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EDiToRiAl

No campo de batalha A

relação da Filosofia com a Guerra pode ser vista de vários ângulos. Das estratégias militares, de Sun Tzu, ao conceito de “Guerra Justa”, em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, dos reflexos dos conflitos na História da Filosofia à participação de filósofos como Jean Paul Sartre e Friedrich Nietzsche no campo de batalha. Nossa matéria de capa versa sobre essa questão, com destaque para as consequências das grandes guerras do século 20 no pensamento e na trajetória de filósofos como Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno, estes marcados especialmente pelo drama da Segunda Guerra Mundial.

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A revista traz ainda uma entrevista com Gabriel Pancera, doutor em Filosofia pela UFMG e autor do livro Maquiavel entre as Republicas. Pancera analisa a defesa da republica e do bom governo na obra do teórico florentino Nicolau Maquiavel (ou, se preferir, Niccolò Machiavelli). Não perca também um estudo sobre a questão da physis, ou seja, a natureza, no pensamento dos pré-socráticos e uma dose dupla de Michel Foucault nos textos brilhantes dos professores Paulo Ghiraldelli Jr e Tânia Aguiar. Boa leitura! Os editores

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CARTAS

[ ELOGIO ] enho acompanhando um conjunto de números da revista Conhecimento Prático Filosofia, inclusive a última deste agosto a respeito de David Hume. Vejo que a revista contribui muito para aproximar a reflexão filosófica das pessoas comuns, apresentando a filosofia não somente como produção de conhecimento típica do mundo acadêmico, mas vinculada à vida cotidiana. É uma enorme contribuição! Além disso, observo que seus conteúdos são relevantes para aulas de filosofia com diferentes públicos. E em minhas aulas já utilizei artigos, entrevistas expostos pela revista.

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www.fullcase.com.br | (11) 5081 6965 filosofia@fullcase.com.br Editores: Edgar Melo – MTB 47.499 Karina Alméri – MTB 45.403 Editor: Daniel Rodrigues Aurélio Diretor de arte: Angel Fragallo Coord. de arte: Samuel Moreno Revisão: Pryscila Grosschädl Fotos: Divulgação Diagramação: Gisele A.Rocha, Juliana Signal, Luciana Toledo e Rodrigo R. Matias Colaboradores: João Ibaixe Jr., José Vasconcelos, Matheus Moura, Paulo Ghiraldelli Jr., Priscila Gorzoni, Sergio Amaral Silva, Susana de Castro, Tânia M B Aguiar e Wesley Adriano Martins Dourado.

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As matérias, os artigos e as colunas aqui publicadas são de responsabilidade de seus respectivos autores; suas opiniões não refletem necessariamente as da editora e seus editores.

@ Entre em contato com a gente. Envie suas críticas e sugestões para filosofia@fullcase.com.br

Eurico de Souza – professor de filosofia – por email

[ DAVID HUME ]

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matéria sobre David Hume merece ovações... Não apenas por iluminar o pensamento deste grande filósofo e divulgálo para os leitores da revista, mas também pela sua pertinência. No Brasil, o ceticismo tem voz baixa, quase que murmúrio, e isso é desalentador. A dúvida é fundamental para a crítica. O filósofo não só necessita de interrogações, mas também de coragem, virtude rara tanto quanto indispensável para o combate frontal com o dogmatismo - religioso ou político. Aproveito para fazer uma pequena correção: a frase “O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as entranhas do último padre” não é de autoria de Diderot, mas de Jean Meslier, o padre ateu, que por sinal apenas transcreveu isso, ainda que de acordo, quando ouviu de um plebeu.

screvo para registrar minha decepção com o texto sobre David Hume. Apesar de bem escrito e com muitos e bons detalhes históricos, comprei a revista com a esperança de conhecer o pensamento do Filósofo, e não apenas sua bibliografia e pendengas com a Igreja Católica e outros desafetos. Se não estou enganado, não li nenhuma de suas teses. O autor poderia ter alencado, ao longo do texto, algumas teses do ilustre pensador, a fim de que o leigo pudesse compreender o que o pensador pensou e escreveu. Daí, faria sentido ter o artigo como destaque principal na capa da revista. Desta forma, o artigo teria duas ou três páginas a mais, o que seria muito bom, pois serviria como um ótimo texto de referência para aulas de filosofia, por exemplo.

Marcelo Ronconi – filósofo – Taubaté-SP

Carlos Roberto Streppel – por email

Queremos ouvir sua opinião. Mande sua mensagem com críticas, comentários e sugestões sobre a revista. Por questão de espaço e clareza, reservamo-nos o direito de publicar resumos das cartas enviadas.

DIREÇÃO COMERCIAL Fabyana Desidério CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR BRASIL: (11) 3855-2175 atendimento@escalaeducacional.com.br ASSESSORIA DE IMPRENSA Iara Filardi Tel.: (11) 3855-2201 (ramal 392) iara.filardi@escalaeducacional.com.br Av. Profª Ida Kolb, 551 – Casa Verde CEP 02518-000 – São Paulo/SP Tel.: (11) 3855-2201 Fax: (11) 3855-2189 Edição nº 24, ISSN 977-1808-8961-17 Distribuição com exclusividade para todo o Brasil, Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva, 907 – (21) 3879-7766. Números anteriores podem ser solicitados ao seu jornaleiro ou na Central de Atendimento ao Leitor (11) 3855-2175 ou pelo site www.escalaeducacional.com.br ao preço do último número, acrescido dos custos de postagem. Disk Banca: Sr. jornaleiro, a distribuidora Fernando Chinaglia atenderá os pedidos de números anteriores enquanto houver estoque. IMPRESSÃO Oceano Ind. Gráfica (11) 4446-7000

FILOSOFIA

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Capa Os impactos da experiência da guerra na vida e na obra de grandes filósofos da história

Em Debate A questão da physis (natureza) segundo filósofos pré-socráticos como Tales e Anaximandro

08 Entrevista |Doutor em Filosofia,Gabriel Pancera fala sobre o republicanismo na obra de Maquiavel

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Análise Uma visão filosófica da tragédia grega e do papel da arte na Educação

40 Ensaio |Uma reflexão sobre a noção de verdade no percurso teórico de Michel Foucault

12 Almanaque |Novidades e curiosidades

48 Outro Enfoque |As relações de poder e a “anátomopolítica do corpo” no processo escolar, segundo a visão foucaultiana

16 Ideias |A plenitude democrática é garantida pela liberdade de crença e de pensamento crítico

52 Grosso Modo |A influência de Arthur Schopenhauer na criação artística de diversas gerações

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Ponto de Vista A relação entre educação e afetividade a partir da noção de corpo próprio, presente no pensamento de Merleau-Ponty

62 Filosofoteca | Dicas de livros e filmes 66 Retratos | Paulo Ghiraldelli Jr.

! Esta edição segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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ENTREVisTA

O Republicanismo de Maquiavel Reconhecido como fundador da ciência política moderna, Maquiavel tem seu conceito de república revisitado pelo doutor Gabriel Pancera, no livro Maquiavel entre Repúblicas. POR MATHEUS MOURA*

N

icolau Maquiavel (1469-1527), italiano de Florença, viveu durante um período conturbado da história europeia, principalmente de Roma - centro do poder italiano devido ao domínio da Igreja Católica sobre a sociedade. Nessa época, famílias, governantes e até mesmo o papado e outros membros da Igreja se envolviam cada vez mais em rixas por poder e dominação. Em meio a isso o jovem florentino, Maquiavel, passou a estudar e refletir sobre os problemas do governo que o cercavam. Uma de suas conclusões foi: a base moral deveria ser mudada de cristã para pagã, numa clara ruptura com os conceitos clericais de então. Como explica Mariano de Azevedo Júnior, Maquiavel foi incitado a se aproximar do pensamento pagão, pois, ele possui “(...) a coragem, o vigor, a fortaleza na adversidade, a realização pública, a ordem, a disciplina, a felicidade, a força, a justiça e, sobretudo, a afirmação das reivindicações apropriadas de cada um e o conhecimento e o poder necessários para assegurar que sejam satisfeitos”.

Em contrapartida, destaca Isaiah Berlin, no artigo “A originalidade de Maquiavel”, os cristãos primam pela “(...) caridade, a misericórdia, o sacrifício, o amor a Deus, o perdão aos inimigos, o desprezo pelos bens deste mundo, a fé na vida depois da morte, a crença na salvação da alma individual como algo de incomparável valor – mais elevado do que todo objetivo social”. Assim, tendo como ponto de partida essa dualidade para a busca ideal de governo que levasse a felicidade ao homem, Maquiavel estuda como se estabelece e se mantêm as duas formas de governo que acredita serem viáveis: o Principado e a República. Porém, durante anos, os textos do teórico florentino foram mal interpretados gerando

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a Maquiavel

Entre Repúblicas

Autor: Gabriel Pancera Área: Ciência Política Coleção: Humanitas Pocket Apoio: Ford Foundation; Crip Ano: 2010. Páginas: 165 ISBN: 978-85-7041-813-5 Preço: R$ 28,00

a Maquiavélico

De acordo com o dicionário Aulete, maquiavélico tem como definições: 1 - Referente a ou próprio do maquiavelismo. 2 - Fig. Diz-se de indivíduo ardiloso, pérfido, possuidor de mente treinada em arquitetar friamente atos de má-fé. 3 - Fig. Em que há astúcia, perfídia, dolo (plano maquiavélico). Essa interpretação pejorativa derivada do nome de Maquiavel, em muito, deve-se a famosa frase atribuída ao filósofo: “Os fins justificam os meios”

diversas controvérsias entre seus estudiosos – muitos o viam como alguém de caráter duvidoso, enquanto outros como um mero observador de sua época. Para lançar um pouco de luz sobre os debates a cerca do pensador, o doutor em Filosofia, pesquisador e professor de filosofia política da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Gabriel Pancera, acaba de publicar o livro a Maquiavel entre repúblicas, a fim de demonstrar um lado até então pouco explorado de Maquiavel: o de reformista. Em entrevista concedida a Conhecimento Prático Filosofia, Pancera discorre a cerca do seu novo trabalho, do humanismo de Maquiavel e o que se pode correlacionar, a partir das ideias do pensador, com os tempos atuais, dentre outros pontos. Conhecimento Prático Filosofia - Recentemente, foi publicado seu novo trabalho pela editora UFMG, chamado Maquiavel Entre Repúblicas. Fale um pouco sobre a obra, quais as expectativas que o leitor pode nutrir a respeito dela? Gabriel Pancera (GP) - No livro, coloco no centro do debate a questão do republicanismo de Maquiavel. Faço isso porque o autor nem sempre foi conhecido sob esta ótica. No geral, aliás, as pessoas tendem a vê-lo com um autor a Maquiavélico, um autor que aconselha os governantes a serem maus e dissimulados, quando, de fato, o autor está pensando o universo da política e mostrando quais seus mecanismos de funcionamento. Ao fazê-lo, toma-a como objeto principal, não subordinado a outras áreas, como a metafísica ou a ética. De um lado, ele recusa a metafísica, como fundadora da política, denunciando-a nas suas pretensões, e, de outro, ele delineia as fronteiras com a ética, sem, contudo, negar que tratam de coisas diversas. Isso não quer dizer que Maquiavel seja um mero técnico, pois ele faz opções valorativas e, mais do que isso, defende suas escolhas ao longo de suas obras. Em sua defesa de certos valores e de certa forma de governo, ele mostra ser um autor que preza a república e os valores a ela ligados, como a liberdade, conflito, igualdade e participação. Isso é surpreendente para quem o via como maquiavélico e mentor da teoria da razão de estado. Esta primeira pre-

ocupação é o que me fez colocar em foco seu republicanismo e aprofundar a investigação neste sentido, tocando em temas importantes que aparecem em outras obras e que ressurgem juntos num pequeno texto de Maquiavel chamado Discurso sobre a reforma do governo de Florença (a tradução deste texto será publicada em breve pela UFMG). Enfim, quero dizer com isso que o leitor vai encontrar ali um Maquiavel republicano e uma explicitação de como este republicanismo se consubstancia num projeto de reforma político-institucional. CP Filosofia - Durante seu mestrado, com a dissertação A representação da crise republicana nos Discursos de Maquiavel, o senhor trabalhou a questão do republicanismo em Maquiavel, dando continuidade ao tema no doutorado com a tese O modelo maquiaveliano de Estado. Assim, o livro Maquiavel entre repúblicas dialoga até onde com seus estudos anteriores e se diferenciando em que sentido? GP - Certamente, a tese de doutorado é o resultado do amadurecimento de certos temas já presentes na dissertação, contudo, o objeto é diverso. No primeiro trabalho, coloquei em foco a crítica de Maquiavel às concepções de república correntes em sua época, o que, em alguma medida, pode ser estendido também ao nosso tempo. É claro que, para fazer isso, tive que esboçar o que o próprio autor entendia por república. No meu doutoramento, porém, centrei minhas atenções no modelo de república que Maquiavel estava pensando e que tomava como principal referência para pensar o então novo fenômeno político que eram os estados regionais. Não estava mais em questão a crítica, mas a própria forma de governo, isto é, eu recolocava então a pergunta sobre a melhor forma de governo. Tomando-a como referência, estabeleci comparações com outros modelos concorrentes e, além disso, procurei mostrar como Maquiavel pensava a concretização de tal modelo num projeto de reformulação da forma de governo de Florença. Para este último ponto, me vali da análise do texto de Maquiavel acima mencionado (Discurso sobre a forma de governo de Florença), texto este que será depois o fio condutor de minhas análises no livro Maquiavel Entre Repúblicas. Esta pequena obra do secretário florentino me permitiu apresentar de maneira

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sintética e ao mesmo tempo articulada com as obras O Príncipe e os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio a teoria das formas de governo formulada pelo autor. CP Filosofia - Um dos seus intuitos com o livro Maquiavel entre repúblicas é elucidar crenças e valores republicanos de Maquiavel. Explique como foi feito isso e quais os principais pontos levantados no título. GP - A principal questão é mostrar como o republicanismo de Maquiavel, presente já em outras obras do autor, se concretiza numa proposta de reforma constitucional, que é o Discurso acima referido. Ao verificarmos como o autor pensava na prática certas categorias formuladas abstrata e conceitualmente, podemos compreender e dar maior precisão ao sentido de suas críticas e de suas formulações. É como se o concreto lançasse luzes sobre o conceitual, iluminando-o com novos sentidos e significados. É o caso, por exemplo, dos conflitos, elemento central nas formulações maquiavelianas. Sabemos dos Discursos, segundo o qual parte da virtude de um estado está na sua capacidade de dar soluções político-institucionais às inevitáveis tensões, mas não sabíamos como pensá-lo efetivamente. Lendo o Discurso sobre as formas de governo vemos como Maquiavel imagina que isso pudesse acontecer, pois ali ele formula uma proposta de reforma da forma de governo que procura incorporar tais conflitos. Assim, ao retornamos para as obras anteriores conseguimos melhor compreender esta questão. E este é apenas um caso. CP Filosofia - No desenvolvimento do livro, foram usadas outras obras de Maquiavel, como O Príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, para norteá-lo nas elucidações quanto ao pensamento republicano de Maquiavel. Pode se dizer que Maquiavel explica Maquiavel? Por quê? GP - As pessoas, em geral, nutrem uma visão de Maquiavel como um autor maquiavélico. Não, ele não é bem isso. Ele é, sim, um estudioso da política, do campo da política. Está preocupado em desvendar seus mecanismos, compreender a realidade que o circundava e pensar em caminhos e soluções para os impasses de sua época. É desta perspectiva que olha para este objeto do mundo humano. Mas, não se pode reduzir seu pensa*Matheus Moura i é jornalista

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mento ao Príncipe, obra com base na qual, muitas vezes, Maquiavel foi lido como um maquiavélico. Não, não se deve reduzir seu pensamento a esta obra, pois parte importante é encontrada nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, lugar onde o autor se mostra claramente republicano, um autor defensor da vida ativa, dos valores cívicos, mas, sobretudo, um pensador de grande estatura, que formula e mobiliza um vigoroso aparato conceitual para compreender o universo da política e pensar possíveis alternativas para seus impasses. O esforço do pensador florentino fica claro no opúsculo examinado no livro Maquiavel entre repúblicas, pois, para pensar a reforma constitucional de sua cidade, o autor pressupõe tudo o que tinha sido formulado anteriormente. Mas, com a vantagem, de apresentar os mesmos temas de maneira sintética e bastante articulada. CP Filosofia - Como pode ser feita a aproximação do pensamento maquiavélico com o comportamento político contemporâneo dentro do conceito de bom governo e republicanismo? GP - Parece-me que as principais lições a serem aprendidas com Maquiavel têm a ver com o cultivo e a valorização da vida e das virtudes cívicas e também com a compreensão da política como um lugar de solução de conflitos e construção de um espaço comum, capaz de vincular os homens. Os dois aspectos mostram-se, aliás, como crítica e alternativa para a sociedade individualista e de massa em que atualmente nos encontramos, caracterizada pelo isolamento, egoísmo e apatia das pessoas relativamente às coisas que são comuns a todos e sobre as quais temos, queiramos ou não, responsabilidade.

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AlMANAQUE

FRAsEs “Não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos, porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas.” FRANCis BACoN – NOVUM ORGANUM OU VERDADEIRAS INDICAÇÕES ACERCA DA INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA

“Deixemos que cada homem faça saber que tipo de governo mereceria seu respeito e este já seria um passo na direção de obtê−lo.” HENRY DAViD THoREAU – A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

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o QUE É

ZoNA AUTÔNoMA TEMPoRÁRiA – EM iNGlÊs: TEMPoRARY AUToNoMoUs ZoNE - TAZ?

O termo foi cunhado pelo pensador estadunidense Peter Lamborn Wilson (1945-) sob o pseudônimo de Hakim Bey – anarquista, revolucionário que durantes anos ficou incógnito. A primeira vez que a sigla TAZ apareceu em seus escritos foi no livro homônimo publicado em 1985. No Brasil foi publicado pela Editora Conrad, em 2001. Hakim Bey explica, no referido trabalho, que uma Zona Autônoma Temporária é um grupo, um aglutinamento voluntário de pessoas, de modo não-hierarquizado, que se junta para poderem maximizar a liberdade por si só dentro da sociedade atual. Ou seja, é uma organização para o desenvolvimento de atividades comuns, sem controle de hierarquias opressivas. Bey ressalta que, da mesma maneira que de forma espontânea surge uma TAZ, ela se desfaz, podendo existir tanto por anos a fio, como dias ou mesmo instantes. O que valeria para classificar determinado momento/estado como sendo uma Zona Autônoma Temporária é a busca consciente ou não de um indivíduo ou grupo pela liberdade independente e autônoma com relação à opressão Estatal e social.

PARA DEGUsTAR O mundo dos homens foi feito à base da troca, o que inevitavelmente levou ao desenvolvimento de um sistema monetário. As incongruências de tal sistema, principalmente do capitalista, motivou e ainda motiva, as mais diversas discussões filosóficas. Por isso, foram selecionados 5 livros sobre Filosofia da Economia para ampliar e fazer entender melhor os meandros da moeda. A Riqueza das Nações (Madras,

2009), do filósofo e economista Adam Smith (1723-1790) O Mercado das Crenças -

Filosofia econômica e mudança social (Companhia das Letras, 2003), do filósofo e economista brasileiro Eduardo Giannetti

A Liberdade/Utilitarismo (Martins Fontes, 2000), do filósofo e economista inglês John Stuart Mill (1806-1873) O Capital (Civilização Brasileira,

2003), do Filósofo, economista e revolucionário alemão Karl Marx (1818-1883)

Desenvolvimento como Liberdade (Companhia das

Letras, 2003), do economista indiano Amartya Sen (1933-)

.NET

sÓ FilosoFiA

No ar desde 2007, o site Só Filosofia tem como pressuposto ser um portal educacional a fim de promover o conhecimento de filosofia pela rede internet. Mantido por diversos professores espalhados pelo País (Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, Campinas, Cuiabá, Goiânia e Fortaleza), possuí artigos, resenhas, trabalhos acadêmicos, ensaios, exercícios para a prática da filosofia, biblioteca virtual e diversas curiosidades sobre a disciplina. O site é construído sob uma estrutura simples, de fácil acesso e com navegação intuitiva. http://www.filosofia.com.br/

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PoR MATHEUs MoURA*

PoR DENTRo

soCiEDADE KANT BRAsilEiRA (HTTP://WWW.soCiEDADEKANT.oRG/)

Sociedade Kant Brasileira é um centro de estudos a respeito do pensamento kantiano e seus desdobramentos. Tendo como Presidente Ricardo Ribeiro Terra e como Vice-Presidente Christian Viktor Hamm, o grupo possui uma publicação própria chamada Studia Kantiana, atualmente na edição # 9. Cada número leva ao leitor diversos artigos quanto à teoria kantiana e outros tópicos referentes à filosofia e que convergem ao teorizado por Kant. Especificamente quanto ao site Sociedade Kant Brasileira, os interessados lá encontram calendários de eventos, além de diversos links sobre estudos kantianos. Nesse ano, a Sociedade participou e/ou organizou três eventos: From Hume to Kant: Towards a Semantic Interpretation of the Transcendental Analytic, na Universidade Estadual de Campinas (3 a 6 de maio); XII Colóquio Kant da Unicamp: Direito e Política (26 a 29 de julho); e V Colóquio Kant de Marília: Kant e a biologia (9 a 12 de agosto) – todos no estado de São Paulo.

PAlAVRAs E TERMos ANARQUiA

Do grego anarchía, e do latim medieval anarchia. É considerada uma filosofia política que tem em seu bojo teorias, métodos e ações voltadas à eliminação total de todas as formas de governo e opressão. O pressuposto anarquista é ser contra qualquer tipo de ordem hierárquica que não seja livremente aceita. Sendo assim a ordem deve ser estabelecida por organizações libertárias e de espontânea vontade pelos indivíduos envolvidos. O significado concreto da expressão anarquia é ausência de coerção e não a ausência de ordem – como de modo popular ficou conhecida. A noção equivocada de anarquia como sinônimo de caos/bagunça se popularizou no final do século 19 e início do século 20, devido ao crescimento do movimento anarquista entre os proletários. O primeiro pensador a se autointitular anarquista foi o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), tendo influenciado outro grande pensador anarquista e um dos principais expoentes dessa corrente de pensamento: o russo Mikhail Bakunin (1814-1876).

Ó HisToRiA

CURiosiDADEs soBRE AUGUsTE CoMTE (1798 – 1857)

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Aos 16 anos, já se interessando por ciências naturais e por questões históricas e sociais, ingressou na Escola Politécnica de Paris, em 1814.

Entre 1817-1824 foi secretário do conde Henri de Saint-Simon, futuro expoente do socialismo utópico. Por acreditar que Saint-Simon priorizava a elite industrial e científica do período em detrimento da reforma teórica do conhecimento, em 1824 rompe relações com o conde.

Em determinado momento, durante os doze anos de trabalho do livro Curso de Filosofia Positiva (1830-1842) - o qual em 1848 foi renomeado para Sistema de Filosofia Positiva – Comte sofre um colapso nervoso supostamente devido a questões conjugais. Comte, por um tempo, recebeu ajuda de admiradores como o pensador inglês John Stuart Mill (1806-1873), após ser demitido do cargo de examinador de admissão à Escola Politécnica por criticar a universidade francesa, em 1842.

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BioGRAFiA

sØREN KiERKEGAARD (1813 – 1855) Søren Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague, Dinamarca, e morreu em 11 de novembro de 1855. Considerado um dos precursores do Existencialismo sua filosofia influenciou pensadores como Heidegger, Sartre, Ricoeur, Benjamin, Kafka, Buber, Chestov, Derrida, Rosenzweig, Jankélévich, Bloch, Merleau-Ponty, Arendt, Deleuze, Barth, Lacan e Adorno. Sétimo e último filho de um casal inusitado (o pai era comerciante e a mãe sua empregada doméstica), Kierkegaard, durante anos, dedicou-se aos estudos religiosos (luteranos) por influência do pai. Somente após a morte do pai, em 1837, é que rompeu os estudos religiosos e passou a se dedicar ao pensamento crítico religioso. Em 1841 rompe o noivado com Regina Olsen e se muda para a Alemanha. No país, concluiu doutorado com a tese “Sobre o Conceito de Ironia”, tendo como base Sócrates. A partir de então se dedicou integralmente ao desenvolvimento intelectual. De volta à Dinamarca, em 1843 publica os textos: A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Um ano depois é a vez de Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Em 1845, é editado As Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-Scriptum a Migalhas Filosóficas. Em 1849, publica Doença Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo. Kierkegaard fale 40 dias após sofrer uma queda em via pública devida a uma paralisia nas pernas. Durante o período em que esteve internado recusou-se a receber qualquer ajuda religiosa. Durante seu enterro, houve protesto de estudantes e amigos devido ao ato hipócrita de sepultá-lo em solo sagrado.

+ iNFoRMAÇÃo Depois de Grécia, Alemanha, França e Inglaterra, chegou a vez da Espanha, campeã da Copa do Mundo 2010, mostrar que também é boa no campo do saber. Apesar de ser a primeira vez que consegue o título no campeonato mundial de futebol, já há séculos a Espanha demonstra ser terreno fértil para o conhecimento humano tendo a frente pensadores como Jaime Balmes, Gabriel Albiac, Abraham ibn Daud e muitos outros. Luís de Molina – Fundação Luís de Molina http://www.flmolina.uevora.pt/

EsPANHÓis NA REDE

José Ortega y Gasset Fundación Ortega-Marañón http://www.ortegaygasset.edu/

Alexandre Deulofeu - Alexandre Deulofeu Web http://deulofeu.org/

Julián Marías – (Filosofia.org) http://www.filosofia.org/ave/001/a064.htm Gustavo Bueno – Fundación Gustavo Bueno http://www.fgbueno.es/

Benito Jerónimo Feijoo (Fundación Gustavo Bueno) http://www.fgbueno.es/edi/feijoo.htm Rafael Barrett – (Ensayistas.org) http://www.ensayistas.org/filosofos/ paraguay/barrett/

Juan Donoso Cortés (The Internet Encyclipedia of Philosophy) http://www.iep.utm.edu/donoso/ * Matheus Moura é jornalista e escreve para esta publicação

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ideiAs

Pela liberdade

de crer PROF. J. VASCONCELOS*

Do ponto de vista filosófico e democrático, a liberdade de crença – e de crítica a crença – deve ser assegurado de forma ampla e total.

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monoPÓlio reliGioso Na Idade Média, quando a religião cristã dominou os países europeus, a situação continuou igual a dos tempos anteriores: pouco progresso intelectual e deficientes meios de comunicação contribuíram para que os cidadãos comuns permanecessem com suas crenças inalteradas, não havendo, portanto o

Raffaello Sanzio

homogênea. O maior saber e as incipientes escritas estavam restritas ao próprio grupo que comandava os ensinamentos religiosos. O tempo do povo estava ocupado com duros trabalhos e cumprimentos dos ritos de suas divindades. De forma que, não há registros históricos de costumeiras interdições e punições de cidadãos em face de divergências religiosas. Observam-se apenas algumas poucas exceções de surgimento de novas crenças através de figuras isoladas, como aZoroastro, na Pérsia, Amenófis IV-Akhenaton no Egito e Buda na Índia. Não se caracterizavam sequer como oposição às crenças vigorantes. Podemos caracterizá-las mais como acréscimos às próprias crenças existentes. Jesus Cristo, inclusive, não foi condenado por portar novas crenças e nova religião. Foi punido por exercer o sacerdócio à parte do ordenamento dos prelados oficiais. Somente vamos encontrar na Grécia pessoas com ideias divergentes das crenças dominantes, com os filósofos. Todavia, o ambiente grego era mais acolhedor, embora não fosse totalmente liberado a ponto de os cidadãos poderem livremente manifestar crenças opostas às dominantes. Mesmo porque alguns filósofos foram perseguidos e processados sob a acusação de portarem ideias contrárias às crenças religiosas. Exemplo foi com o que aconteceu a Sócrates, aAnaxágoras, Empédocles e outros.

aZoroastro O profeta persa Zarathustra, ou Zoroastro na forma grega (630 a.C - 552 a.C), teria sido um pregador de uma nova filosofia/doutrina religiosa, difundida posteriormente como Zoroastrismo. Friedrich Nietzsche inspirouse nessa figura mítica para criar seu personagem da obra-prima Assim falou Zaratustra.

Eduard Lebiedzki

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humanidade sofreu por muito tempo com a ausência da liberdade dos cidadãos comuns, mormente no que concerne ao seu direito de dispor de suas próprias ideias e crenças. Com efeito, remontando à Antiguidade e compreendendo todos os diversos períodos até a Revolução Francesa, podemos calcular mais de cinco mil anos que os humanos vinham sendo cerceados na sua faculdade de emitir os seus conceitos pessoais, com exceção apenas nas cidades-estados que empregaram o regime de democracia pura, por volta dos séculos 6, 5 e 4 a.C. Ideias de cunho político praticamente não seriam possíveis, a não ser referências sobre a maneira como os poderosos atuavam em suas altas funções. Todavia, jamais havia conceituações dos cidadãos comuns sobre a natureza e legitimidade dos privilégios e da assunção aos poderes pelos soberanos, sacerdotes e nobres. Qualquer atitude nesse sentido poderia significar à incursão no crime de lesa-majestade. Com respeito a outras ideias, como as religiosas, menos ainda. Interpretações diferentes dos costumes e credibilidade cultural seria suicídio total. As religiões imperantes eram oriundas dos deuses conforme os ensinamentos dos sacerdotes e, assim, de contexto absoluto e incontestável. Posições estranhas das adorações e rituais predominantes resultavam na execração pela própria coletividade. Além do mais, questionamentos e dúvidas sobre assuntos religiosos abalariam o poder, o mando e as prerrogativas da classe sacerdotal, que usufruía da maior riqueza. À falta de comunicação e desenvolvimento intelectual, evidente que os cidadãos comuns pouco dispunham de crenças divergentes. A cultura era demasiadamente

aAnaxágoras Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C – 428 a.C) foi um filósofo pré-socrático que fundou uma das primeiras escolas de difusão do pensamento filosófico e científico e teve um papel de destaque na história da matemática. Ele aparece ao lado de Pitágoras em um quadro do pintor renascentista Rafael Sanzio. FilosoFiA | Conhecimento Prático | 17

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contraditório. À medida em que o Cristianismo avançava por toda parte do Império Romano, a Igreja Católica foi se organizando como uma poderosa força institucional, salientando-se uma poderosa classe sacerdotal. Com o vazio deixado pela queda do império, a Igreja enveredou por uma política de expansão e destruição das crenças nativas das regiões européias, para tanto usando da persuasão e da força. De sorte que, por todo lado a Igreja ia se fortalecendo como poder temporal e exterminando tudo quanto era diferente de suas crenças. Instaurava-se nas terras européias o monopólio religioso, sem espaço a outras crenças. Elucidam os estudiosos, que as religiões monoteístas são mais totalitárias e intolerantes à existência de outras crenças e outros deuses. Foi o caso do cristianismo. Quando o poder lhe caiu nas mãos, a Igreja envidou todos os seus esforços para o extermínio de qualquer vestígio de liberdade de crenças. Consequentemente, os povos europeus sob sua influência se viram forçados a adotar somente a religião cristã sob pena de serem impiedosamente massacrados como o foi quase todo o povo saxão. Isto significava que os indivíduos não poderiam ter liberdade a crenças diversas do cristianismo. A Igreja foi ainda mais além. Não admitiria nem mesmo divergências de seus métodos para impor a sua religião. As crenças dos cidadãos deveriam ser absolutamente iguais e somente prescritas pela Igreja e bem como a forma de liturgia e pregação como devesse ser realizado. Donde entendemos a sua fúria para extinguir os albigenses, fervorosos e disciplinados cristãos que muito se assemelhavam ao cristianismo dos primeiros tempos, mas se distinguiam do cristianismo adotado pelos chefes da Igreja. De qualquer forma, com essa política de padronização das crenças a todos os povos, a Igreja começou a policiar os pensamentos dos cidadãos. Nos chamados Estados Papais, um cidadão que apenas lesse um livro diferente daqueles indicados pela Igreja, mesmo católico praticante, era passível de condenação e, dependendo da

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espécie de livro que portasse ou que o tivesse em sua biblioteca, poderia ser condenado à morte. Por esse procedimento totalitário e policialesco, pode se ter uma ideia da vigilância contra a liberdade de crença em todo o território de influência e domínio da Igreja. Durante mais de 600 anos, a Igreja usou de todos os meios para impedir a liberdade de opiniões e ideias. Para tanto, seu terror policial usou da tortura, prisões, exílios e mortes horríveis. Estimam alguns autores, que nada menos do que 9 milhões de pessoas foram mortas por essa atitude déspotica, e outros milhões apodreceram nas prisões e nas galés. No eclodir da Revolução Francesa, os filósofos iluministas revelaram esse absurdo contra a humanidade e exigiam a total liberdade de pensamento. Conscientes os revolucionários a respeito daquelas épocas de tanto horror e opressão à liberdade, procuraram seguir os ensinamentos dos filósofos, e a partir daquele momento se dispuseram a fazer real e exeqüível aquela chama filosófica: Liberdade integral de pensamento a todos os cidadãos. Liberdade e Direitos Humanos Proclamou-se a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, em que anunciaram como base do convívio humano a liberdade pleiteada pelos pensadores como Voltaire, Rousseau, D´Alambert e Diderot. A boa nova ganhou o mundo e as nações começaram a valorizar a vitoriosa liberdade. Em 1948, as Nações Unidas, mais explicitamente, através da Declaração dos Direitos Humanos, estabelece, então, em seu artigo XVIII, o seguinte:

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“ Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.”

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As Constituições dos países em geral repetiram essa proclamação da liberdade de crenças e de ideias.A Constituição brasileira de 1988 prescreve em seu artigo 5º, inciso VI: “ É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

Muito bem. Agora podemos dizer que a liberdade de pensamento está assegurada? Infelizmente, a história é bem outra, se a analise esteja dentro de um contexto filosófico. Essas prescrições em favor da liberdade das crenças se transformaram em enunciados sagrados, especialmente quando dispostas em textos legais das sociedades. E tudo que é sagrado está fadado a incorrer em obscurantismo e primitivismo.É o que ocorre. Sendo sagrado, no entendimento de muitos doutores, juristas e juizes, dispositivo de lei considerado sagrado é inatingível, intocável e inquestionável, contrapondo-se a tudo e estando acima do Bem e do Mal. Sob alegação que críticas ferem essa “liberdade”, já houve ações pedindo a sua obstrução com sentenças favoráveis. Recentemente, em Salvador um padre católico escreveu um livro critico sobre práticas de bruxaria na religião do candomblé, com os seus praticantes auferindo auspiciosos lucros. Representantes dessa religião animista pediram judicialmente a proibição do livro do sacerdote, alegando que ofendia o “direito” de crença. Absurdamente, o juiz aceitou esse argumento esdrúxulo e totalitário, e sentenciou para que o livro fosse retirado do público, atentando inclusive contra o direito à liberdade de expressão. Destarte, colocando o raciocínio sob esse ângulo, o sagrado não pode sequer ser criticado.Essa é a grande questão filosófica.

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epidemias e desastres militares. Então crianças eram jogadas vivas em estátuas efervecentes até morrerem sofrivelmente queimadas e gritando desesperadas. Era na verdade uma morte horrível e cruel. De outra parte, os cristãos do século 16 tinham a crença de que almas endemoniadas resultavam em indivíduos da cor negra. Por consequência, a escravidão era uma crença firmada em postulados divinos, conforme São Jeronimo. No Brasil, temos assistido pessoas da religião dos aTestemunhas de Jeová, que com base em suas crenças impediram seus filhos de sofrerem a transfusão de sangue em hospitais, deixando-os morrerem indefesos. Muitas são, porém outros elementos contraproducentes que integram várias crenças. Filosoficamente falando, a liberdade tem de ser entendida de forma ampla, abrangente. Esta é, por exemplo, a melhor opção conforme ensina a doutrina da Democracia Pura, que esclarece: “A crença é livre e livre a sua crítica, porquanto a critica nada mais é do que também outra idéia embora de outra natureza.”E se for impedida a crítica, está-se na verdade contrariando a própria liberdade de pensamento. Na Declaração emitida pelos revolucionários franceses, inspirados pelos filósofos, a redação do artigo XI é mais racional quando diz que“todo cidadão pode, pois, falar, escrever e imprimir livremente.”Afinal, a critica é inexoravelmente um direito de falar e escrever livremente. Por outro lado, na Declaração das Nações Unidas, o artigo XVIII (manifestação de crença) não pode se opor ao artigo XIX (transmissão das ideias). Este por sua vez garante o enunciado da crítica. Em termos conclusivos, num regime de democracia pura, deve se atender aos princípios filosóficos de que a liberdade de crenças e de ideias é amplas em todos os aspectos na afirmação e na contra-afirmação.

Rursus

Ora, uma ideia que não pode ser criticada tende a tornar-se imperfeita e irreal.E o pior: se uma crítica não pode ser feita a uma crença, esse procedimento derruba e afronta por completo a liberdade de pensamento. A critica não fere o princípio da liberdade de crença ou ideias, pois a crítica não impede, não obstrue, o seu exercício. A critica é apenas a manifestação de outra ideia, que circunstancialmente poderá ser em parte ou totalmente contraria. A crítica, portanto, é um puro ato de liberdade de pensamento. Se ela se contrapõe às crenças existentes trata-se isso de um mero acaso. Quem a tenha, continuará a tê-la, porém se abjurada, será por vontade de seu dono e não por impedimento da crítica, pois esta não tem esse poder. A crítica, com sua função de antítese, torna-se peça importante no progresso democrático. A evolução e o desenvolvimento intelectual de uma nação se constroem com o amplo funcionamento da crítica em todos os sentidos. A crítica e análise de qualquer ideia ou crença são tão necessárias quanto a liberdade de a ter. Além do mais, caracteriza-se como uma peça oportuna e essencial ao bem-estar e a evolução cultural de uma comunidade, conforme podemos verificar adiante. Nem toda crença ou ideia pode ser considerada a priori útil à sociedade e aos seus cidadãos. Crenças podem existir que estejam sendo usadas por grupos ou indivíduos ardilosos para explorar os membros sociais. Outras há que possam incitar nas pessoas comportamentos depressivos, ou destrutivos, ou perniciosos, ou de propagação de mentiras. Somente com a ação das críticas pode se apurar uma falsidade, um embuste, um mentiroso objetivo contido no uso de crenças. Para melhor entendimento da fragilidade das crenças, daremos alguns exemplos exagerados. Os cartagineses tinham crenças que o deus Baal precisava ser aplacado com sacrifícios humanos, especialmente quando havia

aTestemunhas de Jeová

A comunidade religiosa Testemunhas de Jeová foi fundada nos EUA no final do século XIX por integrantes da sociedade Torre de Vigia de Sião, cujo primeiro presidente foi Charles T. Russell. Até o início da década de 1930, eram conhecidos como Estudantes da Biblia, passando então a ser denominados de Testemunhas de Jeová. No Brasil, essa comunidade começou a se formar nos anos 1920.

*Prof. J. VASCONCELOS é advogado e autor do livro “Democracia Pura” (ed. Nobel)- profvasconcelos@terra.com.br

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Os pré-socráticos e a physis O problema da natureza no pensamento dos pré-socráticos Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes. POR JOÃO IBAIXE JR.*

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hamam-se pré-socráticos os filósofos gregos anteriores a Sócrates e a denominação, embora o número de pensadores não seja tão pequeno e suas vivências tenham distâncias de muitos anos, tem um valor cronológico inicial de determinar o período representado (séc. 7 a 5 a.C.). Porém, há um conteúdo mais profundo traduzido pela formação de temas de conteúdo filosófico, os quais posteriormente são aprimorados e sistematizados. A síntese de passagem se dá com Sócrates, que por sua vez acrescenta perguntas às preocupações dos amantes da sabedoria, estabelecendo outro momento do pensamento ocidental. Por partirem da concepção do mundo como ordem natural, a primeira indagação dos filósofos pré-socráticos é sobre a natureza, seu conceito e sua determinação. Conforme denomina Aristóteles em sua Metafísica, os pré-socráticos são conhecidos como physikoi, ou seja, físicos, pesquisadores da physis (natureza). A expressão é correta, mas presta-se a equívocos se mal-observada. Obviamente, a “física” dos pré-socráticos não é a Física que estudamos hoje e nem tem relação direta com a acepção moderna da palavra, de cunho científico, que é um dos ramos das ciências exatas e estuda relações entre sistemas materiais em si e entre estes e campos de forças, buscando reconhecer propriedades e estabelecer leis de comportamento para tais sistemas. Nada disso. Para o grego antigo, a physis não se confunde com um objeto que pode ser apropriado pelas ciências da natureza (que se diferem das ciências do espírito) ou com algo que pode ser submetido à dominação humana, posto a serviço desta ou canalizado em termos de técnica, enfim, em algo que se transforma em expressão da vontade humana de poder. A física dos pré-socráticos não é uma disciplina que se contrapõe a outra porque natureza não pode ser reduzida a uma ideia de objeto, principalmente em termos científicos.

Physis, traduzida pela palavra natureza por falta de outra mais completa, é um conceito fundamental do pensamento pré-socrático, contendo a noção do saber de um ente em sua mais ampla e profunda totalidade. Em sua expressão original, physis designa o processo de surgir e desenvolver-se num constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento. É considerada assim a expressão daquilo que é primário, fundamental e persistente, opondo-se ao que é secundário, derivado e transitório. O sentido da palavra é assim muito mais profundo e, como diz Martin Heidegger a, ao ser traduzida pelos latinos por “natureza”, distorceu-se seu conteúdo originário e destruiu-se sua força evocativa. Physis significa vigor dominante (vigente) daquilo que brota e permanece, num constante brotar e permanecer e pode ser experienciado em toda a parte, mas não se confunde com os fenômenos que hoje chamamos de naturais e reunimos na expressão natureza. Physis não deve ser tomada como um fenômeno qualquer, mas como o ser em virtude do qual o ente se torna o que é e permanece sendo, enquanto durar seu vir-a-ser (devir), fazendo-se observável como tal. Os gregos não conheceram a physis por meio dos fenômenos naturais somente, mas por uma experiência fundamental advinda e facultada pela poesia e pelo pensamento, a desvelar o ser, denominado então de physis. A partir daí, puderam ter olhos para a natureza em sentido estrito e para a percepção de sua essência, a qual também denominaram physis. Seu melhor significado é de vigor anímico, força primordial, princípio vigente que compreende a totalidade de tudo o que é, podendo, portanto, ser apreendida em tudo que acontece. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente, enfim, é o pensar sobre o ser, logo, ao pensar a physis pensa-se o ser, portanto pensar e ser é o mesmo, conforme Parmênides (Fragmento III).

aMartin Heidegger

Filósofo, escritor e professor alemão, Martin Heidegger (1889-1976) é reputado como um dos mais importantes e influentes pensadores do século 20. Apoiou o nacional-socialismo de Hitler e tornouse reitor da Universidade de Frieburg. Entre suas principais obras, destacase O ser e o tempo (1927)

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aOs sete sábios da Grécia

A classificação é variável, mas a lista mais difundida é a seguinte: Periandro de Corinto; Pítaco de Mitilene; Bias de Priene; Cleóbulo de Lindos; Sólon de Atenas; Quílon de Esparta. Ver LAERCIO, Diogenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Unb, 2008. Ver também REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol 1. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993, p. 182/186.

Oposição à physis A questão referente à restrição do termo tem sua importância aqui porque é ela que irá originar a famosa oposição vindoura no período dos sofistas entre physis e nomos. Esta oposição, inclusive, pode fornecer uma trilha de estudo para a história da Filosofia. Mas ela se inicia de um modo diferente. Seu nascimento se dá com a oposição ao termo tekhné, que não significa especificamente arte ou técnica, mas antes um modo de saber, ou seja, um conteúdo de procedimentos que permite a realização de uma atividade, um saber produtivo no sentido etimológico da palavra produção (pro-ducere = conduzir para diante, colocar algo diante de), compreendido este como aquilo que conduz algo a ser criado, logo outro tipo de vigor, outro tipo de força vigente que faz algo ser criado, por isto tekhné pode significar arte ou técnica, como princípio de criação artístico ou técnico. Assim, physis e tekhné são dois meios distintos de força vigente de princípio criativo, de forma de devir, porém o primeiro é de ordem primordial, originária, enquanto o último possui conotação derivada, transitória, posto se esgotar quando a coisa já se faz terminada. A primeira traduz uma força contínua de evolução, enquanto a última apresenta um sentido mais próximo à permanência. Por tekhné compreende-se desde o conjunto de procedimentos para fabricação de uma cadeira até o conteúdo de práticas políticas para se governar uma cidade, passando ainda pelo conjunto de processos ou habilidades para se pintar ou desenhar um quadro ou uma obra de arte. Para os antigos, uma técnica não era boa ou ruim em si mesma, mas a finalidade a que se prestava era dada pela tradição ou pelo hábito, enfim, por um conjunto de regras costumeiras, conhecidas por nomos, que estabeleciam o bom ou o mau de uma técnica. Pode-se perceber, então, a formação de duas ordens: a ordem da natureza, compreendida pelo kosmos e a ordem das práticas ou técnicas, dadas pelos nomoi (cujo conjunto no interior do grupo sociopolítico forma o ethos).

Estas duas dimensões entre as ordens é que possibilita o posterior conflito que, principalmente com os sofistas (bem adiante), passa a ser expresso pela oposição entre physis e nomos. Ressalta-se: a ideia de natureza ou de algo natural era entre os pré-socráticos algo muito mais amplo do que o conceito por nós hoje trabalhado, consubstanciando-se na investigação sobre o ser dos entes, ou seja, uma investigação sobre o ser como tal ou como este aparece (to physei onta), a busca do ser o qual se manifesta sempre como ente. Os pré-socráticos da Escola de Mileto Os primeiros pré-socráticos surgem ao fim do séc. 7 a.C. e por questões sociais, culturais e econômicas, encontram-se eles na costa oriental do Mar Egeu, na Ásia Menor, numa cidade chamada Mileto. Por isto a filosofia ali nascente é designada como escola de Mileto, escola milesiana ou escola jônica e suas figuras exponenciais são Tales, Anaximandro e Anaxímenes, cuja atividade ocupa todo o séc. 6 a.C. Tales de Mileto Este pensador, cujos dados são muito escassos, como todos os pré-socráticos, viveu entre o último terço do séc. 7 e meados do séc. 6 a.C. Segundo relatos, era um homem de posses, vivia bem e dedicava-se a inúmeras atividades, podendo ser visto como um empresário e político da época. Foi considerado um dos Sete Sábios da Grécia a e era sem dúvida uma das grandes figuras de seu tempo. Não se recebeu nenhum de seus escritos e sua principal fonte são as citações de Aristóteles, segundo o qual Tales seria o fundador da Filosofia. Sua importância está fundamentalmente em estabelecer a ideia de princípio (arkhé), embora sem uso do termo, o elemento primordial do qual todas as coisas derivam cuja unidade permite falar-se em totalidade. Há um todo do qual a unidade é fruto. O princípio básico de Tales é a água, na verdade, um estado de umidade, a qualidade do que é úmido, fluído, que tem característica de plasma, algo líquido que a tudo dá forma.

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Anaximandro Foi muito provavelmente discípulo de Tales, tendo vivido nos meados do séc. 6 a.C. Foi matemático, político e autor de um trabalho denominado Sobre a natureza (peri physeos) que não se preservou no tempo. Sabe-se, contudo, que foi ele quem introduziu o termo princípio (arkhé) no vocabulário filosófico para designar o primum, a realidade primeira e última das coisas, em final instância, para designar a ideia de physis. Diferentemente de Tales, porém, o elemento primordial das coisas não seria a água, mas algo conhecido como apeíron, vale dizer o infinito ou o ilimitado, na verdade uma combinação dos dois termos juntos, porque estes isoladamente não fornecem o conceito completo. Apeíron significa aquilo que é privado de peras (a-peiron), i.e., sem limites ou determinações externas ou de contorno e também sem limites internos ou de conteúdo. É aquilo que é indeterminado quantitativamente ao mesmo tempo em que é indeterminado qualitativamente. Enfim, é a totalidade em sua dimensão mais ampla possível de ser imaginada, provocando por isto mesmo o mais profundo assombro ou espanto. Desta realidade última nascem todas as coisas e para ela todas retornam ao fim. Este é o conceito mais próprio de princípio, pois aquilo que faz outras coisas se iniciarem não pode ter começo nem fim, não tendo por isso limites espaciais ou temporais (não tem começo ou fim no espaço nem no tempo). Desta forma é que o princípio rege todas as coisas, porquanto estas nascem dele e se encerram nele. O apeíron é o princípio e fim de todas as coisas, possuindo característica notadamente teleológica por reger a compreensão e o sentido de existência de todas elas. Logo, sendo regente, eterno e imutável, o princípio é divino (to theion, theos). Anaximandro introduz, assim, diferentemente do pensamento mítico, as características da divindade como eterna, imortal e infinita, unificando-as num só elemento: o ápeiron. Não há nenhuma característica espiritual por força de embasamento pela physis, mas não se pode falar em ateísmo (doutrinas ateias ou materialistas) nos pré-socráticos. A pergunta que resta é: como as coisas derivam

do infinito? Isto se dá por um processo de movimento ou de destacamento provocado por oposição de “contrários”. O “contrário” nasce de uma contraposição ao outro; há uma cisão em opostos da unidade do princípio, rompendo um equilíbrio, provocando uma “injustiça” (perda do justo no sentido do que bem medido, proporcionado, encaixado) que somente pode ser restabelecida pelo tempo. O desequilíbrio torna-se um processo de imposição recíproca dos contrários, um tentando superar o outro. O tempo é o juiz deste processo, pois é ele que estabelece o limite de sua contradição, pondo termo ao predomínio de um sobre o outro. O tempo atua como catalisador da culpa provocada pela oposição, produzindo a expiação desta e retomando a condição de justo. Anaxímenes Foi discípulo de Anaximandro, tendo vivido na segunda metade do séc. 6 a.C. Assume como princípio de tudo o ar, embora este tenha uma conotação de grandeza infinita, mas não indeterminada e, continuando a ideia de movimento, agrega os conceitos de condensação e rarefação. Adotando o ar como elemento primordial, o filósofo explica o movimento de criação das coisas, pois sopro (pneuma) para os antigos traduzia o conceito de alma como algo muito leve, delicado, gracioso, etéreo, sem peso e o filósofo associa a ideia de sopro, alma ou espírito a de ar. Este elemento primordial tinha seus movimentos de união (condensação) e desunião (rarefação) produzindo em diversos níveis as realidades das coisas. O ar condensado forma o vento, as nuvens e, em grau mais denso, a água; num sentido contrário, quando rarefeito, forma o fogo. O movimento assim descrito associa a causa dinâmica das coisas a uma noção mais harmonizada com conceito de princípio, estabelecendo racionalmente uma diferença qualitativa das coisas numa relação quantitativa do elemento primordial. Todas as coisas diferem-se entre si em qualidade por força de um movimento quantitativo do princípio de tudo.

*João Ibaixe Jr. é professor, escritor, advogado e colunista da revista eletrônica Última Instância. Pósgraduado em Filosofia e mestre em Filosofia do Direito. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito, Análise, Informação e Sistemas da área de Filosofia do Direito do programa de pós-graduação da PUC-SP/CNPq. Preside o Instituto Cultural Antonio Ibaixe e edita os blogs Palavras Transgredidas e Por Dentro da Lei – um espaço para construção da consciência de cidadania.

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Filosofia no front

Além de refletir sobre as questões do conflito e da paz, grandes filósofos da história tiveram a vida e a obra profundamente marcadas pela experiência da guerra. POR PRISCILA GORZONI*

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“A condição natural dos seres humanos, isto é, dos seres humanos sem governo, é a guerra de todos contra todos” Thomas Hobbes

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“Um homem não pode abster-se do direito de resistir àqueles que o atacam pela força para lhe privar da vida”

R.K. Universidade de Nijmegen

Thomas Hobbes

a Titus Brandsma

Theodor de Bry

Pensador e religioso de origem holandesa, Anno Sjoerd Titus Brandsma (1881-1942), foi capturado durante a Segunda Guerra pela Gestapo e levado ao campo de concentração em Dachau, onde foi morto com uma injeção de ácido fênico.

a Leonardo Bruni

Leonardo Bruni (13741444), ou Leonardo de Aretino, foi secretário da Curia Papal e chanceler dos senhores de Florença. Escreveu diversas obras de cunho filosófico, além de biografias de escritores como Dante Alighieri.

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ão dá para negar que alguns dos problemas mais antigos da Filosofia têm a ver com as questões sobre vida e morte. Assuntos como assassinatos, aborto, suicídio, reencarnação, eutanásia, são discutidos e abordados constantemente nas obras dos vários filósofos ao longo da história. Entre esses assuntos está o tema Guerra, que por diversas vezes tocou a vida de vários filósofos, seja de forma direta ou indireta. Alguns filósofos chegaram a apoiá-las publicamente, como o alemão Martin Heidegger em sua relação ao nazismo. Outros fizeram oposição ferrenha a elas, entre eles o filósofo holandês a Titus Brandsma. Esse aspecto da Filosofia é tão importante que passou a fazer parte da Filosofia moral. Eles colocam em discussão se atos como matar outro semelhante, mesmo diante de uma conflagração entre povos, tem alguma justificativa moral. A temática vai além das estratégias e argumentos belicistas ou pacifistas, e foca uma questão mais existencial da humanidade; se temos direito de acabar com a vida de outro ser. Para captar como o assunto guerra é abordado na filosofia é necessário tomá-lo como um operador conceitual, a partir do qual é possível se compreender uma série de questões relativas à política. O assunto foi tratado de forma distinta pelos mais diversos pensadores. Encontramos a temática em filósofos da Antiguidade Clássica, da Renascença italiana, como Maquiavel e a Leonardo Bruni ­, e também em pensadores do século 20, como Hannah Arendt, Michel Foucault, Carl Schmitt e Giorgio Agambem. As perspectivas dadas ao assunto variam em conformidade com o problema com o qual cada autor se defrontava. Um bom escrito para se ter uma compreensão geral do tema é parte de um texto de Hannah Arendt chamado “A questão da guerra”, que faz parte da obra O que é a política? Neste texto, a autora nos mos-

tra como o aperfeiçoamento dos meios de destruição em massa utilizados na guerra acabou transformando nossa concepção de política. A questão do armamento nuclear assustou pensadores que viveram ao longo do século passado a experiência da guerra. A maioria destes filósofos foi perseguida e sofreu as suas consequências. Alguns deles procuraram entender o lugar que a guerra tinha na contemporaneidade. Diverso, por exemplo, daquele que era ocupado pela guerra dentre os humanistas cívicos. Neste caso, a guerra era, não só um meio de conquista, mas também de afirmação de certas virtudes necessárias à política, como, por exemplo, o amor à nação. Isso ocorria nas cidades da antiguidade; nesta época, apenas os aristocratas tinham o direito de participar das guerras. “Por não só terem condições materiais para tanto, mas também porque era um meio de afirmarem sua virtude e superioridade”, relata Gabriel Pancera, professor de Filosofia Política da Universidade Estadual do Estado do Paraná (Unioeste) e autor de Maquiavel entre Repúblicas (Editora UFMG, 2010). Enfim, para se aprofundar na temática da guerra, é preciso delimitar melhor o tempo e o período que se quer trabalhar. Essa reportagem tenta fazer isso adotando como foco os filósofos que viveram ou sentiram os reflexos da Primeira (1914-1918) e Segunda (1939-1945) Guerras Mundiais. Mais precisamente, trata de três pensadores: Hebert Marcuse, Theodor Adorno e Walter Benjamin. As Grandes Guerras As primeiras décadas do século 20 foram marcadas, entre outros acontecimentos, por duas guerras mundiais. E como não poderia ser diferente, nelas alguns filósofos se envolveram, seja por meio de escritos, seja como soldado no front. É preciso compreender que mesmo os não envolvidos como soldados ou voluntários sentiram em suas vidas e seus trabalhos os reflexos de uma Europa

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Os Filósofos e a guerra, uma longa história

Mozi (479-438 a. C) Filósofo chinês de origem humilde, que era especialista em fortificações pela sua profissão de engenheiro. Projetou entre outras coisas escadas para a invasão de muralhas. Apesar de seu conhecimento militar viajou para sua região natal com a finalidade pacifista de dissuadir os soberanos de guerrearem. Sócrates (469-399 a. C) Pouco sabemos sobre sua vida pessoal. Entre as informações que nos chegaram está a de que prestou serviços militares durante a Guerra de Peloponeso e destacouse no campo de batalha. Ele também realizou serviços públicos obrigatórios como era costume a maioria da população ateniense. Aristóteles (384-322 a. C) Esteve envolvido indiretamente em inúmeras guerras, afinal seu pupilo era nada menos do que o imperador Alexandre, O Grande, um dos maiores líderes guerreiros da história. Marco Aurélio, Escola Estóica (334-262 a. C) Ele foi o imperador de Roma e participou de várias batalhas. Foi também um dos filósofos estoicos mais famosos – e não por acaso. Sua reunião de registros diários, escritos entre suas conquistas dos povos bárbaros, é intitulada de Meditações. Plotino (205-270) Viveu em um período de grande inquietação do império romano. Para fundamentar sua filosofia Plotino ingressou na expedição militar do imperador romano Gordiano III à Pérsia e Índia com o objetivo de aprender sobre a filosofia oriental. Francisco de Vitória (1480-1546) Filósofo e teólogo muito conceituado. Foi um tomista e fundou o movimento escolástico denominado Escola de Salamanca. Seu nome é associado à teoria da Guerra Justa. Thomas Hobbes (1588-1679) Ficou conhecido pela sua filosofia política, expressa no clássico livro O Leviatã, que afirma serem racionais os indivíduos que se submeterem a um soberano forte para assegurar a ordem e a paz. Algumas máximas captam a ideia hobbesiana: “guerra de todos contra todos” e “o homem é o lobo do homem”.

em convulsão. “São fatos que influenciaram a produção de intelectuais, e aqui se trata de indicar alguns filósofos nesse contexto”, indica a mestre e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Regina de Silos Nakamura. Alguns desses intelectuais vivenciaram a ascensão do nazifascismo na Alemanha quando se reuniram na chamada Escola de Frankfurt. São eles: Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Friedrich Polock, Leo Löwenthal, Franz Neumann, entre outros. Institucionalmente, o grupo gravitava em torno do Instituto de Pesquisa Social, cujos projetos eram dedicados à crítica social a partir da perspectiva da Filosofia, da Sociologia, da História e da Psicanálise. “Em especial, a Segunda Guerra Mundial impôs uma situação insustentável para pensadores contrários aos regimes nazista e fascista, o que determina a necessidade de exílio. Tanto que o Instituto muda-se da Alemanha em 1932”, lembra Maria Regina. Em 1934, nos EUA, o Instituto consegue instalar-se na Universidade de Colúmbia, Nova York, e lá continua a desenvolver suas atividades, sem que, no entanto, naquele momento, os membros conseguissem lugar como docentes. E cada um desses pensadores tem histórias pessoais e intelectuais associadas à guerra para contar. Nascido em Berlim, Herbert Marcuse (1898-1979) quando jovem participou de um conselho de soldados, na vigência da chamada República de Weimar, na Alemanha. As ideias de democracia e socialismo então postas como chave de realização dessa nova fase da Alemanha sofreram ataques e, em grande medida, fracassaram. Posições partidárias contrárias a mudanças libertárias e o assassinato de Rosa Luxemburgo

“É uma máxima válida que ações repreensíveis podem se justificar por seus efeitos, e que quando o efeito é bom... sempre justifica a ação” Nicolau Maquiavel

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“Vi no partido nazista a possibilidade de uma reunião e renovação interna do povo e um caminho que lhe permitiria descobrir sua vocação histórica no mundo ocidental” O reitorado, 1933/34, in Escritos políticos de Heidegger (1997), p. 493

Táticas de Guerra Famoso compêndio taoísta escrito por Sun Tzu, A arte da guerra dá dicas de como lutar e vencer guerras. Pouco se sabe sobre o autor e a obra, estima-se que tenha sido escrita entre o quinto e o terceiro século antes de Cristo, durante um período da tumultuosa guerra civil na China antiga. É tido como um clássico das estratégias militares.

e Karl Leibknecht, líderes do Spartakusbund, precursor do Partido Comunista Alemão, fizeram Marcuse desvincular-se do conselho. “Ele se vincula ao Instituto de Pesquisa Social em 1933, quando este já se encontrava em Genebra para fugir à represália dos nazistas. O Instituto dedicava-se então a estudos sobre as alternativas de superação de condições objetivas favoráveis à instalação de regimes totalitários, e seus membros se voltavam para o estudo das bases marxistas para uma sociedade igualitária”, explica Maria Regina. A pesquisadora também fala da relação de Marcuse com um filósofo engajado à causa nazista, Martin Heidegger: “Em Tecnologia, Guerra e Fascismo estão as cartas trocadas entre Marcuse e Heidegger. Marcuse havia sido aluno dele. Mais tarde, mesmo já havendo um distanciamento teórico entre eles, com a adesão de Heidegger ao nazismo, Marcuse buscou explicação e finalmente rompeu com seu professor. Marcuse dizia que o que Heidegger fizera não poderia ser tido um mero equívoco e colocava em questão não só a pessoa de Heidegger, mas também a sua filosofia” Mudanças profissionais As dificuldades em torno de verbas para a manutenção dos membros, de certa maneira obrigaram Marcuse a aceitar emprego em órgãos governamentais, cujo objetivo inicial seria, segundo suas próprias palavras, “determinar que grupos, pessoas e instituições da Alemanha nazista deveriam ser realmente marcados como O Inimigo...”. Embora Marcuse tenha alcançado bastante prestígio dentro dos quadros do governo norte-americano, inclusive pela maneira colaborativa e interdisciplinar com que conduzia

os estudos, característica presente também em certa medida no Instituto, o alcance de sua colaboração é questionado por ele próprio. Em entrevista, indagado sobre o alcance que as indicações de colaboradores do nazismo, criteriosamente elaboradas por ele e outros colegas, obtiveram quanto a deter sua influência na prática, ele afirma ter sido bastante limitado, uma vez que muitos desses nomes voltaram a ocupar postos dentro dos quadros de comando de então. Segundo Maria Regina, o governo dos EUA, terminada a Segunda Guerra, mudou o foco de seus ataques para o combate ao comunismo, objetivo que obviamente Marcuse não poderia acompanhar. “A posição de pensadores de esquerda torna-se difícil e finalmente ele se desvincula do trabalho para o governo”, esclarece. Nos anos 1960, novos conflitos sustentados pelos EUA eclodiam, e sobre eles a posição de Marcuse foi claramente a de crítica à posição norte-americana. Também nessa década e na próxima, movimentos de trabalhadores e especialmente as revoltas estudantis contrárias a guerras e a favor da democracia e da livre expressão foram acontecimentos que Marcuse acompanhou e de que participou intensamente. “Nesses anos, como em outros períodos, Marcuse interessa-se por encontrar dentro de uma forma de organização social opressiva as brechas para que possa ser instaurada uma vida mais livre e digna, em que a razão estaria reconciliada com os sentidos. Algumas de suas obras dedicam atenção especial às artes nesse sentido”, conta Nakamura. Intelectual símbolo dos frankfurtianos, Theodor Adorno (1903-1969) é outro que teve a biografia e o pensamento transformados pela experiência do conflito mundial. Adorno exilou-se nos EUA, em 1934, em razão do recrudescimento da perseguição nazista. “Ainda na Alemanha, inicia o desenvolvimento de estudos no Instituto de Pesquisa Social ao lado de colegas, realizando, no decorrer do tempo, uma parceria intelectual mais conso-

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Filósofos iluministas (Montesquieu, Voltaire e Rousseau), século XVIII Tiveram uma influência decisiva para a Revolução francesa e passaram a ser conhecidos como iluministas, por sua visão filosófica racional e anti-obscurantista. Thomas Paine (1737-1809) Paine desempenhou um papel importante na realização da Revolução Americana com seus ensaios e panfletos públicos. Para Paine, era impensável que os Estados Unidos continuassem a ser governado por um rei britânico. Portanto não existem dúvidas da força do seu ensaio Senso comum. Ele não só persuadiu algumas das principais figuras da revolução dos Estados Unidos, como também foram vendidos os mais de 120 mil exemplares apenas nos primeiros três meses. Depois da batalha de Trenton, George Washington reuniu seus soldados desmoralizados em grupos e leu Paine em voz alta com a finalidade de aumentar o moral das tropas.

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Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) O pensamento nietzschiano é erroneamente associado ao nazifascismo. Seus escritos versam sobre a guerra, mas é notória em sua biografia sua atuação no front, como enfermeiro de campanha, durante a Guerra Franco-Prussiana Albert Camus (1913-1960) Famoso filósofo e escritor existencialista do século 20. Foi para a França durante a Segunda Guerra Mundial e trabalhou com a Resistência francesa contra as forças ocupantes dos nazistas. Mais tarde sua critica ao stalinismo despertou a ira de Jean-Paul Sartre. Hannah Arendt (1906-1975) Nasceu em 1906, em Hannover, na Alemanha, de uma família judia. Hannah sofreu na pele os efeitos da Guerra e o colocou em suas obras. Tanto que cedo direcionou seus estudos para a filosofia, passando a se dedicar à ciência política. Na Universidade de Marburg, foi aluna do filósofo Martin Heidegger, com ele ironicamente manteve uma ligação amorosa que se estendeu por 50 anos, período durante o qual ela foi casada duas vezes e ele uma. Poucos intelectuais atuaram tão diretamente em seu tempo como Arendt, que foi vítima, ainda jovem, da perseguição nazista em sua Alemanha natal.

“O ato revolucionário é o ato livre por excelência” Jean-Paul Sartre

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reFerÊncias ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Trad. W. L. Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995, pp. 119-138. (Incluindo como referência o texto A guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa, de Wolfgang Leo Maar). ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Trad. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. S. P. Rouanet. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. GARVEY, James e STANGROOM, Jeremy. Os grandes filósofos: De Sócrates a Foucault. São Paulo: Editora Madras, 2009. LAW, Stephen. Guia ilustrado Zahar Filosofia. 2 edição. São Paulo: Editora Zahar, 2009. MANNION, James. O livro completo da filosofia. São Paulo: Editora Madras, 2004. MATOS, O. C. F. Os arcanos do inteiramente outro – a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo (coletânea de artigos editada por Douglas Kellner). Trad. M. C. V. Borba. Rev. Trad. I. M. Loureiro. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1999. (Incluindo como referências a Apresentação de Peter Marcuse e o Prefácio de Douglas Kellner). ________. A dimensão estética. Trad. M. E. Costa. Lisboa: Edições 70, 1986. TEICHMAN, J. e EVANS, Katherine. C. Filosofia: um guia para iniciantes. São Paulo: Editora Madras, 2009.

lidada com Horkheimer. É dessa parceria que resulta uma das obras mais citadas da produção frankfurtiana, Dialética do esclarecimento, escrita durante a guerra e publicada em 1947”, conta Maria Regina. Adorno exerceu a crítica marxista e a crítica ao marxismo, em um movimento característico da Teoria Crítica da Sociedade, para a qual o pensamento não é prescritivo, mas deve ele mesmo ser alvo de reflexão: autorreflexão dos indivíduos em conjunto indissociável da reflexão sobre o social. Realizou com colaboradores o estudo A personalidade autoritária, publicado em 1950, buscando identificar o caráter autoritário vigente na época, na intenção de refletir sobre as possibilidades de identificação de tipos de personalidade suscetíveis à adesão a movimentos político-ideológicos como o fascismo. No entanto, o filósofo e sociólogo alemão logo percebeu que as possibilidades de mudança nas condições objetivas que dão sustentação para falsa consciência, falsas liberdades e violência eram praticamente nulas. “Pode-se entender assim seu esforço em falar da educação dos indivíduos em textos e mesmo em debates e entrevistas, uma vez que seria necessário voltar-se às pessoas para combater nelas a consolidação de bases subjetivas para a barbárie”, relaciona a mestre e doutora em Psicologia Social. Já de volta à Alemanha, em 1949, continua a dedicar-se a realizar a crítica sobre a irracionalidade presente nos modos de “funcionamento” racionalizado dos indivíduos e instituições, modos esses que propiciam tendências regressivas. Adorno expõe de modo categórico sua posição em Educação após Auschwitz, de 1965: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificála teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação

“sAímos mArchAndo, sem sABer muito Bem o que iAm FAzer conosco. hAviA Alguns que AcreditAvAm que seríAmos soltos oito ou quinze diAs depois. de FAto, erA A dAtA do meu Aniversário e, por outro lAdo, do Armistício. Fomos cApturAdos poucAs horAs Antes de ele ser AssAssinAdo. levArAmnos pArA um quArtel dA políciA, onde mAis umA vez Aprendi o que é A verdAde históricA: que eu erA Alguém que viviA num pAís exposto A vários perigos e, como tAl, FicAvA tAmBém exposto A eles. hAviA lá umA espécie de união entre os homens que Ali se encontrAvAm” Uma das cartas de Sartre a Simone de Beauvoir quando é feito prisioneiro pelos alemães em campo de concentração em 1940

a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e inconsciência das pessoas”, escreveu o pensador. o drAmA de BenjAmin A obra de Walter Benjamin (1892 – 1940) é uma das mais influentes nos estudos sob sobre Filosofia e Crítica Literária. Mas, somente após sua morte passou a ser apontado como um dos mais importantes críticos das ideias e fatos da primeira metade do século 20. Em vida, publicou apenas dois livros: O conceito de crítica de arte no romantismo alemão e Rua de mão única. Após sua morte foram publicados seus ensaios sobre as obras de Goethe, Brecht, Karl Kraus e Franz Kafka. “Foi autor dos mais representativos ideais do marxismo”, conta o historiador José Odair da Silva Sorrentino.

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jean-paulo sartre (1905-1980) Famoso existencialista francês foi presença na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Pensador de esquerda, criticou e enalteceu as atividades da União Soviética durante a Guerra Fria. john dewey (1859-1952) Dewey foi dirigente da Comissão que ao investigar as acusações feitas contra Leon Trotsky nos julgamentos de Moscou em meados dos anos de 1930, decidiu a favor de Trotsky e contra Stalin. michael Foucault (1926-1984) Foucault sugeriu em entrevista que suas ambições futuras foram muito profundamente afetadas por sua experiência da Segunda Guerra Mundial. Assim em 1946 ele entrou para a École Normale Supérieure, graduando-se em 1951 com diplomas de Filosofia e Psicologia. A. j. Ayer (1910-1989) Sua função de docente-pesquisador na Universidade Oxford foi interrompida quando foi convocado em 1940 e se juntou à Guarda Galesa. Lá ele acabou realizando serviços de inteligência, incluindo interrogatório de prisioneiros alemães.

“é melhor vencermos A nós mesmos do que Ao mundo” Jean-Paul Sartre

Benjamin encontrou enorme dificuldade em se estabelecer no meio acadêmico, sendo barrado e encontrando resistências a seu pensamento. “Suas teses acerca do progresso da história que conduz à ruína humana, sua crítica contundente ao silêncio a que eram condenados os vencidos da história oficial, a inadequação ao tempo linear dos acontecimentos e outras reflexões instigantes podem ser encontradas em sua produção intelectual,

cuja forma escritaé bastante original”, lembra Maria Regina. Benjamin também foi levado a sair de seu país fugindo do nazismo, mas em seu caso a tentativa culminou em morte. Após passagem pela Dinamarca, estando depois em Paris, com a invasão da cidade pelos nazistas em 1940, tenta, com um grupo de refugiados, cruzar a fronteira entre França e Espanha. Ao chegar, a fronteira havia sido fechada, o que os obrigaria a retornar pelo longo caminho, voltando também para as situações de risco. O filósofo então comete suicídio. “Esse fato fala por si no que se trata de guerra e das ideologias que a sustentam. Mas o horror causado pela guerra não deveria ocorrer apenas diante dessas situações extremas. O dilaceramento do humano é visto por Benjamin no que há de mais cotidiano, no progressivo”, conclui Maria Regina. Na tese 9 de sua obra Sobre o conceito de História, que inicia com uma citação de Gerard Scholem, seu amigo, encontramos os seguintes versos: “Minhas asas estão prontas para o voo, Se eu pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo’ (Gerard Scholem, Saudação do anjo) Há um quadro de Klee que se chama “Angelus Novus”. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. *Priscila gOrZOni é jornalista

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Filosofi a e

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A arte tem um papel fundamental na formação educacional. É essa uma das grandes lições deixadas pela tradição grega clássica. Susana de Castro*

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MaxLiebermann

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a Werner Jaeger

LennieZ

Werner Wilhelm Jeager (1888-1961) foi um filólogo nascido em Lobberich, Alemanha. É autor de Paideia, entre outras obras.

a Protágoras

Nascido em Abdera, Grécia, por volta de 480 a.C, e morto em 410 a.C na região da Sicília, foi um grande orador, filósofo e professor que perambulou com seu conhecimento por Atenas. É atribuída a ele a frase: “o homem é a medida de todas as coisas”.

a Mímesis

O processo de mimeses, ou mímeses, vem do grego “imitação” ou “representação”. Trata-se de um termo muito utilizado na Filosofia, mas que está presente em outros campos de conhecimento como a Pedagogia, a História e as Ciências sociais.

m Paideia – a formação do homem grego, a Werner Jaeger mostra como a Filosofia seguia o mesmo programa da poesia e da prosa, a saber, educar os cidadãos da polis ateniense segundo uma ‘forma’, a da virtude, traduzida pela expressão kaloskagathia, isto é, ‘belo e bom’. Esse princípio educacional representa o modelo aristocrático de educação grega. O homem aristocrata deveria ter a força física e ser ao mesmo tempo um homem honrado. A força física deveria, porém, estar a serviço da fortaleza moral, e esta era adquirida durante o processo educacional. Havia, então, uma ordem pré-estabelecida dos passos educativos necessários para a educação moral e física do homem. A educação deveria começar com o ensinamento moral (e estético, diríamos hoje), uma vez que o objetivo era submeter a constituição física à espiritual. Como relata a Protágoras (326b) no diálogo homônimo de Platão, depois de receberem em casa as primeiras noções morais, com os pais lhes indicando o que seria bom e o que não, e admoestando-lhes, quando necessário, as crianças iam à escola. Nela, primeiro aprendiam a ler e escrever, e a tocar a cítara. Uma vez alfabetizados, liam e memorizavam os versos dos poemas épicos de Homero. Depois, as crianças liam os poetas líricos e os declamavam ao mesmo tempo em que tocavam a cítara. A música tinha um papel central na educação, pois levava ao equilíbrio emocional, à disciplina e à concentração. O princípio educacional em jogo aqui é o da emulação ou a Mimesis. A criança é impulsionada por meio da leitura a querer igualar-se aos modelos de nobreza difundidos pela poesia épica e lírica. Neste ponto acabava, no período arcaico aristocrático, a educação formal escolar do espírito. Em seguida, o aluno, agora adolescente, ia para os ginásios para exercitar seu corpo na ginástica. Depois dessa etapa final, física, estaria apto para atuar no exército grego/ateniense. A continuação de sua educação como jovem

adulto não seria mais formal, escolar, mas ‘natural’, pelas leis da cidade. Com o advento da democracia mantêm-se essas mesmas etapas da educação aristocrática, mas é preciso acrescentar outra, após a educação física, pois os jovens, na sua maioria, não se sentiam aptos a atuar na política pública, a despeito da educação moral que receberam através da leitura dos poetas épicos e líricos. É aqui que surge, então, por demanda social, a figura do sofista, a do filósofo e a do dramaturgo. O objetivo de todos era o de educar os jovens na virtude política. Os grandes educadores gregos foram, portanto, Homero, os poetas líricos, os historiadores, os legisladores, os dramaturgos e os filósofos. Essa noção de que se educa um povo por meio de seus poetas foi, infelizmente, superada nos nossos dias. Hoje, nossa educação guarda duas características bem distintas da Paideia grega. Primeiro, nosso objetivo pela educação formal é primordialmente vocacional, isto é, os fins da educação são externos ao educando, pois são determinados pelo mercado de trabalho. Na Grécia, ao contrário, o fim era interno; aprimorar em cada qual sua aspiração ao humano dentro de si mesmo, as virtudes comuns. Este seria o verdadeiro significado da dimensão humanística da educação e não o sentido caritativo que se dá ao termo. Segundo, na pedagogia moderna a busca da satisfação pessoal, da felicidade individual está em primeiro plano. Não se supõe hoje que as realizações pessoais devam levar principalmente ao engrandecimento da comunidade, e não do indivíduo. A tumba de Ésquilo guarda o epitáfio que ele escreveu para si: "Sob esta pedra descansa Ésquilo, filho de Eufórion, o Ateniense, que faleceu na terra de trigo de Gela; de sua nobre bravura o bosque de Maratona pode falar, ou o persa de cabelos compridos que bem o conhece." Penso que aqui, melhor do que em qualquer outro lugar, está exemplificado, o modelo humanístico de educação grega. Ésquilo não faz menção as suas peças, com as quais venceu inúmeras competições, mas sim a sua atuação na batalha de Maratona, na qual os gregos der-

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rotaram os persas. O espírito cívico suplantava qualquer orgulho por feitos individuais. HoMERo, BAsE DA EDUCAÇÃo GREGA A base de toda a educação grega ateniense continuará a ser, na democracia, Homero. A educação na virtude política promovida pela dramaturgia e pela filosofia usará como referência versos e histórias contidas nas obras de Homero, Ilíada e Odisseia. Mas há uma pequena grande mudança, a justiça, a maior virtude política que se pode ensinar e aprender, não é mais a justiça heroica, mas a prudencial. Essa mudança está muito bem ilustrada na peça de Sófocles, Ájax. Como relatado no canto VII da Ilíada, Ájax é um valoroso guerreiro aqueu. Sua força e coragem só são inferiores a do maior herói grego, Aquiles. Neste canto, Heitor, o grande guerreiro troiano, desafia os aqueus para um combate individual. Como Aquiles recusava-se a participar da guerra depois de ter sido ofendido por Agamêmnon (Canto I), o escolhido é Ájax. Dentro desta cultura heroica, honra e coragem são as maiores virtudes. Ferir a honra de um herói é a pior coisa que lhe pode acontecer. Isso é bem ilustrado pela recusa de Aquiles de entrar no combate, pois sua honra havia sido ultrajada com a decisão de Agamêmnon de lhe tomar sua escrava e concubina, Briseide, trunfo de batalha. A peça de Sófocles baseia-se em fontes mitológicas ao relatar o que ocorreu com Ájax após o fim da guerra de Troia. Os bens mais valorosos de um herói são suas armas. Na Ilíada, é comum o relato de heróis protegendo os despojos de um aliado morto, temendo que seu corpo e sua armadura pudessem ser apropriados pelos inimigos. É dentro deste contexto que devemos situar a vergonha moral (aidos) de Ájax. Morto Aquiles, Ájax tinha a certeza que sua armadura, criada pelo deus Hefesto, lhe seria presenteada, pois afinal todos o consideravam o segundo herói mais forte e corajoso entre os aqueus. Ocorre que o conselho de ‘juízes’ da armada grega considera que Odisseu é quem deveria receber a honraria, pois era o guerreiro mais astuto –

lembremos que foi graças a sua astúcia (métis) que os aqueus conseguiram finalmente entrar na cidade troiana e vencer a guerra. Possesso com a decisão e sentindo-se profundamente humilhado, Ájax decide vingar-se. Para ele, os seus antigos amigos se transformaram em inimigos. Sai à noite de sua tenda disposto a liquidar os chefes aqueus, porém Atenas, a deusa protetora de Odisseu, lhe enfeitiça de tal modo que liquida o rebanho de bois e carneiros da tropa, achando que estaria matando seus generais. Descoberto o erro, Ájax se sente ainda mais envergonhado, mas não arrependido. Na sua visão, seu ato de vingança estaria plenamente justificado. Ao preteri-lo, os generais gregos agiram como seus inimigos fossem. Descoberto o erro, impossibilitado de cumprir o ato de vingança, Ájax se suicida. Na parte final da peça, Odisseu dá mostras mais uma vez de sua sabedoria ao convencer os generais aqueus que Ájax deveria ter direito às honras fúnebres devidas a um herói; os generais o consideravam um traidor, e não queriam deixar que ele fosse enterrado. O que distingue Odisseu de Menelau e Agamêmnon é a sua percepção da fragilidade humana diante da força dos deuses. Ájax sempre havia menosprezado a ajuda divina e sofreu consequências graves por isso. Menelau e Agamêmnon, assim como Odisseu, são pios e seguem a risca os vaticínios e prescrições divinas, porém, ao contrário do último, pecam pela soberba. Odisseu, ao contrário, sabe que na vida humana tudo é instável. Hoje, se está por cima, mas sobre o amanhã ninguém sabe. A incerteza quanto ao futuro traz sabedoria, na medida em que nivela, aos olhos de Odisseu, todos os homens. Ninguém está imune, pensa Odisseu, de cometer os mesmos erros de Ájax. Como se sabe, Odisseu terá suas façanhas contadas no poema épico homônimo de Homero – o seu segundo grande poema. A razão dessa ‘homenagem’ está explicada aqui; Odisseu era um modelo de sabedoria e astúcia. Sófocles e os outros tragediógrafos, ao mesmo tempo em que entretinham, educaFilosoFiA | Conhecimento Prático | 37

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PlATÃo E As DEFiNiÇÕEs DE JUsTiÇA No primeiro livro, daquela que é considerada sua obra prima, A República, Platão coloca lado a lado as definições de justiça da épica - e, em certa medida, da tragédia -, “fazer bem aos amigos e mal aos inimigos” (332a-e), da lírica, “dar a cada um, o que lhe for devido” (331a-e) e da sofística, “a justiça é a conveniência do mais forte” (338c). Ao longo de todo o diálogo, Sócrates irá mostrar porque nenhuma dessas definições é a adequada. Como sabido, Platão discordava da posição dos sofistas que acreditavam poder ensinar a virtude política a quem quer que seja. Na República irá demonstrar que só determinadas pessoas nascem com o dom da sabedoria política. Aquele que não possui de nascença uma alma afeita à prudência e à sabedoria não pode governar a cidade. A política, assim como as outras atividades, exige um tipo específico de habilidade e técnica. Um treinamento externo não vai conseguir fazer despertar esse dom se o aluno já não o carregar dentro de si. Platão defende um tipo

atenuado de regime aristocrático, pois apesar de acreditar que os melhores, isto é, os melhores não em força, mas em sabedoria, devam governar, não crê que o talento político possa ser herdado de pai para filho, é preciso que se nasça com ele. Percebemos com essa exposição que a tradição filosófica grega está em direta conexão com a tradição dramática e poética. A famosa expulsão dos poetas da cidade ideal no livro X da República deve, por isso, ser considerada como um mero artifício retórico. Platão só faz uso desse artifício, por querer enfatizar a sua posição, não porque acreditasse de fato que as educações política e moral pudessem ser realizadas sem a ajuda dos poetas e dramaturgos. Infelizmente, muita gente levou essa expulsão a sério e até hoje sofremos os efeitos colaterais dela. A Poesia e a Literatura foram equivocadamente expulsas dos departamentos de filosofia e em seu lugar colocamos as ‘deusas’ Ciência e Epistemologia. Os gregos nos legaram uma lição riquíssima que não soubemos aproveitar. Ao invés de estimular nossas escolas e universidades a adotarem em seus currículos, além das ciências, as artes, em pé de igualdade, menosprezamos o seu papel na educação e conferimos-lhes um papel subalterno na mesma. Nossos poetas e escritores nacionais são esquecidos, quando, na verdade, poderiam estar dando uma enorme contribuição para a formação moral de nossas crianças e jovens. Esse quadro não irá mudar, infelizmente, enquanto não recuperarmos o sentido verdadeiramente humanístico da educação. Para tal é preciso que a sociedade mude e veja no artista não a figura vaidosa e desconectada com o mundo, mas sim alguém que almeja ser reconhecido por sua contribuição para o engrandecimento moral de todos.

PLATÃO. República São Paulo: Martin Claret W. JAEGER. Paideia, a formação do homem grego, Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2010. SÓFOCLES. Ájax ,Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

REFERÊNCIAS

vam politicamente o público adulto de suas peças. Aqui, Sófocles ilustra com o exemplo de Ájax a fragilidade dos pressupostos da justiça heroica, representada por Ájax. O mote “fazer bem aos amigos e mal aos inimigos” havia servido para justificar a guerra de Troia. A ofensa feita à honra de um amigo, o rapto de Helena por Páris, fez com que todos os seus amigos quisessem lhe socorrer e lhe ajudar a fazer justiça e restituir-lhe a honra perdida. Mas, a partir do momento em que um dos amigos se sente ofendido por outro amigo, logo este se torna seu pior inimigo. Vê-se, assim, que essa justiça é muito frágil. Ela não pode servir, portanto, como critério de justiça política para a democracia. A democracia necessita de um tipo de justiça que esteja acima dos laços de amizade e ódio entre seus cidadãos.

João B. Carvalho & Susana de Castro. Educação, Ética e Tragédia. Rio de Janeiro: Nau, 2009.

*SUSANA DE CASTRO é professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora, entre outros livros, de A teoria aristotélica da substância (Contraponto, 2008), Educação, Ética e Tragédia (Nau Editora, 2009, com João B Carvalho) e organizadora de Introdução à filosofia (Vozes, 2008).

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Michel

Foucault e a noção de Verdade Da pequenez da invenção à parrhèsia socrática, entenda a importância da verdade no percurso teórico do pensador francês. TÂNIA M. B. AGUIAR* FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 41

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proposta deste texto é refletir acerca da noção de verdade no percurso teórico de Michel Foucault. Para isso, os pontos de apoio serão a breve análise de uma conferência (“A verdade e as formas jurídicas – I”) proferida por este autor no Rio de Janeiro em 1973 e de uma ‘parte’ do percurso deste autor, designada por muitos, como a ‘terceira fase’ - o último Foucault, o Foucault da Ética. A relação estabelecida entre esses dois momentos foucaultianos é o evidente interesse deste autor, nessas ocasiões, pela questão da verdade. O que não significa admitir que a questão da verdade estivesse ausente em outros momentos no percurso de Michel Foucault. A utilização do termo percurso para designar o que muitos autores denominam ‘obra’ aponta para a identificação de um caminho possível para ‘ler’ os escritos, as aulas, as entrevistas e as conferências de Michel Foucault, que nada tem de definitivo e de linear. Assim, são colocadas de antemão as condições de ‘leitura’ do pensamento foucaultiano que sustentam este texto, pois são dois momentos deste percurso separados cronológica e sucessivamente. Ou seja, admite-se que tal percurso pode ser lido como descontínuo, não necessariamente linear, com rupturas, mas nem por isso assistemático ou incoerente. Ler o percurso foucaultiano como descontínuo significa, consequentemente assumir que a reflexão aqui proposta não terá

como objetivo justificar ‘a passagem metodológica e cronológica’ da fase Arqueológica para fase Genealógica e desta para a fase da Ética, e tampouco delinear uma metodologia própria a cada uma delas. Mas, de outra forma, observar que o descontínuo provoca a ruptura necessária para que tal percurso não seja refém daquilo que ele mesmo denuncia, a saber, a configuração de uma teoria acabada e detentora da verdade histórica – filosófica sobre quem somos. O descontínuo possibilita, paradoxalmente, a circularidade e também a assunção da pergunta foucaultiana norteadora, mas não totalizadora, ‘como nos tornamos o que somos’ que desvela, por ela mesma, ‘todas as descontinuidades que nos atravessam’. Como afirmou Foucault (1982), a ‘sistematização’ de seu pensamento está muito clara e tem pouco a ver com a metodologia de cada uma das fases - denominadas por ele como problemas: “Os problemas que estudei são os três problemas tradicionais. 1) Que relações mantemos com a verdade através do saber científico, quais são nossas relações com ‘esses jogos de verdade’ tão importantes na civilização e nos quais somos simultaneamente sujeitos e objetos? 2) Que relações mantemos com os outros, por meio dessas estranhas estratégias e relações de poder? 3) Quais são as relações entre verdade, poder e si mesmo”? Assim, observamos que a problematização proposta por Foucault com suas ‘questões’

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que provocam uma circularidade, referenciamse ao sujeito e a sua experiência com a verdade. Diferentemente da tradição da filosofia moderna que se preocupou com a analítica da verdade, Foucault não concebeu a verdade como única e idêntica em toda parte, situando o problema da verdade – filosófica e historicamente – no âmbito da constituição da subjetividade. Especialmente em seus últimos trabalhos, Foucault centra sua preocupação na verdade. Como afirma o filósofo, “meu problema não deixou de ser sempre a verdade [...] mas a pergunta explícita é: como uma relação com a verdade constitui a subjetividade?” A partir desta pergunta, observa-se a busca do autor por marcar a diferença entre o sujeito moderno e o sujeito da antiguidade, pois, de acordo com suas análises destacadas em A Hermenêutica do Sujeito, a partir de Descartes, o lugar da verdade já está constituído, em contraposição “a um sujeito que se forma e se torna outro em relação à verdade” (Foucault, 2006). Ou seja, na ‘história da verdade’, Foucault contrapõe o acesso a ela pelo conhecimento – e somente por ele, o que não ‘salva’ o sujeito, não ‘transfigura o seu ser’ – característica da idade moderna, com as práticas da Antiguidade, especialmente na Grécia (do Século 5 a.C. até 5 d.C.), quando o ‘cuidado de si’ (epiméleia heautoû) era praticado e transformava o sujeito. As análises de Foucault sobre a relação do sujeito e a verdade incidiram sobre as práticas ocorridas ao longo dos séculos que transformaram ‘o cuidado de si’ no ‘conhece-te a ti mesmo’, um procedimento cartesiano, “que pôde ser aceito, desde o Século 17 em certas práticas e procedimentos filosóficos” Nesse sentido, suas conclusões apontam para o obscurecimento do ‘cuidado de si’ pelo ‘conhecer a si mesmo’, que exila o sujeito da ‘experiência da verdade’, pois tal sujeito – do conhece-te a ti mesmo – é um sujeito cognoscitivo ou epistemológico, portanto a verdade é exterior a ele. De acordo com Santos (2003), Foucault conclui que esse ‘saber’ – oriundo do imperativo ‘conhece-te a ti mesmo’ - sem experiência, sem experimentação – logo, sem riscos – e que resultada num sujeito ‘fixo’, é desconhecido dos antigos, pois o ‘cuidado de si’ implicava a experiência e a transformação.

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a Parrhèsia

De acordo com Foucault, no texto “Coraje y Verdad”, a palavra parrhèsía é comumente traduzida para o inglês como ‘free speech’ e para o francês como ‘franc parler’. (Houaiss: parrésia=liberdade oratória; afirmação corajosa). Camargo e Mariguela (2007) afirmam que a palavra parrhèsía tal como usada primeiramente por Eurípedes, “define uma função discursiva. Como ato de enunciação o sujeito não está separado daquilo que fala. Sua constituição como sujeito falante é determinada por aquilo que diz.”

EXPERIÊNCIA DA VERDADE Assim, para Foucault, a experiência da verdade pode ser um acontecimento que ‘liberta’ o sujeito, pois não se estabelece numa busca pela definição do que é a verdade ou de onde está a verdade, mas como uma atividade que comporta riscos e pode oferecer outra maneira de viver. Tal experiência da verdade está diretamente relacionada à a parrhèsía. Observa-se que ao estudar o discurso filosófico na forma socrática – platônica -, Foucault atribuiu grande ênfase à ‘parrhèsía’ porque viu nela uma experiência de verdade. Ou seja, tal prática de verdade produziria um saber. Dávila (2006) propõe que, ao estudar a parrhèsía, Foucault nos lega uma ‘ética da palavra’, afirmando que ‘não há autêntica inquietude de si que não seja a que se dá no jogo do dizer a verdade pela palavra’. Para este autor, Foucault extrai da filosofia antiga – graças ao seu prisma interpretativo da noção de ‘parrhèsía’ – a defesa das formas discursivas que intentam colocar à prova a vida, pela verdade. Ou, de acordo com Gros (2004), uma verdade pela palavra cuja condição de possibilidade não é lógica, mas ética. Os estudos de Foucault sobre a parrhèsía se concentram em sua maior parte nas suas últimas conferências denominadas “Coragem de Verdade”. Nestas conferências, Foucault afirmou que seus estudos não incidiam sobre o problema da verdade, mas sobre a verdade como atividade, por isso, tratou de analisar as diversas faces da parrhèsía. Rajchman (1994) propõe que a ênfase atribuída por Foucault à parrhèsía – ‘a motivação das últimas conferências’ – residiria na seguinte questão: “será possível, hoje, inventarmos um discurso livre, que não esteja baseado em nenhum conhecimento positivo sobre nós mesmos e sobre o mundo [...] e que inaugure novas possibilidades naquilo que podemos nos tornar”? Ainda que tal questão esteja mais clara no pensamento de Foucault após o estudo da ‘parrhèsía’, que propicia a explicitação de seu objetivo ao estudar a verdade como atividade – ou como experiência, portanto como motor de invenção e transformação – é possível supor que tal questão estava colocada anteriormente e que as ideias

foucautianas sobre a verdade após o estudo da ‘parrhèsía’ consolidam uma ‘velha’ interrogação colocada muito antes em seu percurso: “quanto custa à razão dizer a verdade?” Aproximadamente dez anos antes de estudar a ‘parrhèsía’ e de pensar a verdade como experiência, Foucault proferiu uma série de conferências no Brasil – na PUC do Rio de Janeiro, em 1973 – que resultou num livro denominado A verdade e as formas jurídicas, cujo teor prenuncia o conteúdo de seu livro Vigiar e punir e também aquele que seria o seu ‘terceiro problema’: quais são as relações entre a verdade, poder e si mesmo? Neste sentido, voltaremos nossa leitura especialmente para a 1ª. Conferência, pois é quando Foucault expõe seu ‘método’ de pesquisa, afirmando que para ele, em acordo com o pensamento de Nietzsche, só é possível pensar numa ‘história da verdade’ quando se se desembaraça dos grandes temas do sujeito do conhecimento –‘ao mesmo tempo originário e absoluto’. Foucault declara a partir dessa exposição ‘metodológica’, a base que norteia sua pesquisa, uma vez que conclui – como vimos anteriormente – que a experiência da verdade, tal como encontrada entre os gregos na antiguidade, sucumbe ao imperativo do ‘conhece-te a ti mesmo’ cartesiano que se caracteriza por ser uma forma de consciência. REFLEXÃO METODOLÓGICA Nesta conferência Foucault, se propõe uma reflexão metodológica a fim de alcançar seu objetivo que é o de mostrar “como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascerem formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. O próprio sujeito do conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.” Com isso, esclarece que tal reflexão metodológica é o ponto de convergência de três ou quatro pesquisas divididas em eixos: 1º Eixo: histórico, 2º Eixo: metodológico, 3º Eixo: reelaboração da teoria do sujeito.

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Quanto ao primeiro eixo, histórico, Foucault estabelece um diálogo com ‘certo marxismo acadêmico’ e sugere que este apresenta um defeito muito grave: “o de supor, no fundo que o sujeito humano – o sujeito do conhecimento – e as próprias formas de conhecimento são de certo modo dados prévia e definitivamente e o sujeito é definitivamente dado (...)”. E, com isso, afirma que no século 19, a partir das práticas sociais – de controle e vigilância – nasce um novo tipo de sujeito: um novo sujeito do conhecimento. Ao tratar do segundo eixo, metodológico, que ele chama de ‘análise dos discursos’, propõe que tal análise não se restrinja somente aos aspectos linguísticos, mas que se amplie o campo para além destes aspectos, considerando também os jogos estratégicos, de ação e reação, de pergunta e resposta, de dominação e esquiva e de luta. Desse modo, Foucault propõe uma “análise do discurso como jogo estratégico e polêmico.” O terceiro eixo, reelaboração da teoria do sujeito, que nos interessa especialmente, é, segundo Foucault, o ponto de convergência e o que define os dois primeiros eixos. O autor afirma que a teoria do sujeito foi profundamente modificada e renovada por algumas teorias ao longo dos últimos anos. Neste sentido, situa a Psicanálise como a teoria que “reavaliou da maneira mais fundamental a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito, que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes.” Mas, segundo Foucault, ainda que a Psicanálise tenha colocado em questão a posição absoluta do sujeito, a Teoria do Sujeito ‘permaneceu ainda muito filosófica, muito cartesiana e kantiana’. A partir dessa afirmação, Foucault faz a pergunta que certamente norteará suas pesquisas futuras quanto à questão da verdade: “Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior da história, e que é a cada instante fundado e refundado na história? É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir.”

Assim, sob um fundo teórico que sustenta a constituição histórica do sujeito do conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais, Foucault propõe a hipótese de que há duas histórias da verdade: uma espécie de história interna e uma história externa – exterior. Quanto à história interna, Foucault afirma que é uma história que se corrige pelo seu próprio princípio de regulação. “É a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências.” Por outro lado, a história externa/exterior, é aquela na qual a verdade se forma, em nossas sociedades, os vários lugares, “onde certo número de regras do jogo são definidas – regras do jogo a partir dos quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber.” Após uma explanação geral sobre algumas práticas regulares que definem tipos de subjetividade – que serão exploradas nas demais conferências – Foucault retoma a reflexão metodológica e se volta para Nietzsche, afirmando que entre os modelos que pode lançar mão para suas pesquisas, este filósofo “é o melhor, mais eficaz e mais atual”, pois nele encontra-se um “tipo de discurso que faz a análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de certo tipo de saber” ORIGEM E INVENÇÃO Das questões propostas por Nietzsche, Foucault se detém especialmente na questão da Origem e da Invenção que constituem conceitos fundamentais para a compreensão da ‘história da verdade’ que está além de uma história interna e se constitui, de acordo com Foucault, numa ‘política da verdade’, pois não está fundamentada sobre o conhecimento, mas faz emergir dela mesma o conhecimento, entendido como relação estratégica, como efeito, ou em termos nietzschianos, como invenção – Erfindung. Ou seja, dizer que o conhecimento foi inventado significa, de acordo com Foucault, em sua leitura de Nietzsche, dizer que ele não tem origem. Os termos invenção (Erfindung) e origem (Ursprung) estão, para Nietzsche, opostos FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 45

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fundamentalmente. Para ele, a invenção – Erfindung – é ruptura, que tem como ponto crucial: “ser algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável (...) todos estes começos são opostos à solenidade da origem, tal como é vista pelos filósofos”. A partir deste ponto, ao admitir que o conhecimento seja efeito, Foucault segue com Nietzsche e expõe outro sentido atribuído ao conhecimento no pensamento nietzschiano: além de não estar ligado à natureza humana e nem derivar dela, o conhecimento também não está relacionado com as coisas à conhecer. Segundo Foucault, Nietzsche pensa: entre o conhecimento e o mundo a conhecer há tanta diferença quando entre o conhecimento e a natureza humana. Contudo, Foucault afirma que não foi sua intenção mostrar a concepção nietzschiana do conhecimento – “pois há inúmeros textos contraditórios entre si a esse respeito” – mas, apontar para os elementos existentes no pensamento de Nietzsche que “põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica do que eu chamaria a política da verdade”. Assim, antes de aliar-se ao pensamento nietzschiano, Foucault pôde expor sua ‘metodologia’ que pretende mostrar aquilo “através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade (...) só pode haver certos tipos de sujeitos de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo e que se forma o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.” Neste ponto, encerramos a análise estrita do texto A verdade e as formas jurídicas para lançar uma hipótese que é audaciosa por si mesma ao adentrar no campo epistemológico e provocar importantes controvérsias: ao estudar a ‘parrhèsia’, o ‘último Foucault’ não estaria, de forma alguma, atrelado aos ‘baixos começos, à pequenez meticulosa? Não estaria Foucault buscando na ‘experiência da verdade’ própria da ‘parrhèsia’ uma nova possibilidade para sermos diferentes do que somos, a partir dos ‘baixos começos’? Como vimos anteriormente, muitos autores entendem que esse era o objetivo de Foucault ao

estudar a ‘parrhèsia’. Mas não é só. Não estaria Foucault, neste momento, inaugurando uma ética da palavra, muito mais ‘aliado’ ao pensamento nietzschiano do que ele mesmo admitiu na 1ª Conferência sobre ‘a verdade e as formas jurídicas’? A hipótese está colocada e tendemos a responder a ela afirmativamente. Mas, tal hipótese só foi possibilitada pela paradoxal descontinuidade circular do pensamento foucaultiano o que nos impede – paradoxalmente – afirmála contundentemente ou negá-la. * Tânia M. P. Aguiar é mestre e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Colégio Fecap. E-mail: tania.aguiar@usp.br

REFERÊNCIAS ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. CABRERA, M. El último Sócrates de Foucault. In: ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. (pp.19-39) CAMARGO, A. M. F. & MARIGUELA, M. Apresentação. In: Cotidiano escolar – emergência e invenção. 2007. On-line: http://www. fe.unicamp.br/seriviços/eventos. DÁVILA, J. Ética da palavra e vida acadêmica. In: GONDRA, J. E KOHAN, W. (org.) Foucault 80 anos. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2006. (pp. 151-175) FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Tradução: Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Tópicos) _____________. Ética, Sexualidade, Política. Coleção Ditos e Escritos. Organização e seleção de textos: Manoel de Barros da Motta; Tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Barbosa. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

_____________. Coraje y verdad. In: ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. (pp.267-276) _____________. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: NAU Editora,2003 GROS, F. Foucault – a coragem da verdade. Tradução:Marcos Marciniolo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. RAJCHMAN, J. Eros e Verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. REVEL, J. O pensamento vertical: uma ética da problematização. In: GROS, F. Foucault – a coragem da verdade. Tradução: Marcos Marciniolo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.(pp.65-88) SANTOS, F. El riesgo de pensar. In: ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. (pp.40-106)

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oUTRo ENFoQUE

CORPO E ALMA, LIBERDADE E RESPONSABILIDADE.

DENTRO DO PROCESSO ESCOLAR, SÃO TECIDAS AS RELAÇÕES DE PODER AS QUAIS

MICHEL FOUCAULT DENOMINOU DE

“ANÁTOMO-POLÍTICA DO CORPO”.

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Foucault vai à escola POR PAULO GHIRALDELLI JR.*

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ronto para a morte, Sócrates a saudou dizendo que ela seria sua libertação do corpo. Modificada, essa expressão de sócrates poderia endossar um platonismo rasteiro, que afirmaria algo como “o corpo é a prisão da alma”. Os cristãos preferiram não falar em prisão. Douraram a pílula dizendo que “o corpo é o templo da alma”. Já em nossos tempos, o nietzschiano foucault, na contramão, nos fustiga dizendo que “a alma é a prisão do corpo”. A alma é a prisão do corpo? Como? O que Foucault quer dizer com uma frase desse tipo que, convenhamos, não deixa de ser esquisita? O trecho em que Foucault expõe essa ideia está em disciplina e punição: o nascimento da prisão. Faz parte de um parágrafo extremamente elucidativo: “(…) mas não vamos errar: não é este o homem real, o objeto do conhecimento, da reflexão filosófica ou da intervenção tecnológica, que foi substituído pela alma, a ilusão dos teólogos, é já ele próprio o efeito de uma subjetivação mais profunda do que ele próprio. Uma “alma” o habita e o traz à existência, a qual é ela própria um fator da dominação que o poder exerce sobre o corpo. A alma é o efeito do instrumento de uma anatomia política; a alma é a prisão do corpo” . Foucault diz que a alma é produzida. Antes há o corpo. Mas quando o convocam para ser indivíduo, eis que o chamam já como sujeito e, assim, como quem deveria poder dizer “não, não vou” ou “sim, vou”. Quando o corpo começa a esboçar esse comportamento, acreditando na existência da liberdade, já o faz por meio da alma – eis que ela, recém nascida, abraça o corpo e se põe a querer conduzi-lo. Em outras palavras: ao ser convocado como livre, o indivíduo responde não pelo corpo, a quem foi

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dirigida a pergunta, e sim pela alma. Mesmo jovem, a xereta se intromete na conversa. Mas isso porque a conversa já é mesmo com ela – efetivamente com ela. A conversa é com quem já está sendo tratado como indivíduo e, então, este deve mesmo responder pela boca da alma. Seria estranho para quem inicia a conversa que o corpo viesse a falar. Corpo não fala. A boca mexe, ela é corpo, mas quem fala é a alma. Não é assim que nós dizemos, na civilização? Não é isso que é a modernidade – o tempo em que celebramos a alma, a psique? O caso todo fica claro se notarmos que no exato momento em que se requisita a presença do corpo, todas as ações do poder já estão se desenvolvendo de modo a produzir quem deve responder ao chamado – a alma. As ações do poder se mostram: afinal, quem é que requisita a todos nós como indivíduos, ou seja, como sujeitos modernos? São as instituições nas quais adentramos, exatamente para sairmos delas (se sairmos) como indivíduos autênticos. Foucault fala de hospitais, penitenciárias, clínicas e várias outras instituições, mas ele não se esquece de uma das principais, a escola. Quando entramos na escola, muitos dizem que temos alma. Mas não é tão verdade assim. Até temos e, como aparece no parágrafo destacado acima, Foucault lembra que quando somos requisitados já ocorreu uma subjetivação profunda. Todavia, no tempo e no âmbito da escola, ainda somos uma alma fraquinha. Entramos na escola como corpos. Somos levados lá na escola como corpos. Uma vez na escola, caímos nas malhas de algo chamado pedagogia. Suas regras não são diferentes que as que nossos corpos criaram. São dizeres de “sim” e de “não” que nossos corpos inventaram e foram aproveitadas para compor teorias FilosoFiA | Conhecimento Prático | 49

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a Vigiar e Punir

Publicado em 1975, o livro Vigiar e Punir – história da violência nas prisões, do filósofo francês michel foucault (1926-1984), é uma bibliografia fundamental nos cursos de ciências sociais, direito, psicologia e filosofia. Na obra, editada no Brasil pelas Vozes (atualmente na 36 edição), Foucault realiza uma abordagem original dos sistemas coercitivos de vigilância e punição.

a Welfare State

Welfare State é a designação em inglês para o Estado de bem estar social, organização político-econômica na qual o estado seria garantidor de benefícios sociais aos cidadãos, ou seja, um estado-providência. A política do welfare state teve papel importante nos anos que se seguiram à grande depressão na europa e se expandiu no pós segunda guerra mundial.

a Piaget

Educador, psicólogo e epistemólogo suíço, jean piaget (1896-1980) foi professor na universidade de genebra e teve contribuição destacada na questão do desenvolvimento cognitivo a partir da teoria da epistemologia genética.

sobre nós mesmos. Uma vez tecidas sob o nome de “pedagogia”, essas normas se apresentam mais pomposas e se distribuem pelos sons emitidos pelos professores, pela maneira como a arquitetura da escola nos dispõe e pela legislação inerente aos estatutos dos estabelecimentos. Tudo isso é Pedagogia. Ganha nomes particulares como currículo, laboratório, recreio, tarefa, prova, etc. Na escola, sob a pedagogia, para tudo que nosso corpo quer temos de encontrar justificações. Temos de justificar e, depois, somos cobrados de modo a dizer se a justificação merece um “sim” ou um “não”. A moeda dada na escola tem dois lados, um é a liberdade e o outro é a responsabilidade. Quando estamos para sair da escola, percebemo-nos mais pesados. Nosso corpo se desenvolveu? Sim! Mas o peso é bem maior que aquele dado pelo corpo. Saímos mais pesados porque ali dentro da escola ganhamos um regime de engorda para a alma. Ela foi sendo inflada por meio de ditos, nãoditos e desditos. Mas, também, é evidente, pelas punições, castigos e elogios que, enfim, nos deram responsabilidade. A alma é moldada por isso tudo, mas seu recheio é a culpa. Nosso corpo sai da escola preso pela alma. Ele sente que caminhará eternamente a partir do comando do tecido da alma. Este tecido se enerva a partir da culpa e, nos chamados “homens bons”, pela expressão do arrependimento. Disseram que era responsabilidade. Mas, sabe-se bem, não há responsabilidade alguma – eis aí uma palavra sem substância. Na hora que olhamos para a alma, vemos inúmeras garrinhas de culpa que mordem veias, nervos e órgãos do corpo. A alma não prende o corpo “por fora”. Ela é como um musgo que prende a casa ao se distribuir por todas as suas paredes. E onde há frestas, esse musgo se enfia e tudo preenche. É assim que a alma prende o corpo. Qualquer tentativa de tirar o musgo e eis que pedaços de tijolos vão junto. Carne, ossos e sangue são desgrudados se puxamos partes da alma. O corpo pode morrer se tentamos nos livrar da alma. Quando o corpo está já plenamente preso pela alma, podemos sair da escola e, enquanto sujeitos (como sujeitos morais – pessoas), nos proclamamos indivíduos livres. Tudo aquilo que foi celebrado por Kant como o processo do iluminismo, que deveria esclarecer o homem e tirá-lo da menoridade, isto é, arrancá-lo da condição de quem não pensa pela própria razão, é visto por foucault como

fruto de relações de poder. O processo escolar pelo qual passamos recebe o nome, na terminologia de Foucault estampada em a Vigiar e Punir e no primeiro volume da história da sexualidade, de “anátomo-política do corpo”. Em meio ao desdobramento desse processo e quando na nossa entrada na vida adulta, integramos mais prontamente outro processo, o da “biopolítica da população”. Ambos compõem as práticas de poder que produzem a modernidade. Nasce aí, com a noção foucaultiana de modernidade, o que ele mesmo denomina de “sociedade disciplinar”. Uma vez adultos, passamos diante do estado e ele nos batiza cidadãos. Ganhamos números para respondermos à previdência social, ao emprego, ao fisco, ao trânsito, ao matrimônio e ao túmulo. Nossos esposos, uma vez viúvos, pegam esse número para reivindicar a parte de nossas aposentadorias. Esse número compõe, ainda, as estatísticas para os cálculos de vida média da nação. Ele mensura e aponta o “desenvolvimento” da nação. Toda a política de transição do estado liberal e deste para o a Welfare State, deixando para trás o estado do antigo regime, nada é senão o que Foucault chama de “biopolítica da população”. O estado passa a administrar a vida, abandonando a prática do antigo regime de só usar do poder para administrar as condenações, ou seja, a morte. A modernidade é a época em que se estabelecem dezenas de práticas de controle da vida. Taxas de natalidade e números a respeito da vida média se tornam elementos fundamentais do exercício de governo. Números e mais números se casam com a biologia e esta, então, ganha novo status. O número nos devolve à abstração que a condição de indivíduo parecia nos ter tirado. Só nos tornamos números porque somos corpos presos por identificação clara, dada pela alma de cada um de nós. Cada alma fala e se identifica. Ao dizer o nome e assumir toda, e qualquer culpa, que se está distribuindo naquele momento, ganha também um número, volta ao campo abstrato. Dilui-se entre tantos outros números. Fomos identificados porque adquirimos alma e esta, por sua vez, se fez pela responsabilidade. Mas logo após isso, ao nos tornarmos números, nossa responsabilidade é mensurada exatamente pela correlação entre número e adjetivos. Quando devemos um dinheiro para uma loja caímos no quadro dos números de “CPF sujos”. Caso

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olhar agressivo ao professor, mas que demonstre simplesmente curiosidade e respeito. À medida que alma prende o corpo, os dias da palmatória se mostram bem contados. A “sociedade disciplinar” foucaultiana é a sociedade moderna enquanto lugar da crescente suavidade da dominação. A sala de aula é o lugar par excellence dessa disciplinarização. Conformado o corpo ao banco escolar, o corpo responde a chamada – como disse acima, já é a alma que fala. Diz seu nome e já ganha um número. Começa então o ritual que, no seu todo, é o que os educadores irão dizer, ao final, que ocorreu. Eles dirão: ocorreu o exercer da pedagogia. Serva ou não da psicologia, essa pedagogia pode receber inúmeros nomes, pode-se falar que ela é “construtivista” ou “libertadora”. Uns a batizam com nomes, tais como Vigotsky ou a Piaget, outros preferem usar de auto-ajuda, ou seja lá o que for que alunos de pós-graduação possam inventar. Mas, antes de tudo, a pedagogia é uma vitamina especial, que cria os ossos do corpo como paredes que devem ficar porosas de modo que o musgo possa se agarrar cada vez mais a elas. O musgo da alma precisa preencher tudo. Em todo cantinho ele precisa colocar aquilo que Nietzsche dizia que faz um homem ser homem: a culpa. Quando você vai com seu corpinho fazer a matrícula, tudo se faz no sentido de que, anos depois, você saia da escola como um bípedesem-penas, mas que tenha alma. “Você não tem alma?” – Perguntarão todos a você. “Você não é humano?” – Também perguntarão isso. Todos cobrarão de você que abandone o grilo falante e não mais se comporte como bonecos de pau, só com corpo, mas com consciência, ou seja, com alma. Pinóquio só virou menino de verdade quando agiu com alma, ou seja, quando se tornou consciente e, portanto, bom. Ora, mas você vai, sem dúvida, agir com alma e pela alma. Ela é o musgo inflado que não pode mais ser tirada do corpo sem que este venha a perecer. Tudo é disposto para que ao final o sujeito moderno – aquele que é “consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos” – se faça presente protagonizando o indivíduo. Foucault entende que é o poder – como nas ações descritas acima – que cria o indivíduo que, para ser tal como é, se põe como um corpo encharcado de alma.

ARAUJO, Paulo Roberto M. de. Identidades Contemporâneas. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2006. BRANDÃO, Junito. Teatro Grego – origem e evolução. São Paulo: Ars Poética, s/d. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1998. NIETZSCHE, Friderich. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

REFERÊNCIAS

nossa dívida seja saldada, limpamos o nosso nome porque limpamos o número do CPF. Tudo que ocorreu na relação entre a alma que prende o corpo enquanto responde pela condição deste de ser indivíduo, se fez por tramas do “pode” e do “não pode”. Ou seja, tramas do poder. Tudo isso são as tais ações e relações de poder. A essa altura, então, Foucault já está longe da ideia de um poder que se faz pela política em seu sentido tradicional, a política dos partidos e das ações de governo. Foucault vê o poder na governabilidade que se produz em cada um no interior das instituições, entre elas, uma principal porque realmente se ocupa da própria requisição e produção do indivíduo: a escola. Volto à “anátomo-política do corpo”. Para uma boa parte de nós, ela começa com a matrícula. Alguém nos pega pela mão e atende a requisição da instituição para que se cumpra um direito que é um dever, a obrigatoriedade da educação. A escola lá está – no horizonte, sedenta por nós. Quando cada um senta num banco escolar, seu corpo se conforma a um espaço. Ele é moldado para que se dê sequência o processo de criação da alma. Ele recebe então a matemática ou qualquer outro conhecimento, mas ninguém conta grandes mentiras ali não, pois cada coisa já vem com o nome real: disciplina. A matéria é o assunto, mas a prática do assunto é a disciplina. Passa-se pela grade curricular. Grade! E então se é disciplinado por meio da Matemática, Português, Geografia, História e tudo o mais. A disciplina não é o aparato de punição física ou simbólica. Isso é apêndice disciplinar. A disciplina da sociedade moderna, a “sociedade disciplinar” de Foucault, é a que se faz por meio do que realmente é chamado de disciplina na escola: as ciências, as filosofias, as artes e tudo o mais que preenche o dia da alma na escola, pelo qual ela amordaça o corpo na carteira escolar e dispõe o indivíduo ao elogio ou ao dissentimento. Não se adestra corpos se não se educa a alma. Não se produz a alma no corpo senão por esse contínuo jogo de distribuições de “pode” e “não pode” que se faz na resolução de uma equação, no cruzamento de pernas, na leitura sem mexer os lábios, na forma de segurar o lápis, na opinião sobre o fato histórico qualquer e no olhar não atrevido ao professor e, ao mesmo tempo, no

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

* PAULO GHIRALDELLI JR. é filósofo, escritor e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

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O Fil贸sofo dos Artistas

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Morto há cento e cinquenta anos, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer tem exercido influência sobre gerações de criadores de várias linguagens artísticas. POR SERGIO AMARAL SILVA*

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COMMONS

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aGustav Mahler

( 1860-1911)– Maestro e compositor austríaco, atribuía a Schopenhauer a autoria dos textos mais profundos que teve oportunidade de ler, e que sem dúvida inspiraram-no em sua atividade criativa. Autor de grandes sinfonias, como o poema sinfônico “A canção da terra” (1907-1909), sua obra estabelece uma espécie de ponte que liga a música do século 19 à do período moderno. Em suas sinfonias, nota-se um aspecto sombrio, por vezes até funesto, frequentemente com a aparição da morte.

a virada do século 19 para o 20, quando seu falecimento completavaquarenta anos, Schopenhauer era considerado o filósofo mais lido do mundo. Ainda hoje, no sesquicentenário de sua morte, causa admiração o encanto que gerações de teóricos e artistas sempre revelaram pela obra do pensador alemão. O músico a Gustav Mahler (1860-1911), por exemplo, foi um de seus leitores atentos. O compatriota de Schopenhauer, Friedrich Nietzsche (18441900), igualmente não escondia o reconhecimento pela importância de seu conterrâneo e, em livro da década de 1870, fez questão de admitir que a influência do mestre foi decisiva para sua opção de tornar-se um filósofo. Sabe-se que o compositor Wagner (1813-1883) escreveu um livro sobre teoria musical baseado em trabalhos semelhantes de Schopenhauer, que inspirou ainda Liszt, Brahms e Schömberg, além de vários escritores, dentre os quais Borges, D’Annunzio, Pirandello, Tchékhov, Dostoiévski, Thomas Mann, Beckett, Joyce, Tolstói, Maupassant, Proust e Machado de Assis. Em relação a esse ficcionista brasileiro, a especialista Rosa Maria Dias, professora da UERJ, com pós-doutorado pela PUC-RJ, identificou a “presença” de Schopenhauer em Memórias Póstumas de Brás Cubas, obraprima machadiana publicada em 1881, em que transparece o ponto de vista essencialmente pessimista do teórico de Danzig. O romance, contado por um “defunto-autor”,

subverte a ordem cronológica convencional, ao narrar os acontecimentos a partir da morte de Brás, com o delírio que atormenta a personagem nos instantes finais de sua existência terrena. Nesse estado mental alterado, Brás é retratado montando em um hipopótamo que o conduz até um campo onde Pandora, uma mulher imensa, tenta arrastá-lo para a morte. Ele resiste, sendo agarrado pelos cabelos pela mulher, que o obriga a presenciar toda a história da humanidade. Nas palavras de Machado para descrever as sensações de Brás Cubas no episódio, parece refletir-se o pessimismo do filósofo alemão. O Princípio da Vontade Do ponto de vista de Brás Cubas, a sucessão de desilusões demonstra que a vontade, para Schopenhauer, consiste numa espécie de sistema destinado a repetir-se eternamente.A professora Rosa Maria Dias, no ensaio Schopenhauer e a arte, acrescenta: “Mas a filosofia de Schopenhauer, para interromper esse eterno oscilar da vida entre a dor e o tédio e escapar da temporalidade repetidora que se volta sobre si mesma, que não consegue passar e que não se pode mais suportar, aponta para dois caminhos: um, temporário; outro, mais duradouro. O primeiro é o caminho da contemplação estética, o segundo, do ascetismo, o caminho dam iluminação, da negação da vontade.” No que diz respeito ao primeiro caminho, merece destaque a hierarquia das

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aBudismo artes estabelecida pelo filósofo, na qual ele classifica no estágio, digamos, mais básico, a arquitetura e, no mais elevado, a música. Ele também identifica a segunda vertente com o misticismo de origem hindu, em especial com o a Budismo, cujos conceitos foram introduzidos por ele no âmbito do pensamento filosófico alemão. Tendo-se contraposto frontalmente a pensadores como Hegel, pode-se dizer que Schopenhauer reinterpreta ideias de Kant, como a concepção kantiana de Fenômeno, a partir da qual Schopenhauer conclui que

o mundo é, na verdade, Representação. Mas ele rompe com Kant porque, para este, é impossível à consciência alcançar a realidade não-fenomênica, a Coisa-em-si. Já Schopenhauer defende que, ao tomar consciência de si próprio, o homem se percebe como um ser movido pela Vontade, princípio que norteia toda a existência humana. A mesma Vontade (combinação de aspirações e paixões) poderia ser encontrada na Natureza e em todos os seres, correspondendo à Coisa-em-si, que se acha na base de toda realidade.

Trechos do Autor “Não há consolo mais refinado na velhice do que a sensação de ter concentrado toda a força de nossa juventude em obras que jamais envelhecerão.” (Parerga e paraliponema) “A presença de um pensamento é como a presença de quem se ama. Achamos que nunca esqueceremos esse pensamento e que nunca seremos indiferentes à nossa amada. Só que longe dos olhos, longe do coração. O mais belo pensamento corre perigo de ser irremediavelmente esquecido quando não é escrito, assim como a amada pode nos abandonar se não casarmos com ela.”(A arte de escrever)

“Pois, como podemos supor, um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido.”(A arte de escrever) “Quem quer que tenha algo verdadeiro a dizer se expressa de modo simples. A simplicidade é o selo da verdade.”(Parerga e paliponema) “Quanto mais baixo estiver um homem do ponto de vista intelectual, menos intrigante e menos misteriosa parecerá aos seus olhos a existência em si mesma. Ao contrário, como ela se dá e no

que ela consiste, tudo enfim, vai lhe parecer tão-somente parte da ordem usual das coisas. Isso se deve ao fato de que seu intelecto permanece essencialmente fiel ao seu destino original, que é ser prestativo à vontade como instrumento de suas motivações e, portanto, estreitamente ligado ao mundo e à natureza como parte integral deles.”(O mundo como vontade e como representação)

Religião e filosofia baseada nas lições atribuídas a Siddartha Gautama, o Buda (“iluminado”), que viveu na Índia entre os séculos 6 e 4 a.C. Constitui um sistema de ensinamentos e práticas que pretende que seus adeptos cheguem a se libertar do sofrimento cíclico dos renascimentos, alcançando a paz absoluta, a iluminação do ”Nirvana”. Bastante difundido nos países do Oriente, segundo algumas fontes o budismo conta com até 500 milhões de seguidores em todo o mundo, assegurandolhe a posição de quinta maior religião do planeta

“Este mundo é o campo de batalha entre seres atormentados e agonizantes que continuam a existir apenas devorando-se uns aos outros.”(O mundo como vontade e como representação)

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A vidA de schoPeNhAuer

PriNciPAis oBrAs • Sobre a quádrupla raiz do princípio da razão suficiente, 1813; • Sobre a visão e as cores, 1816; • O mundo como vontade e como representação, 1819; • Sobre a vontade da natureza, 1836; • Os dois problemas fundamentais da ética, 1841; • Parerga e paraliponema, 1851;

Arthur Schopenhauer nasceu em Danzig, na Alemanha, em 22 de fevereiro de 1788. Filho de um comerciante, seu pai queria que ele o sucedesse nos negócios. Por isso, proporcionou-lhe, já aos doze anos, uma longa viagem (durou cinco anos) por vários países da Europa, como Alemanha, França, Inglaterra, Holanda, Suíça e Áustria. No entanto, o jovem preferiu a vida acadêmica e em 1807, ingressou no Liceu de Weimar e, dois anos depois, na faculdade de Medicina de Göttingen. NaUniversidade de Berlim, estudou com os filósofos Schleirmacher e Fichte, este último a quem acusaria de deturpar as idéias de Kant. Pela mesma universidade, doutorouse em 1813. No ano seguinte, depois de sérios desentendimentos com a mãe, rompeu relações com a família. Em 1818 e 19, passou uma temporada na Itália, de onde regressou com problemas financeiros. Conseguiu então um posto de professor na Universidade de Berlim, onde lecionou por apenas um semestre, em 1820. O período entre 1826 e 1832 foi marcado por diversas viagens, algumas doenças e uma nova tentativa malsucedida de empreender uma carreira acadêmica junto à Universidade

de Berlim.Em 1833, mudou-se para Frankfurt, cidade onde viria a falecer, vitimado por uma pneumonia, em setembro de 1860. Tendo recusado em 1858 o convite para tornar-se membro da Academia Real de Ciências de Berlim, passou seus últimos anos em reclusão e isolamento, afastado do convívio social, tendo como única companhia, a de seu cão. E fazia questão de justificar filosoficamente sua preferência. Afinal, como Schopenhauer costumava destacar, nos animais, ao contrário dos seres humanos, a vontade predomina, não sendo dissimulada pela máscara do pensamento racional... O filósofo, que se dedicou nessa longa temporada de isolamento à reflexão e ao aprofundamento de estudos, seria chamado por Nietzsche de “cavaleiro solitário”.

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também autor de Quando Nietzsche chorou, Mentiras no divã e Os desafios da terapia, narra-se uma trama a partir das terapias de grupo do doutor Julius Hertzfeld, influenciada por um antigo paciente seu. Atualidades da psicologia e da psiquiatria se combinam à filosofia de Schopenhauer, para quem “viver é sofrer”, compondo um enredo que estimula o auto-conhecimento. E, falando em terapias psiquiátricas, convém não esquecer que o próprio fundador da psiquiatria moderna, a Sigmund Freud (1856-1939) , admitiu que, antes que ele mesmo o fizesse, Schopenhauer já havia descrito de forma completa o funcionamento do mecanismo da repressão. Em resumo, Schopenhauer foi um filósofo de importância inquestionável, cuja obra vale a pena conhecer, haja vista sua grande contribuição para a formação do pensamento ocidental contemporâneo. *Sergio Amaral Silva é escritor e jornalista formado pela Universidade de São Paulo (USP). Ganhador de vários prêmios literários e do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura.

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Amor e terapia É, ainda, a professora Rosa Dias, da UERJ, quem analisa a presença do filósofo em outro trabalho do Bruxo do Cosme Velho: a crônica “Um leitor de si mesmo”, publicada originalmente no jornal Gazeta de Notícias de 16 de junho de 1895. Em seu artigo intitulado “Um autor de si mesmo”: Machado de Assis leitor de Schopenhauer, que saiu na revista de filosofia Kriterion, em 2005, a especialista destaca que Machado utilizou a metafísica do amor schopenhaueriana para interpretar uma breve notícia de jornal. Para isso, Machado de Assis recorreu à obra-prima de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, volume 2, capítulo 44, intitulado precisamente “Metafísica do Amor”. Na crônica, Machado sintetiza em poucas palavras o tema enfocado: “Há na principal das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. (...) A explicação é que dois namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga.” Saliente-se ainda que no livro A cura de Schopenhauer (2005), de Irvin D. Yalom,

aSigmund Freud (1856-1939)

Médico austríaco, nascido na Morávia, região pertencente à atual República Tcheca. Com suas pesquisas revolucionárias no campo da psiquiatria, Freud inovou simultaneamente em duas áreas: formulou uma abrangente teoria da mente e do comportamento humano e desenvolveu uma técnica terapêutica (o chamado método psicanalítico) destinada a auxiliar pessoas mentalmente perturbadas. Dentre suas obras publicadas, A interpretação dos sonhos (1900) é considerada uma das mais importantes.

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PONTO DE VISTA

Corpo

Contribuições da filosofia de autores como Maurice Merleau Ponty ajudam a pensar a relação entre educação e afetividade

Próprio

Wesley Adriano Martins Dourado *

A

violência nas práticas educativas não é uma novidade. A recordação das palmatórias, dos castigos é suficiente para indicar que a escola foi lugar de violência. De algum modo isso ainda persiste nas suspensões, expulsões, na anunciação pública da “nota vermelha”, entre outras situações. O que agora se experimenta na prática educativa é que a violência na e da escola, antes dirigida aos discentes, agora se volta contra os docentes e gestores escolares. Veículos riscados, docentes ameaçados, agredidos confirmam esta realidade. O entendimento deste cenário requer olhar atento e a identificação das diferentes convergências que resultam nesta aguda experiência escolar. A condição do trabalho docente; a inadequação estrutural das escolas; uma prática educativa que mais garante a formação para o trabalho do que para a autonomia, a construção significativa do existir; o papel da família na educação dos jovens são alguns dos muitos elementos que não podem escapar à análise da prática educativa.

Esta tensão presente na escola encerra relações afetivas que provocam o distanciamento, a violência, o estranhamento e tornam a prática de ensino experiência demasiadamente dolorosa para todos os atores que dela fazem parte. Nesta reflexão apresento alguns aspectos da noção de corpo próprio, tal como a concebe a Merleau-Ponty, com vistas a pensar a afetividade na experiência escolar. Não quero com isso defender que nas relações afetivas está a solução da referida tensão, mas estou certo de que não se constituirá outra experiência educativa sem que tenhamos a coragem de ponderar sobre outros modos de relação. SOBRE A FENOMENOLOGIA No prefácio de Fenomenologia da Percepção, o filósofo francês Merleau-Ponty apresenta esclarecimento sobre o que é a fenomenologia: a reposição das essências na existência. Nas palavras do filósofo “(...) a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreen-

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relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente (...)”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 04) O conhecimento resulta do fato de que o mundo sempre está ali e, numa “brincadeira” de esconde-esconde, se mostra e se oculta. É neste cenário, que se faz e se refaz, que a experiência no mundo vivido permite outros sentidos, outras significações. Este mundo, entretanto, não é posto pelo conceito, pela racionalidade. “O mundo está ali antes de qualquer análise que possa fazer dele (...)”. (p.05) Por isso, defende o filósofo, o mundo deve ser antes descrito. (p. 03) Este cenário indicaria para a noção de percepção. Segundo o filósofo “(...) ela não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 06) Não se trata de um ato de atenção, de uma deliberada disposição, mas o contexto de convergências existenciais que favorecem o brotar do sentido e destes a ressignificação das palavras e dos hábitos. Ela sustentaria as significações do mundo e do corpo. Este retorno permite a descoberta do que se denomina de intencionalidade indicando uma inevitável ligação com o mundo. É o reconhecimento de que sempre estou voltado a um mundo numa “(...) unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida (...)”. (p. 16) O mundo e os corpos estão imbricados, enredados de modo tal que só a “crença” na racionalidade ousaria ocultar. O rumo fenomenológico permite afirmar que a devida compreensão do mundo, dos homens e mulheres, dos conceitos, das teorias, da escola passa pela redescoberta das relações significativas que suscitaram a fala sobre o mundo, a construção de conhecimento e a criação da escola e, dentro dela, os modos de convivência.

Не требуется

der o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”.” (MERLEAUPONTY, 1999, 01) Trata-se, portanto, de compreender a indissociável relação entre a existência e as ideias, as ideias e o corpo, o corpo e o mundo, o corpo e os outros corpos. A palavra “repor” está adequada: não se trata de inventar outro modo de pensar, outros modos de relação. Esta implicação sempre marcou o modo de ser gente ficando olvidada por conta dos esquecimentos históricos, intelectuais ou o elogio à razão em detrimento de outras dimensões do existir. É contra o reducionismo à racionalidade e da fragmentação que marcará o que se denomina conhecimento científico, em particular, a especialização, que a fenomenologia se apresenta. Isto reivindica reaprender a ver as coisas. Para tanto é preciso voltar a elas, “experimentálas” em sua gênese, no seu nascimento íntegro, anterior à qualquer procedimento científico. Trata-se de descobrir, embaixo do amontoado de conceitos, teorias, o mundo que as suscita. É o que a fenomenologia denomina de retornar às coisas mesmas. Segundo Merleau-Ponty(...) retornar “às coisas mesmas” é antes de tudo a desaprovação da ciência. (...) Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (1999, p. 03) O hábito da racionalidade e a “crença” de que o conhecimento nela se inicia esqueceu a sua origem: o mundo vivido. É preciso, então, um esforço de voltar à efervescência do mundo, lugar onde as experiências assumem tácito sentido, donde surgirão outros arrazoados racionais, científicos. Antes destes, no entanto, corpos em relação no mundo, com o mundo e com os outros corpos constituem o solo para forjar outros conhecimentos. Assim, “retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em

aMerleau-Ponty Formado pela prestigiada Escola Normal Superior, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (19081961) foi professor da Universidade de Sorbonne e do College de France. Influenciado pela fenomenologia de Edmund Husserl, Merleau-Ponty desenvolveu suas conceções a partir da noção de percepção e coporalidade.

CORPO PRÓPRIO Se aceitarmos a provocação da perspectiva fenomenológica somos desafiados a reconhecer que qualquer esforço de definição, FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 59

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Slobodan Dimitrov

a Paulo Freire

Nascido em Pernambuco, Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) foi um filósofo, escritor, educador e militante político. Pedagogo de renome internacional, teorizou sobre a Pedagogia da Libertação, inspirada no marxismo e em movimentos como a Teologia da Libertação. Escreveu obras como Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia.

de captação do que seja o corpo pelo conceito está fadado ao fracasso. Os modos de ser corpo estariam em permanente construção nos movimentos, nos encontros e desencontros dos corpos entre si, neste mundo que vivemos. Merleau-Ponty dirá que “o mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. (1999, p. 06) Este mundo escorregadio, que sempre escapa ao anseio dominador do ser humano, é o solo onde a experiência de ser gente sempre é reinventada.“Eu sou não um “ser vivo” ou mesmo um “homem” ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (...) essa tradição que escolho retomar, ou este horizonte cuja distância em relação a mim desmoronaria, visto que ela não lhe pertence como uma propriedade, se eu não estivesse lá para percorrê-la com o olhar.” (MERLEAUPONTY, 1999, p.03-04) Assim, em que pese que a noção corpo próprio possa ser outra definição sobre o corpo, o filósofo afirma que o corpo é enquanto... Nada do que se possa dizer sobre o corpo o afirma de modo último. O corpo não é racionalidade, não é sociabilidade, não é um emaranhado de membros concatenados. Ele é enquanto... Por isso, afirma o pensador“eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência.” (p.03) A noção corpo próprio aponta para os modos de ser, constituídos por um corpo que

está no mundo, que sempre está voltado ao mundo e diante de outros corpos. O corpo é enquanto se movimenta, enquanto fala, na experiência da sexualidade; ele é no tempo e no espaço. O movimento, a sexualidade, todavia, não definem o corpo próprio, mas estas são dimensões do modo de ser do corpo próprio. Isto indica que tais dimensões revelam os hábitos corporais, significados construídos na relação corpo-mundo-corpos. Se a sexualidade, a fala, o movimento não dizem de modo final o que é o corpo próprio, o modo como vive a sexualidade, o movimento, a fala revelam o modo de ser corpo neste tempo e espaço. As significações existenciais desvelam a experiência de ser corpo neste momento. O corpo não é causa do psíquico, das condições biológicas, da dinâmica social, mas estes indicam o modo de ser corpo ou, ao menos, o modo como o corpo deseja ser. Para dizer de outro modo, nenhum destes elementos são suficientes para explicar a experiência do corpo próprio. Eles são apenas testemunhos de como o corpo próprio experimenta a sexualidade, a fala, a vida em comunidade, as suas condições corporais, entre outros. Posto que é no movimento do mundo vivido que o corpo se diz e diz sobre o mundo, tais afirmações são sempre provisórias, posto que outras significações surgirão no cenário do viver. CORPOS E AFETO Eis aqui um lugar para pensar a prática educativa. A escola se constitui em lugar de relação, de convivência, mas ao que tudo indica, tem impedido que dentro dela os corpos construam sentido existencial, apreendam os conhecimentos de modo significativo. Os movimentos já estão estabelecidos na organização da sala, no tempo da fala dedicado ao discente; nos “corretos” modos de jogar basquete, vôlei, futebol... Os movimentos dados impedem os movimentos significativos, obstam os corpos de serem enquanto inscritos na experiência educativa. A escola parece evitar o encontro dos corpos. Mesmo no “intervalo” ou no “recreio” os corpos ficam sob a vigilância dos

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Comparecimento que não pode ser negado pela frieza da racionalidade e nem se perder na licenciosidade daqueles que acolhem o outro na forma da exploração da ingenuidade ou da boa vontade. A violência na/da escola parece indicar corpos que já não aceitam mais o enclausuramento, o silêncio imposto, o conhecimento sem história e significado existencial, a negação de si e do seu lugar.Os corpos na escola – fora dela também – não suportam mais a “confusão”. A experiência de ser corpo implica no reconhecimento de que também somos afetados pelos outros corpos no mundo onde estamos. Esta experiência afetiva não se constitui de palavras “doces”, relações fingidas, mas o reconhecimento da presença daquele que comigo constrói o modo de ser gente que carregamos nas entranhas da nossa imaginação. * Wesley Adriano Martins Dourado é docente e coordenador do curso de Filosofia da Faculdade de Humanidades e de Direito da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp.

DOURADO, Wesley Adriano Martins. Corpo, poesia e cultura: sobre a relação entre educação, filosofia e sociedade. In: PANSARELLI, Daniel (Org). Curso (In)completo de filosofia. São Bernardo do Campo: Editora Metodista, 2010. MERLEAU-PONTY. M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

REFERÊNCIAS

inspetores sempre prontos a manter a ordem e, com isto, evitar que outros hábitos corporais se desenhem. Se não se pode dizer que o corpo é afetividade é adequado dizer que ele é na experiência afetiva. Negar a afetividade é recusar um dos modos de ser do corpo. Seria isso um dos motivos da violência na/da escola? É fato que a tensão presente na prática escolar já é uma experiência afetiva, mas que provoca o distanciamento, o estranhamento, a agressividade. O que defendo, entretanto, é que a escola precisa ousar ser o lugar do encontro onde aprendizes, mestres, atribuindo sentido ao seu existir, ensinem e aprendam. Isto implicará fazer da experiência escolar algo tão provisório como o é o corpo na relação com o mundo e os outros corpos. Será o desafio de assumir o instável como sólida possibilidade de ser corpo enquanto se aprende e se ensina. A escola, tal como se configura em muitos lugares, revela o modo de ser de corpos represados. A experiência educativa se constitui em movimentos corporais e ela só tem importância, na medida em que é vivida significativamente por todos os corpos que desta experiência participam. Isto implica assumir estar afetado pelo outro e permitir que esta “paixão” nos conduza para outras práticas educativas. A escola deve ser o lugar do encontro, da “fusão com”, sem que isso signifique homogeneidade, supressão da diferença, mas sim a aceitação dos sentidos que estar com o corpo-discente, corpo-docente, corpogestor sugerem. A escola tem que ser causa dos movimentos dos corpos, dos sentidos que atribuem ao conhecimento, ao mundo, ao trabalho, ao futuro. Para tanto, os seus atores, no dizer de a Paulo Freire, deverão cultivar a coragem de querer bem. (FREIRE, 1998, P. 159) O outro, o corpo diante de mim é presença que (entenda-se que isso não define o próprio corpo), comigo, poderá criar outros modos de ser e dar outros sentidos ao mundo onde repousamos. A coragem de querer bem nos põe o desafio de ver o outro como sujeito de si e que se constitui na minha presença.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra moral. Trad. Rubens R. T. Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

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FILOSOFOTECA

A Filosofia vista de vários ângulos POR MATHEUS MOURA*

LIVRO  DESTAQUE DO MÊS

Filosofia em

LOGICOMIX - UMA JORNADA ÉPICA EM BUSCA DA VERDADE AUTOR: Apóstolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou (textos); Alecos Papadatos e Annie di Donna (desenhos) TRADUÇÃO: Alexandre Boide dos Santos EDITORA: WMF Martins Fontes PÁGINAS: 348

SOBRE O PROJETO Lançado há poucos meses no Brasil, Logicomix é ao mesmo tempo um romance histórico sobre a vida de Bertrand Russell e uma introdução às principais ideias da Matemática e da Filosofia Moderna.

Quadrinhos L

ançado no Brasil pela WMF Martins Fontes, o livro Logicomix conta a vida do filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) com um diferencial: em quadrinhos. O mote que permeia a trama é a busca de Russell em estabelecer os fundamentos lógicos de todos os princípios matemáticos. Motivado por isso o filósofo parte em busca da verdade absoluta, que cerca e ameaça a própria carreira e a vida pessoal. É interessante como os autores, por meio de metalinguagem, se incluem na obra para preencher lacunas de narrativa. Outro mérito dos autores é terem conseguido passar o clima da época em que Russell viveu e atuou, de forma convincente, mostrando os principais fatos que marcaram o meio intelectual do período, principalmente no mundo acadêmico da matemática.

Durante a trama, Russell encontra e interage com pensadores como Gottlob Frege, David Hilbert, Kurt Gödel e Ludwig Wittgenstein, como ressaltam os autores no apêndice, tendo a liberdade de fugir do real e criar situações não verídicas na vida do filósofo. No entanto, cabe ressaltar que, mesmo tratando da vida de um pensador tão importante e tomando a liberdade de acrescentar fatos, os autores tiveram o cuidado de manter a essência dos pensamentos de Russell intacto. Mas advertem: a intenção primordial da obra é ser uma boa história em quadrinhos e, por isso, não pretendem de forma alguma criar um livro focado na explicação do pensamento de Russell ou de qualquer outra teoria. Por outro lado, é o tipo de material que serve de ponto de partida para fomentar discussões e apresentar conceitos da Lógica, da Matemática, além de, é claro, humanizar personagens hoje distantes da nova geração.

SOBRE OS AUTORES Os quatro autores da obra são desconhecidos no Brasil. Apóstolos Doxiadis, australiano, é autor do best-seller Tio Petros e a conjectura de Goldbach, considerado um dos primeiros romances a contar uma história ficcional a partir da Matemática. O grego Christos H. Papadimitriou ganhou diversos prêmios devido ao trabalho sobre complexidade computacional e teoria algorítmica, tendo escrito vários livros como Elementos da teoria da computação. O também grego Alecos Papadatos trabalhou mais de 20 anos com cinema de animação e, desde 1997, é cartunista do jornal ateniense To Vima. E a argelina Annie di Donna trabalhou na França em séries de desenhos animados como Babar e Tintim e, desde 1991, tem seu próprio estúdio de animação, ao lado do marido Alecos Papadatos.

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LIVROS  RECOMENDADOS

NIILISMO E NEGRITUDE AUTOR: Célestin Monga TRADUÇÃO: Estela dos Santos Abreu EDITORA: Martins Fontes PÁGINAS: 200 Primeiro livro editado pela Martins Fontes de Célestin Monga, autor que se tornou popular após criticar o presidente camaronês em um artigo para o jornal Le Messager. Nesse livro, o autor retoma as críticas, mas agora as direcionando a sociedade africana no geral, apresentando, sem exotismo, visões nativas da arte de viver, convidando o leitor a trilhar as formas de invenção do amor próprio, as maneiras de encarar a felicidade, os labirintos da moral, os mistérios da estética musical, os meandros da fé religiosa, os dilemas da violência ou a filosofia da morte. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Niilismo e negritude configura o imaginário da África atual: do absurdo da vida cotidiana à economia política do casamento, da filosofia dos cardápios e dos modos à mesa até os usos do corpo, mostrando as diversas formas de niilismo e de negritude, esboçando a hipótese de uma ética do mal.”

CONTEXTOS DA JUSTIÇA FILOSOFIA POLÍTICA PARA ALÉM DE LIBERALISMO E COMUNITARISMO AUTOR: Rainer Forst TRADUÇÃO: Denilson Luís Werle EDITORA: Boitempo PÁGINAS: 384 Rainer Forst - filósofo e teórico político alemão - analisa a controvérsia entre liberalismo e comunitarismo, contribuindo de maneira original para esclarecer conceitos básicos da teoria da justiça. De modo imparcial, este conceito é revisto sob o pano de fundo das contextualizações históricas, para evidenciar o que há de específico naquilo que é considerado justo em cada época ou cultura. Publicado, pela primeira vez, na Alemanha, em 1994, o livro discorre sobre autores comunitaristas como Michael J. Sandel, Alasdair MacIntyre, e liberais como John Rawls, Ronald Dworkin e Joseph Raz. COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Trata-se de uma obra provocativa, de grande interesse para filósofos, para estudiosos da teoria política, das questões do liberalismo e do comunitarismos e todo aquele que se importa com os debates em torno da justiça social e política.”mundiais.”

MEU CAMINHO

COMO LER LACAN

AUTOR: Edgar Morin

AUTOR: Slavoj Žižek

TRADUÇÃO: Edgar de Assis Carvalho EDITORA: Bertrand Brasil PÁGINAS: 378

TRADUÇÃO: Maria Luiza X de A Borges. EDITORA: Zahar PÁGINAS: 160

Desde o início do livro, o leitor mergulha na vida de Edgar Morin, indo do engajamento na resistência comunista à ruptura com o stalinismo. É mostrado o homem, escritor, sociólogo, inventor do pensamento complexo, ator da vida social, não escondendo as emoções nem as paixões, revelando ao leitor a própria experiência na vida, no amor, na velhice e diante da morte. O livro narra o caminho de um homem e o pensamento que se formou no decorrer desse percurso.

Slavoj Žižek, é um dos grandes pensadores contemporâneos e nessa obra recém publicada pela Zahar se incube da tarefa de facilitar a vida dos interessados em compreender Lacan. No livro, Žižek, vai a fundo aos textos do mestre francês da psicanálise para esclarecer os principais conceitos lacanianos, fazendo associações com as mais diferentes áreas. Instigado pelo raciocínio ágil e o abrangente conhecimento de Žižek, a um só tempo erudito e pop, é mostrado que há Lacan em Shakespeare e em Casablanca, em Nietzsche e num radical muçulmano, em Stanley Kubrick e nas novelas mexicanas. Há ainda uma breve cronologia biográfica de Lacan e sugestões de leitura sobre o psicanalista.

COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Meu Caminho, novo livro de Edgar Morin, apresenta entrevistas concedidas por ele à jornalista Djénane Kareh Tager ao longo de 2008. Nelas, o autor mostra a unidade de uma obra magnífica, marcada pela diversidade e pelas vicissitudes.”

COMENTÁRIO DA EDITORA:

“Os textos e as ideias de Jacques Lacan são tão difíceis que só especialistas conseguem compreendê-los. Se é isso que você pensa, é porque ainda não sabe Como ler Lacan.” FILOSOFIA | Conhecimento Prático | 63

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DVD  PARA REFLETIR

Sócrates SÓCRATES GÊNERO: Drama/ Filosofia/Biografia DIREÇÃO: Roberto Rossellini ROTEIRO: Roberto Rossellini ELENCO: Jean Silvère, Anna Caprile, Bepy Mannaiuolo, Ricardo Palacios, Antônio Medina, Julio Morales, Emilio Miguel Hernández, Emilio Hernández Blanco, Manuel Angel Egea. ANO: 1971 DURAÇÃO: 120 min.

Talvez a conclusão mais simples ao término do filme Sócrates seja: Sócrates (469–399 a.C.) era um chato. Uma pessoa que não sabia conversar direito, não parava de questionar as pessoas e, devido à ignorância que possuía, sempre estava em busca de mostrar o quão ignorante também eram os outros que se achavam conhecedores de algo. Mas, pelo contrário, a própria ignorância era sua maior sabedoria. Fato esse sabido por ele e tão presente e difundido em sua vida. Mais do que isso, Sócrates foi exemplo do que é ser convicto em seus ideais e incorruptível em sua ética – morreu para afirmá-la. O filme Sócrates, o qual tem início com a invasão espartana em Atenas que assim incita uma mudança política na cidade, narra o último período de vida do filósofo considerado o precursor da Ética. Sendo justamente nesses últimos dias de vida em que mais se destaca essa qualidade do pensador. Como Com uma direção interessante, sem deixar o filme cair na monotonia, Roberto Rossellini, consegue dar dinâmica a uma película construída basicamente no diálogo. Não há ação, a não ser quando as personagens se deslocam de

um lugar ao outro. Ademais, tudo se passa por meio de conversa. Isso serve para ressaltar o aspecto interpelativo do pensador. Até mesmo o ato mais banal servia para dar início ao questionário. O resultado disso foi a crescente antipatia dos outros cidadãos de Atenas para com ele. Dessa forma, Sócrates acabou por gerar a fatídica acusação de corrupção da juventude e criação de novas crenças, uma vez que ele dizia dar voz ao que ouvia internamente. Durante seu julgamento, ele mesmo se pôs em defesa própria. Apesar de ter conseguido convencer de que era inocente a quem ali estava presente, a forma irônica como expunha suas ideias provocou o jure que lhe condenou a morte por autoenvenenamento. No DVD, há, como extra, uma interessante entrevista com o professor Dr. Roberto Bolzani (USP). Nela o especialista em Sócrates dá seu ponto de vista quanto às passagens narradas por Rossellin e como foi o processo de adaptação dos textos originais para o filme. Além disso, Bolzani aponta algumas curiosidades que o diretor inseriu na película e que servem para aprofundar ainda mais o entendimento a cerca do contexto e pensamento socrático.

*MATHEUS MOURA é jornalista

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DVD  LANÇAMENTO

Dias de Nietzsche em Turim

DIAS DE NIETZSCHE EM TURIM GÊNERO: Drama/Biografia DIREÇÃO: Júlio Bressane ROTEIRO: Júlio Bressane Rosa Dias ELENCO: Fernando Eiras, Paulo José, Tina Novell, Mariana Ximenes, Leandra Leal, Paschoal Villaboin, Isabel Themudo). ANO: 2010 DURAÇÃO: 85 min

Apesar de pouco conhecido, Dias de Nietzsche em Turim faz bonito ao recriar parte da vida do filósofo alemão enquanto viveu em Turim, na Itália, entre 1888 e 1889. Durante esse período é que Nietzsche conseguiu melhor se dedicar a si mesmo e ao desenvolvimento de suas teorias assim como arte e ciência – além de ter escrito livros como Ecce Homo e O Crepúsculo dos Ídolos. No decorrer da película é mostrado o embate psicológico de Nietzsche com ele e com a sociedade ao seu redor, além de humanizar o filósofo aproximando-o do espectador. Destaque para a boa interpretação de Fernando Eiras, como Nietzsche, e a competente direção de Júlio Bressane, o que acabou por lhe render o prêmio de melhor diretor, em 2001, no Festival de Veneza.

Ágora ÁGORA GÊNERO: Drama/ História/Biografia DIREÇÃO: Alejandro Amenábar ROTEIRO: Alejandro Amenábar e Mateo Gil ELENCO: Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac, Rupert Evans. ANO: 2009 DURAÇÃO: 127 min

Filmado praticamente todo na ilha de Malta, na Europa, a produção espanhola Ágora, narra parte da vida da filósofa egípcia Hipátia de Alexandria (aprox. 355–415 d.C). Na película é mostrada a atuação de Hipátia no ensino de astrologia e matermática, além de de levantar algumas questões amorosas de sua vida particular. Em meio a isso é narrada ainda o surgimento da Igreja Católica e a ação nada louvável dos chamados “cristãos primitivos”, uma vez que o cristianismo, na época, havia pouco passado de ilegal para religião aceita. No ano de lançamento, 2009, foi o filme mais assistido na Espanha ganhando nada menos que sete Prêmios Goya na 24ª edição do evento da acadêmia espanhola de cinema. A organização Observatório Anti-difamação Religiosa, chegou a protestar contra o filme por “promover ódio ao cristianismo e reforçar falsos clichês sobre a Igreja Católica”, devida a polêmica do tema, Ágora, teve problemas de distribuição nos EUA e na Itália.

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RETRATOS

O Filósofo na sala de aula H PAULO GHIRALDELLI JR.*

á quem só conheça filósofo na sala de aula. Mas o lugar do filósofo não é aí. Não originalmente. O lugar do filósofo, como consagrado na Grécia Antiga, é a praça pública, o ginásio de esportes, as festas e a peregrinação urbana. Sócrates se recusou a ensinar e, de fato, de modo algum foi professor. Nós modernos podemos ter todos esses lugares para exercer a filosofia – e eis que Internet os duplica ou triplica de modo saudável –, mas temos também a sala de aula. Todavia, a sala de aula é um lugar diferente dos lugares tradicionalmente escolhidos pelo filósofo para filosofar. A sala de aula, em qualquer nível de ensino, tem algo de esquisito. Ela presencia um encontro entre o filósofo e os estudantes, mas que não foi marcado por nenhum dos dois lados da relação que ali se estabelecerá. Pela primeira vez, o filósofo participará de uma relação erótica – como toda relação filosófica autêntica é e tem de ser – sem que exista conhecimento prévio das partes envolvidas. É um namoro às cegas. Ao menos no primeiro momento. Boa parte das relações do filósofo com os que vão ter com ele são relações comandadas por Eros, mas, efetivamente, planejadas pelas partes. A sala de aula não. Ela marca um encontro em que as partes não se conhecem e, talvez, não quisessem estar ali. Por isso, ela é o lugar mais difícil para a filosofia. Trata-se de uma sedução com hora marcada – e isso tira toda a espontaneidade da sedução que é a filosofia. É claro que o filósofo pode contornar a situação. Aliás, ao longo dos anos ele aprendeu a também estar na sala de aula. Viu que a força da filosofia é tão grande que até mesmo na sala de aula ela pode se estabelecer. Ou, melhor dizendo, a força de Eros é tão possante como comando e guia da filosofia que até mesmo no ambiente forçadamente deserotizado da sala de aula as relações amorosas não cessam. O bom filósofo logo se dá conta

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disso e, então, vê que a sala de aula, que a princípio tinha tudo para lhe ser hostil e não produtiva, pode ser posta a seu serviço. Todavia, há nisso um segredo. Não pense vocês que eu vou contar o segredo. Segredo é segredo, caso eu conte, deixaria de ser segredo. Não posso falar. Mas, nada me impede de dar pistas. A primeira pista já foi dada. O segredo da filosofia de conseguir desenvolver sua atividade erótica, mesmo na sala de aula, é reconhecer de antemão que a sala de aula marca um encontro em que as partes envolvidas são ali postas por forças exteriores, não por elas mesmas. Comanda o encontro a instituição e o dinheiro, e isso conta contra qualquer relação erótica. Assim, o filósofo deve saber que, já no primeiro dia de aula, que ele não está ali a pedidos dos estudantes. Nem ele pediu aqueles estudantes ali postos. Tomar ciência desse fato é meio caminho andado para ultrapassar os limites da sala de aula. A segunda pista é fácil, pois já faz parte da intuição que temos de qualquer namoro. É o “dar início” à sedução. Como é que iniciamos uma sedução? O filósofo é um bom namorador. Caso não, não deve ser filósofo. Insucesso na arte de sedução de mulheres e de homens é um grande impeditivo para ser um bom filósofo na sala de aula. O namorador de sucesso ou o conquistador verdadeiro não engana, ele conquista o outro não porque faz o outro se apaixonar, mas porque faz o outro se apaixonar porque ele também está disposto a se apaixonar. O erotismo da filosofia está longe da atividade do D. Juan ou do libertino, e próximo da vida de Romeu. A sinceridade é a arma que nenhum jogador usa. Mas o erotismo da filosofia não joga – namoro não é jogo. Namoro é namoro. Essas são as duas pistas. Só não dei, de fato, o pulo do gato. Descubra-o por você mesmo e tenha o mesmo êxito que eu, como filósofo, tenho tido – até na sala de aula.

* PAULO GHIRALDELLI JR é filósofo, escritor e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Site (http://filosofia. pro.br)

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