Fanzine Samizdat #3 - Sammis Reachers

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Carta aos Nautas Degustador dos abismos Violador de trancas Prole perdida do Mar Oceano Ávida por sua herança Circunvassalos das marés Singradores, sangradores, sangrias Odisseus e Colombos, Ícaros d’água e d’estempero Horda diaspórica De mamíferos rastreadores de estrelas Que buscam um norte Para dele perder-se

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FANZINE

Samizdat POESIA – CONTO – LITERATURAGENS

#03 - 2021

Coitados? Audazes? Intercisos Os abismados da condição humana Defenestrados da aldeia que Fogem da dor do mundo levando Toda a dor do mundo consigo E um sorriso Que navegar é preciso

Introejetados Sammis Reachers A poesia é um esfoliante natural para os corações empedernidos. – S. Reachers


Editorial E não é que chegamos ao terceiro número deste nosso fanzininho literário de tiragem indefinida e periodicidade aleatória? Pois bem, vivas ao Samizdat! Mas o que afinal é samizdat? Samizdat era uma prática dos tempos da União Soviética que visava evitar a censura imposta pelos governos comunistas. Mediante essa prática, indivíduos e grupos de pessoas copiavam (muitas vezes à mão) e distribuíam clandestinamente livros e bens culturais que haviam sido proibidos pelo governo. O poeta russo Vladimir Bukovsky assim definia a prática: “Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por isso”. Esteja livre para compartilhar este fanzine, bem como seus textos individuais, da forma que achar melhor. Como costumo dizer, conhecimento é conhecimento compartilhado. O mais é egoísmo e cabala. Leia mais de meus textos (e baixe meus e-books gratuitos) em: Recanto das Letras: recantodasletras.com.br/autores/reachers O Poema Sem Fim – www.opoemasemfim.blogspot.com Azul Caudal – www.azulcaudal.blogspot.com

Éramos apenas eu, João e André, com Ele na face norte do monte Shir, defronte ao mar da Galileia. Os demais companheiros permaneceram em Tiberíades, em casa de Zebulom, colaborador judeu egresso do Ponto. Sobre o pico do monte, sendo fustigados por fortes ventos, Jesus convidounos a sentar. A seguir, abrindo o seu alforje, retirou uma flauta. De minha parte jamais a vira; quedei, como os demais, em abnegado e atônito silêncio. Levou o Rabi a flauta à boca; antes do toque entre lábio e madeira, julguei ter visto um sutil sorriso, que Ele só liberava quando prestes a externar esplendor. Quando a música, robusta, estabeleceu-se pelo ar, o ventou apertou. O mar lá embaixo encrespou-se, ondas passaram a estrugir contra as rochas, levantando uma fresca nuvem de gotículas que sobrescalavam até o alto da montanha, borrifando nossas faces. Permanecíamos sentados, enquanto Deus-andarilho tocava sua flauta. Houve um hiato na melodia; mas breve o Senhor retomou a música, agora suave e terna. O mar como que silenciou, enquanto multidões de aves marinhas passaram a sobrevoar o mirante em que estávamos, realizando sua marcha perfeita, como as Legiões de César. Absortos, éramos enlevados por seu baile, e curados pela música.

André sorria maravilhado, tornado à infância pelo deslumbre. João conservava a expressão grave, o susto seco de quem faceara o abismo e a impossibilidade. Aproximou-se ainda mais do Senhor, como sempre fazia em momentos como este. Quando Ele novamente pausou a música, perguntou-lhe: — Mestre, é maravilhosa a melodia, e jamais ouvimos nada assim. Sequer já o vimos tocar; por que nos ocultou tal cousa? O Senhor poderia tocá-la para que os demais discípulos, ou mesmo todas as pessoas a ouçam? Dariam nisso mais glórias a Deus! O Mestre, que por João nutria perfeita ternura, sorriu. — Todo aquele que quiser pode ouvi-la, João; desde que criei esta Terra, a melodia jamais cessou de tocar. Ela respira quando tu respiras, e firma o chão sob teus pés, quando caminhas; ela dá crescimento às plantas e move as esferas. A tudo une e anima; leva a traz minhas ordenanças. Ela é minha Palavra criadora ininterrupta, que existe e subsiste em forma de música. Quando é preciso, como agora, ela recrudesce à forma de palavra de homem, assim como eu próprio esvaziei-me até a forma de filho do homem. Aguce teus ouvidos, ó menor de meus irmãos: Não pode ouvi-la? João silenciou, sustentando seu olhar de assombro, agora o dirigindo, inquiridor, para a paisagem. — E você, Mateus, pode ouvi-la? Deitei-me sobre a rocha; fechei os olhos, como quem se estende sobre a fruição, o devir. Não sentia, como João ou como quem é ferido por um aguilhão, tolhido por cadeias, necessidade de racionalizar. Aleijado na humildade de minha condição de pó, nada respondi ao Mestre - mas num repente o silêncio atmosférico, o próprio silêncio cósmico pareceu ganhar cores em meus ouvidos, numa vibração surda que ia preenchendo dimensões que eu sequer intuíra existir, e como que a tudo completava, ligando, ponto a ponto, a todas as coisas. Cerrando com ainda mais força os olhos inundados, sorri. * * * Nota ao leitor desavisado: Caro leitor, claro está que a situação aqui relatada jamais aconteceu, sendo uma perfeita ficção. Tão ficção que o palco onde transcorre a ação, um monte Shir (do hebraico, música), jamais existiu. Publicado originalmente em minha coluna no Jornal Daki. Leia outros textos em: www.jornaldaki.com.br/blog/categories/sammis-reachers A (boa) música purifica e catalisa tudo o que é positivamente humano. Sua transcendência nos re-centraliza – e esse é o processo mais primitivo de cura. – S. Reachers


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