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Idade da Ansiedade
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Índice Intro / 04 Um dia saberemos como a luz / 05 Chega uma mulher samaritana / 06 A idade do escuro / 07 A casa de Marta e Maria em Betânia / 08 Sacre coeur / 09 O menino entre os doutores / 10 No dia da sua morte / 11 O irmão do pródigo / 12 O que disse José no fundo poço / 13 Cartas de amor / 14 Peregrino / 15 Em todo o lado há deuses / 16 Poema celebrativo segundo Isaías / 17 Amanhã / 18 Carta de amor a uma fotografia / 19 Paul Celan morreu sozinho / 20 Nuit de Noël / 21 Acalanto para o natal / 22 All the lonely people / 23 Cântico de natal de Maria / 24 O Natal de um menino negro / 25 Nos dias mais sombrios, uma grande luz / 26 Depois da festa / 27 A última ceia no cenáculo em Milão / 28 Ela / 29
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Intro Egresso do movimento Por Uma Nova Poesia Evangélica, que a partir da década de 70 do século pregresso inoculou liberdade e profundidade artística à poesia cristã feita por evangélicos tanto no Brasil quanto em Portugal, João Tomaz Parreira segue, decorridos quase meio século, a municiar nossos olhos e corações com a sua poesia decantada, seus pequenos varais de signos onde luzes insistentes são dependuradas a brilhar. Uma poesia onde questionamentos e alumbramentos poéticos, metafísicos e existenciais entrecruzam-se a sinalizar um terno caminho, em tempos de crescente escuridão. Parte significativa da produção recente do autor está agora reunida neste breve Idade da Ansiedade, que com prazer ofertamos aos leitores.
Sammis Reachers, editor
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UM DIA SABEREMOS COMO A LUZ
Um dia saberemos como a luz Desfez a escuridão da pedra do sepulcro Que dor deixou de sentir nos pulsos Quando afastou o pano que lhe escondia o olhar Ou nas mãos emoldurando os sinais Feridas dos pregos, como sentiu o hálito puro Da manhã desse domingo, um dia saberemos Como respirou os perfumes que ungiram E guardavam o seu corpo, como os pés Dilacerados tocaram a crosta física da terra.
21/01/2018
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CHEGA UMA MULHER SAMARITANA
Num lugar onde o sol enche o poço de Jacob Da luz do meio dia, chega uma mulher samaritana Para tirar água com um cântaro, à borda do poço Alguém cansado gostaria de ter um balde Para ir ao fundo do cristal da água Para apagar o calor da sede nos seus lábios Uma simples mulher para conversar, na mão Direita um balde já afeito à profundidade O que subiu desse encontro foi o afecto Que o Filho do homem trazia A todas as conversas, de que a vida Tanto dependia.
21/01/2018
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A IDADE DO ESCURO
Como uma criança que pára no ângulo de um quarto escuro Antes de entrar avalia os ruídos intocáveis, os silêncios Que podem estar no fundo dos móveis, conhece com a luz O que as gavetas guardam, mas no escuro outros receios Vêm à flor da pele, Como uma criança que está perante Os doces escondidos no armário e aguarda Porque as mãos recusam, o que a ideia de pecado faz sentir Deus atrás das latas, como uma criança que ouve a sua Estranha respiração enquanto espera.
20/01/2018
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A CASA DE MARTA E MARIA EM BETÂNIA
Ele ia algumas vezes tomar refeições, Ele entrava No meio de olhos alegres e vozes Agradecidas pela sua visita, na casa as tarefas Logo se definiam, Maria punha o coração Nos seus ouvidos, não sabemos se ouvia poesia As palavras vinham vivas, a irmã Marta sabia Que uma anfitriã tem de ter sempre A mesa posta, embora bastasse um copo de água Fresca, tudo se fazia para o Hóspede Se sentir como em sua casa, o céu E a terra juntos em Betânia Quando Ele as visitava.
17/01/2018
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SACRE COEUR
Todos chegam e dão por si a procurar O melhor sítio Da colina, pintores de domingo Que cumprem o ritual De Montmartre, desatam os seus pertences Os pincéis o cavalete a tela como um vestido Para receber o toque raro da arte do olhar, e todos Os pintores pintam o mesmo quadro. 19/01/2018
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O MENINO ENTRE OS DOUTORES
Ofereceram-me olhares de espanto Em que não entrei, nas palavras urdidas Entre os labirintos da lei deixei uma Boa Nova, nem disputei o lugar que me deram No centro dos doutores, o que são doze anos Depois de vir da eternidade? Perguntaram. Ninguém nenhum evangelista, sequer um pintor Renascentista soube o que dizer.
18/01/2018
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NO DIA DA SUA MORTE
Hoje os cordeiros sentiram calafrios no leite materno, beberam o orvalho do chão as searas, inclinando as espigas. Hoje o sol abrandou o seu ímpeto de fogo e desmoronou-se o peso angustiante das pedras dos sepulcros, hoje neste dia desigual todas as mães sentiram estremecer o útero porque na cruz o Filho sucumbia. (reescrito em 2018)
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O IRMÃO DO PRÓDIGO
A música põe as sombras dos que dançam nas paredes, a alegria da casa com todos os enfeites para a festa Alguém detém no limiar da porta os passos ouviu a música e as danças é o outro filho, estava ali quem era bom e previsível, as suas mãos jamais desperdiçaram e nunca tivera um cabrito sequer para alegrar-se com os amigos. O pródigo é o outro Aquele sem vã glória, que tem só o regresso a casa nos seus olhos. 01/2018
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O QUE DISSE JOSÉ NO FUNDO POÇO (Sobre Génesis, 37)
Tento romper camadas de silêncio Até Àquele que me ouve. E digo: Dentro deste buraco Poderia ver as coisas diferentes, os sonhos Que tive como fotografias inúteis Mas não, mesmo que ninguém Passe à superfície senão sombras e o céu Estrelado esteja sobre um silêncio. 01/2018
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CARTAS DE AMOR
Não preciso de segurar uma carta De amor na minha mão, para Deus Me responder coisas que eu possa suportar, todas as palavras trazem os Seus olhos de silêncio sobre mim, mesmo quando o céu pesa e parece fender-se com o lume das tempestades, tudo que eu não possa fazer, o Seu amor compreende, nada que eu possa calar, Ele já conhece da pouca coisa que lhe digo, a oração é apenas uma carta de amor. 01/2018
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PEREGRINO “No, I have no country except for these clouds rising as mist from lakes of poetry.” Adonis
Não, não tenho nenhum país excepto esta estrada que começa sempre nos meus pés excepto esta chuva que inunda as sombras das rosas estas nuvens que entre o cinzento e o branco, alternam lagos azuis no céu a poesia da névoa de que emergem as manhãs Não, eu não tenho mapas que estremeçam com o vento, abertos nas minhas mãos Não tenho nenhum país, nem templos excepto esse aonde vou onde está Deus. 2017
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EM TODO O LADO HÁ DEUSES
Li que Paulo ao chegar aos gregos teve um espanto E irritou-se com o encontro de um deus em todo o lado Um deus sem nome a quem chamar Um deus desconhecido, não sabemos Que tarefas empreendeu, ou que palavras disse De veludo ou afiadas como facas Um deus que nem sabe que há humanos Li algures que Paulo ao chegar aos gregos Via-os tactear entre esses deuses Que havia muito tempo ninguém via Como o rio Ilisos Sem nomes a não ser de mistério e de silêncio. 01/2018
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POEMA CELEBRATIVO SEGUNDO ISAÍAS
Não foi sobre Ele que caiu a beleza Foi acusado de não entregar o corpo Formoso ao mundo, ninguém O receberia à mesa do banquete Contudo não o molestou ser Deus e levar Sobre si nossos pecados, não brandiu a cruz Para golpear-nos, a cruz não era espada Antes lhe entregou seu corpo Para surpresa de muitos lhe entregou o corpo Como aquele que ama, despojado Apenas com os olhos colocados no Amor. 01/2018
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AMANHÃ
O amanhã é a melhor coisa que a vida dá Chegar até nós é um dom, chega à Meia-noite, imaculado, com a cor da rosa Púrpura do Oriente, com um céu Que é tão belo como o céu com miríades De pontos luminosos. O amanhã é perfeito quando chega E se coloca nas nossas mãos com o som Da água a correr, para o nosso rosto E pode dizer-nos que ainda estamos aqui Com a possibilidade de termos aprendido Alguma coisa com o dia anterior. 01/2018
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CARTA DE AMOR A UMA FOTOGRAFIA
Em Kutno, Polónia, 1940, ela poderia ser uma estrela de cinema com a sua beleza. Em tempos normais o seu futuro seria alegre, marido, filhos, netos, um gato branco e creme. Passou a saber que iria enfrentar um destino certo: as câmaras de gás em Auschwitz, depois da fotografia ser tirada. Os assassinos não mataram só pessoas, mataram a Beleza também. 2017
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PAUL CELAN MORREU SOZINHO
Paul Celan morreu sozinho, ao contrário da multidão dos mortos de Auschwitz Morreu na breve ondulação das águas, não velozmente porque o rio Sena é um rio lento de lentos reflexos de óleo e luzes Dançou o tango da morte com violinos nos ouvidos, e nos olhos a ponte Mirabeau a dissipar-se. 2017
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NUIT DE NOËL (Sobre Paul Gauguin, 1902)
Onde a casa tosca se escondia e o feno Estava sempre quente, não foi aí que Gauguin Viu o natal. A cena da natividade dos antigos Mestres conhecia, todos pintavam a manjedoura Como uma cena celeste, ele revelou Os animais com a reverência alegre no olhar Pastoras com olhos polinésios e a neve Como a lã a cobrir o inverno da Bretanha Maria e José à porta do abrigo Com a linguagem extasiada do silêncio Mostravam o Menino, numa boa-nova tropical. 12/2017
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ACALANTO PARA O NATAL
Dorme, dorme, não é ainda o tempo Da sombra da cruz abraçar o mundo, nem apagar A escassa luz do velho testamento Agora é o tempo dos acalantos, um dia Outra madeira suportará o peso de um Deus, mas agora Dorme, meu amor Com os teus olhos encostados ao meu peito, sabes Com os teus dedos a tocarem o meu rosto Quem sou eu, nenhuma deusa poderia ser Como sou, porque sou mulher e tua mãe Dorme, dorme, meu amor, para eu guardar Este momento de cintilações da tua face. 12/2017
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ALL THE LONELY PEOPLE
O café na chávena não é espelho Não reflecte nada, é um buraco negro, os olhos Perdem-se no escuro, o corpo escondido Do inverno no casaco, só as pernas são o alvo Dos olhares, dois objectos do desejo. Todos os solitários, a que solidão pertencem? Sentada sozinha no canto do café Espera que se encham os olhos De visitas, que a porta giratória traga Da rua um haiku inesperado.
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CÂNTICO DE NATAL DE MARIA
Estou grávida e José deu-me um anel, diz Que aceita o meu bebé, vai criá-lo Como se fosse seu, o mistério Fazer da madeira um utensílio Vai passar ao meu menino, vai crescer A maravilha no meu ventre, soa Ainda em meus ouvidos a alegria Do Eterno na voz daquele anjo Que me disse agraciada, bendita Tu entre as mulheres. Estou grávida E a luz vai apagando devagar Todas as sombras do meu corpo E os meus olhos já sentem as suas mãos Pequenas a salvar o mundo. 12/2017
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O NATAL DE UM MENINO NEGRO
Não havia pastores em redor, andavam longe As cabras cheirando no chão o alimento O chão era igual, como há dois mil anos Duro como na estrebaria, nem sequer a leveza Da estrela a aquecer o lugar, a rua Tinha a porta aberta como uma casa E o menino igual a Ti, um Jesus africano dormia Guardado por uns olhos tão grandes Como o Amor, nas mãos a descreverem O Amor. Eu vi uma mulher menina Como Maria, com um pano tão branco Como o silêncio a segurar os cabelos crespos. 12/2017
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NOS DIAS MAIS SOMBRIOS, UMA GRANDE LUZ
No princípio era o silêncio, uma casa abandonada Grandes os desertos para o olhar dos homens No princípio um rosto de Deus Viria à gente humana, às sombras inclinadas Na terra viria a grande luz, agora poderiam Abrir as janelas para debruçar a solidão Um ramo de oliveira, ou ouvir os balidos Dos cordeiros com um só rebanho E um pastor, ver a noite mais clara de Belém No campo as mandolinas ou as liras Esperavam a música de um choro do Menino. 12/2017
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DEPOIS DA FESTA
Depois da Festa e depois mais tarde Dos pés adormecerem No manto frio da noite no deserto, dos anjos Que vieram depois trazer o pão do céu E de nas margens do Jordão dar o exemplo Da ressurreição e o baptismo da angústia No Getsémani e de saber que um Deus Pode suar gotículas de sangue, às vezes Pensou no colo e no ventre da mulher Que o trouxe ao mundo, depois do Natal Mais tarde envolveria o seu corpo na mortalha Outra vez no colo e nas mãos trémulas de Maria. 12/2017
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A ÚLTIMA CEIA NO CENÁCULO EM MILÃO
UM de vós me há-de trair e não adianta Esconder os olhos nas sombras Nem recolher os dedos como facas Prontas a ferir e nem guardar Entre os lábios o futuro beijo UM de vós me há-de trair Como distinguir o traidor? todos Os olhares se espantam e batem No peito alheio e todas as mãos Se alongam para afastar a mensagem UM de vós me há-de trair, a minha essência Divina diz-me quem, desde o princípio E ninguém viu, senão um pintor longínquo Esse silêncio triste. 2017
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ELA “E a costela que Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher” Gn 2,23
Ela tem a força das minhas costelas E a forma do meu corpo por dentro Ela não conheceu o barro De onde eu vim Ela saiu da minha concha O seu perfume sobe e desce ainda No meu sangue Até que a morte cale o coração O coração reconhece-a, é ela O verão no meu corpo envelhecido Que acordou do sono, ela é agora osso Dos meus ossos, carne da minha carne Ela é a fonte do meu riso.
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