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Etruscos O povo mais misterioso da Itália continua a intrigar os arqueólogos

Mitos Irlandeses As fontes históricas que os levaram para a Escócia anterior aos ingleses

Domingos Vandelli Um naturalista prolífico que influenciou a ciência luso-brasileira

CONSTATINO E A BATALHA DA PONTE MÍLVIA

Alianças e problemas no nascimento do cristianismo romano

As descobertas da criptozoologia e os objetos de seus estudos, do Chupa-cabras ao Monstro do Lago Ness, do Dragão de Komodo ao Celacanto

Monstros à Solta

Entrevista: Pedro Paulo Funari discute arqueologia histórica e suas aplicações no campo de trabalho 1 | leituras da história

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editorial é uma publicação do NÚCLEO CIÊNCIA & VIDA da Editora Escala Tel: (11) 3855-1955 EMAIL: leiturasdahistoria@escala.com.br www.portalcienciaevida.com.br

Caça à História dos Monstros Monstro do Lago Ness, Chupa-cabras, Yeti, dragões, anfíbios humanos, répteis peludos... Todos esses monstros povoaram a imaginação das pessoas e ainda o fazem. O que é difícil de entender é que, embora cada um deles possua uma longa lista de referências históricas, é muito difícil que hoje em dia vejamos um acadêmico que dedique seu tempo e o dinheiro de suas pesquisas para conseguir provar que criaturas assim possam existir. A verdade é que a criptozoologia, tema de capa desta edição, é uma modalidade científica (ou pseudocientífica, como a maioria dos cientistas a chama) que até hoje desperta polêmica. O certo é que criaturas antes consideradas como mitológicas (dentre elas o Kraken, também conhecido como Lula Gigante, o Dragão de Komodo ou mesmo o Celacanto) tiveram sua existência provada. E, por mais fantasiosos que possam parecer, os históricos de relatos e testemunhos de cada uma dessas criaturas têm intrigado a humanidade há anos. Neste número, veremos as utilidades da criptozoologia e as histórias referentes às aparições de dragões, de Nessie

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(apelido “carinhoso” do monstro do Lago Ness) e do misterioso Chupa-cabras, que inclusive, já fez participações especiais em nossas terras. Se são verdade ou não, apenas o tempo (e os criptozoólogos) poderão dizer com certeza. Além disso, a edição vem com outros artigos que prenderão sua atenção. Venha conhecer a rica mitologia dos irlandeses que adentrou a Escócia antes que este país caísse sob o jugo inglês. Explore a Batalha da Ponte Mílvia e conheça mais sobre Constantino e o início da era cristã. Descurbra os mistérios da civilização etrusca. Conheça Domingos Vandelli, um naturalista dos mais prolíficos de que se tem notícia. Veja, ainda, a história da Santa Casa de Misericórdia e os exploradores antigos, com destaque para as expedições de Eudóxio de Cízico, um grego a serviço do faraó Ptolomeu VII. Temos ainda muito que explorar nas paisagens históricas, por isso, sente-se e relaxe, que a diversão só está começando. Boa viagem. Sérgio Pereira Couto

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O soberano dos soberanos. Só assim posso definir uma figura tão notável quanto Carlos Magno. Só é pena que a biografia dele tenha sido tão sucinta, mas creio que foi por motivos de espaço. Por mim, seria ótimo ter um número que falasse somente desse magnífico rei. Pensem nessa possibilidade, pois os artigos de vocês são muito bons, mas é pena que muitos se prejudiquem pela questão dos espaços. Eu, pelo menos, adoraria comprar uma revista dessas.

É importante para nós, que pensamos em estudar a Maçonaria com afinco, que conheçamos como a Irmandade funciona em outros países. Assim, venho dar os parabéns pela iniciativa de colocar, na última edição, um texto sobre a presença maçônica em Portugal e mostrar os primórdios das primeiras lojas naquele país. Falta apenas fazer o mesmo tipo de pauta aqui conosco. As lojas paulistas e cariocas têm muito que mostrar.

Leonardo Abbeli, por e-mail.

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NICOLAU CENTOLA

Cem Anos do Futurismo

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Angiquinho Mais Uma Vez

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Em primeiro lugar, gostaria de parabenizá-los pela excelente revista. Comprei o número 22 por causa da reportagem sobre os cem anos do movimento artístico da tecnologia e da velocidade, o Futurismo. Preciso fazer um hotsite para uma matéria da faculdade de design digital e seu material será bastante útil para mim. Comprometo-me a enviar o link após a conclusão e colocarei o crédito da revista no rodapé de todas as páginas.

Quero me congratular com toda a equipe de programação que participou do nº 24 da revista. A reportagem sobre a usina mostra o universo nordestino numa simbiose de homens e máquinas. O grande Delmiro Gouveia volta para mostrar às novas gerações a grandiosidade instalada mediante as profusas águas do amado rio São Francisco. Entre as cachoeiras do Niágara e Angiquinho, fico no meu Nordeste aguardando a visita de milhares de brasileiros para que conheçam as nossas belezas.

Paulo Medeiros Gastão, por e-mail.

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CRONOLOGIA | Edição 30 • Ano 2010

NOSSA CAPA Criaturas em Estudo

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Os monstros ganharam sua própria ciência (ou pseudociência), a criptozoologia, que estuda personagens como o Yeti e o Chupa-cabras, mas que também já provou a existência de outros mitos como o Kraken, o Celecanto e o Dragão de Komodo.

O arqueólogo e professor da Unicamp fala sobre a arqueologia histórica, um ramo em franca ascensão no meio acadêmico, suas diferenças com a contra parte comum, seu campo de atuação e ainda dá dicas para quem pensa em começar essa carreira.

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Pedro Paulo Funari

Histórias e Lendas dos Celtas

ESPECIAL

História em Perspectiva • O Ensino de História e Cultura na Formação dos Cidadãos

Parte da herança mitológica escocesa veio dos irlandeses numa época em que o país nem pensava em ser conquistado completamente pelos ingleses. Conheça neste artigo as influências celtas e as principais pesquisas sobre o assunto.

• Direto da Fonte: Exploradores Antigos (Parte 1 de 2)

38 Constantino e a Era Cristã

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ENTREVISTA:

Do século III a V, de nossa era Roma passou por um período de transição que, embora ficasse conhecido por causa de sua corrupção e decadência, terminou por influenciar de maneira profunda tanto a Europa medieval quanto o mundo moderno.

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Entre os séculos XVII e XIX, a ciência estava nas mãos dos chamados naturalistas. Conheça um deles, considerado o mais prolífico de seu tempo, cujas pesquisas influenciaram a corrente científica europeia e depois chegaram ao Brasil.

Primeira parte do artigo que mostrará os primórdios desta que é uma das mais antigas instituições mundiais dedicadas ao tratamento de doentes no mundo todo e que adquiriu papel de suma importância quando chegou em nossas terras.

Domingos Vandelli e a Ciência LusoBrasileira

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A Santa Casa de Misericórdia

No primeiro artigo, veremos as mais debatidas ideias sobre como tornar o ensino de História mais atrativo para os jovens de hoje. No segundo, em Direto da Fonte, a primeira parte de um texto retirado do livro “Os Grandes Exploradores”, que mostra algumas das explorações mais antigas de que se tem notícia, dentre elas a do grego Eudóxio de Cízico, do romano Aelius Gallus e de um grupo de soldados romanos que tinha por missão descobrir as origens do Nilo.

Seções 14 Fatos e Registros 24 Brumas da História 34 Nature 37 Livros e Autores 46 Arqueologia 56 Mistérios da História 66 Gente e Sociedade

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ENTREVISTA | Pedro Paulo Funari

Os primórdios

ARQUEOLOGIA O arqueólogo brasileiro e professor da Unicamp conversou com Leituras da História sobre esta modalidade eurocêntrica e fala sobre as origens e o campo de atuação no Brasil. Por Sérgio Pereira Couto

P

or definição, a chamada arqueologia histórica é uma modalidade que estuda sociedades por meio de registros escritos. É, assim, disciplina bastante abrangente e considerada uma das variações mais eurocêntricas, ou seja, que coloca a Europa como centro da constituição da sociedade moderna. O objetivo de seus estudos é justapô-los com os de grupos mais antigos e até mesmo pré-históricos. Envolve também pesquisas de grupos menores que também já possuíam registros escritos, mas se concentra nas atividades de classes operárias, mulheres e até mesmo de crianças. Como uma modalidade tão específica pode encontrar um campo de trabalho em nosso país? Para tanto, fomos em busca de um nome nacional que discute as aplicações da arqueologia histórica há algum tempo. Pedro Paulo Funari é, além de professor, pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/Unicamp). Participa do conselho editorial de pelo menos trinta revistas científicas nacionais e 14 estran-

geiras. Dentre estas últimas destacam-se publicações como o “Public Archaeology”, o “Journal of Social Archaeology” e o “International Journal of Historical Archaeology”. É autor de mais de 330 artigos publicados em revistas de todo o mundo e escreveu ou coescreveu mais de 80 livros na área de História e Arqueologia. O professor, que hoje é também assessor do reitor da Unicamp, apresentou alguns resultados obtidos com o Grupo de Pesquisas que coordena junto com o professor André Chevitarese. Dentre os artigos científicos já publicados estão aqueles que saíram em revistas de renome, como o “World Archaeology”, o “Journal of Roman Archaeology”, o “Journal of Social Archaeology” e o “Current Anthropology”. Vários dos estudantes que já passaram pelo crivo de Funari tornaram-se professores de universidades como a UFMG, UFPR, Unifesp e UFRJ, entre outras. Na entrevista a seguir, Funari fala sobre as definições de arqueologia histórica e as aplicações práticas.

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da

LEITURAS DA HISTÓRIA – O que vem a ser arqueologia histórica e qual a diferença desta modalidade para a arqueologia convencional? PEDRO PAULO FUNARI – A arqueologia histórica pode ser defi nida de duas maneiras. Para alguns especialistas, ela estuda a cultura material das sociedades modernas, resultantes da expansão do capitalismo, a partir do século XV. Desta perspectiva, a arqueologia histórica estaria centrada na globalização e na modernidade. Para outros, dentre os quais me incluo, a disciplina está centrada no estudo da cultura material das sociedades que utilizam a escrita, desde o Egito Antigo, até os dias atuais. Portanto, esta defi nição não é cronológica, mas epistemológica, ao enfatizar a convivência de discursos escritos sobre a sociedade e a cultura material dessas sociedades. Em ambas defi nições, contudo, a arqueologia histórica é uma disciplina especializada da Arqueologia que se diferencia, em primeiro lugar, da arqueologia pré-histórica, que estuda a cultura material de sociedades que não se utilizaram da escrita.

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HISTÓRICA

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ADRIAN PINGSTONE

ENTREVISTA | Pedro Paulo Funari

LDH – Como e quando surgiu cronologicamente a arqueologia histórica? PPF – A arqueologia histórica, com esse nome, surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, voltada para o estudo da cultura material associada aos fundadores da nação, os protestantes anglo-saxões brancos, cujo acrônimo é WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Nas duas décadas seguintes, com o crescimento dos movimentos sociais, a disciplina passou a incluir outros grupos constitutivos americanos, como os católicos, os afroamericanos, os irlandeses e as mulheres. De toda forma, a disciplina surgiu voltada para a modernidade. O livro clássico que apresenta esta abordagem foi escrito por Charles E. Orser, “A Historical Archaeology of the Modern World” (1996). A partir da década de 1990, estudiosos de outras partes do mundo, em particular da América Latina, África, Europa e Ásia, propuseram uma definição mais ampla da disciplina, voltada para o estudo da cultu-

Arqueólogos participam de escavações no Fórum Romano em 2007

ra material de todas as sociedades, no passado e no presente, que conhecem a escrita, tal como apresentado no volume “Historical Archaeology, Back From the Edge”, organizado por mim, Martin Hall e Sian Jones em 1999. LDH – Qual é a contribuição de um arqueólogo histórico para a melhor compreensão das civilizações do passado? PPF – As sociedades com escrita produziram informações de diferentes tipos: documentos escritos transmitidos pela tradição literária e uma imensa e crescente quantidade de objetos, alguns com escrita e imagens, provenientes da pesquisa arqueológica. Graças à Arqueologia, conhecemos uma grande quantidade de textos do Egito Antigo, assim como temos imagens, estátuas e edifícios inteiros escavados. Tudo isso nos fornece informações únicas sobre a vida dos faraós, mas também das pessoas comuns. Sabemos mais sobre as sociedades da antiga Mesopotâmia por vestígios arqueológicos, do que sobre períodos recentes, mas menos estudados, o que pode parecer um paradoxo, mas demonstra a importância de estudarmos a materialidade. LDH – Há algum exemplo da atuação da arqueologia histórica para uma melhor compreensão das eras mais modernas? PPF – Dentre os exemplos mais recentes e relevantes está o estudo arqueológico dos períodos ditatoriais. Por meio da arqueologia histórica, tem sido possível identificar pessoas que foram assassinadas e enterradas sem identificação. Na Europa, hoje, há escavações em curso na Espanha, referentes ao período da Guerra Civil (1936-1939). Na América Latina, em particular, essa recuperação da memória tem sido muito importante em diversos países, inclusive no Brasil. Não se trata, apenas, da possibilidade de identificação de corpos de desaparecidos, mas também do estudo das prisões clandestinas e de outros temas, como atesta o livro recém-lançado “Memories from Darkness, Archaeology of Repression and Resistance in Latin America” (Nova Iorque, Springer, 2009), organizado

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Tradicionalmente, a formação dá-se numa graduação de História ou outra ciência (Ciências Sociais, Geografia, Biologia), seguida de mestrado e doutoramento focado no tema arqueológico”

por mim, Andrés Zarankin e Melisa Salerno e que havia sido publicado, em versão anterior, no Brasil (“A Arqueologia da Repressão e da Resistência na América Latina”, São Paulo, Annablume, 2008). LDH – Como é a formação do arqueólogo histórico? Quais os cursos para se obter esta especialização? PPF – Há diversas possibilidades. Tradicionalmente, a formação dá-se numa graduação de História ou outra ciência (Ciências Sociais, Geografia, Biologia), seguida de mestrado e doutoramento focado no tema arqueológico. Nos últimos anos, surgiram cursos de graduação em Arqueologia e isso abre novas oportunidades na formação acadêmica de alto nível. O estudo da arqueologia histórica, em particular, tem crescido muito nos últimos anos no Brasil, pois cada vez mais se valoriza o patrimônio histórico.

Antropólogo forense ajuda arqueólogos em escavações na Ilha Wake, no norte do Oceano Pacífico

U.S. AIR FORCE

LDH – Qual o campo de atuação no Brasil de um arqueólogo histórico? PPF – Há dois grandes campos de atuação: acadêmico e de mercado. No primeiro caso, existem cursos que congregam arqueólogos históricos no corpo docente e, neste caso, o arqueólogo histórico pode atuar e ser remunerado pela pesquisa. Este é o caso de arqueólogos históricos renomados, professores de instituições de prestígio, como Andrés Zarankin (UFMG), Gilson Rambelli (UFS) ou Fábio Vergara Cerqueira (UFPel). Também museus e outras instituições patrimoniais podem abrigar arqueólogos históricos. Em seguida, existe o crescente mercado de trabalho em empresas privadas. Devido à legislação de proteção ambiental e patrimonial, multiplicaram-se as firmas voltadas para o segmento e há, portanto, empregos para arqueólogos em diversas funções.

Para estudar a cultura material desses povos, é necessário conhecer também as línguas e as escritas usadas por aqueles que construíram as pirâmides, os zigurates ou o Parthenon. Já por este aspecto, a arqueologia histórica liga-se ao estudo das línguas. Mais do que isso, o próprio sistema de classificação dos objetos, por meio de tipologias, inspirou-se na Filologia. Assim como se classificam as línguas, as palavras e os modos de falar, também se pode classificar os artefatos.

LDH – Fala-se muito sobre arqueologia de cunho filológico. Pode explicar melhor este termo? PPF – A arqueologia histórica, entendida como aquela que estuda os egípcios, mesopotâmicos, gregos, romanos, medievais e modernos, surgiu a partir do estudo das línguas e da escrita.

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ENTREVISTA | Pedro Paulo Funari

LDH – Nesse meio fala-se muito sobre o Congresso Mundial de Arqueologia. Pode explicar melhor o que vem a ser? PPF – Esse órgão congrega arqueólogos do mundo todo. Ele foi fundado em 1986, com o objetivo de permitir que estivessem representados todos os continentes e mesmo os grupos estudados pelos arqueólogos, como os indígenas. Foi uma iniciativa muito importante para mudar os rumos da disciplina. A Arqueologia surgiu como uma atividade militar ligada ao imperialismo das grandes potências ocidentais. A introdução de arqueólogos da América Latina, África e Ásia no Congresso Mundial de Arqueologia permitiu, pela primeira vez, que todos tivessem voz. O mesmo vale para a inclusão dos representantes indígenas, pois os arqueólogos ligados ao imperialismo contribuíram para a exploração dos povos colonizados, do Egito ao continente americano. Não se pode, portanto, subestimar a relevância política e epistemológica do Congresso Mundial de Arqueologia, para democratizar a disciplina. LDH – Qual período histórico possui mais arqueólogos históricos em atividade? PPF – Nos Estados Unidos, predominam os arqueólogos históricos voltados para o estu-

do do mundo moderno, a partir do século XV. Na Europa, são mais numerosos os estudiosos do mundo greco-romano. No Brasil, o período histórico mais estudado refere-se à época colonial, em parte pela valorização, por parte dos órgãos patrimoniais, dessa época, mas cresce muito o interesse por períodos mais recentes e pelas civilizações como a romana, a grega e a egípcia, também com pesquisas arqueológicas originais de brasileiros. LDH – Qual a diferença entre um arqueólogo histórico e um historiador? PPF – O historiador, em geral, estuda documentos escritos, enquanto o arqueólogo volta-se para o estudo de artefatos, edifícios, estátuas, inscrições, ossos, tudo o que é material e foi usado pelo ser humano. Essa diferença de objeto de pesquisa, contudo, não impede o diálogo, ao contrário. Todo arqueólogo histórico deve conhecer a documentação escrita e a historiografia sobre determinado tema, e isto facilita bastante o diálogo e a cooperação. Os historiadores interessam-se, cada vez mais, por aspectos da cultural material, mas falta uma maior ênfase na formação do historiador, no conhecimento de aspectos materiais da cultura. Contudo, nos

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O professor Funari é autor e coautor de mais de oitenta livros nas áreas de História e Arqueologia. Muitos deles tratam de várias facetas do setor, como patrimônio histórico e o turismo

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Literatura Arqueológica

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Nos últimos anos muitos departamentos de História passaram a incluir disciplinas de Arqueologia em seu currículo, com a respectiva contratação docente”

últimos anos muitos departamentos de História passaram a incluir disciplinas de Arqueologia em seu currículo, com a respectiva contratação docente. O mesmo deverá ocorrer com os cursos de Arqueologia implantados no momento, o que facilitará a cooperação. LDH – O que é o Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica? PPF – O Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica, sediado na Unicamp e liderado por mim e pelo professor André Leonardo Chevitarese (UFRJ e Unicamp), procura coordenar as atividades de pesquisa de diversos doutores, espalhados pelo Brasil, estudiosos da cultura material em sociedades com escrita. Destacam-se os estudos sobre o mundo romano, mas também sobre a modernidade e os usos do passado. LDH – Quais as universidades nacionais que mais ajudam na formação e pesquisa das atividades ligadas à arqueologia histórica? PPF – Há pesquisas de arqueologia histórica e formação de quadros em diversas instituições, com destaque para a USP, UNICAMP, UFMG, PUCRS, UFPel, UFS, UFRJ, sendo as duas primeiras aquelas que mais formaram estudiosos da cultura material das sociedades com escrita. Nos últimos anos, houve uma diversificação e interiorização dessa formação e, hoje, há oportunidades em muitas universidades, como UFMA, UFPR, entre outras. LDH – No que a arqueologia pré-histórica difere, em termos de metodologia, da arqueologia histórica? PPF – A arqueologia pré-histórica estuda sociedades sem escrita e, por isso mesmo, está muito atenta às discussões da Antropologia, da

Etnologia e dos modelos antropológicos. Para estudar objetos sem ter informações escritas, o pré-historiador recorre aos modelos interpretativos e à analogia com povos contemporâneos, como os indígenas brasileiros. Já a arqueologia histórica não pode prescindir do conhecimento da informação das fontes escritas e da historiografia. Mas ambas têm em comum o estudo detalhado e atento da cultura material, dos objetos em sua concretude. LDH – Qual a diferença entre a arqueologia histórica e a de conservação? PPF – A conservação é uma atividade específica, ligada ao estudo da cultura material histórica, mas específica. A conservação e a restauração de edifícios são ações para as quais o arqueólogo histórico contribui, ao colaborar com os especialistas conservadores e restauradores. De todo modo, a experiência internacional e brasileira mostra que essa cooperação é importante, para que não se percam informações relevantes ao restaurar um edifício sem um estudo arqueológico prévio. LDH – Qual é o futuro da arqueologia histórica no Brasil? PPF – As perspectivas para a arqueologia histórica no Brasil são muito promissoras. Em poucos anos, a disciplina floresceu, formou quadros qualificados, publicou livros e artigos no Brasil e no estrangeiro. A inserção internacional dessas pesquisas também já ocorre. Tudo isso indica a vitalidade atual da disciplina e as possibilidades adiante. O mercado de trabalho tende a crescer, tanto na iniciativa privada como na área acadêmica. As oportunidades de pesquisa conjunta com instituições e pesquisadores estrangeiros, já existentes, tendem a aumentar e se diversificar.

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fatos e registros

Antiga Cidade de El Salvador é Destruída

As vítimas da explosão do Monte Vesúvio, ocorrida em 79 d.C., que resultou no soterramento das cidades de Pompeia e Herculano, na Baía de Nápoles, voltaram a chamar a atenção do público quando uma exposição foi inaugurada na Itália. Os famosos moldes das pessoas que morreram naquele fatídico dia estão expostos para o público. Estima-se que entre 10 e 25 mil pessoas tenham perecido sob uma mistura de lava, pedras e cinza vulcânica. Pompeia ficou congelada no tempo devido à quantidade de cinzas e rochas expelidas pelo vulcão, que matou não apenas os residentes como também os animais. Com o tempo, os corpos passaram por decomposição e a massa de cinzas que os envolveu preservou a posição em que cada um estava. Com um pouco de gesso derramado nas aberturas foi possível recompor

algumas vítimas, que agora atraem os olhares curiosos no Antiquário de Bocoreale, a cerca de cinco minutos de carro de Pompeia. As autoridades responsáveis pela exposição afirmam que decidiram realizar a mostra devido à falta de conhecimento que a população em geral possui sobre essas trágicas figuras. Grete Stefani, a organizadora, disse que essas figuras estavam dispersas em Pompeia e outros museus ao redor do mundo, mas que nunca haviam sido vistas juntas. Esse processo de escavação e preservação dos corpos carbonizados é usado desde o século XIX. No total, os arqueólogos encontraram 1.150 corpos em Pompeia, embora muitos estivessem danificados demais para serem preservados. Estima-se, também, que cerca de um terço da cidade ainda não tenha sido escavada.

O complexo de Cihuatan, em El Salvador, datado dos anos 900 a 1100 d.C., está ameaçado pelo saque de peças e destruição de suas estruturas habitacionais. Localizada na periferia de Aguilares, ao norte do país, num terreno árido, está sendo aos poucos reutilizada para construção de casas. O governo do país é o proprietário do sítio arqueológico que se estende por uma região cercada de plantações de cana-de-açúcar. Em terrenos particulares da região foi iniciada a construção de 38 casas para abrigar famílias que perderam tudo nas fortes chuvas que foram registradas no final de 2009 e deixaram quase 200 mortos. Com a autorização da prefeitura de Aguilares e do vice-ministério de Habitação e Desenvolvimento Urbano, a terraplenagem e abertura de ruas para as casas foram iniciadas com a utilização de tratores do Comando de Engenharia das Forças Armadas. Interpelados por arqueólogos como o norte-americano Paul Amaroli, da Fundação Nacional de Arqueologia de El Salvador (FUNDAR), uma entidade não governamental, as autoridades simplesmente disseram desconhecer a existência do sítio arqueológico. Amaroli denunciou a destruição de Cihuatan em março de 2010, o que causou a paralisação dos trabalhos. As escavações deixaram descobertas partes de pedras de moer, conhecidas como metates, além de vasilhas, panelas e utensílios de barro, todos destruídos pela passagem dos tratores.

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Exposição Mostra Corpos de Vítimas de PompEia

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Machu Picchu, as ruínas mais importante do Peru, reabrem suas portas depois de dois meses para reparos de danos provocados por uma enchente. As chuvas fortes na região de Cuzco no começo de 2010 danificaram gravemente a ferrovia que fornece o acesso ao sítio arqueológico inca, datado do século XV. Com os reparos, o governo peruano teria deixado de arrecadar cerca de 400 milhões de dólares recebidos de turistas e incentivadores interessados em atividades holísticas no local. Estima-se que cerca de 90% da arrecadação do país venha das

visitas turísticas até lá. Com a reabertura, o governo está investindo pesado para atrair novamente os turistas. Para tanto, contrataram a atriz Susan Sarandon (de filmes como “telma e louise”) para ser a porta-voz da nova campanha publicitária. Ela já teria visitado localizações como lima, Cuzco e o lago titicaca, e participou da cerimônia de reabertura de Machu Picchu. Estima-se que até dois mil turistas visitarão o local diariamente e que o cartão-postal do Peru contribuirá de maneira significativa para a imagem do país perante a comunidade mundial.

tuMBa EgípCia dÁ diCas dE CoMo ViVEr no aléM Arqueólogos franceses que trabalharam numa tumba bastante depredada por ladrões descobriram inscrições que ensinavam como as múmias deveriam viver no além. O túmulo, pertencente a uma personagem misteriosa da história do Egito, a rainha Behenu, é uma indicação que aquela soberana já teve sua própria pirâmide de 25 metros no complexo funerário da Saqqara, o mesmo que possui a famosa pirâmide de degraus do faraó Djoser. Não há nada que se assemelhe a uma múmia de tal rainha, a não ser os restos de uma mandíbula, deixados pelos ladrões. Os arqueólogos os usarão para determinar com que idade ela morreu. Na mesma tumba também foram encontrados fragmentos de textos religiosos, que estão entre os mais antigos de que se tem notícia. Os encarregados pelas escavações declararam que, entre os achados, há uma espécie de manual de sobrevivência no outro mundo, escrito em pedra. Para tanto, é recomendada uma dieta de frutas e pão para que Behenu não passasse fome. também traz instruções sobre como ascender às estrelas a partir do céu do norte, para onde os soberanos egípcios, segundo a crença vigente, poderiam subir por meio de uma rampa ou escada.

SOCCEr G

FABrÍCIO GuZMÁN

rEaBErto sítio arQuEolÓgiCo inCa

palÁCio dE nEro dEsaBa EM roMa O palácio dourado do imperador Nero (37-68), ponto de parada obrigatório para qualquer turista em roma, foi interditado devido à queda de parte de seu teto. O Domus Aurea foi construído no século I d.C. num dos famosos sete montes que compõem a área da cidade eterna, numa localização bem privilegiada: de frente ao Coliseu. O prédio, que normalmente atrai milhares de turistas todos os anos, estava

fechado quando o acidente ocorreu. Embora ninguém tenha ficado ferido, parte do jardim caiu dentro do palácio, o que deixou as autoridades assustadas. Por isso, interditaram uma área de cerca de 100 metros quadrados que tecnicamente não faz parte do edifício e, assim, não representava nenhuma ameaça para os visitantes. O famoso imperador Nero, que construiu o palácio para dar festas

após a época do Grande Incêndio de roma (ocorrido no ano 64 de nossa era), mandou folhear parcialmente a construção com ouro e fez com que as paredes internas fossem decoradas com pedras semiprecisosas e afrescos. Depois que morreu, em 68, as riquezas foram retiradas e o prédio foi enchido com terra, num sinal que mostrava o quanto os romanos desprezaram aquele governante.

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MITOS | Irlanda

istórias e Lendas dos

Celtas SHUTTERSTOCK

O fascínio por este povo e sua tradição oral terminou por gerar vários estudos em que até mesmo as obras hoje conhecidas como parte de sua mitologia necessitam ser estudadas com cuidado, já que muitas fontes foram compiladas por monges cristãos. E a questão permanece: como eram os heróis irlandeses?

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Por José Antônio Domingos

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MITOS | Irlanda

M

uito se fala a respeito desse povo que historicamente é conhecido pelo que nos relata personalidades como Júlio César ou Deodoro da Sicília. Porém, como a chamada civilização celta possuía apenas tradição oral, sofreu duros golpes em sua trajetória, primeiro com os romanos e depois com a expansão do cristianismo e a supressão de seus cultos pagãos, tidos como hereges. O que temos de interessante pode nos auxiliar a buscar o que há de histórico e verdadeiro num povo que ocupou boa parte da Europa, com uma estrutura tribal, às vezes organizada também em clãs, que por sua vez possuíam uma espiritualidade própria, cultuando a natureza e um diversificado panteão de deuses. Os celtas nos deixaram pistas de sua cultura em mitos que chegaram aos nossos dias de diferentes maneiras. Essas histórias ficaram registradas por alguns dos meios mais conhecidos da época antiga, seja pelo trabalho dos chamados monges copistas da Idade Média, ou entre o povo que por mais tempo manteve viva sua cultura, os habitantes das regiões altas da Escócia e a da Irlanda. Em 1762, surgia na Europa uma obra intitulada “Fingal”, um antigo poema épico, que seu autor, James Macpherson, disse ter origem no lendário bardo, Ossian (fi lho de Fingal) e que havia sido coletado da tradição oral dos camponeses de sua terra natal, as “Hilands” escocesas. Tanto “Fingal” quanto sua continuação, “Temora” (de 1796), acabaram traduzidos para as principais línguas europeias e, em pouco tempo, as elites literárias sucumbiam aos feitos de Ossian. Entusiasmaram-se com a obra autores como Goethe, Herder, Lamartine, Chateaubriand e, segundo alguns relatos, até mesmo Napoleão Bonaparte. Claro que muitas outras vozes surgiram para questionar a validade e a origem dos poemas, questionando a lisura do trabalho de Macpherson. Quem mais se destacou nesta cruzada foi o escritor inglês Samuel Johnson. Em sua obra “A Jornada Para as Ilhas Ocidentais da Escócia” acusava abertamente Macpherson de falsário e dizia que nenhuma epopeia deste vulto poderia sobreviver no bárbaro idioma gaélico, principalmente pelo fato de não haver uma tradição escrita. Johnson morreu em 1784, mas o debate sobre a autenticidade ou falsidade dos ditos

Embora o poeta houvesse realmente colhido material autêntico, transmitido oralmente pelo povo das Terras Altas, de fato não havia uma epopeia como ele alegava haver traduzido

poemas ossianicos duraria ainda várias décadas. Em 1796, após a morte de Macpherson, com o desejo de sanar de vez as dúvidas sobre a obra, a Highland Society of Scotland realizou uma extensa pesquisa com uma equipe de especialistas, visitando os locais onde o autor alegou ter encontrado seus textos e interrogando as pessoas que de alguma maneira pudessem ter colaborado com ele. Os resultados da pesquisa foram publicados em Edimburgo, em 1805, e os autores da investigação concluíram que, embora o poeta houvesse realmente colhido material autêntico, transmitido oralmente pelo povo das Terras Altas, de fato não havia uma epopeia como ele alegava haver traduzido. Interessante notar que as baladas de “Fingal” acabaram sendo um presságio de uma outra avalanche literária que se propagou pela Europa com a publicação do primeiro volume intitulado “Kinder und Hausmärchen”, de Jacob e Wilhelm Grimm. Esta obra acabou impulsionando a recompilação de tradições populares de todas as partes e foi o começo de uma série de acontecimentos que acabaram levando um homem de talento a provar que os chamados bárbaros das Terras Altas escocesas possuíam uma literatura própria que, por tradição oral e escrita, fora transmitida de geração em geração ao longo de milênios.

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MUSEU NACIONAL DE MALMAISON

Campbell John Francis Campbell, chamado em gaélico de “Ian Og Ile” (o jovem John de Islay) nasceu em 29 de dezembro de 1821 no seio da família Campbell de Shawfield, dona desde 1726 da Ilha de Islay, nas Hébridas Interiores. Sua família sempre se esforçou por manter o melhor relacionamento possível com o povo de suas terras e esse contato estreito acabou por influenciar muito a educação e personalidade do pesquisador que, dentre outras tradições, aprendeu o idioma gaélico. Campbell estudou em Eton, na Universidade de Edimburgo, e ingressou no ramo da advocacia inglesa, mais tarde assumindo como secretário do Duque de Argyll. Seu interesse

Quadro do século XIX, de Anne-Louis Girodet de RoussyTrioson, que mostra Ossian (ao centro) recebendo os espíritos de heróis franceses

por recompilar tradições populares começou em 1847, buscando na memória os contos que havia escutado na infância. Após conhecer George Webbe Dasent, que traduziu para o inglês uma compilação de contos noruegueses, Campbell foi encorajado por ele a continuar a juntar histórias e formou uma rede de pessoas que percorreram as Highlands em busca de informantes. Essas pessoas anotaram os relatos que eram enviados a Londres, onde o pesquisador organizou e traduziu o material. Houve várias pessoas que se mostraram de valor extraordinário para sua pesquisa, como Hector MacLean, seu preceptor, que resolveu ajudá-lo, além de Hector Urquhart, zelador da propriedade de Ardkinglass, de quem recebeu

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MITOS | Irlanda

Ossian sonha em quadro de 1813 do pintor Jean Auguste Dominique Ingres

Campbell esforçou-se por manter os contos da maneira como foram transmitidos, já que havia toda uma controvérsia sobre o trabalho de Macpherson, além de apontar detalhes sobre cada relato

pelo correio muitos relatos. Especialmente valiosa foi a colaboração de John Dewar (originário de Cowall, Argullshire) que, já em idade avançada, ainda trabalhava como lenhador para o Duque de Argyll. Era uma pessoa singular, autodidata, sabia escrever em sua língua materna (o gaélico) e, a seu modo e com suas limitações, também conhecia inglês. Advindo da cultura que havia produzido os contos, sua colaboração mostrou-se perfeita. Todo este trabalho de pesquisa acabou resultando numa coleção de quatro volumes e, mesmo com todos os problemas, Campbell decidiu imprimir em gaélico a maioria desses relatos. Entre os meses de agosto e setembro de 1860, parte para as Terras Altas com o primeiro volume de sua obra e, pela primeira vez, mantém contato com as pessoas que haviam narrado os contos. Em outubro aparece a primeira versão de “Contos Populares das Terras Altas Ocidentais”, um feito impressionante, já que o trabalho de pesquisa havia se iniciado apenas um ano e meio antes. A primeira edição teve uma excelente acolhida e em 1862 apareceram os dois outros volumes. O quarto não tinha contos, apenas ensaios sobre a tradição e cultura popular, sendo que o mais importante trata da questão ossiânica. Campbell esforçou-se por manter os contos da maneira como foram transmitidos, já que havia toda uma controvérsia sobre o trabalho de Mcpherson, além de apontar detalhes sobre cada relato.

THE YORCK PROJECT

Influência Celta É importante notar que a Escócia e a Irlanda mantiveram ao longo de séculos estreitos vínculos históricos e culturais. No século V de nossa era, o reino de Dál Riada, no Ulster, expandiu-se além da Irlanda, ocupando um extenso território nas Hébridas Interiores (região

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THE YORCK PROJECT

escocesa de Argyll). Na época, a maior parte da atual Escócia era habitada pelos pictos, que assim como os invasores irlandeses, eram um povo celta. As colônias gaélicas fincaram sólidas raízes na região. No século IX, o Dál Riada do Ulster havia praticamente deixado de existir e o reino escocês de mesmo nome florescia, continuando a expandir-se. Em 843, o rei Cináed Mac Ailpín (Kenneth MacAlpin) acabou por submeter tanto os pictos quanto os anglos e os bretões que habitavam suas terras, passando dali por diante, todo o reino a ser conhecido como Escócia (Scotland) ou “terra dos irlandeses”, o que deixa bem claro quais eram a língua e cultura então dominantes. Durante a baixa Idade Média, principalmente a partir do reinado de Malcolm III (1058-1093), a língua e a cultura gaélica foram se diluindo no sul daquele reino por conta da forte influência inglesa. No entanto, elas permaneceram com força nas “Terras Altas” e nas ilhas, sobretudo enquanto foi mantido o estreito vínculo com a Irlanda, em especial com a província de Ulster. Em 1601, os ingleses fi nalmente conseguiram quebrar a resistência dos irlandeses e a província do Ulster foi colonizada com êxito pelos invasores. A relação entre os países se interrompeu quase por completo e o gaélico escocês, até então um dialeto do irlandês, começou a se distanciar de sua língua-mãe. Enquanto na Irlanda a aristocracia nativa era obrigada a se exilar, nas Terras Altas, a sociedade e cultura gaélicas se mantiveram ainda por mais de um século. Assim, os poetas e narradores profissionais continuaram exercendo seu ofício na Escócia e nas Hébridas até o princípio do século XVIII. Os últimos bardos hereditários que se tem notícia pertenciam à linhagem dos MacVuirich, sendo que um de seus membros, Donald,

Ossian invoca os deuses com sua harpa em quadro de 1801 do pintor François Pascal Simon Gérard

seguia ativo em 1707. Eles estavam a serviço dos MacDonald de Clanranald, ainda que previamente haviam sido bardos dos senhores das ilhas, governantes do reino independente que durante vários séculos controlou as Hébridas e parte das Terras Altas. Porém, como na Irlanda, o que deveria ser uma tradição popular, viu-se enriquecida com os poetas profissionais quando o anglicismo galopante de seus antigos patronos obrigou os bardos a se misturarem com o povo. Da mesma maneira que seus irmãos irlandeses, os camponeses das Terras Altas e das Hébridas, cuja tradição Campbell compilou, eram um povo castigado pela história. A sociedade gaélica tradicional sobreviveu mais de um século depois que os ingleses subjugaram a Irlanda. Enquanto os caudilhos gaélicos gozaram de alguma autonomia, a tradição se manteve, apesar de, desde o final da Idade Média, as famílias nobres perderem cada vez mais terreno frente aos ingleses. A data catastrófica para os irlandeses foi 1746, quando as tropas do rei George II sufocaram a última insurreição importante dos partidários da dinastia Stewart, com a repressão aos que apoiaram a coroa do rei Carlos Eduardo implacável e

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MITOS | Irlanda

As Fontes Irlandesas

com efeitos devastadores por todos os clãs das “Terras Altas”, mesmo para os que não haviam participado do levante. Uma dura legislação foi imposta, proibindo os camponeses, dentre outras coisas, de levar armas, tocar gaita ou usar sua vestimenta tradicional, sob pena de morte. Pela primeira vez em muito tempo a ordem se impôs nos distritos montanheses da Escócia, privando de sentidos um meio de vida baseado em parte pelas constantes hostilidades entre os clãs e pela relação paternalista que havia entre os chefes destes clãs e seus súditos. Os poucos aristocratas de autêntica cultura gaélicas que restaram deram as costas à cultura e língua de seus antepassados, voltando os olhos para Londres. O golpe final surgiu quando no final do século XVIII, os assentados nas Terras Altas descobriram que a melhor maneira de lucrar com seus latifúndios era expulsando os camponeses que cultivavam a terra e convertendo-a em pasto para ovelhas. A retirada em massa de famílias que haviam vivido durante séculos naquelas terras deu-se de maneira feroz e implacável, e continuou assim até 1886. Foi após todos estes acontecimentos que Campbell entabulou seu trabalho. Na época era crescente o interesse pelas histórias, mitos e lendas e não raro, ocasiões em que os feitos e guerras de heróis, como Fionn Mac Cumhail e seus guerreiros, eram narrados, às vezes, durante várias noites.

Livro de Many” e “O Livro de Ballymote”. O primeiro está no Trinity College, os outros três na Academia Real. Apesar da importância histórica dessas fontes, os pesquisadores alertam para sempre questionar as circunstâncias de sua produção, uma vez que são obras copiadas por monges cristãos, o que resultaria na evemerização de alguns deuses. Muitas fontes surgidas mais tarde podem ter sido parte de um esforço de propaganda que objetivava criar uma história para o povo da Irlanda que fosse uma espécie de correspondência à mitologia dos conquistadores de Roma.

O Filho do Mar A seguir, veremos um dos contos colhidos por Campbell, chamado “O Filho do Mar”. Era uma vez, um grande cavaleiro da Irlanda que tinha três filhas. Um dia, elas foram se banhar e uma adormeceu. Ao acordar estava com uma sensação estranha e percebeu que, não muito distante, uma foca havia se afastado. Então ela se descobriu grávida e quando seu filho nasceu, viu que era peludo como uma cabra. Foi enviado para a escola onde foi educado e recebeu o nome de MacCuain, que significa “Filho do Mar”. Ele se tornou comerciante e prosperou, a ponto de comprar um povoado do reino. Um dia, o rei foi caçar em suas terras e, ao chegar no povoado do Filho do Mar, este lhe disse que não tinha direito de caçar. O rei respondeu que tinha tal objetivo em todas as terras do reino e não viu outra alternativa senão marcar o dia para a batalha. Tanto o rei quanto o Filho do Mar começaram a reunir homens para a luta. Mas este último conhecia melhor o local que o soberano e reuniu mais homens que seu adversário. A batalha foi brutal e o rei perdeu, sendo depois perseguido. Fachada da caverna tradicionalmente atribuída ao bardo Ossian, nas Terras Altas da Escócia

ROGER GRIFFITH

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As três principais fontes manuscritas da mitologia irlandesa são o “Lebor na hUidre”, de fins do século XI, hoje na Biblioteca da Real Academia Irlandesa; o “Livro de Leinster”, do início do século XII, parte do acervo da Biblioteca do Trinity College, em Dublin; e, por fim, o manuscrito “Rawlinson B 502”, também conhecido como Rawl, da Biblioteca Bodleiana na Universidade Oxford. Outras fontes importantes incluem quatro manuscritos originários da região oeste da Irlanda datadas dos séculos XIV e XV: “O Livro Amarelo de Lecan”, “O Grande Livro de Lecan”, “O

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SAMPER, J. M. de Prada. Cuentos de las Tierras Altas Escocesas. Siruela, 1999. RUTHERFORD, Ward. Os Druidas. Mercurio, 1991. MAY, Pedro Pablo G. Os Mitos Celtas. Angra, 2002.

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Mar ficou com todo o reino para si. O ferreiro tratou de ocultar a filha e, como sua esposa também estava grávida, quando ambas deram à luz, a filha teve um menino e a esposa, uma menina. O novo rei deixou a menina com sua filha e a mandou para longe, criando o menino como se fosse seu próprio filho. Quando o garoto atingiu os 18 anos, aconteceu que o Filho do Mar fora acometido por um tipo de delírio, mudando completamente seu semblante. O povo acorria para zelar por ele à noite. Chegara a vez do ferreiro velar pelo Filho do Mar, mas seu filho adotivo quis ir em seu lugar. Diante das circunstâncias, o rapaz soube então que era filho do rei de direito, morto pelo atual soberano. Quando soube, o garoto insistiu que tinha mais motivos então para ir. Uma vez no local, o Filho do Mar foi acometido de um novo delírio e suas faces se transformaram, com seus olhos saltando do rosto. Todos fugiram, exceto o rapaz. O Filho do Mar quis saber por que ele não fugira. O moço respondeu que o rei estava tão deformado que parecia o próprio monstro marinho, por isso não fora embora. De alguma maneira, o soberano reconheceu o Filho do Rei. Então simplesmente fugiu. Durante a fuga, então, o filho do verdadeiro rei o perseguiu até chegar a Glen Arm, onde viviam os Fiann. Fionn Mac Cumhail o encontrou e o contratou para servir à mesa, já que ele havia dito que era um criado em busca de um amo. Chegaram a um acordo que duraria um ano e um dia. Os Fiann estavam obrigados a dar uma festa para o rei usurpador uma vez por ano, e no final daquele período proposto se prepararam para uma grande jornada. O filho do verdadeiro soberano deveria ficar ali até que a Festa do Rei usurpador acabasse. Mas o rapaz afirmou que não poderia ficar, pois era o real herdeiro daquele reino. Ao saber disso, todos os Fiann juraram que dariam a vida para protegê-lo. Durante a festa o Filho do Mar reconheceu o Filho do Rei e disse aos Fiann que queria sua cabeça. Marcaram um dia para a batalha, onde o Filho do Rei derrotou o Filho do Mar com a ajuda dos Fiann numa luta brutal. Assim, o Filho do Rei passou a ocupar o trono de seu pai, e o ferreiro, sua esposa e sua filha prosperaram.

Para saber

O perdedor chegou à casa de um ferreiro e dentro dela encontrou uma bela jovem, filha daquele trabalhador, e que estava sozinha. Tomado por sua beleza, o monarca começou a beijá-la e acabaram se entusiasmando um com o outro. Quando o ferreiro voltou, perguntou à filha: - O que aconteceu? Quando saí tinha ares de donzela, porém, agora, tem ares de mulher grávida. Ela não contou o que acontecera, mas o rei explicou o ocorrido e pediu ao pai da moça que a escondesse, pois uma vez que soubessem que esperava um filho dele, seus perseguidores a matariam. Naquela noite, a moça sonhou com a morte do rei e também com uma grande árvore que se estendia por toda casa e a cobria. O rei interpretou como um prenúncio de que gente de sua estirpe reconquistaria o reino. Seus perseguidores vieram e o executaram, tal qual fora previsto. Então, o Filho do

JOSÉ ANTÔNIO DOMINGOS é pesquisador e palestrante de cultura celta e irlandesa

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Brumas da História | Comida

Hábitos Alimentares

na Idade Média Um dos assuntos que mais atraem os pesquisadores europeus é trabalhar para resgatar os hábitos daquela época. Na primeira parte deste artigo, veremos o que já se sabe sobre itens como o consumo de carne, pão e cereais.

(Parte 1 de 2)

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Litografias do século XVIII, que mostram o hábitos alimentares da época

alimentação na Idade Média baseavase essencialmente em cereais, vinho, carnes e peixe. No entanto, haviam diferenças entre classes sociais relativas ao consumo destes alimentos. A maioria da população, isto é, os camponeses, praticava uma alimentação muito simples, baseada sobretudo nos cereais. Estes, juntamente com o vinho com que habitualmente eram acompanhadas as refeições, proporcionavam aos camponeses uma alimentação altamente energética. A riqueza da alimentação em proteínas dependia sobretudo da presença de carne e peixe à mesa. Comparando os orçamentos dos diferentes grupos sociais, verifica-se que quando mais se descia na classe social maior era gasto com o pão, isto é, com os cereais, e que quanto mais se ascendia na hierarquia maior a importância do acompanhamento. Assim, e apesar da carne ser a base nas classes mais abastadas, entre os camponeses o seu consumo era raro, o que podia tornar insuficiente o aporte proteico em determinados períodos. Também o consumo de legumes e frutas não seria adequado entre as classes mais pobres.

Por Francisco Lopes Melo Este fato contribuía para a deficiência da alimentação em algumas vitaminas. De uma maneira geral, os alimentos eram pobres e monótonos, se comparados com os padrões modernos. A quantidade supria, várias vezes, a qualidade. A técnica culinária achavase ainda numa fase rudimentar e as conquistas da cozinha romana haviam-se perdido. A condimentação obedecia a princípios extremamente simples. Na Portugal medieval por exemplo, as duas refeições principais do dia eram o almoço e o jantar. Almoçava-se, nos fins do século XIV, entre as 10 e as 11 horas da manhã, mas nos séculos anteriores, essa hora teria de recuar para as 8 ou 9. Jantava-se lá pelas 6 ou 7 horas da tarde. É de supor, contudo, que o progressivo atraso da hora do almoço tivesse implicado, a partir de certa altura, a necessidade do café da manhã ser feito pouco depois de se levantar. O almoço era a refeição mais forte do dia. O número de pratos servidos em cada uma destas refeições variava não apenas entre elas mas, principalmente, entre as classes sociais. À mesa do rei, da nobreza e do alto clero seriam

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A base da alimentação medieval, quanto ao povo mais simples, residia nos cereais e no vinho. Farinha e pão, de trigo, milho ou centeio, e também cevada e aveia, ao lado do vinho, compunham os elementos fundamentais da nutrição medieval. E no campo havia sucedâneos para o pão: a castanha ou a bolota, por exemplo. Os camponeses consumiam com maior frequência pão escuro, produzido a partir da mistura de farinhas. O pão branco, fabricado apenas com trigo, era mais consumido entre as classes mais abastadas, embora os camponeses também o consumissem com alguma regularidade, provavelmente aos domingos e dias santos.

Carne A inclusão de outros alimentos, como as carnes, estava dependente da sua abundância e preços. Simultaneamente, era a falta de produção de alguns alimentos que aumentava a frequência de outros à mesa do camponês. Ao lado das carnes de matadouro ou gordas, como vaca, porco, carneiro, cordeiro ou cabrito, consumia-se largamente caça e criação. A caça estava entre as principais distrações do nobre e representava uma fonte importante

continua na

próxima ediçÃO

ARNAUT, Salvador Dias. A Arte de Comer em Portugal na Idade Média. In O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, Coimbra, 1967. COELHO, Maria Helena da Cruz, Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos. In Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI, vol. I, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 9-22. FERRO, João Pedro. Arqueologia dos Hábitos Alimentares. Lisboa, Publicações Dom Quixote; 1996. GONÇALVES, Iria. Acerca da Alimentação Medieval. In Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, pp. 201-217. MARQUES A.H. Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e X. In Nova História de Portugal, vol. IV, direcção de Joel Serrão e A. H. Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Presença; 1987.

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Cereais, Pão e Derivados

de subsistência. No mercado tabelavam-se as carnes de cervo, lebre e até urso, entre as gordas; ao lado de uma variedade assombrosa de aves: abetarda, cerceta, fuselo, galeirão, garça, grou, maçarico, pato bravo, perdiz, sisão, calhandra e muitas outras. A criação não varia muito da de hoje: coelhos, faisões, galinhas, gansos, patos, pavões, pombos. Note-se apenas a não existência do peru, que só foi para a Europa depois do descobrimento da América. A forma mais frequente de cozinhar a carne era assá-la no espeto, mas servia-se também carne cozida, carne picada, carne estufada e carne guisada com refogado, feitos com cebola e azeite. Usavam-se também algumas técnicas de acabamento de refeição, como corar, tostar ou enxugar. Com carne de carneiro fazia-se nos finais da Idade Média uma espécie de guisado chamada badulaque. Fabricavam-se vários enchimentos como chouriços e linguiças.

Para saber

servidos três pratos no almoço, além das sopas, acompanhamentos e sobremesas; quanto menor fosse o estatus social, menor o número de pratos, que seria de dois ou apenas um entre os mais desfavorecidos. No jantar, os mais ricos veriam servidos dois pratos, enquanto os menos abastados apenas um. Embora se refiram com frequência às dificuldades de produção resultantes de variações climáticas como uma das causas da menor adequação da alimentação dos camponeses, devemos ter em consideração a interação com as estruturas social e econômica da época. As repercussões do clima nos preços dos alimentos e, consequentemente, no poder de compra tornaram-se, em diversos períodos, a barreira mais impeditiva da diversificação alimentar de vários grupos de trabalhadores, cujos reduzidos salários tornavam proibitiva a compra de grande parte dos alimentos.

n FRANCISCO LOPES MELO

é licenciado em História e pós-graduado em Ciências Documentais pela Universidade Autônoma de Lisboa

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Capa | Criptozoologia

História

Monstruosa O estudo de criaturas cuja existência ainda não foi comprovada é controverso desde suas origens. Porém, já ajudou a retirar da obscuridade animais que já estiveram no imaginário popular e que hoje são reconhecidos como raros. Seria esta pseudociência de real utilidade para identificar espécies pouco conhecidas?

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Por Sérgio Pereira Couto

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Capa | Criptozoologia

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om certeza, o leitor já ouviu falar de criaturas fantásticas como o Monstro do Lago Ness, o Yeti, o Verme da Mongólia ou mesmo o famoso Chupacabras. O que poucos sabem é que há uma ciência (ou melhor, pseudociência) que insiste em classificar essas criaturas não apenas como espécies em real estudo como vai atrás de outras que, em tempos antigos, eram consideradas produtos da imaginação de marinheiros ou viajantes, e que possui uma história conturbada, cheia de altos e baixos. A criptozoologia, como se convencionou chamar esses estudos e pesquisadores, cuida de obter informações desses e de outros animais considerados lendários. Sua denominação vem do grego kryptos ou (escondido), que dá o sentido de “estudo de animais ocultos ou não conhecidos”. Em outras palavras, todo animal que é considerado lendário ou não existente pela biologia tradicional entra neste campo, sendo ou não fantástico. O curioso é que esta moHá livros que definem os dalidade não trata apenas criptozoologistas como “os de unicórnios, dragões e últimos românticos”, já que outras criaturas que acostuassociar a histórias estes insistem em se aplicar mamos e contos de fadas. Os dinosa encontrar pistas sobre sauros, por exemplo, que criaturas tão diversas, como todos sabem que existiram, estão aqui inclusos. os dragões, por exemplo também Outros tipos de animais que são estudados por estes pesquisadores incluem os selvagens que se localizam fora de sua área geográfica normal, como o avistamento de panteras negras no sudeste da Alemanha em 1989. Pesquisadores como o norte-americano John Percy Moore (1869-1965) afirmam que a criptozoologia “varia de pseudociência a uma gama de estudos úteis e interessantes, dependendo de como é praticada”. Ele nota também que não é “estritamente uma ciência” e que “muitos cientistas e céticos a classificam como pseudociência a ponto de não haver muitos artigos publicados em revistas científicas sobre o assunto, não existirem cursos para uma formação oficial de especialistas ou empregos para que as pessoas possam estuda-lá”. Há livros que definem os criptozoologistas

como “os últimos românticos”, já que estes insistem em se aplicar a encontrar pistas sobre criaturas tão diversas, como os dragões, por exemplo, que podem ter tantas definições semelhantes em várias culturas diferentes. Os animais que são estudados por eles são chamados de crípticos, do inglês cryptids, termo introduzido pelo pesquisador norte-americano John E. Wall num informativo da Sociedade Internacional de Criptozoologia, em 1983.

Invenção A criação do termo criptozoologia é atribuída ao zoologista belga-francês Bernard Heuvelmans na década de 1950, embora ele próprio tenha atribuído sua origem ao explorador escocês Ivan T. Sanderson. Em seu livro de 1955, “On the Track of Unknown Animals” (“Na Trilha de Animais Desconhecidos”), o pesquisador também diz que tal denominação teria vindo do zoologista holandês Anthonie Cornelis Oudemans e de sua pesquisa, datada de 1892, intitulada “The Great Sea Serpent” (“A Grande Serpente do Mar”). Heuvelmans argumentou em vários escritos que a criptozoologia deveria ser enfrentada com vigor científico, mas também com a mente aberta e um enfoque interdisciplinar. Destacou que muitas fontes preciosas para suas pesquisas estavam nas lendas urbanas e histórias locais que falavam de criaturas, pois, por mais que tais relatos estivessem mergulhados em elementos fantásticos, continham verdadeiros “grãos” de verdade e informações sobre organismos não descobertos. O trabalho do escritor científico alemão radicado nos Estados Unidos, Willy Ley, também é indicado como uma fonte preciosa dentro da criptozoologia. “Exotic Zoology” (“Zoologia Exótica”, 1959) exibe o treinamento em paleontologia que este autor recebera, o que o possibilitara a escrever vários livros sobre animais. Nessa obra, ele discute a validade de alguns tópicos polêmicos, como o Yeti, as serpentes marinhas e várias espécies de dinossauros. A obra levanta, ainda, a possibilidade de algumas criaturas fantásticas, como o unicórnio, o sirrush (uma espécie de serpente de quatro patas encontrada no Portal de Ishtar, na Babilônia, data do século VI a.C.) e até os ciclopes, serem baseados em criaturas reais e que suas reproduções sejam resultado de erros de interpretação de animais ou de seus restos.

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Animais Reencontrados

Campos e Crípticos

Entre as espécies cuja existência foi confirmada por esses pesquisadores há pelo menos três casos famosos:

M. CIudad

Celacanto

Peixes abissais que, quando localizados em 1938 na África do sul, foram considerados de início como fósseis vivos. sua característica mais importante é a presença de barbatanas pares que são semelhantes aos membros dos vertebrados terrestres e que se movem da mesma maneira. esse animal era considerado como um parente próximo do primeiro vertebrado a sair das águas, que teria dado origem a um novo grupo de vertebrados conhecidos como tetrápodes, que inclui os humanos. Foi tido como extinto até ser redescoberto numa época em que já se conheciam cerca de 120 espécies de Coelacanthiformes. sabia-se que todos esses peixes estavam extintos desde o período Cretáceo. hoje já se conhecem populações na costa oriental da África do sul, ilhas Comores (no Canal de Moçambique) e na Indonésia.

Pertence ao mesmo gênero do rinoceronte indiano e possui as mesmas características de seu parente mais conhecido. difere principalmente no tamanho, pois é menor que o indiano, e possui placas dérmicas menos desenvolvidas, com chifres menores e por vezes ausentes nas fêmeas. apesar de sua população reduzida, acreditava-se que também havia se extinguido, já que o último exemplar em cativeiro morrera em 1907 no zoológico de adelaide, na austrália. originalmente estava espalhado pelas ilhas de Java e sumatra, chegando até a Índia e a China. hoje é encontrado apenas em duas áreas de proteção, uma na ilha de Java, na Indonésia, e outra no Vietnã.

CreatIVe CoMMoNs

Rinoceronte de Java

Dragão de Komodo

arQuIVo ldh

Bernard Heuvelmans nasceu em Lê Havre, no noroeste da França, em 1916. Obteve seu doutorado em zoologia em Bruxelas quando tinha apenas 23 anos. Em 1938, começou a compilar sistematicamente relatos e artigos que não mereciam a atenção da zoologia tradicional. “On the Track of Unknown Animals” foi publicado originalmente em dois volumes em 1955 e traduzido para cerca de vinte línguas. Não contente com os resultados, o pesquisador ainda fundou a Sociedade Internacional de Criptozoologia em 1982, em Washington D.C. para servir de centro de pesquisas para documentar e avaliar provas ligadas a esse tipo de animal. Seu emblema oficial era a figura do Ocapi, nativo das florestas úmidas do nordeste da República Democrática do Congo, e que foi conhecido pelos habitantes locais apenas em 1901. A entidade encerrou suas atividades em 1998 devido a problemas financeiros e manteve um site ativo até 2005. A influência de Heuvelmans no setor foi importante como uma espécie de “filósofo da ciência”, pois nunca questionou a verdadeira natureza da criptozoologia, por isso é considerado como uma das fundações da moderna metodologia usada tanto nessa área quanto nas mais tradicionais. Depois de sua morte, em 2001, foi estabelecido em Lausanne, na Suíça, um arquivo em sua homenagem, que possui a maioria dos registros conhecidos no campo dos animais desconhecidos. Assim, a critpozoologia é oficialmente dividida em dois campos principais. O primeiro lida com as criaturas mais conhecidas por mitos e analisa de dragões a sereias. Os que atuam nesse segmento consideram a premissa de haver algo real por trás de cada históri. No segundo, o objetivo do estudo é analisar animais que as pessoas hoje acreditam ter se extinguido ou que ainda não foram descobertos. Os crípticos foram importantes para o que hoje se define como uma espécie de renascimento dessa modalidade, já que os pesquisadores que a ela se dedicam caminham no que se convencionou chamar de “fronteira da zoologia tradicional”. Os crípticos, por sua vez, são divididos em quatro tipos:

descoberto em 1912 na ilha da Indonésia de mesmo nome. É conhecido pelos nativos de komodo como “buaya darat” (crocodilo da terra) ou “biawak raksasa (monitor gigante). É a maior espécie de lagarto conhecida, chegando a atingir de 2 a 3 metros de comprimento e 70 kg de peso em média (alguns exemplares chegam a 135 quilos). É de longe o maior réptil vivo.

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Capa | Criptozoologia

O que realmente atrai a atenção do público é a possibilidade de se conhecer (ou pelo menos assim pensam) espécies imaginárias

1) Animais não identificados. Espécies que não podem ser categorizadas de acordo com qualquer sistema zoológico existente, como o Pé Grande e o Homem-Mariposa.

2) Animais potencialmente extintos. Organismos considerados como já não existentes, dentre eles algumas espécies de lagartos. 3) Animais idênticos a tipos já conhecidos, exceto por uma ou outra característica, talvez devido a mutações ou com parentescos de duas ou mais espécies diferentes. 4) Animais conhecidos localizados em lugares incomuns, como o já citado exemplo das panteras negras na Alemanha.

Os Defensores

Robert hale ltd

Imagem de 1810 feita para ilustrar um poema de Tennyson que mostra o Krakem (lula gigante) atacando uma embarcação

Os criptozoologistas, apesar dos problemas que enfrentam para desenvolver sua profissão, continuam insistindo que os exemplos de animais por eles descobertos (vide box) são suficientes para continuarem suas pesquisas. Há quem ataque essa pseudociência, alegando que ir atrás de criaturas como o Pé Grande ou o Homem-Mariposa só incita a imaginação das pessoas, que esperam assim ver algo parecido com os efeitos especiais de um filme de ficção científica, o que não parece incomodar esses

pesquisadores, que preferem continuar suas pesquisas baseados em números: na crença de cientistas tradicionais, estima-se hoje que ainda haja cerca de 15 milhões de espécies animais ainda desconhecidas pelas áreas tradicionais. E dão como exemplo a Lula Gigante, que até 2005, quando um exemplar foi capturado em filme por um fotógrafo japonês, era considerado apenas produto da imaginação de pescadores. Outro ponto interessante defendido pelos criptozoologistas é que os casos de espécies consideradas como tipo pela comunidade científica tradicional são vários, o que não diminui a validade de seu trabalho. Um outro exemplo é a existência dos Gorilas das Montanhas, considerados como folclore ou mito até sua confirmação, em 1902. O próprio Okapi, símbolo da Sociedade Internacional de Criptozoologia, também era tido como um mito. Se eles ajudaram a descobrir tantas espécies, por que há muita relutância por parte dos cientistas tradicionais?

Espécies ou Mitos? O que realmente atrai a atenção do público é a possibilidade de se conhecer (ou pelo menos assim pensam) espécies imaginárias. Um exemplo disso é o Dragão, que aparece até mesmo em citações da Bíblia. Enquanto lá é apresentado como símbolo do mal, na China, por exemplo, é símbolo do bem, da paz e da prosperidade. Durante o século XVI, muitas pessoas acreditavam que o dragão existia. O naturalista suíço Konrad Gesner montou listas com três tipos de dragões num trabalho de seis volumes sobre o mundo animal. Um era descrito como uma serpente gigante com asas, outro era do mesmo tipo, mas um pouco menor, e o terceiro, uma criatura com corpo de serpente, asas membranosas, uma cabeça com chifres e garras. Os criptozoologistas afirmam que os dragões eram dinossauros que foram capazes de sobreviver mais do que os outros porque teriam aprendido a voar. Quando começaram a morrer deixaram para trás uma imagem que foi passada para diferentes culturas. Outro nome que atrai a atenção do público e dos criptozoologistas é o Monstro do Lago Ness, na Escócia. A origem tradicional de

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Museo de pergamo ARQUIVO LDH

O Sirrush, uma espécie de serpente mitológica, encontrada no portal de Ishtar, na Babilônia

Lista de Animais Crípticos Existência Duvidosa Animal Descrição Ahool Morcego gigante da Indonésia Anaconda gigante Serpente da América do Sul Arqueopterix Elo perdido entre os dinossauros e aves, tido atualmente como extinto Baleia de Giglioli Mamífero com duas barbatanas dorsais Besta de Gevaudan Animal carnívoro da França Cangurus “aliens” Animais semelhantes a cangurus, vistos na América do Norte, onde pelo que se sabe, não há nenhum canguru. Prováveis parentes dos ratos-cangurus, roedores que habitam a região Diplocaulus Espécie de anfíbio pré-histórico Golfinho Rinoceronte Espécie de golfinho com duas barbatanas dorsais Kongamato Animal voador africano que antes se acreditava ser um pterossauro Kraken Lula colossal capaz de afundar um navio com os próprios tentáculos, citada originalmente na Mitologia Nórdica Mokele-mbembe Animal africano de pescoço longo que se acredita ser semelhante aos extintos saurópodes Serpente do mar Animais gigantes de corpo alongado que se supostamente vivenos oceanos do mundo inteiro Verme da Mongólia Animal que vive no deserto de Gobi, na Mongólia, semelhante a um verme, maior e muito venenoso Yeti Mamífero que se acredita viver nas montanhas do Tibete

Existência Confirmada Animal Descrição Bisão Mamífero redescoberto em 1957 Bonobo Primata de pequeno porte, confirmado em 1928 Cavalo-de-przewalski Equino de menor porte também conhecido como Cavalo-Selvagem-da Mongólia, confirmado em 1881 Golfinho-comum-de-bico-longo Espécie semelhante a um golfinho com um bico de maior extensão, redescoberto na década de 1990 Hipopótamo-pigmeu Espécie redescorberta em 1843 Lagarto monitor Réptil de maior porte confirmado em 1878 Marta-americana Mustelídeo confirmado em 1850 Pecari-de-chaco Espécie da família Tayassuidae, confirmado em 1975 Wallabee-de-cauda-pontiaguda Marsupial confirmado em 1973 Zebra-de-burchell Espécie de zebra redescoberta em 2004 leituras da história | 31

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Capa | Criptozoologia

J.W. Buel

De acordo com um texto escrito um século depois por Santo Adamnam, a fera, ao ouvir a voz da santa, voltou-se para o lago e fugiu até desaparecer de novo em suas profundezas

Ilustração de 1887 que mostra uma suposta árvore carnívora nas florestas africanas chamada de Ya-Te-Veo

tal criatura remonta há mais de 10 mil anos, quando, durante a última era glacial, as geleiras teriam formado o maior lago de água doce, com uma extensão que mede 36 quilômetros de comprimento, 2,4 quilômetros de largura e, em alguns lugares, atinge 300 metros de profundidade. Quando o degelo começou, a terra que surgiu formou o Lago Ness. Os decendentes dos animais que foram para o lago, quando este ainda era ligado ao mar, passaram a viver num ambiente novo e modificado. Em 565 d.C., um homem que por lá nadava morreu em circunstâncias misteriosas. Santa Columba, da Cornuália, Inglaterra, foi

até o local pouco tempo depois e encontrou homens que carregavam o corpo. Foram eles que disseram que o falecido havia sido atacado por um monstro. A santa mandara ao rio uma companheira para atrair a atenção da criatura, que surgiu das profundezas das águas e avançou contra ela. Columba teria feito o sinal da cruz e ordenado que o monstro fosse embora em nome de Deus. De acordo com um texto escrito um século depois por Santo Adamnam, a fera, ao ouvir a voz da santa, voltou-se para o lago e fugiu até desaparecer de novo em suas profundezas. Embora o relato não descreva o monstro e lhe dê um comportamento diferente daquele associado à Nessie, nome que tal criatura teria ganho com o passar dos anos, esse é o primeiro caso historicamente comprovado que cita sua existência. Ao longo dos séculos, outros apareceram, mas curiosamente são as autoridades modernas que questionam tais histórias. A crença popular diz que o lago possui kelpies, seres malignos que mudam de forma e que em geral tomam formato de cavalos para atrair visitantes a cavalgá-los e assim entrar na água para afogar suas vítimas. A ligação entre essas criaturas e monstros como Nessie é obscura, mas chama a atenção o fato de que se trata de criaturas ligadas à água. O auge da fama do monstro aconteceu durante a década de 1930, quando os moradores da região do lago apareceram com depoimentos próprios sobre as aparições do monstro. A imprensa começou a falar do monstro em agosto de 1930 quando o jornal “Northern Chronicle” noticiou sobre três moradores locais que pescavam no lago viram o que foi definido

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hugo heikenwaelder

Tela da Áustria pintada em 1999 que mostra a popularidade moderna de Nessie

madamente de 1 a 1,2 metros e pula como um canguru. Pelo menos um dos relatos altera sua altura para seis metros, com aparência canina ou de pantera, uma língua bifurcada e presas enormes. Testemunhas afirmam que se ouve o silvo da criatura de longe e que, quando ela passa, deixa um rastro com um cheiro que se assemelha ao enxofre. Se criaturas como estas existem mesmo ou não, só nos resta conjeturar. Se os criptozoologistas conseguiram, de fato, localizar espécies que antes pensavam estar extintas, quem não garante se conseguirão provar a existência de Nessie ou do Chupa-cabras? Resta-nos apenas desejar boa sorte e esperar que mais um capítulo dessa longa história seja escrito.

Clark, Jerome. Enciclopédia do Inexplicável.

Para saber

como “uma comoção a uns 500 metros acima do lago”. Um deles viu um borrifo de água subir a uma altura considerável. O monstro aproximou-se do barco e se virou para o sul, num semicírculo. As testemunhas disseram que devia estar nadando a uma velocidade de 15 nós. A notícia atraiu cartas de leitores, publicadas na edição de três de setembro, que haviam visto pessoalmente ou que conheciam pessoas que avistaram o tal monstro. Em abril de 1933, próximo de Abriachan, uma aldeia a noroeste do Lago Ness, um casal passava de carro quando viu uma massa enorme se deslocar no lago. Descreveram um animal enorme que mergulhava na água. Até outubro daquele mesmo ano surgiram os outros outros relatos que deram origem ao formato que hoje tem Nessie. Por fim resta falar de um críptico que vem chamando cada vez mais as atenções dos pesquisadores: o Chupa-cabras. O primeiro relato de um ataque aconteceu em março de 1995 em Porto Rico. Nele, oito ovelhas foram encontradas mortas, cada uma com três marcas de dentes na área do peito, todas completamente sem uma única gota de sangue. Alguns meses depois, em agosto, uma testemunha, Madelyne Tolentino, disse ter avistado uma criatura na cidade de Canóvanas, onde cerca de 150 animais de fazenda e de estimação foram encontrados mortos da mesma maneira. Algum tempo antes, em 1975, mortes semelhantes aconteceram na cidadezinha de Moca e foram atribuídas ao “Vampiro de Moca”. As mortes atuais foram atribuídas a algum culto de magia negra, mas mais tarde, quando outras ocorrências semelhantes aconteceram ao redor da ilha e muitos fazendeiros relataram mortes de animais, as autoridades locais começaram a repensar o assunto. O nome Chupa-cabras é atribuído ao comediante e empresári, Silvério Pérez. Logo depois outros relatos de mortes semelhantes começaram a chegar, vindos de países como República Dominicana, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Panamá, Peru, Brasil, Estados Unidos e México. A descrição mais comum de tal criatura diz que tem aparência de réptil, com pele em tom cinza e espinhos em suas costas. Mede aproxi-

M Books, 1997. Genzmer, Hervert; Hellenbrand, Ulrich. Mysteries of the World. Parragon Publishing, 2007. Arment, Chad. Cryptozoology: Science & Speculation. Coachwhip, 2004. Arment, Chad. Cryptozoology and the Investigation of Lesser-Known Mystery Animals. Coachwhip, 2006.

n SÉRGIO PEREIRA COUTO

é jornalista formado com passagem por revistas como Discovery Magazine e Ciência Criminal. É autor de mais de vinte títulos, todos enfocando aspectos curiosos da história universal, entre eles os romances “Investigação Criminal”, “Help – a Lenda de um Beatlemaníaco” e os livros de pesquisa “Almanaque das Guerras” e “Manual de Investigação Criminal”

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LIVROS E AUTORES

História Escrita

Guerra e Paz

Sua obra, uma ficção histórica, é feita com narrativa em primeira pessoa. Em cada página encontramos nomes como Donatello e Brunelleschi, além de conhecer como um antigo banqueiro conseguia sua influência e poder econômico sobre a cidade do Renascimento.

Resultado direto de um colóquio realizado na Universidade de São Paulo (USP) em 2007, este livro é organizado por duas historiadoras que querem derrubar o velho ditado de que o público nacional é composto por não-leitores. Traz uma série de temas e idéias que vão das leituras da vida na corte às publicações revolucionárias do século XVIII. É uma oportunidade para verificarmos a importância e o significado da comunicação escrita no mundo ibérico, em especial durante o império português. Com uma linguagem acessível e bastante simples, vemos que a leitura vai além do próprio livro, fator que contribuiu para sua evolução no Brasil colonial e imperial. Os esforços das professoras Leila Mezan (da Universidade Federal de Campinas) e Ana Paula Megiani (da USP) resultaram num livro forte e interessante, que te prende desde a primeira página.

Que o assassinato do reverendo Martin Luther King, em 5 de abril de 1968 gerou uma das piores revoltas populares da história norte-americana, não é novidade para ninguém com um conhecimento mínimo. O que poucos sabem é que o cantor James Brown fez algo para aplacar os ânimos e parar com os atos de vandalismo: subiu ao palco e deu um show. O prefeito de Boston, cidade onde aconteceria o concerto, pensou em cancelar o evento, com medo das reações do público, composto em sua maioria esmagadora por negros. Afinal, os registros históricos mostram que o saldo de mortos era alto para apenas um dia: 40 no total, além de 20 mil presos e centenas de feridos. Mas Brown conseguiu transformar Massachussets, que já era cenário de disputas raciais, num evento pela paz, reconstituído pelo jornalista James Sullivan, do jornal “Boston Globe”, neste livro. Assim conhecemos a relação do cantor com o movimento pelos direitos humanos.

CÓSIMO DE MÉDICI: MEMÓRIAS

O IMPÉRIO POR ESCRITO

O DIA EM QUE JAMES

Os Médici e Florença Cosimo de Médici (13891464) foi um dos homens mais ricos, importantes e influentes na Europa durante o século XV. Era estadista, banqueiro e mecenas, chegando a financiar não apenas comerciantes como também artistas. Sua atuação assegurou a prosperidade comercial de Florença. O autor Luiz Felipe D´Avila estudou Ciências Políticas em Paris e Administração Pública na Universidade de Harvard. Criou revistas hoje famosas, como a “Bravo!”, além de ter sido diretor da Editora Abril.

DE UM LÍDER RENASCENTISTA D’Avila, Luiz Felipe

178

páginas Editora Ediouro

Algranti, Lilá Mezan e Megiani, Ana Paula páginas

608

Editora Alameda

BROWN SALVOU A PÁTRIA Sulliva, James páginas

208

Editora Zahar

Três Faces do Império Esta coleção, organizada por dois doutores em História Social da Universidade Federal Fluminense e pesquisadores do CNPq, traz um retrato único sobre o Brasil do século XIX. Além do panorama do período de Dom João, os livros exploram assuntos pouco discutidos em obras similares, como política indígena, língua nacional, ecologia e cultura popular. O primeiro volume é dedicado ao período joanino e ao primeiro reinado (18081831). O segundo, à época das regências e ao segundo reinado (1831-1870). Por fim, o terceiro fala sobre o período da crise do Império (1870-1889). A obra no todo possui muitos textos de pesquisadores de várias universidades brasileiras de praticamente todos os cantos do país. Não há como deixar estes livros de fora da sua biblioteca. Só assim para obter uma visão clara e precisa das origens sociais e políticas de nosso país. O BRASIL IMPERIAL (em três volumes) Grinberg, Keila; Salles, Ricardo 448 páginas (504 páginas no volume 2) Civilização Brasileira

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Investimentos em

carbono

A Amazônia será o melhor lugar para aplicar esse tipo de crédito no futuro.

A

s nações amazônicas serão os vencedores antecipados no futuro mercado de créditos de carbono florestal, setor que pode atingir os vinte bilhões de dólares por ano até 2020, segundo um novo relatório. Estima-se que o desmatamento é responsável por quase 12 por cento das emissões de gases do efeito estufa, que causam a mudança no clima, e há um consenso geral de que o acordo climático global, negociado em Copenhage, inclui um plano de proteção florestal. O plano permitiria aos países ricos que cumprissem suas metas de emissão investindo na preservação das florestas nos países em desenvolvimento. Se o plano for aprovado, os governos terão então que decidir onde vão co-

Por Anjali Nayar

locar seu dinheiro. O Índice de Carbono Florestal, divulgado pela organização ambiental Resources for the Future e pela empresa de consultoria Climate Advisers, ambas sediadas em Washington D.C., foi criado para ajudar os investidores e as autoridades competentes a escolherem uma floresta do mundo para investir. O Índice é calculado com base no potencial biológico que a área tem para armazenar carbono e o custo de oportunidade local para a proteção das florestas em vez de derrubá-las para obter madeira ou limpar esse terreno para iniciar uma lavoura ou fazer dele um pasto. O índice também leva em conta o risco de investimento com base na capacidade que cada país tem para controlar e comercializar suas florestas, a

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NATURE | Sustentabilidade


facilidade dos negócios, a estabilidade política e as condições de governança local. “É o primeiro estudo feito para mostrar os melhores lugares para investir no mercado de carbono florestal com todo esse nível de detalhe”, diz Nigel Purvis, chefe da Climate Advisers e diretor do projeto.

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Favoritos na América do Sul Segundo o estudo, a região da AmazôniaAndes, América Central, a Bacia do Congo, Madagascar e o sudeste da Ásia estão enfrentando índices de desmatamento suficientes para poder capitalizar com o mercado de carbono. Mas a preferência será para os países cujo ambiente para investimentos é mais seguro. O relatório sugere que 85% dos melhores lugares para o retorno de carbono florestal estão localizados na grande Amazônia, especialmente no Brasil e no Peru, onde há uma taxa elevada de desmatamento, a terra é barata e existe capacidade de mercado e vontade política para salvar as florestas. A Bacia do Congo – com suas florestas ricas em carbono e preços baixíssimos – possui quase 75% dos locais de alto rendimento potencial. Mas as taxas de desmatamento relativamente baixas, a instabilidade política e a incapacidade para levar ao mercado os créditos de carbono fazem com que a região tenha probabilidades menores de receber bons investimentos na próxima década. A classificação no índice confi rma o que os analistas já suspeitavam, diz Doug Boucher, que dirige a Iniciativa para o Clima e a Floresta Tropical da Union of Concerned Scientists, em Washington D.C. Boucher diz ainda que os investimentos futuros reais não vão depender apenas das avaliações. O Brasil, por exemplo, já disse que não irá vender seu estoque de emissões no mercado porque quer obrigar as nações desenvolvidas a se concentrarem em reduzir suas próprias emissões de carbono. Em vez disso, o Brasil criou um fundo que permite aos países ricos doarem dinheiro para ajudar o país a cumprir sua meta de reduzir o desmatamento em 80% até 2020. “É por isso que muito do investimento depende das políticas nacionais”, diz Boucher.

“Áreas da Bacia do Congo que atualmente são reconhecidas por terem carbono florestal de baixo custo podem, na verdade, estar localizadas sobre recursos minerais valiosos ou no caminho de futuras rotas de transporte”

Trabalho em andamento

 De Nature News c.2010 Nature News Distribuído pelo New York Times Syndicate

Leo Bottrill, que está mapeando os fatores determinantes do desmatamento na região para o grupo ambientalista WWF de Washington D.C., diz que, embora o índice ofereça uma boa visão geral das oportunidades de carbono florestal, alguns dos dados nacionais e mundiais utilizados “devem ser tratados com cuidado”. “Áreas da Bacia do Congo que atualmente são reconhecidas por terem carbono florestal de baixo custo podem, na verdade, estar localizadas sobre recursos minerais valiosos ou no caminho de futuras rotas de transporte”, diz Bottrill. “Seria importante complementar as informações do índice com dados detalhados e concretos sobre o desenvolvimento previsto para essa região” . “Se você está de fato procurando fazer um investimento específico, terá à disposição uma lista mais detalhada de critérios”, acrescenta Jan Fehse, chefe dos serviços florestais da empresa de comércio de carbono EcoSecurities, em Dublin, na Irlanda. Fehse gostaria que o índice fosse expandido para acompanhar o progresso no desenvolvimento de políticas legais e sociais no mercado do carbono nos próximos anos. “Conforme novas informações são adicionadas, o índice vai ficando mais útil do que já é”, complementa. Purvis espera que seu grupo apresente uma versão mais detalhada do índice no ano que vem. “É uma tentativa de compilar os melhores conjuntos de dados disponíveis no mundo”, diz ele. “É apenas o começo da discussão, não o ponto fi nal”.

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BATALHAS | Roma

Ponte Mílvia, Constantino e o

CLAUDIO LEONI

Início de uma Era Cristã

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Para muitos, os séculos III a V de nossa era retratam o fim do Império Romano, caracterizado como uma época de anarquia, corrupção e decadência. Na verdade, os imperadores desse período realizaram reformas que influenciaram diretamente a Europa medieval e o mundo moderno.

CREATIVE COMMONS

Por Cláudio Umpierre Carlan

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BATALHAS | Roma

s e c n i v o n g i s c in ho

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CLÁUDIO CARLAN

No ano seguinte, os cidadãos romanos, preocupados com o fato de que Galério, principal Imperador, e seu “auxiliar”, César Severo, tentavam acabar com a antiga isenção de pagamento de impostos de que gozava a cidade de Roma, o Senado proclamou Maxêncio como imperador

Constantino X Maxêncio Marcus Aurelius Valerius Maxentius era filho de Maximiano, nascido em 280 e morto em 312, durante a Batalha da Ponte Mílvia. Após a renúncias de Diocleciano e Maximiano em 305, Maxêncio esperou, em vão, a posição de César. No ano seguinte, os cidadãos romanos, preocupados com o fato de que Galério, principal Imperador, e seu “auxiliar”, César Severo, tentavam acabar com a antiga isenção de pagamento de impostos de que gozava a cidade de Roma, o Senado proclamou Maxêncio como imperador. O novo governante aliou-se ao pai, que voltava ao quadro político. Quando Severo marchou contra Roma no comando das legiões que haviam lutado antes sob o comando de Maximiano, estas imediatamente desertaram para o lado do antigo comandante e seu filho. Mais tarde, em 308, Maximiano desentendeuse com o filho e exilou-se na corte do seu genro,

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aius Flavius Valerius Aurelius Constantinus ou simplesmente Constantino I, o Grande, nasceu em Naissus (Nis) entre 270 e 288. Faleceu em Nicomédia no ano de 337. Era filho de Constâncio Cloro (ou Claro, membro da tetrarquia de Diocleciano) e de sua concubina Helena (mais tarde canonizada pela Igreja Católica Romana, pois, segundo a tradição, numa peregrinação a Jerusalém teria encontrado a cruz em que Jesus Cristo foi crucificado). Criado na Corte de Diocleciano, na parte Oriental do Império, como refém, caso seu pai não permanecesse fiel ao regime, desde cedo ganhou a admiração dos soldados pelas suas qualidades militares. Fugindo de Nicomédia, ingressou nas legiões comandadas por Constâncio Cloro. Com a morte deste, foi aclamado Augusto (governante de maior prestígio), pelo exército no ano de 306, prática muito comum durante os séculos III e IV. Mas Galério, outro membro da tetrarquia, genro e sucessor de Diocleciano, concedeu-lhe apenas o título de César (espécie de auxiliar do Augusto, subordinado ao governante/Imperador). No ano seguinte, Constantino se fez ser reconhecido Augusto pelo tetrarca do Ocidente, Maximiano, cuja filha, Fausta, desposou. Graças às intrigas entre os sucessores dos primeiros membros da tetrarquia (Diocleciano, Galério, Maximiano e Constâncio Cloro), o Império Romano contava com sete imperadores. Depois da morte de Galério em 311, quatro imperadores disputaram o poder: Constantino, Maximino Daia, Maxêncio e Licínio. A guerra entre eles tornou-se inevitável. Licínio e Maximino se enfrentavam no Oriente, enquanto Constantino e Maxêncio, no Ocidente.

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Constantino, sendo logo depois por este condenado à morte. Nesse período, Maxêncio mantinha ótimas relações com Senado Romano. Para justificar o ataque de surpresa desferido contra ele por Constantino, autores cristãos, como Lactâncio e Eusébio de Cesareia, condenavam Maxêncio como tirano. Constantino avançou rapidamente pela Itália e, em pouco tempo, estava ao norte de Roma (segundo afi rmam Lactâncio e Eusébio de Cesareia, “pelo poder do Deus Cristão”). Derrotou defi nitivamente as forças de Maxêncio, muito maiores. Maxêncio afogou-se no rio Tibre durante a confusão da retirada, cena que Eusébio comparou à do faraó do Egito e suas forças destruídas pelo Mar Vermelho. Constantino manteve os mesmos senadores nos cargos que haviam ocupado no período anterior. O próprio Senado Romano, mudando de lado por causa do aumento dos impostos, pediu a Constantino que invadisse Roma, expul-

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Muralha de Adriano, datada do século III, em Roma. Constantino marchou triunfalmente por este portão após derrotar Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia

sando Maxêncio. Essa passagem foi ricamente descrita por Eusébio e Lactâncio. Segundo Eusébio, Bispo de Cesareia, biógrafo e amigo pessoal de Constantino, pouco antes da batalha, o imperador sonhou com uma imagem no céu, com as iniciais da palavra “Cristo” em grego, acompanhada da frase In hoc signo vinces (Por este sinal vencerás). Lactâncio, retórico cristão do século IV, descreve a mesma cena, porém, Constantino vê o sinal, ao sair de sua cabana. Bom ressaltar que Eusébio escreveu em grego e Lactâncio em latim. Com isso, Constantino ordenou que os soldados pintassem o sinal nos escudos, ganhando a guerra, graças ao auxílio do Deus Cristão. Hoje, esse símbolo está presente na Bandeira do Vaticano ou em qualquer Igreja Católica, perto do altar ou da sacristia. Na realidade, o exército de Constantino era bem menor do que o de Maxêncio, mas, como comandante militar, Constantino era supe-

sol invictus

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s u m i x a m pontifex BATALHAS | Roma

CLÁUDIO CARLAN

Cenas que retratam a luta entre Constantino e Maxêncio. Nelas, o imperador comanda seu exército sobre o Rio Mílvia

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rior ao rival. Napoleão Bonaparte, imperador francês já dizia no século XIX: “(...) é melhor um exército de coelhos comandados por um leão do que um exército de leões comandados por um coelho (...)”. Em 313, já como senhor do Ocidente, Constantino assina o Edito de Milão, com Licínio, senhor do Oriente, estabelecendo a liberdade religiosa no Império, tanto Com a derrota e morte para cristãos, quanto de Maxêncio em 312, na para pagãos. Num primeiro moponte Mílvia, uma nova mento, Licínio e Maxialiança é estabelecida entre mino fizeram um acordo. Constantino e Licínio Em 313, Licínio casa-se com a meia-irmã de Constantino, Flávia Júlia Constantina, estabelecendo uma aliança com Constantino. Por razões políticas, volta-se contra Maximino Daia, derrotando-o no mesmo ano. Maximino foi condenado à morte e o Oriente voltou a ter um único senhor. Com a derrota e morte de Maxêncio em 312, na ponte Mílvia, uma nova aliança é estabelecida entre Constantino e Licínio. Após alguns enfrentamentos iniciais, firmaram a paz em Sérdica, no ano de 317. Durante esse período,

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ambos nomearam novos Césares, segundo as suas conveniências, membros da sua família, independentemente da idade. Na tentativa de consolidar a totalidade do Império Romano sob o seu domínio, Licínio armou seu exército contra Constantino. Como parte do seu esforço de ganhar a lealdade dos soldados, Licínio dispensou o exército e o serviço civil da política de tolerância do Édito de Milão, permitindo-lhes a expulsão dos cristãos. Alguns perderam consequentemente as propriedades e a vida. Em resumo, Licínio tornou-se um perseguidor dos cristãos. Depois de novos enfrentamentos, em 324, Constantino reunificou o império e mandou executar Licínio, seu cunhado, e o filho dele, Licínio II, em 325, depois de prometer publicamente não fazê-lo (Eusébio de Cesareia cita em seus escritos que Licínio estava à frente de uma série de intrigas). Meses depois, Constantino mandou executar seu filho mais velho, Crispo (seu César e vencedor de Licínio na batalha naval de Crisópolis em 324), que permitiu a Constantino o acesso ao Bósforo e às províncias orientais do vencido. Crispo foi acusado de tentar violentar sua masdrasta, Fausta. Não lhe deram nem o direito de defesa.

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O NATAL E A ECONOMIA SEGUNDO CONSTANTINO A ascensão de Constantino esteve ligada com a transformação do cristianismo. A data do Natal, 25 de dezembro, foi oficializada pelo Imperador. Era o dia do culto ao Deus Sol, Apolo. Antes disso, o Natal era comemorado no dia 6 de janeiro (hoje dia de Reis ). Na época, para popularizar a religião, trocaram as datas festivas. Essa foi uma das principais decisões do Concílio de Niceia, em 325. A maioria dos dogmas da atual Igreja Católica, foram estabelecidos durante o Concílio Ecumênico, o primeiro da Igreja Cristã. Constantino tinha inicialmente uma religião solar, de tendência monoteísta, culto ao sol ou sol invictus. Ele se considerava inspirado por um Deus Único, mas mal definido, e mantinha as funções de pontifex maximus, sumo sacerdote de mais alto posto na religião pagã. A partir de 391, durante o governo de Teodósio I, o Grande, esse título passa a pertencer ao Bispo de Roma ou Papa. O historiador paulista Pedro Paulo Funari, entrevistado nesta edição, define essa suposta conversão de Constantino como um jogo político. Segundo o autor: “Assim o imperador Constantino concedeu aos cristãos, por meio do chamado Édito de Milão, em 313, liberdade de culto. Em seguida, esse mesmo imperador, procurou tirar vantagem e interveio nas questões internas que dividiam os próprios cristãos e convocou um concílio, uma assembléia da qual participavam os principais padres cristãos. Nos Concílios foram discutidos as diretrizes básicas da doutrina cristã. Depois Constantino cuidou pessoalmente para que as determinações do concílio fossem respeitadas, ou seja, passou a ter um controle muito maior dos cristãos e suas idéias. Antes de morrer, o imperador resolveu batizar-se também.”

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No campo econômico, com o intuito de controlar a inflação, Constantino criou uma nova moeda de ouro, solidus, diminuindo o peso do aureus (antiga moeda de ouro). Essa moeda teve a primeira cunhagem em 310 e conseguiu estabilizar rapidamente o sistema monetário. O solidus circulava só entre a elite políticaeconômica, e não entre as classes mais baixas, que

continuavam utilizando moedas de bronze, cobre ou prata, que eventualmente, sofriam as devidas desvalorizações. Em 324, é cunhado o miliarense, de prata, que poderia chegar ao valor de 1/12 do solidus aureus. Quanto à massa em circulação, é constituída por espécies de cobre e bronze, de peso variável. Constantino apoderou-se dos tesouros do antigo rival, Licínio, mas, dois anos mais tarde, a maior parte das casas monetárias, fundadas por Diocleciano, era fechada. Em 332, graças ao confisco dos bens dos templos pagãos, foi possível reabri-las. Na administração, ocorreu alterações significativas nas funções. O ministro do tesouro real , o rationalis cedeu lugar ao conde das liberalidades sagradas; e o procurator rei privatae passou a ser chamado conde dos bens privados, na organização dos bens e da fortuna do príncipe para que revertessem as rendas do ager publicus, dos domínios confiscados, das terras municipais e os recursos dos templos. As moedas laudatórias tinham por função passar uma mensagem de louvor e compromisso entre governante e governados. Constantino pretendia comemorar os seus 20 anos de governo, cunhando peças semelhantes às da tetrarquia (da qual se achava o legítimo sucessor). A estrela existente depois da inscrição VOT XX remete aos tempos de Otávio Augusto (ele mesmo legítimo sucessor de Júlio César, assassinado no Senado). Otávio teria visto uma estrela cadente ou cometa cruzando os céus. Ele interpretou como uma mensagem de Júlio César, reconhecendo Augusto como seu sucessor, legitimando dessa forma o poder imperial. Essa amoedação data de 324 – 325, em Heracleia (Macedônia). Trata-se de um aes, pequena moeda de bronze, uma das mais antigas de Roma, utilizada, principalmente, para o pagamento das tropas e pequenas operações econômicas. De fato, a política constantiniana de grandes despesas não conseguiu deter a inflação. Um fato importante que gerava o aumento dos preços era a prática do fornecimento do pão, que a princípio era gratuito, passando, em seguida, a um preço reduzido, bem como as distribuições de azeite e de carne de porco, aumentaram, à medida que foram ampliadas as fronteiras imperiais.

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CLÁUDIO CARLAN

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Fausta estava com medo de que o filho de uma rival fosse o sucessor de Constantino; e Crispo, filho do primeiro casamento de Constantino com Minervina (pouco sabemos dessa união), educado por Lactâncio, já havia demonstrado sua competência como militar e administrador e era o neto favorito de Helena (mãe de Constantino). Influenciado por ela e atormentado após descobrir a inocência do filho (causa principal da condenação de Fausta, como adúltera), Constantino teria aceitado o batismo, que, segundo Eusébio de Cesareia, lavaria seus pecados. Esse é o tema principal da ópera “Fausta”, de 1831, de autoria do compositor italiano Gaetano Donizetti. Durante todo o seu reinado, ele se dedicoua reformar profundamente o Império. Modificou a composição do senado, cujo conselho estava composto por 600 membros, aumentando para dois mil magistrados. Outra inovação foi a reforma da prefeitura do pretório: os comandantes da guarda imperial se converteram em altos funcionários provinciais, dotados de amplos poderes civis, responsáveis por manter a ordem pública e as finanças.

Apesar de não retornar à antiga forma de governo de que seu pai fez parte, Constantino limitou-se, dois anos antes de sua morte, a partilhar o governo dos territórios em cinco partes: três, as maiores, seriam entregues a seus três filhos; as outras duas, a três de seus sobrinhos. Coube ao filho mais velho, Constantino II, a Bretanha, a Gália e a Espanha; Constâncio II ficou com a rica parte oriental do Império que, desde 333, governava como César em Antioquia; o mais jovem, Constante, ficou com a Itália, a África e a Panônia. Os primos Flávio Júlio, Dalmácio e Anibaliano ficaram, respectivamente, com os Bálcãs e a Ásia Menor.

Início de uma nova dinastia Com a morte de Constantino em 337, teve início um período de lutas internas pelo poder. Os numerosos meio-irmãos e sobrinhos de Constantino foram assassinados por políticos poderosos e generais desejosos de defender uma sucessão dinástica, livre da disputa entre os diversos ramos da família. Essa ideia era defendida por Helena, mãe de Constantino. Provável que Constâncio II, o homem forte do novo

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Arco de Constantino, em Roma, próximo ao Coliseu. O monumento foi erguido em comemoração à vitória da Ponte Mílvia

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Para saber

regime, tenha ordenado o massacre. Deixou vivos, por razões dinásticas (também serviam como reféns) os jovens primos Constâncio Galo e Juliano. Mais tarde, ambos assumiram a função de César (primeiro Galo, depois Juliano). Depois da morte de Constantino em 337, do massacre de seus familiares e das mortes de Constantino II (317 – 340) e Constante (320 – 350), o Império retorna às mãos de um único senhor, Constâncio II (317 - 361), responsável pelo reinado mais longo do século IV, depois de Constantino. Os problemas administrativos e a questão sucessória levam Constâncio a nomear seu primo, Constâncio Galo, como César. A instabilidade deste e as intrigas palacianas levaramno a ser executado sob a acusação de traição. Seu irmão, Juliano, é chamado à presença de Constâncio em Mediolanum (Milão). Em 355, foi nomeado César da parte ocidental do império e casou com a irmã do imperador, Helena. Nos anos seguintes, lutou contra as tribos germânicas que tentavam entrar em território do império. Nesta luta, distinguiu-se como estrategista, administrador e legislador. Recuperou Colonia Agripina (Colônia Alemanha) em 356, derrotando os alamanos (em Argentoratum, na Batalha de Estrasburgo, França/ Alemanha), assegurando a fronteira do Reno por outros cinquenta anos. Em 360, Constâncio lhe ordenou transferir suas tropas da Gália, comandadas por Juliano, para o exército do leste. Tanto Juliano quanto seus soldados não gostaram de tal atitude, o que provocou uma insurreição que fez com que as tropas da Gália proclamassem Juliano Augusto e novo imperador. Não houve uma luta propriamente dita entre Constâncio e Juliano. Constâncio II morreu de peste bubônica, muito comum na época, quando se deslocava para a Gália. As próprias legiões de Constâncio reconheceram Juliano como único imperador. Outra inspiração ocorrida durante o século IV é o progresso de uma ideia dinástica. Nesse período, ocorreram menos desordens do que nos anteriores. Efetivamente após ter conhecido uma dinastia constantiniana e uma valentiniana, o século V conheceu uma dinastia teodosiana. Ambas interligadas entre si pelo casamento dos seus membros. Começou a surgir um sentimento de lealda-

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aes

BOWDER, Diane. Quem foi quem na Roma Antiga. São Paulo: Art Editora / Círculo do Livro, 1980. CALICO, Xavier. Catálogos los Avreos Romanos 196 A.C – 335 D.C. Barcelona, 2002, p. 321. FUNARI, Pedro Paulo Abreu; CARLAN, Cláudio Umpierre. Arqueologia Clássica e Numismática. Coleção Textos Didáticos n. 62. Campinas: IFCH / UNICAMP, 2007, 132 páginas. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Grécia e Roma: vida pública e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia, amor e sexualidade. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2002, 143 páginas. EUSEBIUS PAMPHILI, Bispo de Cesaréa. De Vita Constantini. V. 7. Lib. I. Leipzig: Texto da Edição I. A. Heikel, 1902. LACTÂNCIO. De Mortibus Persecutorum. Paris: Ed. J. Moreau, 1954, 280 páginas.

Outra inspiração ocorrida durante o século IV é o progresso de uma ideia dinástica. Nesse período, ocorreram menos desordens do que nos anteriores

de monárquica, apesar de uma série de transtornos. A melhor prova disso é que, apesar de toda a carência militar e política, os filhos de Teodósio I morreram de morte natural. A ideia familiar foi suficientemente forte para que, de uma dinastia a outra, procurasse criar um laço por meio do matrimônio. Valentiniano casa o filho, Graciano, então como dezesseis anos, com a neta de Constantino, de treze anos. E Teodósio, por sua vez, desposou a filha de Valentiniano. Lentamente, vai-se instalando nas vastas regiões imperiais um respeito ao imperador como governante supremo. Por este motivo, não podemos considerar completamente ineficazes os esforços das dinastias do Baixo Império para regularizar a transmissão de poder. Uma herança que os reis medievais vão aproveitar muito bem, para legitimar e consolidar seus reinos.

CLÁUDIO UMPIERRE CARLAN é professor adjunto de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas (Unifal/MG)

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Arqueologia | Itália

A morte segundo os

Um dos povos italianos mais misteriosos de que se tem notícia, cuja maioria das informações obtidas não vem das ruínas de suas cidadesEstado, mas sim de seus túmulos e arte funerária.

A

parte central da Itália é uma das mais procuradas pelos arqueólogos. Isso porque foi lá que, entre os anos 700 e 400 a.C., floresceu a civilização etrusca, que logo ganharia a alcunha de “povo misterioso”. Também ficaram conhecidos por terem uma certa obsessão com a morte, já que a maioria do que conhecemos hoje sobre eles veio principalmente de seus túmulos. O mistério ao redor desse povo também se agravou com a crença de que sua língua era peculiar e ilegível. Na verdade pode ser lida, mas de uma maneira bastante limitada. Isso significa que grande parte do que se sabe vem de escritos de seus inimigos. A Etruria, nome da região por eles habitada, equivale à moderna Toscana. Lá havia cidadesEstado independentes baseadas em 12 lugares, como Tarquinia e Cerveteri, ambas partes da comuna italiana da região do Lácio, província de Roma. Essas regiões formavam a Liga Etrusca, uma espécie de confederação. Não se sabe muito sobre essas cidades, mas as escavações arqueológicas provaram que eram bem fortificadas e em geral ficavam em posições elevadas como no topo de colinas. Com o tempo, a área de influência desse povo se expandiu consideravelmente, o que lhes concedeu bons contatos internacionais, em especial com os povos do Mediterrâneo, como os gregos, além dos egípcios e muitos outros. Um ponto que é debatido até hoje é sua

Por Sérgio Pereira Couto verdadeira origem, mas as pesquisas mais recentes parecem indicar que sua civilização era local e não herança de imigrantes. O curioso é que os arqueólogos resolveram se concentrar nos cemitérios e praticamente relegaram as cidades para segundo plano. Não é para menos, uma vez que lá foram encontrados muitos objetos feitos de metais preciosos e outros materiais exóticos. Também foram encontrados por lá vasos gregos em tons vermelho e preto, que haviam em vários túmulos. Durante a década de 1830, foram descobertos cerca de 3.400 unidades, recuperadas nesses locais durante um único ano. No século XIX, esses itens terminaram em muitos museus europeus, que estavam nos estágios iniciais de desenvolvimento de seus acervos.

Os Cemitérios Tais sítios de pesquisa são considerados como um bom ponto de partida para se desvendar os mistérios etruscos. Sabe-se por eles que sua sociedade era fortemente de cunho hierárquico, com uma aristocracia ou classe superior, cujo status refletia nas práticas funerárias. As tumbas desses homens tiveram diferentes formas com o passar do tempo, de formato circular a fileiras de edifícios retangulares. As câmeras de túmulos circulares no cemitério de Cerveteri foram originalmente cavadas em tufa vulcânica, uma rocha de densidade mole, e cobertas com montes de terra.

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Etruscos


Competições e Mulheres Além dos banquetes, é comum encontrar também cenas de competições esportivas. No Túmulo dos Augures (Tomba Dei Augures), também na Tarquínia, pode-se ver dois homens engajados numa luta. Ao lado está uma pilha de

Para saber

vasos de metal, possivelmente o prêmio, e numa ponta há um juiz que observa a contenda. Novamente os arqueólogos acreditam que se trata da representação de uma cerimônia em honra ao falecido, neste caso, jogos funerários. Uma curiosidade em relação a esse povo parece estar no papel da mulher em sua sociedade. Elas parecem ter conquistado uma posição liberal quando comparadas com as gregas ou romanas. Em certos afrescos, como no Túmulo dos Leopardos, são mostradas jantando com os homens, algo simplesmente não aceitável no mundo grego. As esposas pareciam também desfrutar da mesma posição que seus maridos a julgar pelos sarcófagos encontrados nos túmulos. Como método para lidar com os mortos, parece haver uma predileção clara pela cremação em alguns períodos. Os restos incinerados eram enterrados nos Columbaria, nichos escavados na rocha. Os enterros tiveram grande impacto na posterior interpretação desse povo e seus sarcófagos, feito de terracota, foram um fator importante. São considerados, até hoje, como exemplos belos da arte funerária mundial, cujas tampas eram reproduções dos corpos que guardavam, alguns de um alto nível de realismo. E com o passar do tempo essas esculturas ficaram cada vez mais realistas, o que prova que aquele povo tinha um interesse nas pessoas como indivíduos a ponto de muitas tampas de sarcófagos parecerem mais retratos do que uma representação idealizada do morto.

MuSEu do louvrE, ParIS

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Possuem em média 39,62 metros de diâmetro. Numa tumba, conhecida como Túmulo dos Alívios (Tomba dei Rilievi) há cenas que representam uma sala de banquetes com objetos como copos “pendendo” das paredes. Ela possui também uma série de descansos (completos com almofadas), também escavados na rocha. Os corpos dos mortos eram colocados lá. Muitos túmulos são belamente decorados com pinturas de parede. Esses afrescos comemoram os prazeres da vida de uma maneira que parece curiosa quando associada à morte, um dos fatores que levam à curiosidade natural em cima dos etruscos. Já foi sugerido que essas cenas representariam banquetes funerários, embora alguns aleguem que isso poderia ser um sinal de que aquele povo via o além-vida como um banquete. O Túmulo dos Leopardos (Tomba dei Leopardi,) na Tarquínia, possui cenas ainda mais belas, com os convidados reclinados enquanto os comes e bebes são servidos e dançarinos se movem em todos os cantos da câmara. É possível notar um músico tocando uma flauta dupla, um instrumento que aparece em diferentes túmulos.

À esquerda, parede do Túmulo dos leopardos, na Tarquínia; à direita, detalhe do Sarcófago dos Esposos, de 520/510 a.C.

SaNToN, Kate. Archaeology – Unearthing the Misteries of the Past. Parragon Publishing, 2007. PIquEro, Javier Cabrero. Los Etruscos. Independent Publishers, 2007. BorrEllI, Federica e TarGIa, Maria Cristina. Etruscos - Descubrimientos Y Obras Maestras De La Gran Civilizacion De La Italia Antigua. random house, 2003.

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PESQUISA | Portugal

Domingos Vandelli e a ciência luso-brasileira

O avanço do conhecimento europeu deve muito aos naturalistas. Dentre eles destaca-se este que foi um dos mais prolíficos, com trabalhos em áreas variadas que vão do social ao econômico, contribuindo para a gênese da taxonomia moderna.

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fi nalidade prática, visando assim a recuperação dos reinos europeus, em especial Itália e Portugal. A fisiocracia sempre esteve presente em suas memórias e ensaios como na demonstração da realização prática dos estudos efetuados no campo das ciências naturais, ou seja, na passagem direta do saber teórico para a práxis. Os procedimentos para conhecer os “segredos da natureza” deveriam estar ao alcance do máximo possível de pessoas para torná-los disponíveis ao uso daqueles que estivessem em condições naqueles tempos difíceis no que tangia à educação. Coimbra em especial marcou o local inicial na trajetória de Domingos Vandelli em terras lusitanas. O percurso do naturalista é bem elucidativo da simbiose entre o domínio da história natural e as preocupações de natureza econômica que o envolviam, assim como norteavam seus colegas daquela época. Vandelli adotou tanto os princípios fisiocráticos italianos das Escolas de Milão e Nápoles quanto os princípios do liberalismo inglês. Nas décadas que se seguiram ao terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755

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omingos Agostinho Vandelli (17351816) foi um naturalista, denominação que se dava aos cientistas entre os séculos XVII a XIX. Atingiu fama ao dar a Portugal muito da organização iluminista que o país conseguiu entre os séculos XVIII a XIX. Seu pai, Girolamo Vandelli, fora médico e professor na Universidade de Pádua, sendo sua mãe conhecida por Francesca Stringa. Tornouse doutor em Filosofia Natural pela Universidade de Pádua, Itália, sua terra natal. Publicou muitas obras sobre os mais variados assuntos naturais, econômicos e sociais, tendo consolidado seu nome na História pelo trabalho em Portugal, em especial na Universidade de Coimbra, inicialmente pela publicação do “Dicionário dos Termos Técnicos de História Natural Extraídos das Obras De Lineu” (1788), assim como pela edição de “Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen”, obras de referência na Europa. Uma das características mais marcantes do naturalista Vandelli foi a de converter temas como agricultura e natureza para uma

Por Adílio Jorge Marques

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Fonte principal do Jardim Bot芒nico em Coimbra, Portugal

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e que destruiu grande parte da cidade, mestres como ele e outros estrangeiros contratados que chegavam a Portugal sabiam que tinham por missão transformar a cambaleante economia do país. Perceberam que o desenvolvimento da indústria, ou industriosidade (compreendida aqui como qualquer atividade empreendedora com fins comerciais e científicos) do país seria a salvação modernizadora do reino português, já atrasado em relação aos ingleses e franceses, por exemplo. Era importante e fundamental promover novas técnicas nas várias culturas, visando uma maior produtividade. A aclimatação de novas plantas, por exemplo, era vista como atividade científica necessária, pois poderiam ser úteis ao mercado e às artes em geral, principalmente num reino tão vasto (incluindose, claro, todas as colônias além-mar, como o próprio Brasil). Desde 1759, Domingos manteve contato com o renomado botânico, zoólogo e médico sueco Carlos Lineu (1707-1778), reconhecido mundialmente pela criação da nomenclatura binomial e da classificação científica que estudamos em Biologia, na qual utilizou os princípios da classificação racional iluminista. Lineu é assim considerado o pai da taxonomia moderna e foi um dos fundadores da Academia Real das Ciências da Suécia, de grande importância para as ciências da Europa.

Domingos Vandelli dedicou-se especialmente ao Museu e ao Jardim Botânico de Coimbra em conjunto com o físico e também italiano Giovanni Dalla Bella

Corrente Científica

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O movimento da “economia da natureza”, sistematizado por Lineu, constituiu um elo fundamental na gênese da perspectiva científica que, em meados do século seguinte, veio a ser chamada de ecologia, algo atualmente muito em voga. Nesse tipo de economia pressupunha-se a existência de um sistema de equilíbrios interdependentes entre as diversas partes do mundo natural, num sistema no qual cada elemento possuía uma função relevante para a dinâmica coletiva. Assim, verifica-se que o pensamento ecológico já é motivo de reflexões há algum tempo.

MUSEU DA CIDADE, LISBOA

PESQUISA | Portugal

Quadro do Marquês de Pombal quando da expulsão dos jesuítas, datado de 1766

Na época de Sebastião de Carvalho e Mello ocorre a segunda fase iluminista de Portugal, pautada pelo assim chamado “despotismo esclarecido”, além da reforma do ensino. Quando, em 1750, o rei Dom João V morreu, Portugal encontrava-se em grave crise econômica e em profunda dependência da Inglaterra em decorrência do Tratado de Methuen (1703). Este acordo havia praticamente impedido o desenvolvimento da indústria manufatureira local, pois obrigava o país a comprar quase tudo dos ingleses, e a maior parte dos lucros obtidos na colônia era transferida para os cofres britânicos. O novo rei, D. José I (que reinou de 1750 a 1777), nomeou como seu principal ministro Sebastião José de Carvalho e Mello, 1º Conde de Oeiras (1699-1782), que durante 27 anos comandou a política e a economia portuguesa com pulso rígido, reorganizando o Estado, protegendo os grandes empresários, criando as companhias monopolistas de comércio e sempre tendo em mente a importância das colônias como peça relevante na política. O futuro Marquês de Pombal combateu tanto os nobres quanto o clero, reprimindo igualmente as manifestações populares, como a revolta contra a Companhia das Vinhas na cidade do Porto em 1757. O terremoto que destruiu Lisboa, no Dia de Todos os Santos de 1755, fez com que o ministro Carvalho e Mello recebesse de D. José I poderes para reconstruir a cidade e a economia do país, à beira da falência. Além da criação das companhias de comércio, privilegiadas pelo monopó-

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Tendo em vista o tradicionalismo que imperava na cultura portuguesa, seu impacto intelectual foi profundamente renovador, segundo o pesquisador Cruz Costa. A questão da terra para os portugueses era oriunda do caráter comercial e cosmopolita da vida portuguesa dos fins do século XV e início do século XVI, dando aos lusitanos uma praticidade no lidar com o conhecimento. Tal fato pode ter tornado a adaptação de Domingos Vandelli mais fácil, pois ao se tornar um grande mestre do naturalismo português formou toda uma geração de estudiosos, entre os quais muitos brasileiros. Vários dos discípulos de Vandelli, sob sua orientação direta, percorreram o interior de Portugal e das colônias (inclusive o Brasil) em missão de coleta e pesquisa científica. O naturalista ajudou a estabelecer o chamado naturalismo de campo como forma reconhecida de trabalho científico, mesmo que não fosse, à época, uma profissão das mais reconhecidas em Portugal. Domingos Vandelli dedicou-se especialmente ao Museu e ao Jardim Botânico de Coimbra e, em conjunto com o físico e também italiano Giovanni Dalla Bella (1726-1823), elaborou o primeiro plano para aquele Jardim, tendo escolhido o local para instalá-lo apenas em 1773. Dizia ele que “um museu é um livro sempre aberto, no qual o observador se instrui com prazer e facilidade”.

O local do Jardim Botânico de Coimbra foi escolhido por Vandelli em 1773

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MUSEU DA CIDADE, LISBOA

lio e pela liberdade de taxar os preços de compra e venda dos produtos, houve o aumento da cobrança de impostos na região das Minas, onde foram criadas as casas de fundição e fixadas quotas anuais de produção de ouro. Em conformidade com uma política de consolidação do domínio português no Brasil, Pombal consolidou de vez o Tratado de Madri, que ampliava as fronteiras tanto no norte quanto no sul, passando a um confronto direto com as missões jesuíticas. Na Amazônia, as ordens religiosas mantinham o monopólio da comercialização das “drogas do sertão”, coletadas pelos índios que viviam nas missões. Pombal, acusando os jesuítas de conspirar contra o Estado, expulsou-os de Portugal e de seus domínios em 1759, confiscando seus bens. França, Espanha e os demais países europeus adotaram a mesma medida e o próprio Vaticano extinguiu a ordem em 1773. Em 1814, a Companhia de Jesus foi restaurada pelo papa Pio VII. No entanto, os jesuítas só regressaram a Portugal em 1829 por intermédio do rei D. Miguel. Críticas surgiram, então, à religiosidade que também permeava o ensino em Portugal, como se pode verificar nas reflexões e críticas vindas da Itália, especificamente de Luís António Verney ou de Antonio Ribeiro Sanches. Quando o Marquês de Pombal decretou a reforma da Universidade de Coimbra visando uma modernização não religiosa, convidou Domingos Vandelli, entre outros naturalistas, para lá trabalhar. Domingos Vandelli chegou a Coimbra para lecionar História Natural e Química na Faculdade de Filosofia Natural, tendo-lhe sido conferido, para esse feito, o grau de doutor em Medicina e Filosofia. Em 1772, Sebastião José de Carvalho e Mello notifica Domingos Vandelli de que as suas atribuições incluíam também a organização do Jardim Botânico de Coimbra, do Museu de História Natural e do Laboratório de Química daquela mesma Universidade, local onde, ao que parece, ocorriam também as reuniões maçônicas orientadas por Vandelli. É de se registrar que a época Pombalina foi de tolerância para a existência da maçonaria portuguesa, coincidindo com a expulsão dos jesuítas do país em 1759. Algo que mudaria radicalmente com a chegada ao poder da fervorosa católica D. Maria I (depois cognominada de “Rainha Louca”), mãe do nosso conhecido D. João VI.

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MUSEU MACHADO DE CASTRO, COIMBRA

PESQUISA | Portugal

Possível retrato de Domingos Vandelli num prato de sua fábrica de louças. Não há registros iconográficos do naturalista

Todavia, Pombal não aprovou o plano, e a organização do Jardim de Coimbra terminou apenas no ano de 1790, quando Felix Avelar Brotero (1744-1828) foi nomeado professor de Botânica e Agricultura, e Pombal já não mais existia.

A “Setembrizada”

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Até 1807, Vandelli manteve sua vida equilibrada, dividindo-se entre Coimbra e Lisboa, mais particularmente nas atividades da Ajuda, onde trabalhava como diretor de seu Jardim Botânico. Além de sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, também se associou às Academias de Upsala, Lusacia, Pádua e Florença. Contudo, com as invasões francesas, sua vida e a de sua família mudariam de rumo drasticamente. Napoleão chegou ao poder na França como 1º Cônsul (1799), vindo a ser coroado imperador em 1804 sob o título de Napoleão I. A partir de 1807, conduziu seu governo sem atender aos Corpos Legislativos e com características autoritárias, imperiais e expansionistas. As guerras, a princípio localizadas como conflitos entre soberanos, tornaram-se batalhas nacionais a partir da resistência popular da Espanha e de Portugal aos invasores napoleô-

nicos, transformando-se nas chamadas Guerras Peninsulares. Com o apoio da Inglaterra, as nações europeias, derrotadas em sucessivas coligações, acabariam por se impor a Napoleão na Batalha de Waterloo em 1815. Com o crescente poderio dos franceses e sendo Conselheiro do príncipe regente D. João, Vandelli escreveu muitas memórias econômicas e políticas, mostrando às vezes oscilar entre aceitar o apoio inglês ou a forte presença napoleônica em seu país. Por fim, em novembro de 1807, Napoleão invadiu Portugal, fazendo com que boa parte da Corte viesse para o Rio de Janeiro, evento bastante lembrado em 2008. Vandelli e seus familiares ficaram em Portugal, pois ele já possuía idade avançada para uma difícil travessia marítima. Como resultado das emoções inerentes a qualquer guerra, a “Setembrizada” acabou por ser um movimento de reação popular e do governo português ao final das invasões (1810) contra aqueles supostos colaboracionistas. As acusações abrangiam muitos estrangeiros (em especial franceses e descendentes), carbonários e maçons que trabalhavam em Portugal. Foram então apelidados de “afrancesados”, pois seriam personalidades que teriam apoiado politicamente a França durante a ocupação. A ação persecutória atingiu o seu auge entre os dias 10 e 13 de setembro de 1810, com várias prisões e deportações, inclusive as de Vandelli e seu filho Alexandre, também acusados de traição. Na noite de 10 para 11 de setembro de 1810 ambos foram presos, juntamente com outros “estrangeirados”, e conduzidos para o Forte de São Julião da Barra (Lisboa). Em seguida, foram embarcados na fragata Amazona com destino à ilha Terceira, nos Açores. Notícias se espalharam, denunciando a suposta colaboração dos Vandelli com o naturalista francês Geoffroy de Saint-Hillaire na pilhagem deste aos acervos museológicos mais importantes de Portugal, especialmente no Museu da Ajuda, justamente na época em que Domingos fora seu diretor. Todavia, essas denúncias jamais foram comprovadas, assim como outras, também contra muitos cidadãos acusados de “afrancesamento”. Inclusive o filho, Alexandre Vandelli, é solto e retorna logo para Portugal, onde passaria os próximos cinco anos tentando inocentar a memória da família.

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Enquanto Mestre na Universidade de Coimbra, Vandelli teve vários alunos brasileiros e fez surgir para a História, em especial com as Ciências, alguns nomes conhecidos. Eram os chamados “alunos brasileiros de Domingos Vandelli”: • Manuel Arruda da Câmara (1752-1811), de Pernambuco • Baltasar da Silva Lisboa (1761-1840) e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (1762-1835), da Bahia • Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), também da Bahia, que empreendeu uma extensa viagem percorrendo o interior da Amazônia até o Mato Grosso, entre 1783 e 1792 • José Álvares Maciel (17611804), participante com Tiradentes da Inconfidência e, segundo alguns, influenciado pelo professor em suas ideias libertadoras • Vicente Coelho de Seabra Silva e Teles (1764-1804), também

mineiro e que foi nomeado em 1791 demonstrador de Química em Coimbra, passando depois a substituto de Zoologia e Mineralogia, Botânica e Agricultura • Bernardino Antonio Gomes (1768-1823), que trabalhou no Laboratório da Casa da Moeda, inclusive com o filho primogênito de Domingos • Alexandre Antonio Vandelli, descobridor da cinchonina, lendo na Academia Real das Ciências de Lisboa, em sete de agosto de 1810, o “Ensaio sobre o Cinchonino e Sobre a sua Influência na Virtude da Quina e Doutras Cascas” • José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o mais proeminente desse grupo de estudantes, diferenciou-se dos demais por vários motivos, entre eles pelo seu retorno tardio ao Brasil. Enquanto os outros retornaram logo ao seu país natal, José Bonifácio permaneceu envolvido com inúmeras tarefas acadêmicas e administrativas em Portugal

até 1819, vindo neste mesmo ano para o Brasil desenvolver os trabalhos políticos que levaram à nossa Independência. Bonifácio foi antes de tudo um grande cientista, para depois transformar-se no Patriarca brasileiro. Foi sogro de Vandelli e, ao que tudo indica, também foi recebido nos preceitos maçônicos e carbonários por influência de seu professor. Com as viagens desses estudantes e naturalistas, Vandelli consolidou algumas das medidas que permitiram um aproveitamento mais racional e útil da natureza pela inteligência portuguesa, a saber, a criação de estabelecimentos científicos capazes de estudar e organizar o material oriundo das coletas; as próprias viagens, necessárias ao conhecimento científico do vasto reino português; a formação de pessoal especializado, sem ter que recorrer à importação de mão de obra, algo que Portugal já padecera; e um crescimento da industriosidade.

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PORTUGAL NOTÁVEL

Os alunos brasileiros

Panorâmica do Jardim Botânico de Coimbra, próximo ao Observatório Astronômico

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PESQUISA | Portugal

Fonte de parede do século XVIII, típica das cerâmicas de Vandelli

Os militares ingleses e também maçons ajudaram os presos que possuíam alguma ligação com a Maçonaria a sair dos Açores rumo a Londres, entre os anos de 1810 e 1811, havendo a intervenção de mentes ilustradas da Royal Society de Londres no caso de Domingos Vandelli. A sociedade também foi um grupo com muitos membros ligados aos pedreiros-livres e aos antigos rosacrucianos. As ligações maçônicas de Domingos Vandelli foram corroboradas pelas Obediências de Portugal, assim como aconteceu com José Bonifácio em relação à maçonaria brasileira. A Iniciação de Vandelli, porém, parece ter ocorrido ainda quando morava na Itália, sendo que Portugal acabaria por ser o lugar onde conseguiu mais adeptos. Além do Mestre Vandelli, outro persona-

As ligações maçônicas de Domingos Vandelli foram corroboradas pelas Obediências de Portugal, assim como aconteceu com José Bonifácio em relação à maçonaria brasileira

gem muito lembrado neste episódio (seriam muitos para tão curto espaço) é o do francês Jacome Ratton (1736-1822), negociante e membro da Loja Maçônica “Amizade” em Lisboa, que também foi preso e deportado para os Açores, exilado pelas mesmas circunstâncias. Domingos ficou no exílio em Londres em 1811 e em 1815, quando retorna a Lisboa, já está alquebrado pelos momentos passados, vindo a falecer logo depois em 27 de junho de 1816, dia do aniversário de seu fi lho mais velho e continuador nas ciências, o naturalista Alexandre Antonio Vandelli. Historicamente pode-se, enfim, tentar mencionar vários motivos que levaram ao difícil fim de vida de Domingos em Portugal. Suas relações e nomeações com a época pombalina (Pombal era considerado um “inimigo político” para a família de D. João VI); seu suposto “deísmo maçônico”, além das relações reais com a maçonaria portuguesa e mesmo com a carbonária italiana; o fato de ter uma esposa de sobrenome francês, Feliciana Isabella Bon, parente do mesmo francês Geoffroy de SaintHilaire; o “espírito de guerra” que tomou conta

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WORSTER, D. Nature’s Economy: a History of Ecological Ideas. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, capítulo 2.

Prancheta publicada originalmente no “Dicionário de Termos Técnicos de História Natural”, de Vandelli, em1788

CARDOSO, J. L. Memórias de História Natural – Domingos Vandelli. Porto: Porto Editora, 2003. BERNASCHINA, P. (Org.) Exposição. Gabinete Transnatural de Domingos Vandelli. Coimbra: Artez, 2008. SERRÃO, J. V. História de Portugal – A instauração do Liberalismo (18071832), vol. VII, Viseu: Editorial Verbo, 1982. SEQUEIRA, G. M. A Casa Onde Morreu Vandelli. In: Depois do Terramoto. Subsídios para a História dos bairros ocidentais de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, Vol. II, 1967.

 ADÍLIO JORGE MARQUES

é doutor em História e Epistemologia das Ciências pela UFRJ/HCTE

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de Portugal após as invasões; as invejas pessoais e profissionais; as intrigas palacianas (Domingos era médico e Conselheiro da Corte); e o simples fato de alugar um quarto de suas várias dependências em Lisboa a um inquilino considerado jacobino. Para muitos dos naturalistas que ficaram em Portugal, os Vandelli foram motivo de dúvidas quanto à sua atuação, tanto política quanto científica, e ainda hoje muito se discute a respeito. O preconceito contra Domingos Vandelli pode em parte explicar o “esquecimento” quanto às obras e atuações histórico-científicas do próprio filho Alexandre Vandelli, a ponto de não existir nenhuma imagem da família nem em Portugal e nem em outro país, ao que se saiba. Teriam sido elas destruídas? A maçonaria portuguesa, em todos os momentos, esteve ao lado deste ilustre cientista e de sua família na década derradeira dos oitocentos, apesar das vicissitudes finais. Domingos, nobre homem que inspirou maçons da grandeza de José Álvares Maciel e de José Bonifácio de Andrada e Silva, a quem os brasileiros também são muito gratos.

Para saber

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Mistérios da História | Albigenses

(Parte 3 de 3)

Os perfeitos e a igreja católica Na conclusão do artigo veremos mais detalhes sobre o fim dos cátaros na fortaleza de Montsegur, as lendas sobre seu suposto tesouro e os chamados neocátaros, que se consideram herdeiros das tradições originais.

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No topo, monumento aos 200 cátaros mortos em Montségur. Acima, vista do que restou do castelo

pesar das aparências favoráveis aos exércitos papais, a batalha contra os cátaros durou quase 40 anos até o cerco final. Havia células de fiéis que conseguiram sobreviver por mais meio século. Milhares de perfeitos, colocados para escolher entre conversão ao catolicismo e a morte, logo se prontificavam a se sacrificar, mostrando tendências para o martírio. Muitos morreram de fome e acorrentados às paredes de calabouços, outros foram queimados publicamente em grandes fogueiras. Houve os que apelaram para a já descrita endura, suicidando-se pelo jejum. Apenas em 1224, depois de um cerco que durou dez meses, a fortaleza de Montségur, nos Pirineus, último reduto de cátaros, caiu. Suas ruínas podem ser vistas até hoje em Ariegé, ao sul da cidade de Lovelanet. Localizada no alto de um penhasco escarpado de 1.207 metros de altura, mais de duzentos cátaros, entre homens e mulheres, dos quais faziam parte 50 perfeitos, desceram à montanha “catando calmamente até grandes piras, onde morreram queimados”. O local é conhecido hoje em dia como Campo dos Queimados. Os cátaros que conseguiram fugir da França foram para a Itália. Porém, foram descobertos pela Inquisição, já instalada na maioria dos países europeus. Pouco depois, em 1299, Pedro Autier, um perfeito, regressou ao sul da França e, com o apoio do povo, começou a reconstituir várias comunidades cátaras. Novamente a Inquisição entrou em ação, capturando-o e

Por Sérgio Pereira Couto executando-o em 1311. Como a Igreja cátara não estava completamente reconstituída, terminou por extinguir-se, pois não contava mais nem com o apoio da aristocracia, agora decadente na região. Na Itália, nos montes Apeninos e no Alpes da Lombardia, os cátaros resistiram até por volta de 1400, quando desapareceram.

Os Tesouros e os Neocátaros Fontes acadêmicas dizem que, pouco antes do cerco final, foi erguida uma trégua para que pudessem se preparar para seu destino. Assim, um grupo de cátaros (algumas versões dizem que seriam apenas quatro) teria descido as enormes muralhas de Montségur para transportar seu fabuloso tesouro. Estes quatro, segundo relatos da Inquisição, fugiram para as montanhas levando consigo “certos objetos”. A lenda complementa: quando o Graal estava escondido em lugar seguro, os cátaros fizeram seu sacrifício final. Há quem diga, como o historiador Andrew Sinclair, que o Graal pode ter saído da fortaleza cátara para ir parar nos subterrâneos da Capela Rosslyn, na Escócia. Há outros autores que afirmam que o Graal pode estar em qualquer lugar do Languedoc, inclusive em Rennes-le-Chateau. Seja como for, ninguém jamais encontrou nada que fosse nem remotamente similar à relíquia, apesar de localidades tão distantes entre si como o País de Gales, a Inglaterra, a Itália e certas cidades da França

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ilustração do século Xiv em crônica de São demis que mostra o Massacre dos Albigenses

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reorganizou a igreja, declarou aquele ano como o “ano I da restauração da gnose” e restabeleceu os sacramentos bases de catarismo: o Consolamentum, a Quebra do Pão e a Penitência. Estabelece a hierarquia da sua igreja através da nomeação de onze bispos (com uma mulher, Sofia de Varsóvia, e uma série de diáconos de ambos os sexos). É também instituída Ordem do Paracleto, em honra dos mártires cátaros mortos na Cruzada Albigense. Embora Doinel tenha abandonado seu posto em 1894, a igreja neocátara continuou até a metade da Segunda Guerra Mundial. Ela terminaria com um homem chamado Chevillon, que acumulava a liderança do movimento neocátaro com os títulos de Grão-Mestre da Ordem Martinista e Grão-Mestre do Rito de Misraïm, ou do Egito. Em 1941, a polícia do governo colaboracionista de Vichy ordenou a prisão de Chevillon e apreensão dos documentos encontrados na sede de Lion. Os documentos foram considerados contrários aos interesses de Vichy. Apesar de não ter nada em comum com a Maçonaria do Grande Oriente, subversiva aos olhos de Vichy, a igreja neocátara foi vista como tal. Chevillon foi condenado à morte e executado.

Para saber

moderna apresentarem, hoje, candidatos ao título de “verdadeiro Graal”. Enquanto isso, nos dias de hoje, cresce e floresce de maneira discreta o chamado movimento neocátaro no mesmo Languedoc que viu o martírio dos cátaros originais. O escritor português Bernardo Sanchez da Motta conta em seu livro “Do Enigma de Rennes-le-Chateau ao Prirado de Sião” um pouco sobre Jules Doinel. Nascido em 1842 em Moulins, no Allier, este é o principal nome ligado a um movimento neocátaro surgido no final do século passado na França. A sua carreira de arquivista e paleógrafo iniciou-se nos Archives du Cantal, e posteriormente na Biblioteca de Loiret. Foi nesta última que encontrou algo que mudou a sua vida: uma carta com a assinatura de um chanceler episcopal, de nome Etienne, queimado em 1022, em Orleans, por heresia. Esse documento apresentou a Doinel o grupo sectário do qual o chanceler fazia parte: uma seita de “popelicanos”, composta por homens e mulheres de forma indistinta, estabelecida na diocese de Orleans no século XI. Doinel obteve várias informações sobre o que acontecia originalmente nessas reuniões, que segundo os documentos históricos se iniciavam “com todos os participantes entoando cantos com uma vela acesa na mão. Depois, um animal, que deveria representar uma divindade, entrava na sala e colocava-se no meio da assembleia. Era o sinal para que cada um escolhesse um parceiro do sexo oposto e se unisse com ele”. Das crianças nascidas destes encontros, uma era escolhida para ser “purificada pelo fogo”. De suas cinzas era feita uma mistura usada para administrar extrema-unção. Um dos membros da seita, horrorizado com os procedimentos, denunciou-a a um cavaleiro, de nome Arefast, que comunicou a situação ao rei. Em 25 de dezembro de 1022, os hereges foram presos e chamados perante o Sínodo, na catedral de Orleans. Três dias depois, treze deles foram queimados. Apesar destes fatos, Doinel se interessou pela história dos popelicanos e mergulhou nas pesquisas para levantar as crenças cátaras. Em 1189, Doinel criou uma igreja neognóstica, da qual foi, durante muitos anos, o patriarca, com o nome adotado de Valentino II e os títulos de Bispo de Montségur. Em 1890, ele

PiCAr, Michel. os Cátaros. Europa-América, 1990. NElli, rené. os Cátaros. Edições 70, 1980. o’ShEA, Stephen. los Cataros. Suma de letras, 1990.

 SÉRGIO PEREIRA COUTO é jornalista com passagem por revistas como discovery Magazine e Ciência Criminal. É autor de mais de trinta títulos, todos enfocando aspectos curiosos da história universal, entre eles os romances “Sociedades Secretas” e “help – A lenda de um Beatlemaníaco”, além dos livros de pesquisa “Almanaque das Guerras”, “decifrando o Símbolo Perdido” e “Códigos e Cifras: da Antiguidade à Era Moderna”

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MEDICINA | Hospitais

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(Parte 1de 2)

santa casa da misericórdia SHUTTERSTOCK

Uma das instituições mais antigas em atividade até hoje, o estabelecimento possui uma História rica que remonta ao século XIII. Nesta primeira parte do artigo, veremos sua origem, desenvolvimento e expansão.

Por Francisco Lopes Melo 58 | leituras da história

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MUSEO DI SAN MARCO, FLORENÇA

A execução do frei Savonarola, em 1498, aconteceu próxima a uma das unidades da Santa Casa, a primeira de que se tem notícia

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a Baixa Idade Média, o Estado tinha a obrigação de justiçar os condenados, ou seja, executá-los quando assim sentenciados, ou mantê-los presos se condenados ao cárcere. Não tinha a obrigação de alimentar os seus prisioneiros, que só sobreviviam encarcerados se alimentados pela família ou pela caridade. Também quando executados, os seus corpos eram abandonados pelas ruas, sem que o Estado os enterrasse. A Confraria da Misericórdia surgiu para recolher os corpos dos condenados A Irmandade da Santa Casa ou alimentar os prisioneiros em suas celas, pedindo da Misericórdia chegou aos por eles esmolas e comida tempos atuais com várias e para dar assistência a famintos, sedentos, nus, misericórdias espalhadas desabrigados, doentes, trisem Portugal e no Brasil, tes, cativos, transviados, ricas em prestígio e bens, impacientes, desesperados, mal aconselhados, pobres dedicadas, sobretudo, a de pão ou pobres de convocação hospitalar solação. A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia chegou aos tempos atuais com várias misericórdias espalhadas em Portugal e no Brasil, ricas em prestígio e bens, dedicadas, sobretudo, a vocação hospitalar. O que pouco se sabe é como surgiu em 1498 a Confraria da Misericórdia.

Origem A primeira Misericórdia que se tem notícia é a de Florença, fundada por São Pedro Mártir por volta de 1240, saída de uma Società della

Fede. Em 1321, já se chamava Santa Maria della Misericórdia. Com o tempo, a confraria entrou em decadência e só no século XV é que recuperou a sua força. Em 1489, dotou-se de novos estatutos e nela se encontraram importantes pessoas da vida urbana. Em Roma, existiam irmandades de carcerati, que se dedicavam a apoiar os presos. Inúmeras confrarias cristãs de caridade, sempre existentes em todo o mundo cristão, tiveram desde logo o seu eco e reflexo em Portugal, Coimbra, Porto, Guimarães, entre outros, sobretudo por meio das Ordens Terceiras Franciscanas, Dominicana e Trinitária, promotoras e animadoras de corporações medievais, muitas delas com os seus hospitais, para tratar dos enfermos; albergarias, para acolher os viajantes; gafarias, para socorrer os leprosos; e mercearias, para cuidar de velhos e entrevados, tendo-se distinguido, entre muitas, as do Espírito Santo, com os seus senhorios e especial patrocínio da Rainha Santa Isabel; Nossa Senhora de Rocamador, com os seus hospícios; Nossa Senhora da Piedade; Penitência; Santíssima Trindade; S. Antão; S. Lázaro, entre muitas outras. Precisamente da época de D. Dinis, há memória da criação de confrarias de vários tipos. Na capela de Nossa Senhora da Piedade ou da Terra Solta, nos claustros da Sé de Lisboa, havia uma histórica tradição de caridade e de benemerência, protagonizada por uma Irmandade fundada por uma nobre senhora do século XIII, D. Maria Albernaz, segunda mulher de Nuno Fernandes Cogominho, Almirante do Reino no tempo de D. Dinis, tendo como uma das principais funções socorrer os enfermos, visitar os encarcerados, enterrar os mortos e acompanhar ao cadafalso os que iam morrer ou padecer torturas pelos seus crimes. Um e outro têm ainda ali os seus túmulos. A bandeira que acompanhava os padecentes, ou os mortos, era conhecida como de Nossa Senhora do Pincel. A Rainha Santa Isabel, no seu testamento de 1314, fala da Santa Misericórdia de Rocamador. Estes e muitos fatos demonstram que no final do século XV havia a ideia perfeita do conceito de misericórdia, segundo as mais autorizadas opiniões dos doutores da Igreja, e que, entre as confrarias de caridade, uma, pelo menos, já em 1314 era denominada da Misericórdia. Sabe-se, por outro lado, que na biblioteca de D. Afonso V havia as

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GEORGES JANSOONE

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Com o passar dos anos, as misericórdias vão assumindo o aspecto de centros de assistência aos pobres e aos doentes, que persiste até os dias atuais

História

Estátua de Dona Leonor de Viseu (14581525), rainha de Portugal, cidade de Besa

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histórias sucedâneas, embora com Compromissos atualizados e mais acomodados às necessidades do tempo, das tradicionais e abundantes Irmandades ou Confrarias que sempre foram uma das mais significativas instituições de assistência entre os portugueses. A sua fundação prende-se às antigas confrarias que em muitas cidades e vilas, nos últimos séculos da Idade Média, haviam garantido a assistência aos pobres e enfermos. A maior parte desses centros de assistência vivia no século XV horas difíceis por falta de organização e de meios fi nanceiros, o que levou a coroa a promover a sua fusão em grandes hospitais que servissem melhor a população das grandes localidades. A época era propícia, dado que aumentou o número de físicos, melhoraram-se as condições hospitalares e renovou-se o espírito de caridade, em bons edifícios que D. Manuel fez construir em muitos lugares do Reino.

Em Portugal, influenciada por suas ligações com Florença e Roma quando rainha regente do irmão, por D. Manuel I estar ausente em Castela, a rainha Dona Leonor, viúva de D. João II, funda em Lisboa a Irmandade de Invocação à Nossa Senhora da Misericórdia em 15 de agosto de 1498, na festa da assunção da Virgem, com o total apoio do rei e, ao que parece, tendo como inspirador e executor dos seus desejos o trinitário frei Miguel de Contreiras, seu confessor. Assim, no ano em que os navegadores portugueses atingiam a Índia, ao fim de quase um século de navegações oceânicas, surgia uma nova confraria orientada por princípios estabelecidos no Compromisso da Misericórdia. Nos grandes centros urbanos, como Lisboa, o desenvolvimento da expansão marítima, da atividade portuária e comercial favorecia o afluxo de gente na vã procura de trabalho ou de enriquecimento. As condições de vida degradavam-se e as ruas transformavam-se em antros de promiscuidade e doença, por onde passava toda a sorte de desgraçados, pedintes e enjeitados. Os naufrágios e as batalhas também originavam grande número de viúvas e órfãos, e a situação dos encarcerados nas prisões do Reino era aflitiva. Com citação de Compromisso (regulamento ou regimento) de 1498, feita e assinada pela Rainha D. Leonor, pelo Rei D. Manuel, pelo frei

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obras “Os Evangelhos”, “A Vida de Cristo”, entre muitas que descreviam as confrarias de caridade existentes noutros países. Na livraria de Alcobaça havia já então cópia das obras de S. Tomás de Aquino. D. Duarte, no Leal Conselheiro disserta largamente sobre caridade. Tudo isto deve ter influenciado o espírito culto e inteligente da rainha D. Leonor para tomar a iniciativa de dar alento à velha confraria de Nossa Senhora da Piedade da Sé de Lisboa, dando-lhe um novo Compromisso e estimulando esforços e dedicações adormecidos. Era muita a miséria. A formação cristã exemplar da rainha, que já em 1485 a levara a iniciar a construção de um hospital junto da fonte sulfurosa abundante que brotava no termo de Óbidos, o primeiro grande hospital que houve em Portugal, levou-a a reorganizar a antiga confraria de Nossa Senhora da Piedade, dando-lhe maior amplitude até então ensaiada em confrarias de caridade e tornando-a inexcedível. As Misericórdias, como viriam a ser instituídas pela Rainha D. Leonor, são, por isso, as


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Miguel Contreiras (confessor da Rainha), pela Infanta D. Brites e pelo Arcebispo de Lisboa, D. Martinho da Costa, provavelmente nas capelas da Nossa Senhora da Piedade ou da Terra Solta, na Sé de Lisboa, onde passou a ter a sua primeira sede, lê-se na introdução: “Deus inspirou os corações de alguns bons e fiéis cristãos para ordenarem uma irmandade e confraria sob o título, nome e invocação de Nossa Senhora Madre de Deus, Virgem Maria da Misericórdia […] a qual confraria […] foi instituída por permissão e consentimento e mandado a Ilustríssima e mui católica a Senhora Rainha D. Leonor”. Foi nomeado provedor o trinitário espanhol frei Miguel Contreiras. Os primeiros irmãos da nova irmandade citavam o Compromisso original: “Os justiçados esquartejados, cujos quartos são postos às portas da cidade, e assim dos membros daqueles em que se faz justiça e estão no pelourinho ou em quaisquer outras partes; a que depois de feita justiça a três dias irão os ditos oficiais com mais devoção que puderem pelos ditos membros e os tirarão e trarão a enterrar no cemitério da confraria”. Pioneira da difusão das misericórdias pelo país, a Misericórdia de Lisboa definiria, pelos moldes do seu estatuto, as linhas planificadoras e atuantes destes institutos, cuja finalidade múltipla, na consecução das obras de misericórdia, originaria inúmeras solicitações que de várias

cidades do reino acorreram à corte, no sentido de obter a autorização necessária à criação de novas irmandades, unicamente concedida segundo as normas da de Lisboa. Este caráter uniformizante sobressai mais tarde, já sob o domínio filipino, quando os frades trinitários solicitaram a Filipe II que todas as misericórdias adotassem bandeiras semelhantes à de Lisboa, pintando assim com a imagem do dito religioso e as letras F.M.I. (frei Miguel Instituidor), solicitação que viria a ser deferida por alvará em 1627. Tal posicionamento da Ordem da Santíssima Trindade ficara a dever-se ao desejo de, apesar de não lhes ser permitida a ingerência na ação das misericórdias, perpetuar a memória de um dos seis membros, o pretendido instituidor frei Miguel Contreiras, cuja figura havia já anteriormente desaparecido da bandeira de Lisboa, embora novamente reposta em 1575, por decisão da mesa da referida Misericórdia de Lisboa, redigido pelo próprio Contreiras, pela sua natureza interventora e normalizadora em relação a todo o Reino, embora naturalmente, com as variações derivadas das ordens de grandeza das diversas irmandades criadas, impõem que nos detenhamos com algum pormenor. Conforme o Compromisso, a Misericórdia é uma irmandade e confraria de 100 pessoas de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus e guardadoras de seus mandamentos, mansas e humildes a todo o serviço de Deus e da dita confraria, que, umas para

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Na sequência, da esquerda para a direita: litografia do Hospital Geral de Todos os Santos, em 1755; Fac-símile do Compromisso da Misericórdia de Lisboa, de 1739; e uma outra versão do mesmo documento, de 1516

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as outras e para com qualquer necessitado de auxílio material e moral, sem cuidar de saber das suas ideias nem dos seus atos, praticam as catorze obras da misericórdia: as sete espirituais, mais orientadas para questões morais e religiosas (ensinar os simples, dar bom conselho, corrigir com caridade os que erram, consolar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, sofrer as injúrias com paciência e rezar a Deus pelos vivos e pelos mortos) e as sete corporais, relacionadas sobretudo com preocupações materiais (redimir os cativos e visitar os presos, curar e assistir os doentes, vestir os nus, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos e sepultar os mortos). Desta forma, os Irmãos anunciavam o Evangelho com palavras, mas também com obras concretas, testemunhadas pelo intermédio de atitudes cristãs. Na carta dirigida à cidade e ao bispo do Porto insiste em que a fundação da Misericórdia naquela cidade não seria apenas serviço de Deus, como el-rei o agradeceria muito e teria em serviço. A recomendação régia foi determinante para que os homens do Porto se organizassem. D. Manuel I, o Rei Venturoso, na sua carta exprimia-se deste modo: “ (…) Cremos que sabere(i)s como em esta nosa çidade de Lixboa se ordenou huma confraria pera se as obras da misericórdia averem de cumprir, e espeçialmente acerqua dos presos pobres e desemparados que non tem quem lhes Requeira seus feitos nem socorra as suas necessidades E asy em outras muytas obras piadosas segundo mais largamente em seu Regimento se comthem do qual vos mandamos dar trelado E por que as obras da misericordia, que per os ofiçiaes desta confraria

se cada dia fazem Redumdam em muyto louvor de deus de que nos tomamos muyto comtentamento por se em nosos dias fazer folgaríamos muyto que em todalas cidades vilas e lugares primçipaees de nossos Regnos se fizese a dita confraria na forma e maneira que no dito regimemto se comthem e porem vos encomendamos que comsyramdo quamto esto he serviço de deus vos queiraees ajumtar e ordenar como em esa çidade se fezese a dicta confraria E alem de em elo fazerdes serviço a deus e cousa de que amte ele avere(i)s muyto merecimento nos lo aguard(e)ceremos muyto e teremos em serviço srypta em lixboa a xiiij dias de Março Vicente carneiro a fez de 1499” (Por El-Rey aos juízes Vereadores, Procurador, Fidalgos Caualeiros, e Homes A Misericórdia boos da sua cidade do Porto). A Misericórdia adotou adotou como como símbolo identificador símbolo a imagem da Virgem com o identificador manto aberto, protegendo os poderes terrenos (reis, a imagem da rainhas, príncipes) e os poVirgem com o deres espirituais (papas, manto aberto cardeais, bispos, clérigos ou membros de ordens religiosas). A proteção estendia-se também a todos os necessitados, representados por crianças, pobres, doentes e presos. Este símbolo passou a ser impresso nos Compromissos, desenhado em azulejos, esculpido em diversos edifícios e pintado em telas, designadamente nos pendões, bandeiras ou estandartes que cada Misericórdia possuía. D. Manuel, o Venturoso, tomou a irmandade sob a sua imediata proteção, logo no início, e assevera-se que escreveu uma espécie de cir-

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CARLOS LUIS DA CRUZ

Entrada principal da Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa

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Com esta proliferação, a confraria, apesar de ser de origem italiana, torna-se uma marca portuguesa no mundo

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Tela de Caravaggio retratando a execução de São Pedro, apontado como fundador da Santa Casa de Florença

cular a várias cidades e vilas e talvez a pessoas particulares, recomendando-lhes com insistência a fundação de estabelecimentos iguais. A Misericórdia prolifera não só por Portugal, mas pelas terras que a expansão lusitana chega. Com esta proliferação, a confraria apesar de ser de origem italiana, torna-se uma marca portuguesa no mundo. A difusão das confrarias, que envolvem por vezes centenas e mesmo milhares de pessoas, cria laços de sociabilidade horizontais ou verticais estruturados em torno de novas vivências do sagrado. Numa palavra, o cotidiano da população é pontuado por símbolos e práticas religiosas, cuja administração é exercida de uma forma cada vez mais eficaz pela Igreja. As Misericórdias nasceram, em alguns casos, através da agregação ou absorção de confrarias já existentes com objetivos assistenciais, tendo mantido sempre uma posição de reivindicação dos privilégios obtidos e de oposição ao aparecimento de associações na mesma área de atuação que poderiam absorver legados, esmolas e doações. As fronteiras aqui são ambíguas, tanto mais que existia uma tradição medieval de confrarias, quer com objetivos de honra e louvor do santo patrono, quer com objetivos de reparação e construção de ermidas, capelas ou igrejas, mantendo igualmente algumas funções de assistência. Quando D. Leonor de Lencastre morreu, em 1525, já existem cerca de sessenta Misericórdias. Entre 1498 e 1621, foram criadas pelo menos 120 no continente e ilhas, razoavelmente bem distribuídas por todo o território, à exceção de Trás-os-Montes e do Baixo Alentejo, às quais devemos somar 23 Misericórdias estabelecidas no ultramar (Norte da África, Índia e Brasil). Em 1552, era tão grande o peso da ação beneficente das Misericórdias em todas as paragens e por onde os portugueses dos descobrimentos se dispersaram, semeando, por sua pessoal iniciativa, Santas Casas por todo o mundo, atuando tanto

capitães como marinheiros, comerciantes, navegadores e missionários, que João Brandão de Buarcos em Grandeza e Abastança de Lisboa, dá esse testemunho: “Tem mais a cidade outra coisa de grandíssimo louvor, a qual, por além disso, mui santa e virtuosa, a quis pôr nesta obra, que é a Casa da Misericórdia, de tanto serviço de Deus e louvor de quem a principiou […]”. Por sua vez, também S. Francisco Xavier, em carta a Santo Inácio de Loiola, datada de Goa a 28 de setembro de 1542, escrevia: “Haveis de saber que nesta terra e em todos os lugares de cristãos há uma companhia de homens muito honrados, que têm cargo de amparar toda a gente necessitada […]. Esta companhia de homens portugueses se chama Misericórdia, e é coisa de admiração ver o serviço que estes bons homens fazem a Deus Nosso Senhor em favorecer a todos os necessitados”. Pode afi rmar-se que no período do Renascimento houve uma cobertura de Misericórdias para o conjunto das terras do país, o que corresponde ao inicial pensamento de D. Manuel: “folgaríamos muito que em todas as cidades, vilas e lugares principais dos nossos reinos se fi zesse a dita confraria”. O rápido crescimento do prestígio da Misericórdia de Lisboa trouxe-lhe um maior número de responsabilidades que se estenderam à administração do Hospital Real de Todos-os-Santos, em 1564, dedicando-se então à proteção dos enjeitados. A sua ação estendeu-se também ao apoio às órfãs. A sua essência, a prática de atos piedosos, consubstanciados, genericamente nas Obras de Misericórdia, consideradas como serviço do reino e, sobretudo, como serviço de Deus. O desenvolvimento extraordinário das Misericórdias não se pode explicar senão porque se tratava de uma associação religiosa e de caridade que calou fundo na alma cristã do povo português. A obra da Misericórdia foi lotada de abençoados frutos em todo o país. À sombra delas, desentranhou-se a caridade cristã em extremos de dedicação com os pobres, enfermos e encarcerados. Os institutos desta natureza, sob o impulso do clero e de piedosos leigos, multiplicaram-se tão rapidamente que, por toda a parte surgiram os hospitais, asilos, orfanatos, socorros corporais e espirituais a pobres e doentes, instituição de dotes a donzelas e outras

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CONCLUI NA

Bibliografia

PRÓXIMA EDIÇÃO ALMEIDA, Fortunato de. As Misericórdias. In História da Igreja em Portugal, dirigida por Damião Peres, vol. II, Porto Livraria Civilização, 1968, pp. 496 – 497. BETTENCOURT, Francisco. Os Equilíbrios Sociais do Poder. In História de Portugal, organização de José Mattoso, Lisboa, Circulo de Leitores, 1993, pp. 150 – 151. BIGOTTE, J. Quelhas. Misericórdias. In Enciclopédia Verbo Luso – Brasileira de Cultura, coord. João Colaço e George Vicente, Editorial Verbo, Lisboa / São Paulo, 2001, pp. 12 – 15. CAPUCHO, Luís António. In Dicionário da História de Portugal, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. 18, Lisboa, Figueirinha, 1999, pp. 490 – 491.

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COELHO, Maria de Fátima. Misericórdias. In Dicionário da História de Portugal, coord. José Costa Pereira, Lisboa, Publicações Alfa, 1985, pp. 477 – 478.

Para saber

tantas obras inspiradas pela caridade sob a organização das Misericórdias, que ao clero e em geral à piedade cristã devem a acumulação dos seus fundos de beneficência. A eficaz ação da Misericórdia de Lisboa ficou a dever-se não apenas ao empenhamento e generosa participação dos membros da Irmandade, mas também ao forte apoio e proteção da Coroa. Assim se compreende a concessão de múltiplos privilégios, bem como a dotação de imponentes instalações, como a nova sede da Misericórdia de Lisboa na Igreja da Conceição Velha, mandada edificar por D. Manuel I e concluída em 1534. Com o passar dos anos, as Misericórdias vão assumindo o aspecto de centros de assistência aos pobres e aos doentes, que persistem até os dias atuais. Só em 1513 são entregues as rendas do primeiro hospital a uma Misericórdia, a de Barcelos, e só em 1561 é que a regente Dona Catarina lhes permite possuírem bens. A expansão da Misericórdia reflete a expansão portuguesa e a sua marca pelo mundo. Em Marrocos dedica-se ao resgate dos cativos, concorrendo com a Ordem da Trindade. No Oriente, vai garantir ao longo dos séculos o apoio às órfãs e filhas de pai incógnito que os portugueses iam semeando pelo mundo. Pelo primeiro Compromisso, impresso originalmente em 1516 por Valentim Fernandes e Hermão de Campos, a que se sucederia uma reimpressão em 1529, regularam-se todas as Misericórdias até a reforma ordenada em 1618 por Filipe II. Cem anos após a sua fundação e pressionada por mudanças políticas, sociais e econômicas, decorrentes da perda da independência do Reino (1581), a Misericórdia de Lisboa sentiu a necessidade de reformar o Compromisso. Além disso, pretendia que a sua organização se adaptasse às novas realidades. Assim, em 1618, foi publicado um novo Compromisso, que nunca chegou a ser alterado, e ficou valendo até meados do século XIX, não só na Misericórdia de Lisboa, mas em todas as outras do país, com pequenas alterações adaptadas às circunstâncias locais e cada irmão comprometendo-se, com juramento aos Santos Evangelhos, a bem cumprir todos os deveres consignados no Compromisso e observar todas as obras da Misericórdia como serviço de Deus e de Nossa Senhora quando não houvesse causa legítima que, segundo Deus e a consciência, o pudesse desculpar.

CORREIA, Fernando da Silva. Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas. Lisboa, Henrique Torres, 1944, pp. 68, 152, 161, 478 – 588. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol 17, Editorial Enciclopédia, Lisboa / Rio de Janeiro, 1980, pp. 378 – 380. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Fundação de Misericórdia. In História de Portugal (1495 – 1580), vol. III, Lisboa, Editoral Verbo, 1980, pp. 348 – 353. SILVA, Manuel Ferreira da. Santa Casa da Misericórdia. In Dicionário da História de Lisboa, direc. Francisco Santana e Eduardo Sucena, Lisboa, Carlos Quintas & Associados, Lda., 1994, pp. 581 – 583.

FRANCISCO LOPES MELO é licenciado em História e pós-graduado em Ciências Documentais pela Universidade Autônoma de Lisboa

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VICENZO PASTORE / IMS

GENTE e Sociedade

O

fotógrafo italiano Vicenzo Pastore (1865-1918) fi xou residência em São Paulo em 1894, e a sua rica produção se destacou, entre outras qualidades, ao documentar a formação da nova metrópole em seus aspectos cotidianos aparentemente banais, mas altamente reveladores, que nos alcançam como documentos primários dos mais valiosos. O Instituto Moreira Salles guarda o seu acervo e lançou a coletânea “Na Rua”, com 43 imagens que atestam a importância desta produção. Nesta foto vemos como era o comércio em frente ao Mercado Municipal, cerca de 1910.

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