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pesar da intolerância religiosa do Oriente ser mais alardeada pela pela mídia, ela causou e causa milhares e milhares de mortes pelos quatro cantos do mundo. Da Antiguidade, quando judeus e pagãos perseguiram os primeiros cristãos, passando pela Idade Média, Moderna e Contemporânea, a dificuldade em aceitar a opinião e a liberdade religiosa do próximo é fator de discórdia, guerras e tragédias. A matéria de capa desta edição da Conhecimento Prático – Filosofia faz um apanhado filosófico das divergências religiosas sob a óptica de nomes como John Locke, Voltaire, Bertrand Russell e Karl Popper. O ensaio do professor Francisco

Júnior Damasceno Paiva discute, entre outros itens, as relações entre as religiões e os Estados laicos, a contribuição dos iluministas para a humanidade e a indignação causada pelas atrocidades cometidas em nome de Deus. Não deixe de conferir também uma entrevista com o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Plínio Junqueira Smith, sobre um tema presente pelo menos uma vez na vida de todos nós: o ceticismo; uma crítica sobre a febre cinematográfica do momento, o filme “Avatar”; e um perfil da criadora do objetivismo, a filósofa Ayn Rand, cuja influência nos Estados Unidos é notável. Boa leitura!

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ANÁLISE

www.fullcase.com.br | (11) 5081 6965 filosofia@fullcase.com.br Editores: Edgar Melo – MTB 47.499 Karina Alméri – MTB 45.403 Editores-assistentes: Daniel Rodrigues Aurélio e Sheyla Pereira Diretor de arte: Angel Fragallo Coord. de arte: Samuel Moreno Revisão: Cristiane Garcia Fotos: Divulgação Diagramação: Carolina Ricciardi, Rodrigo R. Matias e Gabriel Seabra. Colaboradores: Daniel R. Aurélio, Francisco Júnior D. Paiva, Jorge Luis Gutiérrez, José Fernandes P. Júnior, Manoel P. Lima Júnior, Marcelo Galli, Pablo Fabiano B. Carneiro, Paulo Ghiraldelli Jr., Sergio A. Silva, Tatiana Martins Alméri

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[ SLAVOJ ŽIŽEK ] esgatar o pensamento de homens revolucionários, que estiveram à frente de seu tempo, a exemplo de Karl Marx, é entender um pouco dos fenômenos que acontecem na atualidade. Gostaria de parabenizar a Conhecimento Prático – Filosofia pela matéria de capa da edição passada sobre o trabalho do filósofo e psicanalista Slavoj Žižek, que mescla as mais diversas teorias para explicar fenômenos e situações diversas da sociedade atual, como a cultura pop, Guerra do Iraque e fundamentalismo. Com certeza, daqui a algum tempo, muitos pensadores irão recorrer a seu trabalho para compreender intempéries futuras.

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André B. Santos — São Paulo — SP

[ POPULARIZAÇÃO DA FILOSOFIA ] utro dia, assisti na televisão uma entrevista com o professor e filósofo Mario Sergio Cortella. Ele discorreu sobre temas importantes como moral e ética, educação contemporânea, cidadania, entre outros. Acredito que esse tipo de abordagem, que geralmente não é feita em um programa popular, deve ser, sim, direcionada à grande massa. A matéria da editoria “Ponto de Vista”, publicada na edição 22 da revista (Três Vezes Leszek Kolakowski), ajuda a disseminar entre os leigos a prática filosófica e, mais, a obra de Kolakowski, um dos mais respeitados do mundo.

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Pedro Henrique L. Novaes — Rio de Janeiro — RJ

[ DE CORPO E ALMA ] chei interessante a entrevista com a filósofa clínica Marta Claus, que mostra as diferenças desse segmento com duas práticas tão inerentes ao ser humano: a psicoterapia e a psicanálise. Não sabia que existia essa modalidade da filosofia e muito menos que ela pode ser tão útil à vida das pessoas. É mais um método para ajudar o homem moderno, que sucumbe a cada dia com tantos problemas existenciais. Para aproveitar esse gancho, gostaria de sugerir uma matéria sobre filosofia da mente. Acredito que nomes como Platão e Descartes tenham muito a falar sobre o corpo e a alma.

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Roberta R. Andrade – Por e-mail

[ INFLUÊNCIA ] ostaria de ler na revista um perfil sobre o célebre filósofo e escritor Lúcio Aneu Sêneca e sua obra literária. Acredito que a publicação ganha muito ao trazer nomes que influenciaram períodos importantes da História, como no caso de Sêneca, o Renascimento.

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Anderson P. Nascimento – São Paulo — SP Errata: Na Filosofoteca (ed. 22, pág. 62), o título corre-

As matérias, os artigos e as colunas aqui publicadas são de responsabilidade de seus respectivos autores; suas opiniões não refletem necessariamente as da editora e seus editores.

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FILOSOFIA

to do livro em destaque é "Deleuze, a Arte e a Filosofia". IMPRESSÃO E ACABAMENTO Oceano Indústria Gráfica Ltda.

Queremos ouvir sua opinião. Mande sua mensagem com críticas, comentários e sugestões sobre a revista. Por questão de espaço e clareza, nos reservamos o direito de publicar resumos das cartas enviadas.

Nós temos uma ótima impressão do futuro

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Capa

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Grosso Modo

A intolerância religiosa e o obscurantismo sob a óptica dos filósofos John Locke, Voltaire, Bertrand Russell e Karl Popper

A questão do animal político de Aristóteles e sua importância para a organização social e política

06 Entrevista | Um bate-papo com o professor Plínio Junqueira, da UNIFESP, sobre um tema crucial em períodos importantes da história: o ceticismo 10 Almanaque | Novidades e curiosidades 14 Ponto de Vista | Mais do que um estudo sobre a

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Análise O que a obra cinematográfica Avatar tem a ver com a filosofia? O professor Jorge Luis Gutiérrez explica!

arquitetura parisiense, “Passagens”, de Walter Benjamin, é a representação da modernidade 32 Ensaio | A filósofa e escritora Ayn Rand e o liberalismo radical do objetivismo 44 Outro Enfoque | A arte da resiliência “ensinada” por filósofos como Sócrates e Diógenes

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Ideias Saiba mais sobre filosofia pragmatista e as ideias de pensadores como William James e Richard Rorty

56 Em Debate | Os desafios da razão subjetiva e do exercício da reflexão em um mundo dominado pela valorização do material

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62 Filosofoteca | Livros e filmes 66 Retratos | Pablo Fabiano Barbosa Carneiro

Esta edição segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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ENTREVISTA

Com a pulga atrás da

orelha O

ceticismo está presente na história da Filosofia desde o seu início. “Foi um fator determinante em certos períodos cruciais, como o helenista e o Renascimento, constituindo-se um dos pilares sobre os quais foi edificada a filosofia moderna”, explica o estudioso sobre o tema, Plínio Junqueira Smith, professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Nesta entrevista concedida por e-mail para a revista, o acadêmico faz uma retrospectiva da trajetória da corrente filosófica que teve como artífice Pirro de Élis (360-275 a.C.), na Grécia antiga, e que estabelece a dúvida como premissa básica. Para ele, o ceticismo é uma ampla porta de entrada para a Filosofia, porque por meio do seu discurso se pode evitar a adoção prematura de alguma doutrina como sendo verdadeira e incontestável. Smith é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1986) e possui pós-doutorado na Universidade de Oxford (1997). O acadêmico preparou o livro “Dez Provas da Existência de Deus”, uma coletânea de textos clássicos, de Aristóteles a David Hume, que aborda o polêmico tema. E, ao lado de Waldomiro Silva Filho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), organizou o “Ensaios sobre o Ceticismo”. Ambos os trabalhos foram publicados pela Alameda Editorial. CONHECIMENTO PRÁTICO FILOSOFIA – Qual é a importância do ceticismo para a história da Filosofia? PLÍNIO JUNQUEIRA SMITH (PJS) – A bibliografia mais recente tem se dado cada vez mais conta de que o ceticismo desempenhou um papel

O ceticismo, que estabelece a dúvida como premissa básica, faz parte da história da Filosofia desde o seu início e pode ser uma ampla porta de entrada para a disciplina. POR MARCELO GALLI*

fundamental na história da Filosofia. De um lado, foi um fator determinante em certos períodos cruciais, como o período helenista e o Renascimento, constituindo-se um dos pilares sobre os quais se edificou a filosofia moderna. Mais recentemente, tem sido investigada sua presença decisiva no idealismo alemão. Aliás, percebe-se que essa presença é bem mais ampla do que se imaginava. Por exemplo, o ceticismo já aparece com certa importância no final da Idade Média e terá ainda forte influência no Iluminismo. Assim, o ceticismo esteve presente na maior parte dessa história e, em muitos momentos capitais, contribuiu para o seu desenvolvimento. Mas talvez se possa dizer que nossa própria concepção do que é a história da Filosofia pode ser modificada quando se atenta para essa extensão e importância do ceticismo. Comumente, pensamos na história da Filosofia como uma sucessão de sistemas filosóficos doutrinários ou dogmáticos; esse pensamento é correto para muitos períodos da história da Filosofia, como de Agostinho a Tomás de Aquino. Mas nem sempre a polêmica fundamental que move a Filosofia se dá entre concepções dogmáticas. Há períodos em que a oposição fundamental é travada entre o dogmatismo e o ceticismo. Não por acaso, Pascal a disse que “é necessário que cada um tome partido e se coloque necessariamente ou nas fileiras do dogmatismo, ou nas do pirronismo. Porque quem pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência” (P, 131). Muito tempo depois, Fichte, no prefácio da primeira edição de “Sobre o Conceito da Doutrina-da-Ciência”, reconheceu que, com a leitura dos novos céticos, em particular de Enesidemo e das excelentes obras de Maimon, o autor deste trabalho convenceu-se ple-

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CP FILOSOFIA – Trabalhando já faz algum tempo com temas relacionados ao ceticismo, qual é a sua impressão da falta de compreensão ou da interpretação errada das pessoas de forma geral sobre o assunto? PJS – Meu trabalho principal, além da pesquisa, é dar aulas, e muitos de meus cursos giram em torno do ceticismo: de um tema cético, de um autor cético ou de críticas ao ceticismo e autores que combatem o ceticismo. Eles desconhecem o ceticismo como uma corrente filosófica e é preciso introduzi-los no assunto. De um modo geral, os alunos têm uma resposta bastante favorável ao ceticismo: é um tema pelo qual muitos imediatamente se interessam. O ceticismo diz respeito à vida das pessoas e, não raro, corresponde à experiência que elas trazem. Além disso, por questionar uma teorização por vezes excessivamente abstrata expressa numa linguagem técnica, o ceticismo emprega uma linguagem mais acessível, pautada pela clareza, sem conceitos obscuros ou argumentos rebuscados, abstrusos e tortuosos. Finalmente, o ceticismo é uma boa porta de entrada para a Filosofia, evitando a adoção prematura de alguma doutrina, seja ela qual for. Mas, claro, nem to-

CP FILOSOFIA – Como o ceticismo pode ser aplicado na vida comum, no dia a dia? PJS – Atualmente, poucas filosofias pretendem ser aplicadas na vida comum ou mesmo ter repercussões mais diretas sobre ela. Se, noutras épocas, a Filosofia era uma forma de vida, hoje ela se converteu em uma atividade puramente teórica, seja de estudo de sua história ou de uma discussão sobre conceitos. Mas, no Brasil, o neopirronismo proposto e defendido por Oswaldo Porchat a pretende integrar a Filosofia com a vida comum; o ceticismo seria uma maneira de efetuar essa conciliação, já que a filosofia dogmática teria se divorciado da vida comum. David Hume, por exemplo, referindo-se à teoria ocasionalista de Malebranche, diz ironicamente que, ao postularmos que somente o Ser Supremo é causa real, já estamos no país dos contos de fadas e deixamos para trás a vida comum; e recomenda misturar um pouco de terra aos conceitos vazios do dogmatismo. O ceticismo, portanto, pretende se situar próximo à vida comum. Eu acho que o ceticismo não se aplica diretamente na vida comum, não há certas prescrições teóricas tais que, se forem seguidas à risca, nossa vida se tornará melhor. O ceticismo é, antes de tudo, uma experiência intelectual e, como toda experiência genuína, ele tem um impacto sobre nós. Uma pessoa que meditou longamente sobre várias filosofias, que examinou os diversos argumentos propostos pelos

DR. CRAFT'S

dos se identificam com o ceticismo ou se interessam por ele. Isso é natural. Uma das razões, parece-me, é que muitas pessoas esperam algo mais positivo da Filosofia, não somente uma atitude crítica; elas esperam uma verdade, um discurso no qual possam confiar, resultados sólidos e permanentes. Assim, o ceticismo também decepciona muita gente, pois não oferece o que elas esperam da Filosofia: um certo tipo de conhecimento seguro sobre as coisas. Porém, aqui ocorre a falta de compreensão a qual você se referiu na sua pergunta: há uma imagem difundida do ceticismo como uma forma de pensamento estritamente negativa e que, se houver algo de positivo no seu ceticismo, o cético estará se contradizendo. Essa imagem errônea atrapalha mesmo estudos mais especializados do ceticismo. O cético talvez tenha mais a oferecer do que somente a crítica ao dogmatismo. De qualquer maneira, o que o cético não pode oferecer é uma verdade absoluta sobre as coisas.

a Pascal

Filósofo moralista, matemático e físico, Blaise Pascal (16231662) nasceu em Clermont-Ferrand, na França. Suas ideias contribuíram para, por exemplo, a “Teoria das Probabilidades”. No campo da computação, uma linguagem de programação criada pelo cientista da computação suiço Niklaus Wirth foi batizada de Pascal.

USP

namente de algo que já antes lhe parecia altamente provável: que a Filosofia, mesmo com os recentes esforços dos homens mais penetrantes, ainda não se elevou à categoria de ciência evidente. Os esforços de Descartes e Kant, que buscaram refutar o ceticismo, não teriam sido suficientes para afastar a dúvida cética. Essas observações de Pascal e Fichte mostram que se pode conceber a história da Filosofia não como uma empresa bem-sucedida rumo à verdade, mas como uma tensão permanente entre dois polos opostos. Nessa concepção, a Filosofia não progrediu ao longo do tempo, mas ficou presa nesse conflito talvez insuperável. É mais prudente não fazer um julgamento sobre um caráter permanente da Filosofia e dizer somente que o ceticismo, em períodos decisivos da história da Filosofia, constituiu-se no obstáculo principal a ser superado. Longe de ser sempre a sucessão de teorias dogmáticas em conflito, a história da Filosofia, muitas vezes, tem como motor principal a tarefa de superar o desafio proposto pelos céticos. Sem entendermos o papel exato desempenhado pelo ceticismo nesses períodos, como suas dúvidas foram propostas e qual a reação de certos pensadores, não se pode entender adequadamente o desenvolvimento da Filosofia.

a Oswaldo Porchat

Tido como fundador do neopirronismo, o filósofo brasileiro Oswaldo Porchat Pereira é professor emérito da Universidade de São Paulo - USP. É autor de um importante artigo sobre o ceticismo: “O ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos”.

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CORPUSETAMPOIS

a Pierre Bayle

COMMONS

Filósofo e enciclopedista francês, Pierre Bayle (1647-1706) escreveu textos sobre o ceticismo. Filho de um ministro protestante, Bayle converteu-se posteriormente ao catolicismo. É autor do “Dicionário Histórico e Crítico”.

a Sexto Empírico Sexto Empírico foi um médico e filósofo grego cujo pensamento é uma grande fonte de estudos para o ceticismo pirrônico. Acredita-se que tenha vivido entre os séculos 1 e 2.

filósofos, que se deu conta das dificuldades em estabelecer qualquer um dos diversos pontos de sua investigação, que não foi capaz de optar por uma teoria em particular, mas percebeu que as várias teorias propostas são igualmente persuasivas e que, portanto, questionou se tais crenças filosóficas são verdadeiras (como alegam seus defensores); uma pessoa que passa por essa experiência durante muitos anos de sua vida acaba por se tornar diferente do que era antes de sua aventura filosófica: não somente mais rigorosa no raciocínio ou mais exigente para dar seu assentimento, mas também mais aberta para os dois lados de uma questão, mais sensível às diferentes perspectivas, capaz de compreender melhor um pensamento diferente, mais tolerante também. Acho que uma pessoa que se tornou cética depois de passar por uma experiência intelectual desse tipo não será a mesma, inclusive no seu dia a dia. Ela se entregará às tarefas cotidianas, como Pirro varria a casa e cuidava dos afazeres domésticos com sua irmã, sem sentir nenhuma vergonha ou diminuição por isso. No contexto grego, era surpreendente que um homem, em particular um filósofo, pudesse levar uma vida (iluminada por sua Filosofia) imersa no cotidiano fazendo o que todo mundo fazia, inclusive o que era feito por mulheres e escravos. Talvez não se tenha atentado suficientemente para esse lado liberador e igualitário do ceticismo de Pirro. A imersão cética na vida cotidiana está associada a uma visão igualitária do ser humano. CP FILOSOFIA – Você coordena um grupo sobre o assunto (Projeto Temático “O significado filosófico do ceticismo”, apoiado pela FAPESP). Conte um pouco sobre esse trabalho e discussões importantes que foram desenvolvidas nesse fórum. PJS – De fato, o projeto se encerrou em junho do ano passado, depois de quatro anos de intensas atividades. O projeto se estruturou em torno de dois eixos, um histórico e outro de reflexão pessoal sobre temas atuais ligados ao ceticismo. Além de estudarmos com mais cuidado a história do ceticismo, procuramos desenvolver, a partir do neopirronismo do Porchat, reflexões atuais sobre o ceticismo. Creio que o aprofundamento dos debates sobre o neopirronismo é um ponto de destaque desse projeto, pois o Brasil já produz excelentes estudos históricos sobre os mais variados autores e períodos há muito tempo, mas a consti-

tuição de uma rede de discussão filosófica é algo mais raro entre nós. Outro aspecto importante do projeto foi o aprofundamento da integração do grupo (que inclui filósofos de outros Estados) com renomados pesquisadores internacionais. Organizamos colóquios, convidamos pesquisadores e fundamos uma revista exclusivamente dedicada ao ceticismo, a Sképsis. Com o desenvolvimento das pesquisas filosóficas no Brasil (o grupo sobre ceticismo é um entre outros), o resultado natural é a substituição de revistas mais genéricas por revistas altamente especializadas. CP FILOSOFIA – O grupo estuda a dimensão histórica da corrente filosófica ou coloca em pauta a discussão contemporânea sobre o assunto? PJS – Ambas as coisas, já que a dimensão histórica e a discussão contemporânea eram os dois eixos do projeto. CP FILOSOFIA – Em quais países atualmente o tema do ceticismo é estudado com mais qualidade e tradição? Além do Brasil, na América Latina existe algum grupo importante? PJS – Os principais estudos sobre a história do ceticismo são de americanos e ingleses. A filosofia analítica, mais do que qualquer outra corrente, se interessou pelo ceticismo, tanto por sua história, como pelo desafio intelectual que propunha. Mas também há estudos importantes na França, na Itália e no Canadá. Já na América Latina, o Brasil é referência para os estudos sobre ceticismo, embora na Argentina e no México também existam muitos filósofos interessados no ceticismo. CP FILOSOFIA – Há alguma relação entre a origem do ceticismo e assuntos como a existência de Deus ou dogmas religiosos? PJS – Acho que a origem histórica do ceticismo na Grécia antiga tem pouco a ver com a crença na existência de Deus ou em dogmas religiosos. Creio que é a experiência intelectual diante das propostas dos filósofos dogmáticos que desencadeou historicamente a vertente cética. Mas, claro, o itinerário pessoal de cada um em direção ao ceticismo pode se dar das mais diferentes maneiras. Uma pessoa pode se dirigir para o ceticismo quando começa a ter sérias dúvidas sobre suas crenças religiosas e a perder a fé. Porém, uma pessoa talvez possa se tornar cética quando percebe

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crenças filosóficas é dogmático; quem não tem nenhuma crença filosófica é um cético. Não é possível ter e não ter crenças filosóficas ao mesmo tempo.

CP FILOSOFIA – De que maneira a teoria do ceticismo vai questionar a verdade como um valor fundamental, como é defendida pela Ciência, por exemplo? PJS – Não sei se a verdade é um valor fundamental defendido pela Ciência; há controvérsias a esse respeito. Alguns pensam que a verdade não é importante para a Ciência, mas sua capacidade de previsão e controle da natureza. Aliás, a Ciência é passível de uma interpretação cética; esse é um dos lados positivos do ceticismo ao qual não se costuma dar a devida atenção. Pierre Bayle a, no final do século XVII, já dizia isso da ciência moderna, que todos os cientistas eram céticos porque pensavam que a natureza era um “abismo impenetrável” e que bastava buscar hipóteses prováveis e realizar experimentos. De outro lado, é certo que a verdade é um valor importante, mas não o único. É preciso ver que outros valores são pelo menos tão importantes quanto a verdade. Suponha que, na época do nazismo, alguém esconde um amigo judeu no sótão da sua casa e um soldado nazista, buscando judeus, pergunta-lhe se ele esconde um judeu. Nesse caso, parece-me, ele não deve dizer a verdade, pois esta é certamente menos importante do que a vida de uma pessoa injustamente perseguida por um regime totalitário.

CP FILOSOFIA – Uma postura “cética” não coloca em xeque a possibilidade de fundamentação moral ou ética? Não sustenta o argumento de um comportamento egoísta, por exemplo? PJS – Uma postura cética certamente coloca em xeque a possibilidade de uma fundamentação absoluta da moral, baseada em Deus ou numa determinada concepção da natureza, por exemplo. Porém, ela não exclui a possibilidade de uma conduta moralmente correta, nem a capacidade de o cético justificar suas ações, de dar boas razões para o que faz. Em particular, o cético não é um egoísta, embora alguns estudiosos, como David Fate Norton, entendam que o egoísmo de tipo hobbesiano e lockeano seria uma forma de ceticismo. Mas o fato é que Hobbes e Locke não são céticos; eles foram lidos talvez equivocadamente assim. Os filósofos que se assumem como céticos não são egoístas: Sexto Empírico a, um cético antigo que é nossa principal fonte sobre o ceticismo antigo, dizia que os dogmáticos eram “philautói”, isto é, amantes de si mesmos; enquanto o cético era “philântropos”, isto é, amante da humanidade. Hume, um cético moderno, combateu vigorosamente a doutrina moral egoísta. E também não se encontram traços “egoístas” no pensamento moral de Montaigne. Os céticos, de um modo geral e de acordo com suas doutrinas, tendem a viver a vida comum, seguindo costumes, obedecendo as leis, integrando-se à vida com seus semelhantes. Essa concepção vai na direção oposta da doutrina egoísta. Mas, claro, nada garante que um cético não possa ser, em sua vida pessoal, um egoísta; afinal, ele é um ser humano como os demais.

CP FILOSOFIA – Não há o risco de uma pessoa cética tornar-se um equivalente ao dogmático? PJS – O risco sempre existe: um cético pode, um belo dia, vir a aceitar crenças filosóficas, porque certos argumentos o persuadiram da verdade dessas crenças. Nesse caso, esse filósofo deixa de ser cético para tornar-se um dogmático. Ou ele pode ter crenças filosóficas sem se dar conta disso; acho natural que uma pessoa se engane sobre si mesma. Se, entretanto, um cético descobre que tem uma certa crença filosófica (porque, por exemplo, alguém lhe aponta isso), então ele deve abandoná-la, sob o risco de deixar de ser cético (coisa que ele pode fazer naturalmente). Mas caracterizar um filósofo como um “cético dogmático” é quase igual dizer que uma figura é um “círculo quadrado”. “Cético” e “dogmático” são termos correlativos e mutuamente excludentes, como esquerda e direita: um se define em relação ao outro por exclusão mútua. Quem tem

CP FILOSOFIA – É possível traçar uma relação possível entre a ironia e uma postura cética? PJS – Hume, um cético, era um pensador irônico, com muito humor. O mesmo se pode dizer de Montaigne. Para alguns, a ironia socrática, que mostrava ao sofista que ele não sabia o que dizia saber, está na origem do ceticismo. Não por acaso, Arcesilau e Carnéades, dois chefes da Academia fundada por Platão, retomaram esse aspecto do pensamento de Sócrates (e de alguns diálogos de Platão) ao darem um direcionamento cético. Mas não há uma relação necessária entre ironia e postura cética; esta postura pode prescindir da ironia.

Plínio Junqueira Smith

DIVULGAÇÃO

que nem a Ciência oferece uma verdade absoluta, mas somente hipóteses mais ou menos bem corroboradas que permitem lidar com o mundo.

* Marcelo Galli é jornalista e escreve para esta publicação

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ALMANAQUE

RENÉ DESCARTES “DISCURSO DO MÉTODO”

“Um esquema que se tem confirmado na história de todas as perseguições é que a sanha contra os fracos dirige-se sobretudo contra os que são julgados socialmente débeis e ao mesmo tempo – com ou sem razão – felizes” COMMONS

“As maiores almas são capazes dos maiores vícios tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam”

THEODOR W. ADORNO “EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ”

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FRASES

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O QUE É

Corrente de pensamento abrangente, as teorias e metodologias estruturalistas foram muito difundidas por acadêmicos das áreas de ciências humanas e sociais durante a segunda metade do século 20. O estruturalismo provém de duas “fontes primárias”: na Psicologia, com o conceito de “estrutura da mente” proposto pelo médico, psicólogo e filósofo alemão Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920), um dos fundadores da psicologia experimental; e na Linguística, por meio do trabalho do filósofo e estudioso da linguagem suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), autor do “Curso de Linguística Geral”(1916). Na balança de importância, sabe-se que Saussure foi mais decisivo para a verdadeira “febre estruturalista” nos anos 1950 e 1960. Grosso modo, os estruturalistas acreditam que é mais importante analisar as estruturas (modos de funcionamento, regras, códigos, regularidades) do

que interpretar os fenômenos em si. Não foram só psicólogos e linguistas que utilizaram o estruturalismo em seus livros e pesquisas. Filósofos, historiadores, sociólogos e antropólogos passaram a analisar seus objetos de estudo a partir da perspectiva estruturalista. Para citar um exemplo famoso, temos o caso do antropólogo franco-belga Claude Lévi-Strauss (19082009), cuja bibliografia inclui os clássicos “Antropologia Estrutural I” e “II”. Nas décadas seguintes ao boom estruturalista, surgiram outras tendências, como a dos pós-estruturalistas.

Wilhelm Maximilian Wundt

Claude Lévi-Strauss

Ferdinand de Saussure

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ESTRUTURALISMO

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DA REDAÇÃO

PARA DEGUSTAR 5 LIVROS SOBRE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Relações internacionais e Filosofia: tudo a ver! Os fundamentos, as teorias e as práticas da diplomacia internacional se orientam por premissas de grandes filósofos e formuladores teóricos. Confira uma lista de cinco títulos interessantes para quem pretende se aprofundar nesse tema. À Paz Perpétua (L&PM, 2008), do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).

O Homem, o Estado e a Guerra

Teoria das Relações Internacionais

Relações Internacionais Contemporâneas

(Martins Fontes, 2004), do cientista político norte-americano Kenneth Waltz.

(Alamedina, 2008), do jurista e sociólogo português Adriano Moreira.

(Vozes, 2005), do cientista político brasileiro José Augusto Guilhon Albuquerque.

.NET MUNDO DOS FILÓSOFOS.COM

O site Mundo dos Filósofos oferece aos internautas um conteúdo muitíssimo bem cuidado, organizado e didático acerca dos vários períodos, autores e escolas da tradição filosófica ocidental – do Período Clássico ao Contemporâneo – além de publicar um tópico sobre mitologia greco-romana e seções com artigos de filosofia do Direito assinados por vários colaboradores especialistas. www.mundodosfilosofos.com.br

Paz e Guerra entre as Nações (UnB, 1979), do filósofo e sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983).

POR DENTRO

ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOSOFIA

Você conhece a Academia Brasileira de Filosofia? Fundada no Rio de Janeiro no ano de 1989, a Academia tem como objetivo organizar eventos e congressos e promover a “divulgação e preservação da memória da cultura filosófica brasileira”. A ABF está sediada desde 2003 na Casa Histórica de Osório, no centro do Rio, local que foi residência do marechal Manuel Luis Osório (1808-1879), patrono da Cavalaria do Exército Brasileiro. Entre os seus membros fundadores destacam-se Miguel Reale (1910-2006), Gerardo Mello Mourão (1917-2007) e José Guilherme Merquior (1941-2001), todos identificados como pensadores da direita brasileira.

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CURIOSIDADES SOBRE LUDWIG WITTGENSTEIN (1889-1951)

- Nascido em uma riquíssima família de Viena, Wittgenstein herdou uma formidável fortuna com a morte do pai, em 1913. No entanto, resolveu doar o dinheiro para artistas e poetas. - Aluno de Bertrand Russell em Cambridge e autor de “Investigações Filosóficas” (1953), o filósofo austríaco é tido como um dos expoentes da filosofia analítica. - Durante a Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein alistou-se no exército austríaco. Enviado ao front na Rússia e Itália, acabou preso pelos italianos em 1918 e solto um ano depois. - Alguns especialistas dividem a obra de Wittgenstein em duas fases: Witt-1 (até 1929), cujo ápice foi o “Tratado Lógico Filosófico” (1921) e Witt-2 (pós-1930).

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- Participou também da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como voluntário de um Hospital de Londres. Faleceu no dia 29 de abril de 1951, em Cambridge, na Inglaterra.

PALAVRAS E TERMOS HILEMORFISMO

Junção de duas palavras de raiz grega – hylé (matéria) e morphé (forma) – , o termo “hilemorfismo” batiza um conceito atribuído ao filósofo grego Aristóteles de Estagira e retomado pela tradição escolástica. De acordo com a teoria aristotélico-escolástica, o hilemorfismo é uma doutrina segundo a qual os seres corpóreos são compostos por duas partes complementares: a matéria (matéria primordial) e a forma (forma substancial). É uma fonte de estudo central para a chamada Antropologia Filosófica.

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HISTÓRIA

ZAP

FILÓSOFOS NA TV

Filósofos não costumam ser figurinhas fáceis na televisão brasileira. Normalmente eles aparecem em documentários, programas do tipo “Café Filosófico” ou “Em Debate” e emitindo suas opiniões a respeito de temas quentes, como a corrupção ou o código penal. Mas há pelo menos dois exemplos que fogem à regra: Viviane Mosé e Márcia Tiburi. Mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mosé apresentou em 2005 e 2006 o quadro “Ser ou não Ser?” no Fantástico, da Rede Globo. Já Tiburi, doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é desde 2005 uma das participantes do programa “Saia Justa”, exibido pelo canal por assinatura GNT. Quem também deu as caras em rede nacional foi o professor da USP Renato Janine Ribeiro, com a série “Ética”, cujas temporadas foram mostradas no canal Futura, na Rede Globo e na TV Cultura.

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BIOGRAFIA BENTO PRADO JR. (1937-2007)

+INFORMAÇÃO OS ALEMÃES NA REDE

Na edição passada da revista Conhecimento Prático – Filosofia, tremulamos a bandeira da Grécia. Agora é a vez de outra superpotência da Filosofia, a Alemanha, com seus supercraques Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Heidegger, Adorno e Habermas. Veja abaixo uma lista com dicas de sites, em português e inglês, sobre grandes pensadores alemães: Sociedade Kant Brasileira www.kant.org.br Nietzsche (Stanford Encyclopedia of Philosophy) plato.stanford.edu/entries/nietzsche Cadernos Nietzsche/ GEN fflch.usp.br/df/gen/cn/edicoes.html Escola de Frankfurt (Portal Terra) educaterra.terra.com.br/voltaire/ cultura/2006/04/18/002.htm Marx (Stanford Encyclopedia of Philosophy): www.iep.utm.edu/plato Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA): www.marxismo.com.br Heidegger (Internet Encyclopedia of Philosophy): iep.utm.edu/heidegge

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Autor de magníficos tratados e ensaios sobre Henri Bergson (1859-1941) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o filósofo Bento Prado de Almeida Ferraz Júnior nasceu na cidade de Jaú, interior de São Paulo, no dia 21 de agosto de 1937. Cursou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) de 1956 e 1959, assumindo o posto de professor da instituição em 1961. Precoce, aos vinte e oito anos defendeu a tese de livre-docência intitulada “Presença e Campo Transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson” (1965), trabalho de referência para os estudos bergsonianos. Perseguido pela ditadura militar, foi aposentado compulsoriamente em 1969, alvejado pelo Al-5. Bento Prado Jr. partiu para o exílio em Paris. Ficou por lá até 1974. De volta ao Brasil, o filósofo de Jaú entrou em 1977 para o corpo docente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), instituição em que lecionou até fins de 2006. Em 1998, recebeu o título de professor emérito da USP. Grandes filósofos brasileiros da atualidade, como Marilena Chauí e Paulo Arantes, foram seus alunos. Bento Prado Jr. faleceu na Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, vítima de complicações decorrentes de um câncer de laringe. Bento Prado deixou um legado de obras primorosas, do quilate de “Alguns Ensaios” (Paz e Terra, 2000), “Erro, Ilusão, Loucura” (Editora 34, 2004) e “A Retórica de Rousseau e outros ensaios” (2008), coletânea organizada por Franklin de Mattos e publicada postumamente pela editora Cosac Naify.

Schopenhauer (Uol Educação) educacao.uol.com.br/biografias/ ult1789u341.htm

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PONTO DE VISTA

A Arquitetura da Modernidade Para além de um estudo sobre a arquitetura de Paris, “Passagens”, de Walter Benjamin, é uma primorosa reflexão sobre a modernidade. POR MANOEL PEREIRA LIMA JR*

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O

estilo da escrita filosófica de Walter Benjamin (1892-1940) não é somente uma preferência metódica. é também a construção e representação de uma imagem que caracteriza a modernidade, a saber: a da fragmentação e da transitoriedade no mundo prosaico. Katia Muricy a nos diz que “experiência e linguagem são os dois grandes temas que estruturam a filosofia de Benjamin” (1998, p. 18). É claro que não se trata da linguagem no sentido que os analíticos usam, mas sim de uma ousada e inovadora proposta, que coloca a experiência vivida em primeiro plano. Ainda para Muricy, O ensaio, o fragmento, o aforismo – formas privilegiadas da descontinuidade – dão expressão em sua escrita ao ritmo intermitente que Benjamin reconhece como adequado ao pensamento, que volta, recomeça sempre e faz do desvio o seu método. (id. Ibidem.) Essa forma de interpretação do mundo e do pensamento é útil aos propósitos de Benjamin de resistir ao capitalismo e de oferecer um outro modelo de construção do conhecimento e das relações sociais. Assim, o termo “passagens”, na obra de Benjamin, tem sentido alegórico, isto é, não só diz como mostra um modelo de figuração da realidade que foge à linearidade lógico-positivista, pois, “a alegoria é uma escrita por imagens em que a fragmen-

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a Katia Muricy

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Professora do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Katia Muricy fez mestrado e doutorado em Filosofia na Universidade de Louvain (Bélgica) e pós-doutorado na Universidade Paris X. Publicou “Alegorias da Dialética – imagem e pensamento em Walter Benjamin” (RelumeDumará, 1998).

a Galerias

Parisienses

Quando falamos sobre a cidade de Paris vista por Benjamin, devemos lembrar que a capital francesa passara por uma ampla reforma urbana no século XIX, capitaneada pelo prefeito do departamento do Sena, GeorgesEugène Haussmann, o Barão Haussmann.

tação constitutiva atende tanto à exigência de um conhecimento imediato quanto à natureza do pensamento” (id, p. 21). Ou seja, o conceito de passagens implica tanto uma escrita, quanto uma imagem que correspondam à vivência produzida pela modernidade: a pulverização dos indivíduos em meio à produção de mercadorias e da noção de progresso introduzida pelo esclarecimento. Desta forma, “passagens” não é só o nome de uma grande obra filosófica produzida por um filósofo extravagante. Tampouco é uma mera referência às Galerias Parisienses a. “Passagens”, mais do que uma teoria, mais do que um nome, designa um exercício prático de reconfiguração da organização social. O conceito de passagens implica um jogo entre os vários sentidos possíveis do termo na sociedade capitalista e cabe à Filosofia desnudar tais sentidos, uma vez que “a Filosofia é, para ele, uma forma de prosa que dispensa a coerência dedutiva da ciência, a lógica do sistema, o caráter coercitivo da demonstração matemática” (id, p. 18). Portanto, “passagens” pode significar uma síntese da escrita fragmentária e alegórica de Benjamin. Nesse sentido, Seu esforço será o de construir uma escrita que possa ser, ao mesmo tempo, uma reflexão – sem, por isto, constituir-se como uma construção conceitual abstrata – e uma expressão do singular, do concreto e do fugaz – sem, por isto, abdicar da dimensão críticofilosófica. (id, p. 23) Esse modelo interessa a Benjamin, sobretudo, pela sua riqueza interpretativa, que não tenta reduzir o mundo a uma forma lógica abstrata. Muricy acrescenta algo a mais a respeito do conceito de “passagens”: Em seu trabalho sobre as Passagens parisienses, que pretendia fornecer uma visibilidade (Anschaulichkeit) do século XIX, Benjamin formula a sua exigência epistemológica: “Nos domínios que nos ocupamos não há conhecimento senão fulgurante”. Um pensamento por imagens atende essa exigência de imediatidade. Só a mudança radical da maneira habitual de pensar por conceitos poderá tornar possível

novas formas de conceber o tempo e a história: “educar em nós o elemento criador de imagens para ensiná-lo a ver de maneira estereoscópica e dimensional na profundeza das sombras históricas”.(id, p.23) Dificilmente alguém teria produzido uma imagem do século XIX melhor do que essa. Entretanto, o importante de se notar, aqui, é a força alegórica do termo “passagens”. Nesse ponto a arquitetura e o urbanismo moderno surgem como elementos teóricos da filosofia de Benjamin, pois, como sabemos, as passagens parisienses foram construídas a partir de uma arquitetura da transparência: Glasarchitektur. Isso significa dizer que a obra “Passagens” – e todo o seu conteúdo – não é só um estudo das passagens de Paris, é também uma arquitetura do século XIX, em que o alicerce é escavado e exposto ao olhar do filósofo. IMAGEM ARQUITETÔNICA DA MODERNIDADE No texto, “Paris, capital do século XIX”, de 1935, Benjamin destaca dois aspectos importantes no surgimento das passagens: “A maioria das passagens de Paris surge nos quinze anos após 1822. A primeira condição para o seu aparecimento é a conjuntura favorável do comércio têxtil” (BENJAMIN, 2006, p. 39); mais adiante diz ainda que: A segunda condição para o surgimento das passagens advém dos primórdios das construções de ferro. O Império percebeu nesta técnica uma contribuição para renovar a arquitetura no espírito da Grécia antiga. Boetticher, o teórico da arquitetura, expressa a convicção geral ao afirmar que ‘quanto às formas artísticas do novo sistema’, deveria entrar em vigor ‘o princípio formal do estilo helênico’ (id, p. 40). Portanto, o novo conceito arquitetônico – com base no ferro e no vidro – além de ter uma preocupação funcional, estava preocupado também com a plasticidade e elegância dos novos espaços. Benjamin nos diz que “nas vigas de sustentação esses arquitetos imitam as colunas pompeanas e suas fábricas parecem moradias, assim como mais tarde as primeiras

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Citar, em Benjamin, é ato destrutivo que quebra a unidade da obra ao arrancar a frase, o pensamento, de seu contexto e transportálo para outro, violando o seu sentido original, rompendo a continuidade argumentativa (MURICY, 1998, p. 26). Essa forma de construção do texto em Benjamin nos conduz a duas interpretações: uma de cunho político e outra de cunho epistemológico. A primeira coloca em xeque a noção de progresso da modernidade, visto que Benjamin, nas “Passagens”, identifica algumas personagens que oferecem resistência ao capital: o flâneur, o jogador e o colecionador, por exemplo, que tentam escapar ao fetiche da mercadoria. É o próprio Benjamin que nos diz que “a ociosidade do flâneur é um protesto contra a divisão do trabalho” (2006, p. 471). Ou, o que dá no mesmo, “não estaria ele acostumado a reinterpretar a imagem da cidade, por toda parte, em razão das suas constantes andanças? Não transformaria ele a passagem em um cassino, em um salão de jogos [...]” (id, p. 531). Como se vê, do ponto de vista político, a obra elabora a estratégia de resistência ao capital, já que os seus objetos de estudo não se submeteram à fugacidade do mercado. Por assim dizer, “Passagens” também é um livro político, sobretudo, quando trata do flâneur: “O flâneur encontra-se ainda no limiar tanto da grande cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas sente-se em casa. Ele busca um asilo na multidão” (id, p. 47). Já do ponto de vista epistemológico, as “Passagens” são uma ruptura com o logicismo e o princípio de verificação predominante à época de Benjamin. Afirma Muricy que, “o uso da citação está, em Benjamin, estreitamente ligado à sua concepção do pensamento como atividade descontínua, sem a unificação do sujeito, na exterioridade dispersiva da linguagem, na disciplina da escrita” (1998, p. 27). Isto é, romper com o modelo capitalista de produção e com a submissão da razão à lógica dedutiva é romper com o modelo de pensamento vigente, é propor novas formas e modos de dizer e interpretar o mundo. Assim

aSurrealismo

Movimento artístico que despontou em Paris na década de 1920. Os surrealistas valorizam a dimensão onírica e o inconsciente, com notória influência de Sigmund Freud e da Psicanálise. Seus expoentes são André Breton (literatura), Salvador Dalí (artes plásticas) e Luis Buñuel (cinema).

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imitavam chalés” (id, ibidem.). Tudo isso é motivo de estupefação para o flâneur (uma espécie de andarilho, alguém que passeava pelas ruas de Paris). Perceber uma mudança tão radical e em tal velocidade em um tempo tão curto provoca-lhe um estado de choque. Certamente, também Benjamin ficou estupefato – na condição de homem de pensamento – pois, “pela primeira vez na história da arquitetura, surge com o ferro um material de construção artificial” (id, ibidem). O uso do ferro na arquitetura ganha impulso com a utilização dos trilhos nas ferrovias. Daí pra diante, foi só uma questão de tempo chegar às vigas de ferro. Por meio desta análise, Benjamin, na condição de filósofo, fez uma descoberta digna de um autêntico flâneur: “Evitava-se ferro em construções residenciais, mas é utilizado em passagens, pavilhões de exposição, estações de trem – construções que serviam para fins transitórios. Simultaneamente, amplia-se o campo arquitetônico de aplicação do vidro” (id, ibidem). Então, resumidamente, refletir a arquitetura e o urbanismo do século XIX é compreender a modernidade. O flâneur, neste caso, era uma figura que vivia em permanente estado de choque, uma vez que, a um só tempo, percebia as mudanças com admiração e se desesperava com a fluidez de tudo. Esse era o mundo que estava diante dos olhos de Benjamin. E foi esse mesmo mundo que ele demonstrou nas “Passagens”. É impressionante notar que Benjamin analisa o urbanismo e a arquitetura moderna como lugar de passagem, isto é, de não permanecer. O nome “Passagens” para sua obra filosófica não pode ser gratuito. Nela, Benjamin reflete a experiência moderna da estação ferroviária, do pavilhão de exposição e das passagens. Ora, todos esses são lugares de não-permanência, onde circulam pessoas e mercadorias, onde a vida doméstica perde espaço para a vida publicizada, fragmentada e fugaz. Esse é o mesmo modelo arquitetônico da obra. Como é sabido, Benjamin fez da citação um método de filosofar. Não obstante, citar para ele é mais do que repetir uma proposição.

a Willi Bolle

Nascido na Alemanha, é professor titular do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP. É autor, entre outros, do livro “Grandesertão.br”.

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BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte e São Paulo: UFMG/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Willi Bolle (org.).

REFERÊNCIAS

BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna. S. P.: Edusp, 2000. MURICY, Katia. Alegorias da Dialética. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1998.

sendo, com a obra “Passagens”, Benjamin pretende ter o mesmo tipo de comportamento do flâneur diante da modernidade: a atividade do flâneur é livre e consciente, enquanto que a do badaud (ou basbaque) é impulsionada pelas coisas que ele contempla, quer dizer, ser capaz de contemplar sem perder a consciência. Para Benjamin, “(...) o simples flâneur está sempre em plena posse de sua individualidade; a do badaud, ao contrário, desaparece, absorvido pelo mundo exterior(...) que o impressiona até a embriaguez e ao êxtase” (2006, p. 473). O flâneur preserva a própria identidade, mas o basbaque se perde na multidão. Portanto, “Passagens” (enquanto crítica epistemológica) preserva o caráter de um conhecimento que leva em conta a história, a cultura e a tradição coletiva, quer dizer, a experiência. Ele não se perde na força avassaladora da razão instrumental. Até mesmo por isso tudo, a construção literária das “Passagens” é feita de fragmentos, à maneira de um quebracabeça ou um mosaico. Este modelo de construção corresponde ao que era o urbanismo e a arquitetura para o flâneur: as casas e as ruas representam épocas históricas diferentes e fazem emergir, simultaneamente, tempos diversos (não lineares) que irrompem no presente. O lugar de convergência é a praça de Paris, onde as ruas desembocam as correntes da história. Assim, o flâneur é capaz de retomar e remontar o passado histórico a partir do presente, apontando para um futuro repleto de possibilidades. Esta imagem da cidade e da história é a imagem materializada nas “Passagens”. O ONÍRICO Dentre as influências sofridas por Benjamin, o surrealismo foi uma das mais fortes. Percebemos que tanto o surrealismo a quanto Benjamin buscam fundamentação na Psicanálise. Nesta, sabemos que o material difuso dos sonhos é fundamental para o tratamento do paciente. Tanto os surrealistas quanto Walter Benjamin acreditavam nisso. Na Psicanálise, o sonho pertence à dimensão do inconsciente do homem e, como tal, não pode ser tornado objetivo, segundo os padrões de conhecimento consciente. Para o surrealismo também é assim. É aqui que Benjamin se afasta do modelo

surrealista, uma vez que para ele o sonho significa o mítico e como tal deve ser desperto no tempo presente, em que a vigília coloca o homem em estado de choque, fazendo-o, por um instante, vislumbrar e conhecer a verdade. O material do sonho em Benjamin torna-se consciente. Ou, como diria Willi Bolle a, “o projeto do crítico-escritor consiste em revelar as estruturas profundas da metrópole do século XX. Isso implica um mergulho nos sonhos do século passado, codificados pela literatura, e um trabalho de ‘despertar’” (Id. p. 81). Benjamin pretende mostrar uma imagem da Modernidade, pois, para ele, “o fato histórico novo é que, na Modernidade, se estabelece um mercado de imagens, que interage com o imaginário coletivo” (Id. p. 68). A Modernidade produz imagens que são oníricas, isto é, são sonhos. Para Benjamin esse é um comportamento típico da sociedade burguesa pós-industrial, visto que por conta das modificações materiais e técnicas os homens passaram a sonhar com uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, o paradoxo reside no fato de que o “avanço” técnico, a divisão social do trabalho e a modernização da metrópole são impedimentos para a efetivação do sonho, pois A metrópole moderna fundamenta uma nova mitologia, onde as construções assumem ‘o papel do subconsciente’. Os primeiros momentos da Revolução Industrial – construções em ferro, como as estações ferroviárias e os pavilhões de exposições, ou as passagens como as precursoras das lojas de departamento – repercutem fortemente no imaginário coletivo (Id. p. 65). Para Walter Benjamin, essas construções são como o depósito dos sonhos coletivos e exercem um efeito narcótico sobre os sujeitos da modernidade, que só se libertarão deles deixando emergir do inconsciente a conhecibilidade do agora por meio da produção de imagens dialéticas.

*Manoel P. L. Jr. é graduado em Filosofia, mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e professor da rede pública de Salvador

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GROSSO MODO

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mal Político Para Aristóteles, o homem é um animal político. Entenda por que esta máxima do filósofo de Estagira é uma das bases da filosofia política. POR DANIEL RODRIGUES AURÉLIO*

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a Platão

Aristóteles estudou na Academia de Platão ou Academia de Atenas, fundada por volta de 387 a.C pelo filósofo ateniense Platão (428/427 a.C – 348/347 a.C). Anos depois, Aristóteles criaria o seu próprio centro de estudos, o Liceu (336/335 a.C), originando o círculo filosófico Peripatos ou Escola Peripatética.

a Magna Moralia

Um dos principais pensadores da chamada Escola de Frankfurt, o filósofo e sociólogo alemão Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) publicou, no final dos anos 1940, uma coletânea de aforismos intitulada “Mínima Moralia”, em alusão à obra de Aristóteles.

a Estagira

Fundada pelos colonos jônicos, a cidade de Estagira pertencia à região da Macedônia. Sua fama se deve sobretudo por ter sido o local de nascimento do filósofo tematizado neste texto.

Z

oon Politikon (Animal Político) é uma expressão utilizada pelo filósofo grego Aristóteles de Estagira (384 a.C – 322 a.C), discípulo de a Platão, para descrever a natureza do homem – um animal racional que fala e pensa (zoon logikon) – , em sua interação necessária na cidade-Estado (pólis). O animal político aristotélico é um dos conceitos mais exaustivamente estudados na filosofia política e um dos argumentos fundamentais para a organização social e política. Em uma definição sumária, sem firulas e rodeios filosofantes, pode-se afirmar que, para Aristóteles, o homem é um animal político na medida em que se realiza plenamente no âmbito da pólis. Segundo Aristóteles, a “cidade ou a sociedade política” é o “bem mais elevado” e por isso os homens se associam em células, da família ao pequeno burgo, e a reunião desses agrupamentos resulta na cidade e no Estado (“Política”, cap.I, Livro Primeiro). Todavia, esta rápida acepção carece de uma explicação detalhada, indispensável para uma melhor compreensão do termo. Até porque, bem sabemos, o autor de “Política”, “Ética a Nicômaco” e a “Magna Moralia” deixou-nos acima de tudo um legado de extremo rigor lógico que não pode ser jamais desconsiderado. Para o filósofo de a Estagira, o homem é tão capaz de “desejos” e “afecções” (vontade ou alma desiderativa) quanto está apto a adquirir inteligência (razão ou alma racional). Complexo, o homem é o único zoon com capacidade para agir orientado por uma moral, de modo que suas ações e juízos resultam ora

em vício, ora em virtude. Mas o que define essa moral? Existe nela um conteúdo invariável? Para começar a responder a essas indagações preliminares, é preciso resgatar um pensamento aristotélico que remete ao núcleo do modelo republicano: a sociedade precede o indivíduo. Em outras palavras, o todo precede a parte. Para Aristóteles, um homem incapaz de “viver em sociedade” ou alheio ao Estado é um “bruto ou uma divindade”. Em algumas edições de “Política”, a frase dele é assim traduzida: “O todo deve, necessariamente, ser posto antes da parte”. Isso, obviamente, seria próprio de uma tendência gregária detectável em várias espécies. Mas, de acordo com Aristóteles, o diferencial do homem está no fato de ele não se unir aos demais apenas para a satisfação de seus desejos imediatos (reprodução, proteção, alimentação, etc.), saciados no seio da família ou da aldeia. Ele tende a ir além, dar vazão às suas potencialidades, e nesse ponto entra a importância da pólis para sua realização. Evidentemente, e amparado pelos debates sobre o tema, creio ser reveladora a ênfase dada por Aristóteles à comunicação humana. Ao conceituar as coisas (significar, classificar) e estabelecer relações mediadas pela palavra (retórica, argumentação), o homem detém a condição de quantificar e qualificar (racionalizar) suas ações, locais e objetos. E é também a partir da formação intelectual, moral e física que ele encontra o equilíbrio vital para atingir a virtude. Em Artistóteles, presumo, a virtude é agir conforme a razão dos valores universais de uma determinada pólis. Ou seja, o que desejo como bom deve equivaler àquilo consi-

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ARISTÓTELES: PRECEPTOR DE ALEXANDRE, O GRANDE Integrante, junto de Sócrates e Platão, da “santíssima trindade” dos filósofos da Grécia Antiga ou Clássica, pilares do pensamento ocidental, Aristóteles foi preceptor do lendário rei da Macedônia, Alexandre, o Grande. Já reconhecido pelo seu gênio e saberes, Aristóteles assumiu, a pedido do pai de Alexandre, Filipe II, a educação do futuro imperador e comandante militar.

a pólis é a arena na qual ele faz escolhas e se relaciona por meio de regras que podem leválo à virtude. Observo, por fim, que Aristóteles não vê os homens como “naturalmente” virtuosos; eles possuem, na realidade, os predicados necessários para, na condição de animal político, obter a felicidade e o bem comum. O seu sentido de completude.

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Escala, col. Mestres Pensadores, 2008. LOPES, Marisa. Animal Político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, 2009.

REFERÊNCIAS

derado bom para a minha sociedade. E sejam quais forem as especificidades dessas regras, o bem comum será invariavelmente a felicidade, a justiça, o bem viver na sociedade política. Assim, o homem é um animal político, pois, na pólis, ele consegue orientar-se pela conduta moral mediada por leis estabelecidas pelos elementos intelectuais (adquiridos no processo de formação) e moral (lapidada pelos hábitos racionais e pela experiência vivida). O homem é, portanto, um receptáculo pronto a receber e experimentar ensinamentos e vivências, sem os quais sua existência ficaria incompleta, sendo comandada apenas pelas vontades. A propósito, eis a razão para a prudência ser tão estimada na pólis aristotélica: somente com a experiência e a inteligência consegue-se antever as consequências de um ato desviante à moral do grupo. É interessante perceber que o pensamento aristotélico não oferece uma receita dogmática fechada. Depreendemos da obra do filósofo grego que a grande chave da moral é o racionalismo, sendo o conteúdo dela determinado pelo consenso da sociedade política. Arriscome a interpretar que Aristóteles entendeu o mundo como uma combinação de acasos e circunstâncias variáveis de acordo com o tempo, o espaço e as relações. Em suma, o homem busca a pólis para viver a plenitude de suas potencialidades enquanto espécie, e para suprir condições que outros agrupamentos (família, aldeia) estão, quando isoladas, aquém de proporcionar. A pólis não exclui a dimensão da família, na qual o homem se reproduz e se abriga; na verdade,

STRATHERN, Paul. Aristóteles em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. VINI, François. Compreender Aristóteles. São Paulo: Vozes, 2006.

*Daniel Rodrigues Aurélio é sociólogo, escritor, bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pósgraduado em Globalização e Cultura pela Escola PósGraduada de Ciências Sociais

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CaPa

Religião, obscurantismo e intolerância Uma abordagem a partir das concepções de John Locke, Voltaire, Bertrand Russell e Karl Popper. POR FRANCISCO JÚNIOR DAMASCENO PAIVA*

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a Viés

obscurantista

A atitude obscurantista caracteriza-se pela não utilização da razão na busca de soluções para problemas humanos. Temos vários exemplos de obscurantismo, como a queima de livros no incêndio da biblioteca de Alexandria, tema de um dos carros alegóricos da escola de samba Unidos da Tijuca, no carnaval do Rio de Janeiro de 2010.

a Concordata

No dia 13 de novembro de 2008, o governo do Brasil e o Vaticano assinaram um acordo – denominado Concordata Brasil-Vaticano – cujos termos geraram revolta, pois a constituição do Brasil proíbe a consumação de aliança religiosa entre o Estado e organizações religiosas. Para muitos, o acerto foi uma demonstração de força política da Igreja Católica no Brasil.

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o longo da História, atribuímos o conceito de “religião dominante” ao cristianismo, judaísmo e islamismo pelo grau de influência e poder exercidos por essas religiões no mundo ocidental, e também no Oriente, da Antiguidade ao período contemporâneo. Além disso, estas religiões se encontram em vários elementos, como também em inúmeros episódios de intolerância, embora, muitas vezes, em situações opostas. Muitos pensadores e cientistas sofreram com o viés obscurantista a: de Galileu Galilei a Salman Rushdie, passando por Martinho Lutero, Dante, Nostradamus, Voltaire e tantos outros, a história se repete: Inquisição, Index, queima de livros, perseguição e morte em nome de Deus. Neste cenário, as oposições às pesquisas científicas e à liberdade de expressão parecem evidenciar, de certa forma, a dificuldade dessas religiões de coexistirem de forma positiva em uma sociedade aberta. Embora a intolerância religiosa possa se manifestar em qualquer indivíduo, em qualquer religião, destacaremos aqui apenas essas grandes religiões ou religiões dominantes em que, historicamente, esse tipo de prática se apresenta de forma mais insidiosa e violenta. As consideradas pequenas religiões geralmente são mais vítimas que algozes. Ao falarmos em um viés obscurantista, entendemos que tais religiões não são, em sua essência, obscurantistas, mas possuem ou desenvolvem certo obscurantismo em determinados contextos ou períodos históricos. Nessa história, a Igreja Católica tem um papel de destaque. Detendo-nos no Ocidente, que é o que nos interessa aqui, podemos pintar um quadro nada animador. A mídia geralmente dá destaque maior à intolerância no Oriente – especificamente o mundo árabe-muçulmano – de uma forma visivelmente ideológica. Eles são “fanáticos”, “irracionais” e “intolerantes”. Nós somos o “modelo do progresso e da razão”. Nada mais equivocado. Intolerância re-

ligiosa é a mesma aqui e em qualquer outro lugar do planeta. Igualmente inaceitável em qualquer pessoa ou instituição. E nesse assunto, nós, ocidentais, não somos nem modelo, nem mestres para povo algum. Não vemos, no entanto, o mesmo empenho da mídia em informar a sociedade sobre a concordata assinada pelo governo brasileiro com o Vaticano. Concordata a esta, aliás, aprovada no Congresso com o apoio da bancada evangélica. Esta matéria deveria ter passado por uma ampla e informativa discussão com a população. Outro assunto que merece debate é a retirada dos símbolos religiosos (crucifixos, santos, bíblias, etc.) das repartições públicas, já que, pela Constituição, o Estado brasileiro é laico. Os princípios que deveriam reger as relações entre as religiões e os Estados laicos já foram estabelecidos pelos iluministas e, antes, por John Locke, como veremos a seguir. Estado Laico John Locke (1632-1704), filósofo empirista inglês e precursor do Iluminismo, escreveu, em um dos textos mais importantes sobre esse tema, a “Carta Acerca da Tolerância” (1689), que “não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião” (LOCKE, 1978, p. 25). Neste texto, Locke diz ainda que a intolerância é irracional e anticristã: “A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara” (LOCKE, 1978, p. 4). Nesse livro, Locke distingue as funções do governo civil e da religião, defende a necessária separação entre Estado e religião e reflete sobre a intolerância. Com a separação entre

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governo civil e religião, Locke estabelece os princípios que devem reger esta relação e os deveres dos magistrados. Além disso, e o mais importante da carta, ele desenvolve também os princípios da tolerância. Sobre a jurisdição do magistrado, Locke estabelece que ela diz respeito somente aos bens civis e não pode ser de modo algum estendido à salvação das almas, pois: em primeiro lugar, “isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religião” (LOCKE, 1978, p. 5). Locke diz também que o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder é de natureza coercitiva, ao passo que a “religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito” (LOCKE, 1978, p. 5). Por fim, mesmo se a autoridade das leis e da força das penalidades fossem capazes de converter, ainda assim isso em nada ajudaria para a salvação das almas; pois, pergunta Locke, “se houvesse apenas uma religião verdadeira, uma única via para o céu, que esperança haveria que a maioria dos homens a alcançasse, se os mortais fossem obrigados a ignorar os ditames de sua própria razão e consciência, e cegamente aceitarem as doutrinas impostas por seu príncipe, e cultuar Deus na maneira formulada pelas leis de seu país?” (LOCKE, 1978, p. 6). Em seguida, Locke estabelece os quatro princípios da tolerância que deveriam ser seguidos por todos: indivíduos, igrejas, eclesiásticos e magistrados. 1) Nenhuma igreja é obrigada a manter no seu seio uma pessoa que transgrediu as leis dessa sociedade e, mesmo sendo admoestada, continua a fazê-lo. 2) Nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar outra pessoa nos seus bens civis, porque professa outra religião ou outra forma de culto. E o que vale para os indivíduos serve igualmente para as diferentes igrejas. Sendo as igrejas sociedades livres e voluntárias, elas devem

coexistir com a comunidade e com as outras igrejas de forma pacífica e tolerante. Locke defende que o único castigo que compete à autoridade eclesiástica aplicar é a separação e a exclusão daquele que infringiu as leis de determinada igreja. 3) A responsabilidade dos eclesiásticos é maior: “Não é suficiente que os sacerdotes se abstenham da violência, da pilhagem, e de todos os modos de perseguição” (LOCKE, 1978, p. 9); eles são obrigados, enquanto clérigos, “a praticar a caridade, a humanidade e a tolerância. E a acalmar e moderar todo fervor e aversão do espírito que decorrem tanto do veemente zelo humano por sua própria religião e seita como da astúcia incitada de outros contra os dissidentes” (LOCKE, 1978, p. 10). 4) Pela separação entre governo e religião, os magistrados não podem proibir nem impor leis às religiões, desde que estas não estejam atacando os direitos e bens civis dos indivíduos. Segundo Locke, as crenças são de foro íntimo e por isso ninguém pode ser molestado por suas escolhas ou forçado a nada no campo da fé. Resumindo, o pensamento de Locke sobre a tolerância e sobre a relação entre os Estados laicos e as religiões está baseado no respeito à individualidade das pessoas, à diversidade de opinião e na liberdade de expressão. Voltaire e a tolerância Qual a relação entre obscurantismo e intolerância religiosa? Apesar do termo obscurantismo ser contestado por estar ligado ao período iluminista, o adotaremos justamente para assinalarmos a contribuição dos iluministas para a humanidade. Por um lado, vai longe a ideia de que a humanidade caminha para um futuro promissor por meio do avanço da ciência e da técnica. Por outro lado, no entanto, o legado dos iluministas não pode ser totalmente esquecido, sem corrermos o risco de mergulharmos no obscurantismo, no autoritarismo e no irracionalismo. A contribuição dos iluministas para a FilosoFIA | Conhecimento Prático | 27

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a Voltaire

(1694-1778)

François-Marie Arouet, o Voltaire, é considerado um dos filósofos mais importantes do Iluminismo. É dele a frase que se tornou um dos lemas do movimento: “Não concordo com uma única palavra do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direito de dizê-las”, que é também o fundamento da liberdade de expressão.

humanidade é imensurável. O filósofo e escritor francês Voltaire (1694-1778) a ícone iluminista, foi perseguido, teve seus livros condenados e escreveu belíssimas páginas sobre esse tema. Além do seu “Tratado sobre a Tolerância” (1762), ele abordou essa problemática também nas “Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas” (1734), em “O Túmulo do Fanatismo” (1736), no “Dicionário Filosófico” (1752) e em “O Filósofo Ignorante” (1766). Para Voltaire a intolerância religiosa tem como principal fundamento a busca do poder, querer se impor como religião dominante, mas também as superstições e os preconceitos. “(...) É incontestável que os cristãos quisessem que a sua religião fosse a dominante. (...) A opinião deles era que toda a terra devia ser cristã, logo, tornaram-se necessariamente inimigos de toda a terra, até que a terra inteira se convertesse” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). Visto que em matéria de religião não existe uma verdade absoluta, mas somente verdades relativas, Voltaire defende que o que garante a paz e a tolerância entre as pessoas é o respeito à diversidade de crenças e religiões: “Se entre nós houver duas religiões, hão de cortar-se o pescoço; se houver trinta, viverão em paz” (VOLTAIRE, 1978, p. 291). No “Dicionário Filosófico”, no verbete “Tolerância”, Voltaire explica o que entende por tolerância. Ele pergunta: “O que é a tolerância?”, e responde: “É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). E ele acrescenta: “Evidentemente que qualquer particular que persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro” (VOLTAIRE, 1978, p. 291). No “Tratado sobre a Tolerância”, escrito mais de setenta anos após a “Carta acerca da Tolerância”, de John Locke, Voltaire trata do caso Calas, um exemplo cruel de intolerância religiosa: Jean Calas, um comerciante calvinis-

ta, foi condenado à morte pela acusação de ter assassinado o próprio filho, que pretendia se converter ao catolicismo. Sem provas consistentes, a maioria católica da cidade de Toulouse insufla os juízes a condená-lo. Contra esse crime, Voltaire escreve o “Tratado sobre a Tolerância”, que é um libelo contra todos os crimes de intolerância. Nele, Voltaire escreve: “Não é preciso uma grande arte, uma eloquência rebuscada, para provar que os cristãos devem tolerar uns aos outros. Eu vou mais longe: eu vos digo que é preciso olhar todos os homens como os nossos irmãos. O quê!? Meu irmão, o turco? Meu irmão, o chinês? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos todos filhos do mesmo pai e criaturas do mesmo Deus?” (VOLTAIRE, apud ROCHA, 2002, p. 42). No “Dicionário Filosófico”, Voltaire fala nesse mesmo sentido, porém, é mais duro e incisivo com os que praticam a intolerância religiosa: “Insensatos que nunca haveis podido prestar um culto puro a Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noachidas, dos letrados chineses, dos parses e de todos os sábios nunca guiou! Monstros que tendes precisão de superstições como o bucho do corvo tem precisão de cadáveres! Já vos foi dito e nada mais há para vos dizer” (VOLTAIRE, 1978, p. 291). A indignação diante das injustiças e a recusa em aceitar preconceitos e superstições como verdades levaram Voltaire a uma luta incansável e sem tréguas em defesa do homem, da razão e da liberdade; contra o fanatismo, a intolerância e as atrocidades cometidas em nome da fé. Bertrand Russell e o cristianismo Sobre esse caráter belicoso do cristianismo, o filósofo inglês, lógico, matemático e Prêmio Nobel de Literatura de 1950, Bertrand Russell (1872-1970), autor de “No que Acredito”, “Porque não sou Cristão” e “Ensaios Céticos”, escreveu em “Ética e Política na Sociedade

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Humana” (1977): “É um completo mistério para mim que haja pessoas aparentemente lúcidas que pensem que a fé no cristianismo possa evitar a guerra. Tais pessoas dão a impressão de serem totalmente incapazes de compreender a História. O Estado romano tornou-se cristão ao tempo de Constantino, e esteve continuamente em guerra até que deixou de existir. Os Estados cristãos que o sucederam continuaram a bater-se mutuamente, embora, deva-se confessar, vez por outra lutassem contra Estados que não eram cristãos. Do tempo de Constantino até hoje, jamais houve um vislumbre de evidência de que os Estados cristãos sejam menos belicosos que os demais. De fato, algumas das guerras mais ferozes foram devidas a conflitos entre diferentes tipos de cristianismo. Ninguém pode negar que Lutero e Loyola fossem cristãos; ninguém pode negar que suas diferenças estivessem ligadas a um longo período de guerras ferozes” (RUSSELL, 1977, p. 204). Nesse mesmo texto, Russell, que era um pacifista, lembra-nos que o único político contrário à deflagração da Primeira Guerra Mundial foi o socialista Jean Jaurès; que não era cristão e foi assassinado com a conivência de quase todos os cristãos franceses. Segundo Russell, a propaganda cristã inventou casos de intolerância dos maometanos, mas que são inteiramente falsos em relação aos primeiros séculos do Islã. Na verdade, nos primeiros confrontos entre cristãos e muçulmanos, os fanáticos eram os cristãos; e os muçulmanos levaram a melhor. Mesmo assim, ensinou-se a todo cristão o episódio do Califa que destruiu a biblioteca de Alexandria. Mas Russell nos lembra também que, de fato, essa biblioteca foi diversas vezes destruída e por diversas vezes reconstruída. Seu primeiro destruidor foi Júlio César, e o último foi antes do Profeta. Portanto, nesse caso, não se trata de obscurantismo ou intolerância por parte do Islã. Os primeiros muçulmanos, diferente dos cristãos, toleravam aqueles a quem chama-

vam “o povo do livro”, desde que pagassem os tributos. Russell nos diz que, no início, o islamismo era conhecido por sua tolerância e isso contribuiu para as suas conquistas. Os cristãos, ao contrário, perseguiam os pagãos e quaisquer outras crenças. Em tempos mais recentes, a Espanha foi arruinada pelo ódio fanático aos judeus e mouros; assim como a França sofreu com a perseguição aos huguenotes. No século XVI, a Europa mergulhou em um mar de sangue, na guerra religiosa entre católicos e protestantes, que teve na França o episódio mais cruel: a terrível noite de São Bartolomeu, na qual os protestantes foram massacrados pelos católicos. No século XX, a perseguição abateu-se novamente sobre os judeus, culminando com o holocausto.

a Santa Inquisição

“O Tribunal da Inquisição foi um instrumento de terror, atraso e obscurantismo utilizado pela Igreja Católica contra todos que divergissem de sua doutrina (os ‘hereges’). Essas pessoas eram submetidas a interrogatórios, durante os quais eram torturadas até confessarem seus crimes (...). Os rituais do julgamento e a execução do réu eram em praça pública, perante toda população” (PILLETI, 1997, p. 41).

A Intolerância ao longo da História Quase dois séculos antes, Voltaire havia escrito: “(...) Todos perseguidos pelos seus correligionários, antes de Constantino e, mal Constantino faz reinar a religião cristã, logo se opõem os atanasianos e os eusebianos; desde essa época, a igreja cristã inunda-se de sangue até nossos dias” (VOLTAIRE, 1978, p. 290). E ele observa: “De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens” (VOLTAIRE, 1978, p. 291). A posição de Voltaire parece exagerada? Vejamos então esta descrição de um desses conflitos no seio do próprio catolicismo: “Na época de Inocêncio III, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como catarismo, que negava a autoridade do Papa e o chamava de filho do demônio. Inocêncio III respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a “seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório IX, sucessor de Inocêncio III, criou em 1233 a Santa Inquisição a FilosoFIA | Conhecimento Prático | 29

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Ciência no Vaticano Sabe-se que o Vaticano levanta-se contra descobertas ou teses científicas que ferem de alguma forma a doutrina do catolicismo. Mas não se pode acusar a Igreja Católica de estar completamente “por fora” do universo científico. A Pontifícia Academia das Ciências desenvolve pesquisas e edita livros. Vários físicos, geneticistas, matemáticos e químicos – alguns deles ganhadores do Nobel – foram nomeados pelo papa como membros ordinários ou honorários da Academia. Veja http://www.vatican. va/roman_curia/ pontifical_academies/acdscien/ index.htm

a Heinrich Heine

(1797-1856)

O poeta alemão Heinrich Heine foi o criador da expressão “a religião é o ópio do povo”, utilizada depois por Marx. Heine foi perseguido em seu país e autoexilou-se na França. Na década de 1930 teve seus livros queimados por nazistas.

tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e passou a perseguir não só cátaros, mas todos que discordassem dos dogmas católicos – judeus, cientistas, homossexuais. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas” (BOTELHO, 2007, p. 64). Segundo Heinrich Heine (1797-1856) a, aqueles que queimam livros acabam queimando homens. A história tem comprovado essa hipótese. No caso da perseguição ao poeta Salman Rushdie, encontra-se logo essas duas tentativas. Desde Platão, que expulsou os poetas da República, a poesia é considerada perigosa pelos regimes absolutistas. A oposição à liberdade de expressão foi sempre utilizada pelas religiões dominantes para proteger seus dogmas e defender seus interesses de poder e hegemonia: “O horror se disseminou com a perseguição promovida pelo Santo Ofício. Com a excomunhão de Martin Lutero, em 1520, a difusão de seus escritos foi proibida pela igreja. Em 1542, o papa Paulo III constituiu a Congregação da Inquisição. Seu sucessor, Paulo IV, criou o temido Index, a lista de livros proibidos. Na Espanha, a ascensão de Felipe II fortaleceu a censura católica. Também na França Carlos IX passou a destruir, pelo fogo, livros perigosos. A perseguição a astrólogos, alquimistas e poetas atingiu o profeta Nostradamus. Seu livro mais importante, “As Centúrias”, de 1555, tem sido sistematicamente destruído desde seu aparecimento” (CASTELLO, 2006, p. 34). A literatura, o cinema e o humor são vítimas de perseguições implacáveis: Dante, Zola, Nikos Kazantzakis, José Saramago ae tantos outros. José Saramago diz que é absur-

do que as pessoas não compreendam que ao matarem em nome de Deus, estão transformando Deus em um assassino. De fato é isso o que ocorre; seja por meio de atitudes individuais de intolerância de uma pessoa de uma determinada religião, seja por meio da perseguição exercida por uma religião contra uma pessoa ou outra religião; Deus torna-se inquisidor, perseguidor e intolerante. As religiões “pintam” Deus à sua imagem e semelhança. Segundo Leandro Narloch, o atual papado entende que “o catolicismo é melhor que as outras religiões e só se pode atingir a verdade por ele” (NARLOCH, 2007, p. 28). A oposição às pesquisas científicas e às novas descobertas é um traço característico do cristianismo. Foi mais forte no período do Renascimento e do Iluminismo, mas continuou durante toda a modernidade e está presente ainda hoje, embora sem muita força, no catolicismo romano. A Igreja Católica é contra as pesquisas com as células-tronco embrionárias. Essas pesquisas já têm ajudado a muitos pacientes e seu avanço contribuirá para o tratamento e a cura de milhares de pessoas que enfrentam graves problemas de saúde. Da década de 1970 até o atual papado, a Igreja Católica tem optado por dar as costas ao mundo moderno: “Pode alguém estar tão isolado do mundo atual quanto o papa Bento 16? Veja só: ninguém mais discute a importância da camisinha para prevenir a AIDS. Para o papa, porém, os católicos não devem usá-la nem devem transar por prazer. A nossa cultura também reconhece como uma conquista o direito das mulheres de se divorciar e comandar a própria vida, e a tolerância aos homossexuais é um objetivo. Não para o papa, que acha o feminis-

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Sociedade Aberta Tomamos aqui os conceitos de “sociedade fechada” e “sociedade aberta” propriamente no sentido daquele empregado por Karl R. Popper aenquanto historicamente eles definem, em parte, as condições da sociedade medieval, moderna e contemporânea, respectivamente. A sociedade aberta de Popper é presidida pelos princípios da razão: “Podemos então dizer que o racionalismo é uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender da experiência. É fundamentalmente uma atitude de admitir que ‘eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade’” (POPPER apud ROCHA, 2002, p. 94). A tolerância religiosa ainda representa um desafio para a humanidade “é preciso, portanto, pensar a intolerância, discuti-la, trazê-la para o centro do debate de tal modo que os resultados das reflexões sejam divulgados, estimulando novas formas de relacionamento entre os homens, marcadas pela tolerância e pela compreensão” (PAULA, 2005, p. 58). O ideal é que não precisemos mais de fugas para a compreensão da condição humana. Mas, enquanto a humanidade não avança nesse sentido, e uma vez que não alcançamos ainda a sociedade aberta de Popper, convém que sejamos respeitosos e tolerantes com as crenças uns dos outros, inclusive com o direito daqueles que não professam nenhuma religião. Do contrário, confirmaremos a triste observação de Locke: “Tem sido este o curso de eventos comprovados com abundância pela

História, sendo, portanto, razoável supor que o mesmo ocorrerá no futuro, se o princípio de perseguição religiosa prevalecer” (LOCKE, 1978, p. 25). Finalmente podemos dizer que o obscurantismo leva à intolerância e vice-versa. A intolerância é o principal fruto do obscurantismo e, ao mesmo tempo, este último conduz fatalmente à prática da intolerância. BAÉZ, Fernando. História Universal da Destruição dos Livros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Trad. Maria Júlia Goldwasser. 4ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. LOCKE, John. Carta acerca da Tolerância. Trad. Anuar Aiex. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1978. PILETTI, Nelson e Claudino. História e Vida. Volume 4: da Idade Moderna à atualidade. 11ª edição. São Paulo: Ática, 1997. ROCHA, Washington Alves da. No Coração de Antígona – Ensaios histórico-filosóficos. Natal: ACE Pinheiro e Alves Editora, 2002. RUSSELL, Bertrand. Ética e Política na Sociedade Humana. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1977.

a José Saramago

Autor de “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o escritor português José Saramago também autoexilou-se na Espanha depois de sofrer perseguição no seu país devido a polêmicas políticas e religiosas causadas por seus livros.

a Karl R. Popper

Filósofo da ciência nascido em Viena, Karl Popper (1902-1994) escreveu em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos” (1945) que “em suma, a atitude racionalista, ou, como talvez possa rotulála, ‘a atitude da razoabilidade’, é muito semelhante à atitude científica, à crença de que na busca da verdade precisamos de cooperação e de que, com a ajuda da argumentação, poderemos atingir a tempo algo como a objetividade” (POPPER apud ROCHA, 2002, p. 94-95). A atitude de razoabilidade de Popper é o mesmo princípio de tolerância de Locke, de Voltaire e de Russell.

VOLTAIRE. Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas. Trad. Marilena de Souza Chauí. Coleção Os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978. _______. Dicionário Filosófico. Trad. Bruno da Ponte, João Lopes Alves e Marilena de Souza Chauí. Coleção Os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

REFERÊNCIAs

mo bobagem, o divórcio ‘uma praga’ e os homossexuais um problema” (NARLOCH, 2007, p. 27). Além disso, o atual papado comunga com a ideia de um cardeal italiano que afirmou que a “vinda do anticristo se aproxima e que o enviado do diabo estará disfarçado de ecologista, pacifista ou ecumenista” (BOTELHO, 2007, p. 67).

_______. O Filósofo Ignorante. Trad. Marilena de Souza Chauí. Coleção os Pensadores. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978. _______. O Túmulo do Fanatismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Francisco Júnior Damasceno Paiva é graduado e licenciado (1998) em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba e professor da rede pública de ensino do RN

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ENsAio

Uma voz forte pelo

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Criadora do objetivismo, uma espécie de liberalismo mais radical, a filósofa Ayn Rand exerce cada vez mais influência, especialmente nos Estados Unidos. POR SERGIO AMARAL SILVA*

R

ecentemente, as intervenções do presidente Barack Obama na economia dos Estados Unidos, como resposta à crise que começou no setor imobiliário e se tornou global, confirmaram uma tendência já observada naquele país nos últimos anos: sempre que ocorrem tais interferências oficiais no mercado, como o socorro aos bancos ou o pacote de estímulos financeiros, disparam as vendas de “Atlas Shrugged” (Atlas “deu de ombros”), um dos livros de maior sucesso de Ayn Rand.

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a liberalismo

econômico

As teses do liberalismo clássico surgiram no século 18, em oposição ao mercantilismo, que já não dava conta de explicar a complexidade crescente do capitalismo. Seu princípio básico diz que a economia deve ser livre de influências externas, como as intervenções do Estado. A teoria liberal foi aperfeiçoada e desenvolvida pelo escocês Adam Smith (17231790), que a formulou de modo ainda hoje aceito por economistas.

a “Ayn Rand

and the world she made”

Biografia publicada pela editora Nan A. Talese/ Doubleday em fins de 2009. Sobre o livro, Janet Maslin escreveu, para o “The New York Times”: “Um retrato em cores vivas de uma mulher extremamente complicada e contraditória, combinando este estudo de personagem com análise literária e sondando as mais caprichosas profundezas da prodigiosa imaginação de Rand”. Na mesma época, a Oxford University Press publicou “Goddess of the Market – Ayn Rand and the American Right”, de Jennifer Burns.

O título, lançado no Brasil como “Quem é John Galt?”, em edição hoje esgotada, que vinha ocupando uma posição abaixo da 500ª no ranking dos mais vendidos na livraria virtual Amazon, chegou ao 35º lugar, alavancado pelas medidas estatais. A explicação é simples: já que o livro é visto como emblemático do pensamento da autora, uma das mais ferrenhas defensoras do a liberalismo econômico, o público admirador de Rand demonstra seu repúdio ao intervencionismo governamental utilizando um típico instrumento de mercado, qual seja, o consumo privado. A obra, pouco valorizada pela crítica, é um longo e engajado elogio aos valores da livre iniciativa e da ambição capitalista, revestido por uma história de ficção. A verdade é que, escrito há mais de cinquenta anos e há quase trinta da morte da autora, os livros mais conhecidos de Ayn Rand estão de volta à moda. Atingindo vendagens de dezenas de milhões de dólares, converteram-se em autênticos fenômenos editoriais no mercado estadunidense. Segundo a jornalista Anne Heller, que escreveu a biografia a “Ayn Rand and the

QUEM FOI AYN RAND Nascida em São Petersburgo, na Rússia, em 2 de fevereiro de 1905, seu nome de batismo era Alissia Zinovievna Rosenbaum. De origem judia, procurou disfarçar sua herança étnica, temendo que pudesse ser prejudicada pelo antissemitismo. Filha de um dono de farmácia chamado Zinovy, teve reforçada a antipatia pelo comunismo que a acompanharia por toda a vida, quando o estabelecimento comercial de seu pai foi convertido em propriedade estatal pelos bolcheviques vitoriosos na Revolução de 1917. Graduada em 1924 pela Universidade de Petrogrado, onde estudou Filosofia e História. Em seguida, estudou roteiro no Instituto Estatal de Artes Cinematográficas. Autoexilou-se nos Estados Unidos em 1926, onde inicialmente tentou a sorte em Hollywood, chegando a participar, como figurante, do filme mudo “O Rei dos Reis”, dirigido por Cecil B. DeMille. Nessa época, conheceu o ator Frank O’Connor, com quem se casou em 1929. Esse casamento duraria até a morte de O’Connor em 1979.

world she made”, os leitores mais jovens

“são atraídos por ela ser a grande defensora do individualismo, da independência, da autoconfiança, da ambição, da falta de compromisso, da noção de que é possível fazer tudo o que se deseja, se não permitir que outros o detenham”. REsTRiÇÕEs X QUAliDADE Entre as principais restrições que são feitas aos romances da autora, recusados por várias editoras antes de conseguirem ser publicados pela primeira vez, destaca-se a que os classifica como muito discursivos. “Como toda literatura edificante e de propaganda, são ilegíveis”, escreveu sobre eles o escritor peruano Mario Vargas Llosa, ele próprio um convicto partidário do liberalismo. Mas a jornalista Anne Heller identifica qualidades literárias em sua biografia: “Ela tem tramas divertidíssimas, centenas de personagens e um jeito maravilhoso de colocar suas ideias no suspense das tramas e dos romances, o que a torna uma ótima escritora”. A receptividade inicial aos dois principais livros de Rand, cujos lançamentos ocorreram com quatorze anos de intervalo, foi bastante diferen-

Ayn também atuou como roteirista de cinema e teve uma peça produzida na Broadway, na primeira metade da década de 1930. Voltou a Hollywood em 1943 para desenvolver o roteiro do filme “The Fountainhead”, que no Brasil foi exibido com o nome de “Vontade Indômita”. Devido a complicações derivadas do final da Segunda Guerra Mundial, a produção atrasou e o filme, dirigido por King Vidor e estrelado por Gary Cooper, só saiu em 1949. Em 1946, trabalhando como roteirista em tempo parcial para Hal Wallis, Ayn Rand começou a elaborar sua obra mais conhecida, “Atlas Shrugged”. Cinco anos mais tarde, passou a dedicar-se exclusivamente ao romance, até concluí-lo. Aos cinquenta anos, iniciou um relacionamento com um aluno que tinha a metade de sua idade, Nathaniel Branden. A recente biografia escrita por Anne Heller a descreve como uma mulher que, embora pregasse publicamente as liberdades individuais, na vida particular exercia uma espécie de tirania, praticamente escravizando as pessoas às suas preferências. Ayn Rand morreu em seu apartamento de Nova York em 6 de março de 1982.

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te. A Nascente, de 1943, não teve uma vendagem significativa no primeiro ano, mas a propaganda boca a boca fez com que esta melhorasse nos anos seguintes, um fenômeno incomum no mercado editorial estadunidense. O livro conta a trajetória de Howard Roark, um arquiteto individualista, que teria sido levemente inspirado pelo modernista Frank Lloyd Wright, autor do arrojado projeto do museu Guggenheim. Roark desenha prédios modernos, mas não consegue concretizar suas ideias devido à oposição de pessoas como o diretor da faculdade de Arquitetura, que chega a ameaçá-lo. Criticado por não projetar edifícios convencionais, ele acaba passando por cima de todas essas opiniões negativas. Para muitos leitores, a personagem acabou por transformar-se em uma espécie de modelo de independência, ambição e determinação, impulsionando as vendas do livro, ainda mais alavancadas em decorrência da adaptação cinematográfica, no final da década de 1940. Já “Atlas Shrugged”, um romance mais volumoso e mais político, que é classificado por muitos como a obra-prima da ficção da autora, fez sucesso nos Estados Unidos desde seu lançamento, ocorrido em 1957. A trama conta a história de um grupo de industriais e inventores que acha que o governo está interferindo demais em seus negócios. Decidem então fazer greve, como os sindicatos de trabalhadores, para demonstrar sua importância à sociedade como criadores de riquezas e inovações. O herói do romance é John Galt, mas um herói diferente, que o leitor não “encontra” (daí o título da edição brasileira), porque se move nas sombras e só aparece de fato na última terça parte do volume. A protagonista, cuja trajetória acompanhamos no decorrer da leitura, é Dagny Taggart, a poderosa executiva, proprietária de uma ferrovia transcontinental. Para manter a estrada em funcionamento, ela precisa adquirir aço e minério de ferro, mas quando procura um de seus fornecedores tradicionais, descobre que ele desapareceu. Começa então a seguir as pistas que acabarão por revelar o misterioso John Galt.

PRINCIPAIS LIVROS DE AYN RAND • Night of January, 16th (ficção, 1934); • We the Living (ficção, 1936); • Anthem (ficção, 1938); • A Nascente (The Fountainhead) (ficção, 1943); • Quem é John Galt ? (Atlas Shrugged) (ficção, 1957); • For the New Intellectual (não-ficção, 1961); • The Virtue of Selfishness (não-ficção, 1964); • Capitalism: The Unknown Ideal (não-ficção, 1966); • Introduction to Objectivist Epistemology (não-ficção, 1967); • The Romantic Manifesto (não-ficção, 1969); • The New Left: The Anti-Industrial Revolution (não-ficção, 1971); • The Age of Mediocrity (não-ficção, 1981); • Philosophy: Who Needs It (não-ficção, 1982). Obs.: as datas mencionadas referem-se à primeira edição original de cada título. Postumamente (ou seja, após 1982), foram publicados diversos volumes reunindo textos da autora, a exemplo de “Russian Writings on Hollywood” (não-ficção, 1999).

FACEs E FAsEs DE UMA CARREiRA Na década de 1970, a rede NBC pretendia fazer uma a adaptação de Atlas shrugged para as telas, em uma minissérie de televisão, que já era um formato bastante popular na época. Naquela ocasião, Ayn Rand desejava que a personagem principal fosse interpretada pela atriz Farrah Fawcett, mas o planejamento do seriado não chegou a viabilizarse e foi abandonado. A carreira de Rand como escritora pode ser dividida em duas fases bem distintas uma da outra, ao longo de quase seis décadas de publicações. Nas três primeiras décadas (1930, 1940 e 1950), ela se dedicou à construção de uma obra ficcional, com cinco títulos, incluindo os dois grandes best-sellers do mercado editorial estadunidense (“The Fountainhead” e “Atlas Shrugged”) que, até hoje, em vendas e influência só perdem para a Bíblia. Do período seguinte (anos 1960, 1970 e 1980), quando, segundo a jornalista Anne Heller, Rand passou a se ver mais como filósofa, surgiu uma obra de não-ficção, combi-

a Adaptação de

Atlas shrugged para as telas

A ideia de levar essa história a um público maior, desta vez para o cinema, foi recentemente retomada sob a direção do ucraniano Vadim Perelman, que roteirizou e dirigiu “Casa de Areia e Névoa”, com Jennifer Connelly, em 2003. O papel de Dagny Taggart deve ficar com Charlize Teron, sendo que Angelina Jolie também chegou a ser cogitada pelos produtores. A conclusão da produção está prevista para 2011.

a objetivismo

A filosofia difundida por Ayn Rand pode ser resumida em quatro princípios básicos: a) a realidade objetiva existe, independente da observação do homem; b) a razão é o único meio de o homem apreender o real; c) cada indivíduo é um fim em si mesmo, não devendo se sacrificar por outros, nem sacrificar outros por si; d) o capitalismo é o único sistema moral capaz de garantir as liberdades políticas e econômicas individuais. FilosoFiA | Conhecimento Prático | 35

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O PENSAMENTO DE AYN RAND a Partido

libertário Americano

Há quase quarenta anos vem disputando as eleições presidenciais, obtendo em média menos de 0,5% dos votos. Chamado de um dos “terceiros partidos” dos Estados Unidos, cujo sistema político é praticamente bipartidário, seu programa original continha vários pontos da doutrina que Rand pregava, nos anos 1940. Sua plataforma defende a economia capitalista de livre mercado e os direitos individuais.

a Placa no Walt

Disney World

A placa figura com destaque e pode ser vista pelos milhares de visitantes daquele local, oriundos de todas as partes do mundo. A frase, inscrita em pedra, que parece se aplicar perfeitamente a empreendedores como Disney, é: “Através dos séculos, houve homens que deram os primeiros passos em novas estradas, armados somente com sua própria visão”.

Eis algumas frases extraídas da obra da autora capazes de ilustrar aspectos de seu pensamento: “Civilização é o processo de libertar o homem dos outros homens.” “O altruísmo defende que qualquer ação feita em benefício dos outros é boa e que qualquer ação feita em prol de

interesses próprios é má.” “A felicidade é aquele estado de consciência que procede da realização de nossos valores.” “Um desejo pressupõe a possibilidade de ação para alcançá-lo; ação pressupõe uma meta que vale a pena ser alcançada.” “Não deixe sua chama se apagar com a indiferença. Nos pântanos desesperançosos do ainda, do agora não. Não

nando escritos filosóficos, políticos e econômicos que explicitavam princípios a rigor já expostos em seus romances. Corporifica-se dessa forma o a objetivismo, uma corrente filosófica que pregava o individualismo e o capitalismo como valores fundamentais para a plena realização do homem. Vale a pena aqui explorar um pouco o conceito de “altruísmo” de Rand, que é diferente da acepção que é comumente dada a essa palavra. Para ela, “altruísmo” não se confunde com caridade ou benemerência voluntária, mas é aquilo que é imposto (e, portanto, condenável): o sacrifício de um indivíduo por outro (supostamente mais fraco), por imposição do Estado ou da Igreja. Somente assim, sabendo que ela costumava atribuir a certas palavras significados diversos daqueles mais usuais, pode-

*Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador de diversos prêmios literários e do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura

permita que o herói na sua alma padeça frustrado e solitário com a vida que ele merecia, mas nunca foi capaz de alcançar. Podemos alcançar o mundo que desejamos. Ele existe. É real. É possível. É seu.” “A riqueza é produto da capacidade do homem de pensar.” “Grandes homens não podem ser manipulados.”

se interpretar corretamente o título de seu livro “A Virtude do Egoísmo”. iNFlUENTE E ATUAl Ayn Rand é atualmente considerada uma das filósofas de maior influência sobre o pensamento político e econômico contemporâneo, especialmente a partir dos Estados Unidos. Em 1971, um de seus admiradores organizou o a Partido libertário Americano. Ela teve outros destacados seguidores como Ronald Reagan, presidente da República entre 1981 e 1989, ou o economista Alan Greenspan, que presidiu o Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos, entre 1987 e 2006. A desregulamentação da economia ocorrida naquele país nos anos 1980, com a retirada de controles governamentais sobre a atividade de setores como as companhias aéreas ou as instituições financeiras, pode ser descrita como um dos maiores efeitos concretos da ideologia de Rand, colocada em prática por seus dois poderosos discípulos. Mais um exemplo da difusão de suas ideias, ainda que num plano mais simbólico, é a a placa no Walt Disney World, na Flórida, com uma citação bastante expressiva, retirada da obra da autora. Nos anos 1950, Ayn Rand afirmava que os Estados Unidos se encaminhavam para o socialismo. Hoje, com Obama e seus correligionários no poder, muitos de seus opositores temem um colapso econômico na maior potência mundial, e aqueles que se posicionam contra qualquer intervenção do governo na economia, seja qual for a justificativa, acham que ela pode ter sido profética. Isso assegura que, quase três décadas depois de seu falecimento, seus livros continuem vendendo como nunca, e o interesse por sua obra e filosofia seja sempre renovado.

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ANÁLISE

Filosofia

e ficção Fenômeno cinematográfico, “Avatar” é um ótimo divertimento. Mas quais as relações da Filosofia com obras de ficção como o filme de James Cameron? POR JORGE LUIS GUTIERREZ* 38 | Conhecimento Prático | FILOSOFIA

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filme Avatar está sendo o magno acontecimento cinematográfico de 2010. O longa-metragem, dirigido por James Cameron a, conseguiu o Globo de Ouro de melhor filme e é o grande favorito para o Oscar, especialmente nas categorias de melhor diretor e melhor filme [“Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow, acabou sendo o grande vencedor]. “Avatar” marca significativamente o mundo do cinema neste começo de 2010. Além disso, trata-se de uma produção que tem alcançado recorde de bilheteria e de público. A arrecadação está em algo perto dos 400 milhões de dólares e é uma verdadeira multidão de pessoas que assistem a esse filme, um evento que alcança características mundiais. Conheço pessoas que assistiram duas ou três vezes ao filme. A indústria do cinema dos Estados Unidos mostra seu poder e sua força, sua criatividade e capacidade de dominar a indústria cultural do planeta. A produção cinematográfica de nenhum outro país tem as dimensões da dos Estados Unidos. Com certeza se trata de um grande fenômeno cinematográfico. E parece que nada pode deter o bom andamento deste filme, que está sendo comparado aos grandes filmes já produzidos, como “Guerra das Galáxias”, famoso filme de 30 anos atrás. Se ao anterior acrescentarmos os efeitos especiais e as novas tecnologias — como o 3D — estamos frente a um verdadeiro gigante da tela. Parece que estas novidades vão mudar significativamente as formas do entretenimento. Vou começar com uma afirmação bastante geral, que tem a ver com as relações históricas entre Filosofia e ficção: para a Filosofia, isto é, para os filósofos, quase sempre foi difícil interpretar aquilo que não está dentro dos limites do pensamento filosófico, isto é, aquilo que está além da razão. A Filosofia, com seu método e suas particularidades, nunca lidou bem com a fantasia, nem com o fantástico, nem com a poesia. Nem com a ficção científica. Sempre é bom lembrar como os primeiros filósofos lançaram seus ataques contra o grande gênio da imaginação da Grécia: Homero. As críticas contra os heróis e os deuses homéricos ficaram registradas em diversas obras da filosofia clássica e em vários fragmentos dos pré-socráticos. Porém, a Filosofia não conseguiu tirar nada da glória do grande poeta. E seus escritos imor-

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a James Cameron

Bacharel em Física pela Universidade da Califórnia, o diretor e produtor canadense James Francis Cameron é conhecido por suas superproduções. Cameron dirigiu O Exterminador do Futuro I e II (1984 e 1991) e o megassucesso Titanic (1997), filme que faturou 11 estatuetas no Oscar de 1998.

a Marcel Conche

Filósofo francês, Marcel Conche é professor emérito da Universidade de Sorbonne. Quatro de suas obras foram publicadas no Brasil: A Análise do Amor (WMF Martins Fontes,1998), Orientação Filosófica (WMF Martins Fontes, 2000), O Fundamento da Moral (Martins Editora, 2006) e o Sentido da Filosofia (WMF, Martins Fontes, 2006).

talizaram epopeias, homens e mulheres. Os filósofos nada puderam contra o pai da helenidade. A “Ilíada” e a “Odisséia” ainda vivem e ainda encantam e fascinam muitíssimos homens e mulheres de nossa época. O sucesso do filme “Tróia” — embora este tenha muitas e significativas diferenças com o texto de Homero — mostra como Homero ainda deslumbra a imaginação de nossos contemporâneos. E o riso de Helena ainda paira sobre uma época opulenta e de triunfante existência, em que tudo o que se fazia presente era divinizado, não importando se era bom ou mau, como afirmou Friedrich Nietzsche, em sua obra “O Nascimento da Tragédia”. De alguma maneira a “Ilíada” e a “Odisséia” foram o “Avatar” da antiguidade grega. Sei que muitos devem estar pensando que exagerei. E reconheço meu exagero, mas é um exagero calculado e com riscos “sob controle”. Por isso, imediatamente, devo fazer uma diferença entre Homero e “Avatar”. As obras de Homero serviram para educar gerações e gerações de gregos e para forjar a alma da Grécia, do helênico. E era nessas obras que as crianças aprendiam a ler e a progressão dos estudos avançava conforme os capítulos da “Ilíada” ou da “Odisséia”. Era em Homero que se extraíam as lições de ética, era nelas que se aprendia a viver e era nelas que os gregos se reconheciam como “helênicos”. Enquanto que “Avatar”, para mim, não passa de um simples entretenimento. E somente isso. Um bom momento de diversão. De boa diversão. Pessoalmente sempre gostei de ficção científica. Não porque ela me ensinava a pensar a vida de tal maneira que ela pudesse ser vivida (que seria função da Filosofia, de acordo com Marcel Conche a), mas porque a ficção científica é divertida. Homens viajando pelas galáxias, indo a outros mundos, usando tecnologia incrível. Até os velhos e audazes livros e filmes da velha ficção, como as obras de Julio Verne e outras, são um bom entretenimento. Os filmes de ficção científica me mostram um mundo fantástico, saído unicamente da

imaginação de um autor. A Filosofia me mostra a vida vivida na lucidez. O erro seria trocar as cartas. No momento em que o filme vira material filosófico, acaba a “brincadeira” e começa o trabalho. Porém, também a Filosofia nos ensina que o “sempre sério” acaba sempre em tristeza. Nas obras de Kierkegaard temos um bom exemplo, o assessor Wilhen, um homem que sempre levou a vida a sério; é um homem triste. Assim, o filme “Avatar” é excelente como um produto de entretenimento. Ele proporciona uns bons momentos de diversão. “Avatar” não pretende nos levar para a reflexão, mas pretende emocionar, e isso consegue de uma maneira admirável. Por este motivo o filme não resiste à análise filosófica. É claro que as ideias sobre a natureza e a vida natural e outros aspectos “do real” podem parecer “romantismo degenerado” ou “idiotice” para algum professor de Filosofia. E os lutadores contra os humanos “idiotas utópicos” (Devo esclarecer que foi um aluno que comentou, durante uma aula, que tinha lido num jornal este tipo de qualificativos sobre “Avatar”). Por isso, proponho uma chave de leitura diferente para esse filme: “Avatar” não pretende ser um manual de como nos relacionar com a natureza, nem com a sociedade, nem com os processos de luta e de mudança. Até o sexo no filme não parece real ou “tecnicamente” possível. Por isso, insisto em meu ponto central: “Avatar” tem como objetivo principal entreter, e duvido que pretenda algo mais, a não ser bons lucros para os produtores. “Avatar” não é um filme para se refletir filosoficamente. Não seu conteúdo, mas sim o “fenômeno”, que como afirmei anteriormente alcança dimensões mundiais. Para as guerras reais e os conflitos reais temos o noticiário, para as teorias revolucionárias “reais” temos milhares de textos. Para recreação, temos “Avatar”. Porque poucas pessoas conseguem ser lúcidas as 24 horas do dia. A lucidez crônica torna as pessoas mal-humoradas e rabugentas. Nem mesmo um filósofo como Albert Camus, que propunha lucidez até o fim, até a

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própria morte, sem fazer nenhuma concessão à ilusão, e nunca nos “suicidar metafisicamente”, escreveu algo de ficção. Será que na obra “A Peste” tudo é real? E a maior obra filosófica de Camus, “O Mito de Sísifo”, trata sobre uma ficção, sobre um mito. Não me parece que “Avatar” pretenda ser realidade. Ele é claramente ficção. E a ficção por definição não nos mostra o mundo como ele é, mas como poderia ser. Ou como alguém imagina que poderia ser. A ficção mistura coisas que na realidade não se misturam. Coisas que existem no real, porém, não unidas da forma que a ficção as une. Isto é porque somente podemos pensar no que existe. Assim, a ficção não nos mostra coisas que não existem, mas coisas que existindo não se misturam dessa maneira no real. Mostra situações que não são reais, relacionamentos fantásticos, com o mundo, com a galáxia, com o tempo, com a natureza. Será a Filosofia que terá que nos ensinar a lucidez e o real. Não é tarefa de um filme mostrar o real, é tarefa da Ciência e da Filosofia, em sentidos diferentes, é claro. Geralmente os filmes que apresentam o “mundo como ele é” são chamados de documentário. “Avatar” claramente não é um documentário. É interessante que nem os vampiros são “reais” nos filmes atuais. Já escutei pessoas, após assistir um dos filmes de vampiros que estão fazendo sucesso (creio que foi “Crepúsculo”), falarem que desse jeito não são os vampiros. São filmes de ficção sobre a ficção. Na própria ficção há vampiros reais e vampiros imaginários. Os reais seriam esses antigos que fugiam da luz, saíam somente de noite, não gostavam de alho e eram terrivelmente maus. Tão diferentes dos vampiros “de mentirinha” dos filmes mais recentes. Algo parecido poderia ser afirmado dos lobisomens, de Batman e do Super-Homem. Mas, para quem está achando que falta um pouco de humor neste artigo, posso afirmar que a grande lição de todos estes filmes é que às vezes devemos relaxar e desfrutar de momentos de fantasia e entretenimento.

A FANTASIA NECESSÁRIA Porém, “Avatar”, e voltando ao tom sério deste artigo, nos faz pensar na sociedade em que vivemos. Não podemos ser indiferentes ante o fato de que milhares, milhões de pessoas estão indo aos cinemas e conversando sobre “Avatar”: nos barzinhos, nas salas de aulas, nos blogs, nas salas de bate-papo... Até eu estou escrevendo sobre esse filme. Será que o ser humano tem necessidade do “fantástico” e da ilusão mesmo neste começo de século XXI? Será que num mundo tão cheio de guerras reais, os seres humanos querem guerras “doces”, porque as guerras atrozes, reais e com sangue de verdade nos têm cansado? Reflito filosoficamente: o ser humano não vive sem fantasia. E “Avatar” me faz pensar filosoficamente como tudo muda em nosso mundo rapidamente. Agora os filmes são em três dimensões. A tecnologia avança a passos gigantes, e a nossa relação com o tempo muda. Agora tudo é mais rápido, e a nossa relação com o tempo muda. Muitos sentem saudades de certas tecnologias antigas. Não é estranho encontrar pessoas andando pelas lojas procurando antigos toca-discos. Ou pessoas que querem ser fotografadas como antigamente, com aquelas máquinas que hoje, embora charmosas, parecem artefatos de museus. Parece que as mudanças nos deixam uma sensação de vertigem. Tudo passa tão rápido, tão depressa. Parece que o tempo se tornou assustador. Não conseguimos acompanhar nada, nem a moda, nem a tecnologia, nem os e-mails, nem as notícias. E aqui se torna importante a ficção, pois com ela sempre temos um planeta, ou uma galáxia para onde “escapar” (mesmo que seja “de mentirinha”), onde as coisas são bem diferentes. Essa porta de escape, esse mundo, é fornecida pela ficção. Nunca pela Filosofia. O filósofo sempre procura a verdade pela verdade. Este último era considerado algo inumano pelo pensador espanhol Miguel de Unamuno, porque todo filósofo antes de ser filósofo é um homem. E se FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 41

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a Giotto

di Bondone

Nascido em Vespignano, região de Florença, o arquiteto e pintor Giotto di Bondone, o Gioto (12671337), é tido pelos historiadores da arte como um precursor da perspectiva na pintura; com traços valorizava a ilusão e a noção do que viria a ser chamado de tridimensionalidade.

* Jorge Luis Gutierrez é mestre e doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, professor da Universidade Mackenzie e da Faculdade de Filosofia São Bento. É autor dos livros “Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”, “Aristóteles em Valladolid” e “Inundada de Luz, poemas de amor e filosofia episódica” e editor da revista eletrônica “Pandora Brasil” .http:// revistapandora.sites.uol.com.br

em algum momento tem que escolher entre uma alegria ficcional ou uma verdade triste, escolherá sempre a segunda opção. A verdade, sempre a verdade. Mas também existe a alegria da verdade do real, que nos afasta da ficção e nos faz viver o real alegremente... Mas isto é Filosofia. É o caminho dos filósofos, dos verdadeiros filósofos. Não é o caminho da maioria das pessoas nem é a estrada mais fácil. Requer reflexão e capacidade de filosofar. Requer tempo para encontrar esse tipo de sabedoria. Jon Landau, produtor de “Avatar”, manteve um bate-papo com os internautas do jornal “El Pais” da Espanha, no dia 16 de fevereiro deste ano. Nessa oportunidade afirmou que “Avatar é um fenômeno fruto de seu tempo. E que este filme pretende fazer viajar aos espectadores: mostrar um mundo para o qual se pode fugir”. É disso que eu estava falando, “Avatar” oferece um mundo diferente para onde podemos viajar e nos afastar um pouco deste nosso mundo. Escapismos, dirão alguns, mas ninguém é obrigado a assistir ao filme, e quem quiser ficar com sua eterna lucidez é livre para fazê-lo. Mas voltemos à relação ficcional do filme com a natureza. Os seres humanos sabem, desde sempre, que a natureza é cruel e desapiedada. Vejam os terremotos ocorridos no Haiti, no Chile e outras catástrofes. Por este motivo, às vezes, as pessoas têm necessidade de durante duas horas pensarem que as coisas poderiam ser diferentes. Assim, a relação de “Avatar” com a natureza é poética, imaginativa e ilusória. Coisas parecidas podem ser ditas de “Harry Potter” e “Crepúsculo”. Que por sinal também não são reais. As relações com a natureza das personagens do filme “Harry Potter” não resistiriam à análise de um químico, nem de um físico, nem muito menos de um filósofo. É claro que no mundo real as vassouras não voam, nem existem os vampiros. Não conheço ninguém que após assistir “Avatar” pense que é uma lição de realidade. Não conheço nenhum revolucionário ou ecologista que pense que “Avatar” é uma cartilha para as futuras revoluções ou lutas. Por sinal, muitas destas

pessoas nem assistem ao filme, por considerá-lo “alienado”, produto do imperialismo ou com mensagens subliminares para impedir que o mundo se rebele contra o sistema capitalista. Mas sim conheço pessoas que após assistir “Avatar” ficaram mais leves, mais imaginativas, mais legais. Mais bem-humoradas. E assim, com isso, podem ir logo para as lutas reais de nosso dia a dia. A imaginação pode criar mundos. Mundos onde as leis que regem nosso mundo não existem. Não adianta os filósofos repetirem que isso não é real. Nunca pretendeu ser. Mas também a “Ilíada” não é real; nem o “Quixote”; nem a “Divina Comédia”. São obras de ficção literária. Por isso, seria absurdo alguém insistir que elas não refletem nosso mundo, é claro que não. Mas elas, sim, podem, através de cenas de ficção, nos fazer pensar sobre nosso mundo. O mundo “não real” do “Quixote” nos ensina muito sobre a lucidez. E “os caminhos não reais” de Dante pelo inferno, purgatório e paraíso, nos ensinam muito sobre o amor. A poesia também não é real, e nem por isso ela deixa de nos ensinar coisas sobre o real. É claro que os que fizeram o filme sabem muito bem como é nosso mundo, nossa sociedade e a “alma humana”. Por isso, o conteúdo do filme “Avatar” também foi cuidadosamente programado. Assim, por exemplo, durante a rodagem, trechos do filme vão sendo assistidos por pessoas do mundo todo, e os produtores estão atentos às reações do público. Se algo não agradar ao público, simplesmente é mudado até que agrade. Assim o sucesso está praticamente garantido. Esta maneira de proceder foi também relatada por Landau, no bate-papo no jornal “El Pais”. Mas parece que os produtores não são indiferentes às relações do filme com o “mundo real” e no fundo pretendem que o filme tenha sim alguma lição de “moral” ou “ética”. Isto pode ser inferido pelas palavras de Landau no bate–papo anteriormente mencionado: “Me agradaria dizer às pessoas que façam o que pede o filme. Que abram os olhos. Que vejam as coisas com outros

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olhos. E que as decisões que tomamos afetam o mundo em que vivemos”. Mas também “Avatar” me faz pensar no futuro. Não no futuro de planetas distantes, mas no futuro de nosso pequeno planeta azul, chamado Terra, e dos habitantes que nele moram, especialmente na cultura. É possível que o filme “Avatar”— e a tecnologia nele contida — seja um desses momentos em que a humanidade muda a maneira de “olhar” o mundo. Aventura artística que começou milhares de anos atrás com os egípcios (sempre é bom lembrar a este respeito o artigo da Camille Paglia “O Nascimento do Olho Ocidental”). A arte não olhou sempre o mundo do mesmo modo. Houve uma época que nem sequer existia a arte da perspectiva. Foi Giotto di Bondone a que nos ensinou a olhar com perspectiva. Giotto criou a noção de tridimensionalidade, em plena Idade Média. BELEZA IDEALIZADA E TERAPÊUTICA Houve uma época que os filmes eram mudos e preto e branco. Logo foram com fala, logo coloridos. E após muitas outras inovações tecnológicas, agora são em 3D. “Avatar” nos ensina a “olhar o mundo” em 3D. E novamente como aconteceu com Giotto di Bondone, no final do século XIII e início do século XIV, na Idade Média, o mundo da arte se vê mergulhado na tridimensionalidade. Possivelmente, muito em breve, a tridimensionalidade seja uma realidade nos aparelhos de reprodução de filmes e TV de nossos lares. Sobre isto podemos refletir filosoficamente como as formas de olhar o mundo mudam com o passar do tempo. Como a arte nos fornece olhares diferentes e como a tecnologia cria os meios para isso. Nosso olhar sobre o mundo está inserido na temporalidade e diferentes culturas, em diferentes tempos, olham o mundo de diferentes modos. O olhar nem sempre foi o mesmo, nem os tempos foram os mesmos. Nosso mundo tem sua forma de olhar e nós “vivemos nesse olhar”. Logo tudo será em 3D. Os jogos, a televisão, o cinema. E isso irá mudando nosso

olhar sobre este mundo. A arte nos ensina. Em “Avatar”, a arte é concebida como beleza. O filme é farto de imagens belas, cores, linhas, formas. E é quiçá isso que as pessoas mais gostaram do filme. Sua beleza. É isso que nos fascina. É que o ser humano sempre gostou do belo. Nisso concordo com o ensinamento do grande filósofo grego Aristóteles que afirmava que o belo e o bom puxam a vontade do homem, sendo o objeto do desejo aquilo que é belo e bom. Para Aristóteles, o belo e bom atraem como o objeto do amor atrai o amante. Grande parte da fascinação que “Avatar” exerce sobre milhões de pessoas se deve ao exagero de beleza que o filme tem. Corpos belos, paisagens belas, cenários belos. Até a natureza perde seu lado horrível e se transforma em natureza bela. Tão bela que emociona. Ela se torna mais bela ainda do que ela é. O olho humano pode corrigir as “imperfeições” do real. É a beleza idealizada, que começou no mundo grego: eles, nas esculturas, corrigiam as medidas dos atletas e faziam os desenhos e as esculturas com geometria, assim tudo ficava harmônico e agradável aos olhos. Hoje a tecnologia ajuda a deixar mais belo, nas imagens, aquilo que já é belo naturalmente. Na Espanha o lançamento do filme “Alice no País das Maravilhas” teve que ser adiado por causa do sucesso de “Avatar”, e imagino que algo parecido possa ter acontecido em outros países. De “Alice no País das Maravilhas” podem ser ditas coisas parecidas a “Avatar”. Também é um filme de ficção em 3D, mas sempre pode existir algum professor de Filosofia que critique a falta de “realismo” de “Alice no País das Maravilhas”. Ou a falta de lucidez de Alice. Quero finalizar com uma frase que o professor de Filosofia Medieval, Francisco Benjamin, da Unicamp e da Faculdade de Filosofia São Bento, costumava falar durante suas aulas sobre Aristóteles: “O belo é sempre terapêutico”. E quiçá “Avatar” seja somente isso, uma bela terapia de duas horas. Enquanto o mundo real continua sempre ali. FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 43

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Abraçando estátuas cobertas de neve no inverno Da adversidade à resiliência POR JOSÉ FERNANDES P. JÚNIOR*

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P

a Resiliência

Termo técnico da física, resiliência é, segundo o dicionário Aurélio, “propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica”. Por ter esse sentido de “resistência aos choques, aos contratempos”, a palavra ganhou força na Psicologia, na Filosofia, nos manuais de recursos humanos e até entrou para o vocabulário da autoajuda.

a Antípatro de

sídon

Antípatro de Sídon foi um poeta e viajante grego, a quem historiadores costumam atribuir a elaboração, por volta de 150 e 120 a.C, da lista das Sete Maravilhas do Mundo.

arecerá, à primeira vista, estranho o título deste texto. É possível que alguns atiçados e movidos pela curiosidade de saber do que se trata ousem prosseguir em lê-lo. O subtítulo, porém, de antemão, antecipa ou deixa pistas do que nos propomos a tratar. Resiliência a é o termo usado para evidenciar situações em que o ser humano, tomado pelas adversidades, é capaz de sair de todas elas triunfalmente. Coloquialmente, chamamos isso de “dar a volta por cima” ou de encarar os reveses dando risadas do mau tempo. Concernente a isso, muitas são as lições que os filósofos nos apontam. Sem dúvida, a história da Filosofia contribuiu em muito com exemplos magnânimos de soerguimento enfrentados pelos filósofos. Mencionaremos, doravante, alguns desses casos emblemáticos. DiÓGENEs, o ZoMBADoR soCiAl Diógenes de Sinope, o Cínico (c.400 - c.325 a.C.), levou uma vida de total desdém às convenções sociais de seu tempo. Algumas peculiaridades de sua vida são descritas por seu homônimo Diógenes Laércio (Laertius ou Laêrtios) em “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”. Este nos conta de Diógenes que seu traje era uma túnica, um alforje e um bastão. Era extremamente pobre e dependente das esmolas e benemerência de seus compatriotas. “Em certa ocasião” – diz-nos Laércio – “Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas” (pág.158). Conta, ainda, Teôfrastos no seu Megárico que “certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para o outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera desejável, descobriu um remédio para suas dificuldades.”

Sem dúvida, Diógenes era um homem de se admirar por suas tiradas e estilo de vida. Não obstante, o povo de Atenas o amava. “Tanto era assim que quando um rapaz lhe quebrou o tonel, os atenienses surraram o rapaz e deram outro tonel a Diógenes”(pág. 163). Com efeito, o próprio filósofo “dizia que todas as maldições da tragédia haviam caído sobre ele e de qualquer modo era um homem “sem cidade, sem lar, banido da pátria, mendigo, errante, na busca diuturna de um pedaço de pão” (pág. 161). Ademais, Laércio diz que o cínico Diógenes “no verão rolava sobre a areia quente, enquanto no inverno abraçava as estátuas cobertas de neve querendo por todos os meios acostumarse às dificuldades” (pág. 158). Em meio a um estilo de vida que parecerá ao homem moderno uma desgraça, foi Diógenes um homem livre e admirado no seu tempo. Em suma, viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro, portanto, pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem justo no mundo”. Sabe-se que quando Alexandre, o Grande, ao se encontrar com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o Grande. Pedeme, agora, o que queres”. Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim, murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. ZENÃo (ZÊNoN), o EsToiCo Outro filósofo que nos apresenta um modelo de superação às adversidades é Zenão de Cicio (334-264 a.C.). Deste filósofo registramos a seguinte lição de ignorância à adversidade que o levou a ter nome póstero na história da

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sÓCRATEs, o MÁRTiR iMoRTAl DA FilosoFiA O que seria da Filosofia sem Sócrates? Aliás, ele morreu por ela, como Cristo morreu por nós. Em janeiro de 399 a.C., quando contava com setenta anos vividos, adentrou ao tribunal para submeter-se a um julgamento que daria desfecho a sua vida. Pesava sobre ele a acusação de violar e profanar a religião

do Estado e corromper jovens atenienses. No livro “O Conceito de Ironia” – constantemente referido a Sócrates, Kierkegaard afirma que “a acusação contra Sócrates é um documento histórico” (pág. 134). Condenado por uma apertada maioria de 280 votos contra 220, foi obrigado a tomar cicuta, o que levaria à morte. Entretanto, Diógenes Laércio levanta a maioria de 80 votos adicionais. Certamente, ao que se sabe, Sócrates não era um filósofo que vivia em uma torre de marfim contemplando a vida e muito menos – para continuar na metáfora – era uma coruja na gaiola. A ágora de Atenas era o seu púlpito, sua tribuna. Constantemente, lá estava a dialogar, com todo tipo de indivíduo. Ralph W. Emerson a conta-nos, em “Homens Representativos”, que Sócrates era um “homem de origem humilde, mas bastante honesto, tinha a história mais vulgar e era de uma simplicidade pessoal assaz notável para excitar a verve dos outros. [...] Era um indivíduo de sangue frio, juntando ao seu humor um temperamento perfeito e um conhecimento dos homens, que, qualquer que fosse o interlocutor, expunha o indivíduo a uma derrota certa, fosse qual fosse o debate e, nos debates, deleitava-se imoderadamente” (pág. 44-45). Outrossim, era paupérrimo. Sua indumentária era a mesma, inverno e verão; andava sempre descalço; alimentava-se de azeitonas e de pão e água, salvo quando era convidado para algum banquete pelos amigos. De vez em quando se empenhava no ofício de escultor, fabricava algumas estátuas que lhe rendiam algumas moedas. Sua fisionomia comportava traços que lhe fugiam à beleza: na verdade dispunha de um rosto rechonchudo e feio, mas, quando

a Ralph W.

Emerson

Nascido em Boston, EUA, no dia 25 de maio de 1803, o filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson escreveu livros como “Conduta para a Vida” e “Homens Representativos”. Sua obra filosófica e literária é considerada um dos pilares do transcendentalismo. Emerson faleceu em Concord, a 27 de abril de 1882.

COMMONS

Filosofia: Narra-nos Diógenes Laércio quando foi a Zenão anunciado o naufrágio da nau na qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “A fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. Depois do revés, Zenão, agora sem a posse de suas economias, fundou o estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine). As intempéries da vida não o atingiam. Assim, dele se ouvia dizer: “Nem o gélido inverno, nem a chuva incessante, nem a chama do sol, nem a doença atroz consegue dominálo, nem os inúmeros folguedos populares; infatigavelmente ele se dedica noite e dia a seus estudos” (pág. 187). Nem mesmo os poetas cômicos percebiam que suas sátiras tornavamse um elogio, Filêmon dizia: “A filosofia desse homem é de fato original; ele ensina a ter fome e consegue discípulos. Apenas um pão, um figo como sobremesa, e água para beber”. Por fim, Diógenes Laércio registra que Antípatro de sídon a compôs para Zenão o seguinte epigrama: “Aqui jaz o célebre Zênon, caro a Cítion, que escalou agora o Ôlimpos [...] sem se cansar dos trabalhos de Heraclés (Hércules para os romanos) , porém descobriu o caminho que leva as estrelas – apenas a moderação” (pág. 188).

COMMONS

“Depois que eu morrer, prefiro que as pessoas se perguntem por que eu não tenho um monumento e não por que o tenho” Catão, o Velho (234-149 a.C.)

a Tagore

Rabindranath Tagore ou Rabindranath Thákhur (1861-1941) foi um poeta, escritor e músico nascido na Índia. Tagore recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1913.

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*José Fernandes P. Júnior é professor de Filosofia na rede pública do DF, bacharelando em Direito e autor de vários artigos nas áreas de Filosofia e Direito

Poderíamos citar, ainda, nomes como o de Sêneca, Schopenhauer, Kierkegaard, etc, mas por enquanto, fiquemos por aqui. Entretanto, não sem antes de trazer os versos resilientes do poeta indiano Tagore a para este desfecho: Vivi meus três caminhos na terra. Purgatório. Inferno. Céu. Tudo de acordo com meus projetos, Minhas atitudes, Procurando não cair nos mesmos erros. Agora – vago e espero Entre tropeços e flagelos O ressurgir da verdade. Que a mensagem e a vida de Diógenes, Zenão e Sócrates sejam um indício de esperança, em meio ao gélido frio da adversidade.

EMERSON, Ralph Waldo. Homens Representativos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1990.

REFERÊNCIAS

começava a dialogar, todos esqueciam sua aparência, magnetizados por sua sabedoria. Este jeito de ser despertou opositores e conspiradores contra Sócrates. Ele era irrefutável e rápido nas réplicas. Por exemplo, quando ouviu dizer que alguém falava mal dele, comentou: “É natural, pois essa pessoa nunca aprendeu a falar bem” (LAÉRCIO, pág. 56). E ainda: “Quando Antístenes moveu o seu manto de forma a deixar visível um rasgão no mesmo, o filósofo disse: “Vejo tua vaidade através do manto”. A acusação que se irrompeu contra Sócrates é assim documentada por Favorinos em sua obra “Metrôon”: “Esta acusação e declaração é jurada por Mêletos, filho de Mêletos de Pitos, contra Sócrates, filho de Sofroniscos de Alopece: Sócrates é culpado de recusarse a reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado, e de introduzir divindades novas, e é também culpado de corromper a juventude. Pena pedida: a morte”. Lísias, o filósofo, atuou como advogado de defesa no julgamento, mas Sócrates, assim declarou (LAÉRCIO, pág. 57-58): “Um belo discurso, Lísias, mas não adequado ao meu caso”; mas Lísias assim retrucou: “Se se trata de um belo discurso, como pode faltar-lhe adequação ao teu caso?” Sócrates replicou: “Ora, belos mantos e calçados não me seriam também inadequados?” Assim, Sócrates, condenado, deixa de estar entre os atenienses, que pouco a pouco se arrependeram, vindo com isso, em uma tentativa de reparação de tamanha injustiça, a construírem uma estátua de bronze, obra de Lísipos, e que fora erigida no recinto destinado às procissões. Aos setenta anos enfrenta a morte sem nenhuma temeridade. Um gole de cicuta não foi o suficiente para aniquilar o filósofo; por isso, a imortalidade veste tão bem Sócrates, assim como é pertinente a indagação que fizemos a seu respeito logo de início.

KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de Ironia – constantemente referido a Sócrates. Trad. Álvaro Luis M. Valls. Petrópolis Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991. LAÊRTIOS, Diógenes. Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 2008.

CoNClUsÃo

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IDEIAS

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Pragmatismo

a c i r é m A a d a Filosofia ganha o mundo 50 | Conhecimento Prático | FILOSOFIA

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Saiba mais sobre a filosofia pragmatista e entenda a sua importância para o pensamento contemporâneo. POR PAULO GHIRALDELLI JR.*

O ESQUILO E O PRAGMATISMO “Viram o Jorge? Diante de tantas opiniões e choros, ele pegou o caminho mais objetivo, desconsiderou questiúnculas e foi direto ao ponto. Resultado: deu a solução rápida. Jorge é um cara pragmático”. O parágrafo acima mostra o que a maioria das pessoas imagina que é “um cara pragmático”: alguém que desconsidera firulas e consegue realizar os objetivos que lhe foram postos. No caso aí, Jorge é pragmático e, ao mesmo tempo, bem avaliado – elogiado até. Todavia, na maioria das vezes, quando alguém é chamado de pragmático, está se falando de uma pessoa exatamente como o Jorge, mas avaliado como de caráter duvidoso por ter “desconsiderado questiúnculas” e visado acima de tudo seus objetivos. No geral, no linguajar popular (especialmente no Brasil), pragmático é alguém que age segundo uma visão exageradamente fixa apenas nos resultados e, assim fazendo, não se importa com os “inevitáveis efeitos colaterais”. Assim, a noção comum de pragmático é a de uma pessoa que, no melhor, evita o dispensável para resolver uma situação e, no pior, faz o que tem de fazer sem considerar reflexões e ponderações sobre o prejuízo de outros envolvidos no caso, direta ou indiretamente. FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 51

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COMMONS

a William James

(1842-1910)

COMMONS

Formado pela Universidade de Harvard, William James é um pensador fundamental para outro campo de conhecimento: a Psicologia. James publicou as obras “Fundamentos da Psicologia” (1890) e “As Variedades da Experiência Religiosa: estudo sobre a natureza humana” (1902).

a Émile

Durkheim (1858-1917)

Francês de Épinal, Émile Durkheim integra a chamada tríade clássica da Sociologia, ao lado de Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920). Escreveu as obras “Da Divisão do Trabalho Social” (1893), “As Regras do Método Sociológico” (1895) e “Do Suicídio” (1897).

Não creio que o pragmático deva ser visto assim, negativamente. Vejo isso como um erro. O erro cresce ainda mais quando se confunde essa ideia de “pragmático” como sendo o adepto da filosofia pragmatista. O filósofo pragmatista não é este pragmático aí acima, tomado pela conversa corriqueira. Então, o que é o pragmatista? Eis um exemplo. O filósofo pragmatista chega a um lugar em que dois grupos de filósofos estão engalfinhados em uma terrível discussão sobre um esquilo. Há um esquilo subindo em torno de uma árvore e um homem tenta segui-lo, mas o esquilo se move rapidamente de modo que ele sempre consegue manter a árvore entre ele e o homem, uma vez que, quando o homem roda em torno da árvore o esquilo também anda. Os filósofos estão divididos, eles querem decidir sobre a seguinte questão: o homem gira ou não em torno do esquilo? O exemplo é de William James (1842-1910) a, um dos filósofos americanos fundadores do pragmatismo. Ele se coloca no exemplo como sendo o filósofo pragmatista. Entra no problema munido de um adágio da filosofia medieval: “Quando há uma aparente contradição, faça uma distinção”. Então, usa disso para resolver o problema, a partir da técnica de distinguir perspectivas. James pergunta o que os filósofos querem dizer com a expressão “girar em torno” e, para visualizar as possibilidades, traça duas descrições do caso. Primeira: quando se toma o homem ocupando o norte, o sul, o leste e o oeste em relação ao esquilo, então se pode dizer que é correto falar que “ele gira em torno do esquilo”. Mas se o que está valendo é dizer que o homem inicialmente se coloca na frente do esquilo, depois à direita dele, atrás, à esquerda e finalmente na frente dele novamente, então não é verdadeiro dizer que ele “gira em torno do esquilo”.

O filósofo pragmatista (no caso, James) não se desviou da questão, indo para um debate metafísico sobre “a natureza da verdade”. Também não aceitou a ideia de diferenciar radicalmente o termo “correto” do termo “verdadeiro”. Muito menos ficou atarantado sem fazer distinções. O filósofo pragmatista entrou na experiência vivida ali naquele momento e fez as distinções sobre uma descrição possível e sobre uma redescrição possível. Resolveu o enigma de modo pragmatista. Em certo sentido, por dar um tipo de solução ao debate, apontando para o encerramento da polêmica, agiu de um modo que não seria errado dizer que também foi pragmático. No texto de 1907, “O que significa o pragmatismo”, em que dá este exemplo do esquilo, James lembra que o filósofo pragmatista, no caso ele próprio, não foi festejado pelos filósofos presentes na polêmica, por resolver a questão como resolveu. Os filósofos tradicionais continuaram o debate e o acusaram de não ter resolvido coisa alguma, apenas ter se desviado do problema. Por que falaram isso? Ora, porque James não tinha, de fato, dado a natureza do ato de “girar em torno” ou o significado de “girar em torno”. James não colocou no seu texto de 1907 esse alerta à toa. Ao falar da avaliação dos filósofos tradicionais a respeito de sua intervenção na polêmica sobre o esquilo, James quis lembrar o quanto aquela doutrina que ele e outros estavam criando não seria aceita, nunca, como uma doutrina autenticamente filosófica pelos filósofos metafísicos e tradicionais. Afinal, quem mais tem preconceito é quem lida com conceitos, e se os filósofos tradicionais se dizem criadores de conceitos, nunca foi difícil, para eles, se afundarem em preconceitos. UMA DOUTRINA MALDITA Talvez nenhuma outra doutrina seja realmente tão maldita na história da Filosofia quanto o pragmatismo. Fala-se em Hobbes e

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ram por bem não colocar na própria boca uma fórmula tão desgastada pela nossa Ditadura Militar (1964-85). O que professores brasileiros de Filosofia jamais souberam, quando do descabelamento diante do pragmatismo, é que muito do que foi feito em nosso país, em termos de cultura e educação, só foi levado a cabo porque seus idealizadores eram pragmatistas. Uma tradição pouco paulista e muito mais carioca e nordestina de discussão cultural, embebida em pragmatismo, vingou no Brasil a partir dos anos vinte, algo que durou de forma bastante produtiva até os anos sessenta. Anísio Teixeira (1900-1971) foi o grande expoente do pragmatismo americano no Brasil. Esse pragmatismo se revelou como doutrina pioneira no campo da filosofia da educação. Paulo Freire (1921-1997) foi um seguidor de Anísio e, por intermédio deste, de John Dewey (1859-1952), outro grande filósofo americano, também na linha dos fundadores do pragmatismo.

HEATHER CONLEY

Sade como filósofos malditos. Mas que nada! Eles nunca tiveram a unanimidade das opiniões contra eles. Mas o pragmatismo sim. O pragmatismo se tornou uma filosofia realmente incômoda – e proibida em alguns lugares. Émile Durkheim (1858-1917) a chegou a dizer que banir o pragmatismo da França era uma questão de “soberania nacional”, pois aquela filosofia americana seria amiga do perspectivismo de Nietzsche e, portanto, uma “doutrina irracionalista”. A França, protetora da tradição racionalista, disse Durkheim, nunca deveria deixar tal filosofia pisar em seu solo. Logo depois, nos anos trinta no Brasil, quem reagiu contra os pragmatistas em nossa terra foram os religiosos – especialmente os pensadores católicos. Eles viram no pragmatismo não mais só um amigo de Nietzsche, mas também de Marx – os pragmatistas eram tão materialistas quanto os comunistas e, como “negadores de Deus”, deveriam ser postos para correr. Muitos anos depois, na década de noventa aqui no Brasil, professores não tão importantes e rigorosos quanto Durkheim e bem menos capazes intelectualmente do que os religiosos antipragmatistas dos anos trinta, falaram contra o pragmatismo. O tom era o de desdém para com a Filosofia americana, mas as ligações que a tornavam pecaminosa eram, agora, distintas das do passado: o pragmatismo não podia vingar no Brasil uma vez que era, para esses novos caçadores de bruxas, uma “doutrina aliada ao imperialismo americano”. Talvez os que assim falaram quisessem, também, tirar daqui o pragmatismo por razões de “segurança nacional”. Só não usaram essa expressão – “segurança nacional” – porque, sendo professores de Filosofia, acha-

a Richard Rorty

(1931-2007)

Richard McKay Rorty nasceu em Nova York e dedicou-se aos estudos da filosofia da linguagem e filosofia da mente. Dentre suas obras publicadas no Brasil, destacam-se “Consequências do Pragmatismo” (Instituto Piaget, 1999), “O Futuro da Religião” (Relume-Dumará, 2006), “Contingência, Ironia e Solidariedade” (Martins Editora, 2007) e “A Filosofia como Política Cultural” (Martins Editora, 2009).

UM FILÓSOFO “DO CONTRA” Atualmente há um bom número de filósofos pragmatistas, em diversos países. Todavia, a maior parte dos historiadores da Filosofia concorda que o americano Richard Rorty (1931-2007) a foi o maior expoente dessa família no último quarto do século XX. No âmbito técnico da filosofia acadêmica, Rorty ficou conhecido pelo seu trânsito fácil entre a “filosofia continental” e a “filosofia analítica”, criando uma discussão bastante interessante sobre a verdade, resumida de modo emblemático em sua frase “se cuidamos da liberdade, a verdade cuida de si mesma”. Mais popularmente, como filósofo que recuperou para a América a tradição da qual Dewey foi o maior representante, a do intelectual que se

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*Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e autor do livro “Aventura da Filosofia: de Parmênides a Nietzsche” (Manole, 2010), http://ghiraldelli.pro.br. Ao lado de Francielle Maria Chies, é apresentador do programa “Hora da Coruja”, aos sábados, ao meio-dia, na All TV (http://alltv.com.br)

coloca na mídia para inserir-se nos grandes debates de sua época, Rorty ficou conhecido por ser “do contra”, alguém sempre disposto a desconfiar da esquerda marxista-nietzschiana-foucaultiana e de discordar francamente da direita, tanto a regida por Reagan quanto a de Bush filho. Acusou ambas, esquerda e direita, de nunca terem se afastado de um essencialismo de tipo religioso. Rorty viu a maioria dos professores de Filosofia como “padrecos”. Ou seja, tanto à direita quanto à esquerda, os professores de Filosofia nunca quiseram outra coisa senão admoestar os colegas do mesmo modo que os filósofos tradicionais fizeram com William James. Viram a Filosofia como uma empresa que, de uma vez por todas, dá o significado de “girar em torno”, sem deslizar para a distinção de perspectivas do uso que se pode fazer do “girar em torno” nos contextos linguísticos. Uma parte desses professores advoga que no céu platônico há uma forma perfeita que fornece, de uma vez para sempre, o que é o “girar”. Outra parte deles acredita que, por meio de alguma “análise da linguagem”, o significado final de “girar” pode ser determinado. Esses dois grupos nunca “engoliram” James por ele ter deixado de lado tais questões e se concentrado apenas em dar uma respos-

ta pragmática para a questão posta diante do lépido esquilo. Isso que foi, no passado, uma objeção a James, foi transferida contra Rorty em forma de ódio. Talvez porque Rorty tenha dito que a Filosofia deveria esquecer a conduta do padre e adotar a conduta do engenheiro e do advogado. O padre tem uma regra única para todo e qualquer problema. Ele mostra os mandamentos e a fé. Você pode estar com dor no dedão do pé ou com falta de dinheiro ou ter brigado com sua mãe ou esposa e, então, você procura um padre. O que ele faz? Ele lhe dá os mandamentos e os segredos da fé e resume tudo em uma frase: “Creia na palavra do Senhor”. O filósofo herdeiro do platonismo ou do positivista lógico age de modo semelhante: pensa que dá solução universal, única e final para quem o procura sobre o caso do esquilo. Ele imagina poder resolver de vez, com uma descrição, o que se quer dizer ao se falar “girar”. Ora, o filósofo rortiano age pragmaticamente como o advogado ou o engenheiro que recebe seu cliente. Não há uma planta única para oferecer ao cliente que quer uma casa. Não há uma defesa única para o cliente que vai enfrentar o tribunal. Cada caso é um caso, e junto com o cliente, pragmaticamente, o advogado monta uma estratégia de defesa e o engenheiro, de modo semelhante, desenha o esboço da casa desejada. Conversar e distinguir perspectivas e ver o que está em jogo – eis aí a atitude de James. Eis aí, também, o que Rorty recolocou na agenda da Filosofia. Mas que irritante, não? Irritante? Claro que sim, pois os filósofos, como muitas pessoas, acham que essa condição nossa, humana, de não ter a chave única, geral, para todo e qualquer problema, é uma

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com razões – que implicam em uma perspectiva e, nesse sentido, um grau de subjetivismo – para justificar porque dissemos o que dissemos do homem e do esquilo. A Filosofia se propõe a fazer o homem não esquecer que ele está em um “jogo de dar e pedir razões”, como escreveu outro pragmatista americano contemporâneo, Robert Brandom. Estar desprovido de consensos eternamente definidos não significa que não podemos nos entender. Estamos nos entendendo faz muito tempo, pois nunca conversamos a partir de uma perspectiva subjetiva, e sim intersubjetiva. Caso contrário, a própria noção de linguagem, que nada mais é do que comunicação, não seria possível. Essa conclusão tipicamente pragmatista não é estranha a outras doutrinas contemporâneas em Filosofia. Do outro lado da América, entre os anos oitenta e noventa, um autor menos perspectivista, achou razoável iniciar um diálogo com Rorty. Esse filósofo, o alemão Jürgen Habermas a, atravessou o muro da Escola de Frankfurt e se aproximou consideravelmente da filosofia americana, sob uma nova ótica. Estava feita a ponte com a qual o pragmatismo abriu o século XXI, e por onde, em minha opinião, pode distribuir bons frutos para a Filosofia em um futuro próximo.

CC-BY-SA-3.0.

incompetência, um defeito da ciência com o qual a Filosofia não conviveria. Eles voltam ao platonismo e ao positivismo e cobram, em desespero: queremos a resposta. Eles não entendem de construção de casas e de defesas, eles apenas sabem viver de religião dogmática, de resultado único: “Creia na palavra do Senhor e, assim, vá até ali no seu cantinho do altar e reze treze ave-marias”. No limite, o que Rorty disse é um pouco o que Nietzsche havia dito: filósofos tradicionais são substitutos de sacerdotes. Ficam se purificando e acreditam que vão, assim, com as Formas ou com a Análise da Linguagem, dar sempre a mesma solução tanto para o terrorismo de Bin Laden quanto para a escolha do sutiã para o próximo desfile de Gisele Bündchen. Quando Rorty diz que talvez eles não tenham esse poder todo, eles se irritam. Irritam-se não só porque perdem poder aos olhos de seus alunos e, às vezes, de um público mais amplo, mas também porque não conseguem enxergar outra utilidade para a profissão de professor de Filosofia e, assim, olham para Rorty como um “quinta coluna” que quer destruir seus empregos. É como se Rorty tivesse nascido apenas para tirar o leite da boca de seus rebentos. Rorty nunca achou que a Filosofia precisaria, para ser Filosofia, ter de apresentar uma chave única de leitura de qualquer texto. Ele sempre acreditou na Filosofia como quem mostra que os manuais estão corretos quando dizem que a verdade, sendo propriedade de enunciados, é sempre objetiva. Mas, ao mesmo tempo, Rorty nunca achou que dizer isso ajudaria em alguma coisa, uma vez que, logo que dizemos que “é verdade (objetivamente) que o homem gira em torno do esquilo”, temos de, em seguida, vir

a Jürgen

Habermas

Chamado de “herdeiro” do legado teórico da Escola de Frankfurt, o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas (Düsseldorf, Alemanha, 18 de junho de 1929) foi assistente de Theodor W. Adorno no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Considerado um dos maiores filósofos contemporâneos, Habermas publicou em 1981 uma de suas obras mais estudadas: “Teoria da Ação Comunicativa”.

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EM DEBATE

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Estruturação reflexiva social O problema enfrentado pela Razão Subjetiva afeta até a estrutura da divisão de trabalho, porém, essa é a base necessária para uma mudança social. POR Tatiana Martins Alméri*

F

ilosofar na pós-modernidade pode ser sinônimo de enfrentar dificuldades, como falta de incentivos, preconceitos e confrontos capitalistas. A área de humanas em geral pauta-se em reflexões subjetivas as quais muitas vezes confrontam um mundo objetivo voltado para o materialismo capitalista, ocasionando também uma grande lacuna de informações entre as classes mais altas das sociedades e as mais baixas. Atualmente a maioria da sociedade não enxerga o conhecimento como um diferencial importante, mas sim o dinheiro. A razão, o pensar científico, são fundamentos que se desconectam de uma forma intensa do dia a dia da população mundial. Desconectam-se no sentido de que atualmente o senso comum está, na maioria das vezes, fundamentado em “achismos a”, que são curiosamente apresentados e defendidos como se fossem um argumento racional, algo altamente reflexivo e fundamentado em teorias e acontecimentos confiáveis. Atualmente não se tem mais tempo de uma reflexão fundamentada, na verdade não somos treinados a promover essa reflexão. Temos uma educação, na maior parte das vezes, infelizmente, repetitiva e imposta, a qual acaba por garantir a falta de argumentos, de confrontos ideológicos e de novas fundamentações argumentativas. O ato de refletir, hoje em dia, é considerado um ócio, um não fazer nada, uma inatividade. Entretanto, nos raros momentos que o refletir ocorre, quando a razão é a base da reflexão, atuações normalmente reservadas à elite, somente são FilosoFIA | Conhecimento Prático | 57

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Isso pode ser visto claramente nas universidades brasileiras: quanto mais objetivo, voltado para a prรกtica e, principalmente, para o desenvolvimento tecnolรณgico e industrial, maiores incentivos financeiros governamentais e privados existem.

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consideradas reflexões plausíveis quando os fundamentos estão permeados de Razões Objetivas; as Razões Subjetivas são normalmente descartadas. O valor se dá às realizações diárias que são palpáveis; em um mundo altamente materialista as raras conclusões concisas são somente aquelas que trazem fundamentos objetivos, tangíveis, aqueles que são possíveis de sintetizá-los em, por exemplo, uma fórmula matemática, um objeto, uma energia controlada, algo que se pode tocar, etc. A área de humanas possui em seu âmago pensamentos divergentes, confrontantes e até mesmo dialéticos a. Quanto maior for o contexto reflexivo mais aprofundada será a discussão. Porém, o pensar subjetivamente não é muito bem aceito na sociedade atual (senso comum), pois se parte do pressuposto que muitos confrontos não chegam a lugar algum. É o famoso “falar, falar e não dizer nada”. Busca-se resultados voltados diretamente para a prática, e se possível em curto prazo. Isso pode ser visto claramente nas universidades brasileiras: quanto mais objetivo, voltado para a prática e, principalmente, para o desenvolvimento tecnológico e industrial, maiores incentivos financeiros governamentais e privados existem. As consequências dessas diferenças se apresentam desde a estrutura dos prédios até da fundamentação teórica que são, entre outras coisas, as bibliotecas. Isso porque

a centralidade do sistema capitalista será alcançada mais rapidamente: o dinheiro. Entretanto, não se pode esquecer que até para se discutir o termo razão temos que observar as várias correntes que dela fazem parte. Os filósofos que criaram a Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica adotaram a solução hegeliana para a definição da razão, porém, apresentaram uma modificação visceral. “Os filósofos dessa Escola, como Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Max Horkheimer, têm uma formação marxista e, por isso, recusam a ideia hegeliana de que a História é obra da própria razão, ou que as transformações históricas da razão são realizadas pela própria razão, sem que esta seja condicionada ou determinada pelas condições sociais, econômicas e políticas. Para esses filósofos, o engano de Hegel está, em primeiro lugar, na suposição de que a razão seja uma força histórica autônoma (isto é, não condicionada pela situação material ou econômica, social e política de uma época), e, em segundo lugar, na suposição de que a razão é a força histórica que cria a própria sociedade, a política, a cultura. Para esses filósofos, Hegel está correto quando afirma que as mudanças históricas ocorrem pelos conflitos e contradições, mas está enganado ao supor que tais conflitos se dão entre diferentes formas da razão, pois eles se dão como conflitos e contradições sociais e políticas, modificando a própria razão” (CHAUÍ, 2000, p. 103). Essa corrente teórica afirma que existem dois tipos de razão: a razão instrumental, também chamada de razão técnico-científica, e a razão crítica ou filosófica, que conjetura sobre as vivências sociais e políticas, podendo ser apresentada também em forma de confronto, o que possivelmente trará uma força libertadora. A razão instrumental é supervalorizada, pois traz técnicas científicas empíricas, passíveis de serem repetidas indiscriminadamente em laboratórios e experimentadas até que se chegue a uma conclusão objetiva. Em contrapartida se subvaloriza a ra-

a Achismos

Termo informal utilizado para definir comentários e afirmações sem propriedade, conhecimento ou fundamentação teórica na tentativa de apresentar certezas, deduzir verdades e perpetuar conhecimentos sem fundamentos, porém, que trazem opiniões e apresentam o que as pessoas acham ou pensam sobre algo que está sendo discutido.

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a Dialéticos

COMMONS

De uma maneira simplificada, a dialética pode ser definida como a movimentação e contraposições de ideias sobre um mesmo tema na busca de, por meio de reflexão, dialogar e debater as várias perspectivas que possui o tema abordado. A dialética é um elemento indispensável para que se possa conceber que não existe uma única verdade, e sim um conjunto de verdades que definirão o tema abordado. A dialética apresentada de uma maneira consistente dá a abertura às transformações das verdades, à evolução científica e à própria crítica à ciência, permeada por uma busca incessante de diferentes contextos. Um dos principais embates sobre a dialética se deu por intermédio dos filósofos Marx e Hegel.

zão subjetiva ou filosófica. Essa diferenciação que a sociedade atual, século XXI, faz com relação às diferentes maneiras de buscar as “verdades” não é decorrente somente de contexto em que vivemos, essa construção e diferenciações comparativas são fundamentadas desde o Iluminismo. “Saliente-se que desde o Iluminismo há o domínio da razão e da técnica, estabelecido por meio da ciência e sua linguagem e da objetividade, considerando-se o discurso científico como o único discurso verdadeiro. Neste sentido, toda fala da psique que procure ser científica e objetiva tende a esquecer, ignorar ou desprezar a existência do outro polo, isto é, da fala, da subjetividade, da "alma" e do mundo mítico ou simbólico” (SERBENA; RAFFAELLI, 2003). Fundamentados em princípios iluministas, os positivistas construíram o moderno pensamento científico, considerando a razão como o único modo de se chegar a um conhecimento verdadeiro, a conclusões possíveis de serem consideradas válidas, pois dessa maneira poderiam chegar a algo mensurável, o que garantiria uma correta solução dos problemas avaliados. “Durante esse período do moderno pensamento científico correntes tentaram solucionar a crise com a qual a humanidade se deparava. O positivismo proclamava em seu discurso a anti-intuição, a antimitologia e o antidogmatismo, buscando assim resultados que podiam ser comprovados por meio de causas e consequências, afirmando inclusive que o conhecimento só será verdadeiro, ou melhor, válido, quando estiver postulado sob parâmetros científicos” (FERREIRA et. all, 2006, p. 98). Porém, em um contexto um pouco mais flexível, observa-se que ao negar os fundamentos da subjetividade, esta não necessariamente passa a ser extinta, apenas suprimida do discurso científico. “Deste modo ela termina por atravessar o discurso, contaminando-o e interferindo em sua própria racionalidade, pois a razão objetiva e universal é exercida por

uma subjetividade particular e sujeita a múltiplas interferências do mundo externo e de si própria” (SERBENA; RAFFAELLI, 2003). Grandes exemplos dessa importância de mesclar os tipos de Razões trouxeram comprovações transformadoras no contexto teórico-prático social. “Quando Platão tentou abarcar a alma (psyche), recorreu tanto ao mito como ao pensamento racional meticuloso. Precisou de dois caminhos. Plotino recorre (Enneads, IV.3.14) ao mito quando discute a alma. Freud também utilizou dois caminhos. Sua linguagem racional é intercalada de imagens míticas: Édipo e Narciso, horda primitiva e cena primária, o censor, a criança polimorfa perversa e aquela grandiosa visão de Tanatos, digna dos pré-socráticos. A linguagem de Freud se inspira nos discursos míticos; seria errado considerar seus mitos como descobertas empíricas demonstráveis por meio de estudos de caso. São visões, como as de Platão; a única coisa que falta é Diotima” (HILLMAN,1984, p. 143). Entretanto, os resquícios da evolução científica do Iluminismo ainda estão permeando o contexto do senso comum, o que não ocorre de uma maneira tão intensa nas discussões científicas. A crítica ao positivismo e sua classificação como um dogmatismo, a existência dos mitos da ciência, entre outros apontamentos, são constatações científicas que fazem parte do nosso contexto. Porém, esses resquícios acabam afetando até a estrutura da divisão de trabalho. Atualmente no Brasil, como profissões voltadas para o desenvolvimento tecnológico e elaborações práticas (entre outras, a área médica) são mais valorizadas, os outros tipos de profissões acabam sendo desvalorizados e deixados de lado; as pessoas que nela atuam, por algumas vezes acabam sofrendo até preconceitos. Isso se reflete de uma maneira tão importante no Brasil que o a Governo Federal faz campanhas na tentativa de incentivar pessoas a serem professores (licenciatura), algo que está voltado para a forma-

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ção intelectual de pessoas, e que, portanto, fundamenta-se amplamente em uma Razão Subjetiva voltada para o longo prazo. Ou seja, essa profissão não possui uma remuneração muito almejada, além de não trazer um status social voltado para o topo da hierarquia – sem deixar de lado, é lógico, a Razão Objetiva. Um dos grandes problemas a serem enfrentados pelas pessoas que representam a reflexão subjetiva está também no incentivo à pesquisa, nos preconceitos sociais e certamente no reconhecimento profissional. No entanto, acreditase que somente com a valorização dessa área será possível uma sociedade politicamente participativa, em busca da construção de direitos e deveres plausíveis e de uma sociedade mais justa, menos corrupta e mais humana. A exacerbada valorização material, financeira e objetivista faz com que a humanidade seja colocada em segundo plano, algo que a própria humanidade aceita e perpetua de geração para geração. As reflexões marxistas estão presentes a cada dia: tornamos-nos uma a mercadoria. E sabe quanto valemos? O CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000. FERREIRA, Amália Luíza De Sandro Nery.et. all. análise de uma sociedade decadente sob a visão Frankfurtiana. UFMT Cuiabá: UNICiências, v.10, 2006. HILLMAN, J. O Mito da análise: três ensaios de psicologia arquetípica. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

REFERÊNCIAS

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível em: http://sejaumprofessor.mec.gov.br/ internas.php?area=como&id=progIncentivo Acesso em: 03/2010. SERBENA; RAFFAELLI. Psicologia como disciplina científica e discurso sobre a alma: problemas epistemológicos e ideológicos. Psicol. estud.vol.8 no.1MaringáJan./June 2003. ISSN 1413-7372.

quanto ganhamos no final do mês; vendemonos a cada dia. É a materialização humana. Mas essas circunstâncias podem ser modificadas; para isso é necessário a valorização de uma reflexão subjetiva e o entrelaço com a razão objetiva. A valorização às duas formas de pensar devem ser a mesma. Além disso, também é necessário assumirmos que nossa população, em sua maioria, está fundamentada no senso comum, e não em uma reflexão racional, independente de qual tipo de razão seja. Assim, a busca pelo fim da alienação intelectual ou material pode trazer dois parâmetros: 1) a evolução da razão como algo que progride continuamente no tempo, avançando e se tornando cada vez melhor, ou 2) a razão como algo provocador de rupturas, descontinuidades que se modificam dependendo da época, da necessidade e da proposta. Como afirma a filósofa Marilena Chauí, “dizer que a história da razão é descontínua poderia levar a pensar que, afinal, a palavra razão não indica nada de muito preciso, nada de muito claro e rigoroso e que, talvez, seja um mito que a cultura ocidental inventou para si mesma. Mas pode também significar uma outra coisa muito mais importante: que a razão não é a estrutura universal do espírito humano e sim um meio precioso de que dispomos para criar, julgar e avaliar conhecimentos, para dar sentido às coisas, às situações e aos acontecimentos e para transformar nossa existência individual e coletiva” (2000, p. 108 e 109). O dia em que a população enxergar a razão de uma forma mais ampla, também será mais ampla a redução de preconceitos, de submissões e de domínio. Portanto, a busca valorativa é pelos entrelaços racionais: Razão Objetiva + Razão Subjetiva, isto é, o fim dos “achismos” aplicados de uma maneira errônea, para assim possibilitar uma sociedade que tenha capacidade de entendimento em busca de direitos, deveres, transformações sociais, valorização de todas as áreas e justiça.

a Governo Federal

Dentre as ações governamentais de incentivo à educação superior e à formação de professores estão o Programa Universidade para todos (ProUni), o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e a Universidade Aberta do Brasil (UAB), esta última voltada para a formação de professores do Ensino Básico.

a Mercadoria

“A riqueza de uma sociedade em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar”. Na teoria marxista, busca-se compreender as especificidades do papel da mercadoria no sistema capitalista, diferenciando duas formas valorativas: valor de uso e valor abstrato.

*Tatiana Martins Alméri é socióloga pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, mestre em Sociologia Política e docente na UNIP e na FATEC

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FILOSOFOTECA

A Filosofia vista de vários ângulos DA REDAÇÃO

LIVRO  DESTAQUE DO MÊS

Textos Básicos de

Linguagem

TEXTOS BÁSICOS DE LINGUAGEM DE PLATÃO A FOUCAULT AUTOR: Danilo Marcondes PÁGINAS: 140 EDITORA: Jorge Zahar Editor

R

espaldado por uma experiência de três décadas de magistério, o filósofo Danilo Marcondes de Souza Filho é autor de várias obras didáticas e de introdução ao universo da Filosofia, com destaque para os best-sellers “Introdução à História da Filosofia” e “Dicionário Básico de Filosofia” (em coautoria com Hilton Japiassú) que já venderam, somados, cerca de 50 mil exemplares. Segundo o seu currículo na Plataforma Lattes, “Textos Básicos de Linguagem – de Platão a Foucault” é o 11º livro de sua carreira. Doutor em Filosofia pela Universidade de St. Andrews (Reino Unido) e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcondes oferece aos leitores uma seleção de textos, centrados na temática de linguagem, de grandes pensadores da tradição ocidental. Fazem parte desse saboroso

SOBRE O PROJETO “Textos Básicos de Linguagem” é o terceiro livro de uma série escrita e organizada por Danilo Marcondes para a Jorge Zahar Editor. Os demais títulos são “Textos Básicos de Filosofia” (1999, 4ª ed. 2005) e “Textos Básicos de Ética” (2007), ambos adotados por escolas e universidades.

cardápio Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Wittgenstein e Foucault, sem falar no peso-pesado da linguística Ferdinand de Saussure. Todos devidamente comentados por Marcondes, um especialista em história da filosofia e filosofia da linguagem. A preocupação com a clareza e objetividade pedagógica é a tônica da obra. Para cada texto, Marcondes produziu uma introdução, comentários, notas explicativas, indicações de leitura e ainda desenvolveu propostas para ensino e debate em sala de aula. Marcondes mostra que o conjunto de autores por ele destacado pensou o problema da linguagem por meio de dois enfoques: a relação entre mente e linguagem e a linguagem enquanto instrumento de comunicação. “Textos Básicos de Linguagem” é o irmão caçula de uma trinca de obras, completada por “Textos Básicos de Filosofia” e “Textos Básicos de Ética”.

SOBRE O AUTOR Doutor em Filosofia pela Universidade de St. Andrews, localizada na Escócia, Reino Unido, Danilo Marcondes é professor titular do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense – UFF. É autor de “Iniciação à História da Filosofia”, “Filosofia Analítica” e “Dicionário Básico de Filosofia” (com Hilton Japiassú).

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LIVRO  RECOMENDADOS

NIETZSCHE, O REBELDE ARISTOCRATA

PARA UMA VIDA NÃO-FASCISTA

O INCONSCIENTE ESTÉTICO

A FILOSOFIA DE LOST

AUTOR: Domenico Losurdo TRADUÇÃO: Jaime A. Clasen EDITORA: Revan PÁGINAS: 1.108

ORGANIZADORES: Margareth Rago e Alfredo Veiga Neto EDITORA: Autêntica PÁGINAS: 432

AUTOR: Jacques Rancière TRADUÇÃO: Monica C. Netto EDITORA: 34 PÁGINAS: 80

AUTORA: Simone Regazzoni TRADUÇÃO: Elena Gaidano EDITORA: Best-seller PÁGINAS: 160

É inegável: o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) desperta paixões. Edições de seus principais livros vendem muito e sem parar, e o interesse por sua vida e obra é inesgotável. O volumoso “Nietzsche, o Rebelde Aristocrata – biografia intelectual e balanço crítico”, do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, é um dos melhores livros sobre o autor de “Ecce Homo”, “Genealogia da Moral” e “Além do Bem e do Mal”.

Pertencente à coleção Estudos Foucaultianos, o livro reúne artigos de especialistas na obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). O mote é o prefácio de Foucault escrito para a obra “O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia” (1972), de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e que se tornou tão importante quanto o livro da dupla: “Introdução à Vida Não-Fascista”. Outros títulos da coleção são “Cartografias de Foucault” e “Figuras de Foucault”.

Filosofia e psicanálise se cruzam neste belo e sintético livro do filósofo franco-argelino Jacques Rancière, professor emérito da Universidade de Paris e autor de “A Partilha do Sensível”. Em “O Inconsciente Estético”, a noção de inconsciente freudiano é discutida da perspectiva de uma conexão entre as teses de Freud e os movimentos artísticos como o romantismo. Jacques Rancière é conhecido por seus estudos sobre arte, estética e política.

“X-men e a Filosofia”, “Os Beatles e a Filosofia”... Obras que visam escarafunchar os aspectos filosóficos de ícones da cultura pop e audiovisual lotam as prateleiras das livrarias. Os dois títulos acima levam a assinatura de William Irwin, mas outro filósofo, o italiano Simone Regazzoni, professor da Universidade Católica de Milão, resolveu enveredar para a área das séries de televisão. Primeiro com “A Filosofia de Dr. House” e agora com a “Filosofia de Lost”.

COMENTÁRIO DA EDITORA:

COMENTÁRIO DA EDITORA:

COMENTÁRIO DA EDITORA:

COMENTÁRIO DA EDITORA:

“A obra monumental de Domenico Losurdo é destinada a tornarse referência importante entre os estudiosos de Filosofia, Linguística, História e Política no Brasil.”

“Esta publicação destina-se a conhecer um pouco mais do legado intelectual de Michel Foucault e a todos que pretendem pensar e problematizar o presente com base no pensamento de um dos filósofos mais importantes do século 20.”

“Rancière procura demonstrar como as formulações de Freud estão em estreita relação com os movimentos da arte ocorridos sobretudo a partir do romantismo, explorando as tensões entre a lógica do inconsciente freudiano e uma outra lógica, a do inconsciente estético.”

“O resultado de “A Filosofia de Lost” é um olhar inovador sobre os dilemas e as situações vividas pelos protagonistas e uma análise profunda sobre os temas recorrentes na série, como a oposição entre fé e razão, o isolamento do mundo exterior e a busca pela sobrevivência.” FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 63

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DVD  PARA REFLETIR

O ENIGMA DE KASPAR HAUSER (JEDER FÜR SICH UND GOTT GEGEN ALLE)

O Enigma de Kaspar Hauser

N

uremberg, região da Baviera, 28 de maio de 1828. Na GÊNERO: Drama/Policial Unschlittplatz, a praça princiDIREÇÃO: Werner Herzog pal da cidade, um jovem misELENCO: Bruno Schleinstein, Walter Ladengast, Brigitte terioso e completamente deslocado, com Mira, Willy Semmelrogge sua linguagem incompreensível e gestos ANO: 1974 estranhos, desperta a atenção dos moraDURAÇÃO: 110 Min. dores. Ele trajava roupas surradas e trazia no bolso uma carta, endereçada ao capitão do Exército, na qual alguém explicava a sua história. Com ele também teriam sido encontrados um livro de orações, um rosário, um punhado de ouro em pó e um lenço com as iniciais K.H.. Kaspar Hauser aparentava ter entre quinze e dezessete anos e especula-se muito sobre sua origem ser ou não nobre. O jovem “O Enigma de Kaspar Hauser” Kaspar parejunta as melhores virtudes do cia alheio aos cinema autoral a uma história, em si, impressionante. códigos, ao repertório comunicativo, às regras sociais e aos modos de pensar e interpretar situações característicos de quem está integrado à civilização. Inicialmente, causou um certo medo e apreensão nas pessoas, mas logo sua docilidade despertou a simpatia da cidade e de todos os europeus, que o apelidaram de “O filho da Europa”. Pouco a pouco, Kaspar Hauser foi “apresentado” ao modus operandi da so-

ciedade por um professor. Aprendeu a falar e a se “portar”, embora tenha mantido alguns hábitos de seus tempos de isolamento. Sua suposta índole afável gera até hoje reflexões sobre uma possível “prova” da validade da tese do Bom Selvagem, defendida pelo filósofo iluminista JeanJacques Rousseau em relação aos homens em “estado de natureza”. Para além dessa questão, a trajetória de Kaspar Hauser é uma rica fonte de estudos para psicólogos, filósofos e cientistas sociais. O cineasta alemão Werner Herzog levou às telas essa história em “O Enigma de Kaspar Hauser” (1974). Meticuloso, Herzog escolheu para o papel do jovem Kaspar o ator Bruno S., cujo drama pessoal conhecera em um documentário. Filho renegado de uma prostituta, Bruno fora espancado diversas vezes e possuía um longo histórico de internações em hospitais psiquiátricos. Bruno S. e Werner Herzog voltaram a trabalhar juntos em “Stroszek” (1977). Belissimamente filmado e conduzido por Herzog, posteriormente consagrado pelos longas “Nosferatu, o Vampiro da Noite” (1979) e “Fitzcarraldo” (1982), “O Enigma de Kaspar Hauser” junta as melhores virtudes do cinema autoral a uma história, em si, impressionante. Não por acaso, o filme faturou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 1975.

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DVD  CLÁSSICOS

O Leopardo O LEOPARDO (IL GATTOPARDO) GÊNERO: Drama DIREÇÃO: Lucchino Visconti ELENCO: Burt Lancaster, Claudia Cardinale, Alain Delon DURAÇÃO: 185 min.

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1963, o drama “O Leopardo”, dirigido pelo cineasta italiano Lucchino Visconti (19061976), tem seu enredo baseado no romance de mesmo título do escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957). A trama gira em torno da aristocracia local da Sicília e sua tentativa de manter-se influente em pleno processo revolucionário da Unificação Italiana na segunda metade do século 19. Nessa obra-prima de Visconti, um especialista em versões cinematográficas de grandes livros (filmou em 1971, “Morte em Veneza”, de Thomas Mann), é reproduzida do romance de Lampedusa uma frase-símbolo do pragmatismo político: “É preciso mudar para que tudo continue como está.”

M.A.S.H M.A.S.H (M.A.S.H) GÊNERO: Comédia DIREÇÃO: Robert Altman ELENCO: Donald Sutherland, Robert Duvall, Sally Kellerman, Elliot Gould DURAÇÃO: 116 min.

Realizar uma comédia ambientada numa unidade hospitalar de campanha em meio à carnificina da Guerra da Coreia é uma tarefa delicada, com sérios riscos de descambar para a grosseria e o desrespeito. Lançá-la nos cinemas dos EUA em 1970, no auge da Guerra do Vietnã, foi um ato de coragem artística e política. O diretor norte-americano Robert Altman (1925-2006) realizou o irônico, satírico e crítico M.A.S.H (acrônimo de Mobile Army Surgical Hospital), com uma atuação particularmente impagável de Donald Sutherland. O filme amealhou um batalhão de prêmios: Globo de Ouro, Palma de Ouro, Oscar de roteiro adaptado...

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RETRATOS

Mito da Caverna:

uma reflexão atual

POR PABLO FABIANO BARBOSA CARNEIRO*

O

Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna, foi escrito pelo filósofo Platão e está contido em “A República”, no livro VII. Na alegoria narra-se o diálogo de Sócrates com Glauco e Adimato. É um dos textos mais lidos no mundo filosófico. Platão utilizou a linguagem mítica para mostrar o quanto os cidadãos estavam presos a certas crendices e superstições. Para lembrar, apresento uma forma reelaborada do mito. A história narra a vida de alguns homens que nasceram e cresceram dentro de uma caverna e ficavam voltados para o fundo dela. Ali contemplavam uma réstia de luz que refletia sombras no fundo da parede. Esse era o seu mundo. Certo dia, um dos habitantes resolveu voltar-se para o lado de fora da caverna e logo ficou cego devido à claridade da luz. E, aos poucos, vislumbrou outro mundo com natureza, cores, “imagens” diferentes do que estava acostumado a “ver”. Voltou para a caverna para narrar o fato aos seus amigos, mas eles não acreditaram nele e revoltados com a “mentira” o mataram. Com essa alegoria, Platão divide o mundo em duas realidades: a sensível, que se percebe pelos sentidos, e a inteligível (o mundo das ideias). O primeiro é o mundo da imperfeição e o segundo encontraria toda a verdade possível para o homem. Assim o ser humano deveria procurar o mundo da verdade para que consiga atingir

o bem maior para sua vida. Em nossos dias, muitas são as cavernas em que nos envolvemos e pensamos ser a realidade absoluta. Quando aplicada em sala de aula, tal alegoria resulta em boas reflexões. A tendência é a elaboração de reflexões aplicadas a diversas situações do cotidiano, em que o mundo sensível (a caverna) é comparado às situações como o uso de drogas, manipulação dos meios de comunicação e do sistema capitalista, desrespeito aos direitos humanos, à política, etc. Ao materializar e contextualizar o entendimento desse mito é possível debater sobre o resgate de valores como família, amizade, direitos humanos, solidariedade e honestidade, que podem aparecer como reflexões do mundo ideal. É perfeitamente possível relacionar a filosofia platônica, sobretudo o mito da caverna, com nossa realidade atual. A partir desta leitura, é possível fazer uma reflexão extremamente proveitosa e resgatar valores de extrema importância para a Filosofia. Além disso, ajuda na formulação do senso crítico e é um ótimo exercício de interpretação de texto. A relevância e atualidade do mito não surpreende: muitas informações denunciam a alienação humana, criam realidades paralelas e alheias. Mas até quando alguns escolherão o fundo da caverna? Será que é uma pré-disposição ao engano ou puro comodismo? O Mito da Caverna é um convite permanente à reflexão.

*Pablo Fabiano B. Carneiro é professor de Filosofia e História Geral e do Brasil para Ensino Médio. Coautor do livro “Coisas da Filosofia e Fatos Sociais”, Editora Allprint

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