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EDiToRiAl

Dúvida como D

parâmetro

esde que o mundo é mundo, o questionamento da existência de Deus e da religião, chamado de ceticismo, foi algo presente e, mais ainda, inevitável. Entre os filósofos, a prática é mais comum do que se imagina. Porém, o mais fervoroso defensor desse pensamento foi David Hume (1711-1776), o mais influente pensador iluminista, sendo, inclusive, um radicalista que teve como base o impirismo. Nesta edição, a Conhecimento Prático – Filosofia traz uma matéria de capa com um perfil desse pensador, a maneira como ele colocou em xeque conceitos como a própria existência, os problemas que teve de enfrentar por difundir tais opiniões justamente em um período pós-inquisição e sua obra baseada no inconformismo religioso. A matéria traz, ainda, os outros ateus da Filosofia. Confira também o debate sobre a verdade, que tem uma dupla forma de abordagem no

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universo filosófico, iniciada a partir da convivência das culturas helênica e judaico-cristã; o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. explica. A Filosofia Clínica abordada em uma entrevista com o filósofo Lúcio Packter, que fala sobre a proposta de utilização terapêutica dessa linha da Filosofia; a verdadeira “existência do ser” buscada pela união do teatro e da Filosofia; o eterno retorno, conceito de Nietzsche, que não tinha nenhum compromisso com a coerência; e o autoconhecimento difundido por Sócrates são outros assuntos abordados nas próximas páginas. Não deixe de ver também a trajetória do líder pacifista Bertrand Russell, cuja morte completa 40 anos – a data coincide com o centenário da publicação de Principia Mathematica, um de seus principais livros. Boa leitura! Os editores

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CARTAS

www.fullcase.com.br | (11) 5081 6965 filosofia@fullcase.com.br Editores: Edgar Melo – MTB 47.499 Karina Alméri – MTB 45.403 Editora assistente: Sheyla Pereira Diretor de arte: Angel Fragallo Coord. de arte: Samuel Moreno Revisão: Cristiane Garcia e Ana Paula Castilho Fotos: Divulgação Diagramação: Cleber Gazana, Rodrigo R. Matias e Luciana Toledo Colaboradores: Daniel Pansarelli, Francikely Cunha Bandeira, Matheus Moura, Gustavo Henrique Ferreira, Jaya Hari Das, João Ibaixe Jr., Paulo Roberto Monteiro de Araujo, Paulo Ghiraldelli Jr., Paulo Henrique Fernandes Silveira, Sergio Amaral Silva, Suze Piza

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As matérias, os artigos e as colunas aqui publicadas são de responsabilidade de seus respectivos autores; suas opiniões não refletem necessariamente as da editora e seus editores.

@ Entre em contato com a gente. Envie suas críticas e sugestões para filosofia@fullcase.com.br

[ INICIATIVA ] uito interessante a matéria de capa da última edição da revista sobre as mulheres filósofas da humanidade. Acho esse tema pouco abordado nas revistas e livros do segmento. Gosto da publicação exatamente pela iniciativa de produzir matérias com foco diferenciado, difíceis de encontrar por aí, a exemplo do texto que fala sobre a linguagem dos direitos humanos sob a óptica da Filosofia, encontrado na mesma edição, que requer uma reflexão das atitudes do ser humano.

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[ CAMINHO CERTO ] iquei surpreso quando comecei a ler a capa da edição 23 da revista cujo tema central é Ódio em nome de Deus – Intolerância religiosa e o obscurantismo na visão de John Locke, Voltaire, Bertrand Russell e Karl Popper. Fiquei mais surpreso ainda quando vi gibis para crianças e livros para adolescentes na área da Filosofia e Psicologia. Todos vocês estão de parabéns. Com temas para os jovens, estão atacando a raiz de nosso maior problema, fazer as crianças e adolescentes pensarem desde cedo. Estão no caminho certo.

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Jorge F. Neto – São Paulo – SP

Marcos Guerreiro – professor de Filosofia Balneário Camboriú – SC

[ EMBASAMENTO ] arabéns pelo ensaio publicado na editoria Análise da edição 24 da Conhecimento Prático - Filosofia, que retrata a opinião dos filósofos em relação à liberdade de expressão desde os primórdios. Esse é um tema que rende ótimas discussões, ainda mais sob a visão embasada do professor J. Vasconcelos. É lamentável como o conceito de democracia sempre foi deturpado.

[ BIOGRAFIAS ] s textos da última edição da revista que falam sobre Jean-Paul Sartre e Adam Smith chamam a atenção pela didática utilizada para retratar a biografia desses mestres da Filosofia. Gostaria de sugerir, para as próximas edições, matérias nos mesmos moldes com nomes como Immanuel Kant, David Hume, Diderot e Ludwig Feuerbach. São trajetórias que merecem destaque.

Simone J. Figueiredo – por e-mail

Matheus R. de Abreu – por e-mail

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DIREÇÃO COMERCIAL Fabyana Desidério CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR BRASIL: (11) 3855-2175 atendimento@escalaeducacional.com.br ASSESSORIA DE IMPRENSA Iara Filardi Tel.: (11) 3855-2201 (ramal 392) iara.filardi@escalaeducacional.com.br Av. Profª Ida Kolb, 551 – Casa Verde CEP 02518-000 – São Paulo/SP Tel.: (11) 3855-2201 Fax: (11) 3855-2189 Edição nº 24, ISSN 977-1808-8961-17 Distribuição com exclusividade para todo o Brasil, Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva, 907 – (21) 3879-7766. Números anteriores podem ser solicitados ao seu jornaleiro ou na Central de Atendimento ao Leitor (11) 3855-2175 ou pelo site www.escalaeducacional.com.br ao preço do último número, acrescido dos custos de postagem. Disk Banca: Sr. jornaleiro, a distribuidora Fernando Chinaglia atenderá os pedidos de números anteriores enquanto houver estoque. IMPRESSÃO Oceano Ind. Gráfica (11) 4446-7000

FILOSOFIA

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Queremos ouvir sua opinião. Mande sua mensagem com críticas, comentários e sugestões sobre a revista. Por questão de espaço e clareza, reservamo-nos o direito de publicar resumos das cartas enviadas.

Nós temos uma ótima impressão do futuro

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Capa Conheça o pensamento do iluminista David Hume e seu radicalismo cético com base no empirismo

Análise Anterior à Filosofia, o debate sobre a verdade apenas se consagrou a partir da convivência entre a cultura helênica e a judaico-cristã

08 Entrevista |O filósofo Lúcio Packter explica o conceito da Filosofia Clínica, também utilizada como uma forma de terapia 12 Almanaque |Novidades e curiosidades 14 Ideias |A busca pelo autoconhecimento, tal qual vemos hoje em dia, começou há muito tempo com Sócrates

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Ponto de Vista Todo o questionamento sobre a religião e os momentos em que ela deixou de promover a elevação ética

32 Ensaio |O 40º aniversário da morte de Bertrand Russell, um dos mais influentes pensadores do século 20 44 Outro Enfoque |O que o teatro e a Filosofia têm em comum? Entenda em artigo que fala sobre a relação de ambos 54 Grosso Modo |Entenda como a “imitação pela imitação” pode nos afastar da experiência do real

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Em Debate A inconstância que marcou a obra de Friedrich Nietzsche, filósofo que não tinha compromisso com a coerência racional

62 Filosofoteca | Livros e filmes 66 Retratos | Francikely Cunha Bandeira

! Esta edição segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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ENTREVisTA

Conversação de paz Criador da Filosofia Clínica, filósofo Lúcio Packter, fala sobre a proposta de utilização terapêutica da Filosofia. POR MARCELO GALLI*

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riada no final dos anos 1980 pelo médico e filósofo gaúcho Lúcio Packter, entrevistado desta edição da revista, a Filosofia Clínica tem como premissa que cada pessoa funciona de um modo único. Dessa maneira, o filósofo clínico buscará durante as conversas com os pacientes as características do seu funcionamento existencial para trabalhar questões que estão tirando o seu sossego. Trocando em miúdos, é uma proposta de utilização terapêutica da Filosofia. Essa vertente da Filosofia é parecida com a Philosophische Praxi, criada pelo alemão Gerd Achenbach, em 1981, a partir da concepção epicurista de Filosofia como "terapia da alma". Na opinião de Packter, porém, ecos

da Filosofia Clínica são encontrados desde os pré-socráticos. “Cada vez que os filósofos consideraram os desdobramentos da alma humana, das aventuras do pensamento e da existência, ali houve um pouco de Filosofia Clínica”, avalia. Usando o instrumental das Neurociências, Psiquiatria, Psicologia, Medicina, além daquele oferecido pela própria disciplina em que está inscrita, a Filosofia Clínica parte de diversos elementos como a historicidade e o contexto, tendo em vista que as pessoas têm um mundo como representação, ou seja, a ser pesquisado. “O filósofo buscará as características da pessoa em seu funcionamento existencial para trabalhar questões que dizem respeito a ela. Isso nada tem a ver com cura”, esclarece.

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Conhecimento Prático - Filosofia – Basicamente, como funciona a prática da Filosofia Clínica? Lúcio Packter (LP) – Após a consideração minuciosa da historicidade da pessoa, realizada com ferramentas da lógica, da analítica de linguagem, da epistemologia, entre outras, o filósofo pesquisará a organização dos elementos que existem nesta pessoa e que estão disponíveis, conforme o modelo da mente que a pessoa possui. Então, estará diante de algumas possibilidades de encaminhamento quanto a assuntos pertinentes à pessoa.

Epicuro e os epicuristas Nascido em 341 a. C. na Ilha de Samos, Epicuro é um filósofo grego, cujos ensinamentos propunham o prazer como o único objetivo válido da vida, e que aquele era nada mais nada menos do que um estado de espírito. Educado na célebre academia de Atenas, Epicuro fundou sua própria escola por volta do ano 306 a. C. e ganhou muitos seguidores. Os epicuristas preferiam a liberdade às inquietações e evitavam o estresse decorrente do compromisso político, da vida pública ou de qualquer envolvimento emocional profundo.

CP – Filosofia – Seria uma maneira de retomar o que praticavam os epicuristas? LP – Também a eles. Encontramos ecos da Filosofia Clínica desde os pré-socráticos. Cada vez que os filósofos consideraram os desdobramentos da alma humana, das aventuras do pensamento e da existência, ali houve um pouco de Filosofia Clínica.

Na Universidade Moura Lacerda, em Ribeirão Preto, o diálogo envolve médicos, pedagogos, filósofos. Em hospitais pelo país, o diálogo acontece nas questões éticas. Há inúmeros exemplos. Um deles ocorre via Café Filosófico, um evento que se espalha por livrarias em capitais pelo país, um fórum privilegiado de diálogo com a comunidade em geral.

CP – Filosofia – A disciplina ainda é vista com reticência pelo meio acadêmico de Filosofia brasileiro? LP – Há um diálogo cada vez mais consistente e mais profundo com a academia. Isso era de se esperar e é uma prática filosófica. O debate acadêmico em torno de um tema, seja ele a Filosofia Clínica ou outra questão, traz como componentes a dúvida, a confutação, a elaboração, os argumentos, a dialética, a reticência. Estes movimentos são parte constitutiva dos trabalhos. Estamos revendo, aprimorando, desenvolvendo os caminhos. Em alguns momentos, há mais dúvidas e menos convicções, afinal, Filosofia Clínica é Filosofia antes.

CP – Filosofia – Além da psicanálise, quais são as outras áreas do saber com que a Filosofia Clínica dialoga? LP – Existe um leque que se desdobra em vários. Filosofia da Mente, Neurociências, Psiquiatria, Psicologia, Medicina. A Filosofia Clínica se esparrama em campos aparentemente distantes como a Arquitetura, a Odontologia, a Religiosidade. Dadas as dimensões de seus conteúdos, e a Filosofia Clínica possui um acervo teórico e uma prática vastíssimos, a cada dia novas áreas entram nesse diálogo.

CP – Filosofia – Você poderia citar alguns exemplos desse diálogo? LP – Na Faculdade Católica de Anápolis, onde coordeno a pós-graduação em Filosofia Clínica, existe uma conversação entre a religiosidade e os aspectos práticos ligados ao consultório.

CP – Filosofia – Da Arquitetura? Da Odontologia? Explique um pouco mais essas interações, por favor. LP – Na Arquitetura, os projetos recebem maior profundidade e adequação quando são realizados levando em conta aspectos dinâmicos da estrutura do pensamento da pessoa. Assim, os espaços, a ordem dos ambientes, a estética, o funcionamento entre as partes podem consiFilosoFIA | Conhecimento Prático | 9

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derar o modo de ser da pessoa que estará nesse ambiente projetado. Na Odontologia, desde o diagnóstico até a maneira como o tratamento será realizado, os procedimentos acontecerão conforme a perspectiva do que foi apurado na historicidade da pessoa, no modo de a pessoa ser e estar no mundo. CP – Filosofia – Qual é a sua resposta para quem critica a Filosofia Clínica como sendo uma forma de psicanálise? LP – A colocação mais adequada é provavelmente anterior: a psicanálise é uma forma de Filosofia. Estudiosos que se deparam com os aspectos essenciais da Filosofia Clínica logo compreendem as diferenças entre estas duas atividades: ausência de tipologias, de critérios de normalidade e patologia, ausência de inconsciente, mecanismos teóricos e práticos. Neste momento, existe em andamento conversações entre filósofos clínicos e psicanalistas, em diversos níveis: conceituais, referenciais, históricos, hermenêuticos. Estamos aprendendo uns com os outros. CP – Filosofia – Você poderia destacar um exemplo específico de troca entre filósofos clínicos e psicanalistas? LP – Um exemplo diz respeito à existência ou não do inconsciente. Para a Filosofia Clínica, o inconsciente é uma invenção, não uma descoberta. Na psicanálise, o inconsciente é um fato, uma descoberta. Eis um material rico para trocas, conversações, discussões. Assim como a noção do Ser, em Filosofia, hoje se tornou um aspecto metafísico mais ligado à poesia e menos entendido por uma concretuPré-socráticos São filósofos anteriores a Sócrates, e que são importantes para a história da Filosofia. A seguir, alguns dos principais filósofos pré-socráticos e suas respectivas escolas: Escola Jônica: Tales de Mileto e Heráclito de Éfeso; Escola Itálica: Pitágoras de Samos e Filolau de Crotona; Escola Eleata: Xenófanes e Parmênides de Eleia. São célebres os axiomas de Heráclito ("todas as coisas fluem") e de Tales de Mileto ("a Água é o princípio de todas as coisas").

de, uma realidade em si, o inconsciente provavelmente será tido em um futuro próximo como um dado importante de referência, uma construção metodológica, uma ferramenta. Concretamente, o inconsciente não existe. CP – Filosofia – A literatura da Filosofia Clínica já tem casos emblemáticos que foram tratados pelos seus adeptos, e que serviram de modelo para consultas futuras ou até para exemplificar como se dá o tratamento pela corrente filosófica? LP – Sim, muitos. Um exemplo ilustrei em minha obra Ana e o Dr. Finkelstein (Editora Wak). Colegas como Hélios Strassburger e Monica Aiub ilustram em suas obras inúmeros casos clínicos. CP – Filosofia – O que aconteceu basicamente com a Ana e como foi o seu tratamento? LP – Há muitos anos atendi uma garota, a Ana, após um grave episódio, uma tentativa de suicídio. O tratamento dela seguiu naturalmente o que um filósofo clínico faz em um consultório: estudo da historicidade, considerações sobre a estrutura do pensamento, aplicação de procedimentos clínicos a partir do modo de funcionamento dela. No entanto, houve complicações por conta da situação. Entre os israelitas, ela é judia, o suicídio carrega pesados princípios éticos, existenciais. Mais tarde, após diversos cuidados de adaptação, esse atendimento se transformou em livro. CP – Filosofia – Você já chegou a classificar as principais queixas dos partilhantes? Por qual motivo e o que mais buscam as pessoas que procuram a Filosofia Clínica? LP – Questões existenciais levam algumas pessoas a procurarem por um filósofo na clínica. Estas questões são variadas, abrangem aspectos familiares, afetivos, de buscas, de final de vida, de questões sobre o funcionamento das relações humanas, de uso de drogas. Não há como colocar tais questões em um molde neste momento. CP – Filosofia – Refutar qualquer tipo de padrão a priori parece ser o principal ativo da Filosofia Clínica, não?

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LP – A Filosofia Clínica parte de diversos elementos como a historicidade, o contexto, o estudo da estruturação da pessoa, suas relações, seus endereços existenciais. Nesse sentido, há um forte elemento a priori: a pessoa nos traz um mundo como representação, traz algo a ser pesquisado. CP – Filosofia – Diz o ditado popular que "o silêncio vale ouro, a palavra vale prata". Qual é o papel do silêncio na Filosofia Clínica? LP – O que o silêncio quer dizer, como ele se instaura, qual sua função, de que modo interage com outros elementos, quais seus vínculos remotos e quais os mais próximos, o caminho de seus desdobramentos são alguns itens que precisamos verificar para eu poder lhe dizer qual o papel do silêncio na Filosofia Clínica. Isso porque o silêncio pode ser o modo pelo qual a pessoa fala, o silêncio pode ser o vazio, pode ser o conteúdo, pode ser instrumento de conexão, pode ser outras milhares de coisas. CP – Filosofia – Portanto, o silêncio, para os filósofos clínicos, é relativo? LP – Subjetivo. Vamos pesquisar o que o silêncio é para a pessoa que está conosco. O que uma pessoa vivencia tem muito pouco a ver com relativismo em muitos casos. Se uma pessoa chora, se está magoada, atingida fortemente por uma questão pessoal, isso é assim nela, independente de algum relativismo. O elemento subjetivo é então anterior. CP – Filosofia – Não seria um exagero o que propõe a Filosofia Clínica, isto é, "a cura pela Filosofia"? LP – Questão importante: na Filosofia Clínica, não existe o conceito de doença; como poderia então existir o conceito de cura? A Filosofia Clínica não propõe tal coisa. Cada pessoa funciona de um modo único. O filósofo buscará as características da pessoa em seu funcionamento existencial para trabalhar questões que dizem respeito a ela. Isso nada tem a ver com cura. CP – Filosofia – Qualquer pessoa pode se tornar um filósofo clínico? Como se dá a formação?

LP – Para se tornar um filósofo clínico, a pessoa deve ser graduada em Filosofia. Depois ela passará por um curso teórico de 18 meses. Será atendida durante o curso em uma clínica didática pelo professor titular. Conforme o desenvolvimento do aluno, poderá iniciar atendimentos supervisionados. Uma comissão dará um parecer final sobre os trabalhos do aluno. Nos centros de formação, os alunos estudam teoria e prática. CP – Filosofia – Se as pessoas tivessem verdadeiros amigos, para bater papo, falar as angústias, precisaria existir a Filosofia Clínica? Já que, como diz Aristóteles na Ética a Nicômaco, "com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e de agir". LP – Verdadeiros amigos podem ser essenciais em muitos casos e podem fazer com que determinadas questões se resolvam. Mas há muitas questões intrincadas que podem exigir a presença de um profissional. Nem sempre separar e compreender cada caso será algo fácil de ser feito.

*Marcelo Galli é jornalista e escreve para esta publicação

Ética a Nicômaco e Aristóteles Seguidor e crítico de Platão, Aristóteles tem importância capital para a Filosofia e é considerado o pioneiro de certos campos de pesquisa contemporâneos da disciplina. O filósofo grego foi tutor de Alexandre, o Grande. A citada obra é sua principal sobre ética, um verdadeiro manual para refletir sobre as atitudes cotidianas; Nicômacos era o filho de Aristóteles. "Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem", diz o texto.

O mundo como representação De acordo com a Filosofia Clínica, apoiada em filósofos como Protágoras ("O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são") e Arthur Schopenhauer ("o mundo é uma representação minha"), tudo o que uma pessoa sente, vive, afirma, imagina, faz – isso é assim para ele – independente de ser compartilhado ou não com outras pessoas.

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ALMANAQUE

FRASES “O prazer é nocivo, quando em excesso, mas a virtude está fora do perigo de ser excessiva, porque contém em si mesma a sua medida adequada.”

“Perceber dificuldades pode ser uma habilidade, mas descobrir maneira de evitá-las revela uma habilidade ainda maior.” BALTASAR GRACIÁN – A Arte da Prudência

SÊNECA – A Vida Feliz

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O QUE É

FILOSOFIA PERENE

Filosofia Perene teve sua base teórica formalizada por meio da metafísica de Frithjof Schuon (1907-1998) e René Guénon (1886-1951). Nesta, é tida como Filosofia Perene a Verdade metafísica baseada na unidade, universalidade e perenidade dos conceitos-chave das diferentes religiões espalhadas pelo mundo. Muitas vezes, a expressão Filosofia Perene é usada como sinônimo de Sanatana Dharma, termo sânscrito para “Verdade perene ou eterna”. Um dos princípios da Escola Perenialista é o da “unidade transcendente das religiões” – título do primeiro livro de Frithjof Schuon publicado no Brasil. No livro, o autor afirma que, no seio de cada religião, há um cerne de verdade (seja sobre Deus, o homem, a oração, ou mesmo a moralidade) que é similar ou até idêntico. Assim como na religião, a Filosofia Perene reconhece os sistemas de Pitágoras, Platão e Aristóteles como parte das verdades que estão no cristianismo.

.NET

CONSCIÊNCIA.ORG FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

No ar desde 1997, o site Consciência – Filosofia e Ciências Humanas tem como proposta publicar artigos, resenhas, trabalhos acadêmicos, ensaios, biografias e apresentação de filósofos e pensadores das mais diversas eras até a contemporaneidade. O site possui uma estrutura simples e agradável, além disso, abre espaço para discussões de temas humanos no Fórum de Debates e conta com a seção Testes de Filosofia, para aqueles que desejam pôr à prova seus conhecimentos. http://www.consciencia.org

PARA DEGUSTAR 5 livros sobre Filosofia da Educação, ou para pensar educação filosoficamente. Dos filósofos clássicos aos iluministas e contemporâneos, há preocupação em teorizar a respeito dos processos de aprendizado e ensino. Abaixo, uma lista de cinco livros que abordam o tema tendo, como foco, a prática docente. O Corpo – Filosofia e Educação

do filósofo brasileiro Paulo Ghiraldelli Jr. (Ática, 2007) Filosofia da Educação

da filósofa Maria Lúcia de Arruda Aranha (Moderna, 2006) Escritos sobre Educação

do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) (PUC-Rio, 2010) Emílio, ou da Educação

do filósofo e pedagogo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) (Martins Editora, 2004) Sobre a Pedagogia

do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) (Unimep, 2006)

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POR MATHEUS MOURA*

POR DENTRO

PALAVRAS E TERMOS "F. JULLIEN GENÈVE", MAYBE FRANK-HENRI JULLIEN (1882–1938)

LANÇAMENTO L’IDÉE DU COMMUNISME

Em maio deste ano, foi lançada na França a obra L’idée du Communisme (Lignes, 2010), ainda inédita em português, organizada pelos filósofos Slavoj Žižek e Alain Baudiou. No decorrer de seus dezesseis capítulos, o livro trata sobre conferências realizadas em Londres durante o ano de 2009, com a pretensão de contextualizar os problemas e as aporias percebidas, por exemplo, a partir das derrotas de uma “velha esquerda” na década de 1990. Além disso, são abordados os eventos que abrem o século 21, como os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque, de 2001 e 2003, não se esquecendo dos transtornos financeiros que marcaram a década de 2000.

Ó HISTORIA

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CURIOSIDADES SOBRE MARTIN HEIDEGGER (1889–1976)

Inicialmente, teve propensão a padre e chegou a estudar em seminário. Só mais tarde ingressou na Universidade de Freiburg, tornando-se professor da instituição em 1928.

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Heidegger, durante os anos de faculdade, teve como colega Edmund Husserl, o fundador da fenomenologia. A Gramática Especulativa, usada por Heidegger para escrever A Doutrina das Categorias e do Significado em Duns Escoto, de 1916, na verdade não era de Duns Escoto – fato descoberto mais tarde pelo pensador.

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Em 1927, Heidegger escreveu Ser e Tempo, dedicando-o ao seu professor Edmund Gustav Albrecht Husserl, porém, Husserl não aprovou o texto, rompendo relações com Heidegger. Em 1º de maio de 1933, Heidegger inscreveu-se no partido Nazi (NSDAP). Ao pronunciar o discurso A Autoafirmação da Universidade Alemã, foi nomeado reitor da Universidade de Freiburg. Demitiu-se do cargo por ser contrário à perseguição aos judeus.

SEMIÓTICA

Possui raiz etimológica do grego em duas palavras: semeion, que seria signo e semeiotiké ou "a arte dos sinais". A semiótica é uma ciência estudada já na idade clássica da Filosofia, mas formalizada apenas no início do século 20 pelas pesquisas de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce. O primeiro foca na representação sígnica dividida em duas partes: significante e significado, ambas restritas à representação simbólica textual. Já Peirce extrapola o conceito, levantando um conjunto representado por três pontos principais: objeto, sujeito e sinal, ou seja, aquilo que é, a quem se destina e o que é comunicado. A partir dessa premissa, ele esquematiza maneiras de estudar a significação de tudo que esteja à volta do indivíduo, montando uma cadeia complexa de inter-relações. O maior diferencial entre a semiótica e a semiologia de Saussure é poder estudar os fenômenos sígnicos de qualquer sistema de representação: artes visuais, música, fotografia, cinema, culinária, vestuário, gestos, religião, ciência, etc. * Matheus Moura é jornalista e escreve para esta publicação FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 13

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ideiAs

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ócrates: o primeiro terapeuta

A atividade filosófica do pensador tinha como objetivo o cuidado com a alma e a busca pelo autoconhecimento. Por João Ibaixe Jr.*

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partir do século 5, em razão de situações de mudanças sociopolíticas ocorridas na Grécia, incluindo-se as Guerras Médicas (dos gregos contra os persas) e do Peloponeso (de Esparta contra Atenas), o foco da Filosofia acabou por voltar-se a Atenas, cujo formato das dimensões política, financeira, educacional e social encontrava-se melhor estruturado. Foi o período alto da chamada democracia ateniense, que tinha à frente a figura de Péricles e a herança de idealismo dos textos legais deixados principalmente por Sólon. No ideário que se construía e, ao mesmo tempo, renovava-se, fez-se presente o valor da educação, considerada como formação cívica, ou seja, como meio de edificação do homem inserido no ambiente da cidade. Todas estas turbulências no seio urbano, que geraram fatos sociais novos, acompanhados de

outros anseios, desejos e perspectivas individuais, alteraram o comportamento da vida ativa dos cidadãos e, via de consequência, modificaram a própria atividade contemplativa em seu modo de ser. Com efeito, além do deslocamento geográfico, nasceu um novo foco nas investigações, havendo maior preocupação com temas e assuntos voltados para o homem. Ocorreu inflexão da pergunta filosófica, antes ocupada da physis e agora dirigida para o universo humano. Passou-se, assim, da pesquisa da natureza para a da política, e esta fez-se acompanhar de maior interesse na indagação sobre o indivíduo e sua relação com a comunidade que o cerca e na qual ele está inserido. Concentraram-se os olhares para as dimensões do viver prático, do cotidiano, das relações ocorridas dia a dia pelas quais o cidadão sofre e produz efeitos no espaço urbano que ocupa. O ponto central era o questionamento sobre a política FilosoFIA | Conhecimento Prático | 15

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po depois da morte de Sócrates, ocorrida em 399 a.C., seus acusadores foram punidos pela falsidade de suas acusações e foi erguida em homenagem ao filósofo uma estátua nas proximidades do centro de Atenas, passando ele a ser considerado um de seus filhos mais profícuos e valorosos. Sócrates viveu e morreu conforme e por causa de suas aspirações, suas convicções, suas concepções, enfim, seus ideais.

a Ágora Fórum público ateniense, onde se reuniam os cidadãos para realizar seus negócios e outras atividades. Era um espaço onde havia muitas feiras livres, mercados e, principalmente, prédios públicos. Símbolo da democracia, o local era celeiro de discussões políticas e de cidadania.

a Sofistas A expressão “sofista” hoje apresenta características pejorativas, pois qualifica como significado principal o autor de sofismas, o qual realiza, normalmente por má-fé, raciocínios com premissas verdadeiras, mas chega a conclusões falsas, por distorções das regras lógicas, ao preservar apenas aspectos formais da argumentação e guardar aparência de perfeição.

a Protágoras Importante sofista da Grécia, cuja frase “o homem é a medida de todas as coisas” tomou fama atemporal, sendo objeto de numerosas e inesgotáveis interpretações, possibilitando do mais amplo relativismo ao mais profundo subjetivismo, que perdura até os dias atuais.

e a ética, tendo por eixo a eudaimonia (felicidade), dimensões básicas da filosofia prática. É nesse período que se dá a existência de Sócrates, cujo nascimento ocorreu provavelmente no ano de 469 a.C. Filho de um escultor chamado Sofronisco e de uma parteira, Fenarete, teve vida moderada, embora tivesse alguns recursos, e jamais saiu de Atenas, salvo em viagens de campanhas militares, nas quais reconhecidamente lutou com bravura e denodo em defesa de seus companheiros e de sua cidade. Teve filhos e foi casado, ao que parece, em segundas núpcias com Xantipa, considerada mulher bastante geniosa, o que, segundo dito pelo próprio Sócrates, teria colaborado muito na construção de sua postura filosófica. Também, ao que parece, cuidava muito de sua saúde e do corpo, por meio de atividades físicas comuns à época, dando valor especial à dança, apesar de ser fisionomicamente muito feio, sendo até mesmo ironizado por isto, fato ao qual ele não dava qualquer relevância. Discípulo de Arquelau (que, por sua vez, o era de Anaximandro), nunca escreveu nada, ao que consta, de textos filosóficos e seus ensinamentos eram transmitidos oralmente aos seus discípulos e outros cidadãos com os quais conversava em praça pública ou na Ágora a. Durante toda sua existência, sempre foi bem considerado, a não ser no fim da vida, quando foi acusado de corrupção da juventude e condenado à morte por isso. Pouco tem-

A questão das fontes Bastante divulgado é o fato de Sócrates nada ter escrito e terem seus ensinamentos sido transmitidos pela “oralidade dialética”, como acima mencionado. Seus pensamentos são divulgados por testemunhos, os quais, quando se analisam as fontes, muitas vezes são discordantes e até mesmo opostos. Todavia, um ponto é fundamental e os estudos modernos demonstram isto: a pesquisa socrática não trata de estabelecer fontes confiáveis ou combinações ecléticas, mas sim de examinar o critério que pode ser definido como “a perspectiva do antes e do depois de Sócrates”. Com efeito, nota-se à evidência que a literatura filosófica modificou-se, registrando uma série de novidades de alcance bastante considerável, as quais permaneceram no espírito grego posterior de forma indelével como irreversíveis e de constante referência. Tais novidades – e isto é pacífico e explícito – foram todas elas trazidas ao ambiente filosófico pelo modelo socrático de pesquisa. Sócrates foi o autor inegável de outro modo de apresentação, enfoque e destinação das perguntas sobre o pensar e o conhecer, alterando para sempre a cultura e a postura dos pensadores subsequentes. Sendo um homem de seu tempo, Sócrates acompanhou o questionamento sobre o homem e deu a ele tonalidades permanentes quanto à forma e método de indagação, porque alcançou o fundo do problema que é, para o filósofo, encontrar o ser do indivíduo em todas suas dimensões; nisto superando os então chamados sofistas, contemporâneos dele e também preocupados com a questão humana, mas atentos a outros aspectos como se verá a seguir.

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O pensamento de Sócrates é passível de reconstrução por sua conjuntura e, por essa perspectiva, pode-se verificar o peso decisivo do filósofo na elaboração e desenvolvimento da tradição grega posterior. Os Sofistas Não se pode falar de Sócrates sem antes se referir a um grupo de pensadores, contemporâneos dele, que ficou conhecido como sofistas a. Na Antiguidade, o conteúdo semântico era totalmente outro. O sentido original do termo traduzia o significado de “sábio”, “especialista em saber”, “possuidor de saber”, portanto, bem ao contrário de hoje, era algo absolutamente positivo. Fulcro de toda a questão é o fato de os sofistas pretenderem saber e ensinar tudo e certamente qualquer coisa, sob qualquer ângulo, seja como tese ou antítese. Para o sofista, a verdade é tudo aquilo que é falado, porque o falado é pensado e, logo, é ser. Pensar é a síntese de toda atividade humana e, como não importa mais a physis, mas a eudaimonia e esta é referente ao homem, o pensamento falado é o ápice da felicidade, a qual, por sua vez, realiza-se na comunidade e, portanto, desenvolve e fortalece a democracia. Falar livremente todo o pensado é o gesto político mais importante, porque configura a mais alta expressão da sabedoria, desde que o falar siga as regras do discurso retoricamente perfeito, justamente a matéria que os sofistas melhor dominavam. A sofística move-se num âmbito meramente retórico, mas eficaz, porque importava apenas o “dizer bem” (eu leguéin), ação puramente humana, assim, “o homem é a medida de todas as coisas”, como disse Protágoras a. Os sofistas não eram considerados por Sócrates como filósofos, porque destes só tinham a aparência e não o

conteúdo real. Aparentavam os sofistas ser o que jamais foram nem nunca seriam, porque não eram movidos pelo exclusivo ideal do filósofo: o amor incondicional à sabedoria, sem a certeza de algum dia alcançá-la. Sócrates era o inimigo número um dos sofistas e foram estes os arquitetos de sua acusação e morte, porque não puderam suportar a essência da humildade socrática, a efetiva e única via da verdade real: saber-se que nada se sabe. Ao ter ciência de que nada sabia, Sócrates acabava por saber mais que os sofistas, pois trabalhava pelo amor consciente e racional, porém, ao mesmo tempo, apaixonado e sentimental, na constante e eterna busca da sabedoria, atividade que era trabalhosa e remunerada, não por pecúnia, mas pelo prazer recôndito de, a cada passo, aproximar-se mais e mais do conhecimento de si mesmo. A doutrina socrática A primeira contribuição de Sócrates é, como acima mencionado, o deslocamento da problemática filosófica da pesquisa da natureza para a investigação sobre o homem. Contudo, sua preocupação é muito mais acurada, pois envolve a compreensão da interioridade, elemento novo como pergunta filosófica e também novo como percurso das investigações. O ponto de partida é a inscrição no Templo de Delfos, cuja mensagem “conhece-te a ti mesmo” (gnothi seauton) fornece o eixo do pensamento socrático. Em visita ao local, Sócrates ouviu do oráculo a informação de que ele era o homem mais sábio da Grécia, à qual retrucou o pensador ser aquele que nada sabia, tendo apenas convicção de sua ignorância. A partir daí, passa a questionar todos os seus concidadãos e contemporâneos que com ele cruzam sobre

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*João Ibaixe Jr. é professor, escritor, advogado e colunista da revista eletrônica Última Instância. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito, Análise, Informação e Sistemas da área de Filosofia do Direito do programa de pós-graduação da PUC-SP/CNPq, preside o Instituto Cultural Antonio Ibaixe e edita os blogs Palavras Transgredidas e Por Dentro da Lei – um espaço para construção da consciência de cidadania

as coisas que ele ignora. Com este modelo de perguntas e respostas, o que vem à tona é o fato de ninguém efetivamente nada saber, porém, todos desconhecem a respectiva ignorância, que não é sobre o tema específico, mas sim sobre a consciência de não saber. Ninguém a tem, logo, Sócrates, por possuí-la, é o homem mais sábio do mundo. Nunca, todavia, Sócrates se arvorou na condição de sábio. Ao contrário, sempre conservou a humildade ao seu lado abraçada à ciência sobre a limitação da condição humana. O método socrático era o da indagação, à qual, aproveitando a resposta oferecida, seguia-se nova pergunta, até chegar-se a um ponto definitivo que era aceito por ter sido totalmente trabalhado ou refutado por ser inaceitavelmente absurdo. Denominava-se “maiêutica”, significando a arte da parteira (maieutikhé tekhné), ou seja, uma metáfora para a técnica ou arte de fazer dar à luz os conhecimentos que nasciam na mente dos que com ele dialogavam. Isto exigia um percurso indutivo, a partir de casos concretos e individuais, até se alcançar uma definição universal, que abrangesse todos os casos análogos. Na questão do método, também Sócrates se impõe contra os sofistas, pois não faz uso da retórica como arte argumentativa, vale dizer, de um discurso construído para convencer, mas antes parte de um diálogo, oposição de ideias, dualidade de discursos que, confrontando-se, vão sendo “desenhados”, tomando forma pelo próprio conflito de opostos, como que lapidados para o encontro da verdade, a qual deixa a esfera do discurso e retorna para o ambiente do ser. Ao fim, o discurso dialógico é superado e abandonado, restando apenas a verdade alcançada sobre aquilo que se discutiu, que, sendo o limite possível daquele tema, torna-se sua definição universal (lembre-se de que definir é limitar o universo de uma coisa) e também sua essência (aquilo que a coisa é). Com Sócrates, a Filosofia volta a ocupar-se do ser essencial das coisas, esta preocupação havia sido abandonada pelos sofistas. A dialética socrática retoma a preocupação com o homem no âmbito de sua formação e não de seu convencimento. Há uma

união entre método e objeto de pesquisa, que é o próprio ser humano. O método de Sócrates seria vazio se ele não tivesse, como ponto central de suas investigações, o ser humano. Para dizer melhor, a essência do ser humano, que é sua alma (psykhé). Sócrates é o primeiro pensador a ocupar-se da alma, ou do cuidado da alma (psykhé epimeleias), porque a alma seria a essência do ser humano. Somente com Sócrates é que a reflexão sobre o ser do homem, a alma, toma importância. É por isto que se fala que seu método é de ordem ética e educativa e somente em segundo plano é lógico e gnosiológico. Argumentos bem construídos e a pesquisa sobre a natureza dão lugar a questões sobre como ocorre a formação humana e seu comportamento consigo mesmo e com os demais. Cuidar da alma é conhecer-se a si mesmo e é o máximo conhecimento que o homem pode alcançar. Enquanto cuida da alma, o homem adquire conhecimento e, via de consequência, virtude. A virtude caminha junto do conhecimento. Virtuoso é o homem que busca o conhecimento, porque assim ele descobre sua efetiva natureza, aquilo para qual ele nasceu propriamente. A virtude socrática é a constante busca do conhecimento, assim, a expressão equivalente de virtude em grego, aretés, assume seu significado mais apropriado, que é “constante atualização para o melhor”. A virtude para Sócrates não é algo estático que se tem ou não, mas algo que se constrói e se desenvolve mediante o constante cuidado da alma em conhecer-se a si mesma. Diante disto, pode-se arriscar classificar Sócrates como o primeiro psicoterapeuta, pois sua atividade filosófica visava justamente ao constante cuidado da alma ou à contínua terapia da alma, a psique terapeutiké, a qual, por sua vez, objetivava a felicidade humana a se realizar sempre no espaço político, por meio da incessante busca do conhecimento. Com esta perspectiva, Sócrates modifica todo pensar grego e introduz uma problemática, a investigação da alma humana, que se estenderá até o fim da Antiguidade.

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em deBAte

O conceito que não tinha um compromisso com o que se convencionou chamar de coerência racional e que pregava a honestidade instintiva.

Sentido ético

do eterno retorno em

Nietzsche

POR SUZE PIZA E DANIEL PANSARELLI*

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inconstância talvez possa ser tomada como o mais constante elemento que atravessa a obra filosófica de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros escritos, a presença da figura dionisíaca – ainda que ao lado da outra, apolínea – marca o descompromisso de Nietzsche com a coerência racional, ou, dito de outra forma, seu compromisso com a honestidade humana, esta que ora se manifesta correta e logicamente (Apolo a), ora é puro instinto, contradição, desejo (Dionísio). Lamentavelmente, o desenrolar-se da história do Ocidente teria favorecido a característica racional dos seres humanos, levando-os à constante repressão de seus instintos e desejos. Racionalizado historicamente além do que lhe é natural, estamos hoje, segundo Nietzsche, diante desse homem distorcido, amputado de sua plenitude de ser. Alguns dos escritos iniciais do autor já demonstram sua preocupação com a inconsciente abdicação, pelos homens, de seus desejos instintivos. Se Apolo e Dionísio, como metáforas representativas da constituição do ser, são figuras presentes em O Nascimento da Tragédia, de 1871, as consequências da deformação ocidental deste humano, por meio da valorização do racional em detrimento do instintivo, parecem ser o motivador da busca procedida por Nietzsche em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, de 1873. Nesse breve texto, o autor acusa: a humanidade habituou-se a “mentir em rebanho”, a aceitar como verdadeiras as construções falsas, improváveis ou impossíveis de se comprovar, apenas por serem estas as construções aceitas pelo conjunto da sociedade. A distorção de valores ocasionada pela necessidade de aceitação social, o que leva os tantos e fracos a mentirem em rebanho, tem como desdobramentos dois complicadores à construção de uma ética que possa, efetivamente, ser compreendida como tal. A primeira, e talvez mais superficial dessas complicações, envolve a impossibilidade de se determinar o que poderia, de fato, ser considerado como um agir ético. Em sua argumentação, Nietzsche explica: nada sabemos sobre a “honestidade”, mas tão somente sobre ações isoladas, cada

qual distinta da outra, as quais nós, arbitrariamente e descartando sua individualidade, atribuímos um sentido comum, dando-lhe o nome “honestidade”. Só assim, pela arbitrária imposição de características comuns a ações distintas, chegamos a um conceito, fictício, o qual defendemos infundadamente como ético. Um sujeito encontra uma carteira e devolve-a a seu dono com todo o conteúdo; outro ajuda uma pessoa idosa a atravessar a rua, sem tirar proveito dessa pessoa; dessas duas ações, não participa nenhum elemento que carregue o nome “honestidade”, mas, ainda assim e sem explicações adicionais, chamamos ambas de ações honestas; mais que isso, identificamos a honestidade com a postura ética. Ora, nada há de “honestidade” em nenhuma dessas ações: na primeira, há uma carteira, um dono e a devolução; na segunda, duas pessoas e uma rua a ser atravessada. Nada mais. Qualquer tentativa de aproximar duas ações tão distintas só pode fundar-se na ficção inventada por alguém e irrefletidamente acompanhada pelo conjunto da sociedade, pelo “rebanho humano.” Mas o problema de uma verdadeira ética humana tem suas raízes mais profundamente estabelecidas, chegando à própria constituição deste homem que habita o mundo presente. Após tantos séculos sofrendo e, depois, aceitando as distorções impostas ao seu próprio ethos, ao seu modo de ser no mundo, passadas tantas e tantas gerações em que a racionalidade apolínea imperou, restringiu, coibiu, castrou o desejo e o instinto dionisíacos, o próprio homem parece ter se perdido. Aceitar acriticamente modelos éticos impostos, viver como gado humano, é consequência, não causa. A origem desta aceitação parece estar, segundo Nietzsche, na própria distorção da humanidade do humano. Este ser mais racional que instintivo não representa o pleno desenvolvimento da potencialidade humana ou, para dizer de maneira aristotélica – e, portanto, recriminada por Nietzsche –, este ser tal como descrito representa a atualidade do homem, não sua potência. Mas há, ainda, em alguns, a vontade de potência. O desejo – dionisíaco – de deixar de ser assim, tão humano.

aApolo Filho de Zeus e Leto e irmão gêmeo de Artemis, foi um dos principais deuses da mitologia greco-romana. É o deus da beleza, da juventude, da luz, do sol e da música. É o fundador do oráculo de Delfos, que tinha o objetivo de dar conselhos aos gregos por meio da sacerdotisa Pitonisa. Porém, diz a lenda que suas flechas podiam causar doenças aos homens.

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aFoucault Importante filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984. Publicou seu primeiro livro, Doença Mental e Personalidade, em 1954. Encontrou em Nietzsche sua fonte de inspiração. Usava uma linha de pensamento mais “contextualista”, ou seja, analisava somente as interpretações feitas ao longo da História.

O último homem e o além-do-homem A reflexão acerca da condição humana, a partir de Nietzsche, leva à pergunta: que homem é esse que vemos pela nossa janela? Que homem é esse que vemos ao olhar no espelho? Segundo o autor, um homem que vive entre a felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro. Essa vida não parece problemática à primeira vista. Mas só à primeira vista, pois se olharmos mais de perto: onde está o homem? O homem foi apequenado, amesquinhado, o tipo-homem moderno é uma possibilidade histórica infeliz, a menor das possibilidades, de tantas que poderia ser. O último homem, tal como Nietzsche caricaturiza-o, é o animal de rebanho, esse animal que almejou o advento da felicidade, o desaparecimento da desigualdade, da injustiça e do sofrimento e que, conseguindo realizar parte desses projetos, está numa vida amorfa e é fisiologicamente decadente, pois é impotente para sofrer e impotente para suportar o sofrimento, é fraco, humilde, subserviente, é um sujeito (aquele que se sujeita a). Que conceito de felicidade é esse, almejado e conquistado? É uma felicidade pequena, domesticada, dominada por freios sociais: segurança, bem-estar, estabilidade? Que felicidade poderia haver nisso? Isso é antivida. É vida não intensa, não experimentada, não trágica. A intensidade é condição necessária de toda grandeza, é a possibilidade de elevação do tipo-homem que está num estado de mediocrização (Mittelmässigkeit), redução da vida a relações de mercadorias, prazeres pequenos, rotinas entediantes, uma vida envolta por maquinaria, como vai dizer Heidegger mais a frente; corpos adestrados, como dirá Foucault a. O homem foi sucateado, enquanto a Terra é racionalizada e administrada. Nietzsche vê no modo de vida moderno uma anulação da subjetividade humana, em que a individualidade se perde, e em que impera a massa de rebanho, o espírito gregário e o consequente embotamento do indivíduo. Ele é, sem dúvida, o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. As poderosas teses levantadas por Nietzsche contra

a religião, a moralidade e a Filosofia misturam a análise mais crua, inspirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultura moderna que contrariam a vida. Essa é uma Filosofia da vida, vitalista. Nietzsche é um autor bombástico que não tem receios de produzir uma Filosofia a golpe de martelo. Sua crítica ferrenha à modernidade passa pela despersonalização dos indivíduos e pela formação social que cria um homem, segundo ele, fraco, humano, demasiadamente humano. Defendendo que o homem é a somatória de impulsos, desejos e vontades, acredita que a visão de animal racional aceita pelo Ocidente como definidora do ser humano é equivocada, pois a razão é um produto cultural, social. A razão seria fruto de uma vida gregária que só surge em decorrência das circunstâncias as quais os indivíduos foram expostos. Vivendo no mundo da razão e, portanto, valorizando a consciência como seu espaço privilegiado, o ser humano cria uma série de regras morais de convivência que o limitarão como ser humano. Dentre essas morais, o cristianismo é a que Nietzsche dedica mais tempo e espaço de reflexão. O cristianismo representa para Nietzsche uma moral dos fracos, pois valoriza o servilismo, a humildade, a aceitação, o conformismo com um tipo de sofrimento que só retrai, submete. O cristianismo seria o legítimo formador de uma massa de rebanho, sem força, individualidade ou autonomia. Seria uma moral massificadora e de escravos. A modernidade, vitimada pelo capitalismo e herdeira da moral cristã, será fatal para as possibilidades da vida humana. A antropologia nietzschiana passa pela defesa de uma superação desse humano que aí está. Na defesa de um super-homem que teria em si resguardada a força, os instintos e os desejos, rejeita-se o homem que surgiu do tipo de sociabilidade que criamos. O homem seria o meio entre o animal e o super-homem. A defesa do ­super-homem, em última instância, representaria um ultrapassamento da modernidade. O retorno do homem a si mesmo, resgate daquilo que perdeu quando se tornou consciência. Numa perspectiva vitalista, Nietzsche se apega na antiga concepção do mundo grego – entre os princípios apolíneos e dionisíacos,

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o eteRNo RetoRNo, ReGRA de oURo A proposição do eterno retorno, tal como formulada por Nietzsche nos textos de 1881, é uma regra de ouro para o julgamento da eticidade da vida. Se o ser humano não tem em si mesmo o referencial para julgar a qualidade de 1

A reflexão trazida por este texto encontra respaldo no texto de Oswaldo Giacóia Jr., Crítica da moral como política em Nietzsche.

sua vida – para julgar se vive ou não uma “boa vida” –, visto que se deformou historicamente, e sabendo que não pode confiar na razão (vilã da deformação humana) como critério para fazer este mesmo julgamento, o eterno retorno apresenta-se como possível parâmetro à valoração ética da vida. Viver a mesma vida já vivida desde o nascimento até hoje, sem a possibilidade de transformar nada, sem alterar nenhuma escolha, sem suprir sequer uma omissão. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver eternamente esta vida até então transcorrida. Essa é a condição. Para aqueles poucos que vivem a boa vida, autenticamente, essa condição será desejosa: valerá a pena viver eternamente repetindo os mesmos atos, vendo a ampulheta de sua vida virar-se outra e outra vez. Para a grande massa, aquele “rebanho”, a situação seria odiosa, desesperadora. Aqueles que se resignam no presente, buscando relegar a um futuro – que, a bem da verdade, não esperam concretizar – o que verdadeiramente desejam, esses abominam a vida eterna e circular. Por isso, o eterno retorno é uma regra de ouro da ética. A única que permite a cada um, em sua mais honesta individualidade, projetar e, principalmente, realizar a vida ética, a vida que vale ser vivida. Uma vez. E outra. Mais outra... GIACÓIA, Oswaldo. Crítica da Moral como Política em Nietzsche. Rubedo – Revista de Psicologia Junguiana e Cultura, ano X, n. 39, outubro de 2008. _______. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. _________. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Logos, 1954. _________. Para Além do Bem e do Mal. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

REFERÊNCIAS

quando estes estavam em vigência, e advoga em favor da vontade humana. E é em meio a esse contexto de domesticação do homem que se gesta o seu contrário, é aí que Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch) como contramovimento, visando fazer face à mediocrização em andamento na modernidade, que infelizmente toma consciência de si na figura histórica do niilismo europeu1. Quem é o além-do-homem? É a representação da vontade de potência, da força e do desejo, da experiência que perfura e fortalece. O além-do-homem é da arte, da vida, do corpo, amoral. Indivíduo soberano, autêntico, é uma espécie de homem mais desenvolvida. Essa seria, portanto, uma existência sobre-humana, radicalmente singular, corporal, livre. Essa vida é vida de fato! E essa vida vale a pena ser vivida. Uma vida de experiências intensas, de contato com a terra, de realizações de desejo, de exercício da vontade. Uma vida que ao morrer seria mais que morte, seria consumação, combustão. O avesso da morte em vida do último homem, o além-do-homem acaba, esgota-se de tanta vida, a morte é apenas o acabamento de uma existência vivida em sua intensidade. Essa vida valeria ser vivida tantas vezes quanto fosse possível. O eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida, pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona também como um princípio ético, um imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que tua vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”.

PESSANHA, Juliano. Equação Natal – Presença Roubada. Revista Trópico – dossiê literatura. http://pphp.uol.com.br/tropico/ html/textos/2722,2.shl. Acesso em: 28 jun. 2010.

*SUZE PIZA é mestre em Filosofia pela Unicamp. Atualmente, é doutoranda em Filosofia pela Unicamp e professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo ministrando aulas em diversos cursos na área de Filosofia. *DANIEL PANSARELLI é doutor em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, é professor na Metodista, onde coordena o curso de pós-graduação em Filosofia Contemporânea e História

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David Hume e o pensamento

cético na

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“David Hume está morto! Nunca os pilares da ortodoxia foram tão excessivamente abalados, como eles o são agora, por este evento”. Samuel Jackson Pratt (1749-1814), no livro Apology for the Life of David Hume (1777).

A origem do ceticismo remonta ao século 3 antes de Cristo, na Grécia. De lá para cá, o pensamento cético influenciou diversos filósofos. Um dos mais notáveis e fervorosos defensores desse tipo de conceito foi o escocês David Hume (1711-1776). PoR MAthEuS MouRA* FilosoFiA | Conhecimento Prático | 25

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a Moléstia que lhe

tomou a vida

Não se sabe ao certo qual doença afligiu Hume na época de sua morte. No entanto, sabe-se que foi alguma disfunção intestinal, uma vez que ele mesmo relata isso na autobiografia. Alguns autores levantam a hipótese de ter sido câncer.

a Zelotes

Do dicionário Aulete Digital (www.auletedigital.com.br): 1) Membro de um partido nacionalista judeu, que na época de Jesus se opunha à ocupação da Judeia pelo Império Romano. 2) Pessoa que simula um comportamento zeloso. 3) Pessoa que finge ser religiosa. 4) Que finge ter zelos ou ser religioso.

D

avid Hume é conhecido como o mais influente pensador iluminista escocês. Dentre as diversas teorias desenvolvidas por ele ao longo de sua vida, é notável pelo radicalismo cético tendo como preceito o empirismo. Isto é, a experiência prática como norte para a conclusão e entendimento do cotidiano e comportamento humano. Justamente por meio da dúvida aliada ao exercício prático, Hume colocou em xeque conceitos como religiosidade, Deus, e, até mesmo, coisas triviais da vida como a própria existência e o querer. Na época, esse tipo de postura não passou em branco pela sociedade, gerando problemas para o filósofo. Em 1744, houve uma ocasião em que Hume perdeu a oportunidade de ser professor de ética, na Universidade de Edimburgo, por ter sido acusado de ateísmo e heresia – acusações bastante sérias num período pós-inquisição. No entanto, o filósofo e crítico religioso, no passado, havia sido um fervoroso devoto. Hume era o filho mais novo de uma família modesta. O pai, Joseph Hume, era um pequeno proprietário de terra, em razão de seu falecimento, a propriedade foi passada ao filho mais velho. Na infância e parte da adolescência, Hume frequentava a igreja local da Escócia, regida por seu tio. Durante esse período, ele estudou um popular manual religioso calvinista chamado The Whole Duty of Man. Com base nesses estudos iniciais, passou a questionar a noção do divino, formando, assim, o embrião do inconformismo religioso, o qual carregou consigo durante toda a vida. Desse furor indagador, Hume desenvolveu escritos, como História Natural da Religião e Diálogos sobre a Religião Natural, além de artigos, originalmente suprimidos por influência do editor Andrew Millar (1707-1768) – em vista da polêmica que iriam suscitar –, como Do Suicídio e da Imortalidade da Alma. Esses dois ensaios foram originalmente escritos para figurar numa coletânea de ensaios

chamada Cinco Dissertações. Com a substituição por um ensaio menos ofensivo intitulado, ironicamente, de Do Padrão do Gosto, o livro passou-se a chamar Quatro Dissertações e foi publicado em 1757. Estigma A questão do ceticismo de Hume marcou profundamente sua obra e a maneira como foi percebida por seus contemporâneos. Na autobiografia, intitulada Minha Própria Vida (1776), escrita já em meio à moléstia que lhe tomou a vida a, Hume descreve como o Tratado da Natureza Humana (seu primeiro escrito publicado em duas partes entre 1739 e 1740) foi mal visto ao dizer que “ele já saiu natimorto da gráfica, sem sequer alcançar o mérito de provocar um murmúrio entre os zelotes a”. Não bastasse o pouco interesse do público pelo Tratado, aqueles que se colocaram a resenhá-lo fizeram-no com sarcasmo e desdém. No entanto, com o passar dos anos, o filósofo reviu o Tratado, dando-lhe novo fôlego literário, o que o levou a ratificar seu desgosto, ao notar que, antes do conteúdo, era principalmente a forma que não havia caído no gosto popular. Na referida obra, Hume aborda questões como tempo, espaço, objetos externos, causalidade, paixões, a liberdade da vontade e moralidade, tudo, na maioria das vezes, com base na óptica cética. Como notou o próprio Hume, “sendo naturalmente alegre e de temperamento esperançoso”, deu continuidade aos seus estudos e, em 1742, publicou a primeira parte dos Ensaios: Morais, Políticos e Literários. Por ter mudado um pouco o estilo, escrevendo de forma popular, os Ensaios foram mais bem aceitos pelo público do que o Tratado. Poucos anos mais tarde, em 1745, após ser recusado da cadeira de professor de Ética na Universidade de Edimburgo, passaram a circular pelo meio literário/acadêmico panfletos com forte teor opositor aos escritos de Hume, principalmente no que se referia ao

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conteúdo do Tratado. O título desse artigo é A Letter from a Gentleman (Carta para um Cavalheiro) e o autor do ataque foi o clérigo Willian Wishart – que não coincidentemente era o reitor da Universidade de Edimburgo na época da recusa de Hume ao cargo de professor. Apesar de não ter o costume de responder a críticas, Hume escreveu a réplica Carta de um Cavalheiro a seu Amigo em Edimburgo. Nela, o filósofo refuta todos os pontos levantados por Wishart. Após a decepção de não ter conseguido o cargo, Hume recebe o convite do Marquês de Annadale para viver na Inglaterra. No país, passou um ano até receber outro convite, desta vez do General St. Clair para servir como secretário durante uma expedição ao Canadá, mas que acabou tendo como rumo a costa da França. Passado esse período, o General chamou-o mais uma vez para servi-lo e Hume o fez, agora em Viena e Turin. Como o filósofo diz, foram dois anos de interrupção intelectual, mas que serviram como a base de sua estabilização financeira, dando subsídios para que, mais tarde, ele se dedicasse com afinco ao desenvolvimento acadêmico. Em 1751, publicou a Investigação sobre os Princípios Morais, sendo este uma adaptação do Livro III do Tratado, com texto reformulado e novos capítulos antes ausentes. De A Investigação nasceu o conceito original da noção de moral sem se prender aos preceitos cristãos – que, mesmo não sendo o foco do texto, foi uma forma indireta de atacar a religião. Em virtude dessa singularidade, na maneira de abordar a moral a partir da perspectiva humana e utilitária, Hume é conhecido como um dos precursores da Teoria Moral da Utilidade. Ainda em 1751, publicou os Discursos Políticos, obra que influenciou diretamente diversos pensadores, entre eles, Adam Smith a. Tentado a ser mais uma vez docente, porém na Universidade de Glasgow, na Escócia, em 1752, submete-se a outra seleção e, como

anteriormente, não é aceito. Antes mesmo de bater a decepção, foi escolhido pela Faculdade dos Advogados para exercer a função de bibliotecário. Apesar de mal remunerado, Hume, como diz, tinha sob o comando uma grande biblioteca. Dessa forma, com tempo e referências, ele se pôs a desenvolver o que viria ser o livro História da Inglaterra, dividido em seis volumes, publicado entre 1754 e 1762 e com abordagem da história inglesa de Júlio César (55 a.C.) até a Revolução Gloriosa (1688). Se antes a polêmica que permeava os textos do autor era centrada totalmente no caráter cético de sua abordagem, desta vez foi a escolha de um personagem histórico e como o tratou que gerou desconforto entre seus críticos e leitores. No caso, foi como tratou o reinado de Carlos I. O próprio Hume, em sua autobiografia, comenta a má repercussão do primeiro livro da História, dizendo: “Fui assaltado por um clamor de reprovação, desaprovação, e mesmo abominação; ingleses, escoceses, irlandeses, liberais e conservadores, eclesiásticos e sectários, livres-pensadores e religiosos, patriotas e cortesãos, unidos em seu ódio contra o homem que ousou derramar uma generosa lágrima pelo destino de Carlos I e o Conde de Strafford”. Além disso, há claras passagens no texto de História da Inglaterra que, direta ou indiretamente, atacam o cristianismo. Esses ataques, em especial, motivaram uma tese de refutação ao livro, escrita por Daniel MacQueen, em singelas 300 páginas. Tamanho esforço de MacQueem surtiu efeito e Hume, nas edições posteriores de História, retirou as partes por demais diretas e ofensivas à religião. O filósofo, pouco depois, publica suas principais obras contra o pensamento religioso: História Natural da Religião e Diálogos sobre a Religião Natural. O primeiro não obteve muita sorte e quase foi largado à escuridão. Se não fosse um panfleto, assinado por Dr. Hurd, contra a História Natural, a decepção de Hume teria sido maior. Na referida auto-

a Adam Smith

Adam Smith (1723-1790), famoso economista e filósofo escocês, é considerado o mais importante teórico do liberalismo econômico. Sua obra mais famosa é Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações, que até hoje é tida como atual e usada por economistas.

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AtEuS NA FILoSoFIA A história do pensamento ateu é bastante difusa e, por isso, nada concentrada em um único indivíduo ou lugar. No entanto, como muitos dos conceitos ocidentais, o primeiro relato de um pensador ateu ocorre na Grécia Antiga, no século 4 antes de Cristo. Tanto o é que a origem da própria palavra é derivada do grego antigo, sendo o adjetivo atheos formado pelo prefixo a, dando o significado de “ausência”. O radical “teu”, derivado do grego theós, significa “deus”. Assim, a soma do prefixo com o radical resulta no sentido de “sem deus”.

EPICuRo a olimpo

Da mitologia grega, Monte Olimpo é a morada dos doze deuses do Olimpo, os principais deuses do panteão grego. Os gregos acreditavam que no Olimpo havia uma mansão de cristais onde os deuses habitavam. Semelhante ao paraíso.

a laica ou

laicismo

O laicismo é uma doutrina filosófica que defende e promove a separação do Estado das igrejas e comunidades religiosas. Por consequência, prima pela neutralidade do Estado nos assuntos que lhe dizem respeito. Não deve ser confundida com o ateísmo de Estado. O Brasil, por exemplo, é um Estado laico. Os valores principais do laicismo são: liberdade de consciência, igualdade entre cidadãos em matéria religiosa e origem humana e democraticamente estabelecida das leis do Estado.

Na Grécia, quem difundiu as ideias da ausência de Deus foi o filósofo nascido na ilha de Samos em 341 a.C., Epicuro. Mesmo não sendo propriamente um ateu, Epicuro levantou a questão de que os deuses nada mais são do que simples analogias das qualidades humanas. Durante seus estudos, Epicuro indagou a relação das pessoas com os deuses do olimpo a, pois, para ele, se os deuses existissem, eles teriam mais com o que se preocupar em vez de criarem métodos de sofrimento para as pessoas.

CARNÉADES Influenciado pelo epicurismo, o filósofo Carnéades, de Cirene (214-129 a.C.) chegou a dizer abertamente em público que os deuses não existiam. Na ocasião, Carnéades estava em Roma, enviado com mais dois outros filósofos para representar Atenas na cidade. A declaração do pensador foi durante uma conferência no Senado romano e é considerada a primeira manifestação pública de ateísmo por um filósofo.

APÓS DoMÍNIo CRIStÃo Com o crescimento da doutrina cristã pelo mundo ocidental e a estatização da religião, durante muitos anos, ser ateu era considerado uma ofensa. Conforme a Igreja Católica foi se constituindo, mais e mais perigoso tornou-se o fato de ser ateu, chegando ao patamar de transformar-se numa acusação. Muitas das vezes, apenas ser mencionado por alguém, ou mesmo cogitado, já era o bastante para o dito herege ser condenado à fogueira. Devido ao perigo de ser ateu,

não é possível precisar quantos ou mesmo quem era ateu até a chegada do Iluminismo, no século 18.

DIDERot O filósofo Denis Diderot (1713-1784) é um dos mais ferrenhos críticos franceses da religião, autor, dentre vários, do livro A Religiosa. Nessa obra, Diderot ataca diretamente a Igreja Católica e as práticas eclesiásticas. Além disso, em A Religiosa, o autor denuncia vários abusos cometidos pela Igreja – que, na época, detinha um poder quase inquestionável perante a população europeia como um todo. É célebre a frase em que Diderot diz: “O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as entranhas do último padre”.

SÉCuLo 19 FEuERBACh Nesse período, houve uma grande proliferação dos ateus no meio intelectual, principalmente na Europa. Tido como o principal filósofo moderno ateu e um de seus mais notáveis difusores, o alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) chegou a influenciar o mais conhecido pensador ateu: Karl Marx. As ideias de Feuerbach têm como norte de que Deus é a projeção do desejo de perfeição do homem. Assim, Deus nada mais seria do que o próprio homem evoluído dentro de uma concepção divina. Na obra mais famosa do autor, A Essência do Cristianismo, Feuerbach diz que o pensamento teológico, na verdade, é o desenvolvimento de um raciocínio em que “o homem cria Deus à sua imagem e semelhança”.

MARX Contemporâneo de Feuerbach, e também alemão, Karl Marx (1818-1883) exprimiu com clareza a tendência ateia no livro Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844. Na obra, Marx expôs ideias anticlericais e antiteístas, influenciando uma série de pensadores modernos ao ter, em uma das características, a declaração explícita do ateísmo como consciência individual. Todas as revoluções marxistas, como na URSS ou

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na China, tiveram como marca a perseguição religiosa. Em razão dessas perseguições, mortes e prisões, até hoje se relaciona o comunismo marxista à intolerância religiosa.

NIEtZSChE Ainda na Alemanha do século 19, outro influente pensador ateu é Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nascido no ano de publicação do livro de Marx, Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, no antiteísmo, Nietzsche é conhecido pela famosa frase: “Deus está Morto”, além do questionamento: “Seria o homem um erro de Deus ou Deus um erro do homem?”, feito no polêmico livro O Anticristo, em que Nietzsche ainda proclama que o único cristão morreu na cruz. No caso, isso seria uma crítica à origem do cristianismo, pois, para Nietzsche, o fundador do cristianismo não foi Jesus, mas Paulo de Tarso, que teria deturpado os ensinamentos de Cristo a partir de suas próprias interpretações.

SÉCuLo 20 SARtRE Conhecido pela vertente filosófica existencialista, Jean-Paul Sartre (1904-1980) é um dos mais notórios pensadores do século 20. Influenciado pelo marxismo, Sartre desenvolveu uma dialética que explana várias razões para a inexistência de Deus. Em decorrência da defesa do existencialismo ateu, suas obras foram até mesmo incluídas na lista de livros proibidos pelo Vaticano. O existencialismo sartreano reconhece a moral laica a em que os valores humanos existam sem a necessidade do divino. Considera a moral uma consciência de responsabilidade do próprio indivíduo, não o medo da punição divina pelo erro.

SAM hARRIS Dos pensadores ateus contemporâneos, um dos mais proeminentes é o estadunidense Sam Harris (1967-). Graduado em Filosofia, recebeu o título de doutor em neurociência em 2009. O pensamento de Harris se baseia em pontos tanto ideológicos como físicos para demonstrar a “farsa das religiões”, sendo esse o mote do doutorado em neurociência. Durante os anos de estudo, Harris utilizou imagens de ressonância magnética para conduzir pesquisas de base neurológica a respeito das crenças, descrenças e incertezas. Harris escreveu dois livros, que logo se tornaram best-sellers, a respeito de ateísmo: A Morte da Fé (2004) e Carta a uma Nação Cristã (2006).

biografia, o autor chega a demonstrar apreço pela provocação ao escrever: “Este panfleto consolou-me um pouco acerca da repercussão de minha apresentação que, se não fosse por ele, teria sido nula”. EsCRitos REligiosos Antes da História Natural da Religião, Hume já havia ensaiado contra a crença religiosa nos capítulos Dos Milagres e De uma Providência Particular e de um Estado Futuro, publicados na Investigação sobre o Entendimento Humano. No primeiro artigo, ele trata exclusivamente da questão da validade dos milagres trabalhando a inveracidade dessa manifestação de cunho religioso, argumentando ser ela uma contravenção do natural. Assim, diz Hume, o sábio deve refutar toda e qualquer manifestação de apoio ao milagre uma vez que este vai contra as forças imutáveis da natureza. Outro ponto discorrido pelo filósofo é quanto à validação do relato do milagre. Sendo este uma subversão da natureza, sua descrição acaba por não incorrer em mérito, uma vez que contrapõe a experiência prática – o empirismo. Outra crítica de Hume contra a veracidade dos milagres é baseada nos interesses e análise de caráter dos que anunciam milagres. Para o filósofo, os indivíduos que testemunham milagres não são íntegros; além de as pessoas serem, em geral, propensas ao sensacional e, por isso, a acreditar em relatos extraordinários; e povos “bárbaros” costumam relatar com abundância a ocorrência de milagres – para um iluminista, isso já seria motivo suficiente para demonstrar o quão irracional é crer em milagres. Assim, conclui Hume, a crença nos milagres é baseada em fé e não na racionalidade e na experiência prática das leis naturais. Já no artigo De uma Providência Particular e de um Estado Futuro, o filósofo dá continuidade às críticas iniciadas em Dos Milagres, mas com uma abordagem diferenciada. Como era comum durante o Iluminismo, vários penFilosoFiA | Conhecimento Prático | 29

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oBRAS DE DAVID huME: • Tratado da Natureza Humana (1739-1740) • Investigação sobre o Entendimento Humano (1748) • Ensaios: Morais, Políticos e Literários (1741-1742) • Investigação sobre os Princípios da Moral (1751) • Discursos Políticos (1752) • A História da Grã-Bretanha (1754-1762) • História Natural da Religião (1757) • Diálogos sobre a Religião Natural (póstumo)

sadores usaram de artimanha para poder expressar suas ideias sem levantar demasiadas críticas ao próprio ponto de vista. Dessa forma, Hume escreve o artigo como um diálogo fictício entre duas personagens. Nesse diálogo, são expostos três argumentos fundamentais que refutam as principais “provas” da existência de Deus: 1) Toda a noção do divino tem como base o percebido na natureza, sendo a natureza imperfeita, Deus (seu criador), por consequência, não pode ser perfeito; 2) A noção de justiça divina passa a ser regida pela imperfeição de algo baseado no imperfeito, portanto não pode ser justa; 3) Em razão da singularidade da natureza, é impossível compará-la com algo subjetivo como Deus. No livro História Natural da Religião, o autor vai contra o argumento de que a evolução do homem – enquanto sociedade – só se deu em decorrência da unidade de Deus. Alguns críticos de Hume, como William Adams (1706-1789), mestre de Pembroke College, em Oxford (Inglaterra), dizia que a sofisticação judia ocorreu por conta da interferência direta de Deus. Hume contrapõe esse argumento ao dizer que, antes de uma intervenção divina, a própria natureza humana foi a base do desenvolvimento social. Para isso, ele dividiu a História Natural em três principais tópicos: a defesa de que foi o politeísmo, e não o monoteísmo, a verdadeira religião natural do homem, sendo o monoteísmo uma “evolução” social. Ao expor essa ideia, Hume foi o primeiro pensador a levantar a hipótese do politeísmo como religião original. O segundo tópico discutido por ele é a motivação dos indivíduos para a crença. Hume, então, parte de uma análise psicológica traçando como características fundamentais do homem: a crença, os instintos naturais de medo e a tendência para adular – ao contrário do pregado por instituições religiosas ao colocar o crer como racional. Por fim, o filósofo mostra o quão insensato é crer. Para ruir com o cristianismo, Hume traça paralelos entre o

monoteísmo e politeísmo correlacionando-os para justificar o porquê não se deve crer, uma vez que ambos são semelhantes, apesar de um contestar o outro. Visto como o escrito mais importante deixado pelo pensador, Diálogos sobre a Religião Natural foi publicado postumamente e também utiliza o artifício de ser contado em forma de embate ideológico. Nesse escrito, há três personagens principais: dois deles que defendem o ponto de vista religioso, Cleantes e Demea, e o contraponto cético, tido como o porta-voz de Hume na obra, Filo. A partir deles, são tratados dois temas principais: a existência de Deus e a essência da Divindade. Cleantes defende o ponto de vista do desígnio, o qual trata da existência divina com base no argumento a posteriori, ou seja, de que a ação e a inteligência humanas se assemelham a tais características divinas. Para isso, Cleantes usa o exemplo de que o mundo é uma grande máquina que tem em seu interior outras máquinas menores e assim por diante, infinitamente, ligando-se umas as outras de modo perfeito. Por analogia, estariam essas máquinas próximas às criadas pelo próprio homem, dando caráter a este de possuidor de um espírito similar ao Divino, dadas as devidas proporções. Por sua vez, Demea argumenta de maneira a priori ou antirracionalista, isto é, a personagem defende o ponto de vista de um ser Divino superior, criador de tudo e inquestionável. Dessa forma, o crer e a religiosidade, para Demea, são frutos exclusivamente da fé. Essa posição fica explícita na passagem em que diz “criaturas finitas, débeis e cegas que somos, devemos humilhar-nos diante de sua augusta presença e, conscientes de nossas falhas, adorar em silêncio suas infinitas perfeições, que os olhos não podem ver nem os ouvidos escutar e que ao coração humano não é dado conceber” (HUME. 1992, p.28). Filo contesta ambos os argumentos. Diretamente, quanto ao exemplo das máquinas, dado por Cleantes, ele diz que, ao contrá-

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rio da experiência vivida por cada indivíduo ao ver (ou ter a oportunidade de ver) uma máquina sendo construída, ninguém viu ou verá a construção de um mundo/universo. Já com relação ao ponto de vista de Demea, Filo argumenta: não há como apontar que o Divino seja inteiramente bom ou propenso a ordem, pois, em razão da infinitude do universo, ele pode ser ordenado aqui e caótico em outro lugar. Nos textos suprimidos, Do Suicídio e Da Imortalidade da Alma – publicados postumamente –, Hume continua a argumentar contra os preceitos religiosos ao defender a independência do homem perante a crença. No artigo Do Suicídio, o mote é validar o suicídio mostrando que ele não vai de encontro às vontades divinas, nem com a natureza humana. Já no Da Imortalidade da Alma, a questão é desmentir a validação da imortalidade da alma.

FIESER, James. Hume: Life and Writings. Disponível em: <http:// www.iep.utm.edu/humelife/> Acesso em: 8 jun. 2010.

_________. Investigação sobre o Entendimento Humano. Tradução: Anoar Aiex – E-book digitalizado pelo grupo Acrópolis (Filosofia).

____________. Hume: Moral Theory. Disponível em: <http:// www.iep.utm.edu/humemora/> Acesso em: 8 jun. 2010.

_________. Minha Própria Vida. Tradução: Miguel Duclós. Disponível em: <http://www.consciencia.org/hume-minha-propriavida-autobiografia>. Acesso em: 1º jun.2010.

REFERÊNCIAS

____________. Hume: Writings on Religion. Disponível em: <http:// www.iep.utm.edu/humereli/> Acesso em: 8 jun. 2010. HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. _________. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural,1999.

A

RODRIGUES, Alexandre Augusto Dias. O ceticismo na filosofia moral de David Hume. Dissertação (Mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2009. SILVA, Marcos Rodrigues da. Hume e o Argumento do Desígnio. Kriterion, Belo Horizonte, n. 113, p.115-130, jun/2006. *Matheus Moura é jornalista

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Mais que um

filósofo Bertrand Russell foi, além de intelectual com múltiplos interesses, um importante líder pacifista. por Sergio Amaral Silva*

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aEuclides 360 a. C.–295 a. C. Matemático, professor e escritor grego, conhecido como “pai da geometria”. Seu livro Os Elementos é dos mais importantes da história da Matemática. Nessa obra, os princípios da hoje chamada geometria euclidiana foram deduzidos a partir de um pequeno conjunto de axiomas. Russell, em sua Autobiografia, admitiu ter sido, já na infância, desafiado intelectualmente pelos princípios de Euclides, que conheceu aos onze anos.

alógica Pode ser conceituada como uma ciência de índole filosófica, fortemente associada à matemática. Russell a considerava como parte fundamental da Filosofia, chegando a afirmar que as escolas filosóficas deveriam definir-se mais por sua lógica do que por sua metafísica. Segundo a tese logicista, ou da lógica simbólica, formulada por ele e informalmente descrita no livro Os Princípios da Matemática, todas as verdades matemáticas podem ser deduzidas a partir de umas poucas verdades lógicas, e todos os conceitos matemáticos reduzidos a poucos conceitos lógicos essenciais.

ste ano transcorre o centenário de publicação de Principia Mathematica, um dos principais livros de Bertrand Russell. Ainda em 2010, 40º aniversário de sua morte, comemoram-se os 60 anos de sua premiação com o Nobel de Literatura. A coincidência de datas é particularmente importante por tratar-se de um dos mais respeitados e influentes pensadores do século 20: foi o filósofo brilhante que se dedicou a “traduzir” conceitos complexos para um público leigo; foi o matemático inovador cujas equações superaram as de aEuclides; foi o líder pacifista que, já nonagenário, teve a coragem de levantar a voz contra os poderosos em prol de causas humanitárias como o desarmamento nuclear. Juntamente com outro premiado do Nobel, o cientista Albert Einstein, ele organizou o movimento Pugwash contra a proliferação de armamentos atômicos, questão que, infelizmente, após várias décadas, permanece atual. As contribuições de Russell no campo da alógica incluem a descoberta do paradoxo

que leva seu nome, ligado à teoria dos conjuntos; sua defesa do logicismo (tese segundo a qual a matemática, no que tem de significativo, é redutível à lógica formal); o desenvolvimento da chamada “teoria dos tipos” e de uma teoria geral das relações lógicas. Como um dos pioneiros da aFilosofia Analítica, deixou trabalhos expressivos em metafísica, ética e teoria política. Mas ele não se limitou a essas áreas principais: intelectual curioso e produtivo, seus trabalhos abrangeram também a História, Educação, Sociologia, Ciência, Religião e Literatura. O método adotado por ele para construção lógica tinha como objetivo básico detalhar as complexas relações entre os objetos teóricos ou abstratos e a experiência sensorial. Dessa forma, legitimava a importância da experiência como base de todo o conhecimento humano. Em outubro de 1948, Bertrand Russell sobreviveu a um acidente aéreo, quando o avião em que se encontrava aterrissou num fiorde, próximo à capital norueguesa. Ele estava in-

QUem FOI rUSSeLL Bertrand Arthur William Russell nasceu no País de Gales, em 18 de maio de 1872, sendo o segundo filho de uma família aristocrática, que pertencia à nobreza da Inglaterra e era ligada ao partido liberal. Seu avô paterno tinha sido primeiro-ministro em duas ocasiões, nas décadas de 1840 e 1860. Órfão de pai com 4 anos (tinha perdido a mãe aos 2), passou a ser criado pelos avós, que também eram nobres. Recebeu, juntamente com o irmão mais velho, uma educação tipicamente vitoriana. Com 17 anos, conheceu a jovem estadunidense Alys Pearsall Smith, com quem se casaria cinco anos mais tarde, mesmo enfrentando a oposição da família. Esse casamento durou de 1894 a 1911, período em que ele teve várias amantes. Em 1890, Russell ingressou na

Universidade de Cambridge, para estudar Filosofia e Matemática. Em 1907, fez a primeira tentativa (que repetiria, sem sucesso, em 1922 e 23) de se eleger deputado. No ano seguinte, foi admitido como membro do Trinity College, onde lecionou. Com a Primeira Guerra, sua recusa em servir as Forças Armadas e as críticas que fez ao Exército custaram-lhe a perda dessa cátedra e alguns meses de prisão. Em 1921, formalizou seu divórcio e casou-se com Dora Black, com quem teve um casal de filhos. Em 1936, separou-se de Dora, casando pela terceira vez, agora com uma universitária de Oxford, Patricia Spence. No final dos anos 1930, lecionou em universidades de Los Angeles e Nova York, mas teve as nomeações canceladas por um tribunal que julgou “moralmente inaceitáveis”

algumas opiniões expressas em seus livros. Com a ascensão do nacional-socialismo alemão e a Segunda Guerra Mundial, Russell se posicionou frontalmente contra o totalitarismo de Hitler. Voltou à Grã-Bretanha e ao Trinity College em 1944. Recebeu em 1950 o Prêmio Nobel de Literatura. Nos primeiros anos dessa década, aconteceram também sua terceira separação e seu quarto casamento, com Edith Finch. Em 1962, já nonagenário, participou da mediação do conflito dos mísseis em que se envolveram Estados Unidos, Cuba e União Soviética, impedindo que o desentendimento entre os países redundasse num confronto de armas nucleares. Russell morreu em sua casa, no País de Gales, com 97 anos, em 2 de fevereiro de 1970.

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O PeNSAmeNTO vIvO De rUSSeLL Alguns trechos de sua obra: “A Filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos: é convencido, incerto e, em si mesmo, contraditório. O primeiro passo rumo à Filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos, não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente. ... Desejamos que a área de nosso conhecimento seja a mais ampla possível. Isto, no entanto, é mais da competência da ciência que da filosofia. Um homem não vem a ser necessariamente melhor filósofo graças ao conhecimento de maior número de fatos científicos; ... A filosofia envolve uma crítica do conhecimento científico, não de um ponto de vista em tudo diferente do da ciência, mas de um ponto de vista menos preocupado com detalhes e mais comprometido com a harmonia do corpo genérico das ciências especiais” (Fundamentos de Filosofia)

ue o ndo viu q o a u q e ; iu orr rfeit “E Deus s via se tornado pe nçou a Homem h ia e na adoração,la com iu na renúnc utro sol, que colid nou à o r aos céus mem, e tudo reto u, ‘foi o o o sol do h ‘Sim’, Ele murmur dar n . nebulosa spetáculo; vou ma em um belo e m’. Tal é o mundo, vido ro que repita ainda mais desp s suma, ma ito e mais vazio de à e s ó de prop ue a ciência oferec sentido, q ça” n nossa c’sreWorship and Other Essays)

“Nosso s se deve problemas atu m, mais a qualque do que is fato de r outra coisa, a a q o a enten ue aprendemo der e co s forma a n terroriza trolar de da natu nte as fo r nós, ma eza que é exte rças r estão cos não aquelas q na a r p mesmo orificadas em ue s” nós (Autorid ade e o Indiv íduo)

an (A Free M

aFilosofia Analítica Vertente do pensamento contemporâneo para a qual a Filosofia é análise do significado de enunciados – e resume-se a uma pesquisa de linguagem. É possível interpretar que uma de suas características essenciais resida na argumentação provocada por questões autenticamente filosóficas. Nesse caso, ela seria apenas uma continuação contemporânea de toda a longa tradição da Filosofia como racionalidade argumentativa, que se inicia com os diálogos platônicos. E se é assim, a lógica está, necessariamente, na base da Filosofia.

aVietnã Localizado na Ásia, o país tem como nome oficial República Socialista do Vietnã, e como capital, a cidade de Hanói. Na Conferência de Genebra, o país foi dividido em dois: o Vietnã do Norte, comunista e sob influência da então União Soviética; e o Vietnã do Sul, alinhado ao capitalismo dos Estados Unidos. Essa divisão acabou gerando um conflito conhecido como Guerra do Vietnã, que durou de 1959 até 1973, quando as tropas estadunidenses foram obrigadas a retirar-se. Em 1976, houve a reunificação política dos dois países, dando início a um difícil processo de integração, ainda não totalmente concluído.

típico deseja “Aquilo que o homem atual is dinheiro, ma conseguir com o dinheiro é e sobrepujar com o objetivo de ostentar seus iguais. àqueles que eram até então heiro a din ... Mais que isso: fez-se do ia. Aquele nc gê eli medida aceita da int ; aquele que que ganha muito é esperto ser visto de não, não é. Ninguém gosta como um tolo” (A Conquista da Felicidade)

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aLudwig Wittgenstein

Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) foi um pensador nascido na Áustria e naturalizado britânico. É considerado um dos filósofos mais importantes do século 20, com contribuições nos campos da lógica, filosofia da matemática, filosofia da mente e filosofia da linguagem. Concluiu que o sucesso de Russell ao basear a Matemática em princípios lógicos era prejudicado pela incompreensão da natureza destes. Publicou somente um livro em vida, o Tractatus LogicoPhilosophicus, de 1922.

PARA SABER MAIS • Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://plato.stanford. edu/entries/russell/>

*Sergio Amaral Silva é jornalista formado pela USP e escritor, ganhador de vários prêmios literários e do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura

cluído na metade dos passageiros que estava num compartimento no fundo da aeronave, reservado aos fumantes, e que foi menos atingido. Retirado do avião, precisou nadar até um barco próximo e, quando um jornalista lhe perguntou no que pensou ao mergulhar na água, disse: “Pensei que estava fria, não em misticismo ou lógica”. ALGUNS TÍTULOS PUBLICADOS A extensa obra de Bertrand Russell inclui cerca de setenta volumes. Alguns de seus principais livros são: • Democracia Social Alemã (1896); • Os Princípios da Matemática (1903); • Principia Mathematica (com Alfred North Whitehead) (1910-13); • Introdução à Filosofia Matemática (1919); • A Análise da Mente (1921); • Aquilo em que Creio (1925); • Casamento e Moral (1929); • A Conquista da Felicidade (1930); • Uma Investigação Acerca de Significado e Verdade (1940); • História da Filosofia Ocidental (1947); • Autoridade e o Indivíduo (1949); • Satã nos Subúrbios e Outras Estórias (contos) (1953); • Lógica e Conhecimento: Ensaios 1901-1950 (1956); • Por que Não Sou Cristão (1957); • O Homem tem Futuro? (1961); • Crimes de guerra no Vietnã (1967); • Autobiografia (1967).

Em novembro de 1950, o nome de Russell foi anunciado como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, “em reconhecimento de numerosos trabalhos da sua autoria em que se defendem os ideais mais elevados”. Por ocasião do banquete comemorativo da entrega do prêmio no valor de trinta mil dólares, em Estocolmo, em dezembro daquele mesmo ano, Russell foi saudado por representantes da Academia Real das Ciências sueca como um dos maiores e mais influentes pensadores de nosso tempo, um dos mais brilhantes protagonistas dos ideais humanos e campeão da liberdade de expressão do mundo ocidental, dotado de quatro características básicas: “a vitalidade, a coragem, a receptividade e a inteligência’’. A partir da década de 1950, Russell intensificou suas atividades, tanto como ativista político quanto como criador. Nessa época, o pessimismo demonstrado em seus escritos dos anos 1930 e do conturbado período de guerra deu lugar a seu otimismo inato e à fé nos destinos da humanidade. Em seu aniversário de 80 anos, Russell deixou um conselho envolto em uma fina ironia tipicamente britânica: questionado a respeito de sua longevidade, recomendou aos interessados em viver tanto quanto ele que se abstivessem de quaisquer excessos, menos fumar: “Até a idade de quarenta e dois anos, fui um abstêmio. Nos últimos anos, entretanto, tenho fumado incessantemente, parando apenas para comer e para dormir”. Já com idade bastante avançada, o filósofo, que costumava se definir politicamente como “liberal anarquista de esquerda’’, deu continuidade a suas atividades como pacifista: em 1967, formou o Tribunal Russell, responsável pelo julgamento dos crimes de guerra cometidos pelos estadunidenses no aVietnã. Bertrand Russell influenciou com suas ideias algumas gerações de filósofos. Dentre aqueles cuja influência da obra russelliana é inegável, destaca-se o austríaco aLudwig Wittgenstein, que foi seu aluno e teve a oportunidade de reelaborar vários dos conceitos desenvolvidos pelo mestre.

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ANálise

verdade à invenção da

Das origens da

Filosofia

O debate sobre a dupla forma de abordagem da veracidade sob a óptica dos afazeres filosóficos. POR PAULO GHIRALDELLI JR.*

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A

aCultura helênica

O período foi um marco entre o domínio da cultura grega e o advento da civilização romana. Alexandria e Antioquia, capitais do Egito ptolemaico e do Império Selêucida, respectivamente, foram fundadas durante o Helenismo, que foi a concretização de um ideal de Alexandre Magno, rei da Macedônia: o de levar e difundir a cultura grega aos territórios que conquistava.

verdade é fabricada ou encontrada? O enunciado “O petróleo é o resultado da transformação de material orgânico” parece ser uma verdade descoberta. Mas o enunciado “O petróleo é útil para obtenção de gasolina” pode ser tomado como uma verdade fabricada. A frase “A escravidão é um crime” parece ser uma verdade fabricada. Algumas pessoas imaginam que os filósofos contemporâneos são os donos desse tipo de investigação e debate. Outros dizem que esse debate sobre a verdade está na Filosofia há muito tempo. Essa dupla forma de abordagem da verdade é anterior mesmo à Filosofia, ainda que sua consagração tenha se estabelecido no interior dos afazeres dos filósofos. Isso ocorreu à medida que a cultura helênica a e a cultura judaico-cristã tiveram de conviver. Elas trouxeram de seus arcabouços religiosos as concepções distintas de verdade. Os oráculos do mundo helênico lidavam com a verdade de um modo bem diferente do utilizado pelos profetas do mundo judaico-cristão. Profecia é uma coisa, a verdade do oráculo é outra. Os profetas explicitam uma verdade que será apontada, indicada. Nesse caso, ao ouvinte da profecia cabe o reconhecimento da verdade quando ela acontecer, e não propriamente qualquer tipo de interpretação. Pode-se anunciar a vinda de um salvador e, então, aguardar o momento de reconhecer ou não o salvador quando ele surgir. Por sua vez, o oráculo não produz algo para ser reconhecido ou identificado. Ele pede que o ouvinte se lance em uma atividade interpretativa. Ele diz uma verdade que permite interpretação ou, mais que isso, que encaminhe o ouvinte para a atividade de modificação da própria vida. Esta, por sua vez, passa a se desenvolver segundo as diretrizes escolhidas na busca de cumprir o dito oracular que, enfim, parece ser antes uma mensagem, um aviso, e não propria-

mente uma fala petrificada à espera do dia fatal em que deverá se realizar. Os que escutam o profeta sabem que aquilo que ele disse ocorrerá. As disputas se dão na forma do reconhecimento. Uns podem reconhecer em um determinado evento ou pessoa o que foi profetizado, e outros podem não reconhecer. Daí nasce a disputa sobre a profecia. É isso que vemos, por exemplo, na divisão de crenças entre cristãos e judeus. Trata-se do reconhecimento a respeito da vinda do messias. Os cristãos apontam para Jesus, mas os judeus não reconhecem Jesus como o messias. Os que acompanham o oráculo sabem que o que ele diz precisa ser interpretado corretamente, ou seja, sem passividade. A fala oracular, por mais simples que seja, pode ser um enigma e, assim, interpretá-la é antes uma atividade ampla de investigação e ação que qualquer tipo de atitude que implique em viver em expectativa. É isso que se passou com Sócrates, quando ele levou a sério o recado de Querofonte, seu amigo que visitou o Oráculo de Delfos. Recado do oráculo Querofonte voltou do santuário de Delfos com uma fantástica notícia para Sócrates. O deus do Templo (de Apolo), pela voz do oráculo, havia apontado Sócrates como o mais sábio dos homens. Isso é contado por Sócrates exatamente na sua defesa, quando de seu julgamento em Atenas, no texto produzido por Platão, o Apologia de Sócrates. O escrito de Platão é sabidamente antes filosófico que histórico. Mas o episódio da ida de Querofonte ao santuário pode ser visto como um dado histórico, pois também aparece no Apologia de Sócrates, escrito por Xenofonte. Todavia, o que é próprio do escrito de Platão é o desdobrar do episódio ou, mais exatamente, a reação de Sócrates ao recado do oráculo. A reação de Sócrates ao dito oracular criou o próprio filosofar socrático, relativamente distinto do filosofar de Platão. E essas

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duas vias de se fazer Filosofia no Ocidente seguiram adiante, eternamente em tensão. Voltarei aos dois modos de fazer Filosofia ao final deste escrito. Sócrates recebeu a notícia de Querofonte e, ato contínuo, tomou uma atitude inusitada, ao menos para nós, que nem sempre levamos em conta a distinção entre ouvir um oráculo e ouvir uma profecia. Como atitude de busca do entendimento do Oráculo de Delfos, Sócrates resolveu refutá-lo. Ele saiu pelas ruas de Atenas conversando com todos os homens que eram apontados como os melhores em cada tipo de conhecimento. Caso ele encontrasse boas respostas para suas perguntas, todas elas ligadas à vida prática, ou seja, ao campo ético-moral, ele teria achado pessoas mais sábias que ele e, desse modo, para ainda continuar dando crédito ao oráculo (que certamente ele dava), ele deveria reinterpretar o recado trazido por Querofonte. Todavia, eis aí uma questão curiosa: qual a razão de se optar por tentar refutar o deus? Era uma maneira de interpretar, ou seja, ver se o que o deus disse tinha alguma legitimidade. A questão era a de se notar ou não a existência de alguém mais sábio, ou seja, capaz de ser o mais sábio segundo o que deveria cada cidadão expoente saber. Mas, se era assim, então a norma instituída entre os gregos, para aqueles que recebiam recados oraculares, não poderia ser outra senão a de levá-los a sério a partir da compreensão reflexiva (e não de modo irrefletido) e de se colocar em ação segundo o procedimento interpretativo. Em outras palavras: a atividade racional de compreensão e a atividade prática desencadeada na busca da compreensão – o trabalho investigativo de Sócrates – já estavam na base do diálogo com os deuses. A atividade de crença, no sentido comum que tomamos a crença, ou no sentido judaico-cristão, não era sequer cogitada. Assim, ao que os deuses falavam não se devolvia com a fé, mas com respostas e atitudes raciocinadas – e com ações. Uma estranha

forma de religião, não é? Nem tanto. Afinal, uma religião sem uma tábua de mandamentos não colocaria os homens se comportando de um modo ou de outro senão por essa maneira: o dito do oráculo, de certo modo, punha o destinatário em um modo de vida diferente do que ele até então fazia. Pode ser que outros atenienses não agissem do modo que Sócrates agiu diante do deus do Templo de Apolo. Talvez Sócrates fosse, de fato, bastante idiossincrático no seu comportamento diante de um dito dos deuses. No entanto, há indícios históricos que mostram que, em certo sentido, a prática da interpretação do dito por um oráculo era necessária. O dito oracular não deixava as pessoas passivas diante do destino. Ao contrário, o enunciado oracular motivava as pessoas a entendê-lo da melhor forma possível, e isso era tomado como uma sugestão para que elas se engajassem na confecção de seus destinos. Na maioria dos casos, pelo que notamos nas histórias que nos chegaram dos gregos, contadas por eles mesmos a respeito de suas relações com os oráculos, o que ocorria é que o destino terminava por se realizar de uma maneira totalmente inesperada. Ou melhor: o destino se fazia de uma maneira inesperada. Essa qualificação de “inesperado” pode ser utilizada, mas, para um observador estranho ao clima, alguém antes acostumado à profecia que ao oráculo, pode passar pela cabeça que o dito final, a interpretação final, já não diz respeito ao que foi inicialmente perguntado ao oráculo. Ora, ao fazer isso, esse observador não está de todo errado. Ao final de um episódio envolvendo um oráculo, pode realmente não caber afirmar que o oráculo acertou ou errou, pois não é o caso de se trabalhar com a ideia tradicional de acerto, uma vez que de modo algum o “acerto”, neste caso, deve ser dado pelo método de encostar o ocorrido ao que foi perguntado para o oráculo para “verificar”. Sócrates, como ele mostrou na Apologia, iniciou seu percurso considerando o dito FilosoFIA | Conhecimento Prático | 41

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aEpistemologia

Conhecida como teoria do conhecimento, é o ramo da Filosofia que estuda os limites do conhecimento, da natureza e da origem do ser humano. Nesse caso, a principal pergunta é: o que é e como alcançamos o conhecimento? Essas questões, apesar de tão antigas quanto a Filosofia, podem ser remetidas inicialmente a Platão ao tratá-las como crença verdadeira e justificada.

sobre sua sabedoria superior. Ao interpretar o Oráculo de Delfos utilizando-se do método da refutação, ele deixou a impressão de que seu objetivo era o de verificar o quanto o dito oracular correspondia à realidade da relação do homem Sócrates com os outros homens. Todavia, tão logo ele concluiu que ele realmente parecia ser mais sábio que outros, pois os outros não sabiam que não sabiam, enquanto que ele, Sócrates, ao menos sabia que não sabia as respostas para suas perguntas, não deu por encerrada a atividade interpretativa. Sem intervalo ou qualquer corte, ele continuou interpretando como quem não viu nenhum ponto final, dando a entender que sua atividade, desde o início, não era a de verificar o dito oracular ou interpretá-lo e, sim, interpretar a “intenção” do Oráculo de Delfos embutida na afirmação trazida por Querofonte. Assim, a questão de ser ou não o mais sábio deixou de ser o ponto de chegada. A questão importante que, enfim, apareceu como se tivesse sido colocada desde o início dizia respeito ao que o deus do Templo gostaria que se realizasse no mundo grego, especialmente em Atenas. Tanto isso é assim que Sócrates não considerou sua conclusão a respeito do dito oracular como sendo o “sei que não sei” e, sim, outras observações que se seguiram ao longo de sua defesa. Ele, Sócrates, considerou que talvez o deus do Templo quisesse mostrar que o Sócrates-mais-sábio-que-outros tinha um conhecimento meramente humano, não o conhecimento divino (das Formas, como Platão interpreta depois). Mas ele não parou aí. Foi mais além, em uma última conclusão, a contida na célebre frase “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Aliás, ele tomou tal regra como o que ele próprio, na atividade interpretativa, acabou cumprindo. Também assumiu que teria de ser este o lema considerado por todos os seus

concidadãos, e que ele, inquirindo Atenas, ajudou a cidade a não ter cidadãos que não se questionavam. Viu esse feito como uma realização pessoal – e que ele chamou de o seu “filosofar” –, algo que, enquanto ocorreu, assim se fez, obrigando toda a Atenas a uma nova atividade, a de pensar e se questionar com ele. Como ele mesmo disse, sua figura havia recebido o apelido de a Mosca de Atenas, pois sua façanha, ou seja, o seu filosofar, havia sido o de colocar toda a cidade a se examinar por meio de uma incessante importunação dos cidadãos. Ora, então esta teria sido a correta interpretação da vontade da divindade do Oráculo de Delfos: fazer de Atenas uma cidade com um povo mais reflexivo, capaz de não se embriagar na própria hybris (orgulho). Afinal, para Atenas, o embriagar-se na própria hybris não era algo distante do que poderia ocorrer e que, em alguns momentos, realmente ocorreu. Todavia, pode-se imaginar, também, que a ideia inicial do Oráculo acabou por se realizar literalmente. Terminada sua peregrinação pelas ruas de Atenas, sempre filosofando, ou seja, examinando outros, Sócrates realmente chegou à clareza máxima do “sei que não sei, enquanto os meus concidadãos pensam que sabem o que não sabem”. Ora, então, ao final, o dito do Oráculo se fez verdade – definitivamente. Os estilos de Filosofia Platão venceu Sócrates. O estilo de Platão, de escrever e de investigar no âmbito da metafísica a e da epistemologia, derrubou o de Sócrates, de não escrever e, sim, de perguntar, sem metafísica ou epistemologia, por comportamentos morais. Em um primeiro momento, Platão teve rival. Várias escolas se declararam socráticas, adotando como filosofia a conduta que teria sido inspirada por Sócrates. Mas Platão, dando origem a outro tipo de trabalho, que seguiu caminho por meio de Aristóteles, fez da Filosofia algo me-

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nos pautado no comportamento e com um peso no trabalho de fazer da Filosofia uma busca de fundamentos. Assim, enquanto Sócrates perguntava coisas do tipo “o que é a coragem?” ou “o que é a devoção?”, Platão seguiu desejando outra coisa: queria ver como se poderia saber se as respostas a tais perguntas, uma vez pronunciadas, eram as definitivamente corretas. Sócrates perguntou pelo “verdadeiro” (de cada pergunta) enquanto que Platão perguntou pela “verdade”. Platão deu o tom do que, em grande parte, veio a ser a Filosofia no Ocidente. Vivemos essa situação dual até hoje, a de disputa entre fazer Filosofia com ou sem metafísica, com ou sem epistemologia a. Entretanto, vivemos isso de um modo controlado pela hegemonia do estilo de Platão (que ele, talvez, não tenha endossado até o final da vida), um estilo que, nós sabemos, consagrou-se a partir de Aristóteles. Contudo, é interessante notar que em um ponto Platão não só respeitou Sócrates, mas talvez até tenha, ele próprio, sido o responsável pela sua importância na História da Filosofia. Platão colocou o início da Filosofia como devendo muito à investigação socrática e esta como partindo de uma relação com a divindade. Sócrates só filosofou, na conta de Platão, por ter se envolvido na busca de interpretação concreta do que foi dito pelo Oráculo de Delfos. Platão, ele próprio, era descendente dos deuses. Sua árvore genealógica, por ser da nobreza, encostava suas raízes em entidades míticas. Sócrates nada tinha de divino, pois não era nobre. Então, Platão resolveu não negar a um plebeu tão querido alguma ligação com os deuses. Como não era por sangue, que fosse pela devoção. O Templo de Apolo, pela pitonisa do Oráculo de Delfos, determinou que Sócrates fizesse o que fez, ou seja, filosofasse. Foi disso que nasceu a Filosofia, não só nos moldes do próprio Sócrates, mas também como problema para Platão.

aMetafísica

Estudo da Filosofia que busca o princípio de todas as coisas, ou seja, tudo o que transcende a Física. A palavra tem origem grega (meta significa além e physis, Física). Aristóteles foi o filósofo que pensou e produziu mais conhecimentos sobre metafísica na Antiguidade.

A

*Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo e escritor. Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo (PUC-SP). Tirou seu “pós-doc” pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sua livre docência pela Unesp, onde também foi professor titular concursado. Paulo Ghiraldelli é bacharel em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e licenciado em Ed. Física pela Escola de Ed. Física incorporada à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente, Paulo Ghiraldelli Jr. dirige o Centro de Estudos em Filosofia Americana. Também é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nas cadeiras de Filosofia da Educação e Sociologia da Educação

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outro enFoQue

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Teatro e

Filosofia:

relações perigosas? A busca incessante desses dois segmentos pelo significado original do ser. Paulo Roberto Monteiro de Araujo*

O

teatro em sua origem está vinculado ao processo de criação do espírito grego. Processo esse que mostra a capacidade do grego antigo de criar formas artísticas cujas preocupações eram dar conta das contradições humanas. O homem grego teve que criar o teatro para poder enfrentar o sofrimento da existência humana, sem cair em formas maniqueístas no sentido da moral ocidental. Sem a ideia de bem ou de mal, o grego elaborou, por meio do pensamento mítico ou mágico, um universo artístico em que os instintos humanos pudessem ter a liberdade de se expressar em toda a sua diversidade. Seguindo o pensamento mítico, o teatro grego acompanhou a lógica do concreto no sentido de não haver a ideia de representação

em relação à vivência humana. Desse modo, o teatro grego expressa, sob a forma da criação artística, o viver humano em todas as suas dimensões: do amor ao ódio, do perdão à vingança. É nesse aspecto da expressão da vivência em seu estado original que podemos relacionar teatro e Filosofia não somente na dimensão do belo, mas, antes, na preocupação com o Logos, isto é, com o processo significativo ou racional do Cosmos. Heráclito a (500 a.C.), como um dos fundadores do pensamento filosófico, desenvolveu a ideia do homem acompanhar a racionalidade das coisas em sua totalidade. Apesar de Heráclito ter sido considerado hermético em seu tempo, o que ele propunha era que o homem seguisse a razão das coisas que aparecessem na totalidade cósmica. FilosoFIA | Conhecimento Prático | 45

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a Heráclito

Nascido em Éfeso, região da Jônia, por volta de 540 a.C., é um dos mais importantes filósofos pré-socráticos. Ele ficou conhecido como o pai da dialética, pois aborda a questão da unidade permanente do ser versus a mutabilidade das coisas transitórias. Rejeitava a vida pública, desprezava a plebe, os antigos poetas, além de ser contra os filósofos de seu tempo e a religião.

a Dionísio

Divindade grega, era filho de Zeus e da princesa tebana Semele (filha de Cadmo e Harmonia), único deus filho de uma mortal. Também era conhecido como Baco, deus do vinho e do prazer. Os rituais religiosos dedicados a Dionísio eram conhecidos como os Mistérios Dionisíacos.

a Sófocles

Dramaturgo da Grécia Antiga (496 a. C. – 406 a. C.). Junto de Eurípedes e Ésquilo, ficou conhecido como um dos grandes representantes do teatro grego antigo. Suas peças retratam personagens nobres e da realeza, entre as quais se destacam Filoctetes, Édipo em Colona e Édipo Rei.

Não é por acaso que Heráclito diz em um de seus fragmentos que o homem deve acompanhar aquilo que é comum. Ao expressar o ato pensante de seguir aquilo que é comum, Heráclito traz à tona a raiz da Filosofia, que é o voltar-se para o fundamento racional do real. Tal fundamento racional é comum a todos os homens, os quais devem aprender a superar as suas opiniões ou visões particulares sobre a realidade. Daí Heráclito brincar com a tolice humana que se limita à dimensão do senso-comum, cuja determinação é entender as coisas de forma superficial e unilateral. A contribuição de Heráclito para o amadurecimento da Filosofia em seus primórdios está no não medo de apreender as raízes do real em suas contradições. Como ele mesmo diz, a mais bela harmonia nasce da luta dos contrários. É justamente nessa luta dos contrários que o teatro encontra o seu pilar, o qual sustenta todos os propósitos para captar e expressar esteticamente a realidade dos instintos humanos. É esse mesmo pilar que afirma a necessidade da criação de uma cultura estética no Ocidente, em que a contradição precisa ser compreendida não como o ilógico ou o psicótico da mente humana, mas como a própria vida em seus vastos ramos de possibilidades de ser. Ganhar o estatuto de ser, como humano, é estar no universo da contradição em toda sua dimensão trágica, pois é esta que motiva o processo criador do teatro. As duas faces Em Nietzsche, arte trágica apreende a vida trágica do mundo. Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, a ascensão e a decadência de tudo quanto é finito. O sentimento trágico da vida é antes a aceitação da vida, a jubilosa adesão também ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio. Vida e morte são irmãs gêmeas, arrastadas num ciclo misterioso de ascensão e de decadência. Ao mesmo tempo que surge composição de formas, outras se desagregam.

Quando uma coisa vem à luz, outra tem de se afundar nas trevas. Por outro lado, luz e trevas, formas e sombras, ascensão e declínio constituem apenas faces da existência em sua multiplicidade de possibilidades de ser. A vida infinita é ela própria a construtora, a organizadora que fixa formas para seguidamente as destruir. Ainda no dizer de Heráclito, o caminho ascendente e o caminho descendente são um e o mesmo. Não por acaso que Apolo e Dionísio são considerados metáforas dos instintos estéticos antagônicos dos gregos. Apolo simboliza o instinto plástico vinculado à clareza e à composição harmoniosa. Em contrapartida, Dionísio a expressa o caótico e a desmedida, principalmente no que se refere à sexualidade. Daí Nietzsche apontar que a cultura grega gozava da bênção das grandes potências da arte. O apolíneo contraria todo o dionisíaco e vice-versa; a inimizade reina entre estas duas forças opostas: repelem-se e combatem-se mutuamente. No entanto, elas não podem existir uma sem a outra. O grego conheceu e sentiu as angústias e os horrores da existência em sua raiz contraditória.

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Contradições da existência É com Sófocles a (500 a.C.) que podemos compreender melhor as contradições humanas em toda a sua profundidade existencial. Seja em Édipo Rei, seja em Antígona (para citar duas peças de sua trilogia), Sófocles constrói uma forma trágica que consegue captar de modo contundente as tensões instintivas humanas. Édipo, que mata seu próprio pai, casando em seguida com a mãe, expressa a impossibilidade do homem de fugir de seu destino (moira). Lembremos que Édipo foge da casa de seus pais adotivos temendo matar o pai. Tal temor se devia à consulta que Édipo havia feito a um oráculo, que previra o referido assassinato. Ao fugir, Édipo não se dá conta de que estava indo em direção ao seu destino trágico. Apesar de decifrar o enigma da Esfinge que assolava Tebas com pragas, Édipo não consegue decifrar o seu próprio ato de assassinar o pai (biológico). A capacidade de decifrar enigmas por meio de uma visão clara não evita que Édipo realize o que estava previsto. O trágico em Édipo Rei não pode ser evitado. Eis o motivo

de Édipo, ao final da peça, furar os olhos em um ato de demonstração de que não adianta sermos capazes de ver as coisas de forma clara ou mesmo interpretá-las com segurança, pois a vida em sua determinação contraditória desfaz qualquer ato humano. Já em Antígona, a questão do trágico se encontra na desmedida por parte dos personagens Antígona e Creonte em suas ações. Sobrinha e tio lutam por defender formas morais diferentes. Antígona luta por uma moral familiar ao decidir cumprir o dever de enterrar o irmão, morto em uma batalha, que tinha como propósito recuperar o poder do pai (Édipo). Desrespeitando a proibição do Estado de enterrar o irmão, considerado traidor, Antígona entra em um turbilhão de ações que a levam à condenação de ser enterrada viva. Creonte, por sua vez, ao decidir condenar a sobrinha à morte de um modo tão brutal, também entra em um turbilhão de ações desmedidas. As consequências das ações de Creonte, defensor da moral do Estado, é o suicídio tanto de seu filho, após este tentar, sem sucesso, interceder pela noiva (Antígona), como de sua esposa, que se mata ao ver o filho morto. Sófocles, ao tratar das ações em Antígona, reforça a estrutura finita do humano diante das contradições que regem a existência em sua multiplicidade infinita. Não é sem propósito que Sófocles salienta que agir é muito perigoso, mas que não é possível não agir. Diante da dimensão medonha da vida, o teatro grego descobre o caminho que leva não à cura de todas as feridas das contradições humanas, como gostaria Hegel, mas a uma forma de saber, cuja base está no respeito àquilo que não pode ser controlado: a vida. É nesse aspecto que a Filosofia pré-socrática, na figura de Heráclito, se coaduna com o teatro em sua origem. No entanto, apesar de passado vários séculos, Filosofia e teatro procuram em um sentido heideggeriano apreender o significado original do ser. Seja a Filosofia em sua reflexão conceitual, seja o teatro em sua dimensão artística.

ARAUJO, Paulo Roberto M. de. Identidades Contemporâneas. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2006. BRANDÃO, Junito. Teatro Grego – origem e evolução. São Paulo: Ars Poética, s/d. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1998. NIETZSCHE, Friderich. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

REFERÊNCIAS

Desse modo, para que fosse possível viver, o grego teve de criar uma estética teatral que pudesse dar conta da unidade da vida e da morte, ou ainda da tensão entre os instintos.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

*Paulo Roberto Monteiro de Araujo é docente do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie

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ponto de vistA

A religião sob o martelo

filosófico Por que, até hoje, ela nunca promoveu efetivamente a elevação ética e espiritual do ser humano como deveria. POR JAYA HARI DAS*

O

cidadão cedeu seu direito à liberdade ao Estado, enquanto o homem, seu direito ao autoconhecimento à religião. Algumas poucas nações podem, categoricamente, vangloriar-se de terem acertado no primeiro caso, mas quase nenhuma haverá de admitir que o mesmo ocorreu com elas no segundo. Esperar que os governos satisfizessem as necessidades básicas da sociedade agora parece tão vão quanto achar que as religiões institucionais fossem modelos para a formação do homem íntegro. Aliás, se esta análise for feita no âmbito ocidental, onde Estado e Igreja, por longo tempo, andaram de

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mãos dadas, o quadro que se apresentará é ainda mais negativo. Pelo menos, é a conclusão a que se chega, quando se perscruta resumidamente a história do homem em busca de sua felicidade e de sua essência – uma epopeia espiritual, repleta de derrotas e conquistas, de revoltas e sacrifícios, de crenças e desilusões, protagonizada por homens simples e “avatares a”. Durante um longo período de obscuridade – da Pré-história até o surgimento da “razão” – muita coisa se produziu na mente humana e no mundo e solidificou-se como “verdade”. Exemplos disso são os mitos e os oráculos, que surgiram como pura necessidade de preencher o vazio da falta de explicação para alguns eventos dentro e fora do próprio homem. Se, por um lado, eles eram a única possibilidade de demonstrar a verdade, por outro, também davam espaço para a manipulação dessa verdade por parte dos sacerdotes, seus intérpretes. Desta forma, por falta de explicações melhores (assim como de uma exigência intelectual não desabrochada até então), quem tinha (ou tomava para si) a “autoridade de interpretar” exercia o poder de “revelar a verdade”. No mais das vezes, porém, a verdade estava longe de tudo aquilo que era dito ou ensinado, o que fez, desde então, com que a mentira e a ignorância andassem definitivamente de mãos dadas (mas quem haveria de suspeitar e questionar?!). Foi, provavelmente, nesses obscuros momentos da História que, assombrados por seus sonhos, suas visões, seus temores e suas superstições, aqueles homens de então se viram forçados a “inventar” suas “Entidades Superiores”, suas “Divindades”, seus “deuses e deusas” – uma forma de aliviarem seus espíritos, açoitados pelo terror do “desconhecido”. Assim, deram nomes, formas e atributos a tais seres sobrenaturais e iniciaram um aglomerado de práticas, cada uma das quais supostamente úteis para agradar ou aplacar a cólera dos tais “Senhores Invisíveis”. FilosoFIA | Conhecimento Prático | 49

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a Avatares

Grandes mestres, considerados como encarnações da Divindade. De acordo com a crença oriental, são exemplos desses mestres, que sempre vêm à Terra promover uma limpeza espiritual: Jesus Cristo, Buda e Krishna.

A ferro e fogo Esses ritos foram sendo aprimorados e difundidos entre os povos primitivos, passando a ser praticados rigorosamente, como se, na falta deles, algo de muito ruim pudesse acontecer. Tais práticas ritualísticas certamente se modificaram ao longo do tempo, em razão da mistura de povos (conquistadores e conquistados) e da necessidade de adequação, de atualização dos costumes e dos padrões morais e culturais. No entanto, os elementos fundamentais de sua criação (poder e domínio) e os de sua manutenção (temor e adoração) continuaram os mesmos, e assim, hoje em dia, não importando a que culto esteja ligado, o fiel é um “náufrago”, que boia em pleno mar, segurando-se em duas pequenas tábuas, o medo e a esperança. Foi, sem dúvida, dessa forma que tais cultos se perpetuaram até nossos dias, passando a ser chamados de “religiões”, muito bem guarnecidas pelos “senhores da verdade” – aqueles que se apropriaram dos ensinamentos dos “avatares” e, mantendo o rótulo, porém, trocando o conteúdo, venderam (e ainda vendem) “frascos da verdade” nas praças de mercados. E, apesar de todos os males que têm causado ao homem, em particular, e à Humanidade, em geral, por incrível que pareça, ainda conquistam adeptos (mesmo entre os homens mais ilustres e ilustrados deste planeta). Sem qualquer conhecimento sobre o que realmente foi dito e feito pelos verdadeiros mestres da Humanidade (os avatares ), esses crentes de fé cega, seja pela condição miserável de suas vidas, seja por falta de acesso a outros escritos que confrontam as versões “oficiais” desses credos, nem suspeitam que tais doutrinas, longe de promoverem a elevação espiritual do ser humano, ocupam-se prioritariamente em tomar para si o monopólio da Verdade, produzir mentiras metafísicas, acobertar crimes contra a Humanidade, promover guerras contra os opo-

sitores de suas convicções, impedir o avanço do conhecimento e do autoconhecimento (pois, com a iluminação interior e exterior, suas tramas falaciosas viriam à luz), entre outros delitos de mesmo cunho. As vítimas dessas doutrinas falaciosas não se encontram apenas entre os homens comuns, muitos filósofos e pensadores não foram capazes de se desvencilhar das malhas desses credos perniciosos; não perceberam nem intuíram os males advindos dali. Felizmente, outros esclarecidos não só enxergaram tais barbáries, como também se recusaram a fazer parte delas e denunciaram-nas explicitamente, como é o caso do britânico Bertrand Russell a. São suas as palavras: “A igreja é perniciosa não apenas no que diz respeito à intelectualidade, mas também à moralidade”. Tal sentença é fortemente explorada ao longo de toda sua argumentação e o pensador amplia sua crítica à religião institucional ao dizer: “Minha visão pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio a. Vejo-a como uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável para a raça humana. Não posso, no entanto, negar que ela realizou, sim, algumas contribuições à civilização. No início, ajudou a estabelecer o calendário e fez com que os sacerdotes egípcios relatassem eclipses com cuidado tal que, com o tempo, tornaram-se capazes de prevê-los. Estou pronto a admitir esses dois serviços prestados, mas não sei de mais nenhum outro”. Busca pela verdade De um lado, não faltam, na História da Humanidade, homens cuja espiritualidade é inquestionável; homens cuja vida foi, em si mesma, uma espécie de “religião”. Homens que pareciam nada ter de especial, homens comuns, que levavam uma vida simples e normal, mas que traziam dentro de si a cha-

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ma que acalenta a sincera busca da Verdade – a ânsia de encontrar sua “essência como centelha divina”. Essa busca, inevitavelmente, aos poucos, transforma a vida simples desse buscador em uma “via para o Essencial Absoluto”, produz, na história desse “peregrino do espírito”, “o momento do insight”, “o ponto de mutação”. Assim foi para Agostinho de Hipona (354–405), quando vivenciou sua própria “experiência de Damasco” (referência à conversão de Saulo, de perseguidor de cristãos a apóstolo do Cristo, passando a chamarse Paulo). Agostinho, aquele jovem buscador, conhecia suas limitações, suas fraquezas, suas imperfeições. Entre lágrimas de dor e de amea­çadora desesperança, ele sentencia, como um ultimatum: “Noverim me, noverim Te!”, ou seja: “quero saber quem sou e quem és Tu!”. Só então compreende que a busca da Verdade é a busca do homem por si mesmo, pois a Verdade só pode ser encontrada no âmago da alma humana – “qui novit veritatem, novit aeternitatem”. Ao ser perguntado, “o que lança o homem para além de si mesmo, à procura de Deus?”, Agostinho devolveu a seguinte resposta: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te” – que quer dizer: “Tu nos fizeste para Ti e o nosso coração permanece inquieto enquanto em Ti não repousar” (Confissões, 1, 1.1). Apesar de meritórios exemplos de homens que se pode elencar, dentre os mais valiosos para o cristianismo, assim como para outros credos religiosos, por outro lado, não faltam homens cuja indecência, perversidade e ambição tentaram, pretensiosamente, esconder sob o manto sacerdotal. Não faltam no mundo seitas e religiões que abrigam em seu seio a pior espécie de homem, os piores assassinos, os maiores corruptores dos mesmos valores que fingem defender – a vida, a honra e a dignidade humanas. Dos pedófilos da cristandade aos

radicais do Islã, ainda resta um cortejo de falsos milagreiros, profetas do fim do mundo, santos dos últimos dias, gurus de Rolls-Royces, corretores das moradias celestiais, sacerdotes do capital ilícito e discípulos dos psicotrópicos, entre outros. “Sobrecarregada está a terra dos muitos-demais”, assim nos alertara o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, em seu Assim falou Zaratustra, contra essa dissimulada espécie de “rebanho”. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”, também não custa acrescentar. O afã indomável, que há no ser humano, de retornar ao seio de sua “matriz” é legítimo, mas, ao mesmo tempo, torna-o vulnerável à malignidade dos prestidigitadores espirituais. Ao cair nas malhas dessa religiosidade de mercado, os denominados “fiéis” nem sequer percebem a distância que há entre os ensinamentos dos grandes mestres da humanidade (os avatares) e as doutrinas de homens comuns a que se fidelizaram. O que me faz recorrer, novamente, a Bertrand Russell, na obra já citada, ao dizer: “Peguemos como exemplo o caso que mais interessa aos integrantes da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos evangelhos, têm tido extraordinariamente pouco a ver com a ideia dos cristãos. A coisa mais importante sobre o cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, e sim a Igreja, de modo que, se formos julgar o cristianismo como força social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de material”. O pensamento do ilustre britânico não se restringe a essa “fissura” cristã, ou seja, essa “sutil” diferença entre o que é propriamente do Cristo e o que é sumariamente da Igreja (lembremos da exortação do Nazareno: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus”). Um pouco mais adiante, na mesma obra, Russell acrescenta: “O que é verdadeiro a respeito do cristianismo é igualmente verdadeiro a respeito do budismo. Buda

a Bertrand Russell

(1872–1970)

Filósofo, matemático e prêmio Nobel de Literatura de 1950. Em seu livro Porque não sou cristão (L&PM Editores), que traz logo em seu frontispício o aviso: “Um livro que coloca ao leitor questões que nunca mais poderão ser ignoradas”, o nobre pensador desfia um novelo de razões pelas quais não é mais uma presa do cristianismo e considera os males causados pela principal religião do Ocidente.

a Lucrécio

Titus Lucretius Carus foi um poeta e filósofo latino que viveu no século 1 a.C. Adepto do epicurismo, acreditava que a corrente era a chave que poderia garantir a felicidade humana. Por meio da filosofia epicurista, propôs-se a libertar os romanos do domínio religioso. FilosoFIA | Conhecimento Prático | 51

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era amável e iluminado; em seu leito de morte, riu dos discípulos que o julgavam imortal. Mas o sacerdote budista – tal como ele existe, por exemplo, no Tibet – tem sido obscurantista, tirânico e cruel no mais alto nível. Nada existe de acidental em relação a essa diferença entre uma igreja e seu fundador”. Dogmas institucionais Peço licença ao nobre pensador britânico apenas para fazer uma pequena ressalva sobre seu texto: nenhum dos avatares (Cristo, Buda ou qualquer outro) foi fundador de qualquer das pretensas religiões institucionais, que se apropriaram e monopolizaram seus nomes, suas vidas e seus ensinamentos (este é outro fato que os rebanhos de fiéis jamais se preocuparam em constatar); enquanto os ensinamentos desses grandes mestres tendiam para a libertação de seus seguidores do jugo do autoritarismo político, social e religioso e para a boa relação entre os povos, essas instituições religiosas transformaram em dogmas ou em “mistérios divinos” cada palavra proferida, criando dissensões e promovendo a intolerância entre as nações de credos diferentes, apenas para favorece­­rem-se e firmarem-se como “donas da verdade” e, assim, dominarem seus rebanhos de crentes. Dito isto, retorno a Russell, para “ouvir”, mais uma vez, o próprio filósofo dizer aquilo que, com minhas palavras, talvez soasse sem o mesmo brilho: “Logo que se supõe que a verdade absoluta está contida nos dizeres de certo homem, eis que surge um corpo de especialistas para interpretar seus dizeres, e esses especialistas invariavelmente adquirem poder, já que detêm a chave para a verdade. Assim como qualquer outra casta privilegiada, usam seu poder em benefício próprio. São, no entanto, sob certo aspecto, piores do que qualquer casta privilegiada, já que seu negócio é expor uma

verdade imutável, revelada de uma vez por todas em perfeição absoluta, de modo que se transformam necessariamente em oponentes de todo progresso intelectual e moral”. Questionada mais a fundo, mais filosoficamente, esse tipo de religiosidade institucional, no mais das vezes, se demonstra, além de falaciosa, ilusória, como podemos perceber nas palavras do filósofo de Königsberg, Immanuel Kant (1724–1804), em seu A Religião nos Limites da Simples Razão: “Ora, considerar de uma maneira geral essa fé estatutária (que, sempre limitada a um povo, não pode encerrar a universal religião do mundo) como essencial para o serviço de Deus e fazer dela a condição suprema para que o homem seja agradável a Deus, aí está uma ‘ilusão religiosa’, e conformar-se a ela constitui um falso culto, ou seja, uma falsa adoração a Deus que é, na realidade, um ato contrário ao culto verdadeiro exigido pelo próprio Deus”. Como disse já anteriormente, outros homens não se deixaram apanhar nas teias dessa aranha hipnotizadora que é a religião institucional, a despeito dos males e das perseguições que sofreram por causa disso. Todos nós, homens e mulheres do Ocidente, sabemos da chamada “caça às bruxas” da Igreja Católica Apostólica Romana, que, com sua “Santa Inquisição”, também perseguiu e torturou pensadores e cientistas que estavam “em desacordo” com suas ideias, interesses e ideais. Os homens e mulheres, de todos os tempos, nos quatro cantos do mundo, mormente aqui no Ocidente, que se preocupavam ou se ocupavam com “fazeres benéficos” ao avanço sociocultural e espiritual do Homem, sentiram na pele os entraves que representam essas grandes religiões ao progresso científico e à busca filosófica do ser humano por seu fundamento verdadeiro. Um desses homens foi Franciscus Van den Enden (1602–1674),

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*JAYA HARI DAS é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, professor de Filosofia e de Língua Inglesa

KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. São Paulo: Editora Escala. NIETZSCHE, Fridriech. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2004. NIETZSCHE, Fridriech. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2007. Bhagavad Gita. Editora Pensamento. Bíblia Sagrada. Editora Ave-Maria. ESPINOSA. Coleção Os Pensadores, Nova Cultural.

A

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou da Educação. Martins Editora.

REFERÊNCIAS

também conhecido como Affinius (seu nome latinizado), instrutor de latim de Baruch de Spinoza e influenciador de sua vertente filosófica. Van den Enden considerava que “se a igualdade e a iluminação, no sentido de compreender a verdade das coisas, são pré-requisitos essenciais para a riqueza comum e duradoura, então, uma república viável é inconcebível sem o fim da religião organizada, a qual não é nada além de um instrumento político para disciplinar e controlar o povo por meio da ignorância e credulidade”. Outras vozes se levantaram contra o poder da Santa Igreja e deixaram sua marca de oposição em frases bem objetivas. Friedrich Nietzsche (1844–1900), por exemplo, declarou a morte da Igreja de Roma e suas dissidências a partir da morte de seu fundamento capital – “Deus está morto!” (Assim Falou Zaratustra); Karl Marx (1818–1883), percebendo a forma como a religião destrói no homem seu ímpeto de revolução diante das injustiças sociais, bradou: “A religião é o ópio do povo!” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); rebelando-se contra a intermediação de certos homens entre o buscador da Verdade e Deus, Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) reclamou: “Quantos homens entre mim e Deus!” (Emílio, livro IV). Enquanto multidões de fiéis incautos se acotovelam para receber a bênção, a instrução ou o darshan de seus padres, pastores e gurus, na verdade, o que temos é um sem-número de inocentes, que se deixam enganar por milagres teatrais, que sofrem a usurpação de seus bens ou que são iludidos com o fato de que foram tocados por uma encarnação divina. É claro que deve haver autênticos “avatares”, sacerdotes e gurus, assim como há autênticos buscadores da Verdade, mas já é mais que hora de separarmos o joio do trigo.

RUSSEL, Bertrand. Porque não sou cristão. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.

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Arte como da natureza Será que a pintura e a poesia trágica nos afastam da verdade e da experiência do real?

Por Paulo Henrique Fernandes Silveira*

N

os relatos de sua viagem pelo Brasil, registrados no livro os Tristes Trópicos, o antropólogo

Claude Lévi-Strauss a

narra um incidente curioso. Em Mato Grosso, foi ao encontro dos Nambiquara, uma tribo indígena que não sabia escrever, mas que, ao ser presenteada com papel e lápis, pôs-se a imitar os gestos daquela gente francesa cheia de pompa que anotava tudo em seus pequenos cadernos. A escrita tem muitas funções: expressar sentimentos, criar formas de comunicação, relatar experiências, etc. Os índios pensaram tratar-se de uma brincadeira. O chefe dos Nambiquara foi mais além e intuiu que a escrita poderia ser um instrumento de dominação. E, ao imaginar que sua liderança estava ameaçada, enfrentou o responsável pela expedição estrangeira com a mesma arma. FilosoFIA | Conhecimento Prático | 55

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a Claude

Lévi-Strauss

(1908–2009) – professor e filósofo francês, além de grande estudioso da Antropologia e um dos grandes pensadores do século 20. Ficou famoso no Brasil por meio do livro Tristes Trópicos (1955), publicação na qual relata as várias expedições que fez ao Brasil Central. Outro foco de estudo do pesquisador foi o comportamento dos índios americanos, método batizado de estruturalismo.

Antes de conhecer as condições básicas para eficácia da escrita, como o acordo sobre a significação das letras, o chefe dos Nambiquara entendeu que a coisa também funcionava exteriormente: alguém lê um papel para outra pessoa que o compreende ou finge compreendê-lo, e aceita aquilo que o conteúdo do papel determina, como quem recebe um chamado dos deuses. Essa história dos Nambiquara nos ajuda a entender as críticas de Platão à pintura e à poesia trágica. O problema dessas duas artes, afirma o filósofo, é que elas são a mimese da mimese. Sigamos um exemplo que Platão analisa no livro A República: para realizar seu trabalho, o marceneiro deve ter em mente a ideia ou a forma da cama, é essa ideia que indica a finalidade, o telos de sua arte. O pintor sequer precisa ter uma ideia em mente quando imita a cama feita pelo marceneiro. A pintura seria, portanto, uma atividade vã, algo que o artista faz por simples vaidade, uma vez que seu trabalho não tem finalidade alguma. Pior ainda,

sendo a mimese da mimese, ou seja, a cópia da cópia da ideia, a pintura e a poesia trágica nos afastam da verdade e da realidade: “Considera então o seguinte: relativamente a cada objeto, com que fim faz a pintura? Com o de imitar a realidade, como ela realmente é, ou a aparência, como ela aparece? É imitação da aparência ou da realidade?” (Platão. República, § 598 b). Tal como o pintor imita a cama sem saber para que ela serve, os Nambiquara imitam Lévi-Strauss sem saber escrever. À exceção do chefe que intuiu a função política da escrita, os índios tomam sua imitação como uma brincadeira. Que mal há nisso? Por que teríamos de zelar pela realidade das ideias platônicas? Ciente das críticas que Platão faz à mimese dos poetas, no seu Emílio, Jean-Jacques Rousseau também se opõe à imitação sem finalidade: “O homem é imitador, o próprio animal o é. O gosto pela imitação é da natureza bem ordenada, mas, em sociedade, degenera em vício. O macaco imita o homem que ele teme, e

UNESCO/ Michel Ravassard

Lição da escrita “É então que ocorre um incidente extraordinário que me obriga a voltar um pouco. É de imaginar que os Nambiquara não sabem escrever; mas tampouco desenham, com exceção de alguns pontilhados ou ziguezagues nas suas cuias. Porém, da mesma maneira como agi com os Cadiueu, distribuí folhas de papel e lápis com os quais, de início, nada fizeram; depois, certo dia vi-os muito atarefados em traçar no papel linhas horizontais onduladas. Que queriam fazer, afinal? Tive de me render à evidência: escre-

viam, ou, mais exatamente, procuravam dar a seu lápis o mesmo uso que eu, o único que então podiam conceber, pois eu ainda não tentara distraí-los com meus desenhos. Para a maioria, o esforço parava aí; mas o chefe do bando enxergava mais longe. Era provável que só ele tivesse compreendido a função da escrita. Assim, exige de mim um bloco e nos equipamos da mesma forma quando trabalhamos juntos. Não me comunica verbalmente as informações que lhe peço, mas traça no seu papel linhas sinuosas e me mostra,

como se ali eu devesse ler a sua resposta. Ele mesmo se deixa tapear um pouco com a sua encenação; toda vez que sua mão termina uma linha, examina-a ansioso como se dela devesse surgir algum significado, e a mesma desilusão se estampa no seu rosto. Mas não a admite; e está tacitamente combinado entre nós que a sua garatuja tem um sentido que finjo decifrar; o comentário verbal segue-se quase de imediato e dispensa-me de exigir os esclarecimentos necessários” (Lévi-Strauss. Tristes Trópicos, p. 280).

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A vaidade Não se trata de uma crítica geral e irrestrita à imitação. Até as macaquices fazem parte da natureza. O problema está, como já havia afirmado Platão, na vaidade dos imitadores, na ânsia social de se impor aos outros. Acompanhemos o que escreve Jacques Derrida sobre o mesmo texto: “O mal vem de uma espécie de perversão da imitação, da imitação da imitação. E este mal é de origem social” (Derrida. Gramatologia, p. 251). A imitação em si mesma não é um mal. Ocorre que a vida em sociedade acaba estimulando as pessoas a perverterem sua própria capacidade de imitar. O homem deixa de preocupar-se em ser melhor ou mais sábio para querer ser, simplesmente, admirado por seus pares. Por outro lado, sustenta Rousseau, a imitação é fundamental na educação das crianças que consideram seus mestres exemplos de virtude. De nenhuma outra maneira a criança aprenderia a ser generosa. Ao imitar alguém, ela sai de si mesma e escapa do seu próprio egoísmo. Não sei se ficou claro, mas Platão também elogia a mimese, também ele a abraça com o seu logos, com o seu discurso, e antes dele o seu mestre, o poeta Parmênides, que imita ou representa em seus versos a presença de uma deusa ausente, Aletheia, a deusa da verdade. Afinal, o que seria de nossas noites sem as ca-

mas imitadas pelos marceneiros? Sendo a mimese de uma ideia eterna, diz Platão, essa cama é mais real do que a dos pintores. Essa obsessão do filósofo pelo real vem dos versos de outro poeta muito querido na Grécia antiga. Numa de suas odes, esse poeta, Píndaro, concebe o homem como um ser efêmero, literalmente, epi mais hêmera: por um dia (ephemeros). Finda a luz que nos ilumina, afirma Píndaro a, caímos numa noite sombria, o homem é o “sonho de uma sombra”. Bem, podemos imaginar o que teria levado os gregos a temerem a escuridão. De certo, não são os sonhos noturnos que assustam, são os diurnos. Enquanto podemos discernir a vigília do sono, tudo está em calma, o problema é perdermos isso. É nesse contexto que a mimese da mimese é um perigo, o pintor e o poeta embaralham nossas imagens e desfazem o tênue laço que nos liga à realidade. No livre jogo de ser e não ser, o homem pode imaginar que é a própria luz, pode pensar que é Deus, como diz uma canção dos Mutantes. Essa é a tal, a perigosa hubris, a desmedida que teria levado tantos heróis trágicos à loucura e à cegueira. Desmedida de quem não consegue distinguir o semelhante do próprio, indaga Platão: “Porventura não está sonhando uma pessoa quando, quer durante o sono, quer desperta, julga que um objeto semelhante a outro não é uma semelhança, mas o próprio objeto com que se parece?” (Platão. República, § 476 d). Ainda assim, a poesia não seria tão ruim se, antes e depois de um espetáculo, pudéssemos recuperar o discernimento, pudéssemos reencontrar a realidade. Como num sonho que soubéssemos se tratar de um sonho, e que Capitoline Museums

não imita os animais que despreza. Considera bom o que faz um ser melhor do que ele. Entre nós, pelo contrário, nossos arlequins de todo tipo imitam o belo para desagradá-lo, para torná-lo ridículo; procuram no sentimento de sua baixeza igualar-se ao que vale mais do que eles, ou, quando se esforçam por imitar o que admiram, vemos na escolha dos objetos o falso gosto dos imitadores; querem muito mais se impor aos outros ou fazer com que seu talento seja aplaudido do que se tornarem melhores ou mais sábios. O fundamento da imitação entre nós vem do desejo de sempre sair fora de si” (Rousseau. Emílio, p. 108-9).

a Píndaro

Nascido em 518 a.C., em Cinoscéfalos, próxima a Tebas, Beócia, e pertencente a uma família aristocrática, foi um poeta lírico grego e autor de Epinícios ou Odes Triunfais. Foi estudar poesia em Atenas, compondo sua primeira obra com menos de 20 anos. Viveu durante as Guerras Médicas, mas até hoje não se sabe de fato qual a sua posição diante do conflito.

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dele pudéssemos acordar com vida, mais uma vez, cito Platão: “Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), as obras dessa espécie afiguram-me ser a destruição do discernimento dos ouvintes, de quantos não tiverem como remédio (pharmakon) a experiência do encontro com o real (tunkhanei)” (Platão. República, § 595 a). Fora da ficção Seriam mesmo os poetas os grandes vilões dessa história? Pode-se compreender a preocupação do filósofo. Sem a abertura da vigília, o sonho pode se transformar numa prisão, sem o discernimento, a fantasia pode se transformar em loucura. Na primeira parte da Trilogia Tebana, Édipo é alertado inúmeras vezes para sair da história que ele estava trilhando, para não ir até o fim em sua investigação, e acordar daquele pesadelo familiar. Não adiantou: “Terrível presenciar o teu sofrer! De tudo quanto eu vi, o mais terrível! Que delírio (mania), infeliz, te atropelou?” (Sófocles. Édipo rei, vv. 1299-301). Teria faltado à personagem a experiência do encontro com o real, o reconhecimento da existência de uma vida fora da ficção. E se não fosse uma ficção? Justamente, esse é o sentido trágico dos versos de Píndaro: perceber que nos trancafiamos numa caverna de sombras, numa ficção que chamamos de realidade. Com suas pinturas e poesias, a mimese da mimese embeleza a ficção e nos desvia da possibilidade do encontro. Somente dando as caras com o real, o verdadeiro artista terá condições de realizar a boa mimese, a mimese do que hoje e sempre ainda vive. Como fazem aqueles que não têm a sorte ou azar (tukhê) de encontrar o real (tunkhanô)? Dialogam, questionam e são questionados por filósofos libertários. Mesmo assim, é preciso ter a sorte de encontrá-los, e ter a disposição para ouvi-los.

Mas é possível abordar esse tema por outra perspectiva: a de Aristóteles. Percebemos, nos primeiros textos desse filósofo, o impacto das ideias de Píndaro e de Platão, este último, seu mestre de muitos anos de Academia. Num livro de juventude, o Protrecticus, que poderíamos traduzir por Exortação à Filosofia, Aristóteles retoma o tema da vida como um sonho, mas acrescenta algo àquilo que os outros dois já haviam percebido: de um modo geral, muitos acham um bom negócio viver nesse mundo insone, uma vez que, anestesiados para o real, sofrem menos. No entanto, sustenta Aristóteles, essa anestesia, esse desligamento dos sentidos, não vale a pena. Nas palavras do filósofo: “Afirmamos, então, que vive melhor o desperto que o insone, e o que ativa a alma melhor que aquele que apenas a possui, pois é por causa do primeiro que dizemos que o segundo vive, já que este é igualmente capaz de sofrer e de poetar” (Aristóteles. Protrepticus, § 83). Felizmente, nem todos têm uma história familiar tão complicada como a de Édipo, ainda que muitos passem por ela em sonho. Em certos casos, uma vida desacordada até pode ser tranquila. Isso é pouco, acredita o filósofo, vive melhor aquele que encara a realidade, sofre e poetiza. Esse sofrer traduz o verbo paskhô, que forma o substantivo pathos: paixão, afecção. O poetar, poetizar, ou, simplesmente, fabricar, traduz o verbo poieô, que forma o substantivo poiêsis: fabricação. “Por suposto”, afirma Aristóteles na sua Metafísica, “está claro que, em certo sentido, é uma e a mesma potência a do poetar (poeîn) e a do sofrer (paskhein)” (Aristóteles. Metafísica, § 1046 a). Supondo que Aristóteles tenha razão e nossa capacidade de sofrer se confunda com a de poetar, que vantagem? Quem quer ser um poeta sofredor? Esse é o ponto, se podemos duvidar do que chamamos de realidade, podemos procurar nosso modo de viver e de ser feliz, e ninguém escolheria uma vida insone, afirma Aristóteles:

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“Assim é que todos os homens, na medida em que percebem o sentido das coisas e conseguem experimentar algo real, pensam que tudo o mais não tem nenhum valor, é por esse motivo que nenhum de nós suportaria estar embriagado, nem ser uma criança do começo ao fim (telos), por toda a vida (bios)” (Aristóteles. Protrecticus, § 100). A experiência do real Esse texto de Aristóteles é tão bonito que já ia abandonando minhas dúvidas. Retomo-as, então. Que sofrimento é esse? Que poetar torna-se possível a partir da experiência do real? E já que ousamos indagar, o que é o real? Se, de fato, estamos, cada qual e a sociedade como um todo, imersos num sono profundo, o simples movimento de abrir os olhos provocaria dor e nos faria vivenciar o mesmo trauma de um recém-nascido. Tivesse acordado a tempo, Édipo também sofreria as dores de um parto, mas se libertaria daquele sonho. De certo modo, a personagem de Sófocles desperta, mas ela o faz de maneira trágica, como se não houvesse outra opção, como se fosse arrastada pela deusa da Necessidade: Anankhê. Apenas as marionetes (automatos), afirma Aristóteles, são controladas pelo outro (Aristóteles. Metafísica, § 983 a). Os homens não precisam disso, ainda que muitos se mantenham infantis e dependentes de alguém. É isso o que se passa com Édipo, como diria Aristóteles, ele age do começo ao fim como uma criança que os pais precisam carregar no colo. Inúmeras perspectivas são abertas no decorrer da história, mas Édipo não as enxerga. Por aí vislumbramos o que a realidade nos apresenta: o poder de ser livre. Quero dizer com isso que a realidade não precisa, necessariamente, nos expulsar de uma história. Uma pessoa livre pode recriar o seu papel no interior de um sonho, e acordar na mesma história. É por esse motivo, a liberdade, que Aristóteles reabilita a pintura e a poesia trágica. Para Platão, a mimese da mimese, como a cama de Vincent Van Gogh, não imita a forma

da cama real e não tem a serventia de uma cama natural (Platão. República, § 597 b). A pintura e a poesia coabitam o mundo alienado dos sonhos, por isso devem ser evitadas. No Protrecticus, Aristóteles defende que a finalidade da obra de arte (tekhnê) não se esgota em sua serventia. A obra de arte deve abrir nossos olhos para a liberdade. Como mimese de uma natureza (phusis) que está sempre gerando, criando, fazendo nascer, a pintura e a poesia trágica podem desvelar essa mesma potência nos objetos que já conhecemos. Nesses termos, é livre a pessoa que percebe o que ainda pode ser transformado no interior das relações sociais em que se encontra. Para o espanto de Platão, esse artista visionário de Aristóteles poetiza sobre a natureza, recuperando nos objetos já existentes sua matéria bruta, nas palavras do filósofo: “Um homem nasce de um homem, mas uma cama não nasce de uma cama, por isso, dizemos que a natureza de uma cama não é a configuração, mas a madeira, pois, se ela gerasse não nasceria uma cama, mas a madeira” (Aristóteles. Física, § 193 b). A cama de Van Gogh não serve para dormir, mas nos ajuda a despertar para a natureza. Segundo o filósofo Martin Heidegger, a obra de arte vive “no caráter maciço e pesado da pedra, no caráter firme e maleável da madeira,

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na dureza e no brilho do metal, no luminoso e no escuro da cor, no timbre do som e no poder de nomear da palavra” (Heidegger. A Origem da Obra de Arte, p. 44). Vale ressaltar que, para Aristóteles, a matéria (hulê) é mais do que a pedra, a madeira, o metal ou a palavra, a matéria é a disposição para as formas. Esconde-se, na mecanicidade dos hábitos e na serventia dos objetos, um campo enorme de possibilidades. Ao desvelar a matéria das coisas, a obra de arte mostra o que há além do que estamos acostumados. O que isso é diferente de Platão? Se as condições para a liberdade estão inseridas na própria história, não é preciso sonhar com uma realidade alhures, como Platão sugere na aleARISTÓTELES. Física. Tradução e notas de Guillermo Echandía. Madrid: Editorial Gredos, 1995. __________. Metafísica. Tradução e notas de Valentin García Yebra. Madrid: Editorial Gredos, 1998. __________. Poética. Tradução e notas de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008. __________. Protréptico. Tradução e notas de Carlos Rodríguez. Madrid: Abada Editores, 2006.

REFERÊNCIAS

*Paulo Henrique Fernandes Silveira é doutor em Filosofia Antiga pela Universidade de São Paulo, professor e orientador no mestrado em Filosofia da Universidade de São Judas Tadeu, colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes e professor do Colégio Miguel de Cervantes. E-mail: paulohenrique.silveira@ bol.com.br

BERGSON, H. O Riso. Tradução de Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’água, 1991. BORGES, J. Elogio da sombra. Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques. Rio de Janeiro: Editora Globo, s/d. DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine

goria da caverna. É possível retomar a vida e a liberdade na própria história. De certo modo, foi isso o que os Nambiquara fizeram, com sua imitação, eles desvelaram o que, para muitos, passa despercebido no uso diário da escrita: a possibilidade da brincadeira. Atento às lições de Aristóteles, o escritor francês Henri Bergson vislumbrou no riso uma ferramenta tão libertária e transformadora quanto a mimese da natureza: “O rígido, o já feito, o mecânico, por oposição ao flexível, ao permanentemente cambiante, ao ser vivo, a distração por oposição à atenção e, finalmente, o automatismo por oposição à atividade livre, eis, em suma, o que o riso sublinha e gostaria de corrigir” (Bergson. O Riso, p. 85).

Ribeiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

HEIDEGGER, M. A Origem da Obra de Arte. In: Caminhos da Floresta. Tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.

NOVALIS, F. Pólen e Observações Intremescladas. Tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 1988.

__________. A Essência e o Conceito de Phýsis em Aristóteles. In: Marcas do Caminho. Tradução de Enio Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

PAZ, O. Signos em Rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. PÍNDARO. 8ª Pítica, In: Revista da USP, v. 30. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: USP, 1996.

__________. Metafísica de Aristóteles 1-3. Tradução de Enio Giachini. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LACAN, J. O Seminário, Livro 11, os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Tradução de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

ROUSSEAU. J. Emílio, ou da Educação. Tradução de Roberto Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. Tradução de Rosa de

SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

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FILOSOFOTECA

A Filosofia vista de vários ângulos POR GUSTAVO HENRIQUE FERREIRA*

LIVRO  DESTAQUE DO MÊS

Dialética DIALÉTICA NEGATIVA AUTOR: Theodor W. Adorno EDITORA: Zahar ANO: 2009

A

Negativa

Dialética Negativa, penúltimo trabalho publicado de Adorno, pode ser considerada a obra-prima do autor alemão. Desde o ensaio A Atualidade da Filosofia (Die Aktualität der Philosophie), escrito por ele em 1932, e também publicado no livro Philosophische Frühschriften, claramente, é possível notar as preocupações do filósofo quanto à necessidade de se dissipar certos modelos filosóficos idealistas e reconstruir a Filosofia a partir de novos pressupostos e objetivos. No livro, Adorno se opõe, de maneira contundente e bem fundamentada, ao Idealismo, quer seja em sua modalidade clássica, e às suas regras matrizes, quer em formas mais contemporâneas de existência. Assim, em contrapartida aos sistemas filosóficos idealistas, o materialismo dialético tomado como matriz filosófica é a solução cristalizada pelo filósofo para seu projeto de reconstrução e revalidação da Filosofia. Posto

SOBRE O PROJETO Até há pouco tempo ainda inédito, finalmente se encontra no Brasil, publicado pela editora Zahar em 2009, a versão para o português da base fundamental do antissistema filosófico de Theodor Adorno. Tradução de Marco Antônio Casanova e revisão de Eduardo Soares Neves da Silva.

que, no entendimento de Adorno, compete ao filósofo interpretar a realidade em tentativas teóricas a serem aprimoradas pela práxis. Na Dialética Negativa, é criticado ainda o projeto de Filosofia que tende a construir significados da realidade a partir de uma dada perspectiva ou possibilidade de razão. Adorno demonstra como a dialética se tornou seu próprio modelo/padrão para construir o seu entendimento filosófico. A filosofia negativa eleita por Adorno é fragmentada e, também, é ensaística e nisso se distancia totalmente dos propósitos amplos, gerais, abstratos e totalitários do Idealismo. Como bem a editora mesmo informa, Adorno justifica seu procedimento filosófico pondo as cartas na mesa e oferecendo uma metodologia de seus trabalhos materiais. Leitura essencial para os estudiosos do pensamento do filósofo e uma arma vital na tarefa de dar sentido aos tempos modernos.

SOBRE O AUTOR Theodor Wiesengrund Adorno estudou Filosofia, Sociologia, Psicologia e música na Universidade de Frankfurt. Na Alemanha, filiou-se ao Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, à época dirigido por Max Horkheimer. Enquanto crítico cultural, Adorno buscou profundamente interpretar e analisar o desenvolvimento estético tanto para a trajetória civilizatória quanto para o desenvolvimento de uma filosofia da história.

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LIVRO  RECOMENDADOS

CINEFILÔ – AS MAIS BELAS QUESTÕES DA FILOSOFIA NO CINEMA AUTOR: Ollivier Pourriol EDITORA: Zahar PÁGINAS: 260 O livro reúne, em suas mais de 250 páginas, o resultado das iniciativas do professor de Filosofia e cinéfilo Ollivier Pourriol. Lançado na França, em 2008, com o título de Cinéphilo, a obra condensa o experimentado após as sessões de cinema, no MK2, em Paris, espaço onde Purriol ministrava aulas, conferências, conversas e cursos acerca do pensamento humano. Tudo tendo por pressupostos os temas abordados nos filmes exibidos e como base fundamental os saberes modernos de Renné Descartes e Baruch de Spinoza, problematizando os pontos apresentados pelos enredos das obras cinematográficas escolhidas. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Por meio de personagens da cultura pop, com seus dilemas contemporâneos, questões tradicionalmente consideradas ‘difíceis’ chegam até o leitor leigo de forma compreensível, envolvente e sem banalizações. A Filosofia se torna finalmente um conhecimento ao alcance de todos.”

MIRAGEM DE PAZ AUTOR: Guila Flint EDITORA: Civilização Brasileira PÁGINAS: 518 Uma obra indispensável para a compreensão de cicatrizes e de feridas abertas no decorrer do processo que é retratado nesse trabalho da jornalista Guila Flint – correspondente internacional para veículos brasileiros como BBC Brasil e O Estado de S. Paulo. O livro traz uma seleção de artigos, reportagens e entrevistas feitas durante 14 anos, de 1995 até 2009. “Escolhi 315 textos de cerca de 5 mil. São entrevistas, análises, reportagens e boletins, uma variedade que cria dinamismo. Muitos capturam o calor do momento, trazendo personagens israelenses, palestinos e brasileiros”, como define a autora. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Guila Flint acompanha, com sabedoria e um olhar muito pragmático, cada lance diplomático, político e militar desse jogo que continua desafiando os maiores líderes mundiais.”

HENRI BERGSON: CRÍTICA DO NEGATIVO E PENSAMENTO EM DURAÇÃO ORGANIZADORAS: Débora Cristina Morato Pinto e Silene Torres Marques EDITORA: Alameda Editorial PÁGINAS: 278 Henri Bergson, de maneira ímpar, conseguiu se valer dos recursos linguísticos possíveis para perscrutar as dimensões das nossas experiências sensoriais. De modo original e particular, diversas e contundentes noções filosóficas acerca da duração, da memória, da vida, da criação e até mesmo dos conceitos amplamente difundidos como metafísica. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Bergson nos faz pensar sobre nós mesmos, sobre o que somos: nossa dualidade complexa, nossa relação com um universo criador que nos ultrapassa. Provocando espanto, além de revelar o imediatamente dado, mas não constatado.”

KANT E WITTGENSTEIN: OS LIMITES DA LINGUAGEM AUTORA: Maria Clara Dias EDITORA: Multifoco PÁGINAS: 143 A psicóloga e doutora em Filosofia Maria Clara Dias trabalha as lógicas de Kant e Wittgenstein mostrando o quanto a linguagem possui características universais. Nas teses de Ludwig Wittgenstein, surge um dos aspectos mais complexos da sua teoria da linguagem. Para ele, o conceito de jogos de linguagem significa, ao mesmo tempo, a lúcida percepção e a conturbada ligação entre o mundo e a linguagem. Para o referido autor, essa ligação não pode ser expressa na linguagem. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Emanuel Kant e Ludwig Wittgenstein recusam o suporte metafísico que dá origem a doutrina do ceticismo e restituem a possibilidade de um discurso objetivo.”

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DVD  PARA REFLETIR

8 ½ (Oito e meio)

8 ½ (OITO E MEIO) GÊNERO: Drama/Fantasia DIREÇÃO: Federico Fellini ROTEIRO: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi ELENCO: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk, Barbara Steele, Madeleine LeBeau, Caterina Boratto, Edra Gale, Guido Alberti, Mario Conocchia, Bruno Agostini, Cesarino Miceli Picardi, Jean Rougeul, Mario Pisu. ANO: 1963 DURAÇÃO: 138 min

E

m 1950, o cinema foi brindado com a genialidade e a sensibilidade de Federico Fellini. Luci del Varieta – ou, em português, Mulheres e Luzes – (1950) foi o primeiro longa-metragem do cineasta italiano, obra assinada em parceria com o também cineasta Alberto Lattuada (sendo este o oitavo filme de Lattuada e o primeiro filme de Fellini). E nesses termos, depois dessa sua primeira produção, ao decorrer da carreira, Federico Fellini participara (de maneira peculiar) como diretor de outras duas obras: Un Agenzia Matrimoniale (1953) e Le tentazioni del dottor Antonio (1962) que são, respectivamente, episódios das séries L’ Amore in Citta e Boccaccio 70. Já em 1963, Fellini deu início ao seu décimo trabalho. Contudo, levando-se em conta o fato de que o seu primeiro filme foi, ao mesmo tempo, o oitavo longa-metragem de Alberto Lattuada e, por outro lado, também contando como “½” (meio) cada um dos episódios produzidos para

as mencionadas séries, Fellini o chamou de 8 ½. Assim, para computar como “um inteiro”, é necessário somar cada um dos seis filmes dirigidos (exclusivamente) pelo diretor: Lo Sceicco Bianco (1952), I Vitelloni (1953), La Strada (1954), Il Bidone (1955), Le Notti di Cabiria (1957), La Dolce Vita (1960) e adicionar “½” para cada uma das três produções mencionadas anteriormente (Luci del Varieta, Un Agenzia Matrimoniale e Le tentazioni del dottor Antonio) chega-se, por consequência, ao referido 8 ½. Dessa forma, com a película, Fellini produz aquela que é considerada, por alguns críticos, a sua obra-prima. De maneira autobiográfica, Fellini conta a história de Guido Anselmi (interpretado por Marcello Mastroianni), um cineasta em crise de inspiração que não consegue “encontrar a ideia” para seu próximo filme. E, de passagem, literalmente aqui se faz menção direta ao “encontro” nas linhas e com tudo aquilo que, com tamanha propriedade, trata o psicanalista Rollo May na obra A Coragem de Criar.

“De uma crise criativa para uma narrativa. De uma experiência audiovisual para uma magnífica obra-prima”

*GUSTAVO HENRIQUE FERREIRA é cientista político e social, cineasta, fotógrafo e poeta

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DVD  LANÇAMENTO

Nine NINE GÊNERO: Drama w/Musical/Romance DIREÇÃO: Robert Marshal ROTEIRO: Anthony Minghella e Michael Tolkin ELENCO: Daniel Day-Lewis, Sophia Loren, Marion Cotillard, Penélope Cruz, Nicole Kidman, Judi Dench, Kate Hudson, Stacy Ferguson (vulgo Fergie). ANO: 2010 DURAÇÃO: 118 min

Com o intuito de fazer uma homenagem ao cinema italiano, Nine (uma adaptação da peça Nine, estrelada na Broadway inspirada no filme, 8 ½ ,de Fellini) trata da vida do diretor Guido Contini (Daniel Day-Lewis) que enfrenta, ao mesmo tempo (e com todo o peso do mundo sobre os ombros), a crise de meia-idade, um bloqueio de criatividade, complexos e culpas, além de envolvimentos românticos extraconjugais e o estremecer dos alicerces de seu casamento. Assim, entre as “mulheres da sua conturbada vida” se encontram: sua esposa, Luisa Contini (Marion Cotillard); sua amante, Carla (Penélope Cruz); sua musa, Claudia Jenssen (Nicole Kidman); sua confidente e figurinista, Lilliane (Judi Dench); uma jornalista estadunidense especializada em moda, Stephanie (Kate Hudson); a prostituta da sua juventude, Saraghina (Stacy Ferguson, ou Fergie) e a mãe (Sophia Loren).

Distrito 9 DISTRITO 9 GÊNERO: Ação/Ficção Científica/Suspense DIREÇÃO: Neill Blomkamp ELENCO: Sharlto Copley, Jason Cope, Nathalie Boltt, Nick Blake e outros. ANO: 2009 DURAÇÃO: 112 min

Distrito 9 relata como e quando as primeiras formas (inteligentes) de vida alienígena entraram em contato com a humanidade. E tudo isso com transmissão ao vivo pelos mais distintos meios de comunicação. Com uma linguagem provocativa e proficiente, retrata ficção com estética documental; ademais, lança mão de sequências de tomadas à la “jogos de ação e tiro em primeira pessoa”. De modo inteligente, quando trata da perspectiva “de seres extraterrestres”, os realizadores da produção conseguem abordar temas pontiagudos e incômodos como: apartheid, supostos assistencialismos e pretensas ajudas humanitárias, forças internacionais de ocupação e tudo o mais que gravita a constelação formada por Estados beligerantes como matrizes de supostos Estados de bem-estar social, bem como o que envolve o controverso papel da ONU e dos demais organismos internacionais e humanitários.

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RETRATOS

A Filosofia a serviço da

educação FRANCIKELY CUNHA BANDEIRA*

E

specificidade é qualidade daquilo que é específico, o que é particular a uma espécie. Assim, vamos tratar daquilo que é específico da Filosofia e está disponível a serviço da educação, portanto, a atividade investigativa propriamente dita, já que todo estudo inclui o investigar. Falar de Filosofia implica falar sobre vida e tudo que está presente em seu fluxo. Falar de educação é fazer referência ao que se considera fundamental para a formação do indivíduo, isto é, o conjunto daquilo que é essencial para seu desempenho e manutenção na vida como todo. Desse modo, já é possível assimilar a ideia de que a Filosofia é inseparável da educação e, mais que isso, são compreensões interdependentes. Podemos nos remeter ao nascimento da Filosofia para melhor introduzir sua compreensão enquanto instrumento a serviço da educação, por assim dizer. A história da Filosofia nos diz que ela nasce do espanto que é algo natural e constante na vida das pessoas. Foi por meio do espanto que o homem começou a filosofar, quando não encontrou respostas satisfatórias para tantas questões. Foi então a partir da ausência de respostas que o homem se confrontou com sua própria ignorância e, tentando fugir dela, desejou conhecer. Desse modo, a primeira virtude do filósofo é admirar-se e, sendo esta a condição de onde advém a capacidade de problematizar, não se pode pensar em Filosofia sem problematização, o que não

lhe confere, por sua vez, o título de detentora da verdade, mas aquela que a busca. Nada escapa à investigação filosófica. Tratar das especificidades da Filosofia a serviço da educação é, na verdade, uma forma de mostrar como teorias que datam de séculos passados estão vivas no nosso contexto. Qualquer coisa que se tenha intenção de estudar irá exigir esforço do pensamento como meio para atingir o que se pretende. Podemos, assim, entender a Filosofia como ponto de partida de todo conhecimento humano organizado, tendo se ocupado de muitos temas que, por sua vez, estimularam e produziram o vasto campo do saber que conhecemos hoje, dividido em ciências. Na Grécia Antiga, foi alcançado um ideal de educação: a Paideia. Consistia numa educação integral dada ao indivíduo, por assim dizer. A necessidade torna compreensível a Filosofia enquanto fundamento do conhecimento humano e possibilita a introdução de disciplinas filosóficas nos currículos, tendo como resultado, por exemplo, a Filosofia da Educação, Filosofia da História, Filosofia Política, entre outras. Entender a Filosofia e a Educação nesta perspectiva é fazer da Filosofia uma análise crítica, acreditando no importante papel que o estudo filosófico cumpre no processo de humanização do homem, isto é, burlando a superficialidade e mergulhando no que parece inalcançável.

* FRANCIKELY CUNHA é graduada e licenciada em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba

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