OH, que dramático! ― Exclamou uma das jovens que se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse gesto os furtivos olhares para Roger. ― O amor pode ser tão doloroso como formoso – continuou. ― Às vezes, quando você acha que encontrou a pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo desaparece sem ser capaz de evitá-lo. Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não entendia como podiam existir matrimônios desventurados pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora tivessem
passado
mais de
trinta
anos desde
que
se
comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no primeiro dia. ― Por isso, mon ami... ― disse com rapidez Roger para fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu amigo tinham produzido. ― Jamais haverá uma senhora
Bennett por minha parte! ― Alguns cavalheiros sorriram brandamente,
umas
damas
murmuraram
sobre
a
desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens casadouras, emitiram suspiros de pena. Depois
da
pequena
reunião,
os
convidados
se
dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice, cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder. Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com caráter,
julgamento
e
impetuosidade
e
Beatrice
pôde
confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que ele assentisse. Um suave murmúrio começou quando apareceu a sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim. Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação,
incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os olhos em branco em cada colherada. ― É hora do baile ― informou William ao perceber que todo mundo tinha terminado. ― Se não desejarem mover seus pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos bolsos. Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o jovem Bennett se aproximou e a ofereceu. ― Espero que não tenha a primeira dança reservada – disse-lhe com um enorme e bonito sorriso. ― Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça ― respondeu colocando sua mão sobre seu braço. ― Não será por falta de vontade, minha querida senhorita Brown. ― Caminhou devagar para o salão onde, inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música. ― Então, o que você crê que impede a todos esses cavalheiros de dançar comigo? ― Arqueou as sobrancelhas e o olhou zombadora. ― O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em frente a ele para iniciar a dança. ― Medo de mim? ― Perguntou surpreendida e um tanto desconcertada. ― Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco para tocar a sua pupila ― disse levantando a mão e fazendo-a girar.
― Salvo você ― comentou depois da volta. ― Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ― declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns pequenos saltos para o lado direito. A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso? «As joias! ― Exclamou para si. ― Foram as joias!». Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e começou a seguinte. Despediu-se de Roger com um leve movimento de cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando alguém a chamou. ― Conceder-me-ia esta dança? ― Perguntou Federith estendendo a mão direita com a palma para cima. ― É claro. Será uma grande honra ― comentou sorridente. Federith a conduziu de novo para o centro do salão, saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela cintura. A peça a dançar era uma valsa. ― Está se divertindo, senhorita Brown? ― Sim. E você? ― O casal deu uma pequena volta sobre eles mesmos e continuaram com suavidade.
― Mais do que pensei ― respondeu esboçando um leve sorriso. A música continuava tocando. Beatrice acreditou que depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu ouvido para lhe perguntar. ― Conhecemo-nos de algum lugar? ― Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ― disse tentando dissimular seu sobressalto. ― De onde disse que era? William não fez alusão a isso. ― Imagino que o duque se preocupou com coisas mais importantes como compreender por que sua esposa não lhe acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no jantar ― indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus por magoar um homem que, com o coração quebrado, explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe correspondia. ― Está grávida ― respondeu depois de respirar e fazer restabelecer sua pose. ― Felicidades! ― Exclamou com alegria. ― Estará você muito feliz de converter-se em pai ― continuou falando enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres. ― Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria imprudente fazê-la viajar. ― É óbvio.
― Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown. ― Obrigada pela dança, senhor Cooper. Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu coração na garganta e notava como suas pernas começavam a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde sentar-se. ― Encontra-se bem? ― Quis saber a senhora Wadlow preocupada. ― Só cansada. Essas duas danças calorosas me deixaram exausta ― explicou. Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que, em algum momento da recepção, ela deixou de prestar atenção. ― Senhorita Brown… ― uma voz estranha para ela apareceu pela sua direita. ― Sim? ― Perguntou arqueando as sobrancelhas e sorrindo. ― Permitiria-me a seguinte dança? ― No olhar do moço Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos amigos do duque. ― Se não estiver muito cansada, é claro ―
continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer negação. Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão. Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou como inspirava com força para apanhar o aroma que ela desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas palmas pegas ao seu corpo. Sua mente procurou alguma desculpa coerente para cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o olhar e observou como o duque abandonava a sala e se dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele decidiu sair para tomar um ar. «Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco, olhou ao moço com tristeza. ― Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
― Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ― Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres. ― Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me sentará bem ― indicou. ― Como desejar ― respondeu o moço com um sorriso de orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se afastassem da multidão. ― Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além disso, como vou retirar da sala um galante com tantas propostas na sala? ― Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e sorriu. ― Elas não me interessam, senhorita Brown ― disse com firmeza e certo mal-estar. ― Pois a mim, você, tampouco. ― Segurou com suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia expressar o moço, caminhou decidida para o exterior. Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com esplendor. Os campos pareciam como se começasse a amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança, Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava, mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as
mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser consciente de sua presença. ― Não entendo como pode olhar para o chão quando deve admirar a beleza da lua ― falou com um suave fio de voz. ― Senhorita Brown! ― Exclamou assombrado e girandose para ela. ― O que faz aqui? ― O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos abandonou? ― Deu um passo, um só passo, para colocar-se ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem que, sem lugar a dúvidas, amava. ― Precisava tomar o ar fresco da noite ― mentiu. Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ― Não estava dançando com o jovem Rawson? ― Cansei-me com rapidez ― respondeu sem apartar seu olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a testa e apertar os lábios. ― Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma dança ― continuou com o tom sério, impessoal. ― E o concedeu? ― Perguntou assombrada. ― O que quer que lhes diga? ― Girou-se para ela e franziu ainda mais o cenho. ― Digo-lhes que não? ― Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça. ― Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram aqui sozinhos. As pessoas poderiam… ― Não gosta de dançar? ― Interrompeu-lhe antes que continuasse dizendo o que ela não queria escutar. ― Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ― Apartou a mão do rosto da moça e a colocou no corrimão. ― Por quê? ― Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço do homem. ― Por que crê? ― Está sem dançar desde…? ― Uma imensa tristeza sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que o braço inerte do duque caísse para o chão. ― Como se atreve…? ― Começou a dizer William zangado. ― Quero minha dança ― sussurrou a moça sem fazer diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e prosseguiu. ― Concede-me isso? ― Beatrice… ― murmurou tão baixo que nem ela mesma pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas. Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele. Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao sentir por fim o que era um amor verdadeiro. A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson, pedia permissão para que este dançasse com ela. «À sua Excelência não importará, porque, conforme apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido? Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de
Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matálo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo, elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela, entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção. ― Beatrice… Beatrice… ― sussurrou aproximando sua boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as tinham molhado. ― William... ― murmurou fechando os olhos. ― Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ― aproximou seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento, acariciavam-se. ― William, meu querido William… ― ao escutar seu nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso. Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta intensidade como necessidade. Desta vez não começou com uma
carícia
leve,
esperando
ser
rejeitado
a
qualquer
momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e perturbada ao notar que o membro do duque começava a endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e contemplou uns olhos escuros repletos de fogo. ― Quero que saiba que a respeito e que meus beijos para você são incontroláveis ― sussurrou à meia voz devido ao seu estado de excitação. ― Quero que saiba que o respeito e que meus beijos… ― tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava. ― Cof, cof! ― Alguém tossiu próximo a eles. ― Roger! ― Exclamou William assombrado. ― O que faz aí? ― Avançou um passo para o homem e cobriu com seu corpo o de Beatrice. ― Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre onde se encontrarão o tutor e a pupila ― disse reticente. ― Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o… tutor teria saído ao balcão para explicar à sua… pupila que essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente, nova e cheia. Equivoco-me?
― Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a lua ou se recuperando das insistentes garras de um jovenzinho descarado ― resmungou. ― Refere-se ao inofensivo Rawson? ― Arqueou as sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso. ― O próprio ― disse William sério. ― Mon amie... ― sussurrou Roger após aproximar sua boca do ouvido de seu amigo. ― Nós fomos mais perigosos que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao final conseguíamos elevar as pomposas saias. William ficou petrificado. Não soube como tomar as palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos lábios. ― Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as pessoas finalizem um rumor e comecem outro. ― E você? ― Colocou as palmas ao redor do rosto masculino e o olhou aos olhos. ― Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar, direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para resolver um tema urgente. ― Mas… ― Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ― estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar, caminharam para a entrada. 7
— Vamos, senhorita.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As palavras de
seu
amigo
tinham
lhe
causado tamanha
debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração a uma mulher. Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII
À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se, estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz entrasse no interior. ― Boa tarde, que tal se encontra? ― Disse a donzela aproximando-se de sua cama e sentando-se nela. ― Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ― comentou sonolenta. ― Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar – informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ― A festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é? ― Não sei a que se refere ― disse enquanto se sentava sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas. ― Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ― Levantou-se
e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou sem nem o ver, e um de cor rosa. ― Feliz? ― Levantou-se com rapidez, aproximou-se da bacia e se lavou o rosto. ― Acaso fingia? ― Perguntou surpreendida a moça. ― Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que compreender que devido aos rumores que se propagaram por Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me preocupavam porque não eram certos. ― Bem… ― disse a donzela lhe colocando o vestido escolhido. ― Então, depois de desculpar esse cochicho e de deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que acontecerá agora? A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaramna bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta insistência para outros que terminou por acreditar ela mesma.
Como
tinha
sido
tão
tola?
Como
foi
tão
inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele, seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava da filha ultrajada de um barão… ― Sinto se minhas palavras a ofenderam ― comentou Lorinne com tristeza. ― Não foi minha intenção perturbá-la.
― Não! ― Exclamou a jovem girando-se para ela e exibindo um sorriso. ― Não se sinta culpada de nada, foi sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é meu verdadeiro lugar neste mundo. ― Mas eu… eu não quero que… ― tentou desculpar-se a compungida moça. ― Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero, logo poderei te responder essa pergunta. ― Deu-lhe um pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o duque. Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava. Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo? O duque caminhou para a janela e contemplou com admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era. Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de
seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos seus irmãos. «Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora? Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não tinha ninguém a quem pedir sua mão. «Tenho que pedir a ela mesma? ― Perguntou-se enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ― Ou possivelmente…». De repente se lembrou da conversação que a moça manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva que permaneceu em seu lar durante um tempo. «Se lhe perguntar onde reside sua tia, ― continuou divagando ― posso viajar até lá e pedir sua mão». Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o momento. ― Senhor... ― interrompeu Brandon, as divagações com sua presença na sala ― a senhorita Brown está preparada. Deseja recebê-la aqui? ― É claro! ― Exclamou eufórico. Outra vez seu coração deixava o compassado pulsar para converter-se em um infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
― Senhorita Brown… ― disse o senhor Stone abrindo ainda mais a porta. ― Bom dia, senhor ― saudou Beatrice com uma pequena reverência. ― Descansou bem? ― Perguntou o duque colocando a mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la. ― Muito bem, e você? Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem. Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a escuridão
desapareceu
após
vê-la
e,
embora
tentasse
dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa. Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas sentimentais, sempre ganhava. ― De verdade conseguiu descansar? ― William agarrava a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta saudade durante sua breve separação. ― Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que ainda sigo cansada ― comentou sorridente. ― Se quiser retirar-se para continuar seu repouso, entenderei ― disse com tristeza.
― Já o farei depois de almoçar. ― Elevou-se nas pontas dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe oferecia. ― Parece-me uma ideia bastante aceitável… ― Apertou-a com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas. Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar para desculpar a diferença de altura, ambos riram a gargalhadas. ― Nunca tinha visto tantos livros ― indicou Beatrice ao liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam seus olhos. ― Imagino… ― disse com pesar o duque ao imaginar que uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto teria
sentido
falta
de
não
possuir
mais
fontes
de
conhecimento ao seu alcance. ― Não se entristeça ― falou com rapidez girando-se para ele. ― Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca vi tantos livros juntos ― esboçou uma leve risada. ― Quantos pode
haver?
Uma
centena?
Duas,
possivelmente?
―
Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou fazer um cálculo aproximado. ― Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los. ― Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas costas. ― Qual, de todos estes, é o seu preferido? ― Voltou-se para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de
necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão. ― O conde de Montecristo ― sussurrou após tomar o ar que faltava aos seus pulmões. ― Do que se trata? ― Perguntou interessada. Por muito que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a largura de uma linha de costurar. ― Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que história falo ― disse jocoso. ― Não diga bobagens! ― Exclamou ruborizada. ― Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior ― murmurou com voz melosa. ― Mostre-me ele ― pediu com euforia. O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve revisando títulos até que ao final o encontrou. ― Aqui o tem – mostrou-o. ― Vai começar a ler agora? ― Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso. ― Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde. Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa, girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na porta.
― Adiante! ― Grunhiu. ― Meu senhor, o almoço está preparado ― informou Brandon timidamente. ― Obrigado. Faça saber que não demoraremos. Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços, recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão. ― Desculpe, milord. ― A voz agitada do mordomo lhes impediu de acessar ao lugar. ― Sim? ― Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar fulminante. ― O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar ― informou. ― Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se o desejarem ― disse com voz mais suave. ― Senhor, comentaram-me que desejam falar com você agora e em privado ― explicou com certa alteração. ― Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi ontem ― intercedeu Beatrice ao observar a tensão que cresceu depois da notícia. ― Com sua permissão. ― A jovem fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse, subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo para pensar quando seria o melhor momento para abandonar o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por averiguar o que acontecia, os escassos segundos que demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade. ― Boa tarde, William ― disse Federith ao entrar na habitação. ― Mon amie ― saudou Roger. O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de ambos, acalmou-se com rapidez. ― O que acontece? ― Inquiriu William olhando primeiro a um e logo ao outro. ― Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ― esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta. ― O que acontece? ― Repetiu o homem em tom mais severo. ― Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar ― começou a falar Federith ao mesmo tempo em que caminhava para ele. ― A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do Lausson? ― Perguntou sem pausa enquanto tomava assento e ficava sem ar. ― Acreditei que estava equivocado, ― continuou falando Cooper ― mas depois de passar a noite em claro pensando
sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ― William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando que falassem claramente. ― Recorda à família do barão Montblanc? ― Não com a precisão que tem você ― esclareceu com aborrecimento. ― Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela qual o barão te visitou em Southwark? ― Insistiu. Sabia que aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da senhorita Brown. ― A que vem isso agora? ― William franziu o cenho e tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu. ― Sim, lembra-se ― determinou Federith. ― É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou suicidando-se! ― Gritou. ― E se te dissesse que não morreu, que segue viva ― continuou falando Cooper. ― O que? ― Os esforços por levantar-se e deixar de escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo sentimento de culpabilidade desapareceu de repente. ― OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava! Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai provocar? ― Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e lhe colocando no peito um dedo acusador.
― Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. ― Mentira! ― Clamou William elevando-se com rapidez de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns camponeses que morreram pela cólera! ― O amor te cegou, meu amigo, ― disse com pesar Federith ― e não pôde ver a realidade. Crê que uma camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por sua incrível pronúncia. William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos impactaram sobre ele. ― Não pode ser verdade… ― sussurrou afogado. ― Está equivocado. Minha Beatrice não é… ― Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem, estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ― explicou enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se. ― Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma mulher com experiência em enganar homens? ― Gritou tão alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu. ― Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a verdade? ― Perguntou Federith pousando seu braço sobre o
ombro esquerdo de seu amigo. ― Pensa um pouco, William. O que nos contou sobre ela? ― Que veio andando desde algum lugar até encontrar a cabana do bosque ― expôs com voz mais apagada e olhando para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as mãos acalmava sua dor e sua ansiedade. ― Quando a encontrou? ― Continuou o senhor Cooper com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar a fúria e conseguisse pensar com clareza. ― Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio, embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ― Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do desespero que estava vivendo, começou a chorar. ― O que te pediu em troca? ― Interveio Roger surpreso ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e peso. ― Que a deixasse viver na cabana. Que não a incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu existir em solidão. ― O que aconteceu depois? ― Agora a pergunta era realizada pelo Federith. ― Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me
explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se afastar do resto da sociedade. ― William elevou a cabeça e deixou que seus amigos observassem como as lágrimas banhavam seu rosto. ― Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava essa forma de vida? ― Apertou-lhe com força o ombro e o duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu amigo. ― Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ― Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao Federith no outro ombro. ― Diga-nos o que deseja fazer e o faremos ― sentenciou. William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso. Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com tanta força do assento que ambos os amigos deram uns passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou a gritar. ― Brandon! Brandon! ― Sim, milord? O que ocorre? ― O ancião jogou uma rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom tinha acontecido durante aquela conversação. ― Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos para Londres na carruagem do senhor Cooper ― disse com firmeza. ― Uma longa temporada? ― Perguntou o mordomo desconcertado.
― Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ― declarou.
XXIV
Esperou que seus amigos partissem para fazer o que tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria, determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada de presente ao casal Stone como agradecimento a sua fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As missivas
destinadas
aos
homens
foram
colocadas
em
distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice. Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la, mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade. Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os olhos
e,
depois
de
observá-lo,
começou
a
gritar
descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação. Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a não ser ao maldito Rabbitwood. «Morrerá
em
minhas
mãos!»,
exclamou
William
formando com sua mão um duro punho e apertando a mandíbula. ― Meu senhor ― começou a dizer Brandon no patamar do corredor. ― Deseja alguma coisa mais? ― Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar
ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ― disse com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este esperava mais ordens finalizou. ― Isso é tudo. Descansa o resto do dia. A viagem será muito longa. ― Até manhã então, milord. ― Até manhã ― repetiu. William se dirigiu para seu quarto com a intenção de descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante de câmara lhe estava esperando para despi-lo. ― Senhor… ― saudou-lhe. ― Deixe-me em camisa e meias ― indicou com austeridade. O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio. Quando
lhe despojou
assinaladas,
de
despediu-se
e
todos
os objetos menos
o
sozinho.
deixou
as
William
caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível. Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem se acreditou ser para não escutar as preces de um homem destroçado?
Por
que
afirmou
categoricamente
que
ela
mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo? Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele momento, ele era tão vilão como o conde. Envergonhado, William continuou destroçando o que encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira
semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se, levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar. Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo, dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se para lá. Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e, quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde procedia a pequena choramingação e achou ao culpado desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava as costas, por isso não tinha percebido sua presença.
Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor em seu estômago. ― William… ― murmurou, mas o homem não a escutou. Seguia sem saber que ela tinha entrado. Sem pensar em como reagiria o duque quando a descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele. ― William, o que acontece? ― Beatrice! ― Exclamou o homem dando um salto ante o assombro em vê-la. ― O que faz aqui? ― Escutei um ruído e me assustei ― disse com um suave fio de voz. ― Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ― William foi incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel. A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor. Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas, estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse
o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão erótica ao seu lado. ― O que aconteceu? Que notícia recebeu para que tivesse reações desta maneira? ― Esticou as mãos e as pousou sobre o entristecido rosto. ― Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ― Sua mão direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu aborrecimento. ― Não deveria me preocupar ou não quer que me preocupe? ― Continuou com uma voz aveludada. ― Beatrice… ― sussurrou. Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as mãos da jovem acariciassem sua barba. ― William… ― falou sem mal mover os lábios. Apoiou os dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios. ― Minha pequena Beatrice… ― disse ao mesmo tempo em que baixava sua boca para a dela. ― Meu grande William… ― suas mãos se deslizaram para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a pequena distância que lhes separava. A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz de parar a luxúria que despertaria.
― Só isso? ― Perguntou desconcertada ao perceber como os lábios do duque abandonavam os seus. ― Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode imaginar, ― esclareceu com aparente firmeza ― mas não farei nada que você não queira fazer. Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre aumentava pela sinceridade do homem. ― Quero que me beije ― disse enfim. ― Quero que me toque... Quero ser tua assim como você será meu. ― Está segura? ― Perguntou depois de tragar saliva. O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe permissão
para entrar
em
seu
corpo,
e
fazê-la
sua.
Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa, assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse? O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais? ― Não o deseja? ― Beatrice, ao observar seu cenho franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do rosto do duque e começou a retroceder. ― Se o desejo? ― Agarrou-a pelo braço com força e a atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram a um escasso palmo. ― Mais que tudo neste mundo! E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da
jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura, começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço... William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe mostraria o que significava fazer amor. ― É tão bela… ― sussurrou enquanto a palma percorria devagar o pescoço, o decote, os seios. ― Desejo-te tanto… ― beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava acariciando o tremente corpo feminino. Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele, pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto. ― Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta loucura… ― gemeu William ao notar as mãos dela em seu corpo. ― Não… ― murmurou. ― Não quero que pare esta loucura porque eu também a desejo ― respondeu ao mesmo tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois do acidente, mas então não o observou com o desejo nem com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e a acariciou com suavidade. ― Ninguém até agora tinha visto... ― disse em voz baixa. A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou. Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa. Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se ditosa por poder tocar e admirar. ― Siga acariciando-me, William, não pare ― comentou acercando sua boca do torso para beijá-lo. Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto, queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou a mão direita e a colocou em seu estômago. ― Toque-me ― sussurrou. O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar. Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher, embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava
apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa. Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar. Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o objeto e lhe ajudou a despojar-lhe. ― Linda… ― murmurou aproximando sua boca dos seios. ― É muito linda para mim. ― Lambeu e absorveu um mamilo para depois continuar com o outro. Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a levou até a cama e fez com que se recostasse. Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William, mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia levantar as pestanas. ― Tão cálida, tão excitada, tão minha… ― murmurou o duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez. Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto para olhá-la e lhe sussurrou: ― Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua necessidade enquanto me alimento de ti?
― Sim… ― ronronou presa da paixão. ― Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será saciada. Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris. William jogou o braço sobre estes para que não pudessem elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse acostumando às suas carícias e logo… intenso, demolidor! ― William! William! ― Exclamou a jovem entre soluços. ― OH, Meu Deus! Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas… e ela? ― Beatrice, minha amada ― disse ao mesmo tempo em que subia sobre ela. ― Quer que eu continue? Quer que eu entre em ti? A
jovem
conseguiu
levantar
as
pestanas
para
contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe deixando bem claro que consentia o passo seguinte. Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a
mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor. ― Meu amor! ― Gritou ao sentir os primeiros espamos. ― William! ― Respondeu ela com gemidos ao sentir como seu corpo se convulsionava descontroladamente. ― OH, William! Um intenso alarido brotou da boca do homem quando chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela. Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado. Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber o fogo que desprendia. ― Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ― estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele. ― Por que me dá a sensação de que se despede de mim? ― Disse sem olhá-lo. ― Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me afastar de ti, ― aproximou sua boca do cabelo da jovem e o beijou ― mas é certo que tenho que partir amanhã para Londres.
― Sabia! ― Exclamou ao mesmo tempo em que se separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no colchão. ― Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ― Não vá. ― Por que, William, por que deve partir amanhã? O que lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito isso? ― Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o destroço que havia sobre o chão. ― Trata-se da minha mãe ― disse após meditar com rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da habitação correndo. ― A duquesa? ― Elevou as sobrancelhas e retornou devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la. ― Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ― William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente, desculpa por sua mentira. ― Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho? ― Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia. ― E você, o que fará? ― Um suave bocejo brotou atrás da pergunta. ― Pôr ordem e fazer com que a normalidade se restabeleça.
― Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde seu corpo com o do duque. ― Uma semana, no máximo dez dias. ― Segurou o lençol e a cobriu. ― Esperar-me-á, não é? ― Perguntou com certa inquietação. ― Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ― afirmou isso sem titubear. ― Beatrice… ― murmurou colocando seu queixo sobre a cabeça desta. ― O que? ― Voltou a bocejar. ― Amo-te. Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim, preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida, não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama, caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara aparecesse, ele o recebeu no corredor. ― Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos? ― Perguntou assombrado. ― Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ― Caminhou devagar para ela. Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall.
Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com orgulho. ― Bonjour… ― disse Roger sonolento. Reclinou-se no assento direito e estendia suas longas pernas para a esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por Federith. ― Bom dia – saudou-lhe Cooper. ― Segue querendo enfrentar a morte por ela? ― Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por alguém ― asseverou. Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e o cocheiro tocou os cavalos.
XXV
Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas bochechas e despertar, sentiu falta de que William não tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua. Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua camisola. ― OH! ― Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da poltrona. Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha
provocado
William.
Perguntou-se
por
que
a
duquesa
castigava seu filho por haver se casado com uma criada. Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse. ― Meu Deus! ― Gritou depois de colocar a mão sobre a boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ― Não pode ser… ― murmurou. ― Ele terá sabido como controlar… Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha deixado de pulsar e segurou a respiração. «Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a chorar
quando
escutou
uns
passos
pelo
corredor.
Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha acontecido entre ela e ele na noite anterior. Quando
o
silêncio
voltou
a
reinar,
levantou-se,
caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que não
havia
ninguém
pelos
arredores,
correu
para
seu
dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à cama para chorar desconsolada.
― Quer que suba para despertá-la? ― Perguntou Lorinne a Hanna. Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou, com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na pernoitar na habitação onde se deitou. ― Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um momento mais ― respondeu a mulher levando dois copos de suco para a mesa. ― Embora saltasse o almoço, poderá jantar tudo o que anseie. ― Pobrezinha… ― murmurou Lorinne olhando o copo que a anciã colocou em frente a ela. ― De todos os passados possíveis que imaginei, jamais pensei nesse. ― Eu tampouco… ― suspirou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias vezes, mas foi em vão. ― Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele mal nascido! ― Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ― A justiça deve cair sobre esse violador! ― Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ― Perguntou a anciã abaixando a cabeça. ― O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as
pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito conde, não? ― O duque não aceitará isso ― afirmou a anciã com pesar. ― Então, o que fará? ― Inquiriu atemorizada. ― O único que pode fazer um homem apaixonado ― assegurou. ― Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ― Exclamou a donzela após levar uma mão para seu peito.
Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que se
permanecesse
ali
o
tempo
suficiente,
terminaria
despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama, retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria? Quanto tinha dormido? Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr. Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu com
antecedência,
entretanto,
pareceu-lhe
formoso.
As
dobras na saia terminavam com uma elaborada renda
cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos, a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a sala. Resultou-lhe estranho não ver William ao final das escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte, a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando a
observava
aproximar-se.
Teve
que
respirar
com
profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado mais que nunca. Com pesar foi descendo as escadas muito devagar. Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou seu passo e se dirigiu para elas. ― Moça! ― Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na porta. Estava pálida, abatida. ― Vêem, sente-se. ― Caminhou para ela e a abraçou com força. ― Tem que estar morta de fome, não é? ― Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca inteira ― disse com um leve sorriso.
― Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ― Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se sentasse. ― Necessita que lhe ajude em algo? ― Perguntou Lorinne sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto. ― Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um momento de companhia ― respondeu com suavidade. Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou com o segundo prato e não começou a articular palavra até que tomou o vinho. ― Sabem, não é? ― Quis saber se elas tinham descoberto onde dormiu na noite passada. ― Claro, aqui nada se oculta ― respondeu Lorinne sentando-se ao seu lado. ― Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e retornará ao seu lar ― interveio a anciã antes que a conversação tomasse outro tema. ― Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ― assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém tinha descoberto seu segredo. ― No fundo não é má ― respondeu Hanna. ― É uma mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais
dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se elimina com facilidade. A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo, saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a seguia protegendo apesar de estar longe. ― Ahh…, mas querer castigar seu filho dessa maneira ― comentou com pena. ― Lausson tem caráter e saberá como atuar ― afirmou a anciã. ― E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que requer a presença do duque? ― Arqueou as sobrancelhas e cravou os olhos na mulher. ― Ele ostenta o título e deve colocar ordem ― respondeu Hanna retirando os pratos vazios. ― E você deveria descansar um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor! Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando que a necessitaria caminhou atrás dela. ― Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um pouco. Está o fogo aceso? ― Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu – informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem. ― Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se importar, desejo ficar sozinha ― disse antes de abrir a porta e dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala. Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade. Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado a sentar-se e a acariciou com delicadeza. «Por quê? Por que não posso te apartar de meus pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?», perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona. Perambulou
pelo
interior
durante
um
momento.
Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde descobriria a verdade. «Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que vida poderei lhe oferecer?». Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior». Recordou com exatidão as palavras que William mencionou ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim. Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto
que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o papel não parava de sacudir-se. Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se, apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em seu interior encontrou duas folhas. “Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu coração. Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade. Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez. Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas. Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith. Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta
de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido. Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou, humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi exposta. Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti. Amo-te e te amarei sempre. William.” A
carta
escorregou
de
suas
mãos
sem
que
ela
percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido. Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romperse como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não soubessem.
― Senhora Stone! Senhora Stone! ― Gritou com força. Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta e não teve forças para levantar-se de novo. ― Senhora Stone! ― O que acontece? ― Perguntou a anciã depois de abrir a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede. ― Sabia ― disse apertando os dentes e olhando ao chão. ― Todos sabiam! ― Minha querida menina… ― murmurou sem mover-se da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de correr para ela para abraçá-la. ― Todos sabiam! Todos! ― Gritou com voz rouca. ― E ninguém foi capaz de freá-lo ― chorou com ferocidade. ― Ninguém! ― Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor… ― sussurrou a mulher em meio ao seu pranto. ― Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso não entendem que ele morrerá? ― Clamou tão forte que notou como se danificavam suas cordas vocais. ― Morrerá! ― Não se pode fazer nada... ― respondeu a anciã. ― Não se pode fazer nada?! ― Repetiu com tanta ira que seu corpo se sacudiu. ― Se Deus é misericordioso, estarei gerando um filho do duque e você me diz que… não se pode fazer nada para impedir que o matem! ― OH, santo Deus! ― Exclamou Hanna levando as mãos para o rosto. ― É claro que se pode tentar fazer algo. ― A voz serena de Lorinne surgiu atrás da anciã. ― Sua Excelência partiu na carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças.
Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ― sugeriu a criada. ― Bobagens! ― Gritou Hanna. ― Como pretende que a senhorita Lowell parta daqui? ― Preparem ― ordenou Beatrice. Aquela opção lhe pareceu à única alternativa possível. ― Senhorita… ― murmurou Hanna. ― Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite. Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo para impedir esta loucura. ― É claro! ― Respondeu Lorinne antes de pôr-se a correr. ― É uma loucura, pequena ― indicou a anciã imóvel. ― O que faria você para salvar a vida do homem que ama e possível pai de seu filho? Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI
― Que horas são? ― William apoiou a cabeça nas paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à frieza que desprendiam as edificações. ― É a hora do chá ― respondeu Federith depois de olhar seu relógio de bolso. ― Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ― Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as pernas sobre o assento de frente. ― Primeiro tenho o dever de falar com seus pais. Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo este tempo esteve sob meu cuidado ― esclareceu com serenidade. ― E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ― Questionou Federith zangado.
― O barão deve conhecer a verdade ― confirmou William com o cenho franzido. ― Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento para se casar com ela, perderam o julgamento ― assegurou Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a dor que tentava ocultar. ― Quero que me faça um favor ― expôs o duque olhando a quem tocava sua perna. ― Deve averiguar onde podemos encontrar ao Rabbitwood. ― Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso como ele numa sexta-feira à tarde? ― Argumentou ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha entendido exclamou: ― No clube! Que melhor lugar para desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de maridos endemoninhados? ― Averigua-o ― disse sem prestar atenção às zombarias de Roger. ― Se estiver certo, depois da minha visita aos Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ― indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria fazendo Beatrice naqueles momentos. Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento 8
— Meu Deus! É muito romântico!
abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas. Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta tranquilidade. Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la retornar à vida que abandonou. ― Não pensou em deixar nas mãos da justiça o incidente? A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio que se produziu entre os três. Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora, com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram escassas. ― Justiça? ― Inquiriu o duque apartando o olhar da janela e dirigindo-a ao seu amigo. ― Diz-o a sério? Acaso não
recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha casa rogando por esclarecer o caso de sua filha? ―
Calma,
cavalheiros
―
interrompeu
Roger
para
tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ― Federith, acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema com venerabilidade. ― Está louco? Por acaso essa viagem à França perturbou sua mente? ― Respondeu o aludido. ― Pode morrer! Entende-me? Morrer! ― E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ― pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido silêncio. Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra, assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu uns passos adiante para que os outros saíssem com facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon antes que seus pés abandonassem a pequena escada metalizada.
Finalmente
apareceu
Roger.
Sua
atitude
despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse: ― Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão. Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram com facilidade.
― Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse… ― começou a dizer William. ― Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ― Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se dirigiu para o clube de cavalheiros Reform. Com
o mesmo ritmo
ao
andar,
os
dois
amigos
caminharam para a porta da residência do barão Montblanc. Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem. Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes. Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado mais idoso que Brandon. ― Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ― O que desejam? ― Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é tão amável de nos conceder uma entrevista?
― Sua Excelência… ― disse o criado assombrado. Fez uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da moradia. ― Se esperarem uns instantes, informarei ao barão. ― É claro. ― William ofereceu o chapéu e a capa a Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo. ― O barão e a baronesa lhes receberão na saleta – informou-lhes. Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de William e o apertou. ― Vamos… Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma mescla de amor e ternura. ― Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos por sua presença em nosso humilde lar ― esclareceu. A baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a mão. ― Se forem tão amáveis de tomar assento. ― Se não lhe importar, ficarei de pé ― indicou William com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma
grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os olhos mais verdes que jamais tinha contemplado. ― Como desejar ― respondeu inquieto o barão. ―
Dispunhamo-nos
a
tomar
o
chá,
querem
nos
acompanhar? ― Perguntou Elisabeth com nervosismo. A presença do homem que tinha rejeitado de forma categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata, mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe tinha conduzido até eles e quando partiria. ― Não, obrigado ― respondeu Federith ao ver que seu amigo não respondia. ― Bom, milord, a que se deve sua visita? ― Perguntou o senhor Lowell. ― Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não ter atendido seus rogos no caso de sua filha ― começou a explicar após respirar profundamente. ― Comportei-me como um vilão, um ser cruel, um miserável... ― Obrigada por suas palavras, ― interrompeu-lhe a baronesa ― mas sua desculpa chega um ano tarde. ― Elisabeth! ― Recriminou-lhe o barão. ― Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ― prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ― A senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob meus cuidados.
― Como diz? ― O barão, desconcertado ao escutar as palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que não caísse e o conduziu até a poltrona. ― Faz aproximadamente quatro meses tive um grave acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha promessa até que foi atacada por uma manada de lobos. Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la, meus sentimentos para com ela foram... mudando. ― Tentou manter aquela calma que tinha tido até o momento. Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar suas emoções aos outros. ― Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ― Elevou sua voz a baronesa. ― Ele não sabia quem era ela, senhora ― interveio Federith. ― O duque não a reconheceu e não tinha motivos para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou do verdadeiro nome da jovem. ― Onde está minha filha? ― Perguntou o barão vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua ajuda, pôde levantar-se de novo. ― Em Haddon Hall ― respondeu William.
― O que faz você aqui e minha filha lá? ― Grunhiu dando uns passos para o duque. ― Não queria que ela sofresse e acreditei que devia mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres. ― E qual é esse motivo, milord? ― Quis saber a baronesa sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se algo de tudo impensável. ― Recuperar a honra de Beatrice ― disse com firmeza William. ― Por que quer fazer tal coisa? ― Elisabeth o olhou sem piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava seu frio coração. ― Porque a amo ― respondeu sem duvidá-lo. ― O que pretende fazer? ― Depois de escutar as palavras do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua esposa e entrelaçou suas mãos com as dela. ― Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um duelo à morte ― indicou enquanto apertava com força a mandíbula. ― Acredita que aceitará? ― Prosseguiu falando o barão. ― Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco sua vida para demonstrar que sua história é certa?
― É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o covarde que em realidade é, não poderá negar-se. ― E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe dizer a verdade? ― Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele. ― Foi o mais correto ― sussurrou William olhando ao chão. ― Não desejo… não posso permitir que… ― Porque também lhe ama, não é? ― Disse Elisabeth após soltar com força o ar dos pulmões. ― Quando pretende que se celebre? ― Interveio o senhor Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao final seria ela quem apertaria o gatilho. ― Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ― William olhou ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que nunca. ― Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e eu precisamos ficar sozinhos ― comentou o barão com serenidade. ― É claro. Boas… ― Quero que me escute antes de sair desta habitação ― falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ― Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu lado a pessoa que ama.
― Elisabeth! ― Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ― respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith. Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso. Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os cavalos. O clube não tinha mudado nada em sua ausência. Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor. Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar despertaria certo interesse, mas a William já não importava o que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo que fazer e queria terminá-lo o quanto antes. Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com integridade pelo corredor central até parar-se em frente à porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentarse com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver, sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que tanto
gostava.
Tentando
manter
a
calma,
William
se
aproximou da mesa. ― Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood estava a ponto de me contar aquela história que narra sem parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim? ― Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso. ― Rutland! ― Exclamou com alegria o conde quando descobriu a figura do duque ao seu lado. ― Quanto tempo! ― Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa. ― É um maldito bastardo, um descarado e um violador ― grunhiu William sem mover-se. ― O que está dizendo? ― Perguntou entre risadas. ― Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ― Perguntou dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com atitude aparentemente serena. ― Eu o desafio! ― Clamou William atirando a luva sobre a mesa. ― Pela honra de quem? ― Continuou jocoso. ― Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão Montblanc ― gritou com força para que todos os presentes o escutassem.
― Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não respira? ― Sua diversão era tal que não podia deixar de mostrar um enorme sorriso. ― Meu Deus! ― Exclamou em tom divertido. ― Que pavor! Um duelo com um incapaz! Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva? Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem apreciar, já não lhe faz falta. ― Levantou as sobrancelhas e soltou uma sonora gargalhada. De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o jovem senhor Pearson. ― Reza ao seu Deus, ― grunhiu Roger no ouvido do conde ― porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ― E depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o. Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado. Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso em seu rosto.
― Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará falta saber quando e onde, não é? ― Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto, o duelo será à morte ― disse William com decisão. ― Como desejar, mas quero que saiba uma coisa, Rutland... ― comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta de seu traje ― quando cair no chão morto recorde que o adverti. Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção, William observava como o desafiado caminhava sem mostrar inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado. Sem
arrependimento.
Entretanto,
o
destino
lhe
havia
devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.
―
Desperte
―
sussurrou
Lorinne
à
Beatrice.
―
Chegamos. A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito
maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça. Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe abriu a porta. ― Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A senhorita retornou! ― Exclamou o ancião movendo-se de um lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe escutar. De
repente,
a
entrada
do
salão
onde
estavam
acostumados a permanecer os três quando não tinham visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela quando Elisabeth estendeu seus braços. ― Minha menina! Minha pequena menina! ― Exclamou a mãe depois de romper a chorar. ― Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta! ― OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo mudará… tudo mudará… ― sussurrava-lhe sem deixar de lhe beijar as bochechas e as mãos. ― Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ― Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos
de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e prosseguiu: ― Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo? ― Não ― respondeu Elisabeth caminhando para ela. ― Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que morra! Amo-o! ― Exclamou entre intensos soluços. ― Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park. Se partir agora, possivelmente chegue a tempo. ― Mathias! ― Gritou ao moço. ― Sabe chegar a Hyde Park? ― Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ― respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos. ― Eu sim! ― Exclamou Lorinne. ― Você? ― Perguntou Beatrice assombrada. ― É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente, quando retornarmos a Haddon Hall a conte ― disse a donzela ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa. ― Posso lhes acompanhar? ― Perguntou com certa inquietação Elisabeth. ― Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por acaso não me derem atenção! ― Gritou Beatrice abrindo a porta da carruagem. Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e, quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de
fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada para fazer frear aos cavalos. ― Corre! ― Gritou-lhe a mãe girando a manivela com ímpeto. A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela, mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando observou a horrorosa cena. Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava. ― Dez, nove, oito, sete… Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu com elas. Não queria ver como morria o homem que amava. Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria… O som de um só disparo provocou que vários bandos de pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando, rezando pela alma de William.
― Um médico! ― Escutou que alguém gritou. ― Está vivo? Segue vivo? De repente, os passos de um grupo de pessoas se ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e logo só ouviu um caminhar. ― Minha pequena Beatrice… ― murmurou William ao seu lado. ― William! William! ― Exclamou com alegria a moça enquanto se levantava e saltava sobre ele. ― Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa? ― Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito. ― Por que acredita que estou aqui, William? ― Soluçou enquanto levantava o rosto para o homem. ― Porque te amo. Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu… eu… teria morrido contigo, entende? Haveria mor…! ― A boca de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em que a atraía com força para seu corpo. Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem fôlego. Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor. As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem
seu passado fez manter manter-se se em solidĂŁo, a vida lhes dava uma segunda oportunidade para ser serem felizes e poderem em amar.