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Índice Apresentação .............................................................................................. 04 A Troca .......................................................................................................... 05 O Homem do Comboio ............................................................................ 17 Rui ou “As Aparências Enganam!” ...................................................... 23 O Sábio ........................................................................................................... 28 “É para se ir fazendo...” ............................................................................ 35 Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão) ...................................... 46 A Serpente de Bronze .............................................................................. 49 O Puro ............................................................................................................ 59 Nico, o Valentão ......................................................................................... 67 O Sonho de Demba ................................................................................... 75 Sobre o autor .............................................................................................. 93
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Apresentação O médico, pastor e escritor Joed Venturini disponibilizou, há alguns anos já, boa quantidade de sua produção literária na internet, através de seus blogs. São poemas, crônicas, estudos bíblicos e contos de excelente qualidade que remetem, para além de sua capacidade como escritor, suas vastas experiências de vida e caminhada cristã. Uma dessas ricas experiências é o período em que serviu como missionário no Oeste africano, mais especificamente em Guiné Bissau. Se o escritor colombiano Vargas Vila diz que "um escritor não revela nada em seus livros se não se revela a si mesmo”, é certo que deste mal não padece o pastor Joed: em seus contos, ambientados em três continentes, o autor revela toda a sua mundivivência e dá notícia de sua grande humanidade. A força do ótimo narrador em Joed mostra-se no amálgama entre o singular e o prosaico, no uso desassombrado do tom coloquial e na profusão de histórias e estórias bem urdidas, que transitam do mistério ao humor, do drama ao tragicômico, em relatos sempre com base em alguma lição/passagem bíblica. Outra peculiaridade desta seleta é que aqui contos bíblicos (que utilizam personagens bíblicas como protagonistas) somam-se a outros ambientados em Portugal, Brasil e Guiné Bissau, formando um pitoresco passeio pela lusofonia, redigidos por quem a viveu e vive na pele – algo ao alcance de muito poucos autores. Assim, este e-book surge com a proposta de reunir numa única plataforma os ótimos contos já publicados pelo autor, que encontravamse disseminados em seus blogs. Como promotores da boa literatura evangélica e sabedores da carência de bons títulos ficcionais em nossa seara, é com grande prazer que apresentamos este livro aos leitores. Sammis Reachers
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A Troca Um grupo de garotos passou correndo pela frente da porta, enquanto o velho Eurico a fechava para sair. Um deles praticamente esbarrou no ancião, mas Eurico parecia não perceber ou pelo menos não se incomodar. Era parte de sua maneira de reagir ao ambiente. E seu estilo poderia ser considerado perfeito. Fazia já quinze anos que vivia naquela favela e nunca fora assaltado! Ninguém o molestava. Vivia só e sossegado e era respeitado. Saía pouco, pois era aposentado. Ia metodicamente à igreja evangélica mais próxima, mas tirando isso, e as saídas diárias à padaria e semanais ao supermercado, era ali mesmo, nas estreitas ruas da comunidade pobre, que fazia sua vida. O velho era conhecido como uma espécie de operador de milagres. Distribuía compaixão como o orvalho matinal e sua especialidade, se é que se poderia chamar assim, era recuperar jovens desviados. E na sua favela havia muito material de trabalho. O ancião tinha uma estratégia pouco comum. Poderia se dizer que ganhava pela exaustão. Primeiro escolhia, em oração, um jovem que estivesse mesmo muito mal. Em geral eram delinquentes envolvidos com o tráfico de drogas e membros de gangues da favela. Então iniciava uma maratona de jejum e oração por aquele jovem. Quando sentia que tinha suficiente cobertura de oração, “atacava”. De tal forma procurava o seu alvo que às vezes virava sua sombra. Em regra era rejeitado de início, mas ia ganhando terreno até que o jovem acabava ouvindo o homem. Mesmo com meios tão arcaicos à psicologia moderna, o ancião tinha resultados surpreendentes. Podia citar uma lista respeitável de nomes de jovens que tinham deixado uma vida que levaria a uma morte prematura e que tinham sido recuperados ao ponto de se casarem, terem emprego e serem fiéis membros de igreja, e até dois que eram pastores. Mas Eurico não fazia propaganda de seu trabalho. Seria contrário ao seu estilo e personalidade. Além de mais ele considerava seu ministério como uma simples retribuição pelo que ele mesmo recebera. Fora, em tempos idos, um alcoólatra que estragara a vida e desgraçara a família. [5]
Teria morrido assim, se não fosse o amor paciente e perseverante de um antigo diácono da igreja onde agora assistia. Essa era sua história. Essa era sua vida. Ultimamente, porém, o homem andava um tanto preocupado e nervoso. O caso que tomara parecia não se resolver como os anteriores. Estava já há meses orando, jejuando e lutando pela vida de Edmilson e parecia não haver nenhuma sensibilidade da parte do rapaz. A cada nova investida de Eurico o jovem se afundava mais em sua vida de pecado. Como chefe de uma facção da gangue, tinha dinheiro e poder sobre outros jovens. Não se importava com nada a não ser usar e abusar de seu poder sobre os assustados moradores da favela. Passear de carro e trocar de namorada eram outros de seus passatempos e, claro, tudo bem regado a chope e cocaína. Eurico não era homem de desistir fácil. Não sentira ainda que fosse tempo de deixar de lutar pela vida e salvação de Edmilson e por isso mais uma vez após uma semana de intensa oração, ele se dirigia até o local aonde sabia que poderia encontrar o rapaz. O jovem não estava em casa. Fora visto indo para o topo do morro, aonde tinham uma casa que servia como uma espécie de prisão para inimigos capturados ou devedores que não pagavam suas remessas de droga. Era ali, no terraço, que costumavam executar aqueles que tinham atravessado o caminho dos líderes do pedaço. Eurico estremecera, mas não de medo. Estava seguro. Temia pelo seu alvo. Era pelo moço que sentia medo. Subiu custosamente o morro, parando várias vezes. A idade já não facilitava. As oitenta primaveras já tinham passado há alguns anos e os músculos não tinham a força de outrora. Perto do local que queria alcançar o ancião foi barrado por dois garotos armados, de uns dezesseis anos. — E aí vovô, aonde é que pensa que vai? — Vim ver o Edmilson — Explicou Eurico com toda a naturalidade. — Manero — riu o outro garoto — Ó velho, cê num acha que tá velho demais pra andar cheirando? [6]
Eurico baixou a cabeça cansada e levantando-a, fitou o rapaz bem nos olhos, de tal forma que o fez ficar sem jeito. Foi então que o outro notou a Bíblia na mão do velho e reagiu: — Pode passar velho, vai logo! Mais uma vez a superstição local se fazia sentir. Os traficantes, por regra, não se metiam com “crentes” porque diziam que dava azar. As evidências confirmavam. Eurico avançou até a casa. Era um casarão abandonado. Por todo o lado cheirava a dejetos humanos e havia ratos andando em plena luz do dia. Um despacho de macumba bem na entrada terminava de compor o quadro macabro. O ancião não hesitou. Subiu as escadas gastas. Não havia ninguém no 1º andar, nem no 2º. Ao chegar ao terraço já o velho arfava novamente. Parou e viu um jovem negro, alto, de soberbo aspecto, perto de um corpo que jazia no chão em meio a uma poça de sangue. Ao pressentir a presença do homem o jovem apontou a arma com ar furioso e olhos arregalados onde se evidenciavam sinais da última dose de droga. Eurico levantou a Bíblia em sinal de identificação. A arma foi baixada e os olhos do rapaz se encheram de impaciência e aborrecimento. — Cê num me larga velho? Me deixa, pô! Tô cansado de te aturar! Vê se me esquece! — Boa tarde, Edmilson! — o ancião respondeu em tom triste. Um silêncio pesado se seguiu. — Não posso desistir de você, Edmilson. — continuou o ancião — Você está no meu coração. Quero ver você salvo e seguro nos braços de Jesus! O Jovem riu com sarcasmo e balançou a cabeça. — Os braços que eu quero são outros. — gozou ele — Além do que, se você qué rezá aproveita e vê se ajuda esse aqui que precisa mais que eu — riu apontando o cadáver — Eu tenho mais que fazer. Dizendo isso o rapaz passou pelo velho com desdém e o empurrou [7]
com violência. Eurico perdeu o equilíbrio e caiu sentado junto ao muro que circundava o terraço e o jovem se foi. O ancião encolheu-se. Estaria errado desta vez? Seria Edmilson um caso realmente perdido? Na verdade o livre arbítrio era de se considerar. Ele não podia forçar a vontade de alguém a quem Deus fizera livre. No entanto o peso da alma do jovem o fazia sofrer e as lágrimas brotavam de seu rosto cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos joelhos chorando e clamando por uma oportunidade de ser verdadeiramente intercessor, de ficar na brecha por este rapaz. O tempo passou. Eurico não sabia se muito ou pouco. Quando se deu conta havia outra pessoa no terraço e o sol declinava rapidamente no horizonte. A presença dessa pessoa o fez erguer-se um tanto assustado. Limpou as lágrimas do rosto e o nariz que pingava e tentou se recompor. Mas a aproximação da outra pessoa o deixou deveras surpreso. Saída como que de uma espécie de névoa veio ao seu encontro uma velha de aspecto medonho. Curvada e cheia de reumatismo ela parecia não ter sequer um osso que não fosse deformado. Ergueu o rosto para Eurico e o fitou com superioridade. O ancião tremeu sem querer. O rosto da velha era de tal forma enrugado e cheio de espinhas e pontos negros que só o fixá-lo já era penoso. O nariz de proporções significativas era peludo e torto. A boca irregular de lábios secos. Da cabeça quase careca saíam uns poucos fios de cabelo grisalho em total desalinho. A mulher trazia uma roupa toda negra e esfarrapada condizente com seu aspecto físico. Sua presença causava repulsa e medo, tremor e asco ao mesmo tempo. Depois do primeiro susto Eurico tentou se recuperar. Pensou que fosse alguém da família do homem morto que permanecia no extremo do terraço e tentou ser gentil: — Boa tarde, senhora. Veio pelo moço acidentado? — perguntou apontando o cadáver. — Acidentado? — pronunciou a velha com sarcasmo. Sua voz era metálica e grave. Um tanto inesperado. Causava arrepios na medula e parecia penetrar os ossos. Não parecia ser humana. [8]
— Acidentado? — repetiu a velha. — Bem — titubeou Eurico sem jeito — eu, na verdade, não sei. Quando cheguei aqui já estava morto. A velha parecia não estar interessada no que ele dizia. Aproximou-se do ancião e o rodeou examinando cada detalhe dele e em especial a Bíblia em sua mão. À sua aproximação Eurico experimentou um fenômeno de todo inusitado. O chão parecia ter se tornado frio. Como se a temperatura à volta da mulher fosse bem mais baixa que o resto do ar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre homem quase tremia de frio e segurava o queixo para que não batesse. A velha tornou a se afastar dele sem palavras como se tivesse perdido o interesse e avançou até o parapeito da varanda examinando as redondezas. Eurico fez enorme esforço para sair de seu estado quase catatônico. — Posso ajudá-la de alguma forma? — perguntou com educação. A velha o mirou de novo com aquele olhar gelado e desdenhou: — Não é você que quero! — respondeu secamente. — Então, quem é? — insistiu o ancião já com seus pressentimentos. A mulher parecia incomodada com a presença e a insistência do homem e pareceu atacá-lo. Voltando-se com rapidez surpreendente o questionou: — Não tem medo de mim? Desta vez foi Eurico que ficou firme e com olhar tranquilo e seguro sorriu e respondeu: — Deveria ter? — A grande maioria dos homens tem… — disse a velha com segurança. — Parece ter muita experiência! — refletiu Eurico. [9]
— Alguma... — devolveu a outra com sarcasmo. — E está procurando... — sugeriu o ancião. — Edmilson — declarou a velha de forma seca e voltou a perscrutar a vizinhança. Eurico ficou abalado com a revelação e se aproximou corajosamente da velha apesar de que o frio que ela transmitia ser a última coisa do mundo que queria experimentar de novo. De súbito, sentiu-se cheio de ousadia para lutar pelo jovem que pretendia ver salvo, e pressentia que esta anciã só podia trazer más notícias. Chegou-se com convicção e disparou: — Quem é a senhora? A velha olhou Eurico com um misto de admiração e desprezo e sorriu. Um sorriso que faria gelar o coração do mais corajoso. De sua boca disforme se viam uns poucos dentes amarelo-acastanhados e a risada qual grito de hiena na noite africana parecia vindo de outro mundo. A mulher, olhando o homem no fundo dos olhos, pronunciou calmamente: — Sou a Morte! — Não pode levá-lo! — foi à reação imediata e quase impensada do ancião. A Morte mostrou surpresa, franzindo o sobrolho que logo abriu em novo sorriso desdenhoso. — Você vai me impedir? — Não posso... — reconheceu Eurico — Mas ele não está pronto! — Isso não é problema meu. — deu de ombros a velha — Cumpro minhas obrigações e chegou a hora do rapaz. Se não se preparou para me receber é problema dele. — E meu também. — protestou o homem — Eu assumi a responsabilidade por ele. [10]
— Ninguém pode assumir a responsabilidade por outro. — devolveu a Morte — Cada um tem que me enfrentar sozinho e a hora de Edmilson é chegada. — Então, me leve a mim. — tentou Eurico já desesperado — Eu posso ir já, estou pronto. Não tenho medo de você. Leve-me no lugar dele! Agora o homem parecia pela primeira vez ter conseguido a total atenção de sua interlocutora que o examinava com mais cuidado ainda. A morte aproximou-se novamente e o frio glaciar de ainda a pouco voltou a gelar Eurico de forma desagradável e quase insuportável. Tudo nele clamava por se ver livre dessa sensação, mas ficou quieto, em seu interior lutando pela alma de seu protegido. A morte percebeu a luta do homem e sua forte resolução e se afastou lentamente. — Tem a certeza do que me propõe? — questionou tentando verificar a certeza do homem. — Sim! — afirmou Eurico com total convicção. — E porque faz isso? — quis saber a morte. — Pela salvação dele. — explicou o ancião — Ele não está pronto para ir. Precisa de mais tempo. O amor de Deus há de vencer em sua vida, mas precisa de mais tempo. — E é esse tempo que você quer comprar para ele? — sugeriu a velha rindo. — Se for possível… — clamou ele. — Possível é… — disse ela — Não seria a primeira vez. Tem-se feito muitas vezes e creio que ainda se farão muitas mais. — E ele terá tempo suficiente? — quis saber o homem ansioso. — Isso não pode saber. Só o Todo Poderoso sabe essas coisas. Pode ser que sim. Pode ser que não. Acha que vale a pena mesmo assim? Morrer sem ter a certeza? Pode ser em vão… — tentou a morte matreira. [11]
— O amor nunca é em vão! - sentenciou Eurico — Estou disposto a dar a Edmilson mais uma oportunidade, nem que seja a última! A morte balançou a cabeça e chegou-se ao fim do terraço aonde se via toda a favela. Suspirou com ar cansado e olhou mais uma vez com seus pequeninos olhos negros o homem que a observava em suspense. — Tanto trabalho a fazer... Voltarei por você... Amanhã! Antes que Eurico pudesse dizer qualquer coisa uma névoa vinda não se sabe de onde encobriu a velha e a sua figura fantasmagórica desapareceu. O homem ficou muito tempo ali em pé sem saber bem o que se passara com ele. Fora sonho? Fora visão? Fora real? Como saber a verdade? O ancião sentia-se confuso. Seria genuíno que ele negociara com a morte e se oferecera para ir ao lugar de Edmilson? Isso seria possível? Seria aceito? No dia seguinte seria a sua vez? Estaria realmente tão preparado como se julgava? Com esses pensamentos na cabeça ele deixou o local e à medida que descia do morro notava toda a agitação típica do fim de dia, mas algo mais do que era normal. Finalmente um jovem o informou. A polícia havia estado no morro durante a tarde. Tinha havido troca de tiros e Edmilson fora baleado. Estava no hospital. Eurico estremeceu. Tinha que verificar. Sentia-se cansado. Na verdade exausto, mas não teria paz sem confirmar o que sucedera. Questionou sobre o hospital em que o jovem estaria internado e foi até lá, chegando já noite cerrada. Procurou o médico que atendera Edmilson. O clínico sentou com o ancião e parecia confuso. — Foi algo muito estranho. — disse o médico — O rapaz foi baleado três vezes no abdômen, na região do fígado. Chegou aqui com hemorragia interna incontrolável. Não havia nada que pudéssemos fazer. Nem se o tivéssemos recebido logo após os tiros. Mas tinham passado mais de duas horas! Ele estava à morte! O pulso estava indo e todos nos preparávamos para deixá-lo cadáver quando, de repente, o sangue parou. O cara se recuperou bem ali, à nossa frente. Olha, se eu não tivesse visto, não acreditaria. Se é que existe essa coisa de milagre, este foi um! [12]
Eurico ouviu tudo com lágrimas nos olhos e sentindo que, afinal, tudo o que vivera fora verdade. Cheio de convicção e certeza conseguiu autorização e chegou à cabeceira do moço por quem se dispusera a morrer. O jovem orgulhoso e cheio de antipatia que ele vira no começo do dia já não estava ali. Edmilson tinha um ar assustado de garoto pobre que era o verdadeiro estado de sua alma. Olhou Eurico com vergonha e uma pitada de esperança. Tremia ao lhe contar. — Foi uma emboscada. O meu pessoal me traiu. O desgraçado do Mendes queria a minha posição. Miserável! Vai pagar caro! — dizia com o rosto se contorcendo de dor e raiva. — Ainda odiando? — interrompeu Eurico — Isso não te trouxe nada de bom. O moço parou de falar e o olhou triste. Desta vez parecia reconhecer a verdade nas palavras do velho. — Eu vi a morte! — disse então tremendo — E era horrível! — Eu sei. — balançou a cabeça o ancião — Mas não precisa ter medo dela agora. Você vai viver. Mas o quanto e como vai depender de onde você vai colocar o coração. Na entrada do quarto uma enfermeira fez sinal ao ancião que era hora de se retirar. Edmilson segurou o braço dele com angústia. Em seus olhos ele via agora todo o vazio de seu coração, toda a busca de sua alma. — O que é que eu faço? — perguntou com voz embargada. Eurico o olhou com carinho. Colocou sua Bíblia na cabeceira. Era a sua velha Bíblia. Companheira de tantos anos. Ganhara aquele livro do homem que o levara a Cristo. Era seu mais precioso tesouro. Mas sentia que agora o rapaz precisava mais dela do que ele. Sorriu de leve e acrescentou: — Comece lendo o livro onde está marcado. Depois, quando sair daqui procure o pastor João da igreja lá da favela. Ele saberá te ajudar. Não desperdice seu tempo, meu filho! A vida é curta! Você não sabe o que vem amanhã. [13]
— Você virá me visitar? — quis saber o moço. — Não sei. — respondeu o velho com o olhar perdido — Tenho amanhã um compromisso muito importante. Logo você saberá. Com uma breve oração ele se despediu do moço e saiu. Trazia o coração em paz. Sentia que aquele jovem estava a caminho da recuperação. Seria difícil o caminho e muito espinhoso. As tentações seriam múltiplas e a luta tremenda. Mas ele queria acreditar. Era tudo que precisava. Fizera a sua parte. Talvez até demais. E com esse pensamento enchendo sua mente chegou a casa finalmente e dormiu um sono pesado, sem sobressaltos, cheio de paz. No dia seguinte, levantou-se à hora habitual. Fez tudo como em qualquer outro dia. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O dia inteiro, porém, esperava sentir aquela presença gelada que o envolvera no dia anterior e que certamente o viria buscar. Mas nada aconteceu de manhã e à tarde ia já avançada quando se sentou em seu sofá de leitura e adormeceu com um velho livro de poesia no colo. Acordou com uma sensação estranha e imediatamente sentiu que não estava só. Um arrepio percorreu sua espinha, mas recuperou depressa e levantando-se deu de cara com uma moça que, sentada à mesa da sala, preparava um chá. Era jovem e extremamente bela. Alta e esbelta, de feições finas, rosto pequeno emoldurado por abundante cabelo castanho claro, olhos enormes de um verde enigmático, lábios bem desenhados e um queixo artístico. Era branca, muito branca e dela parecia emanar um perfume doce inebriante que o ancião sentiu ser delicioso demais. Eurico sorriu diante de tal visão e limpando a garganta, se desculpou: — Peço desculpa não a vi entrar, estava lendo e creio que cochilei. — Não tem problema, eu tenho tempo. — ela respondeu numa voz maviosa e musical. E as palavras foram acompanhadas de um sorriso que trazia a beleza sombria de uma noite de luar. Eurico não pode evitar um novo arrepio, mas não sabia como reagir. [14]
— Em que posso servi-la? — quis saber, sempre educado. — Temos encontro marcado. — lembrou a moça com certo ar de surpresa no rosto — Certamente não esqueceu! O ancião recuou um passo e parou. Estava confuso e admirado. Balançou a cabeça e fixou melhor o olhar. — Tenho encontro marcado com a... — não foi capaz de dizê-lo. — Comigo! — completou a moça. — Não pode ser! — continuou estranhando o velho. — Porque não? — insistiu ela. — Não foi você que vi ontem! — Ah! — riu ela e se aproximou estendendo a xícara de chá fumegante e cheiroso. À sua aproximação ele sentiu o frio que lhe percorrera o corpo no dia anterior. Mas este não era o mesmo tipo de frio. Não gelava. Não fazia tremer. Era mais um tipo refrescante, qual brisa gostosa em tarde abafada. A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se no sofá. Ela foi postar-se não muito longe, bem em frente a ele. — Na verdade foi comigo que falou ontem. — continuou a morte — Mas ontem você me viu como Edmilson me veria. Ontem eu era a morte aos olhos dele. Hoje estou diferente, ou talvez não. Na verdade não mudo. O que muda é a maneira como as pessoas me veem. Eurico abanou a cabeça. Fazia sentido. Era mesmo bastante lógico. Sorriu. Não podia evitá-lo. Como temer uma morte com esta cara? — Está preparado? — Sim! — disse prontamente o homem sem hesitar — E Edmilson? [15]
— Terá sua oportunidade. — E será suficiente? - insistiu ele. — Só o Todo Poderoso sabe! — decretou ela — Tome seu chá. Você já fez sua parte. Novo sorriso encheu o ar de parte a parte. Ele bebeu o chá e encostou a cabeça na poltrona. Fechou os olhos sentido o perfume que enchia o ar. Logo estava dormindo. No outro dia de manhã corria a notícia na favela. O velho Eurico morrera na tarde anterior enquanto dormia e o barbeiro que costumava cortar-lhe o cabelo comentava: — Isso é que é uma Bela Morte! *********** Baseado em João 15:13: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos."
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O Homem do Comboio1 Muito se tem escrito sobre os heróis da História. Ponto comum nessas narrativas é o realçar da coragem, da ousadia, da iniciativa desses homens e mulheres cujos feitos ficaram para as gerações posteriores como marco de valentia. E, no entanto, a maioria dos descendentes de Adão é caracterizada pela falta de ousadia. Milhões em todo o mundo vivem vidas pacatas, sem nunca dar um passo que obrigue a Ter coragem ou fazer um ato que indique bravura. A falta de ousadia e de iniciativa parece contagiosa. Qual doença. Muitos se abrigarão sob o escudo da prudência lembrando que o “seguro morreu de velho”. E se é verdade que assim foi, também é notória que não lhe conhecemos o nome e para além do fato de que viveu até idade avançada não sabemos que tipo de realizações, se alguma sequer, chegou a alcançar. É caso para perguntar, será que o tal Senhor seguro chegou mesmo a viver na plena acepção da palavra? Faltando-nos arte para melhor defender a necessidade de ousadia na vida deixamos uma singela estória que talvez ajude a meditar nessa questão. Havia um homem. Um homem já maduro e avançado em anos. Ele morava do lado de uma passagem de nível de movimentada linha ferroviária lá para os lados de Santarém, Portugal. Vamos chamá-lo de João, que é um nome tão bom quanto outro qualquer. Era de estatura mediana, entroncado, músculos bem desenvolvidos por anos de labor manual, mas um pouco flácidos pelo chegar da idade. Rosto moreno, tostado de sol, com as rugas exageradas denunciando mais idade do que realmente tinha. Testa alta, serena, cabelos abundantes, bem aparados, já bastante grisalhos nas têmporas, bigode farto e bem cuidado. Os olhos de um negro límpido cheios de expressão, lábios grossos, mas de pouco falar, queixo quadrangular, masculino, mãos enormes, rudes, calejadas, fortes. O Sr. João vestia invariavelmente calças pretas de lã por cima das ceroulas, camisa branca abotoada até o colarinho, colete do mesmo tecido e cor das calças e um paletó de tom cinza escuro um bocado gasto, sobretudo nos cotovelos, mas sempre asseado. Um boné de lã de tecido 1
Em Portugal, comboio é como são chamados os trens. (N.E.)
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quadriculado em tons de bege e castanho terminava de compor o visual com botas alentejanas de cano alto e biqueiro larga. O homem vivia sozinho. Tivera família no passado. Mulher e filhos. Mas, ou por infortúnio de doença, ou por desgraça de acidente, ou por mero acaso da sorte, estava agora só e isolado na sua pequena casa junto à passagem de nível. A casinha, em cuja frente se via apenas a porta e duas janelas em cada lado desta, estava cuidadosamente caiada e um jardim diminuto, mas belo, se podia ver à entrada. Era em frente a esse jardim que o homem se sentava diariamente a ver passar o comboio. Ali nascera, crescera e se casara. Ali morava ainda, e ali esperava morrer. Nunca fora além da cidade de Santarém, ali perto onde o levavam as obrigações do negócio para vender o fruto da terra e já nem isso fazia nesses últimos anos em que já só trabalhava para o sustento próprio e comprava o que precisava na vendinha do mestre Tonho ali logo ao lado. Dias e dias, tardes e tardes ele assistia à passagem das locomotivas por sua casa. Ao cruzarem aquela passagem elas diminuíam bastante a velocidade. O homem podia ver o interior das carruagens, os rostos das pessoas, as cores das roupas, os semblantes mais ou menos pesados. Admirava a beleza dos estofados da primeira classe, a macieza dos bancos da Segunda classe e a alegria do povo da terceira. Enlevava-se com o brilho dos metais novos nos carros que faziam transporte de passageiros e se entusiasmava com a quantidade de material que podia ser levado pelos enormes e quase intermináveis comboios de carga. Conhecia já a maioria dos maquinistas. Não de nome, só de rosto. E estes também o conheciam e cumprimentavam já com o boné nas mãos e um sorriso amigável ante a aparente onipresença do homem junto à linha férrea. De tal maneira o Sr. João conhecia os trens que a ele lhe perguntavam horários e destinos e ele a todos respondia com exatidão matemática, acrescentando o andamento do dia e um possível atraso ou antecipação. Era para a maioria, o Ti João do Comboio, embora nunca, em toda a sua vida, tivesse embarcado num. O melhor amigo de Sr. João era tal Manuel da Várzea, porque sua casa ficava num terreno baixo próximo ao Tejo e um tanto sujeita a inundações. Os dois se entretiam muitas tardes em jogos de cartas infindáveis em meio a conversas banais e a observação do movimento dos trens. A mesa pequenina colocada no jardim do Sr. João, cada qual [18]
sentado sobre um tosco banquinho de madeira, dois copos pequenos e uma garrafa de licor ou vinho compunham o quadro já conhecido na vizinhança. — Olá Ti João, Olá Senhor Manuel — dizia uma moça que passava. — Olá rapariga — retribuiu o Manuel. — Olá Margarida — devolvia atencioso o Sr. João tirando o boné. — Então, a jogar? — brincava ela. — É para matar o tempo — desculpava-se o Manuel. O João só encolhia os ombros. — Então Ti João o comboio do Porto, a que horas chega? — perguntou ela. — Olha filha — informava o homem do comboio — deve aí estar a qualquer momento, pois o horário dele é 17h25min e já são 17h15min e como o de Coimbra passou hoje a modos que quinze minutos adiantado o teu deve estar mesmo aí. — Obrigado Ti João, tenho que ir a correr — despediu-se ela. Os dois observaram a bela trigueira que se afastava apressada e sorriam quase imperceptivelmente. Passados mais uns minutos o Manuel comentava: — Deve estar à espera do rapaz do Vieira. Parece que estão prometidos ou o que é. Acho que agora se fala namorado. O João encolheu os ombros. — Tempos novos — continuava o Manuel — que na nossa época uma rapariga não ia a correr esperar-nos a lado nenhum e nem nós vínhamos da cidade em comboios de primeira. O João levantou o sobrolho e encolheu os ombros. [19]
— Que rica vida leva o rapaz. — falava ainda o Manuel — Sempre daqui para lá, de lá para cá nesses comboios. Isso é que é passear! O Ti João sempre havia de querer saber o que é que há depois do Porto. O João não respondeu. Sua mente vagava com o comboio que pouco depois apitava e passava majestoso e imponente estremecendo a cancela. O maquinista fez sinal ao Sr. João que lhe retribuiu e suspirou. O que estaria no fim da linha? Quantas noites ela já sonhara com isso? Quantos dias ele levara a pensar nisso? Por vezes, imaginava cidades cheias de luz, com ruas movimentadas, vitrines repletas de coisas caras e supérfluas, mas bonitas e coloridas. Cafés, bares, restaurantes, carros, transportes públicos e uma enorme confusão de gente de raças e cores diferentes com línguas estranhas e incompreensíveis. Como seria ver a cidade grande? Sentir aquele calor, aquele reboliço na azáfama da metrópole que não pode parar. Outras vezes o homem pensava em paisagens belas e distantes, em pastos verdejantes, colinas cobertas de árvores de frutas, montanhas e rios, lagos e represas e o mar. Sim o mar de que lera e ouvira falar e até o vira uma vez na televisão da dona Joaquina. Como seria ver o mar? Dizem que é como um rio, mas não tem fim, ou os olhos não lhe vem o fim. Que mistério isso, seria verdade? Que paisagens e que contrastes esta linha de trem continha? Ela podia levar um homem a um mundo novo e quem sabe a uma nova vida. E a voz monótona do Manuel o acordava de suas divagações. — Então eu já contei ao compadre aquela passada do Tonico da Praça no outro dia? Pois olha que foi dos diabos, o rapaz ia partindo tudo lá na feira do sitio por vias de um negócio mal feito por um cigano! Sim, ele já conhecia a história. O Manuel fizera o favor de contá-la dúzias de vezes, mas a ouviria de novo com o mesmo ar de pachorra das outras vezes e provavelmente comentaria a mesma coisa que em outras ocasiões. Tanto fazia o Manuel não reparava que estava sempre a se repetir, coisas da idade. “E não tardo como ele” pensava o João e suspirava e a mente vagava. Que tipo de pessoas poderia conhecer num comboio? Viajantes inveterados que viajam pelo simples prazer de se deslocarem. Homens de negócio, estudantes em férias, agricultores com arranjos na cidade, padres que vão para novas paróquias, senhoras que visitam a família. E [20]
que tipo de amizades se fariam ali? Ou no destino a que chegasse a quem se ligaria sua alma pela força de descerem na mesma paragem? Que emoções estariam reservadas a uma viagem destas? O medo do desconhecido, a alegria do encontro inesperado. A angústia da incerteza, a tristeza da saudade, o esclarecimento do conhecimento adquirido, o enriquecimento do coração, o alargar da visão, o reavivar do Espírito. — E tudo terminou bem — falava ainda o Manuel — que a polícia não estava lá para brincadeiras e fechou os ciganos a sete chaves e quase deu uma medalha ao nosso Tonico que saiu um valente rapaz. — Fez ele muito bem — comentou o João sem pensar no que dizia e suspirou. O jogo acabou e o Manuel se foi, deixando o amigo envolto pela luz exangue do anoitecer. No dia seguinte o Manuel procurou seu parceiro de cartas logo cedo, mas não o achou em casa. Andou pela vila e não o viu pelo que calculou que fora ás terras buscar algo para o almoço. À tarde, porém, o João não estava, como habitualmente, no seu posto de vigia, a controlar a passagem dos comboios. O Manuel começou a se conturbar. Perguntou pelo amigo em toda a redondeza. Não, ninguém vira o Ti João dos comboios... E foi a Dona Maria da Encarnação que desvendou o mistério. Vira o Sr. João na estação de comboios em Santarém a andar de um lado para outro em traje de domingo. Parecia tomado de uma febre! Inicialmente, ela pensou que ele esperava alguém, mas depois o viu encaminhar-se à bilheteria e pedir um bilhete até o fim da linha. Nem sequer se preocupou com o nome da estação final ou o preço da passagem. A mulher, curiosa, ficou a observar e viu com espanto o homem entrar no primeiro comboio que parou e só pode descortinar o seu sorriso de satisfação sentado à janela e falando com uma senhora que seria companheira de viagem. — Ai! Que o diabo do homem perdeu a cabeça! — foi a sentença extemporânea do Sr. Manuel arreliado por perder o parceiro de cartas e de entardecer. E a notícia correu célere. O Ti João, aquele que por mais de vinte anos [21]
fora visto a espreitar a passagem dos trens sem nunca entrar num, aquele que sonhara com o destino das locomotivas durante décadas sem sequer chegar próximo da estação, o homem que ficara conhecido por toda a redondeza como o ti João dos comboios, finalmente e inexplicavelmente, embarcara. *********** Baseado em Neemias 11:4: "Quem observa o vento nunca semeará e quem olha para as nuvens nunca segará."
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Rui ou "As Aparências Enganam"! (Conto baseado em história real)
— Ninguém fala mal da minha mãe! — gritou o garoto mirando o oponente com raiva nos olhos. — Pois, eu repito o que disse! — reiterou o outro rindo. Maldita e pejorativa, a frase lhe escapuliu dos lábios, qual cuspidela fétida de tuberculose terminal, levantando uma onda de risos e provocações do bando reunido. O menino olhava o inimigo com os olhos injetados de sangue. Era pequeno, talvez dez anos, franzino e branquinho, de cabelo louro como uma espiga de trigo madura e certamente mais fraco que o adversário. Sem medir as consequências de seu ato fútil, carregou sobre o outro cheio de fúria justificada. O grandalhão, bem uns quinze anos, braços de homem acostumado ao trabalho pesado limitou-se a se desviar ligeiramente e aproveitar o embalo do garoto para o projetar sobre o chão de cascalho. A patota riu alto, divertida. As provocações e gargalhadas cresciam de tom à medida que o desastre era mais evidente. Levantando-se a custo, com os braços ralados e ardendo e as calças já rasgadas a criança não se conteve. No seu rosto lia-se um misto de medo, susto, indignação e ódio. Não aceitaria aquela situação enquanto ainda tivesse um pouco de dignidade. Tentou novo assalto. Desta vez foi mais moderado e cuidadoso. O chão de pedrinhas e alcatrão não era nada convidativo. O resultado foi tão mal ou pior do que o anterior. O saldo foi um olho negro e toda a turma o rodeando com insultos. Ele se deixou ficar no chão chorando baixinho, derrotado, humilhado, destruído. Aquela tinha sido a vingança covarde dos que não podiam competir com ele na sala de aula. Desde que chegara ali não se limitara a ser estrangeiro, o “russinho”, o protestante. Era também o melhor aluno em tudo, querido e admirado dos professores, bajulado dos pais, bem visto [23]
pelas meninas. Estas coisas se pagam caro aos dez anos. E o carrasco fora bem escolhido! O Rui não era muito alto, mas trabalhava como ajudante de mecânico há vários anos e ganhara músculos de ferro. Era repetente já de fama maior, só por isso ainda circulava entre a criançada. No dia a dia era pacato e calmo, sempre bem disposto e de olhar submisso. Mas o tinham excitado com mentiras e provocado até que servisse de vingador sobre o loirinho. Ele cumprira seu papel sem grande gosto. Até uma ponta de remorso parecia o atacar, mas o coração embrutecido de adolescente que não tivera infância não se deixava tomar de ternura. A única linguagem que conhecia era a da violência. Em casa e na oficina era ele que apanhava. Ali, quem dava as cartas primeiro era ele e se não era grande motivo de orgulho vista a diferença de tamanhos, servia-lhe perfeitamente de compensação. Magoado de corpo e alma o garotinho encetou o caminho de casa. Foi um autêntico calvário com os demais a seguirem–no de perto com os mesmos palavrões e provocações de antes e os risos. O olhar das pessoas que o viam rasgado e podiam ler na sua órbita roxa o desfecho pouco feliz de uma luta infantil era duro de enfrentar. Mas, o pior era o medo da reação paterna e as consequências que daí poderiam advir. Foi longa a estrada... Ele nem reparou na beleza do caminho, no recorte dos campos divididos por muros de pedras artisticamente desenhados, a brancura da cal das casinhas que pareciam mais de bonecas que de gente, o vermelho das telhas portuguesas a contrastar com o azul do céu, o gado gordo e malhado a preto e branco que pintava a paisagem qual postal holandês. O estado de alma não lhe permitia ver nada a não ser as pedras frias da estrada de paralelepípedos antigos e alguns tufos de grama que teimavam em crescer aqui e além por entre as pedras desafiando os carros que passavam por ali sem sequer os notar. Finalmente perdeu o cortejo blasfemador ao chegar à sua rua. Mas isso não lhe aliviara o coração. Restava enfrentar a família e isso ele teria que o fazer sozinho. E ali estava sua casa. O sobrado mal pintado, a loja por baixo e a casa por cima, com vista para o interior. Felizmente, a reação paterna foi bem mais suave do que ele previra. Sua explicação do motivo da briga parecera ter servido de amortecedor ao [24]
estado triste em que se apresentava. Nem sequer se mencionou o fato de ter a roupa rasgada e o olho negro. Ficara apenas a promessa do progenitor: — Amanhã estarei à tua espera na saída das aulas para que me mostres quem é esse Rui! Aquilo entrou-lhe na alma como profecia messiânica! Teria afinal vingança, um salvador surgiria do fundo de um carro verde e como no grande e terrível dia do Senhor! Ele espalharia o terror entre as hostes de escarnecedores que o importunavam, e a partir dali reinaria soberano sobre toda a escola e arredores! A noite chegou sem sono, apenas a grande expectativa de ter a honra lavada, do nome limpo e exaltado. O Rui saberia quem ele era e que não estava só no mundo, por mais que se pensasse o contrário. O pai subialhe no conceito uns dez degraus. Sua pose masculina e séria afirmando que resolveria o problema, de repente, lhe pareceu ver nele músculos que nunca antes notara com o peito largo de um boxeador, as mãos grandes e apropriadas. Aquele seria um combate desigual, como fora o seu. A sede de vingança tomara conta do garoto e somente de madrugada adormeceu, com sonhos de cargas de cavalaria e massacre de exércitos rivais, com muito sangue e dor, muita dor para o inimigo... As aulas no dia seguinte foram um total desperdício. Como prestar atenção nos professores com a expectativa que o consumia por dentro? Olhava o rosto impávido do Rui, desconhecendo a destruição que o aguardava e isso lhe trazia tamanha satisfação que ria sem querer e procurava evitar tal reação, não fosse ela denunciá-lo. Por duas ou três vezes durante a longa manhã tivera momentos de rara lucidez em que duvidou da vinda do pai ou do cumprimento da promessa. Mas, afogara a razão no seu lago de vingança. A injustiça tinha que ser resolvida, era urgente e necessária a retribuição. A vida lhe parecia sem sentido sem aquele corretivo dado ao mau elemento e à sua corja. Finalmente, o último sinal soou, como trombeta divina, e lá estava o carro verde e o salvador imponente e com ar decidido. Aproximou-se tremendo e o pai o saudou perguntando: — Quem é o Rui? [25]
— É aquele! — mostrou-lhe excitado — Aquele tolo ali, metido a esperto, que não sabe nada de História, nem de Português ou de Inglês, ou Matemática, ou seja que matéria for. Aquele ali que só sabe dar caneladas no futebol, se assoa para o chão, cospe a torto e a direito e diz palavrões. É aquele ali, com ar de parvo que nunca vai saber mais do que 2 + 2 e que merecia ser aniquilado como verme que era! Já o pai galgara o espaço que o separava do guri. A mão erguera-se no ar e o menino esperou o barulho do primeiro estalo com os olhos semi-cerrados. Mas, qual quê? O pai apenas pousara a mão suavemente sobre o ombro do inimigo e lhe falava amistosamente, convidando a aproveitar a carona até à vila. Atordoado, o garoto tentou tirar sentido de tudo aquilo. Seria verdade tamanha traição? Podia o pai ser tão falso a ponto de o desfeitear de maneira tão vil? E então lhe veio a luz... É claro! O pai não podia bater no Rui ali à frente de todos! Ele era um homem de respeito na sociedade local, isso não lhe ficaria bem. A carona era o engodo para levar o Rui até um descampado, onde o corretivo seria aplicado. Neste momento, a sabedoria do homem parecia realmente superior! Afinal é verdade está tão propalada superioridade dos adultos! O Rui caíra na armadilha. Aceitara a carona e se instalara no banco da frente, ao lado do motorista. O menino atrás contava os minutos até o local do esperado massacre. Porém, o carro se dirigia estupidamente para a vila, pelo caminho mais curto e povoado. O pai falava mansamente ao Rui sobre o sucedido como se tivesse ocorrido um erro ligeiro. Queria a ajuda do rapagão para futuros erros do menino?!! Ele era o pai e ele deveria corrigir o filho, não um qualquer na rua. Terminaram fazendo uma espécie de pacto. Se o garoto fizesse ou dissesse algo errado, o Rui tinha permissão para o denunciar ao Pai, que lhe aplicaria a disciplina devida à falta em causa. E assim se despediram na frente da casa do moço. A criança no banco de trás desaparecera em sua decepção. Lágrimas sentidas lhe queimavam os olhos numa nova humilhação tão difícil de suportar quanto inesperada. Jamais teria esperado isso do próprio pai! Fora entregue como se fosse ele o verdadeiro culpado. Será que o homem não vira logo no rosto do Rui que era ele o culpado, que era ele o mau da estória? [26]
O dia se arrastou qual caracol paralítico, sem ânimo, sem interesse, sem remissão. O menino se sentia traído, ultrajado e só. Como poderia enfrentar a escola? Como olhar para o grupo de escarnecedores? Como encarar o Rui? Tudo parecia desfocado e em meio a uma névoa de dúvida. A própria questão da justiça e do direito tinham sido violadas. E logo por quem se supunha ser o defensor sagrado de tudo o que era virtuoso na vida! O que o garoto não sabia é que aquela conversa a que ele chamara traição tivera o mais profundo efeito no Rui. O moço, acostumado ao punho de aço do padrasto e ao trabalho duro desde menino, nunca tivera alguém que o tratasse como igual. Nunca experimentara a palavra de confiança e respeito. Jamais encarara o olhar limpo de franqueza que conhecera nesse dia. Aquela conversa e mais do que isso, aquela atitude o resgatara verdadeiramente! Tinham lhe dado uma nova visão do mundo, da vida e da própria humanidade. Uma centelha de honra e dignidade foi acendida em seu coração, e mesmo sem saber bem o que fazer com ela o rapaz sentia que era algo tão bom que precisava ser valorizado. No seu coração de pedra surgira uma brecha e ali poderia brotar uma flor de esperança e, quem sabe, se suas raízes não abririam outras brechas, deixando que a alma florisse em botão e a vida sorrisse afinal? No dia seguinte, Rui olhou o loirinho com simpatia e quase carinho. Sem perceber ele era já parte essencial da solução do problema do garotinho assustado. E foi assim que, para surpresa do menino, quando dois malandros troçadores se aproximaram dele com más intenções, o gigante mecânico se interpôs e disse de sobrolho carregado e punho fechado numa voz rouca: — Se tocar no miúdo, vai ter que se ver comigo ... *********** Baseado em Romanos 8:28.
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O Sábio A cidade era minúscula, como tantas outras nos estados sulistas da América do Norte. O auto-carro2 que cruzava a região, a maioria das vezes nem parava. Mas nesse dia, para surpresa dos cerca de 500 habitantes locais, descera um estranho e se dirigiu à pensão da Betty Sue. Bem, aquele era o único local na cidade onde se podia alugar um quarto, comer uma refeição e beber uma cerveja fresca. Betty Sue era o centro nervoso da cidadezinha. Todas as fofocas passavam por lá e para se estar em dia com o mexerico era obrigatório dar uma paradinha lá, pelo menos dia sim, dia não. O cavalheiro que descera do auto-carro estava munido de uma só mala. Bastante apresentável o tipo. De terno cinzento-escuro, camisa branca, impecavelmente engomada e uma gravata com desenhos modernos, difíceis de decifrar, mas que ficava bem no conjunto. Rosto comprido e sério, a testa alta, o cabelo recuado, cortado à escovinha, os olhos grandes de um azul profundo, a boca larga, lábios estreitos e orelhas meio de abano com o nariz razoavelmente grande. Parecia preparado para ficar uns dias, pois pagou previamente pela semana. Betty Sue, que fora quem o viu de mais perto, assegurou que era muito sério e de poucas falas. O nome não dizia nada de novo: Nick Thompson. Mas, no fim da tarde, já o estranho era o motivo principal das conversas e todos lutavam para acrescentar mais pormenores sobre o indivíduo. Havia que se apressar, pois quem mais tirasse dele mais teria proeminência na cidade nos dias subsequentes. O dia seguinte foi de grande agitação na cidade. É claro que alguém que não conhecesse o local nem daria por isso. Só os da terra podiam ver a procura febril de novos dados sobre o Sr. Thompson. O homem levantou-se cedo. Pediu um café puro, uma torrada e nada mais. Passou no barbeiro para fazer a barba e além da saudação e alguns monossílabos nada mais dissera. Comprou um jornal do dia anterior na
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Em Portugal, auto-carro é como são chamados os ônibus. (N.E.)
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banca, engraxou os sapatos com o Tony e se retirou para o quarto até o almoço. Foi aí que Betty Sue tentou sua sorte. — O Sr. Thompson pretende se demorar por estas bandas? — perguntou com um sorriso franco do seu rosto bolachudo e sempre exageradamente maquiado. — Talvez — fora a resposta lacônica. — Vem de longe? — Um pouco. — A negócios? — Certamente. — Muito dinheiro envolvido? — É possível… E assim prosseguiu a conversa. A mulher tentando tirar e o homem sem largar nada. Ficara quase na mesma. Tudo que lhe perguntava ele concordava de um modo pouco convicto, o que a deixou um tanto contrariada e confusa. O que poderia relatar às comadres no fim do dia? Estavam mortas por saber mais do desconhecido e ele ali armado com uma couraça de indiferença perante a curiosidade quase mórbida da pequena cidade. E não é que fora o Smith da tabacaria que conseguiu a nota mais saliente do dia? Ao vender um maço de cigarro ao Sr. Thompson lhe inquiriu sobre a visita àquela cidade. Porque ali, um local tão pequeno? — Gosto muito de sossego — foi a resposta. Todos gostaram daquela palavra. Era sem dúvida um atestado de bom senso e levantou a ideia de que o homem poderia querer se instalar ali mesmo. Afinal, dinheiro era o que parecia não lhe faltar. A Betty Sue lhe vira a carteira cheia, fora os cartões de crédito, e garantia a quem quisesse ouvir, e todos queriam, que o Sr. Nick devia ser um desses milionários excêntricos. [29]
Os dias foram se passando lentamente para o povo da cidade e pouco se acrescentava sobre o mistério do visitante. Vestia sempre bem, apesar de variar muito pouco. Andava muito limpo. Fora visto colhendo plantas locais e terra. Iniciara um jardim no parapeito da janela do seu quarto e respondia com expressões guturais ou monossílabos. No salão de barbearia se discutia sobre ele a todo o vapor: — Deve ser podre de rico. — referia Tony o engraxate — De outra forma não viria gastar dinheiro num local tão afastado e perdido no mapa. — Escolheu muito bem, se quer saber a minha opinião — interpôs o prefeito Jackson, meio magoado com a desconsideração do Tony. — Pode ser um fugitivo da lei — tentou o Barnaby aposentado das linhas de ferro. — Não tem cara disso. — resistiu MacSurrey o barbeiro — Ele é muito calmo para quem está fugindo e já está aqui há mais de uma semana! Um fugitivo não fica tanto tempo em lugar nenhum. — Pois eu acho que é um escritor, um sábio de alguma espécie! — opinou Larry, um caminhoneiro meio desempregado — Deve estar fazendo pesquisa para um novo livro ou lá como o chamam. — Bem pensado! — reagiu o prefeito — Lá cara de entendido ele tem! Olha para as coisas sempre com um ar de quem conhece bem. Ouve os assuntos com atenção e apesar de não dar opiniões vê-se perfeitamente que está por dentro de tudo. Eu não me admiraria se fosse professor universitário ou até coisa maior. — Mas porque é que não fala? — estranhou Tony — Parece até que o gato lhe comeu a língua! — E lá é preciso falar para se ser alguém? — retorquiu MacSurrey irritado — Lembro-me bem do que meu avô contava de um grande génio que conheceu e que quase não falava. Estava sempre tão absorto em pensamentos superiores que as conversas do dia-a-dia o distraíam e não se dava a bater papo nas esquinas. Pode ser esse o caso. [30]
— Exatamente! — concordou Larry sacudindo com uma risada seu enorme corpo de mais de dois metros e 130 quilos — Até tem graça, um crânio desses aqui na nossa cidade! Ainda vai tornar famosa a nossa região, descobrindo alguma coisa importante por aqui. — Seria boa ideia — opinou Jackson com os olhos brilhando — Podia ser que implementasse o turismo. Podíamos ter um hotel ou dois, e quem sabe um drive-in, para dar mais animação à cidade. — Sim, Porque a Betty Sue já deu o que tinha a dar — comentou o Tony rindo ao que todos gargalharam com gosto. E de fato, no café-restaurante-pensão, outro grupo, este de mulheres, também conversava sobre o desconhecido enquanto tomavam xícaras de chá e biscoitos de chocolate. — Tem um ar tão distinto — dizia a Mary Lou — Acho que é mesmo um dos homens mais charmosos que já conheci! Me lembra artista de cinema... — Poderia ser. — riu de excitação a Conchita que estava ali desde que viera do México — Pode bem-estar descansando da cidade grande e se escondendo da fama e dos jornalistas. Li numa revista que há muitos atores que fazem isso. — Já pensou que emocionante? — sorriu a Sra. Jackson — Isso pode trazer fama à nossa terra, turistas, quem sabe? — Não parece ator. — comentou a Betty Sue, que para todos os efeitos era a maior entendida na matéria, pois hospedava o homem — Parece mais um estudioso ou professor de alguma coisa. — Sim — retrucou Samantha — tem mesmo cara de doutor! Aquela testa não engana ninguém! — Olha que se calhar não era mal partido hein? — tentou a Sra. Jackson rindo para Samantha, que era a solteira mais cobiçada da cidade. — Lá dinheiro tem de sobra! — disse Betty Sue — Isso eu posso [31]
garantir! — E é bem mais bonito que o Perkins — riu Mary Lou lembrando um pretendente de Samantha. — Mas, falando sério — procurava acalmar os ânimos a visada nas brincadeiras — que o homem tem cara de sábio lá isso tem e ninguém pode negar. A partir desse dia então, Nick Thompson, passou a ter a fama, merecida ou não, de sábio de grande valor. E tudo que fizesse ou dissesse era interpretado à luz dessa opinião. Se ele pegava uma pena de pássaro que caíra estava estudando aerodinâmica. Se demorava-se a ver o pôr do sol, estaria compondo poesias imortais. Se respondia por monossílabas era para não gastar seus preciosos neurônios com conversas tolas e se vestia sempre a mesma cor de roupa era porque isso certamente teria um efeito positivo na saúde e bem-estar das pessoas. Até houve quem notasse que o prefeito estava repetindo mais vezes o seu terno azul-marinho... Certa ocasião enquanto os homens estavam reunidos a tomar cerveja o Sr. Nick entrou e saudou a todos cordialmente. Ofereceram-lhe cerveja e o homem aceitou de bom grado, pois estava quente e uma geladinha ia bem. Discutia-se a supremacia do transporte aéreo sobre o marítimo. Havia, como sempre, dois partidos. Uns defendiam os aviões, outros os navios. A conversa estava acalorada. Havia que aproveitar o fim da tarde em discussão, já que mais nada havia a fazer na cidade, senão esperar pelo jornal da noite na televisão e isso ainda ia demorar ainda um bom tempo. Depois de muitos argumentos pró aéreos e pró marítimos houve um que teve a ideia de questionar o ilustre visitante, que segundo o conceito geral era um sábio. O arguido olhou para os presentes com ar distraído, levantou as sobrancelhas por alguns segundos e baixando-as de seguida abriu um sorriso suave e encantador e com um leve dar de ombros abanou a cabeça como que reiterando o óbvio. Aquele gesto foi seguido de perto por todos e por incrível que pareça terminou a discussão. A todos parecera que o génio visitante rematara a polémica como ninguém e o gesto foi descrito exaustivamente sobre as mesas de jantar das várias casas locais. É claro que cada lado da [32]
disputa reclamava o referido gesto como sendo a afirmação cabal de sua vitória no conceito do sábio. Mas a verdade é que todos concordavam com a profunda astúcia e tremenda sabedoria do indivíduo. Ainda não completara um mês que o Sr. Nick estava na cidade e o prefeito já o convidara a ser sócio de um negócio importante, o xerife lhe encomendara dois discursos sobre segurança pública no centro cívico e a senhorita Samantha Brown se preparava para acabar com seus dias de solteira, no que seria o grande casamento da década. Porém, misteriosa e quase furtivamente como chegara, o estranho se foi. Não chegou a se despedir de ninguém. Não terminou de usar os dias pelos quais pagara a pensão da Betty Sue. Simplesmente saiu de mala na mão e fora dos limites da cidade pegou carona, desaparecendo das vidas de todos sem deixar rastro. Iniciava-se a lenda, o mito. Tinham sido visitados por um gênio por algum tempo e alguns mais espiritualistas até falavam de anjo ou outro ser se uma realidade desconhecida. Houve inclusive quem sugerisse trazer a televisão para fazer uma reportagem, pois jurava que o tal Nick era, na verdade, um extraterrestre que viera investigá-los. Fosse como fosse, tinham sido dias de excitação na cidadezinha. Passaram-se algumas semanas e um carro com chapa de outro estado e símbolo oficial parou à frente da pensão de Betty Sue. Era um sábado de manhã, perto da hora do almoço e o local estava abarrotado, como de costume. Os dois homens que desceram pareciam de alguma instituição estatal e o carro trazia um emblema na porta. Alguma coisa sobre Saúde Pública. Entraram, pediram café e sanduíches e ficaram conversando um pouco. Quando a dona da pensão trouxe os pedidos lhe mostraram uma fotografia. Era do Nick! Betty Sue gelou! Conhecia ela o homem? Ela fez sinal que não. Todos os presentes estavam em suspense, acompanhando a situação. — É algum criminoso? — perguntou ela, temerosa. — Não! — afirmou o homem rindo — Nick não faria mal a uma borboleta! É apenas maluco! Completamente louco! Fugiu do Sanatório de Memphis há dois meses e tivemos uma denúncia que teria vindo para [33]
estes lados. É que levou todo o dinheiro da recepção... Ainda era uma boa quantia! Betty Sue deu um sorriso amarelo e voltou-se. Todos os cidadãos presentes a olhavam. Podia-se ver em seus olhos o espanto e a quase incredulidade. A verdade é que nunca mais ninguém falou de Nick Thompson naquelas paragens. *********** Baseado em Provérbios 17:28: “Até o tolo quando se cala será reputado por sábio; e o que cerrar os seus lábios por entendido.”
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"É para se ir fazendo..." (Conto regional) Fui criado nas ilhas portuguesas dos Açores. Guardo recordações maravilhosas desses tempos. A cosmovisão açoreana é típica do ilhéu e se resume na frase que serve de título a este conto. A narrativa é ambientada nos Açores e se baseia no texto de Eclesiastes 11:4: "Quem observa o vento nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca segará". A Maria tinha o ar mais consolado do mundo. É verdade que a vida ia difícil. Era verdade que o Manuel não era lá o marido que ela esperava. Mas, que importava isso se estava agora à espera de seu primeiro rebento? Vivia pelo ser que lhe crescia no ventre e que já sentia espernear. Havia de ser forte e belo. E sentada na varanda bordava para seu enxoval quando o Ti Zeca, da Herminia lhe gritou: — Ó Maria, antã isso faz-se ou não? Nunca mais terminas o bordado, rapariga... Ela riu gostoso e respondeu: — Não se preocupe tio, é para se ir fazendo... E o garoto nasceu. De fato, forte e saudável, cabeludo e vermelhão. Francisco de nascimento, Francisco José de Batismo, que o padrinho na cidade assim o quis. Cresceu rápido, bem constituído e com força, que é o que se precisava naquelas terras de vida dura. Cresceu ilhéu, vendo o Atlântico norte todos os dias, e aprendendo a amar o ar húmido e a terra fértil dos Açores. Desde muito cedo ouviu aquela frase tão tradicional da região e que parecia andar de boca em boca como doce preferido. Chavão máximo do modo de ser e de viver se dizia com pachorra e boa disposição de qualquer coisa em que se estava envolvido: “Não é para se fazer, é para se ir fazendo” ... O Francisco incorporou facilmente o dito que melhor do que qualquer outro falava da cosmovisão das gentes açoreanas. Cresceu na [35]
tranquilidade da vida do campo, rodeado dos animais domésticos e das vacas nos cerrados do pai. Viu as estações passarem e as festas chegarem com seu reboliço, mas sempre numa paz de alma própria de quem tem horizontes limitados pela imensidão dos mares que o cercam. Pelo que tranquilo nascera e calmo se desenvolveu. Na idade apropriada começou a frequentar a escola da freguesia. Antes, de madrugada ainda, ia aos campos com o pai tratar das vacas. Depois, havia as aulas e à tarde um pouco de tempo livre para brincar. O menino era sossegado na sala, não dava nenhum trabalho à professora. No recreio preferia se quedar vendo os outros a gastar energias correndo de um lado para o outro, qual coelhos assanhados. Não se metia em brigas, não discutia e nunca era repreendido pela mestra. Apenas não era de muito estudo. O 1º ano passou sem que aprendesse mais que as vogais. No 2º, e já repetente, ia pelo mesmo caminho. E quando um dia, já um pouco preocupada pela lentidão do filho a mãe o repreendeu pela demora em terminar o dever de casa, o menino a olhou com olhos meigos e com um ligeiro sorriso ainda bem infantil e respondeu: — Ó mãe, isto é para se ir fazendo! E não dera mesmo para aquilo, dizia o pai. Era pau de outra cepa. Aprendeu a escrever o nome que era o que o progenitor sabia, e lhe chegara para ter família e casa. Havia de chegar também ao Francisco. A família aceitou tudo passivamente. Não valia a pena fazer confusão por causa disso. Nem todos nascem para doutores e o filho do Manuel da Burra havia de ser mesmo um agricultor e criador de gado como o pai. O rapaz cresceu forte, que lá comer, comia que dava gosto. Então pelas festas do Divino Espirito Santo era um ver se te avias que ninguém o batia numa mesa de banquete. E foi mais ou menos por essa altura, devia o garoto ter já uns 18 anos, que viu a Susana, na tourada das Fontinhas. O dia estava de festa, o sol a pino, tudo florido, um cheiro de perfume no ar e a freguesia cheia para a tourada a moda da Terceira. O Francisco fora com outros amigos, a modes de espairecer um bocado. Mas logo olhara para cima e notara numa janela vermelha, uma rapariga com os ombros apoiados numa linda colcha bordada com motivos campestres [36]
com fios dourados num fundo azul e rosa. Ficara fisgado à primeira como peixe que encara isca colorida. Os amigos o impulsionaram na aventura, que era bem hora do rapaz se entusiasmar por alguma coisa. Mas o Francisco com seu ar bonachão limitou-se a olhar, e a olhar. Lá a cachopa o viu sim senhor, e até lhe retribuiu o olhar. Mas mais do que isso não se passou. Na hora dos touros o rapaz não ousou sair à rua a modos de impressionar como seria a tradição. Não era do seu estilo e estava muito bem sentado com um chouriço preto à frente que até dava gosto. Mas, nos intervalos entre cada touro lá se arrastava até a janela rubra a fim de admirar a flor humana que brilhava mais que as vegetais. Mas quando os colegas o apertaram querendo saber se o namoro era para se fazer, respondeu dando de ombros: — É para se ir fazendo... A partir daquele dia da festa, Francisco passou a frequentar as Fontinhas a cada fim de semana, que era freguesia vizinha à sua. Ia de bicicleta e passava frente á casa da Susana vezes sem conta, nunca ousando, no entanto, encetar conversa. E fora a pequena que o abordara um dia, perto do portão da casa e que lhe permitira iniciar este namoro meio amizade que frustrava os familiares. É que os pais da moça tinham planos mais elevados. Havia um filho do Sr. Dr. Azevedo de Angra que parecia arrastar a asa à pequena, e este brutamontes da Vila Nova que nem sabia falar direito vinha entornar o caldo. E o que é que a rapariga via naquela cara bolachuda e avermelhada? Mas as coisas do coração são assim e a Susana saía à mãe, de pelo na venta, não aceitava ser pau-mandado e nunca se poderia dizer que era uma maria–vai-com–as-outras. Bem o Pedro Azevedo, filho do doutor, destinado à alta sociedade de Angra a presenteava com as prendas mais bonitas vindas do continente. A rapariga agradecia e continuava a falar ao Francisco a cada fim de semana, apesar de ser ela a puxar a conversa e a dar as conclusões. E os meses se arrastaram. Um ano se passou e já iam quase no fim do segundo e a coisa não atava nem desatava. O Manuel da Burra não dava interesse a esse namorico do filho, mas a mãe se arreliava e não pouco. Foi ter com o padre Bento que a casara e batizara o pequerucho. [37]
— Ó Senhor Padre, a sua bênção. — Deus te abençoe, minha filha. — Sr. Padre, ando com uma coisa cá a atraverssar-me o coração, a modes que me deixa louca! — Ó rapariga de Deus, diz lá o que tens. Sou teu confessor há poderes de anos. — É o Francisco, sr. Padre. O rapaz é trabalhador e nunca me dá canseiras, lá isso é verdade, é uma paz de espírito. Mas não é capaz de fazer nada sozinho. Tudo tem que ser à pressão. Se não for empurrado não desemperra. — Feitios filha, são feitios... cada um tem o seu... Lá o rapaz é assim quieto, que não é nenhum pecado. Vê lá o Luciano da Mariquita, que trabalhos lhe dá! Vês logo que te saiu a sorte grande! — Loivado seja, Sr. Padre! Não estou a reclamar que o meu Francisco é uma joia de rapaz. Mas queria vê-lo casado e não sei se o veja. — Então não hás-de ver? Isso se arranja facilmente. Ouvi até que tem rapariga lá para as Fontinhas. — Ter tem, mas não sei se por muito tempo. — Explica-te lá criatura, que não te entendo. Tem ou não tem? — Ó Sr. Padre, o Francisco anda de namoro com uma pequena das Fontinhas há quase 2 anos. É boa rapariga, sim senhor, que lhe conheço a família e até me dei com a mãe dela nos meus tempos de solteira. Casou com o Firmino, aquele que anda metido nisso dos laticínios lá pra Angra. — Sei quem é, boa gente. — Pois o Francisco vai lá todo santo domingo. Faça chuva ou faça sol, não falha. Mas a coisa não anda. — Como assim? [38]
— Ele nunca mais se despacha a pedi-la. E o pior é que o filho mais novo do Dr. Azevedo tem o olho na pequena e se o meu Francisco não se avia vai ficar a ver navios. — Ó lá... isso é outra história, que o Pedrinho do Dr. Azevedo eu conheço e não é rapaz para desfeitas. Se cismou com a rapariga temos sarilho e do grosso. — Está a ver sr. Padre. Sei que se falar ao Francisco ele há de escutálo. A mim já se me secou a língua de tentar, e parece que estou como o santo a pregar aos peixinhos. — Ó rapariga, isso não é problema e se arranja. Dou três palavrinhas ao pequeno e já tens nora noutra freguesia que até te regalas! — Valha-me nossa Senhora, que era um alivio grande! Sr. Padre era uma esmola que me fazia ... — Não fales mais nisso! Vai-te descansada e com a ajuda de Deus! E ela foi. Se havia alguém que podia tratar da coisa era o Padre Bento, que casamenteiro como ele não havia em todo aquele lado da ilha. Nisso se passou mais um ano e quando chegou a primavera e Abril entrou, havia ares de festa na casa do Firmino das Fontinhas. Foi uma boda como poucas e o banquete demorou até de noite com tudo do bom e do melhor. A Susana e o Pedrinho do Dr. Azevedo deram o nó na Sé de Angra com pompa e circunstância com a igreja cheia de convidados que o pai da noiva não cabia em si de contente. Não fora falta de paciência da rapariga que levara a este desenlace. Praticamente iniciara o namoro e a cada fim de semana era ela que fazia a maior parte do trabalho perguntando e respondendo. Lutara contra a vontade do pai e de todos ao redor. Ninguém se levantara a favor do tosco agricultor. Meses a fio à espera que o rapaz se decidisse e tentou várias vezes levar a conversa para o lado do pedido de casamento. Mas, o Francisco parecia irredutível. Era mais fácil Moisés tirar água da rocha que ela um pedido de casamento daquele criador de vacas! Por fim cansou! Não dava para continuar perdendo a juventude numa causa vã. Aceitara o pedido do Pedro e despediu o Francisco com lágrimas nos olhos. [39]
O Manuel da Burra quase não ligou ao caso. A Maria, porém, desesperou! Adivinhava que se o filho não casasse ali, não havia de casar mais! E como é comum as mães conhecerem bem os filhos que têm, ela estava mais que certa. Se o moço já era fechado e titubeante antes daquilo tudo, agora é que não se abria mais. Preferia as vacas às pessoas e o campo à freguesia. Fechou-se em copas e passou a falar ainda menos que antes. Mas a sorte, esta personagem tão desejada mas difícil de encontrar, parecia ter um gosto especial por aquele campônio tranquilo e veio lhe bater à porta novamente com armas e bagagens e sem que ninguém pudesse prever. O Antônio da Canada das Flores tinha embarcado para o Brasil há anos, era o Francisco ainda novo. Fizera fortuna considerável e voltara agora com ideias de se estabelecer na terrinha e montar um negócio. Chegara com todo o aparato próprio do emigrante que regressa em grande. Fizera logo festa. Foi mordomo da festa do Senhor Espirito Santo e pagou uma tourada como há anos não se via pelos lados da Vila Nova. Iluminou a Igreja para gáudio do Padre Bento e construiu uma senhora casa com sobrado e tudo. Andava de carro para todo o lado e vestia roupas um tanto extravagantes. Manias dos trópicos... Mas quem reparava nisso, quando o sujeito era tão mão aberta? Só uma nuvem escura toldava o sol da felicidade do Sr. Antônio. Mas era uma nuvem de volume considerável. É que a Ivone, sua senhora, não lhe dera herdeiros. Dois abortos e um pequeno que não chegara a uma semana e lá se tinham ido as esperanças de ter continuidade. E para quem deixar aquele dinheiro todo se não tinha irmãos ou sobrinhos e os primos eram todos afastados? Foi aí que entrou o Francisco. Não se sabe por obra de quem, talvez a fada madrinha, o Sr. Antônio fincou os olhos no rapaz do Manuel da Burra e decidiu que ali estava um bom moço para se investir. A aproximação não se fez esperar e logo o Antônio e o Manuel eram vistos juntos por toda a freguesia, bebendo vinho dos Biscoitos, comendo espetadas de porco ou chouriço na birosca da Madalena. Eram verdadeiros compadres. E ninguém na freguesia entendia o que o Antônio via no raio do Francisco. Era trabalhador sim senhor, comedido e respeitador. Nunca fora visto em patuscadas noturnas ou sarilhos de saias. Ia à missa com a mãe todos os domingos, cuidava da sua vidinha sem chatear ninguém. Mas era também um [40]
mosca-morta completo, não se lhe tirava duas frases de jeito. Andava quase na casa dos 30 e nem sinal de casamento. E não fora ele que perdera, por falta de iniciativa, a Susana do Firmino das Fontinhas? Nenhuma razão porém, demovia o Antônio. Meteu na cabeça que o Francisco era um rapaz ás direitas e que era ele que lhe serviria de filho e herdeiro à falta de prole própria. E lá se puseram ele e o Manuel da Burra a fazer planos e esquemas de como usar a fortuna brasileira em bons fins e de preferência bem lucrativos. Só um problema havia. O Manuel colocara no nome do filho tudo o que tinha. É que tivera pelo inverno uma pneumonia das brabas e pensara que estava a esticar o pernil, pelo que, antes que o Diabo as tecesse foi tratando da papelada com o Osório do caminho da Praia. Agora pois, para que qualquer negócio fosse tratado, era preciso que o Francisco anui-se e colocasse no papel aquele garrancho a que chamava assinatura. E aqui começou o cabo dos trabalhos. Convencer o rapaz é que eram elas. Ouvia tudo com paciência angelical e parecia concordar, mas mal o Antônio saia de sua casa Francisco voltava aos campos e ás vacas, como se sua vida não estivesse prestes a mudar completamente com o simples riscar de uma caneta barata. Ele só se sentia bem no seu ambiente. Só e sossegado no meio do gado, cheirando a erva molhada e o estrume fresco é que parecia feliz e contentado. Que isso de negócios e planos não lhe entrava bem. Foi levado a Angra para tratar da papelada, mas a viagem fora um desastre! Primeiro que o Francisco não se sentia bem nas roupas que lhe arranjaram para a ocasião solene. O sapato o apertava e a gravata o sufocava. Depois que a cidade o deixava assustado e nervoso com tantos carros e movimento. A rua da Sé lhe parecia um formigueiro humano e a praça velha uma verdadeira babel. O Pior foi ver a Susana de repente a sair de uma loja, muito bem vestida á senhora da cidade de braço dado com o marido que já era doutor desde que voltara de Coimbra. A visão o aterrara e lhe tirara o sossego e nem toda a boa vontade do Antônio ou a bonomia do Manuel o demoveram. Ele não quis saber de assinar nada sem pensar bem antes. — Mas já pensara por mais de três meses!... — reclamou o Antônio. [41]
Afinal de contas, quanto tempo é que se ia perder nisso? Não se podia ficar adiando eternamente o assunto pois tinha necessidade de andar com o negócio. O tempo das festas já se fora e havia que colocar o dinheiro a render pois não há felicidade que não acabe e fortuna que não se esgote. Novamente a indecisão do Francisco e sua falta de iniciativa trabalhou contra ele. Parecia que a tal sorte que quando sorri traz alegria a qualquer um, só podia azedar o humor do Francisco. O Pai desesperou, a mãe redobrou os rosários e as missas, o padre Bento gastou mais um bocado do seu latim e o “Brasileiro” esperou mais um tempo. Sempre que arguiam o Francisco se o negócio se fazia ou não respondia invariavelmente: — Vai-se fazendo ... Os anos se passaram. O Antônio Brasileiro lá se arranjou com um proprietário de terras da Agualva e o negócio até lhe ia bem. Produzia queijo de cabra e outras coisas e fornecia aos laticínios de Angra. O Manuel da Burra morrera, que Deus o tenha; não suportou por mais de 2 dias depois que o touro do Constantino lhe dera uma valente marrada na preparação da tourada das Lajes. A Maria o chorou a valer e passou a usar luto completo que havia de envergar até a morte. E o Francisco mantinha a vida quieta e sumida de sempre sem que nada parecesse o tirar daquela quase sonolência. A pobre mãe vendo os anos se chegarem e pensando no futuro lá resolveu tornar a atazinar o filho a ver se desta a coisa ia, pois já não lhe devia restar muito tempo. Numa tarde fria de Outono com a chuva caindo impiedosa e o vento soprando por entre as frestas da janela, esperou o Francisco com uma sopa bem quentinha e o pão de milho que ele tanto gostava barrado em manteiga suculenta. Quando o moço parecia estar se satisfazendo encheu-lhe de novo o prato do líquido espesso e revitalizante e começou: — Ó filho, tens que pensar na vida. O Francisco levantou os olhos lentamente da sopa e perscrutou a face da mãe à procura de sinais do que ela tinha preparado para aquela conversa. Não via nada que o ajudasse e tornou a baixar a cabeça para o [42]
prato. — Teu pai, que Deus o receba, já aí não está para nos valer. E eu não posso durar para sempre filho. Estou a ficar velha e cansada. O filho suspirou como que a mostrar que não estava para discussões no fim de um dia de trabalho que fora bastante dificultado pelo tempo agreste. — Tu tens vivido tua vida sossegado e não tens me dado desgostos de mais, que Deus te pague. Mas o teu feitio também não tem dado para mais. À esta altura eu já devia ter 3 ou 4 pequenos a pular à minha volta e cá estou sozinha nesta casa que mais parece um sepulcro. Já não te posso sofrer assim tão apagadinho e mudo. Ainda estás em tempo de fazeres pela vida. Olha que sabia bem ter netos antes de ir desta para melhor. Mas é preciso que te decidas a dar o passo e deixar de seres tão teimoso. Francisco não lhe respondeu. Ele nunca respondia. Ouvia sempre calado e escusava de dar trela ás conjecturas da mãe. Aprendera depois de tantos anos que se ficasse bem quieto a velhota se havia de cansar e parar de o apoquentar. Era o único jeito. Mas Maria continuava. — Tenho estado a tentar ajudar-te que só quero o teu melhor filho. Então uma mulher não há de lutar pelos filhos? Olha a Berta, viúva do Fernandinho, é boa rapariga. Já lhe acabou o luto maior e pode casar. É trabalhadora e asseada e traz o seu pequeno sempre tão limpinho que dá gosto. Mas vive com dificuldade. É uma cruz. Tu bem que podias amanhar-te com ela e todos ficavam felizes. O padre Bento já me disse que via esse arranjo com bons olhos. Tu já não podes pensar em raparigas novas, mas a Berta vinha mesmo a calhar. Não me dizes nada? A Mulher desta vez estava irritada. Desde que perdera o seu Manuel que andava desensofrida. Aquilo nem era vida nem nada. Para ouvir uma voz tinha que ser ela a falar, pois a voz do filho só a ouviam as vacas. As vezes até achava que o rapaz já perdera a faculdade da fala ou esquecera como pronunciar as palavras. Mas o Francisco não parecia se enternecer com os arroubos da mãe. Então, perdera a Susana que era uma flor de estufa e ia agora [43]
amarrar-se á Berta que coitada já vira melhores dias? Não estava tudo tão bem assim, sem mudanças bruscas, sem confusões? Agora queria ele lá um filho de outro para criar? Crianças gritam e choram e sujam tudo. Não lhe parecia bom arranjo e quando a mãe desesperada lhe perguntou se não lhe ajudava a fazer a vida melhor, respondeu lacônica e silenciosamente: — Há de se ir fazendo ... Mas dois anos se passaram, e no tempo se armar o presépio a Maria adoeceu. Não parecia coisa de monta mas já não se levantou, e mesmo o Francisco tendo vendido duas vacas para pagar as deslocações do médico de Angra já não havia o que fazer. Antes que o carnaval chegasse, já se lhe fazia o funeral e o Francisco só no mundo se afundava em sua solidão e silêncio. Nunca deixara de ser trabalhador. Não fora por falta de sorte que estava só e mal na vida. Tivera tantas oportunidades que desperdiçara que já tinha a fama e o proveito de ser o indivíduo mais perdulário da ilha e quase não o viam mais. Deixara de ir á missa. Não andava pelo povoado, não ia á tasca beber e ás vezes, nos meses de verão, já nem sequer à casa vinha de noite. Dormia nos campos, metido entre as vacas e coberto pelo capote que não deixava há anos. Por falta de alimentação correta e submetido daquele jeito ás intempéries, acabou por emagrecer. Apesar de rijo e forte e de se gabar de não ter ficado um dia sequer doente desde o sarampo que tivera aos 8; agora estava mal, com uma tosse que não o largava. A princípio achou que fosse só uma constipação. Depois atribuiu tudo a uma pancada de vento que o pegara desprevenido. Mas quando começou a cuspir sangue lembrou-se do pai e procurou descansar em casa. Foi aí que o padre Bento o encontrou numa tarde de sábado, consumido de febre e já há 3 dias sem comer. Procurou tratá-lo, mas a coisa já estava avançada demais... O Francisco morreu antes que o médico pudesse aviar a receita. Que desperdício! O velho pároco que o batizara pensava na futilidade daquela vida. Na constante indecisão do rapaz. Nunca sabia se queria ou não. Nunca se resolvia a fazer o que era preciso. Recordando o texto sagrado o padre recitou em voz alta o Eclesiastes: “Quem olha o vento nunca semeará e quem olha as nuvens nunca segará”. O Francisco fora o exemplo [44]
consumado disso mesmo e custava ao religioso ver uma vida assim perdida sem realização ou fruto. E, enquanto pensava nisso chegou ao cemitério aonde o coveiro cavava a cova do malogrado. O rapaz estava sentado encostado a uma campa fumando um cigarro de palha e pareceu ter sido apanhado de surpresa pelo visitante. — Então? — disse o cura — Essa cova é para se fazer ou que? O coveiro de sobrolho levantado e tentando um sorriso desdentado respondeu com gosto: — Ó Senhor Padre, é para se ir fazendo ... *********** Conto baseado em Eclesiastes 11:4 e 5.
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Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão...) Tenho saudades da Inocência ...Hoje fui até lá. Não sei bem o porquê. Não disse nada a Eva. Já fazia tanto tempo que não ia... No princípio passávamos por lá muitas vezes, mas a luz da espada flamejante nos mantinha distantes e ela chorava. Depois paramos de ir. Não fazia mais sentido. Mas hoje fui lá... Está tão mudado... O mato cresceu tanto que há uma verdadeira floresta onde antes havia só um belo jardim. Logo estará perdido. Bem, acho que para nós está perdido há muito tempo... Creio que queria recordar. Lembrar a liberdade, a paz, a inocência, a comunhão. Tudo parece hoje tão distante que nem me lembro mais como era. Depois que Abel morreu, ficou ainda mais difícil. O erro de tudo aquilo parecia pesar ainda sobre nossas cabeças, como se a culpa no fundo fosse nossa. Não sei se é isso que os pais devem sentir ao ver os erros dos filhos, mas é o que sentimos. Então Caim foi embora. Agora raramente ouvimos falar dele. É verdade que outro dia um filho de seu filho passou por aqui. Estranho, é homem crescido. Estou ficando velho e cansado e nem sabia. Tenho saudade! Saudade da força, da vitalidade que tinha com Deus no jardim. Ele nos perdoou mas as consequências são terríveis e mesmo o perdão não as pode apagar. Os sacrifícios aliviam, a esperança traz algum consolo, mas a comunhão nunca mais será a mesma e meu coração parece não ter parado de murchar desde aquele dia fatídico. Maldito dia, terrível dia. Tanto engano e mentira! A serpente ainda vai aparecendo de vez em quando. Já não fala, mas o veneno está lá. Tenho matado algumas, mas parecem renascer com facilidade e sua malícia não diminuiu nada com o tempo. Como fomos enganados! "Conhecereis a verdade", disse ela. Sim, mas não explicou como iríamos lidar com ela. "Sabereis a diferença entre o bem e o mal", sim, mas quem disse que teríamos a força para escolher o certo? Sereis como [46]
Deus! Ah! Como se isso fosse possível ...como se isso fosse desejável... Quanto mais o tempo passa, mais parece grande a tolice daquele dia, mais parece incrível que tenhamos caído tão facilmente. Mas, a verdade é que caímos. E o peso dessa escolha vai manchar meu nome por toda a eternidade. Multidões de gerações me amaldiçoarão ao saber como fui enganado. Ninguém estava tão habilitado a resistir... e é isso o que mais me dói. Ter caído sem necessidade. Ter caído podendo ter ficado de pé. Tenho saudades da inocência, do riso alegre e sem malícia que enchia o rosto de minha mulher, dos sonhos tão doces à noite, do trabalho tão recompensador, da natureza tão amiga. Saudades da sensação de pureza e santidade que me enchia cada vez que o Criador vinha nos visitar. Aqueles momentos eram tão plenos. Sua presença era a razão de toda a existência, o motivo da vida, a causa de nos sentirmos desfalecer com sua ausência. Não se pode mesmo viver sem a Sua presença. Simplesmente tudo deixa de fazer sentido. A chama se apagou e não encontro maneira de acendê-la novamente. O céu parece sempre escuro e fechado. Não creio que o Criador tenha deixado de nos amar. Posso ver seu cuidado de muitas formas. No entanto, a relação não pode ser a mesma. Quebrei sua confiança, que fora total. Falhei no único ponto em que Ele me pôs à prova. Dei um voto de desconfiança em sua provisão, logo naquilo em que sua prodigalidade fora tão evidente. Sinto saudade da harmonia, da paz! Agora parece que não passa um dia sem que eu discuta com Eva ou um de meus filhos ou netos. É que com o conhecimento do bem e do mal nos veio uma incrível, incontrolável e permanente vontade de julgar os outros. Julgar o que fazem e o que não fazem. Dizer se é bom ou mal. Mas nossos julgamentos falham justamente por falta de conhecimento. Sim, nosso conhecimento é tão limitado! Conhecemos pouco dos outros, de suas razões e motivos. Conhecemos pouco de nós mesmos, de nossas verdadeiras razões e motivos para julgar. Conhecemos pouco sobre o próprio ato de julgar e por isso os julgamentos falhos nos levam a tantos conflitos e injustiças. Sinto saudade da liberdade! E é tão estranho. Lá no jardim havia limites que Deus colocara. Mas eu me sentia tão seguro, tão confortável, tão protegido! Foi só quando saímos dos limites e aparentemente podíamos fazer o que desejássemos com nossas vidas é que notei que a [47]
liberdade se fora. Compramos uma ilusão, um engano e pensávamos que estávamos nos libertando, quando na verdade estávamos entrando direto numa escravidão que parece não ter saída. Como sinto saudade do sono bem dormido do jardim! Da sensação de plenitude e satisfação. Esta vida que ganhamos não consegue trazer isso. Durmo sempre preocupado com o dia de amanhã. Sob o peso das necessidades da família. A responsabilidade de ser o que todos esperam que eu seja: O líder, o chefe, aquele que sabe. E no entanto, acho que todos já perceberam que, por trás de meus olhos murchos e barba branca, eu sei tanto quanto eles. Que estou tão perdido quanto eles. Tão arrependido e só quanto qualquer outro. Insatisfeito e cansado... No jardim não sentíamos dor e não sabíamos o que era solidão. A presença do Criador era tão completa e constante que enchia o dia e a noite como um doce perfume que sentimos sempre no ar, mesmo sem saber de onde vem. Mas o perfume se foi... Descobrimos que é possível alguém sentir-se só. É possível se ter medo. É possível morrer! Coisa estranha a morte. Não deveria trazer tanto medo, mas chego à conclusão que ela é tão terrível porque é contrária à nossa natureza. Fomos criados pela Fonte da Vida para termos vida. A morte é tudo que a vida não é. Fria, vazia, sem razão, quebrando a continuidade, separando, rasgando, silenciando de uma vez. Sei que vou morrer! Não sei quando nem como, mas isso talvez não seja tão importante quanto saber para quê. Sim, para que morrer? Por que motivo? Para onde? E é isso que mais me assusta. Sinto saudade da inocência, da justificação! De poder estar em pé diante de Deus sem vergonha ou receio. De sentir-me digno, puro, perfeito. Resta hoje só o sonho, a esperança. O eco daquelas palavras: “esmagará a cabeça da serpente”. E é esse sonho distante, que nem entendo bem, que me faz caminhar e olhar adiante com alguma expectativa. Cada criança que nasce me traz a pergunta: Será este? Cada dia que passa me traz a certeza: estamos mais perto dele. E pelo dia da redenção anseio, por ele vivo, creio que por ele morrerei. Nesse dia viverei novamente e então, só então, deixarei de sentir saudades do Paraíso. *********** Baseado em Gênesis 3. [48]
A SERPENTE DE BRONZE Milca acordou cedo como fazia todos os dias. Eram as responsabilidades da mãe da família. Seu marido ainda dormia e os filhos demorariam algum tempo até despertar. Ela cingiu-se e tomou um cesto feito de vime bem largo, mas pouco fundo. Era a medida exata para a alimentação da família durante um dia normal de semana. Com gestos mecânicos, produto do automatismo do hábito diário, ela saiu da tenda. Estava ainda clareando no gigantesco arraial de Israel. Milhares de tendas com milhões de ocupantes no meio do deserto, no caminho do mar vermelho. Estavam nos limites da região de Edom. Tinham deixado para trás o monte Hor aonde Arão morrera e fora enterrado por ordem de Deus. A tenda de Milca ficava a meio do arraial da tribo de Dã no extremo nordeste do acampamento de Israel segundo a disposição das tribos que Moisés ordenara por orientação divina. A mulher aproximou-se de outra tenda e chamou com voz baixa: — Lia esperou pouco tempo e outra mulher surgiu do interior desta tenda com um largo sorriso nos lábios e olhar brilhante. — A Paz seja contigo — saudou a recém chegada. — E contigo seja a paz — retribuiu Milca. Ela e Lia eram companheiras e amigas desde a infância. Criadas no Egito ainda lembravam-se da terra do cativeiro. Casaram-se no deserto quase no mesmo dia e já embalavam os netos apesar de terem pouco mais de 40 anos. A amizade era algo tão natural que já não sabiam viver sem a outra ali ao lado, na tenda vizinha. Todos os dias iam juntas buscar o maná que Deus dava para a alimentação do povo no deserto. Era uma tarefa rotineira que permitia iniciar o dia com uma boa conversa. As duas seguiram em direção ao alimento por entre outras tendas armadas na vizinhança trocando pequenas informações pouco importantes da vida das respectivas famílias. A região era árida e pedregosa. Um vento quente e seco soprava [49]
quase continuamente de leste e trazia com ele um cansaço fora do normal. A respiração parecia mais difícil neste clima inóspito e baixo desse calor opressivo. Mas a verdade é que já não se lembravam de quando não estavam no deserto caminhando de um lado para outro. Fora do arraial pararam. Lá estava o pão do céu como todos os dias. Uma camada de farinha amarelada, quase dourada, fina e fácil de recolher que cobria a região de forma milagrosa todas as manhãs sem falha. Cada família devia tomar o suficiente para o dia sob pena de perder o excedente que se estragava no dia seguinte. A única exceção era a sexta-feira. No Sábado não havia maná, mas a dose dupla recolhida na Sexta não se deteriorava. Tudo isso, prova tão inequívoca do cuidado divino, parecia Ter perdido sua importância para o povo. Á força de ver o milagre se repetir semanas e meses a fio o tornavam banal e até cansativo. — De vez em quando não tens vontade de comer uma coisa diferente? — perguntou Milca parando de colher por um instante. — Como assim? — estranhou Lia. — Comer comida de verdade. Comer algo fresco, bem suculento. Ainda não esqueci as frutas que tínhamos no Egito. A carne gostosa que é tão rara aqui no deserto. A água em abundância, o pão e os bolos dos padeiros egípcios. Estou farta de maná. São a mesma coisa todos os dias. — Mas que mais poderíamos pedir no deserto? Esta é uma prova do cuidado de Deus. Nunca nos faltou alimento. Não devemos desprezar um milagre assim. Lembra só da quantidade de gente que se alimenta disto todos os dias. — Sim... Todos os dias, e sempre o mesmo. E porque é que não saímos deste maldito deserto? Já vão mais de 30 anos andando aqui de um lado para outro. Às vezes acho que Moisés não sabe o que fazer. Não sabe para onde vai. — Não podes dizer isso. — reclamou Lia séria — Ele é o profeta de Deus. Além disso, é o Senhor que nos guia através da nuvem e da coluna de fogo. Não é Moisés que escolhe o caminho. — Pois Deus poderia Ter algo melhor a nos dar. Afinal é Deus só no [50]
deserto? — Milca! Não fale assim! Já te esqueces-te de como o Senhor nos tirou do Egito? Ainda há poucas semanas não fomos vitoriosos sobre o Rei Arade dos cananeus? Não tomamos suas cidades? — E porque não ficamos nelas? Não eram melhores que o deserto? — A isso não posso responder, mas a verdade é que o Senhor sempre nos protegeu e nos guiou bem. Não é agora que vou começar a duvidar dele. — Pois eu não sou tão passiva como tu. Não vou ficar o resto da minha vida neste deserto. Já viste que quase toda a força adulta que saiu do Egito morreu neste deserto? Foi para isso que Deus nos tirou da escravidão? — Milca, tu sabes a razão — protestou Lia ainda com paciência — Fomos nós que tivemos falta de fé e deixamos de confiar no Senhor quando era hora de conquistar Canaã. Foi essa a promessa do Senhor, que a geração adulta morreria. — Mas começo a achar que nós também não vamos chegar a viver em Canaã. E está tão perto! — Deus tem seu tempo. Milca calou-se. Gostava tanto de Lia, mas às vezes não se entendiam. A amiga era tola e ingénua. Acreditava em tudo que Moisés e os levitas falavam. Afinal, havia que questionar um pouco. Porque eram os sacerdotes tão especiais? Não eram da família de Moisés? E Levi não era a sua tribo? Muito conveniente para Ele que ficassem na direção do povo... Lia também se manteve quieta. Ficava triste com a rebeldia de Milca. Era uma mulher trabalhadora e boa mãe, mas parecia não se submeter à lei de Deus e cumpria tudo mecanicamente. Não conseguia entender o valor do Senhor de Israel. Estava sempre a murmurar e a se lembrar do Egito. Alimentava seus ressentimentos constantemente. A tarefa da recolha de maná acabava. Por todo o deserto à volta do [51]
acampamento viam-se pessoas recolhendo a sagrada farinha para seus familiares. As duas mulheres colocaram os cestos na cabeça e partiram em direção ás suas tendas ainda sem falar. Já perto de casa foi Milca quem quebrou o silêncio. — Acho que alguém deveria falar seriamente com Moisés sobre esta situação. Isto tem que acabar. Lia preferiu não responder. Já aprendera que não valia a pena argumentar com Milca, pois o que ela decidia estava decidido e pronto. As duas se separaram e o dia correu normalmente. Surgiu um boato de que um grupo de líderes tinha reclamado com Moisés sobre o maná e a constante permanência no deserto. Não constava que o homem de Deus tivesse respondido. Manso e sereno como sempre, deixara para Deus a resposta, pois na verdade era para o Senhor a questão. E a resposta veio mais depressa do que se poderia prever. Subitamente, sem que soubessem dizer de onde, começaram a surgir serpentes abrasadoras cuja picada era extremamente dolorosa. Os répteis pareciam brotar do nada e não havia lugar seguro. Estavam por toda a parte. Dentro das tendas. Por baixo das caixas e esteiras, no interior dos cestos e panelas de barro, no meio da areia, atrás das pedras. O povo estava totalmente vulnerável. As estórias de picadas fatais começaram a propagar-se à medida que crescia o número de pessoas mortas pelo veneno das cobras. O quadro era tétrico e aterrador. A pessoa era normalmente surpreendida pelas serpentes e atacada com violência sendo mordida uma ou mais vezes. Ao fim de dez minutos o local da mordida estava inchado por vezes em forma de bolha e com perda de sensação. A partir desse local se espalhava uma dor fina e aguda. A pessoa se mostrava em pânico e por vezes mesmo histérica. Em menos de meia hora estava corada, tonta ou até com vertigens e vomitando á medida que a tensão arterial descia. As vítimas então se queixavam de opressão no peito com dificuldade de respirar e alguns apresentavam febre. A pele no local da mordida ia ficando pálida e com mau cheiro indicando necrose. A pessoa ficava prostrada e começava a sangrar pelo nariz, gengivas e olhos. Normalmente em menos de duas horas estava já inconsciente e morria antes de completar três horas. [52]
Todos os esforços para fazer parar essa evolução eram fúteis e o número de mortes cresceu em poucos dias junto com o temor das serpentes incutido no povo por todo o arraial. Constava que apenas na região da tribo de Levi perto do tabernáculo é que as serpentes não atacavam. Alguns homens tentaram organizar grupos de caça aos répteis, mas os resultados tinham sido muito fracos, pois as cobras pareciam proliferar mais a cada dia e vários dos caçadores tinham tido a mesma sorte das vítimas incautas. Em todo o acampamento o clamor era um só, e o reconhecimento do pecado crescia à medida que aumentavam os casos de fatalidade entre o povo. Milca e Lia também sofriam com esta situação. Também elas haviam visto as serpentes abrasadoras e tinham escapado por pouco de suas picadas mortais. Não podiam evitar a preocupação e, no entanto nada restava ao povo senão pedir a misericórdia de Deus. Era novamente manhã e as duas amigas recolhiam como sempre o maná cotidiano tão providencial. Nesta manhã, porém, estavam mais caladas do que habitualmente. — Ouviste sobre o Abiel? — perguntou Liz a meia voz. — Quem? O marido da Tamar? — tentou localizar Milca. — Sim, esse mesmo. — confirmou Lia — Foi picado ontem à tarde. Dizem que durou ainda menos que os outros. Milca abanou a cabeça indignada e como sempre reclamou: — E será que ninguém vai fazer nada a respeito disso? Vão simplesmente assistir ao povo sendo envenenado e morrendo? Que espécie de líderes é que temos? — Mas já fizeram. — respondeu Lia — Não ouvistes? — Ouvi o que? Sobre o grupo que foi a Moisés? — Fazer o que? [53]
— Confessar o pecado do povo e pedir a Ele que intercedesse por nós a Deus. Afinal foram as nossas murmurações que trouxeram as serpentes. Foi um castigo para nossa rebeldia e ingratidão para com o Senhor. — Lá estas tu outra vez. — reclamou Milca — Mas o que foi que Moisés respondeu? — Ele orou a Deus. — Como sempre... — E o Senhor respondeu. Será que ninguém te contou? — Não ouvi nada. — Bem, o que me disseram ontem à noite é que Deus deu a Moisés a incumbência de fazer uma serpente semelhante as que andam por aí e colocá-la sobre uma estaca. Dizem que todo aquele que for mordido por uma cobra e olhar aquela serpente viverá. Moisés então uma serpente de bronze e a levantou lá no arraial de Levi perto do tabernáculo. — Essa é a solução? — disse Milca indignada — Então não havia coisa melhor a fazer? Porque não nos deu Moisés um remédio fácil que nos cure dessas malditas mordidas. Porque não nos deu um veneno que mate as cobras ou armadilhas para as apanharem? Porque não vamos embora deste deserto horrível onde moram estas cobras? Ou então, já que Moisés é tão íntimo de Deus, porque não ora simplesmente e pede a Deus que acabe de uma vez com essas cobras? Milca parecia enfurecida. Sua rebeldia crescia de dia para dia em vez de diminuir. O castigo pelo pecado de que ela também era culpada parecia não Ter lhe trazido qualquer convicção de pecado. Apenas queria o lado bom da aliança, as bênçãos. Não estava disposta a suportar a parte da obediência e do compromisso. Esbravejou mais um bocado sobre o ridículo que lhe parecia ser a solução de Deus por Moisés e então parou de falar. — Bem — iniciou Lia com calma — não sei bem porque o Senhor deu [54]
essa solução a Moisés, mas foi o que ele mandou. Ele é nosso Deus e devemos obedecê-lo. — Pois me parece uma solução bem pouco criativa e muito inconveniente para nós! — Mas é eficaz segundo dizem. Já esta manhã eu mesma ouvi de pessoas que foram mordidas e olharam a serpente de bronze e ficaram curadas. — Mas teve que se deslocar uma distância enorme até o local da estaca que está convenientemente dentro do acampamento de Levi. Para nós são quase cinco quilômetros. — No entanto, é isso ou a morte! — Não sei se é tão simples assim. Duvidas de Deus? — Talvez de Moisés e seus artifícios. — Ele sempre nos guiou bem... Milca calou-se. Mais uma vez preferia ficar com sua opinião e deixar a amiga piedosa pensar o que quisesse. Ela é que não queria ouvir falar de andar até o tabernáculo por causa de uma mordida. Aliás, ela era cuidadosa e não seria picada. Não tinha nada a ver com a ralé do povo que mais precisava mesmo era de um corretivo. A tarde chegou e o sol declinou trazendo o início da noite. Lia foi preparar a refeição noturna e assim que acendeu o fogo uma pequena serpente pulou das chamas e a mordeu na mão. Ela gritou de dor e abafou a mão com um pano enquanto via a cobra fugir por baixo da tenda para fora. Primeiro se desesperou com a dor local e o inchaço. Colocou a mão na água e tentou esfregá-la, mas a dor crescia e parecia se espalhar pelo braço até o ombro ardendo muito na axila. Ela estava sozinha em casa e não hesitou. Tomou um archote e saiu. Mal saíra encontrou o marido de Milca que a procurava. A amiga acabara de ser picada e pedia ajuda. Lia mostrou a mão que começava a inchar visivelmente ao homem horrorizado. Na entrada da tenda de Milca ela surgiu arrastando a perna e a mancar um pouco. [55]
— Eu vou até a serpente de bronze — declarou Lia com resolução na voz. — Fui picada no pé, não posso andar — reclamou Milca. — Posso te carregar. — disse o marido solicito — Peço o burro do Jacó emprestado. — Não — respondeu Milca peremptória — Vou colocar um remédio egípcio contra mordida de cobra que me ensinaram hoje à tarde. Dizem que é muito bom. — Milca — Lia falou contendo a dor — O único meio é a serpente de Bronze. — Então vai andando — desdenhou a outra e se virou entrando na tenda. Lia tinha lágrimas nos olhos. Por um lado por causa da dor que sentia, por outro porque sabia que Milca estava arriscando demais. Mas a verdade do momento é que ela não podia parar para discutir. Tinha que tratar de sua própria situação, que era tão grave e urgente quanto à da amiga. Ela começava a se sentir fraca e um pouco tonta. Tinha náuseas e dificuldade em caminhar, mas seguiu em direção ao centro do arraial. De longe se podia ver a gigantesca tocha de fogo que pairava sobre o tabernáculo durante a noite e iluminava tudo em redor. Para Lia aquela presença significava a prova da realidade de Deus e de seu interesse no povo e nesse momento isso era uma parte importante da esperança que a movia para além das dores. Ela caminhava com dificuldade e cambaleante. O braço estava pior. Parecia como se toda a pele fosse saltar a qualquer momento. Cada passo agravava sua dor, numa agonia que crescia de intensidade rapidamente. Pelo caminho podia ver pessoas que na mesma situação que ela se arrastava em direção ao salvamento anunciado. Outras eram carregadas e em muitos locais ela podia ver os sinais de luto com gente chorando e [56]
se lamentando por alguém que não tivera tempo de chegar à serpente de bronze. Já perto de perder os sentidos Lia avistou a estaca com a cobra forjada por Moisés. Estava bem alta e era iluminada pela tocha da presença de Deus. Não era bonita. Não era nenhuma obra de arte. Não era um nenhum sentido aparente, especial ou diferente. Apenas uma tosca imagem de serpente sobre uma estaca de madeira. Ao olhá-la Lia não sentiu nada de especial. Nem notou que a dor diminuísse. Mas ela creu! Ela creu firmemente que aquele era o caminho que Deus preparara e que estava curada, apesar de, no momento, não sentir nenhuma melhora. Sentou-se um tempo na areia ainda quente do dia e olhou o estranho símbolo da cura divina para o povo. Começou então a chorar. Primeiro de forma suave, depois copiosamente. Chorava não de dor ou de alivio, mas de arrependimento. Sentia a maldade do seu pecado e do povo. A murmuração e rebeldia a incomodavam mais que a picada e o braço edemaciado. O choro durou bastante tempo. Ela prostrou-se no areia confessando seu pecado e pedindo perdão. Por fim, sem ter a noção de quanto tempo se passara, levantou-se com esforço e começou o caminho de regresso para sua tenda. Nada mais havia a fazer. À medida que caminhava percebeu que os passos já não eram tão dolorosos. O braço já estava claramente menos inchado e movimentava os dedos mais facilmente. Um pouco mais adiante e já não tinha aquela dor, podia respirar normalmente e sorvia grandes golfadas de ar como que redescobrindo o valor de um fôlego normal. Começava a sentir uma alegria enorme, uma paz profunda. Sabia que estava curada! Antes que pudesse racionalizar o sucedido encontrou-se correndo em direção à sua tenda. Precisava contar a Milca que a salvação estava lá, tão perto, tão fácil, tão gratuita. Tão completa! Porém, ao chegar à tenda da amiga encontrou seu marido em prantos no lado de fora com a roupa rasgada e o cabelo desgrenhado. De dentro da tenda vinha o choro metódico e lamuriento das carpideiras e os soluços sinceros dos filhos de Milca. [57]
Ela não precisou perguntar para saber o que sucedera. O remédio egípcio falhara. Lia estava viva e Milca... Morta. *********** Baseado em Números 21:4-9.
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O PURO Um homem de trajes finos e elegantes, testa alta e olhos vivos andava pela zona da doca apreciando a vastidão do Porto. Cesaréia, construída por Herodes em honra de Augusto, tinha um porto tão vasto quanto o de Atenas e o observador conhecia-o bem. Pelos trajes aparentava ser gentio, provavelmente grego. Pela análise de seus pertences se depreendia ser ele médico. Examinou a formidável muralha de 66 metros de largura. A entrada do porto era magnifica. A cidade localizava-se na Palestina mas era culturalmente grega em sua concepção, com direito a teatro, anfiteatro e sistema de esgotos. O homem caminhou por ruas perpendiculares e entrando numa casa modesta foi recebido por um criado num aposento singelamente mobilhado. Nada ali indicava que estivesse na casa daquele que fora um dia um dos homens mais ricos da Judéia. Havia dois divãs simples. Uma pequena mesa com algumas frutas num cestinho de palha e um tapete bastante gasto. Nas paredes pendiam lâmpadas de azeite usadas pelo povo em geral. Nenhum sinal de abastança ou luxo. O médico sentou-se de manso com seu olhar atento, buscando cada pormenor do local, como se isso o pudesse ajudar a caracterizar o dono da casa. Logo entrou quem ele esperava. Era um homem deveras pequeno. Apenas um metro e meio, pois não chegava nem ao ombro do grego e este não era alto. O recém chegado fez uma vênia curta e com franco sorriso saudou o visitante: — A paz do Senhor esteja contigo, irmão Lucas! — E contigo ela permaneça, irmão Zaqueu! Beijaram-se no rosto e estreitaram-se nos braços um do outro como velhos amigos apesar de ser a primeira vez que se viam. Zaqueu mostrou o divã convidando Lucas a sentar-se e foi se instalar no outro ali presente. Ambos se olhavam com um misto de curiosidade e satisfação. — Que novas tendes do irmão Paulo? — quis saber Zaqueu. [59]
— Oh, está bem. — replicou Lucas sorrindo das lembranças — E muito atarefado como sempre. O zelo do Senhor o consome e vive intensamente os problemas de cada igreja qual pai que se apoquenta com o crescimento dos filhos. — Ele é um vaso escolhido, — concordou Zaqueu — um vaso de honra para o Senhor. O médico abanou a cabeça e por uns poucos instantes deixou se levar pelas inúmeras recordações incríveis que já colecionava do tempo passado ao lado do corajoso apóstolo. Depois, abrindo muito os olhos, pareceu querer retornar com vivacidade ao local e circunstâncias presentes. — A que devo esta alegria de recebê-lo em minha casa? — Bem — principiou Lucas— , tenho tentado reunir o maior número possível de relatos sobre nosso Senhor. É meu intuito produzir uma narração cuidadosa e acurada dos fatos para que fiquem guardados e sirvam de base para a fé daqueles que não puderam ser testemunhas da vida do Mestre. Para isso tenho conversado com vários irmãos que estiveram com Jesus. Assim, ouvi de Pedro a história do encontro do Senhor com o irmão e me despertou muito interesse. Gostaria pois de ouvir de primeira mão como se deu tal acontecimento. O antigo publicano sorriu novamente, desta vez com nostalgia. Endireitou-se no seu divã, como que para melhor recordar e suspirou, envolvido pela memória de dias inesquecíveis que transformaram sua vida. — Devo começar um pouco atrás... — sugeriu então, perante o olhar atento de Lucas — Na verdade acho que começou quando eu ainda era garoto. — Sabe, sempre fui de pequena estatura, e quando se é menino isso pode ser um grande embaraço. Raramente podia me envolver nos folguedos próprios dos da minha idade e as constantes provocações por causa de minha altura eram como que punhais que se cravavam em meu coração juvenil. Aos poucos, me tornei uma criança amarga e solitária. O homem suspirou lentamente e continuou: [60]
— Lá pelos meus doze anos, conheci um escriba renegado que usava seus conhecimentos só para escrever, ler cartas e preparar recibos. Abandonara o trabalho de fazer cópia das escrituras porque a julgava tediosa e pouco lucrativa. Dele acabei aprendendo muita coisa. Era um homem rejeitado e meu coração se identificou com o dele. Cresci então perito em contas e manuscritos o que me foi muito útil mais tarde. Para tristeza de meus pais me fiz cobrador de impostos. Meu domínio da matemática me permitiu acumular os lucros e logo estava bem de vida, muito além do que meus pobres pais poderiam ter imaginado. É claro que recebia o escárnio do povo que me considerava um traidor, mas não fui sempre um rejeitado? Antes um proscrito rico que um miserável! Era o que pensava. Cresci em riqueza até que, por fim, fui até à cidade onde morava o romano que detinha o controle dos impostos sobre Jericó. Ofereci a ele lucros maiores do que os que obtinha e consegui assim a posição de chefe dos publicanos da cidade. Comprei uma grande casa, casei-me com uma mulher muito bela, vestia-me luxuosamente e possuía várias montarias de boa qualidade. Gostara de oferecer festas de gosto refinado. É que Jericó, nessa altura, produzia grande quantidade de bálsamo que vendíamos a preço de ouro. Isso trazia à cidade muitos comerciantes e redobrado lucro. Era a situação ideal para um cobrador de impostos esperto e com poucos escrúpulos. Ah, é verdade que tinha então muitos "amigos", daqueles que costumam cercar os ricos em qualquer lugar do mundo. Amigos de verdade apenas um. Publicano também, que progrediu comigo e a quem considerava como meu braço direito. Foi esse amigo que me surpreendeu um dia, me dizendo que ia deixar o serviço de cobrador de impostos. Fiquei intrigado... Propus-lhe novos lucros, melhor posição, mas recusou tudo! Não podendo dissuadi-lo, tentei obter dele a causa de tão abrupta mudança. E foi ele quem me falou de Jesus. Ah, sim, é claro que já ouvira falar de Jesus. As estórias mais mirabolantes corriam a respeito dele. Curava cegos e paralíticos, purificava leprosos, expulsava demónios, multiplicava o pão. Ouvira já [61]
de tudo um pouco. Não me era indiferente, mas sabia o quanto o povo tem tendência para exagerar. Além do mais, Jesus era um rabi! um mestre! Eu bem sabia que os líderes religiosos nada queriam com os publicanos. E foi essa a novidade que meu amigo trouxe e que deveras me abalou. Ele contou-me que o Mestre era amigo do povo. Sentava-se e comia com publicanos e pecadores, aceitava a aproximação de mulheres de vida duvidosa. Tinha inclusive um discípulo que fora publicano na Galiléia e que havia deixado tudo para o seguir. O ensino dele era diferente de tudo o que já ouvira. Não falava de lei como os sacerdotes e os fariseus. Não impunha ao povo um jugo maior do que podiam suportar. Falava de amor, de mudança de coração, de aproximação de Deus... e estas coisas, ditas por ele, não pareciam mensagens distantes, mas traziam uma autenticidade tão clara e distinta quanto a brisa fresca que vem do mar e desperta os sentidos. Meu amigo deixou Jericó para ir atrás do Mestre e eu fiquei com o coração em agitação. Algo havia mudado em mim depois do seu testemunho. Já não me satisfazia com o acumular de riquezas. Tentei as coisas que habitualmente me traziam prazer... Dei festas, comprei novas roupas, troquei de cavalos, passei horas a fio contando meu dinheiro, mas nada. Havia um vazio crescente em meu ser que parecia estar prestes a me engolir. Nunca antes tinha me apercebido o peso do significado do meu nome: Zaqueu, o puro. O simples mencionar de meu nome me irritava e deixava de mau humor. Parecia uma verdadeira sátira, um escárnio ainda maior. Sentia que só a religião poderia me ajudar. Então recorri aos sacerdotes. Muitos deles moravam em Jericó, aguardando sua vez de servir no templo. Porém, nenhum me recebeu. Davam as desculpas mais diversas, desde não poderem dispor de tempo até o se esconderem de mim. Parecia que eu era mais pernicioso que um leproso. Foi o velho escriba, o que me servira de professor nos tempos de garoto, que me explicou tudo mais claramente. Eu era um desgraçado! Estava destinado ao inferno e não interessava o que fizesse. Os sacerdotes não podiam se aproximar de mim porque perderiam a pureza ritual e teriam que gastar tempo e dinheiro na purificação antes de poderem servir no templo novamente. [62]
Naquele momento, senti o peso de minha condenação muito mais do que antes. Eu era uma espécie de praga contagiosa de quem os homens deviam fugir. O próprio Deus não tinha espaço para mim. Sentia o que Caim sentiu ao ser expulso da presença do Todo Poderoso. Apoderou-se de mim um desânimo tão completo que passei dias sem comer e caí numa prostração sem precedentes. Então um dia ouvi... Jesus ia passar por Jericó! Se tivesse sido atingido por um raio não teria me iluminado mais! De repente, uma espécie de esperança febril tomou conta de mim. Não conseguia me dominar. Era ele! O mestre que recebia publicanos! Talvez, apenas talvez, houvesse ainda alguma saída para mim, alguma hipótese de reconciliação. Saí de casa quase desorientado. Estava determinado a vê-lo custasse o que custasse. Corri, andei de rua em rua perguntando. Enfim, lá estava a multidão e lá estava eu, o anão de Jericó. Como iria vê-lo no meio de tanta gente? Empurrei e fui empurrado. A má vontade do povo era geral. Desse jeito nunca o veria! Fiquei quase desesperado. E quando a angustia já se apoderava de mim divisei o plano. Correria à frente da multidão para me posicionar. E assim o fiz. Mas, logo vi que não seria suficiente. O grupo que o cercava era enorme. Havia muita gente em peregrinação a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Iriam me engolfar, qual onda gigante. Não havia solução! E foi aí que vi a árvore! Um sicômoro de frutas doces e saborosas. Os ramos eram largos e baixos. Daria para subir. No entanto, as roupas dificultavam; puxei-as para cima. Deve ter sido uma cena bem ridícula! Imagine eu, o chefe dos publicanos, o homem mais rico de Jericó, com as pernas magras aparecendo, trepando numa árvore como se fosse um garoto e ainda mais diante de tal multidão! Mas não me importava. Só queria vê-lo... Precisava vê-lo! Zaqueu parou de olhos fechados, como que a rever a cena. A emoção que o dominava era viva e forte. A recordação daquele dia sempre tinha esse efeito nele. Não podia evitá-lo. Lucas não despregava os olhos dele, bebendo suas palavras e cada gesto retendo bem na memória a emoção do ex-publicano, pois assim iria narrar ao mundo. Com longo suspiro e uma expressão de êxtase no rosto Zaqueu continuou: [63]
— Ele era tão simples... não parecia nada de especial. Um homem com o aspecto como o de qualquer outro. Não era alto nem baixo, nem feio nem bonito. O cabelo, a barba, a cor da pele exatamente como a de tantos outros na multidão. As roupas pareciam humildes e gastas. Mas os olhos... ah! Aqueles olhos! Esses sim, eram inigualáveis! Não pela cor ou tamanho, mas pelo que transmitiam. Olhar em seus olhos era ver a eternidade, o amor, a paz, a salvação da alma! Mirar em seus olhos era como deixar este mundo e ser envolvido pelo divino, ser tocado em plena alma, perdendo para sempre o coração. — Havia risos na multidão. — continuou Zaqueu depois de um momento de emoção — As pessoas apontavam para mim e riam. O meu nome ia passando de boca em boca, num escárnio que era tão bem conhecido, mas que dessa vez não me afetava, pois só conseguia olhar para ele. E ele parou... Parou bem embaixo da árvore. Ergueu os olhos e encontrou os meus. Senti-me desnudo! Como se num simples e curto olhar ele pudesse ver o meu interior, cada pensamento, cada motivação, cada ato passado e futuro. Senti meu rosto se encher de calor, fiquei vermelho de vergonha e ouvi sua voz qual melodia dizer-me: — Zaqueu, desce depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa! Praticamente caí da árvore aos seus pés. Era verdade, afinal! Ele recebia os publicanos. Não era mais um enfatuado fariseu ou sacerdote hipócrita que temia a impureza do povo. Ele era mestre, de verdade! Sua pureza era tal que não temia o contato com o pecado alheio. Podia sentir que não apreciava meu pecado mas que se interessava por mim. Como resistir a isso? Como resistir a alguém que mostra se interessar por quem eu sou e não apenas pelo que posso fazer em seu benefício? Por mais que viva, jamais me esquecerei aquelas poucas horas que ele passou em minha casa. Lembro de cada gesto, de cada palavra, de cada olhar. Não que fossem diferentes ou especiais em si, mas porque naquele dia Deus sentou-se à minha mesa. O mesmo Senhor que eu julgava distante e que pensava que já me condenara inexoravelmente estava ali, partilhando o meu pão, sentado ao meu lado. Senti naquele dia que por ele seria capaz de tudo! Se tivesse ordenado que me matasse, [64]
te-lo-ia feito com prazer! Mas ele não queria sacrifício. Queria que vivesse. Queria que experimentasse o seu amor e o transmitisse. Quando o extravasar do seu perdão me encheu, percebi o quanto fora fútil acumular riquezas. Já não precisava de nada daquilo para ser feliz. Já não me importava com a aprovação do povo ou o escárnio da plebe. Queria apenas a sua aceitação e essa era total. Propus dar metade de meus bens aos pobres. Sabia que era preciso repor o que obtivera de cobranças exageradas dos impostos. Nada disso foi sacrifício para mim. Era o mínimo que podia fazer, depois de tanto que recebera. O mestre me dera a vida! Tudo que podia fazer era vivê-la para ele. Suas palavras de aprovação estão gravadas em meu coração. Ele disse: “Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão". E com estas palavras ele me deu a aprovação, a aceitação e a inclusão que desejara toda a minha vida! Eu estivera mesmo perdido, destituído, sem rumo e ele me redimiu! Lágrimas enchiam os olhos do pequeno homem e contagiavam também a Lucas. Não era possível ouvir este testemunho sem se emocionar. Quantas vezes desde o princípio de seu trabalho já o médico amado se deixara comover pelas estórias de cada pessoa que foi tocada pelo amor de Jesus. Zaqueu era apenas mais um. Mais um exemplo desse amor salvador, incondicional, que não conhecia barreiras, que não media esforços, que conquistava, dominava e transformava. E de transformação falava agora o antigo publicano. — Os dias seguintes foram de autêntico frenesim. Em pouco tempo já havia distribuído a metade de meus bens entre os pobres da cidade. A notícia que se espalhou foi que eu enlouquecera e estava jogando fora minha fortuna. Pessoas das localidades vizinhas vinham à minha porta a toda hora do dia e da noite pedindo auxílio. E eu dava liberalmente a quem me pedisse. Nunca experimentara o prazer de dar. Quanto mais nobre e gratificante é do que o gozo de acumular. A expressão no rosto daqueles a quem devolvia o que lhes tirara de forma desonesta era tal que me enchia de vontade de dar mais e mais. É claro que as consequências não se fizeram esperar. Os amigos por interesse se foram. Minha mulher me abandonou. E por fim, como já não [65]
pudesse manter o nível de lucros de antes, perdi a posição de chefe dos publicanos e já pouco possuía. No entretanto, soube que Jesus, meu mestre havia sido morto pelos líderes religiosos e ressuscitara. Ouvi dos seus dias e seu trabalho e como voltou ao céu. A igreja cheia do Espírito Santo crescia em Jerusalém. Decidi então me juntar a Pedro e aos demais apóstolos e participei do evoluir desse trabalho celestial. Depois de muito aprender, me acharam digno de ocupar o cargo de ancião da igreja aqui em Cesaréia. Tenho tentado me manter fiel ao Senhor nesta tarefa, mesmo sabendo que não sou digno de sua graça absoluta. Aguardo o regresso do Mestre com ansiedade, pois estar com ele é tudo que mais desejo! O sorriso de paz e harmonia estava de volta ao rosto do ancião depois deste relato sobressaltado de emoções. Lucas tinha sua história e mais um relato dos feitos extraordinários de Jesus. A maneira como transformara a vida deste homem era mais um exemplo do que fizera na vida de tantos e o médico sentia crescer seu apreço e amor pelo Senhor. Deixou a casa pouco depois e parou junto ao porto, respirando fundo o ar salgado que vinha do Mediterrâneo. Seguiria com seu trabalho de coletar dados para a sua narração, mas, com Zaqueu, mais uma vez, sentira a emoção de ter estado praticamente aos pés de Jesus! *********** Baseado em Lucas 19:1 a 10 e na tradição que afirma ter sido Zaqueu discípulo de Pedro e ancião da igreja em Cesaréia.
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NICO, O VALENTÃO Ele era um formigão famoso em todo o formigueiro, apesar deste ter algumas centenas de milhares de elementos. Seu tamanho e porte, sua cabeça enorme em forma de ampola e as mandíbulas desenvolvidas não deixavam dúvida de que pertencia à casta dos soldados e era conhecido por Nico, o valentão. Nico era um formigão conhecido pela força e dedicação cega ao trabalho. Era um líder no seu meio. Sua capacidade de liderança e sua cabeça fria nas horas de urgência eram características que lhe tinham valido honra e merecidamente sua palavra era tida como de grande valor. É verdade que, em muitas ocasiões tornava-se bravo e temperamental. Não aceitava contestação e se uma ordem sua não fosse obedecida rapidamente, podia acarretar sérios problemas para a formiga em causa. Mas, apesar disso era estimado, respeitado e um dos favoritos da rainha. Certo dia, depois do trabalho árduo e cansativo guardando um carreiro de carregadeiras, o valente Nico e seu pelotão voltavam ao formigueiro, desejosos de um bom descanso, quando repararam que a entrada do ninho estava desprotegida. Os vigias de serviço não estavam em seus postos! Nico ficou imediatamente irritado com a falta de disciplina dos guardas da colônia. Afinal, ser soldado era um posto de importância capital para a sobrevivência do formigueiro e Nico nunca deixava que seus liderados esquecessem disso. Para ele não podia haver desculpa para tamanha falta de responsabilidade! O formigão seguiu furioso pelos túneis até uma galeria de grandes proporções onde a maioria do formigueiro se encontrava reunida. Era a galeria central, onde habitava a rainha, querida e venerada. Ela ali estava, soberana e mãe da colônia com seu enorme abdômen desenvolvido, sinal claro da continuidade e do crescimento da população local. Ali estavam também representantes de todas as castas do formigueiro. As jardineiras, que tratavam do cultivo do fungo que alimentava a colônia; as operárias, que limpavam as galerias e abriam novos túneis para o crescimento do ninho; as carregadeiras, que [67]
cortavam e transportavam tudo o que achavam para servir de provisão à colônia e os soldados que protegiam as demais. Havia silêncio quase total. No centro das atenções estava uma pequena carregadeira que trêmula e com voz embargada falava perante a atenção de todas as demais: — Foi impressionante! — dizia a formiguinha emocionada — Uma experiência única que jamais esquecerei! Tinha terminado de cortar umas folhas e as estava puxando quando notei que me perdera do restante carreiro. Fiquei preocupada mas não entrei em pânico, porque já me sucedera outras vezes. De repente, a terra começou a tremer de forma rítmica e o sol ficou tapado, fazendo-se uma escuridão medonha. Uma figura enorme estava diante de mim e eu tremia toda. Não podia vê-lo, pois ultrapassava em muito o meu campo de visão mas vi algo que parecia ser uma pequena parte dele e era gigantesco! Senti o medo tomando conta de mim e já não sabia o que fazer. Percebi que a qualquer momento seria esmagada. Não tinha dúvida de que se tratava de um homem. No entanto, percebi nitidamente que ele parou ao me ver e desviou-se propositadamente para não me matar. Senti uma enorme sensação de humildade e insignificância me invadir à medida que o homem se afastava. Senti também uma grande gratidão por ele me ter poupado a vida. Uma exclamação de admiração percorreu toda a audiência reunida e um burburinho cresceu à medida que se comentava o relato acabado de ouvir. A formiguinha, já mais contida, parecia acrescentar mais pormenores de sua aventura junto à rainha, que a ouvia cercada de suas servidoras. De repente, todas foram interrompidas em seus pensamentos pela voz forte de Nico que se elevou sobre as cabeças: — Será possível que estamos outra vez às voltas com estas estórias sobre o homem? Enquanto falava o formigão avançava pelo meio da assembleia e todos abriam caminho. Ele prosseguiu erguendo a grande cabeça com as mandíbulas ameaçadoras. Chegando ao centro das atenções fez uma breve curvatura de saudação à rainha e olhando firmemente o grupo reunido, que parecia se encolher perante seu carisma, continuou:
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— Por que a entrada da colônia ficou desprotegida? Por que os vigias não estão tratando de suas responsabilidades? Julgam que ser soldado é brincadeira? Passam o tempo de sentinela passeando e ouvindo estórias? Houve comoção no grupo de soldados e imediatamente alguns saíram na direção da entrada do formigueiro sem esperar mais as zangas do comandante Nico. — Por que o trabalho parou? Não há necessidade de novas galerias? Por que estão descansando as operárias? Não há alimento a cultivar e provisões a transportar? Por que parou o armazenamento de alimentos? Logo agora que estamos quase no Inverno e vai se aproximando o tempo de revoada em que nossa princesa irá lançar as bases de uma nova colônia? Justamente agora é que resolvemos tirar férias? As palavras de Nico ressoavam pelas câmaras e túneis como tremendas acusações que penetravam fundo os corações serviçais e trabalhadores das formigas. O constrangimento era visível em todos os lados e sinais de vergonha se tornavam também evidentes. — Tudo parado! — continuava Nico — Tudo desprotegido por causa de mais um relato absurdo sobre esse ser extraordinário que chamam de homem. Uma figura mítica que os mais velhos criaram para explicar o que não podiam entender. Será possível que nunca progrediremos? Será que nunca iremos ultrapassar esse estágio primitivo de pensamento que precisa crer no homem como se fosse real? — Jamais encontraram provas concludentes de sua existência! São sempre relatos como o de hoje, baseados na emoção e nos sentidos! Relatos que pecam por não serem objetivos e racionais. Tudo o que temos atribuído ao homem pode ser bem explicado sem necessidade de crermos em sua existência ridícula. Não precisamos mais dessa fuga. Onde é que já se viu um ser como esse que descrevem? Não existe coisa semelhante! Não é lógico acreditarmos em algo que não vimos nem analisamos ao pormenor. Temos que crescer e avançar no tempo. O homem é estória do passado! Uma explicação caduca que serviu aos formigueiros de nossos avós, mas já não serve para nós! Deixemos pois de conversa e voltemos ao trabalho!
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Não foi preciso mais incentivo. Perante tal convicção e argumento todos aceitaram o veredito sem discussão. A formiguinha que dera seu testemunho saía envergonhada e de cabeça baixa, enquanto as demais regressavam a seus postos de trabalho para dar continuidade às tarefas do dia a dia. Nico, feliz e triunfante, conferenciou ainda um pouco com a rainha, deu algumas ordens a seus subordinados e recolheu-se à sua galeria, na imensidão escura do formigueiro. Porém, logo à entrada deparou-se com um formigão soldado, já idoso, que o esperava. Tentou fingir naturalidade ao vê-lo, mas estava visivelmente contrariado, pois já imaginava a discussão que se seguiria. — A que devo a inesperada honra? — perguntou Nico com sarcasmo. — Creio que já sabes muito bem o motivo de minha visita! — respondeu o formigão com seriedade. — Pois então diga Fredo. Estou errado não é? — Exatamente! — Poupe-me, por favor! Meu dia foi cansativo e sinceramente já estou farto de suas tentativas de explicar o homem. — E eu estou cansado de tua arrogância e falta de piedade. Humilhaste aquela formiguinha, sem necessidade e de forma impiedosa! — Ora, aquela estória era ridícula Fredo! — reclamou Nico com pouca paciência — Tremores de terra, o sol sendo tapado. Onde é que já se viu um ser capaz de fazer tremer a terra ou tapar o sol? É ridículo e inaceitável! Milagres não existem, é tudo fruto do delírio dos mais fracos! Quando muito uma nuvem mais carregada tapou o sol e o tremor deve ter sido provocado por uma fruta que despencou-se de uma árvore ou mesmo a própria carregadeira que tropeçou. Para mim, ela inventou tudo para se desculpar do fato de ter perdido o carreiro e chegado à colônia sem carga! — Não podes afirmar isso Nico! A experiência pessoal de outra formiga deveria merecer mais consideração da tua parte! [70]
— E mereceria, se o assunto fosse mais importante e a experiência mais séria. Mas numa questão deste quilate não se deve brincar! Chega de utopia e sonho! Está na hora de resolvermos isto de uma vez por todas! — O homem é irreal? É isso que queres dizer? — Evidentemente! — E os nossos antepassados que o afirmaram, estavam errados? — Tinham limitações por falta de desenvolvimento e evolução. Mas estamos agora numa nova era onde podemos ver mais e melhor! Declaro com solenidade que o homem está morto! — E as formigas de nossa colônia e de outras que têm experiências como as que ouvimos hoje também estão erradas? — Sim! Tudo não passa de condicionamento emocional! A mente acredita naquilo que foi preparada para acreditar. Essas formigas foram programadas para crer nessas estórias e não conseguem racionalizar para além do que lhes foi incutido. — Como és tão insensível? Acreditas mesmo que estais mais certo que milhões de outras formigas? Não te parece presunção demais? Não é presunção! É realismo, raciocínio, modernidade! Não houve bases verdadeiras para que cresse de modo diferente. Por exemplo: por que não podemos ver esse tal de homem, se é tão real? — Ele é grande demais para nossos pequeninos campos de visão. Só podemos ver suas extremidades. — Desculpa esfarrapada! Sempre dizem o mesmo. Jogam essa estória de grandeza. Como se esse ser fosse de outra dimensão e então tudo se explicasse. Pois não me convence! — Mas, o que me dizes às coisas que o homem faz? Os campos trabalhados, as enormes construções e tantas outras coisas. As obras do homem provam sua existência e por meio da grandiosidade dessas [71]
obras podemos ter uma ideia do caráter do homem e da sua própria grandeza. — A natureza é poderosa. Ela pode explicar as coisas que querem atribuir ao homem. Nós as formigas é que somos grandiosas! — Estás rejeitando algo que pode vir a ser fatal Nico. Lembra-te que fui eu que te ensinei tudo o que sabes. Era eu o líder dos soldados antes que tivesses idade para isso. Não desprezes o que não podes entender simplesmente porque te ultrapassa. Pode ser realmente perigoso! — Desculpa Fredo. Eu te respeito e agradeço por tudo que me ensinou. Sou agradecido por ter me dado tanto de seu tempo e atenção, mas neste ponto não podemos estar de acordo. A realidade para nós formigas e o que nos é vital é o nosso formigueiro e o nosso trabalho. Isso sim é fatal se o negligenciarmos como no caso de hoje. O que deve nos mover é o trabalho! — Somos seres especiais e admiráveis! Em vez de ficarmos olhando para a suposta grandeza de um ser imaginário deveríamos nos concentrar na nossa grandeza que sobressai em todo o reino animal. Quem tem a organização que nós temos? Quem dispõe de um sistema de classes tão elaborado e funcional? Quem apresenta união e solidariedade como a nossa que nos ajuda a suplantar nosso pequeno tamanho? Quem pode competir conosco em trabalho, capacidade de resistência e provisionamento para os tempos difíceis? Que outro ser pode criar a partir de um simples elemento uma colônia de dezenas de milhares em questão de dias? Enquanto outros animais ainda lutam sozinhos para sobreviver nós somos evoluídas e lhes mostramos o valor da união que é a verdadeira força! Essa é a nossa realidade, a nossa dimensão e o resto não interessa! Por isso Fredo, por favor não me canses mais! Não quero gastar mais tempo discutindo sobre estórias fantasiosas! Fora o suficiente para Fredo. Para ele, que fora o mestre de Nico e que o apresentara para seu substituto, era muito doloroso ver o orgulho intelectual a que seu ex-aluno estava arraigado. Nada mais poderia fazer por ele! Só deixar que o tempo trabalhasse... Nico ficou sossegado e certo da vitória sobre o oponente. Ele estava obviamente certo e todos os demais errados! Nem valia a pena discutir. [72]
Era jogar conversa fora! Seus argumentos eram por demais superiores. A palavra dos outros era totalmente sem fundamento e confortado por esse sucesso retumbante Nico dormiu sossegado. No dia seguinte levantou-se cedo para o trabalho como era seu hábito. No seu trajeto habitual pelos longos túneis do formigueiro ficou contente em constatar que o trabalho se desenvolvia a bom ritmo e já não se falava sobre aquela conversa supersticiosa do dia anterior. Certificando-se de que tudo estava em ordem o valentão encontrou o grupo de carregadeiras que seu pelotão deveria escoltar e saíram para o ar livre a passo certo. No decorrer do trabalho, Nico notou algo fora do comum. Desviou-se do carreiro e foi verificar, como era sua prerrogativa de líder soldado. Não podia definir o que era. Algo instintivamente lhe dizia que era uma pegada, mas julgou ser impossível, porque era grande demais. Teria que ser um animal gigantesco, transcendente! De repente, sentiu um tremor de terra distante. Tentou ignorar, mas parecia continuar num ritmo constante e estar se aproximando. Nico tremeu também por dentro lembrando-se do relato da carregadeira do dia anterior. O barulho que acompanhava o tremor foi crescendo e estava cada vez mais forte. Nico, assustado, procurava manter o controle que tanto lhe dera fama, mas a terra balançava de tal modo que já não conseguia se manter em pé direito. Aos poucos, o tremor ou o que o causava pareceu estar ali mesmo perto dele e subitamente tudo escureceu como se o sol tivesse sido tapado quase por completo. Apavorado e sem rumo Nico andava de um lado para o outro. Podia ver à sua frente um objeto enorme e colorido. Mas não sabia definir o que era. Seria a extremidade do homem? Seria afinal verdade? Poderia ser que sua presunção fora afinal apenas e somente isso? E o seu raciocínio vão seria no fim apenas arrogância? Nico procurou ainda num rasgo de coragem sair do raio de ação daquele ser gigantesco mas era tarefa impossível. O medo foi tomando conta dele. Prometia internamente nunca mais duvidar, reconhecia até que devia pedir desculpas, se humilhar. [73]
O barulho e o tremor pararam. Nico esperava em suspense e então, no silêncio aterrador sentiu que a escuridão aumentava à medida que aquela coisa se aproximava, estava já por cima dele e tudo que pôde fazer foi gritar “socorro” antes de ser completamente esmagado pelo pé do homem. *********** Baseado em Salmos 14:1: “Diz o néscio em seu coração: Não há Deus.”
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O Sonho de Demba Esta história missionária é uma obra de ficção missionária baseada em fatos e acontecimentos reais da região leste da Guiné-Bissau. Capítulo 1 Um arrepio de frio percorreu o corpo magro e pequeno de Demba. O menino reagiu procurando o pano que lhe servia de lençol. Como o pano era curto, ele se encolheu ainda mais para poder se cobrir por completo. Um clarão iluminou repentinamente o quarto onde a criança estava e seguiu-se após uns segundos um forte ribombar de trovão. O vento fresco que entrava pela porta aberta levantava poeira que chegava ao nariz de Demba. Ainda deitado, ele abriu os olhos. Estava totalmente escuro! Era alta madrugada, talvez duas ou três horas da manhã. Novo relâmpago clareou o quarto. Demba podia ver a mãe e a irmã numa cama, do outro lado do lado do quarto. O teto de palha que dava um cheiro característico. A casa parecia tremer ao rugir da tempestade. Um novo relâmpago permitiu que o menino visse um ratinho que saía sorrateiramente do local aonde se guardava o arroz. Demba podia ouvir o ressonar do pai no quarto ao lado, pois as paredes não iam até o teto deixando que os sons passassem livremente de um quarto para o outro. O menino sentou-se na esteira que lhe servia de cama. Tinha uns 8 anos, era extremamente magro com uma bela cor castanha clara e a cabeça redonda, meticulosamente rapada. O nariz, de base larga, era arredondado, as bochechas altas, o sorriso fácil, os olhos enormes, amendoados, de um negro profundo e sentimental. Com um ar de sonolência, a criança olhou para fora de casa apenas para ver o início da chuva forte, barulhenta, que caía em toalhas sobre as casas da tabanka (aldeia). Demba deitou-se novamente. Tentou dormir, mesmo com o barulho da tempestade e o frio que lhe penetrava do lençol até os ossos. Algumas goteiras começavam a fazer sentir o seu [75]
tilintar. Uma era bem perto da esteira do menino que se afastou para evitar o incómodo. Começou a adormecer. Naquele local mágico, entre a realidade e os sonhos, ele reviveu as emoções do dia anterior. E tinham sido muitas! Logo cedo, chegara à sua morança (conjunto de casas, em regra de um mesmo dono, que abarca sua família alargada) um grupo de homens de uma tabanka não muito distante. Eram, na sua maioria, homens garandis (idosos). Todos com um ar severo e gestos estudados. Em especial um deles chamara a atenção de Demba, por seu aspecto sério e por parecer ser o líder da delegação. Uma mulher comentara que ele era um homem rico. Tinha muitas vacas e uma candonga (pau de arara). Na sua casa havia até um gerador e uma televisão! Demba ficara muito impressionado. Nunca vira uma televisão, mas tinham lhe explicado que era um rádio grande que mostrava imagens. Era difícil de imaginar, mas, sem dúvida, deveria ser algo fantástico! Os homens tinham se sentado com seu pai, que era o chefe da tabanka, e outros anciãos da aldeia. Longas saudações foram trocadas entre todos os presentes, ritual que levou mais de uma hora, numa interminável repetição de perguntas cerimoniais. Ninguém demonstrava pressa em tratar do assunto que motivara o encontro. Um jovem casado, que se juntara ao grupo, acendeu um pequeno fogareiro de carvão onde colocou um pequenino bule colorido com água. Ia fazer uarga, um chá forte e adocicado, costume herdado dos árabes do Norte, trazido pelos mauritanos e de grande aceitação entre os Fulas, povo de Demba. Logo o cheiro doce do chá enchia o ar e começava o ritual de passar o líquido de um copinho para o outro, a fim de esfriar o mesmo. Era uma maneira de se passar o tempo e enganar a fome. Enquanto os homens conversavam sobre assuntos banais, as mulheres trabalhavam febrilmente, preparando o almoço. Duas delas pilavam o arroz num pilão de 60 centímetros de altura, com pancadas rítmicas, quase musicais. Algumas galinhas foram trazidas aos visitantes para que se pronunciassem sobre seu aspecto. Seriam o mafé [76]
(acompanhamento). Os hóspedes se mostraram satisfeitos, selando assim o destino das aves que foram logo degoladas. Grandes panelas escurecidas pelo tempo foram colocadas na fogueira à lenha e em breve se cozinhava o arroz, parte essencial e básica da alimentação Fula, que é a etnia predominante na região leste da Guiné-Bissau. Demba estava curioso para ouvir a conversa e juntamente com outros meninos da tabanka ficou rondando a reunião dos homens, mas foram logo enxotados, como as galinhas e cabritos que abundavam no local e andavam soltos por todo lado. Por volta das duas horas da tarde o grupo de homens foi orar, estendendo esteiras no chão, voltados para o leste, repetindo suas monótonas rezas maometanas, prostrando-se com o rosto em terra. Foi só aí que o menino se deixou levar pelos camaradas de brincadeira até o mato para pegar e caçar passarinhos com uma espécie de funda. No regresso da floresta encontrara sua irmã de 15 anos rodeada por outras mulheres e moças. A garota parecia assustada. Era muito bonita. Tinha a pele cor de jambo, com o rosto levemente anguloso, e olhos um tanto oblíquos e nariz arrebitado. Os dentes impecavelmente brancos num sorriso gracioso. Era um semblante exótico, mas certamente belo. Porém, sua expressão de medo era por demais evidente para ser esquecida. Instintivamente Demba percebeu o que estava acontecendo. Aquele grupo de homens viera tratar de um pedido de casamento. Sua querida mana Aminata era a escolhida! A pobre adolescente, a quem as formas femininas mal tinham se formado completamente, deveria se casar. Na roda dos homens, o garoto vira os sinais de sua desconfiança. Perto do pai, que estava sentado de pernas cruzadas numa esteira, era possível ver dois montinhos de cola (pequenos frutos medicinais que são produzidos por árvores pequenas e que são muito apreciados em vastas regiões da África). Aquilo era a prova do contrato de casamento! Para surpresa do menino, descobrira também que o interessado era justamente o homem que tanto o impressionara. Quase sem querer ele [77]
reagiu com desgosto. Era um homem velho! Devia ter mais de 50 anos e com quatro esposas! Sua irmã seria apenas mais uma, a empregada das outras, em particular da primeira esposa. Em menos de um ano já teria o primeiro filho ao peito e estaria sobrecarregada de trabalho… Mas não era essa a sina da mulher Fula? As outras cumprimentavam e se congratulavam com Aminata. Diziam que era uma honra casar com um homem tão rico! Demba não se agradara nada desta ideia. Aminata era boa e amorosa com ele! Certamente bem mais paciente do que o habitual e estava acostumado à presença de sua “mãezinha”, já que a irmã funcionara como verdadeira mãe de criação, à falta de atenção da sua mãe. Essa tinha tanto trabalho que não podia dispensar muito tempo aos rebentos da sua numerosa prole. À noite, o menino virou-se no sono e teve um sonho quase tão real quanto a própria experiência! O sonho lhe era doloroso e ele não gostou de lembrar-se da dor estampada no rosto da irmã e sua feição assustada. O sonho, porém, se prolongou e tornou-se estranho e diferente. Demba se viu num local desconhecido com várias casas parecidas com as das tabankas. Logo adiante, havia duas casas muito bonitas, com telhados de zinco, pintadas de azul e branco. Havia uma placa, mas ele não sabia ler… Aproximou-se mais e ouviu as vozes de inúmeras crianças cantando na sua língua! Diziam: “Fii mim mi subii abade Issa” (Estou seguindo a Jesus). A canção era agradável e permanecia no ouvido. Havia muitas crianças num salão cantando animadamente. Demba ouviu então, distintamente, uma voz que lhe dizia: “Aqui encontrarás a verdade!”. A frase se repetiu duas ou três vezes, e então o menino acordou assustado. Era já manhã clara e tudo não passara de um sonho.
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Capítulo 2 Várias semanas tinham se passado desde que Demba tivera o sonho daquele lugar diferente onde se cantava sobre Issa (Jesus). O sonho já se repetira algumas vezes e ele aprendera a gostar daquele sonho. Entretanto, a vida lhe foi cruel. A irmã, de quem Demba tanto gostava, foi embora para a aldeia de seu marido. Aquele casamento amargurara o menino, mas o pior estava por vir. Uma tarde sua mãe deitou-se febril e com dores do corpo. Cobriu-se com vários panos para suportar os calafrios que sentia e queixava-se que a cabeça parecia querer arrebentar. A prostração dela era grande. Já tivera malária tantas vezes que perdera a conta, mas esta parecia de algum modo pior, mais forte. O feiticeiro veio com seus tratamentos. Receitou certos chás de plantas da floresta. Fez um novo amuleto e declarou que alguém queria mal à mãe de Demba. O menino, assustado, pediu a seu pai que rezasse por ela a Alá (Deus) para que ficasse boa. Porém, a resposta não veio. A mulher piorou e entrou em coma. Não havia meios para tratá-la. O hospital ficava a muitas dezenas de quilômetros e, provavelmente, não poderiam fazer nada pois carecia de medicamentos. Era preciso esperar o desenlace; e ele veio mais cedo do que Demba esperava. Foi numa tarde. A cumbosa (outra mulher do mesmo marido) de sua mãe saiu de casa com gritos de lamento. Com uma roupa desleixada e os braços levantados, atirou terra para o alto e continuou gritando num choro forçado, mas intenso. Como que por hipnotismo, várias mulheres começaram a sair das suas casas e vieram se juntar à primeira carpideira. Os gritos cresceram de intensidade, e Demba viu, horrorizado, o pai deixar a casa com os olhos vermelhos de lágrimas. Era a notícia temida: a mãe do menino falecera! O enterro foi rápido, como na tradição dos fulas da Guiné em seu islamismo africanizado. Vieram pessoas das aldeias vizinhas e a cada novo grupo de mulheres que chegava, repetia-se a cena do choro descontrolado e teatral. Na manhã seguinte, havia muita gente presente ao choro, o que atestava a boa posição social que o pai de Demba desfrutava como chefe de tabanka. Um chefe da mesquita mais próxima fez algumas exortações e poucas pessoas prestaram atenção. Do lado de fora da casa sentaram-se os [79]
homens em grandes esteiras, formando grupos conforme as faixas etárias. Dentro da cabana, onde o corpo aguardava, sentaram-se as mulheres. Por fim, na hora do enterro, os homens juntaram-se todos na frente da casa, em pé lado a lado, e o corpo foi trazido todo embrulhado em lençóis brancos. Uma oração curta foi feita por todos, entremeada por gritos de Allah Akbar (Deus é Grande). Assim que a oração terminou, os gritos das mulheres recomeçaram em coro e com maior intensidade. Tinha sido a despedida. Os homens tomaram o corpo e seguiram em rápida procissão em direção à floresta. As mulheres não iriam ao cemitério. O local na floresta, onde se enterravam os mortos, era identificado apenas por algumas madeiras que cobriam as sepulturas mais recentes. Demba seguiu ao lado do pai. Junto à cova rasa foi levantado um lençol no ar e por baixo dele o menino e o pai rezaram uma última vez, antes de o corpo ser descido. Um conhecedor de árabe repetiu em voz alta e em tom de lamentação um trecho apropriado do Alcorão, com uma pronúncia pouco clara, mas suficiente para a ocasião. E estava tudo acabado! Nos dias seguintes, muitas pessoas vieram trazer seus pêsames ao pai de Demba. Pessoas que, impossibilitadas irem ao funeral, chegavam para dar seus sentimentos. O menino estava alheio, ausente. Emagrecera ainda mais e em seu rosto já não se via o sorriso fácil de outrora. Seu olhar comprido e lânguido transmitia desalento, renúncia e falta de esperança. Por que Deus não respondera? Por que a irmã se foi? Por que a mãe morrera? E o sonho tão lindo? Seria apenas um sonho? Finalmente, o pai do menino o chamou com ar de gravidade. Tinha algo importante a lhe comunicar. Com a morte da mãe e as constantes viagens que o pai precisava fazer para negociar os produtos agrícolas da aldeia, ele temia pela criação do rapaz. Sua outra esposa estava agora sobrecarregada e havia crianças menores que exigiam mais atenção. Resolvera que Demba teria uma formação especial. Ouvira de um professor de árabe, um marabu muito bom, numa grande aldeia [80]
Mandinga que ficava não muito longe. Ele decidiu que Demba deveria ir para lá, a fim de estudar árabe e o Alcorão, a fim de, no futuro, ser um chefe de mesquita ou talvez mais, pois o pai sabia que menino era esperto! A notícia não teve grande impacto. Demba estava um tanto indiferente. A mudança era novidade. Só não sabia se seria boa. A perspectiva da viagem, porém, o tirou um pouco do desânimo e logo tudo estava pronto para a grande aventura! Partiram da aldeia de madrugada, ainda escuro. O menino ganhara uma roupa nova, uma túnica comprida que se usava por cima de calças largas. Ele se sentia importante vestido assim como os homens, em vez dos eternos calções de criança. O pai chamou um homem da aldeia vizinha que tinha uma carroça de burro para os levar até a estrada. O caminho era bonito neste tempo de chuvas, com tudo muito verde e vivo. As mangueiras carregadas e os pés de caju davam um cheiro doce e agradável ao ar. Pouco depois de deixarem a aldeia, saíram da floresta e entraram numa grande clareira. Na verdade era uma bolanha. Tratava-se de um terreno baixo, perto do rio e que inundava nos tempos de chuva, sendo ideal para o plantio de arroz. A vista era linda, pois a bolanha era enorme e se perdia ao longe, orlada pela floresta. Passadas quase três horas de solavancos na carroça, entraram no caminho de terra batida, e agora o condutor acelerava o passo, levantando nuvens de poeira. E lá estava a estrada de asfalto! Demba a olhava com admiração! Deixaram a carroça e ficaram à espera da candonga (pau de arara). Foi preciso paciência, pois a maioria passava totalmente lotada. Por fim, uma parou. Era um caminhão de caixa aberta que foi adaptado para o transporte público. Pela primeira vez em sua vida Demba andava de carro e seu coração disparava forte com a velocidade do veículo. Aquele dia todo foi de aventura e, ao cair da tarde, chegaram à aldeia do marabu.
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Capítulo 3 Após a aventura da viagem, Demba foi entregue aos cuidados do professor de árabe. A aldeia onde estavam era grande e tinha duas mesquitas rivais onde meninos de várias idades aprendiam a ler, em tábuas de madeira, os estranhos caracteres da língua de Mohamed (Maomé). A etnia predominante ali era Mandinga, e Demba não entendia a língua deles, o que era bastante assustador para alguém que estava longe da família. Havia, porém, outros meninos no seu grupo que eram fulas, e logo Demba se ligou muito a um deles, de nome Mamadu. A rotina era pesada para os meninos. Eram acordados cedo, todos os dias, e tinham que ir aos campos do mestre lavrar a terra, pois era tempo de chuvas e havia que semear o milho, a batata-doce e o amendoim. Não era o que o menino esperava, mas não podia reclamar. A fome, porém, era seu maior obstáculo. De manhã não comiam nada! Trabalhavam até umas duas horas da tarde, quando lhes era oferecida uma tigela de arroz para cada três meninos. À tarde, e já com o corpo moído e cansado, eram obrigados a sentar-se por várias horas decorando os textos do Alcorão, sem entenderem nada do que estavam dizendo. Na maioria das vezes deitavam-se sem mais nenhuma refeição. Num feriado muçulmano, ou alguma ocasião especial, tinham a sorte de jantar o mesmo que no almoço. As semanas foram se passando assim, sem que Demba pudesse entender por que motivo o pai o deixara em tal lugar. O professor de árabe era um personagem de aspecto austero. Muito magro e alto, com um rosto comprido e uma barbicha esbranquiçada na ponta do queixo. Parecia estar sempre mal humorado. Era respeitado na comunidade, mas tratava os meninos muito mal e por qualquer coisa era capaz de espancá-los severamente. O rigor do marabu ficara mais marcado ainda num episódio estranho e incompreensível para Demba. Foi um dia de folga da lavoura. Duas mulheres brancas foram à tabanka do marabu. “Eram simpáticas, apesar de muito brancas” - pensava Demba. [82]
Fizeram consultas a várias pessoas doentes e deram balas a algumas crianças. Depois tinham pedido permissão para mostrar um filme de Jesus. Demba ouvira essa notícia com grande entusiasmo. Nunca vira um filme e o nome de Issa (Jesus) o fazia recordar o sonho de que tanto gostava. Em princípio os anciãos pareciam inclinados a permitir que o filme fosse projetado. Mas o marabu, com sua proverbial má vontade, esbravejara contra eles, reclamando que era um filme mal, que visava desviar o povo do caminho de Mohamed, e que aquelas mulheres deveriam ser proibidas até de vir à aldeia. Os anciãos cederam e proibiram o filme, mas não deixaram de mostrar interesse em que as mulheres trouxessem remédios outras vezes. Elas partiram com ar triste, mas ainda com um sorriso nos lábios. As chuvas se foram. A última trovoada foi no mês de Outubro. Com o final da lavoura, e antes do período de colheita, o marabu tinha novos planos para os seus alunos. Levava-os de aldeia em aldeia para pedirem esmolas. Fixava uma quantia mínima que tinham que conseguir e espancava quem não atingisse o estabelecido. Demba estava cada vez mais desgostoso com sua nova vida. Fora ensinado que pedir esmola era coisa de gente pobre. Ele era filho do chefe da sua aldeia. Não deveria pedir esmolas. Ressentia-se mais ainda das surras que via os companheiros levar. Ele era um menino esperto. Aprendia bem o Alcorão e por isso evitava apanhar, mas pedir esmolas não era algo que fizesse com gosto e foi pego duas vezes sem a soma exigida. A surra consequente o deixara marcado e ressentido. Não tinha mais qualquer dúvida sobre o carácter daquele professor de árabe. Certamente não era de Deus! O marabu, por sua vez, era também muru, uma espécie de feiticeiro muçulmano conceituado. Tinha sempre um texto árabe que se aplicava às várias situações do quotidiano ou doenças das pessoas. Foi essa, também, uma das causas por que se ressentira com as mulheres brancas que traziam remédios e desviavam sua clientela. Pessoas vinham de longe para conseguir os mésinhos (remédios) e guardas (amuletos) do muru. Ele cobrava caro! Por vezes bem além das [83]
possibilidades dos pobres camponeses, mas isso não parecia intimidar as populações que recorriam a ele com frequência. Demba se lembrava do muru que tratara sua mãe sem conseguir curá-la. Certa manhã, ficou assustado e aflito quando seu melhor amigo, Mamadu, amanheceu febril e cheio de dores no corpo. Inicialmente o muru não acreditou na doença do menino, julgando ser uma artimanha para se furtar ao trabalho. Mas, ao ver o estado da criança limitou-se a deixá-lo na esteira todo o dia sem comida, pois dizia que não iria desviar alimentos dos que trabalhavam para dar a um doente. Demba, com muito custo, conseguira arranjar um pedaço de pão, e à noite, quando já se ouvia o ressonar do marabu, ele o levou ao amigo. — Eu vou morrer — disse Mamadu triste. — Não digas isso — repreendeu Demba aflito. — Eu sei que vou. — reiterou o outro calmamente — E não estou tão preocupado. É melhor do que continuar aqui! Mas quero que me faças um favor. — Tudo que quiseres — respondeu solícito o amigo. — Tenho escondido algum dinheiro. — revelou Mamadu com um brilho fugaz nos olhos — Quando consigo mais do que o muru pede eu guardo numa cova atrás da casa. Está assinalada com uma pedra vermelha. Tu a acharás, és esperto! Quero que fiques com esse dinheiro e tente guardar mais até teres o suficiente para fugir! — Fugir? — Admirou-se Demba de olhos esbugalhados. — É o único jeito. — confirmou Mamadu — No ano passado houve um menino que conseguiu. Sei que tu podes fazê-lo. És o mais inteligente de nós todos! Prometes? — Prometo! — disse Demba com pouca convicção. — Mas agora trates de ficar bom e fugiremos juntos! — Acrescentou, perante um sorriso amarelo do companheiro.
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Apesar dos cuidados que Demba teve com seu amigo e de todas as tentativas de animรก-lo, Mamadu foi enfraquecendo dia-a-dia e, por fim, faleceu numa tarde ventosa. Logo apรณs o enterro, Demba foi procurar o esconderijo e o encontrou com facilidade. Estava agora convicto de que sรณ havia uma coisa a fazer. Era urgente fugir!
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Capítulo 4 Aproximava-se o Ramadão, mês em que os muçulmanos comemoram a suposta revelação do Corão pelo anjo Gabriel a Mohamed. Todos os muçulmanos de idade adulta devem jejuar durante o tempo em que haja luz solar durante o mês. O marabu ordenara que os meninos cortassem todo o mato à volta da casa, pois queria tudo bonito para as festas sagradas. E foi pessoalmente supervisionar o trabalho. Demba tremia de medo à medida que ia se aproximando do local onde Mamadu começara a esconder o dinheiro e onde ele agora guardava suas economias. O muru parou bem ao lado da pedra vermelha que servia de marcação ao local. A certa altura, estranhando aquela pedra de cor diferente, a chutara para longe. Demba fechou os olhos certo de que fora descoberto, mas o professor de árabe já se afastara do local, sem dar importância ao pequeno buraco que se tornara visível com a retirada da pedra. Imediatamente, Demba cobriu o buraco com algumas palhas, certificando-se de que ainda estava assinalado, para não perder o dinheiro. Por pouco não foi apanhado! Deveria tratar dessa fuga o mais depressa possível! A data escolhida foi o início do jejum. O mês de Ramadão é uma época difícil para todos os muçulmanos, mas os primeiros dias são os piores, pois o jejum é bem mais difícil de se tolerar enquanto o corpo não se habitua à falta de alimentos. O marabu ficava de mau humor, ainda pior do que lhe era habitual. Deitava-se a maior parte do dia, para melhor suportar o sacrifício, com um ar de grande sofrimento e um gemido ocasional. Demba reparou que o homem se desleixava no controle dos meninos por causa da provação e resolveu agir sem mais delongas. Naquele dia deveriam ir pedir esmola em uma aldeia vizinha. Quando se viu só, o rapaz voltou para casa tendo o cuidado de evitar o caminho principal. Retirou o dinheiro que escondera e o contou novamente. Deveria chegar e sobrar para pagar o transporte. Partiu então para o local onde paravam as candongas. Seu coração batia descompassado. E se o muru se levantasse por qualquer motivo e saísse de casa? E se o encontrasse? E se alguém estranhasse sua [86]
presença ali com todos os meninos foi da aldeia? Tudo era possível, mas agora era tarde para começar com medos e receios. Resoluto, o menino avançou. No ponto de parada das candongas tudo seria decidido. Se o carro se demorasse demais a chegar ele estaria perdido, pois seu plano dependia de rapidez. Tinha que contar também com a boa vontade do pessoal do carro, pois poderiam negar-lhe o embarque estranhando um menino que viajava só. Com tais considerações, Demba se posicionou atrás de uma árvore onde podia ver o local da paragem dos carros sem ser visto. Mas, de repente, vinda não se sabe de onde, passou a mulher que cozinhava para o marabu. — Demba? — Estranhou ela. — O que fazes aqui? Então não devias estar em Sintchã Bari com teus companheiros? O menino gelou, apesar do calor que se fazia sentir, engoliu em seco tentando mostrar-se calmo e rematou: — Estou à espera da candonga. — E para quê? — insistiu a cozinheira. — É que meu pai ficou de mandar uma camisa nova. — Respondeu o garoto, tremendo de pavor. — Bem que precisas! — Concluiu a mulher, olhando o traje roto e sujo que a criança trazia. — Mas, por que não vais para perto das pessoas? — É que aqui, está sombra —replicou Demba tentando sorrir. — Está bem! —A mulher pareceu satisfeita — Vou te deixar sossegado! E que a camisa te saia bonita! Até amanhã! O menino não respondeu de tanto que tremia, apesar de todo o esforço que fazia para parecer o contrário. Novamente sentia o coração saindo do peito, e nem sequer conseguira ainda embarcar. E se desistisse de tudo? Se o muru o apanhasse certamente seria surrado e ficaria sem comer por vários dias. [87]
Mas, eis que a candonga chegava. Que sorte! E vinha aparentemente vazia. Melhor ainda! Demba olhava em total alerta. Apenas algumas pessoas desceram do caminhão e outras duas subiram com suas bagagens. Uma delas tinha um saco de arroz de 50 kg e um cabrito, que foram colocados sobre a cobertura traseira do carro. O menino esperava a hora certa de agir. As pessoas que tinham entrado no carro ali não eram daquela aldeia. Estavam só de passagem e não deveriam conhecê-lo, o que era vantajoso. Quando o carro deu o arranque ele correu e pulou para o caminhão já em andamento. O ajudante do motorista se aproximou. Era ele que ficava na parte de trás do veículo para embarcar e desembarcar as cargas e controlar o pagamento das passagens. Era um rapaz de uns dezessete anos e olhou Demba com curiosidade. — O que é que quer? Esmolas? —Arguiu ele. — Não! — Disse Demba com voz sumida. — Quero ir até Contubel. — Mas tu és um dos talibês (alunos) do marabu! — Retrucou o rapaz. — Eu já te vi por aqui mais vezes. O muru sabe que estás a viajar sozinho? — Sabe sim! — Disse o menino sem olhar para o interlocutor. — E deixou-te? — Estranhou o outro. — É que meu pai está doente… — Respondeu rápido a criança. O cobrador pareceu se satisfazer e ia se afastar quando voltou atrás e tornou a perguntar: — E tu tens dinheiro para pagar a viagem? — Sim! — Respondeu Demba, aliviado, mostrando o saquinho com as moedas tilintando. O carro partiu. Demba olhou as casas da aldeia se distanciando lentamente até sumirem na estrada poeirenta. Desejava ardentemente nunca mais ter que voltar ali! No seu coração ele orava a Deus por isso. As pessoas no caminhão estavam preocupadas demais com seus [88]
próprios problemas para reparar num garoto sujo e mal cheiroso, com cara de esfomeado. A viagem transcorreu sem sobressaltos até a aldeia da estrada mais perto de sua casa. Demba comprou um pão, que devorou com rapidez, e pôs-se a caminho. Conseguiu carona numa carroça até perto de sua aldeia. O trajeto final, cerca de hora e meia, foi a pé. Como ele se sentia bem ali! Aqueles lugares familiares, o cheiro da floresta, a ansiedade de estar em casa. Antes que se fizesse noite ele chegou causando grande alvoroço. A fuga deu certo! Agora era esperar a reação paterna.
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Capítulo 5 Duas semanas tinham se passado desde que Demba conseguira fugir das mãos do marabu. Os anciãos de sua aldeia tinham aconselhado seu pai a levá-lo de volta, pois a fuga foi uma grave falta de disciplina e desonra para a família. Mesmo que o menino tivesse sofrido um pouco, isso era parte da vida e valia a pena aguentar alguma dor para ser um dia chefe de mesquita. O pai de Demba, porém, viu o estado em que o filho retornara e ouviu seus relatos sobre o tratamento recebido nas mãos do “mestre”. Já tinha ouvido de outras pessoas histórias semelhantes e concluíra que aquele marabu não era de confiança e que Demba não lhe seria devolvido. No entanto, decidiu que seria um desperdício deixá-lo na aldeia. Ele foi destinado a estudar e ali não havia escola. Então ficou resolvido que Demba seria levado para Bafatá, onde poderia ficar na casa de um tio e frequentar a escola. E lá estava o menino de novo na estrada e desta vez para a cidade. Bafatá era a segunda cidade do país, porém estava decadente. As casas, do tempo colonial, sem manutenção deixavam a cidade com um ar de “cidade fantasma”. Mas era uma grande cidade mesmo assim! Havia até eletricidade algumas horas por dia! E, à noite, se houvesse luz, podia até ver televisão! Demba estava deslumbrado com tudo aquilo! O tio o recebera muito bem! O primo de Demba tinha a mesma idade que ele e se chamava Sori. Estudava numa escola de estrangeiros que foi aberta ali naquele bairro, a Ponta Nova. O tio de Demba tentaria colocá-lo nessa escola também, pois era muito boa. O menino ainda se lembrava das duas mulheres brancas bondosas que tinham ido à tabanka do marabu. Ele ficara com boa impressão dos brancos, apesar do que se dizia deles. O pai mostrava-se contente com a ideia da escola de estrangeiros, pois isso era, certamente, garantia de bom ensino! A confirmação veio por Sori que, apesar de estar ainda no primeiro trimestre do primeiro ano, já era capaz de ler muitas coisas, para orgulho da família. Era quase o final do ano. Os cristãos chamavam de [90]
Natal e haveria festa na escola. Sori tinha que participar e levaria Demba para conhecer tudo. O dia da festa amanheceu claro e limpo. Os dois meninos foram correndo pelo caminho de terra. Sori vestia uma camisa cinzenta com um quadro negro na frente, onde se lia em letras brancas: “Colégio Batista de Bafatá”. Quando chegaram perto da escola, Demba parou com o olhar espantado. Era a casa de seu sonho! Ele a conhecia bem demais! Vira aquele local tantas vezes em seus sonhos que não tinha qualquer dúvida! Era o mesmo local, o mesmo letreiro! Sori lhe explicou que aquela era a “Missão Batista” e passou a explicar as maravilhas que ia ver, os materiais escolares novinhos, os quadros nas paredes e a biblioteca! Demba estava ansioso e um pouco nervoso. Dezenas de crianças estavam reunidas em brincadeiras à frente da escola. Muitas estavam com camisas iguais à de Sori, mas outras eram convidadas, como Demba. O clima de festa era quase palpável! Que diferença do ar pesado e sofrido da escola do marabu! A escola contava com duas casas bonitas, bem pintadas. As salas eram espaçosas, com quadros de escrever bem grandes e muitos desenhos pendurados. O chão era de cimento, as paredes rebocadas. Tudo parecia muito luxuoso aos olhos do menino de aldeia. Por trás das casas, outra surpresa. Uma quadra de futebol de salão cimentada, com traves de madeira e rede, como nos campos de verdade! Parecia mesmo um sonho! Demba tentava garantir a si mesmo que não estava dormindo, pois queria aproveitar cada momento. Os professores foram chegando. Eram nacionais, mas pareciam simpáticos e alegres. Sori contara a seu primo que os professores não batiam nos alunos. Demba quase não acreditava! “Seria possível existir tal escola?” Ele sorria feliz. Aquele sorriso que há tanto tempo o deixara parecia querer retornar para ficar. Logo chegaram também os estrangeiros. Eram três mulheres e um homem. Havia também duas crianças, um menino e um bebê. Demba nunca havia visto um bebê branco. Parecia uma bonequinha com o [91]
cabelo muito loiro e fino. As crianças estrangeiras pareciam não estranhar nada do ambiente. O menino também era aluno da escola e falava perfeitamente em crioulo (idioma local) com os colegas. Cadeiras foram colocadas na quadra, de modo a acomodar todas as crianças. O alvoroço e o entusiasmo eram grandes. Uma das professoras estrangeiras dirigiu as crianças em cânticos alegres ao som de um violão. De repente, como numa cena fora da realidade, aquelas 200 crianças começaram a cantar a plenos pulmões: “Fii Mim mii subii abade Issa” (Estou seguindo a Jesus). Demba ficou paralisado e arrepiado! Duas lágrimas encheram o canto de seus olhos. Era a música de seu sonho... Afinal, existia, era real! E ele estava agora dentro desta realidade. Ninguém reparou nas lágrimas de Demba. Ninguém o conhecia ainda. Mas o sorriso que ele abriu e a força com que cantou eram sinais claros de uma nova vida que se iniciava para ele. O homem estrangeiro tomou a palavra. Demba ouviu que ele era doutor e tratava também os meninos da escola. Não pôde deixar de recordar Mamadu morrendo naquela esteira suja na escola do marabu. O doutor contou uma bonita história sobre três árvores e pela primeira vez em sua vida Demba ouviu falar de Jesus como o Salvador, que dera sua vida por nós para limpar-nos de nossos pecados. Era uma mensagem estranha, mas que aquecia o coração. A reunião terminou com um lanche delicioso de cachorro-quente e suco de laranja. No fim, todas as crianças receberam um saquinho com balas e bombons. Demba estava maravilhado e mal podia falar ou entender o que vira. Foram tantos meses de sofrimento... A perda da irmã, a morte da mãe, os maus-tratos do muru. Agora, ali, ele via um tipo de carinho que lhe era totalmente desconhecido. Uma das professoras estrangeiras foi apresentada a ele por Sori. Ela sorria com naturalidade e o convidara a voltar no domingo para ouvir mais histórias. A professora ficou contente ao saber que Demba entraria na escola e comentara que ele certamente seria um bom aluno. [92]
O menino, acanhado, apenas balançara a cabeça com timidez. No fim da tarde, quando voltava para casa, ele corria com o primo. Ainda não entendia o significado das palavras, mas cantava a plenos pulmões: “Fii mim mii subii abade Issa”! *********** Conto baseado em fatos reais, inspirado na vida do povo Fula da Guiné-Bissau.
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Sobre o autor Joed Venturini é Pastor da Terceira Igreja Baptista de Lisboa, Mestre em Missiologia, Médico especialista em Medicina Tropical, Escritor. Casado com Ida Helena, pai de Gabriel e Rebeca. É autor dos livros: Introdução ao Corão Antes do Ide – Manual de Treinamento Missionário O Campo é o Mundo – Missões Sem Fronteiras (Revista para Escola Dominical) Procura-se Amor (Romance evangélico) A Máscara (Romance evangélico) Mantém diversos blogs, dentre os quais: Joed Venturini - http://joedventurini.blogspot.com.br Poesias e Contos Evangélicos – http://poesiasecontosevangelicos.blogspot.com.br Blogteca - http://joedblogosfera.blogspot.com.br
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