Considerações Sobre Crítica ao Urbanismo e Estruturas Urbanas:Germinações e Metropolização em Goiâni

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Considerações Sobre Crítica ao Urbanismo e Estruturas Urbanas: Germinações e Metropolização em Goiânia / PDIG/1968, Jorge Wilheim

Resumo O texto faz inicialmente uma reflexão sobre o urbanismo na ótica de Jane Jacobs, objetivando traçar o panorama de idéias que, nos anos de 1960, contextualizavam a proposta do Plano Diretor Integrado de Goiânia (PDIG), tanto como crítica urbanística quanto como estruturação da metropolização que então se anunciava.

Jane Jacobs no contexto crítico do Urbanismo No final dos anos de 1960, o fenômeno da metropolização tornava praticamente irremediável alguns aspectos da vida citadina. Jacobs (1961) diz que as regiões metropolitanas estavam pontilhadas de lugares amorfos, desintegrados, “zonas de fronteira” cujos “benefícios dúbios” tornavam difíceis e complexa a tarefa do urbanismo. Para Jacobs, o urbanismo moderno deveria ser criticado por seu aferrado racionalismo cartesiano cujos métodos teriam se tornado escapista e insuficiente para resolver os problemas metropolitanos. Diante disto, Jacobs propôs o que chamou de “planejamento para a vitalidade”. Conforme este modo de planejamento, ao invés de fundirem-se territórios e problemas a ele vinculados, para que, por escapismo, fossem enfrentados mais “amplamente”, os planejadores deveriam conhecer os lugares intrinsecamente, nas suas específicidades. Então, para a autora de Morte e vida de grandes cidades, o urbanismo moderno foi se tornando um grande equívoco na medida em que persistiu em conceber a metrópole como “complexidade desorganizada”, planejável pelo método da simplicidade elementar. Denunciando persistentemente o legado modernista no Planejamento Urbano, Jacobs propõe então pensar a metrópole como uma “complexidade organizada”. Sob essa ótica, os organismos urbanos estão repletos de inter-relações inteligíveis, compõe-se de movimentos ordenados e de mudanças sincronizadas, comparáveis ao movimento de um balé: grupos e indivíduos em seus distintos papéis forjando e moldando a milagrosa composição de um todo complexo, porém ordenado. Para Jacobs, esse todo ordenado da complexidade metropolitana, não tem nada a ver com o olhar cartesianista de uma possível “obra de arte disciplinada”. A autora mostra que, desde Alberti,


o urbanismo resultou em “taxidermias urbanas”, ou seja, uma profunda confusão entre arte e vida. No seu limite, essa (con) fusão sempre privilegiou o objeto, anulando as vitalidades existentes no cotidiano urbano. Sem vitalidade, o urbanismo transformou-se e transformou a cidade cada vez mais em uma prática de empalhar, ou seja, “um mau uso da arte que aniquila a vida (e aniquila a arte)” (Pág. 416). Para Jacobs, os conjuntos habitacionais padronizados, por exemplo, era uma das maiores evidências dessa prática de “empalhamento” em que se transformou o urbanismo.

Além da

monofuncionalidade de usos dos conjuntos habitacionais, dentre outras que a autora mostra no decorrer do livro, o “zoneamento”, seria um dos principais responsáveis em transformar áreas outrora vivas em regiões metropolitanas pontilhadas de “zonas de fronteira”. Os efeitos de barreiras foram de multiplicando até o limite inútil de tentar converter certas fronteiras em pontos de ligação. E assim, como herança urbanística, vias expressas, amplos parques, zonas portuárias, por exemplo, resultavam em lugares amorfos e desintegrados (Págs. 285-299). As aporias urbanísticas estariam, então, multiplicando-se. Para Jacobs, ao invés de tentar planejar a cidade a partir da lógica da mobilidade urbana, persistia-se em pensá-la como um objeto estático à espera de ganhar uma forma definitiva e única. Para Jacobs, desde que foram retiradas as misturas dos espaços urbanos e impressas na materialidade da cidade a segregação em forma de usos, não somente criaram-se zonas de fronteira gratuitas, mas, apartando as mesclas urbanas, praticamente extinguiu-se o material para a produção de forças contrárias à taxidermia urbana.

Plano Diretor Integrado de Goiânia (PDIG), 1968: diálogos com o contexto crítico do urbanismo É nesse contexto da história do pensamento urbanístico que o arquiteto Jorge Wilheim dirige a elaboração do Plano Diretor Integrado de Goiânia. Entre 1968 e 1969, por meio de uma empresa, a Serete Engenharia, Wilheim e sua equipe de colaboradores elabora três propostas como possibilidades configuracionais futuras para Goiânia. Nesse período, Wilheim também estava empenhado em contribuir com o que chamou de “subsídios” para o debate dedicado ao desenvolvimento urbano brasileiro. Diferentemente de Jacobs, acreditava no urbanismo como atividade transformadora da realidade urbana. Conforme procura explicitar em seu livro O urbanismo no subdesenvolvimento (1969), o crescimento urbano de Goiânia deveria ser pensado a partir de três possibilidades. As três possíveis formas a partir das quais a cidade deveria obter um crescimento (ver Fig. 1), seriam resultantes da ação indutora exercida pela localização de novos conjuntos habitacionais. Nesse sentido, esses conjuntos habitacionais teriam a função clara de dinamizar a cidade, portanto, oposto a critica do “empalhamento”, dirigida ao urbanismo, por Jacobs.


No decorrer da metropolização de Goiânia, ocorrida a partir dos anos de 1970 ate o presente, de fato é possível identificar várias partes amorfas e sem vida na cidade. Entretanto, um estudo justo e acurado vai identificar muitas e diversas causa mortis, problematizando a crítica da perda da vitalidade urbana, como sendo de responsabilidade do urbanismo, desferida por Jacobs. De partida, é possível identificar que o urbanismo não é o único agente e, qualquer que seja ou onde quer que ocorra a dinâmica da urbanização. Além disso, de forma diversa às críticas desferidas ao urbanismo, acredito que seja dispensável culpabilizar instituições da modernidade pelos empalhamentos urbanos. Como ficou demonstrado, no caso do plano de Wilheim para Goiânia, o urbanismo é, isto sim, um poderoso gerador de dinamismos e vitalidades urbanísticas. Entendo que essa prática de demonização do urbanismo resulta inócua, tal como em Tudo que é sólido desmancha no ar (BERMAN, 1986: 323 - 371), que ao fim, encontra como culpado mor da perda de vitalidade urbana “o dinamismo inato da economia moderna e da cultura que nasce dela” (Pág. 323). Porém, conforme mostra Wilheim (1969), a crítica ao urbanismo é até certo ponto necessária. Por isso, ao elaborar o PDIG de Goiânia, de certo modo Wilheim assemelhou-se a Jacobs: se opôs à urbanística baseada na quantificação e idealização da vida urbana. Entretanto, em momento algum o urbanismo aparece como instituição moderna fadada à taxidermia urbana. Ao contrário, Através do PDIG de Goiânia e de outros elaborados por Wilheim no período, a confiança no urbanismo é renovada como instituição capaz de promover o desenvolvimento urbano. É nesse sentido, que podemos entender a proposta de um “planejamento inovador”, empreendida por Wilheim (1969: 88 - 105). Ou seja, um urbanismo que se apresenta a partir de “possibilidades”, um urbanismo que apresenta possíveis processos germinativos e de transformações da forma da cidade, interferindo, com isso, em outras dimensões da realidade, opondo-se, portanto, à imposição da forma estática. As três possibilidades de crescimento apresentadas no PDIG de Goiânia ao então Prefeito Íris Rezende, eram dadas como estratégias de caráter integrador entre “estruturas” e “sistemas”.


Conforme Wilheim, somente após ter identificado o caráter da cidade é que pôde propor estratégias germinativas, pois as configurações futuras da cidade não seriam possíveis de serem concebidas por meio dos clássicos processos indução/dedução do urbanismo moderno. Haja vista que, para intervir em um ser mutante, tal como a metrópole, não seria mais possível continuar concebendo

soluções

urbanísticas

desintegradas

de processos,

senão partindo-se do

conhecimento de seu caráter. Diz Wilheim que “o plano urbano está para o desenho das cidades na mesma relação do estudo preliminar arquitetônico para o projeto definitivo, ou do ‘metadesign’ para o design” (Pág. 104). Portanto, para conceber um “meta-objeto”, ou seja, um objeto em transformação, seria preciso uma nova metodologia. Daí que o arquiteto propõe a metodologia da “transdução”. Segundo Wilheim, a operatividade dessa metodologia está no “feedback continuo entre o quadro conceitual e as observações empíricas”. O que Wilheim chama de “quadro conceitual” corresponde ao que denomina de “caráter” da cidade. Um aparato de conhecimento que dá condições de realizar operações mentais espontâneas tanto no urbanista, quanto no arquiteto, no sociólogo, no político ou no filósofo (1969: 94)1. No caso do PDIG de Goiânia, essa “transdução” foi levada a efeito pela equipe da Serete Engenharia, contratada pelo SERFHAU2, para atuarem por meio do convênio que mantinha com a Prefeitura de Goiânia. Dentre as três possibilidades germinativas elaboradas para o sentido do crescimento e configuração da cidade, ao final, elegeu-se a prioridade decorrente do estabelecimento duma “Carta de Habitação”:

Uma

das

prováveis

características

do

Plano

de

Goiânia,

o

estabelecimento duma “Carta da Habitação em Goiânia”; trata-se de um documento, um convênio em que se estabelecem os critérios gerais de localização e execução dos planos habitacionais, a cargo de todas as entidades envolvidas: COHAB, CAIXEGO, BNH, INOCOOP etc. Essa política geral, a qual se associaram livremente as cooperativas e outros organismos públicos e privados, objetivaria a implantação de conjuntos habitacionais (WILHEIM, 1969b: 271). 1

Lefebvre (1999: 18-19) diz que as operações racionais clássicas indução e dedução serviam muito bem para as sociedades cujos espaços eram claramente discerníveis entre o rural e o urbano; a sociedade que se estendeu e englobou o espaços rurais tornando-os parte do mundo urbano operacionalizaram uma mudança epistemológica. É interessante observar que Lefevbre não propõe uma substituição das operações clássicas, mas sim um acréscimo a estas: “Ao lado dos procedimentos e operações clássicas, a dedução e a indução, há a transdução (reflexão sobre o ojeto possível)” (LEFEBVRE, 1999: 18). 2 Os estudos sócio-economicos foram feitos pelo economista Milton Bacha. Faziam parte da equipe, além de Wilheim, os arquitetos Volker Link e Csaba Deak; o paisagista Waldemar Cordeiro e o designer Ruben Martins (WILHEIM, 1969b: 247). O SERFHAU, entidade autárquica criada em agosto de 1964 (Lei nº 4.380) pelo Governo Federal para articular juntamente com o Ministério de Planejamento e Interior o desenvolvimento regional orientava-se pelo “planejamento local integrado”. Conforme o documento Áreas metropolitanas e desenvolvimento integrado no Brasil (MINISTÉRIO DO INTERIOR; SERFHAU; SENAM, 1967: 7), o que preceitua o Decreto nº 59.917, por “planejamento local integrado” entende-se aquele que compreende em nível regional e municipal os aspectos econômico, social, físico e institucional, entrosando-se, ao mesmo tempo, com os vários tipos de planejamento.


Tal acordo geral entre diversas instituições públicas para definirem os critérios de localização e execução é que determinaria em qual sentido a cidade deveria crescer. O esquema germinativo estava proposto. Porém, a quantidade e a localização dos novos conjuntos habitacionais é que determinaria o sentido do crescimento da cidade. Desde o segundo semestre de 1965, portanto ainda durante a administração do Prefeito Hélio de Britto, que antecedeu a gestão de Iris Rezende (1966 - 1968), a Prefeitura de Goiânia mantinha convênio com o BNH para a construção de casas populares em Goiânia. O primeiro conjunto habitacional, denominado de Vila Redenção, foi um dos elementos que conduziu Wilheim a constituir o “caráter” da cidade, no período. Portanto, Wilheim não somente valorizou tal convênio com o BNH como decorrente de uma política federal de desenvolvimento em voga nos anos de 1960. Quando foi cassado pelo governo dos militares, em 1968, Iris Rezende estava no segundo ano do seu mandato de Prefeito, e havia investido três vezes mais em conjuntos habitacionais, desde o primeiro construído em 1966 (Vila Redenção). Quando Wilheim chegou a Goiânia para elaborar o PDIG, era impossível deixar de perceber nesse conjunto habitacional construído em convenio com o BNH como uma força germinativa que já operava na indução da forma urbana da cidade. Não foi por acaso que esse conjunto foi denominado de “Vila Redenção”. A cidade passava por seríssimos problemas habitacionais, os quais se arrastavam por mais de uma década3. Conforme demonstrei em outro trabalho, o Prefeito Íris Rezende fazia uso político dos símbolos da cultura sertaneja, como o “mutirão” e a figura do bandeirante Anhanguera, visando despertar e constituir uma identidade peculiar para a cidade. Porém, esses elementos da cultura local não foram levados em conta como algo predominante por Wilheim e sua equipe, ao formularem a sua idéia de “caráter de cidade”. O que foi considerada como característica predominante foi interpretada como expectativa de apropriação do cidadão por uma posição na sociedade urbana. Ou seja, no fundo, a formulação desse caráter dava-se por uma interpretação sócio-econômica, desvinculada do viés cultural. A pesquisa realizada pela Serete para a elaboração do Plano levantou que, dos 65.813 domicílios, 30% era de invasões e construções clandestinas. Além disso, mostrou que os migrantes também eram portadores de doenças e estavam vivendo em promiscuidade nas invasões, contribuindo para a propagação de doenças. E ainda, a fraca estrutura empregatícia (em 1967, 70% da população recebia entre 0 e 2 salários mínimos [idem: 249]) ocasionava déficit e baixo nível habitacional. 3

Diversos jornais dos anos de 1950 e 1960 registram os graves problemas urbanos que passaram a ocorrer com o crescimento acelerado de Goiânia, sendo que o problema da falta de moradia era um dos mais contundentes. No livro Histórico de uma administração, o Prefeito Helio de Britto (1961 - 1966) registra casos em que a Prefeitura efetuou a retirada de “invasores” que passaram a construir barracos em praças da cidade, e até no meio das avenidas e ruas mais afastadas e com nenhum movimento.


Outro aspecto que, para Wilheim, evidenciava que o “caráter” habitacional era “substantivo” e não “adjetivo”, é que o clima de euforia em torno das transações imobiliárias acompanhava Goiânia, desde a fundação da cidade, proporcionando lucros por vezes de 1000% em 2 ou 3 anos (1969b: 249-250). Com isso, a meu ver, Wilheim estava mostrando que a proposta dos conjuntos habitacionais como germinações de crescimento não se reduziam ao fator simbólico que Íris Rezende vinha imprimindo em Goiânia desde 1966, pois, da maneira como apresenta os dados da pesquisa, dá a entender que os conjuntos não deveriam servir apenas para solucionar as questões mais emergenciais como as invasões, migrações ou propagações de doenças. Então, partindo de uma interpretação sócio-econômica, Wilheim acreditava atuar sobre as estruturas da sociedade. E essa estrutura (sócio-econômica) estava absolutizada na sua interpretação sobre o caráter da cidade. Isso explica porque a proposta de construção de novos conjuntos é apresentada descolada da organização dos “mutirões”, os quais eram uma prática política de Íris Rezende. Os mutirões são apresentados no PDIG como “iniciativas de organização e desenvolvimento comunitário importantes”, devendo porém ser aproveitados somente em trabalhos como a “horta comunitária” que a Prefeitura de Goiânia já vinha realizando, ou na criação de bosques lineares (idem: 251; 271). Portanto, é possível perceber que Wilheim propôs os conjuntos habitacionais como germinações urbanas, contudo, não como continuidade administrativa populista. Medeiros (1999: 69), diz que a liderança de Rezende sobre os mutirões não era tanto uma preocupação com a cidade em si, mas em viabilizar a hegemonia política por meio do populismo; uma capacidade articulatória com base no clientelismo e cooptação que fez com que o regime desconfiasse de seu estilo de liderança e anulasse os seus direitos políticos, fato ocorrido no dia 17 de outubro de 19694.

Identificação de estruturas em contexto populista Quando foi cassado, Iris Rezende estava no quarto ano do mandato de Prefeito. Até então, já havia construído a segunda etapa do conjunto habitacional Vila Redenção e mais três novos conjuntos: Vila União, Vila Alvorada e Vila Canaã. Contudo, por mais bem sucedidos que fossem os mutirões e por maior que fosse o seu poder agregador e o seu “poder simbólico” como demarcador de temporalidade e mediador entre o rural e o urbano, as tensões geradas pelos inúmeros problemas urbanos que Goiânia tinha geravam muitos anseios por um futuro melhor. 4

Para Medeiros (1999), muito dessa hegemonia se deveu, talvez, pela combinação entre ausência da expressão das lutas populares imposta pelo regime militar e sua capacidade de articulação no sentido de minimizar as demandas políticas. Sobre a cassação, diz o autor “As forças de oposição local, argumentando através de fotos suas, junto a trabalhadores em mutirão, arquitetam uma relação ideológica como sendo ‘subversivo de esquerda’, motivando sua cassação e a anulação de seus direitos políticos” (p. 69). Lyra e Queiroz dizem que, no dia da cassação, “o povo sofreu, chorou copiosamente, gritou, vociferou contra os carrascos. Naquele dia, Goiânia parou, para protestar, com as multidões nas ruas, os trabalhadores cruzando os braços” (LYRA e QUEIROZ, 1990: 88).


Desse modo, a elaboração do PDIG estava sendo inserida por Íris Rezende, no último ano de sua administração, como um demarcador de temporalidade, mais um nível simbólico, por assim dizer. Esse é outro nível em que pode estar inserido o urbanismo, e que escapa completamente à análise de Jane Jacobs na sua crítica ao urbanismo como uma prática de empalhamento das cidades. Visto pelo ângulo do SERFHAU e do BNH, a construção dos conjuntos habitacionais era apenas uma estratégia para o cumprimento de suas metas no que se refere ao planejamento regional que vinha sendo praticado pelo Governo Federal. Porém, visto pelo ângulo da administração de Íris Rezende, é possível concebê-lo como uma nova estratégia simbólica e demarcadora de temporalidade, desta feita a tratar do tempo futuro. Na capa do suplemento especial do jornal Cinco de março (09/09/1969), cujo título é GOIÂNIA: PLANO INTEGRADO AO ALCANCE DE TODOS, lê-se, ao lado da foto do prefeito assinando o convênio com SERFHAU, um trecho com os seguintes dizeres: “Pelo menos do ponto de vista do futuro e no entender dos técnicos, o Plano Integrado de Goiânia é a maior obra do atual Prefeito de nossa Capital” (ver Fig. 02)

Conforme Cox (1974: 138), uma descontinuidade consciente com a tradição não implica em traição ou abandono dela, já que é possível uma descontinuidade com a tradição com o pressuposto de que estão em vigor novas idéias e concepções. Essa seria uma “descontinuidade controlada” – “a descontinuidade calculada explora o atrito entre o passado e o presente, para gerar novas potencialidades em prol do futuro” (COX, 1974: 138). Então, no ano em que teve o seu mandato de Prefeito cassado, Rezende estava reelaborando novos aspectos para o seu “tempo mutirão”. Desta feita, o mote seria a demarcação do futuro. No caso do PDIG, que Rezende não teve tempo de acompanhar o desenvolvimento, é provável que ganhasse um tom mais escatológico e crucial, já que, como diz Cox, uma justaposição entre


passado, presente e futuro exige trabalho hábil e imaginativo; exige o firme domínio da tradição e uma reta afinação com a sensibilidade moderna mais a capacidade de justapor ambos de tal modo que se consiga introduzir uma nova percepção crítica (1974: 142). No entanto, Wilheim afirma, à página 253 de Goiânia: casa e terra como forças agentes, que a realidade física de Goiânia era mal conhecida pela população. Ou seja, neste contexto de populismo político, isso ocorria em virtude da falta de organicidade da trama viária e de ligações entre bairros. E era a solução desses problemas, mais materiais e menos simbólicos, que deveriam ser identificadas pelo Plano, e apresentadas as soluções. Por exemplo, Wilheim observa que havia extrema dificuldade das pessoas com as nomenclaturas modernas das ruas, misturavam-se numerações, letras e nomes de ruas, setores, nomes de bairros, que pareciam conflitantes e confusos em relação ao que estavam acostumadas. Com relação à dinâmica dos aspectos físicos que poderiam configurar estruturas e sistemas, estratégias físicas para a germinação do “caráter” urbano, o PDIG identificou os seguintes aspectos: o Rio Meia-Ponte; a Estrada de Ferro; a Av. Anhanguera; a BR-153; a rua 83 (Jardim Goiás); as três estradas do Oeste (para Inhumas, Jataí e Guapó)5 e, finalmente, os conjuntos habitacionais (Vila Redenção, Vila União,Vila Iara e Bairro Feliz). Inter-relacionando esses sete elementos, Wilheim e a equipe Serete elaboraram as três estruturas germinativas para Goiânia (ver Fig. 1). Todas as propostas configuram estruturas lineares. Isso remete às conclusões que Wilheim tivera estudando a história das cidades e observando a respeito da estrutura viária como elemento fundamental para a estruturação da forma urbana. Conforme mostra à página 69 de Urbanismo no subdesenvolvimento (1969a), “o exemplo da história mostra-nos que o traçado viário pode perdurar séculos e que alterações sociais violentas apenas refazem edifícios e recolocam funções, tendo permanecido elas alinhadas ao longo das mesmas vias” (Pág. 66). Portanto, para Wilheim, historicamente, a importância das estradas foi determinante na configuração das formas urbanas; inclusive para as metrópoles, pois, à medida que estas cresceram, estenderam-se preferencialmente ao logo dos canais de penetração6. Essas observações o levaram a generalizar que, na medida em que a “função de estrada” de determinada estrutura viária é gradativamente substituída por outras funções, tais como acesso a prédios, estacionamentos, tráfego lento, predominância de pedestres, o seu papel como elemento gerador e vetor de indução e ocupação do solo urbano já terá sido cumprido. Um segundo eixo viário precisará ser aberto; esse segundo eixo será então destinado exclusivamente ao tráfego de 5

“O sítio urbano caracteriza-se pelo Vale do Rio Meia-Ponte e seus afluentes, os quais marcam uma série de fundos de vale paralelos, no sentido Norte-Sul. (...) O Meia-Ponte, agindo como barreira; a estrada de ferro, cujo pátio de manobra é hoje grande vazio urbano; a Av; Anhanguera, antiga estrada, hoje infra-estrutura exageradamente utilizada e não comportando o acumulo de atividades; a BR 153, rodovia de crescente movimento e que sendo ultrapassada pelo casario de Palmito e Vila Morais, pode vir a ter significativa e talvez perniciosa presença na cidade; a rua 83 (Jardim Goiás) e eventual estrada na direção Senador Canedo, podem vir a ser Setor de ocupação do Sudoeste; as três estradas do Oeste (para Inhumas, Jataí e Guapo) importantes pelo movimento de caminhões e ônibus” (WILHEIM, 1969b: 253). 6 “O bandeirante traçou ligações umbelicais com cidades, marcando os eixos principais de urbanizações em cadeia. As vias de penetração ficaram sendo, no vasto vazio selvagem a ocupar – os eixos de segurança, de referência, para a implantação de um sistema de cidades” (WILHEIM, 1966a: 42).


passagem, ou seja, à função de estrada. Para Wilheim, era essa dinâmica dos traçados viários que acabavam impondo a forma urbana. A tais eixos subsequentes, Wilheim denominou de “binômio viário” (ver Fig. 3). Para Wilheim, essas estruturas, os “binômios viários”, eram o cerne material da estratégia germinativa, por estarem relacionadas a inúmeros sistemas de vida. Os sistemas de vida, interagindo com tais estruturas, produzirão inúmeras dinâmicas urbanas: por exemplo, sistema de transportes, comunicação áudio-visual, paisagem urbana, etc. (p. 97). É possível perceber a estrutura viária como elemento gerador e vetor de indução da forma urbana na obra de Wilheim desde a formulação do Plano Diretor de Angélica (MS), em 1954. Quando começou a fazer o Plano de Goiânia, em 1968, Wilheim já havia produzido, além do Plano de Angélica, cinco outros planos diretores e, em todos, é possível perceber a intenção em direcionar o crescimento da cidade, dar à cidade intencionalmente uma forma por meio de sua estruturação viária (ver Figs. 03, 04 e 05).

Wilheim estava certo de que, mapeando as estruturas da cidade, e, consequentemente, formulando enfoques estratégicos para o crescimento urbano, como no caso do PDIG, tais estratégias atuariam sobre a dinâmica urbana, e não sobre um “retrato da cidade” (Pág. 98). Com isso, poderia formular o “caráter” do Plano, homólogo ao “caráter” da cidade, algo impensável de se obter com as concepções abstratas do urbanismo moderno, resultantes da racionalidade indutiva e dedutiva clássica. Ao mesmo tempo, sem se ater às urgências simbólicas da política populista. É nesse sentido que Wilheim vai se autodenominar um crítico do urbanismo. Por observar que a vida de uma cidade constitui a sobreposição de inúmeros subsistemas, dinâmicos, elabora um Plano que diz ser um “urbanismo inovador”.


Considerações sobre as estruturas urbanas No livro Urbanismo no subdesenvolvimento (publicado no mesmo ano em que entregou o PDIG ao Prefeito Íris Rezende), Wilheim faz diversas considerações que remetem às questões impostas ao urbanismo nos anos de 1960. Chega mesmo a dizer que o planejamento integral é uma forma de evitar as “quimeras” até então praticadas pelo urbanismo (Pág. 93). Porém, sobre a questão da monotonia, da repetição e monofuncionalidade que, segundo Jacobs, geram na metrópole “zonas de fronteira”, Wilheim afirma não poder ter nenhum controle. Portanto, o autor não se envolve com


o que chama de falta de imaginação e superficialidade dos projetos do BNH7, porém considera os conjuntos habitacionais determinantes para a forma geral da cidade. Desse modo, apesar de em Urbanismo no subdesenvolvimento tecer inúmeras críticas ao urbanismo, dizendo ser inoperante por incompreender a natureza do fenômeno urbano (Pág. 90), Wilheim não teceu qualquer consideração sobre a possibilidade de os conjuntos habitacionais que estavam sendo construídos em Goiânia se transformarem no que Jacobs denomina de “zonas de fronteira”. Ao contrário, os considerou como sendo “germinações”, geratrizes da forma urbana. Assim o fez, pois estava convencido de que, para o futuro das cidades, especialmente das grandes metrópoles, o essencial não é o tipo de moradia (prédio, casa, etc.), mas sim a distribuição desta em relação aos locais de emprego. Citando Hall (1966)8, diz Wilheim, à página 53 de Urbanismo no subdesenvolvimento, que, acima do tipo de moradia, está a relação que o sistema ecologia de empregos/ecologia de domicílios provoca na trama da cidade. Isso porque é dessa relação que se constitui o que considera ser a principal estruturação da forma da cidade: o transporte. E o transporte, por conseqüência, promove a trama estrutura/subsistemas como elementos germinativos da cidade. Contudo, Wilheim afirma que, em Goiânia, encontrou dificuldades em determinar as estruturas físicas como caráter germinativo para a futura forma da cidade. Conforme mostra à página 258 de Goiânia: casa e terra como forças agentes, de forma geral, o número de estruturas dominantes, sobretudo as viárias, era muito limitado. Essa limitação era devida ao caráter pouco urbano da vias existentes, já que as vias eram empoeiradas e pouco atraentes para maior adensamento. Esse estado de coisas só confirmava a Avenida Anhanguera como único eixo Leste-Oeste utilizável. Então, Wilheim chegou a duas conclusões em relação aos eixos viários: 1) criar eixos viários interligando o bloco Leste e o bloco Oeste de conjuntos habitacionais; 2) criar um eixo paralelo à Avenida Anhanguera, acoplado, repartindo as duas funções de via de travessia e de eixo linear comercial (ver Figs. 06 e 07, abaixo). Outras possibilidades de crescimento foram apontadas: Em direção a Senador Canêdo, a ligação do setor Sul à BR 153, atravessando o Jardim Goiás; a BR 153, as margens da qual se transformará em ligação Norte/Sul dos bairros recentes, sendo necessárias duplicações de vias e construções de obras de arte; as vias de fundo de vale (propostas originárias do Plano Saia) também seriam fortes geratrizes de ligação Norte/Sul9; e ainda, as ligações rodoviária intermunicipais, especialmente as GO-3 e GO-4, indicando outros vetores de crescimento da cidade. 7

“Receio que esses conjuntos habitacionais massificantes sejam apenas o resultado da falta de imaginação, da superficialidade de projetos e duma orientação do BNH que descuida de todos os aspectos que não digam respeito à devolução da quantia financiada” (WILHEIM, 1966: 114). 8 Peter Hall: The World cities. London: World University Library. 1966. 9 “Nota-se em boa parte do sítio urbano, uma sucessão alternada de vias de espigão e de córregos, todos no sentido Norte-Sul; dessa posição e das funções específicas resulta a potencialidade dessa estrutura de caráter recreativo (e de seu espaço verde); a essa potencialidade alia-se o fato de essas estruturas pertencerem ao município (no que pese o fato de o Estado não ter ainda realizado o registro da transação de transmissão de posse)” (WILHEIM, 1966: 261).


Wilheim previu ainda a possibilidade do “entumescimento disforme da cidade” (WILHEIM, 1969b: 263-266).

Nesse caso, teria que se considerar o “crescimento espontâneo”, ou seja, a gradativa e dispersa ocupação do lado Leste da BR 153; a ocupação do altiplano Sul, com baixa densidade, perpassando o casario para o município de Aparecida de Goiânia; então, as estradas GO-4 e GO3 serviriam de ponta de lança para um funil de ocupação, alargando-se na direção Trindade e Inhumas; a ocupação Sudoeste seria estimulada pela estrada de ligação a Rio Verde; ao Norte, os bairros seriam desordenados e desvalorizados; e no Centro, a confusão espacial da


coexistência de casas e edifícios, resultando em pouca clareza sobre a função desses setores residenciais e valorizados. Wilheim (1969b: 260) registra em uma foto o crescimento a Leste da BR 153 e a ligação do Setor Sul à BR 153, atravessando o Jardim Goiás. Nessa foto, é possível observar também a dispersão dos bairros de Goiânia, e a concentração da verticalização no centro da cidade, o que chamou de “confusão espacial da coexistência de casas e edifícios” (ver Fig. 08).

Às páginas 271 e 272 de Goiânia: casa e terra como forças agentes, Wilheim mostra que o teor rural da cultura de Goiânia, à época, evidenciado, sobretudo na mobilização do trabalho coletivo, voluntário e de ajuda mútua dos mutirões, deveria ser aproveitado para a criação de eventuais bosques lineares. A criação de tais bosques lineares objetivaria descontinuar e desencorajar o crescimento da cidade em direções indesejadas, como ao Norte, no vale do Anicuns e Meia Ponte e ao Sul, para o município de Aparecida de Goiânia. Ao que parece, Wilheim estava propondo uma utilitarização do mutirão. Por seu teor de ligação rural e com a terra, os mutirões deveriam ser aproveitados ainda na solução dos mais diversos problemas paisagísticos, tais como a transformação dos fundos de vales em bosques-viveiro, isso com função mais paisagística do que econômica. Denota-se, então, uma divergência ou limitação cultural por parte do planejador em compreender as peculiaridades do mutirão em Goiânia, bem como as suas imbricações híbridas com a cultura local, em promover, por meio de ações coletivas, urbanidade. A aprovação do PDIG se deu com a Lei nº 4.523 (31/12/1971), durante a administração do Prefeito Manoel dos Reis (1970-1974). Concomitantemente, as Leis nº 4.525 (31/12/1971) delimitava as áreas de expansão urbanas e 4.527 (31/12/1971) exigia a infra-estrutura para a


aprovação de novos loteamentos10. Com isso, na opinião de Rassi (1985: 151), Aparecida de Goiânia sofreu acentuada influência de Goiânia, pois, assim como Trindade, Goianira e Aragoiânia, a sua área limítrofe passou a ser loteada, gerando inúmeros novos loteamentos sem qualquer integração. Porém, a conurbação com Aparecida de Goiânia, bem como com outros municípios limítrofes a Goiânia, se deu também devido à somatória de outros fatores, os quais eram completamente opostos ao que havia proposto Jorge Wilheim. Conforme visto acima, Wilheim se referiu à conurbação como indesejada, devendo ser descontinuada com bosques lineares. Entre 1970 e 1980, enquanto a municipalidade preparava o seu corpo local de planejadores, em grande medida motivada pelo Governo Federal e suas políticas de desenvolvimento urbano, a Prefeitura Municipal passou a receber o apoio do Governo do Estado, o qual se fez presente na implantação de projetos urbanos como o de transportes da EBTU11 e o projeto CURA12. A cidade em acelerada metropolização exigia projetos setoriais visando a ordenação de seu espaço intraurbano.

Considerações finais

Apesar da fama de ter sido uma cidade planejada, por ter sido concebida pelo urbanismo de Attílio Correia Lima (1932-1935), durante duas décadas Goiânia sofreu máxima urbanização e mínima intervenção urbanística. Por isso, a atuação de Jorge Wilheim e equipe, em Goiânia, no final dos anos de 1960, significou um legado de ordenação urbana que serviu para toda a posteridade da cidade.

Ainda que o PDIG (1968) seja passível de críticas, é inegável a sua eficácia em

proporcionar que fosse retomado o pensamento urbanístico sobre a cidade, na qual havia apenas a herança de Attílio Correia Lima. Esta herança de Correia Lima em nada podia interferir, quando a questão em pauta eram os problemas urbanos resultantes da intensa urbanização ocorrida entre 1947 e 1967. Consequentemente transformou-se em meras quimeras. Com a atuação de Wilheim e sua equipe, os últimos meses do mandato do Prefeito Íris Rezende foram marcados por outra sorte de instauração do tempo. Os primeiros anos da década 1970, então passaram a anunciar as preparações para um novo concerto. Novos personagens escreverão a história da cidade. Novas nuances surgirão. E inevitavelmente, desse período em diante, se constatará a necessidade de planejamento e projetos, para dessa forma ressignificar e reconstituir a sua própria história. A

10

Entre 1963 e 1971, foram aprovados 30 novos loteamentos que se somaram aos 163 aprovados durante a década de 50. 11 Projeto Setorial do Governo Federal na área de transportes, elaborado pelo arquiteto Jaime Lerner em 1974. 12 Projeto Setorial do Governo Federal de intervenção em bairros degradados.


partir de então, passou-se a sonhar com outra metrópole, mas também se despertou para a cidade do passado, para a cidade em seus próprios termos, para a cidade que “cuida de si”.

Referências BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras. 1986. COX, H. A festa dos foliões: um ensaio teológico sobre festividade e fantasia. Petrópolis: Vozes, 1974. JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes. 2003 (1961). LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1999. LYRA, J. e QUEIROZ, L. A. de. Íris: um homem chamado carisma. Goiânia: Líder, 1990. MEDEIROS, Erland Bilac Alves. O irismo em Goiás (1965/1986): um estilo populista. Dissertação em História. Goiânia: UFG, 1999. RASSI, S. O. Estado e a gestão urbana – o caso de Goiânia. Dissertação. Brasília: UNB, 1985. WILHEIM, J. Brasília ante-projeto de plano diretor. Revista “Habitat”, Nº40/1, março-abril de 1957. _____________. Urbanismo no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Saga. 1969a. _____________.

Goiânia:

casa

e

terra

como

forças

subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Saga. 1969b.

agentes.

Urbanismo

no


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