Duelo de Titãs O confronto pelo poder travado entre PT e PSDB desde a década de 1990
Influência do passado Como as antigas reportagens servem de base para o jornalismo atual
Negócio histórico A trajetória do Mercado de Ações até sua consolidação na economia mundial
Crime e
CASTIGO A história da investigação criminal, os desdobramentos ao longo dos anos e uma passagem pelos casos mais brutais que abalaram a opinião pública no Brasil e no Mundo
PARA O PROFESSOR INQUISIÇÃO, UM INSTRUMENTO PODEROSO DO PODER CLERICAL E DO FANATISMO DOGMÁTICO
Entrevista: Escritor Gonçalo Junior fala sobre a censura da pornografia no Brasil na época da Ditadura 1 | leituras da história
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editorial é uma publicação do NÚCLEO CIÊNCIA & VIDA da Editora Escala Tel: (11) 3855-1955 EMAIL: leiturasdahistoria@escala.com.br www.portalcienciaevida.com.br
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Culpa e punição Crimes e métodos investigativos desper tam o interesse dos mais diversos povos, dos mais pobres aos mais desenvolvidos. Algumas histórias mobilizam a sociedade e são acom panhadas como se fossem verdadeiras nove las: enquanto o criminoso não paga por seus delitos, a opinião pública não fica satisfeita. Entretanto, é difícil encontrar um desfecho para alguns casos, principalmente quando não há testemunhas. É o mistério aguçando a mente humana. Mas como surgiu a investiga ção criminal? Nessa edição da revista Leituras da História, você conhecerá a origem desse tema no Brasil e no mundo, os nomes mais importantes dentro desse contexto, além do surgimento das técnicas que revolucionaram a forma com que os inquéritos são conduzidos. Por falar em interesse público, o duelo en tre PT e PSDB sempre fez parte dos assuntos
PUBLICIDADE Diretor: João Queiroz – joaoqueiroz@escala.
mais polêmicos dentro da política nacional. Por isso, ele será abordado nas próximas pá ginas da revista em um artigo que fala sobre o embate desses partidos, cujas lideranças surgiram durante um perigo negro do Brasil, a Ditadura Militar. Essa edição traz, ainda, a história do surgi mento das cinematecas pelo mundo e sua im portância para a divulgação do patrimônio cultural. Leituras apresenta ainda artigos ex clusivos sobre expressões artísticas no Rena scimento e sobre Sandro Botticelli, mestre da pintura italiana da segunda metade do século XV. Para o professor, preparamos um caderno especial sobre Inquisição Medieval.
com.br Agências Gerente: Fernanda Dias – fernandadias@ escala.com.br Assistente: Adriana Neiva (11) 3855 2179 Executivos de Negócios: Clóvis Cortez, Fernanda Berna, Mariana Galvão, Paulo Sérgio de Moraes, Ricardo Inocêncio Pereira e Ulisses Martins Diretos Gerente: Claudia Arantes – claudiaarantes@escala.com.br Assistente: Taciana Oliveira (11) 3855 2244 Executivos de Negócios: Adriana Mauro, Luciana Lima, Marcelo Pires, Miriam Campanhã, Rodrigo Cashioni, Yone Catoira e Zélia Oliveira Regionais Gerente: Alessandra Nunes – alenunes@escala.com.br Assistente: Luciane Freitas (11) 3855 2247 Representantes: Brasília e Goiânia: Solução Publicidade - Beth Araújo (61) 3226 2218 / Ceará: Dialogar Comunicação – Izabel Cavalcanti (85)3264 7342 / Interior de São Paulo: L&M Editoração – Luciene Dias (19) 32317887 / Paraná: Starter – Paulo Roberto Cardoso (41) 3332 8955 / Rio de Janeiro: Marca 21 - Marta Pimentel (21) 2224 0095 / Rio Grande do Sul: Starter - Cristina Zimmermann e Marcelo Lima (51) 3327 3700 / Santa Catarina: Starter – Andreza Silveira Machado e Wiviani Wagner (48) 3024 4398
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Esta revista foi impressa na Gráfica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.
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Brasil Potência
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Ganhei uma assinatura da Leituras da História e estou adorando a revista. O staff editorial, composto de professores das universidades, traz credibilidade aos textos. Porém, não gostei do teor da matéria “Brasil potência”. A começar pelo título “o sonho que insiste em não morrer”, como se o papel do Brasil fosse o de ser o eterno gigante adormecido. Sun Tzu já dizia há mais de dois mil anos: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Dario Palhares, Brasília – DF,
A seção que trata sobre a memória da mídia realmente é uma boa pauta da revista. Mais do que falar de história, a revista se propõe à feliz ambição de analisar o modo como a imprensa constrói a realidade social no Brasil. De certo modo, penso que a imprensa cada vez mais ganha um caráter de empresa, com interesses, dependente da publicidade e competindo cada vez mais pela atenção do público-alvo e pela divulgação de notícias. Parabéns pela ousadia.
Andréa Miranda – São Paulo – SP, por e-mail
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O caderno especial da edição número 33 tratou de tema tabu sobre o poder que os pontífices têm sobre a ação dos indivíduos e como eles usavam do domínio para se afirmarem como donos da verdade. Acredito que esse seja um instrumento que rompeu a barreira do tempo na história e opera por um meio ainda mais perverso e eficiente. Somos convencidos e incitados a crer em sermões de paternalistas que se fundamentam principalmente pela teologia da prosperidade. Essa estrutura de poder está em todas as instituições do cristianismo.
O artigo da professora Rosana Schwartz abordou muito bem a questão da memória histórica ainda pouco compreendida no Brasil. O retrato histórico e a contextualização ajudaram a entender o processo repressivo nos tempos de chumbo no país. Acredito que o estudo acadêmico e investigativo em grandes universidades e centros de pesquisas traz a tona segredos de um período negro da história recente, como a descoberta de imigrantes portugueses e italianos a partir do cruzamento de dados do DEOPS.
Heitor Fonseca, Belo Horizonte - MG, por e-mail
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Edição 34 • Ano 2010
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O Jornalista e escritor Gonçalo Junior fala com exclusividade sobre seu livro “Maria Erótica e o clamor do sexo”
Ideologia política
um resgate histórico dos principais partidos do Brasil - PT e PSBD -, suas análises e bases, que deram a cara da política brasileira
44 Sistema financeiro SHuTTERSTOck
Entenda como se deu o desenvolvimento do Mercado de Ações no Brasil e no mundo, desde seu início até sua materialização em toda a esfera econômica do planeta
Memória da mídia
A visão do passado retratado pelos jornais, revistas informativas, entre outros produtos midiáticos
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Cinemateca
ESPECIAL
História em Perspectiva • contrarreforma • Tribunal do Santo Ofício A História da Santa Inquisição, os julgamentos e perseguições dos tribunais contra todos aqueles considerados uma ameaça às doutrinas da Igreja católica
O surgimento das cinematecas e sua importância para a divulgação do patrimônio cultural
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Pensamento renascentista utilizou legado franciscano para construir suas expressões artísticas
Entenda porque João Batista, primo de Jesus, é considerado protagonista da obra do Renascimento italiano
Herança cultural GALERIA NAcIONAL DE ARTE, WASHIGTON (D.c)
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as leitur
STOCK TTER SHU
ANA OTONNI
A origem da investigação criminal no Brasil: como surgiram e foram aperfeiçoadas as técnicas que esclarece os crimes que chocaram nossa sociedade
ENTREVISTA:
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Seções 14 Fatos e Registros 34 Nature 36 Livros e Autores 66 Gente e Sociedade
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ENTREVISTA | Gonçalo Junior
Eles só pensavam
naquilo Entre 1964 e 1985, período no qual o poder estava nas mãos dos militares, sexo e mulher pelada era um assunto de segurança nacional
Por Maurício Barroso
F
oi em defesa da família brasileira, da moral e dos bons costumes que a ditadura militar apertou o cerco a todas as publicações relacionadas ao sexo, incluindo os quadrinhos pornográficos. Em “Maria Erótica e o Clamor do Sexo”, a história de quadrinistas e editores é resgatada por depoimentos e uma pesquisa documental sobre aquela época, na qual, não bastava um clique para baixar filmes pornôs ou fotos “ginecológicas”, era necessário ir até a banca de jornal mais próxima. Para o jornalista e escritor de uma dúzia de livros, Gonçalo Junior, a ditadura militar só pensava em sexo. “Mais que nunca, mulher ‘pelada’ era um problema de segurança nacional, um tema indissociável do comunismo”, observa, em trecho retirado de seu livro. Segundo Gonçalo Junior, em um País de maioria católica, o que hoje seriam conside-
Mais que nunca, mulher ‘pelada’ era um problema de segurança nacional, um tema indissociável do comunismo.
rados pudicos desenhos, há 50 anos eram encarados como ato subversivo e, quem fizesse parte dessa turma, estava de mãos dadas com o comunismo. A censura traz a lembrança dos censores dentro das redações de jornais da grande imprensa, mas esta também esteve presente e de maneira mais endurecida nas pequenas editoras, como Edrel (São Paulo) e Grafipar (Curitiba). Em “Maria Erótica”, o autor narra a trajetória dos editores Minami Keizi e Claudio Seto, ignorados por um bom tempo e resgatados em seu livro. Durante muito tempo, a maior dor de cabeça para a censura militar foi a editora Edrel, fundada por Minami Keizi no interior de São Paulo, em 1960. O desenhista é considerado o pai do mangá no Brasil. Sua carreira como editor começou com a revista Garotas e Piadas e, mais tarde, ele lançou a Cinema em Close-up, a bíblia da pornochanchada na época. Essas publicações eram utilizadas para promover garotas que queriam virar estrelas, hoje celebridades. As duas publicações alcançaram uma média de 98% da tiragem vendida. Além delas, o artista nipo-brasileiro publicou outros 200 títulos eróticos e, se não fosse o decreto 1.077 vulgo “lei Leila Diniz”, teria publicado muito mais.
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Em entrevista exclusiva a Leituras da História, Gonçalo Junior responde alguns porquês daquela época e revela que o livro só foi possível pela luta de Minami Keizi, que arquivou todos os ofícios enviados pela censura militar, mas que nunca se queixou ou amargurou sua falência devido à “tortura financeira” sofrida naquele período.
LDH - Quando surgiram as primeiras publicações nacionais direcionadas ao público adulto? GJ - Desde a segunda metade do século 19, circulavam, nos grandes centros brasileiros,
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LEITURAS DA HISTÓRIA (LDH) – Em Maria Erótica, você aborda que o desejo de ver a nudez impressa é bem anterior ao século 20, contudo, e, sobretudo no Brasil, só uma classe mais abastada podia ter acesso a revistas ou publicações vindas da Europa. Este cenário incentivou contrabando? GONÇALO JUNIOR (GJ) – Sim, sempre existiram esquemas clandestinos de produção de pornografia, tanto no Brasil quanto em muitos países do mundo. Isso vem principalmente da segunda metade do século 19, com o aparecimento da fotografia, do cinema e de novos equipamentos de impressão de livros e revistas. E esse contrabando inflacionava os produtos, que eram vendidos às escondidas, por indicação de amigos. Portanto, eram inacessíveis a muitos que sabiam de sua existência. E isso durou muito tempo e atravessou o século 20. Exemplo? Em meados da década de 1970, o diretor da Abril, Roberto Civita, que tinha acabado de lançar a Revista do Homem – que deveria se chamar Playboy, mas o ministro da Justiça Armando Falcão vetou o nome –, foi intimado a ir à Brasília por um general que tentou intimidá-lo (como editor de “revista de mulher pelada”) com uma história curiosa: agentes da CIA americana haviam informado ao governo militar que um navio repleto de revistas pornográficas estava naquele momento vindo da Noruega para o Brasil. A mensagem era: “estamos de olho em quem faz essas revistas e não vamos tolerar pornografia”.
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títulos que eram chamados de “licenciosos” ou “libidinosos”, principalmente trazidos de Portugal, pois aqui era impensável que grandes gráficas aceitassem imprimir esse tipo de material. Aliás, uma tática comum de pequenos editores clandestinos para
Só na ditadura militar, pós 1964, surgiram as grandes revistas masculinas como Fairplay, Status, Ele/Ela e Playboy.
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publicar obras eróticas era informar que o volume tinha sido impresso em Paris ou Lisboa – essa informação aparecia na folha de rosto ou no expediente. Somente no começo do século 20 apareceram as nossas primeiras revistas masculinas com nus. Dentre elas, as mais famosas e duradouras foram O Rio Nu, A Maçã e Shimmy. Esta a mais importante de todas, que circulou de 1926 a 1934, semanalmente, e teve mais de 300 números – vendidos, hoje, a preços muito
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altos pela Internet ou nos sebos. Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), explodiu no país o gênero das “revistas de salão de barbeiro”, com piadas machistas e desenhos ou fotos de garotas sensuais. Só na ditadura militar, pós 1964, surgiram as grandes revistas masculinas como Fairplay, Status, Ele/Ela e Playboy. LDH – Anterior ao período da ditadura militar havia algum controle do Estado em relação à pornografia? Quando e como a nudez impressa vira caso de polícia? GJ - Sim, havia controle sobre o conteúdo editorial e a censura era feita pelas delegacias de costumes, como se dizia na época. Dependia de denúncias de pessoas que se sentiam ofendidas com essas publicações ou da disposição dos delegados em mostrarem serviço. O Código Penal de 1942 oficializou a censura e colocou sob risco de prisão e condenação todos aqueles que fizessem publicidade do sexo. Nas décadas de 1940 e 1950, tivemos cerca de duas dezenas de títulos ligados aos clubes de nudismo e seus editoriais traziam uma série de queixas contra as campanhas que sofriam para que a polícia proibisse sua circulação.
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LDH – Durante aquele movimento, quais foram as conquistas obtidas pelo segmento de quadrinhos? GJ - Não aconteceu nenhum tipo de conquista por parte dos artistas. Pelo contrário, a campanha pela reserva de mercado polarizou as duas partes e muitos deles caíram em listas negras – até hoje negada pelos editores da época.
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Acima: O strip-tease de Maria Erótica, musa que Caludio Seto criou para a Edrel e que se transformou num ícone da editora. À esq. Estórias adultas, que foi um marco na HQ brasileira, porque colocou nos gibis histórias adultas com conteúdo psicológico e psicodélico, ousando na abordagem erótica.
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LH – Em “Maria Erótica e o Clamor do Sexo” você aborda e explica movimento de nacionalização dos quadrinhos. Essa mobilização durou quanto tempo? GJ - O movimento de nacionalização dos quadrinhos, encabeçado por desenhistas e roteiristas começou a ser esboçado por volta de 1948, inspirado em um movimento semelhante deflagrado na Argentina. Seu auge foi durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, entre 1961 e 1964, quando finalmente os artistas conseguiram uma lei que obrigaria as editoras a publicarem dois terços de suas revistas com material brasileiro. Os empresários entraram imediatamente com um mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal alegando que o decreto de João Goulart era inconstitucional. Somente em 1965 o Superior Tribunal Federal (STF) daria o veredito, a favor dos donos de editoras. Com o golpe militar, os artistas se desmobilizaram, temendo que fossem acusados de subversivos e se tornassem vítimas da repressão que se seguiu à derrubada de Goulart.
LDH – Você argumenta que foi em nome da moral e contra o comunismo que a ditadura militar apertou o cerco contra as editoras que publicavam temas eróticos, mas qual era o mote dos militares, qual era a razão para uma repressão tão dura contra a pornografia? GJ - A censura a revistas eróticas – e a livros também – estabelecida em 26 de janeiro de 1970 (decreto 1077) tinha a ver com o esforço do regime
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À esq. Os meninos da Edrel: Kimil, Kinue e Claudio Seto, que aparece de óculos. Abaixo, revistas importadas pela Edrel
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LDH - As revistas sofriam alterações nos desenhos e textos? Os editores já sabiam quem eram os censores, ou seja, os conheciam por nomes... Eram presentes nos estúdios como nas redações de jornais e revistas? GJ - Não, os censores não ficavam de plantão nas editoras de quadrinhos eróticos, como aconteceu com a chamada grande imprensa até março de 1975. Os editores, nesse caso, faziam a ponte com a censura e recebiam ordens sobre o que deveria ou não sair – restrições que eram repassadas para os artistas. Uma cópia da revista montada era, então, enviada para a Polícia Federal, em Brasília. Não se sabia quem censurava as histórias, as fotos e os textos. Tudo era centralizado na figura do chefe da censura, Rogério Nunes – que morreu há mais ou menos dez anos. Havia pressão para que os próprios artistas e jornalistas fizessem censura prévia ou a famigerada autocensura, que era uma coisa terrível. A lógica da autocastração era assim: “talvez não passe essa cena ou desenho, vamos cortar desde já para não perder tempo ou irritar a censura”. LDH – Como as editoras driblavam a censura prévia? Era um sistema parecido com as redações de jornais e revistas noticiosas? GJ - A tática comum usada por revistas de grande porte como Playboy, Status e Ele/Ela era a do boi de piranha. Mandavam-se fotos que certamente seriam vetadas para que outras um pouco mais ousadas passassem. Muitas vezes, isso deu certo. Era preciso ousar, o mercado pedia isso. No caso dos quadrinhos, tudo era mais difícil, pois qualquer coisa cortada tinha de ser refeita e os artistas acabam se autocensurando bastante mesmo.
contra o comunismo internacional, pois os militares acreditavam que por trás das mocinhas seminuas das revistinhas havia uma conspiração dos comunistas. Puro delírio, típico daqueles tempos de guerra fria. Tanto que, naquele momento, na União Soviética, diziam que a pornografia era
Havia pressão para que os próprios artistas e jornalistas fizessem censura prévia ou a famigerada autocensura uma arma dos capitalistas. Que loucura, não? Em fevereiro de 1970, o jornal O Pasquim, ícone da resistência da imprensa contra a ditadura, publicou um longo editorial falando dessa incoerência do regime. O texto era de Millôr Fernandes.
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Abaixo:Em resposta a intelectuais que ignoraram os quadrinhos de vanguarda da Edrel, e organizaram um evento no MASP, Keizi Minami fez uma exposição na vizinha TV Gazeta com os colaboradores da editora.
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À dir.: Psicose era o título de terror da editora Edrel. 172 uau!
LDH - Fica evidente a importância do desenhista e editor Minami Keizi na luta contra a censura. Olhando para trás, Keizi comentou ou deixou alguma mágoa em relação ao período militar? GJ - Minami Keizi foi uma vítima direta e fatal do regime militar. Antes de morrer, em dezembro passado, ele vivia em situação de muita pobreza, porém com dignidade, e eu estava tentando conseguir com um advogado uma pensão para ele como vítima da ditadura. E não seria difícil provar: ele guardou mais de 300 ofícios da censura que mostram não só o veto as suas revistas como o cancelamento de 28 títulos, o que o le-
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LDH - Novamente sobre Keizi, ele sofreu alguma tortura física ou isso veio por meio da tortura financeira? GJ - Ele teve várias vezes sua editora, Edrel, invadida pela Polícia Federal, assim como seu apartamento, sempre em busca de material obsceno. Ele me contou que um dia foram
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LDH - No final do livro, você comenta sobre um processo de aposentadoria de Minami Keizi referente aquele período, no qual a Edrel teve sua falência decretada. Você tem notícias sobre o processo? GJ - É o mesmo processo ao qual me referi lá atrás, de ter em Minami uma vítima da ditadura. Não chegamos a dar entrada no pedido junto ao Ministério da Justiça por causa do agravamento de seu estado de saúde. Passamos todo o ano de 2009 esperando pela recuperação de Minami, mas isso não aconteceu. De maio até o falecimento dele em dezembro, só nos falamos uma vez. A maior parte desse período ele ficou internado num hospital.
Acima: modelo com tarja A censura obrigava as editoras a cobrirem os seios das modelos com pequenos quadros negros Á esq.: Essas fotos com a genitália da modelo exposta provocaram a ira dos militares. A revista Garotas & Piadas teve sua tiragem apreendida nas bancas e incinerada.
LDH - É errado pensar que em alguns segmentos, como cinema, música e literatura a censura militar ajudou a mitificar o sexo? Diante disso, é um equívoco acreditar que os quadrinhos de sacanagem não tiveram a mesma sorte? GJ - Você tem razão quando diz que a ditadura ajudou a mitificar o sexo. O contexto, por outro lado, era muito complexo. O mundo ocidental vivia a Revolução Sexual e a contracultura deflagradas nos Estados Unidos, enquanto a ditadura militar brasileira queria, a todo custo, conter ou impedir que isso chegasse aqui, em nome da moral e da luta contra o comunismo internacional. Ícones da música e do cinema pregavam o amor livre, a nudez, a sensualidade, o orgasmo feminino. O cinema e a imprensa viam demanda nisso e tentavam furar o bloqueio. E os quadrinhos estavam dentro desse contexto e foram engolidos pela pornografia que invadiu o país depois da liberação do nu frontal em fevereiro de 1980.
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prendê-lo em sua casa, que teve sua porta arrombada, mas o agente encarregado de comandar a operação era parceiro de jogo dele no baralho – e um não sabia exatamente o que o outro fazia. Imediatamente, pediu desculpas pelo ocorrido e saiu com seus subordinados. “Tortura financeira” é uma ótima expressão para definir que a censura o encurralou e levou sua editora à falência. Num dos golpes mortais, ele havia gasto uma pequena fortuna para imprimir 180 mil exemplares de seis revistas com fotos de garotas seminuas. Todas foram proibidas, ele vendeu tudo para reciclagem de papel e só recuperou 5% do que gastou.
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vou à falência. Mas ele não era de ficar chorando pelos cantos. Tinha, sim, muito orgulho de seu passado e acreditava que um dia seria reconhecido e respeitado. E essa sua pergunta já dá a importância que ele esperava ter um dia.
No alto: Na segunda metade dos anos 70, só se falava em sexo e política... Jaguar e o Pasquim partiram para o escracho. Acima: Era preciso a criação de novos títulos para sobreviver no concorrido mercado da pornografia.
MAURÍCIO BARROSO é jornalista e escreve para essa edição
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Acervo do Museu de computação
fatos e registros
Museu conta história da computação O Museu de Computação Professor Odelar Leite Linhares, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), da USP São Carlos (a 230 km de São Paulo) concentra velhas máquinas de calcular e os primeiros computadores são algumas das 219 peças que integram. Uma precoce e rápida evolução tecnológica fez com que muitas máquinas já figurem na lista das peças de museu. Réguas de cálculo, máquinas de calcular mecânicas ou eletromecânicas, tabelas de funções matemáticas, principalmente as de funções trigonométricas e ábacos de todas as espécies, são
algumas incríveis “raridades” que os visitantes mais jovens poderão se deparar. O museu herdou parte do acervo do Museu de Instrumentos de Cálculo Numérico, idealizado em 1978 pelo professor Odelar, que foi docente do Departamento de Ciências de Computação e Estatística. As visitas são gratuitas e podem ser realizadas de segunda a sexta, das 8h00 às 18h00, e aos sábados das 9h00 às 12h00. Os grupos de escolas podem agendar visita por meio do telefone (16) 3373-9146. Conheça mais: www.icmc.usp.br/~museu/
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DIvULGAçãO NAtIONAL GALLERY
história e cineMa
Quadro de da Vinci restaurado Volta a ser eXposto
O Instituto de Pesquisa Histórica da Universidade de Londres e o Imperial War Museum organizarão uma conferência nos dias 22 e 23 de outubro com ilustres cineastas e historiadores de cinema para discutir, debater e ver filmes relacionados à segunda Guerra Mundial. A catástrofe é o fenômeno mais filmado do cinema. Além de ter superado filmes de batalhas épicas e de aventuras heroicas, esse é o tema que está no auge das produções cinematográficas de toda a Europa e América do Norte. A guerra trouxe grandes mudanças nas tecnologias de produção dos filmes a partir da câmera amadora e de curta duração e do noticiário oficial do governo. Os filmes relacionam, inclusive, fenômenos relacionados às causas e consequências como fascismo, nazismo, comunismo pré e pós-Segunda Guerra.
A pintura “A virgem dos Rochedos”, de Leonardo Da vinci, voltou a ser exibida em julho, no museu National Gallery, após 18 meses de trabalhos de conservação feitos por especialista. A pintura tinha sido coberta com uma camada de verniz de péssima qualidade na década de 1940. A restauração foi realizada pela equipe do museu. O trabalho de conservação é produto da colaboração entre as gerações de cientistas, conservadores e curadores. As restaurações ajudaram nas investigações sobre pintura, incluindo a descoberta, em 2005, de outro trabalho por baixo do visível. A obra tem duas versões, a que está no National Gallery é poucos centímetros maior que a versão do Museu do Louvre.
Arqueólogos canadenses encontraram no último mês de julho, ao longo da costa norte da Ilha Banks, no Ártico ocidental do Canadá, o HMS Investigator, um navio abandonado mais de 150 anos atrás. Segundo os pesquisadores, a expedição estava em busca da lendária Passagem do Noroeste, que foi perdida. Capitaneada por Robert McClure, o investigador partiu em 1850. Naquele ano, o comandante navegou no estreito que hoje leva seu nome próximo à fase final da Passagem Noroeste, mas foi abandonado no gelo em 1853. O barco foi encontrado em águas rasas, cerca de onze metros (36 pés) de água e em ótimo estado de conservarão. A descoberta foi conquista de um dos enviados para procurar o HMS Erebus e o terror, navios naufragados em busca da malfadada Passagem.
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naVio encontrado no Ártico após 150 anos
restos da cultura prÉ - inca encontrados no peru Arqueólogos peruanos encontraram restos de uma pessoa que se supõe ser um líder de uma civilização pré-Inca morto a mais de 1.200 anos. Os pesquisadores acreditam que os restos são da região norte de Lambaye, também conhecida como Cultura Sican, que floresceu na área entre 700 e 1375 d.C. Entre os restos encontrados no complexo arqueológico de Las ventanas estava um tipo de sarcófago para um adulto, com um turbante e uma máscara de olho de penas, que são característica dos nobres da cultura Sican. No local foram encontrados também objetos como uma faca cerimonial, cerâmica, têxteis e placas de cobre. Desde abril, quando a pesquisa começou, os restos de cerca de 20 pessoas foram encontradas em bom estado.
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departamento de defesa americano
cinemagia
fatos e registros
60 anos de TV no Brasil No dia 11 de agosto de 1950, há exatos 60 anos, foi inaugurada a TV no Brasil por Assis Chateau briand, dono do grupo Diários Associados. Item de maior influência nos costumes da nação, e televisão está presente em mais de 98% dos lares, mais até que a geladeira. Naquela época, o equipamento não era produzido no país. Toda a aparelhagem teve de ser trazida dos Estados Unidos pelo magnata das comunicações que, em seguida, criou a primeira emissora, a TV Tupi. Desde então, a presença da televisão cresceu e hoje representa um fator importante na cultura popular moderna da sociedade brasileira. Nas programações foram usados artistas do rádio e nomes importantes foram revelados como Homero, Mazzaropi, Lima Duarte, Hebe Camargo, Ciccilo, Aurélio Campos, entre outros.
Manifestantes do mundo inteiro prestaram homenagens, no último dia 6 de agosto, aos mortos das bombas atômicas lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaky, em agosto de 1945. A tragédia causou a morte de aproximadamente 210 mil pessoas, na maioria civil, tanto pela ação direta das bombas quanto pela radiação e queimaduras. “Little Boy” e “Fat Man”, apelidos dados pelos soldados americanos às bombas de urânio jogadas sobre as cidades,
explodiram a várias dezenas de metros do solo com uma luz cegante, desprendendo uma onda expansiva e um calor de milhares de graus, que reduziram todos os seres vivos ao estado de cinzas num raio de quilômetros. Pela primeira vez após anos do ocorrido, os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, aliados durante a guerra, enviaram representantes às cidades, prestando gestos de apoio ao movimento em favor do desarmamento nuclear mundial.
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Mundo reverencia vítimas da bomba atômica mas ainda não tem solução para desarmamento
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Foram encontrados no dia 7 de julho, no “marco zero” do sul de Manhattan – onde ficava o Word trade Center – os restos de um navio de quase dez metros de comprimento que poderia ser do século 18. Os trabalhadores que retiravam os escombros na área se depararam com a embarcação. Os restos estavam enterrados a uma profundidade entre seis e nove metros abaixo de onde ficava, até os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que mataram 2.752 pessoas, o complexo do WtC, construído na década de 1970. Agora os arqueólogos precisam agir rápido para resgatar a embarcação. O casco de madeira não está mais protegido pela terra e se deteriora rapidamente no contato com o ar, por isso, está sendo recoberto de barro. Entre os objetos, também foram encontrados uma grande peça metálica semicircular pertencente ao navio e um sapato de couro da época.
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escaVação no Wtc encontra eMBarcação do sÉculo 18
Face da Morte Uma pesquisa divulgada no início de agosto, no XII Congresso Internacional de toxicologia em Barcelona, na Espanha, aponta uma bactéria extremamente tóxica, abrigada pelo infernal “Styx River”, como causadora da morte de Alexandre, o Grande. O Styx River era um rio na mitologia grega, que formou a fronteira entre a terra e o Underworld (também conhecido como Hades). Alguns historiadores acreditam que a morte foi causada por uma dose de veneno misturado à taça de vinho. Alexandre adoeceu em uma das muitas noites bebendo na Babilônia, atual Iraque. Senhor de um império que ia da Grécia à Índia, ele foi levado para a cama com dores abdominais. O conquistador foi declarado morto em 11 de junho de 323 a.C., acometido por uma febre desconhecida depois de doze anos de constante campanha militar. Especula-se que ele tenha morrido de malária, envenenamento, febre tifoide, encefalite virótica ou em consequência de alcoolismo. leituras da história | 17
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Library Congress
fatos e registros
O retorno de Fidel O líder cubano Fidel Castro reapareceu, no último mês de agosto, no Parlamento cubano pela primeira vez, desde que deixou o poder devido a problemas de saúde. O socialista de 84 anos discursou durante 10 minutos sobre questões que envolvem a paz mundial. Nos últimos meses, Fidel esteve mais ativo na vida pública, fez algumas aparições e, inclusive, lançou um livro “A Vitória Estratégica”, volume de
800 páginas, nas quais conta sobre sua infância e juventude e os motivos que o levaram a se converter em um líder revolucionário. Além disso, ele relata com detalhes suas ações guerrilheiras ao derrotar o governo do ex-ditador Fulgêncio Batista, durante a revolução cubana, ao lado de seu irmão Raúl Castro - atual presidente do país – e de seu companheiro Che Guevara.
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DiVULGAÇÃO NATiONAL GALLERy
História e cinema
QuadrO de da Vinci restauradO VOlta a ser eXpOstO
O instituto de Pesquisa Histórica da Universidade de Londres e o imperial War Museum organizarão uma conferência nos dias 22 e 23 de outubro com ilustres cineastas e historiadores de cinema para discutir, debater e ver filmes relacionados à segunda Guerra Mundial. A catástrofe é o fenômeno mais filmado do cinema. Além de ter superado filmes de batalhas épicas e de aventuras heroicas, esse é o tema que está no auge das produções cinematográficas de toda a Europa e América do Norte. A guerra trouxe grandes mudanças nas tecnologias de produção dos filmes a partir da câmera amadora e de curta duração e do noticiário oficial do governo. Os filmes relacionam, inclusive, fenômenos relacionados às causas e consequências como fascismo, nazismo, comunismo pré e pós-segunda Guerra.
A pintura “A Virgem dos Rochedos”, de Leonardo Da Vinci, voltou a ser exibida em julho, no museu National Gallery, após 18 meses de trabalhos de conservação feitos por especialista. A pintura tinha sido coberta com uma camada de verniz de péssima qualidade na década de 1940. A restauração foi realizada pela equipe do museu. O trabalho de conservação é produto da colaboração entre as gerações de cientistas, conservadores e curadores. As restaurações ajudaram nas investigações sobre pintura, incluindo a descoberta, em 2005, de outro trabalho por baixo do visível. A obra tem duas versões, a que está no National Gallery é poucos centímetros maior que a versão do Museu do Louvre.
Arqueólogos canadenses encontraram no último mês de julho, ao longo da costa norte da ilha Banks, no Ártico ocidental do Canadá, o HMs investigator, um navio abandonado mais de 150 anos atrás. segundo os pesquisadores, a expedição estava em busca da lendária Passagem do Noroeste, que foi perdida. Capitaneada por Robert McClure, o investigador partiu em 1850. Naquele ano, o comandante navegou no estreito que hoje leva seu nome próximo à fase final da Passagem Noroeste, mas foi abandonado no gelo em 1853. O barco foi encontrado em águas rasas, cerca de onze metros (36 pés) de água e em ótimo estado de conservarão. A descoberta foi conquista de um dos enviados para procurar o HMs Erebus e o Terror, navios naufragados em busca da malfadada Passagem.
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naViO encOntradO nO ÁrticO após 150 anOs
restOs da cultura inca encOntradOs nO peru Arqueólogos peruanos encontraram restos de uma pessoa que se supõe ser um líder de uma civilização pré-inca morto a mais de 1.200 anos. Os pesquisadores acreditam que os restos são da região norte de Lambaye, também conhecida como Cultura sican, que floresceu na área entre 700 e 1375 d.C. Entre os restos encontrados no complexo arqueológico de Las Ventanas estava um tipo de sarcófago para um adulto, com um turbante e uma máscara de olho de penas, que são característica dos nobres da cultura sican. No local foram encontrados também objetos como uma faca cerimonial, cerâmica, têxteis e placas de cobre. Desde abril, quando a pesquisa começou, os restos de cerca de 20 pessoas foram encontradas em bom estado.
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departamento de defesa americano
60 anos de TV no Brasil No dia 11 de agosto de 1950, há exatos 60 anos, foi inaugurada a TV no Brasil por Assis Chateau briand, dono do grupo Diários Associados. Item de maior influência nos costumes da nação, e televisão está presente em mais de 98% dos lares, mais até que a geladeira. Naquela época, o equipamento não era produzido no país. Toda a aparelhagem teve de ser trazida dos Estados Unidos pelo magnata das comunicações que, em seguida, criou a primeira emissora, a TV Tupi. Desde então, a presença da televisão cresceu e hoje representa um fator importante na cultura popular moderna da sociedade brasileira. Nas programações foram usados artistas do rádio e nomes importantes foram revelados como Homero, Mazzaropi, Lima Duarte, Hebe Camargo, Ciccilo, Aurélio Campos, entre outros.
Manifestantes do mundo inteiro prestaram homenagens, no último dia 6 de agosto, aos mortos das bombas atômicas lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaky, em agosto de 1945. A tragédia causou a morte de aproximadamente 210 mil pessoas, na maioria civil, tanto pela ação direta das bombas quanto pela radiação e queimaduras. “Little Boy” e “Fat Man”, apelidos dados pelos soldados americanos às bombas de urânio jogadas sobre as cidades,
explodiram a várias dezenas de metros do solo com uma luz cegante, desprendendo uma onda expansiva e um calor de milhares de graus, que reduziram todos os seres vivos ao estado de cinzas num raio de quilômetros. Pela primeira vez após anos do ocorrido, os Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, aliados durante a guerra, enviaram representantes às cidades, prestando gestos de apoio ao movimento em favor do desarmamento nuclear mundial.
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65 anos após as bombas no Japão, mundo busca solução para desarmamento
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Foram encontrados no dia 7 de julho, no “marco zero” do sul de Manhattan – onde ficava o Word Trade Center – os restos de um navio de quase dez metros de comprimento que poderia ser do século 18. Os trabalhadores que retiravam os escombros na área se depararam com a embarcação. Os restos estavam enterrados a uma profundidade entre seis e nove metros abaixo de onde ficava, até os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que mataram 2.752 pessoas, o complexo do WTC, construído na década de 1970. Agora os arqueólogos precisam agir rápido para resgatar a embarcação. O casco de madeira não está mais protegido pela terra e se deteriora rapidamente no contato com o ar, por isso, está sendo recoberto de barro. Entre os objetos, também foram encontrados uma grande peça metálica semicircular pertencente ao navio e um sapato de couro da época.
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Face da mOrte Uma pesquisa divulgada no início de agosto, no Xii Congresso internacional de Toxicologia em Barcelona, na Espanha, aponta uma bactéria extremamente tóxica, abrigada pelo infernal “styx River”, como causadora da morte de Alexandre, o Grande. O styx River era um rio na mitologia grega, que formou a fronteira entre a Terra e o Underworld (também conhecido como Hades). Alguns historiadores acreditam que a morte foi causada por uma dose de veneno misturado à taça de vinho. Alexandre adoeceu em uma das muitas noites bebendo na Babilônia, atual iraque. senhor de um império que ia da Grécia à Índia, ele foi levado para a cama com dores abdominais. O conquistador foi declarado morto em 11 de junho de 323 a.C., acometido por uma febre desconhecida depois de doze anos de constante campanha militar. Especula-se que ele tenha morrido de malária, envenenamento, febre tifoide, encefalite virótica ou em consequência de alcoolismo. leituras da história | 17
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POLÍTICA | Brasil
Os duel i Nova Re p Com lideranças surgidas da luta contra a ditadura, PT e PsDB travam um acirrado duelo pelo poder do Brasil desde a década de 1990
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l istas da e pública Por Daniel Rodrigues Aurélio
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POLÍTICA | Brasil
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RICARDO STUCKERT
rasília, 1º de janeiro de 2003. Após oito anos de mandato, Fernando Henrique Cardoso despede-se da presidência da República Federativa do Brasil. Em uma execução de protocolo um tanto atrapalhada, com direito a óculos enroscado, bailado nervoso de braços e sorrisos amarelos, FHC transmite a faixa presidencial para o seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Havia, naquela cerimônia de posse, um simbolismo que superava o caráter institucional do ato. Aliados no combate à ditadura civil-militar, Fernando Henrique e Lula atingiram, o topo do poder republicano. Um momento, sem exageros cda qual no seu tempo, de glória e serenidade para a nossa historicamente instável democracia, abalroada por duas ditaduras (Estado Novo e Regime Mili-
tar), deposições, renúncias, impeachment e até um dramático suicídio, de Getúlio Vargas, no tenebroso agosto de 1954. Homens públicos, de perfil e formação distintos – um doutor em Sociologia e professor universitário; o outro, torneiro mecânico e líder sindical -, FHC e Lula distribuíram, lado a lado, panfletos em portas de fábricas no ABC paulista, discursaram em palanques pelas Diretas Já, cantaram o hino nacional de mãos dadas. Ali pelos anos 1970, início da década de 1980, os dois políticos emergentes compartilhavam ideias e projetos semelhantes em muitos pontos. Não seria, portanto, nenhum disparate vê-los sob a mesma bandeira partidária após o retorno do pluripartidarismo, mas os caminhos percorridos desde então fizeram de ambos os expoentes das legendas que hoje protagonizam a maior rivalidade política do país: o Partido dos Trabalhadores (sigla PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Uma batalha aguerrida, por vezes com lances de deslealdade, pelo governo federal. A peleja PT x PSDB assemelha-se a um clássico de futebol. Um Gre-Nal disputado na arena política. Como no futebol, a paixão política nubla o raciocínio e distorce fatos e biografias. E cada partido tem suas queixas. A sólida obra sociológica de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, é questionada e tripudiada pelos opositores porque “seu governo foi neoliberal e entreguista”. Faz sentido? E a ascensão da petista Dilma Rousseff nas pesquisas trouxe, na esteira, acusações descontextualizadas de prática de “terrorismo” nos “anos de chumbo”, quando na realidade Dilma combateu de corpo e alma a repressão. E foi vítima dela. Antes de o duelo tomar o rumo do acirramento, em especial durante as eleições de 1994, cientistas políticos discutiram a sério a possibilidade de uma coalizão entre as duas poderosas agremiações. A hipótese é remota, remotíssima, e motiva algumas perguntas. Os tópicos centrais dos respectivos programas políticos teriam pontos de convergência? As práticas administrativas
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apresentam similaridades? A transição a qual se submeteu o cientista político Francisco Weffort, de ideólogo petista para ministro tucano, é apenas uma exceção ou confirma a tese da proximidade? Ou as diferenças são tão gritantes como sugerem os brados dos comitês de campanha e seus propagandistas na imprensa, na academia e no parlamento?
co de Oliveira, Antonio Candido, Paulo Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Perseu Abramo. O sociólogo e educador Florestan Fernandes, retardou a assinatura de sua ficha de filiação, O Povo em Higienópolis embora fosse um simpatizante do partido de No dia 10 de fevereiro de 1980, uma estrela de elementos populares. A adesão de Florestan esperança despontou no cenário político brasiocorreria somente em 1986. leiro: o Partido dos Trabalhadores (PT). A festa Por causa da sua vinculação direta com a de fundação do “partido do povo” não ocorreu classe trabalhadora, o PT abrigou, debaixo de em um salão da periferia de São Paulo, um dos sua bandeira, toda a sorte de grupos de orienberços da sua militância, ou defronte a porta de tação marxista. Eles formariam as famosas tenuma fábrica de automóveis na região metropodências internas do PT, tais como a “Democralitana de São Paulo. O rega-bofe inaugural do cia Radical”, a “Força Socialista” e a “Unidade petismo aconteceu no Colégio Nossa Senhora de e Luta”. Facções barulhentas e inquietas, mas Sion, em Higienópolis, bairro da elite paulistana. controladas cirurgicamente pelo Campo MajoNaquele colégio de abastados onde não estudaritário, ao qual pertence a figura aglutinadora vam os filhos de operários e camponeses a quem e carismática da legenda, Luiz Inácio Lula da o PT se reportava, foi assinado o “Manifesto de Silva, por cinco vezes Fundação do Partido candidato a presidêndos Trabalhadores”, “no dia 10 de fevereiro de 1980, uma cia da República. publicado no Diário A partir de meados Oficial da União em estrela de esperança despontou no dos anos 1990 o Parti21 de outubro daquecenário político brasileiro; o partido do dos Trabalhadores, le ano. Antes, no Dia os trabalhadores (PT)” tão identificado com o do Trabalho de 1979, “socialismo democráfora lançada uma tico”, e não com uma doutrina marxista-leninista “Carta de Princípios” partidária. ferrenha, abriu-se de vez para o pragmatismo da E quem fez, afinal, o PT? As bases do sinordem liberal, uma perversão imperdoável para dicalismo, em breve reunidas na Central Única muitos desses grupos. Voluntariamente ou expuldos Trabalhadores (CUT) criada em 1983, e dos sos, seus integrantes deixaram o PT e fundaram movimentos sociais, com forte adesão das vertrês partidos dissidentes: o Partido da Causa Opetentes do catolicismo progressista professados rária (PCO), o Partido Socialista dos Trabalhadopela Teologia da Libertação, representadas peres Unificado (PSTU) e, por fim, o Partido Socialas células das Comunidades Eclesiais de Base lismo e Liberdade (Psol), este último organizado (CEBs), de atuação destacada nas décadas de após seus integrantes desiludirem-se com o que 1970 e 1980. De acordo com o seu Manifesto de consideraram “continuísmo” do Governo Lula. Fundação, o Partido dos Trabalhadores amOutros filiados de respeito, como a ex-prefeita de bicionava ser “uma real expressão política de São Paulo Luiza Erundina, optaram por ingressar todos os explorados pelo sistema capitalista”, em legendas já existentes, caso do Partido Sociaum “Partido dos Trabalhadores, não um partido lista Brasileiro (PSB). para iludir os trabalhadores”. A ascensão petista desfez dois mitos criados Tal agrupamento político, porém, não despelo imaginário da população, em especial da pontaria sem apadrinhamentos. Os petistas foclasse média: a da pureza ética (escândalos mal ram abençoados pelas alas à esquerda da Conexplicados como Mensalão e as alianças duvidoferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sas trataram de liquidá-la) e de que seriam pése por intelectuais expressivos: Paul Singer, Chileituras da história | 21
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POLÍTICA | Brasil
conhecido como a teoria da Terceira Via, proposta pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, uma espécie de social-democracia adaptada às demandas do final do século 20. A Terceira Via era um eldorado para quem não se identificava nem com os liberais, nem com os marxistas, no mundo pós-queda do Muro de Berlim em 1989. Incapaz de seduzir a juventude idealista, que encontrava no porvir petista um abrigo para seus sonhos revoluO Voo do o PSDB fez Tucano “o PsDB fez de tudo para tornar-se cionários, de tudo para tornar-se O Partido da Social popular: utilizou s simpáticas cores popular: utilizou as Democracia Brasileisimpáticas cores azul ra (PSDB) nasceu em azul e amarela, instituiu como amarela, instituiu 25 de junho de 1988, símbolo um tucano e montou até ecomo seu símbolo o durante a Assembleia um Clube de Tucaninho” tucano e montou até Nacional Constituinum Clube do Tucanite. Os membros-funnho, com carteirinhas de sócio para crianças dadores do PSDB pertenciam, em sua maioria, e adolescentes. Mario Covas, Franco Montoro, aos quadros do Partido do Movimento DemoJosé Serra e Fernando Henrique Cardoso consocrático Brasileiro (PMDB), ex-MDB, o partido de lidaram-se como os artífices da legenda que, a oposição amordaçada dos tempos da ditadura despeito de estar associada ao leque das esquercivil-militar. Eles desfiliaram-se do partido sudas (esquerda light, como se diz hoje), não teve postamente insatisfeitos com o governo de José pudores para aderir ao “neoliberalismo”. No goSarney, um ex-adversário nos anos de autoritaverno de Itamar Franco (que não era do PSDB), rismo, e porque acreditavam naquiloque ficaria simos administradores, o que não corresponde à realidade. O PT administrou o Brasil com segurança ao longo de oito anos, estiveram longe da catástrofe anunciada, mas a crítica que vem da extrema-esquerda é justamente nesse ponto: os petistas teriam se tornado um partido capitalista, envernizado com propostas progressistas e assistencialistas como PAC ou Bolsa Família.
Raio X - PaRTiDo Dos TRaBalHaDoRes
Raio X - PaRTiDo Da soCial DeMoCRaCia BRasileiRa
SIGLA: PT
SIGLA: PSDB
NÚMERO: 13
NÚMERO: 45
FUNDAÇÃO: 10 de fevereiro de 1980
FUNDAÇÃO: 25 de junho de 1988
PRINCIPAIS NOMES: Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu, Dilma Rousseff, Eduardo Suplicy, Aloízio Mercadante, Jacques Wagner, Tarso Genro
PRINCIPAIS NOMES: Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Sergio Guerra, Geraldo Alckmin, Arthur Virgílio, Tasso Jereissati, Álvaro Dias
IN MEMORIAM: Perseu Abramo, Florestan Fernandes, Sergio Buarque de Holanda
IN MEMORIAM: Mario Covas, Franco Montoro, Teotônio Vilela
INSTITUTO ASSOCIADO: Fundação Perseu Abramo
INSTITUTO ASSOCIADO: Instituto Teotônio Vilela
SITE OFICIAL: www.pt.org.br
SITE OFICIAL: www.psdb.org.br
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uma equipe de economistas liberais, muitos deles professores do Departamento de Economia da PUC-Rio e tecnocratas do tucanato, desenvolveu o Plano Real e articulou o “choque de capitalismo” e o desmonte das estatais. O Plano Real trouxe equilíbrio monetário para o Brasil, finalmente conteve os surtos inflacionários, e transformou Fernando Henrique Cardoso em “Ministro do Real”, eleito por duas vezes presidente da República – a segunda delas com uma manobra parlamentar de um republicanismo torto. O frenesi do Real desabrochou nos tucanos a sua confiança, antes meio hesitante, no receituário liberal – e a aliança com o Partido da Frente Liberal (PFL), ninho de exarenistas e rebatizado recentemente de Democratas (DEM), só confirmou essa inclinação política apartada da autêntica social-democracia.
Buarque na contagiante “Vai Passar”. Não são poucos os filósofos e cientistas políticos que preferem separar ou tornar menos rígida a relação entre “moral” e “política”, numa mescla das teses de Maquiavel e a ética de responsabilidade weberiana, segundo as quais o governante deve tomar suas decisões orientado pelas circunstâncias, e não por suas crenças pessoais. N0 artigo “Moral e Política: a perspectiva republicana” (Cadernos da Fespsp, 2005), a filósofa Marisa Lopes analisa a ideia de “zona cinzenta de amoralidade”, proposta pelo filósofo José Arthur Giannotti em dois textos para o jornal Folha de S. Paulo. Conforme relata Marisa, para Giannotti “a política suporta certa dose de amoralidade”, que não deve, de acordo com a filósofa, ser con-
A palavra é “governabilidade”. A justificativa cabal para que petistas e tucanos aliem-se sorridentes a adversários de outrora. Os vícios da política à brasileira, denunciada por pensadores ligados às duas agremiações a partir de ramificações universitárias, mantiveram-se intactos e ativos nos bastidores da república. Partidos de características fisiológicas compõem alianças estratégicas com PT e PSDB, elevados ao status de cabeças de chapa, em uma barganha típica. Em troca de cargos em estatais e marketing político em seus redutos eleitorais, esses partidos acionam seu contingente somado no parlamento para desequilibrar a balança situação versus oposição em votações no Senado e na Câmara dos Deputados. Na época de eleições, as coalizões operam para aumentar o espaço na propaganda de rádio e televisão. Há, inclusive, governistas perenes – como certos caciques estaduais – que raramente se opõem ao governo eleito. E essa fluidez das coligações e pactos nos induz a acreditar que as diferenças entre petistas e tucanos quando empossados no Poder Executivo anda meio diluída. Dessa forma, os nossos trágicos “ismos” (fisiologismo, nepotismo, clientelismo, patrimonialismo) persistem, agora com a finalidade de manter a “governabilidade”. Nem todos veem nessas práticas recorrentes as “tenebrosas transações” cantadas por Chico
FABIO POZZEBOM/ABR
Tenebrosas transações?
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JOSÉ CRUZ/ABR
POLÍTICA | Brasil
PT X PsDB nas eleiÇÕes PResiDenCiais (1994-2006) ANO
CANDIDATO DO PT
CANDIDATO DO PSDB
RESULTADO
1994
Luiz Inácio Lula da Silva
Fernando Henrique Cardoso
Vitória de FHC no primeiro turno (54,27% x 27,04%)
1998
Luiz Inácio Lula da Silva
Fernando Henrique Cardoso
Vitória de FHC no primeiro turno (53,06% x 31,71%)
2002
Luiz Inácio Lula da Silva
José Serra
Vitória de Lula no segundo turno (61,27% x 38,72%)
2006
Luiz Inácio Lula da Silva
Geraldo Alckmin
Vitória de Lula no segundo turno (60,83% x 39,17%)
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fundida com “imoralidade” e ausência de “virtude republicana”. De acordo com essa perspectiva, um exemplo de “zona de amoralidade” é o do governo de teses modernizadoras que se une a grupos conservadores para conseguir implementar projetos benéficos para a população. Assim, não haveria qualquer constrangimento em observar FHC e ACM juntarem acrônimos e decisões ou numa parceria entre Lula e Collor.
Água e óleo Quem acompanha os acalorados debates na internet sabe que, se existem semelhanças entre petistas e tucanos, elas já não importam. A batalha da informação e contra-informação em redes sociais, blogs e no Twitter, com a adesão de figurões do jornalismo político, confirma a tese da rivalidade clubística. E as provocações tocam no ponto frágil do oponente. A questão das privatizações está colada à imagem do tucanato, em função das medidas tomadas pelo Governo FHC. Para livrar-se da fama de “entreguista”, o candidato do PSDB nas eleições presidenciais de 2006, Geraldo Alckmin, apareceu vestido da cabeça aos pés com emblemas de estatais, embora boa parcela de seu eleitorado seja favorável ao enxugamento da máquina estatal. Quanto ao calcanhar de Aquiles do PT, além do descompasso entre seu discurso ético pré-2002 e as graves denúncias posteriores, os tucanos gostam de ressaltar que o Programa Bolsa Família do Governo Lula é, na verdade, uma criação da gestão do PSDB remodelada e turbinada pelos petistas. E prosseguem nas provocações quando lembram que o Plano Real é o alicerce sem o qual as conquistas da administração petista seriam inviáveis. Ambas as agremiações, goste-se ou não desse diagnóstico, passaram por sucessivos processos de adaptação em suas respectivas doutrinas político-ideológicas. O pragmatismo dá o tom e a maneira como o Banco Central tem sido gerido é uma prova dessa sentença. De qualquer maneira, a briga PT x PSDB é intensa e renhida e terá capítulos imperdíveis nos próximos meses, até a abertura das urnas e a proclamação, no final do primeiro ou segundo turno, do partido vencedor da corrida presidencial de 2010.
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n Daniel Rodrigues Aurélio é bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pósgraduado em Globalização e Cultura pela Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais. É autor, entre outros livros, de Dossiê Getúlio Vargas (Universo dos Livros, 2009) e da trilogia A extraordinária História do Brasil (Universo dos Livros, 2010)
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CAPA | Crimes
O fio da
meada A origem da investigação criminal no Brasil e no mundo e a evolução das técnicas para se chegar mais facilmente aos culpados Por Sheila Horvath
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CAPA | Crimes
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unca como antes, o trabalho da Polícia Técnica foi tão importante para desvendar crimes como agora. A chegada da tecnologia, que proporciona ferramentas importantes como a digitalização do sistema do Registro Geral, o RG, no Estado de São Paulo, ou o banco de DNA, já existente em alguns países, a exemplos de Inglaterra e Japão, facilita muito o trabalho do perito. A evolução das técnicas investigativas, hoje, é capaz de desvendar a verdade dos fatos sem que necessariamente exista uma prova material que comprove de fato a ocorrência do delito. “A ciência tornou-se cada vez mais importante nas investigações. Com a tecnologia disponível e os peritos cada vez mais bem treinados, temos vistos casos, principalmente os de grande repercussão na mídia, em que as provas periciais são tão fortes, que o acusado não tem como desmentir este ou aquele fato”, afirma a escritora Ilana Casoy, que lançou recentemente o livro “A Prova é a Testemunha”, pela editora Larousse do Brasil. No livro, a escritora conta como foram os cinco dias de julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta de Isabella. Segundo Ilana, as análises da polícia técnica e dos peritos foram decisivas no desvendar do caso,
uma vez que em nenhum momento o casal confessou a autoria do crime. “Os jurados foram muito bem informados, eles tiveram muita consistência para julgar o caso, pois com os registros feitos pelos peritos, eles tiveram conhecimento técnico de tudo o que foi apresentado como prova contra o casal”, afirma a escritora. “Com o avanço da tecnologia, os profissionais se viram obrigados a se aprimorar, e o Estado se viu obrigado a investir em treinamentos e também em equipamentos. Tanto a tecnologia, como internet, GPS, celulares e o avanço no estudo do DNA podem ser considerados um divisor de águas na história da investigação criminal em todo o mundo, e no Brasil”, afirma o delegado de polícia licenciado, escritor internacional, pesquisador criminal, especialista em segurança pública e privada, além de estudioso da prevenção à criminalidade, Jorge Lordello. Para Ilana, o método de busca criminal no Brasil ainda não pode ser considerado um dos melhores do mundo, mas a escritora elogia a qualidade dos trabalhos realizados em São Paulo, “onde está localizado o mais moderno centro de criminalística do País” e também em Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Infelizmente, ainda existem estados brasileiros em que o investimento na
LINHA DO CRIME OS PRINCIPAIS CASOS QUE ABALARAM O BRASIL CRIME DA RUA CUBA - 1988 Um dos crimes mais famosos dos anos 1980, nunca foi solucionado. Na véspera do Natal de 1988, Jorge Toufic Bouchabki e sua mulher Maria Cecilia Delmanto Bouchabki foram assassinados, e o filho de 18 anos do casal foi apontado como o principal suspeito do crime, ocorrido na rua Cuba, no Jardim América, bairro nobre de São Paulo. Jorginho, o filho, foi denunciado pelo Ministério Público como autor do crime, mas não houve provas que indicassem sua responsabilidade no assassinato. O caso foi arquivado, e a arma do crime não foi achada. DANIELA PEREZ/GUILHERME DE PÁDUA 1992 A atriz Daniella Perez, 22 anos e à época famosa pelo papel da personagem Yasmin, na novela De corpo e alma, da TV Globo, foi assassinada com 18 golpes de
tesoura, no Rio de Janeiro. Os autores do crime foram o ator Guilherme de Pádua, que vivia o Bira na mesma novela, apaixonado pela personagem Yasmin, e Paula Thomaz, mulher de Guilherme à época IVES OTA - 1997 No dia 29 de agosto de 1997, o menino Ives Ota, então com oito anos, foi sequestrado por três homens em sua residência. Neste dia, ele brincava na sala, com seu primo, sob os cuidados da babá; na madrugada do dia 30 de agosto, já estava morto com dois tiros no rosto porque reconheceu um de seus sequestradores que faziam a segurança nas lojas de seu pai, o comerciante Massataka Ota, sendo que dois deles eram Policiais Militares. MANÍACO DO PARQUE - 1998 O motoboy, Francisco de Assis Pereira, ganhou fama como o “Maníaco do
Parque” após ser preso, em agosto de 1998. O apelido vem do fato de que o motoboy seduzia suas vítimas com falsas promessas de emprego em uma agência de modelo e as levava até o Parque do Estado, na divisão de São Paulo e Diadema (ABC paulista), onde as violentava. Em alguns casos, o psicopata matou as vítimas. O maníaco cumpre pena de 270 anos de prisão. SUZANE VON RICHTHOFEN - 2002 A estudante de direito Suzane von Richthofen, então com 22 anos, foi acusada de ser a mentora do assassinato dos próprios pais, Manfred e Marísia von Richthofen com a ajuda do namorado, Daniel Cravinhos, e do irmão dele, Cristian Cravinhos. Os três são condenados. Suzane e Daniel cumprirão pena de 39 anos e seis meses e Cristian deverá cumprir 38 anos e seis meses, em regime fechado. A
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decisão do júri indica que nenhum deles pode recorrer da sentença em liberdade. CASO FARAH JORGE FARAH - 2003 O cirurgião plástico Farah Jorge Farah matou e esquartejou a ex-cliente e amante Maria do Carmo Alves, em janeiro de 2003. Além disso, para dificultar que o corpo fosse identificado, foram removidas as digitais dos pés e das mãos, além da pele do peito e do rosto. Farah foi condenado a 13 anos de prisão em regime fechado. A decisão da Justiça, da qual ele apela em liberdade, completou dois anos em abril deste ano. Após quatro anos preso, o advogado de Farah, Roberto Podval, o mesmo do caso Isabella, conseguiu decisão judicial que permite ao condenado ficar solto até que se esgotem todos os recursos. Não há data para o julgamento da apelação no STF (Supremo Tribunal Federal) e os processos de Farah não têm movimentação desde 2008 em todas as instâncias.
LIANA FRIEDENBACH E FELIPE CAFFÉ / CHAMPINHA - 2003 Os estudantes Liana Friedenbach, 16, e Felipe Silva Caffé, 19, foram assassinados quando acampavam na região de EmbuGuaçu, na Grande São Paulo. Antes de ser morta a facadas, pelo então adolescente Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, Liana foi violentada. Cinco pessoas foram acusadas de envolvimento no sequestro e morte do casal. Champinha, que era menor na época do julgamento, cumpriu pena na antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), e deve ser encaminhado para uma clínica psiquiátrica. CASO GIL RUGAI - 2004 Em 2004, o empresário Luiz Rugai e sua mulher, Alessandra Troitino, foram assassinados a tiros em casa, em Perdizes, zona oeste de São Paulo. O ex-seminarista Gil Rugai, filho do empresário, é apontado como o principal suspeito da morte do casal. O estudante foi denunciado pelo homicídio do pai, Luis Carlos Rugai, e da
madrasta, Alessandra de Fátima Trotino, supostamente em razão de desentendimentos sobre desfalques na empresa da família, a “Referência Filmes”. Gil Rugai chegou a estar preso entre 2004 e 2006. Em 2009, Gil teve a prisão decretada por ter se mudado para o Rio Grande do Sul sem informar à Justiça. O ministro Celso de Mello, do STF, concedeu liminar determinando a libertação do estudante. A decisão, tomada “por motivo de prudência”, vale até o julgamento do mérito do habeas corpus pelo STF. CASO ISABELLA NARDONI - 2008 Isabella Nardoni, 5 anos, morreu após ser jogada da janela do sexto andar do prédio onde o pai da garota, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá moravam, em São Paulo, em março de 2008. Os laudos da polícia e o Ministério Público comprovaram que a criança foi jogada por Nardoni após apanhar de Anna Carolina. O pai e a madrasta foram condenados pelo crime.
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CAPA | Crimes
polícia técnica é pequeno ou quase inexistente, o que prejudica muito as investigações de crimes ocorridos em regiões mais afastadas dos grandes centros e das capitais.” Lordello ressalta que a população vê na prática os investimentos feitos pelas polícias de São Paulo e Minas Gerais citando como exemplo novamente o caso do goleiro Bruno e também o caso da advogada Mercia Nakashima, “em menos de 90 dias a polícia civil, junto com a perícia, concluiu o inquérito e já aponta os culpados dos crimes. Quando o suspeito se dá conta, já existem tantas provas técnicas, que acabam enfraquecendo seu depoimento”. Mas, nem sempre foi assim. O perito criminal Arlindo Blume, do Instituto de Criminalística do Paraná, conta como surgiu o termo: “Criminalística”. “O termo foi apresentado pelo austríaco jurista penal, Hans Gross, morto em 1915 e compreende não somente o estudo dos vestígios concretos, materiais do crime – objeto da técnica policial – mas também o exame dos indícios abstratos, psicológicos do criminoso”. Gross é reconhecido mundialmente como o fundador da Criminologia e também da Criminalística, termo por ele criado. Reconheceu desde cedo, no exercício profissional, a completa ineficiência dos métodos de investigação então empregados na polícia de sua terra natal. Como tais métodos dependessem de informantes e
LINHA DO CRIME A VIOLÊNCIA PELO MUNDO
JOSEF FRITZL - 1984 O austríaco manteve a filha presa no porão de sua casa, na cidade de Amstetten, por 24 anos. Além de Elisabeth, Josef Fritzl, 73 anos, mantinha encarcerados três dos sete filhos que teve com ela. Outros três foram adotados pelo austríaco e por sua mulher, Rosemarie, e um morreu pouco depois do parto. O caso foi descoberto quando uma das filhas que estava presa adoeceu e teve de receber atendimento médico. O pai teria forçado a filha, então com 18 anos, a escrever uma carta dizendo que tinha fugido e que não a procurassem mais. No
confissões, os resultados geralmente eram obtidos pelo castigo corporal e pela tortura. Gross percebeu que a criminologia deveria ter novos fundamentos; era preciso começar de novo, fundamentar novas bases teóricas e desenvolver técnicas científicas modernas. Começou a estudar todos os livros e revistas que podia obter e chegou à conclusão de que quase todas as realizações da tecnologia e da ciência podiam ser aproveitadas na solução de casos criminais. O primeiro manual de criminologia científica foi desenvolvido por ele.
Seguidores Outro nome que merece respeito na história da moderna investigação criminal é Edmond Locard, um dos pioneiros da Criminalística na França. Locard nasceu em Saint-Chamond, em 13 de dezembro de 1877. Cursou o Colégio dos Dominicanos em Oukkins e bacharelou-se em Ciências e Letras. Estudou Medicina e Direito e falava fluentemente cinco línguas, lia sem dificuldade onze idiomas estrangeiros, inclusive o sânscrito e o hebraico. O investigador se tornou discípulo de Rudolph Archibald Reiss, mestre famoso e criador do Instituto de Polícia Científica da Universidade de Lausanne. Para pôr em prática o que aprendera, Locard procurou o então Chefe de Polícia Regional de Lyon, Henry Cacaud, para organi-
entanto, ela estava no porão da casa, onde foi violentada por anos, dando origem às gestações. Alexander, 12 anos, Monika, 14 anos e Lisa, 16 anos, foram criados por Fritzl e pela mulher, que acreditava que a filha deixava as crianças em sua porta. Kerstin, 19 anos, Stefan, 18 anos e Felix, 5 anos permaneceram com a mãe. A sétima criança morreu logo após o nascimento e teve o corpo incinerado por Fritzl, que foi condenado à prisão perpétua. PICHUSHKIN - 1992 O russo Alexander Pichushkin, que ficou conhecido como “assassino do xadrez” após ter orgulhosamente confessado o assassinato de 48 pessoas. O Serial Killer foi condenado à prisão perpétua por uma corte de Moscou em 29 de outubro. Depois de 10 semanas de julgamento, ele
foi considerado culpado das 48 mortes e de três outras tentativas de homicídio. Pichushkin disse que planejava matar ao todo 64 pessoas, uma para cada casa do tabuleiro de xadrez. Em seu primeiro livro “Serial Killer – Louco ou Cruel?”, a escritora Ilana Casoy inclui aspectos gerais e psicológicos dos mais famosos serial killer internacionais, passando pelo perfil criminal e investigação de casos reais.
SERIAL KILLER
PATRICK W. KEARNEY - 1975 O mais importante serial killer de estradas da Califórnia. Meticuloso, limpo e organizado assassino, deixava suas vítimas desmembradas e lavadas em sacos de lixo ao longo das estradas da Califórnia. Kearney e seu amante, David D. Hill, eram
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zar – algo inédito para a época – um serviço que contasse com uma equipe permanente de cientistas para analisar e desvendar os crimes. Nascia ali, em 10 de janeiro de 1910, o “Laboratório de Polícia” ou, segundo outros, o “Laboratório de Polícia Técnica” de Lyon, o primeiro do gênero em todo o mundo.
A prova sem a prova
Modelo atual No Brasil, conta o delegado de polícia, Jorge Lordello, a investigação criminal tem sua origem por volta do século 17, quando foi criada a figura dos
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Os estudos realizados por Locard sobre as impressões digitais levaram-no a demonstrar, em 1912, que os poros sudoríparos que se abrem nas cristas papilares dos desenhos digitais obedecem também aos postulados da “imutabilidade” e da “variabilidade”; criou assim a técnica microscópica de identificação papilar a que deu o nome de “Poroscopia”. O desenvolvimento científico mostrou que é possível chegar a conclusões sem que necessariamente seja um crime confesso ou existam provas materiais que evidenciem um crime. Assim, a soma de conclusões baseadas em acareações, confrontos de depoimentos mais o trabalho investigativo da perícia podem solucionar
alguns casos. No domínio da documentoscopia, Locard criou o chamado “Método Grafométrico”, baseado na avaliação e comparação dos valores mensuráveis da escrita. Apresentou notáveis contribuições no tocante à falsificação dos documentos escritos e tipográficos, ao grafismo da mão esquerda e à anonimografia. Interessou-se, além do mais, pela identificação dos recidivistas, publicando artigos e obras neste domínio. Tudo o que o mestre estudou no campo da Criminalística está reunido em sua obra clássica, o “Traité de Criminalistique”, em seis volumes, publicado entre os anos de 1931 a 1940. O resumo do que se contém nesta obra acha-se condensado no manual de “Technique Policière” cuja segunda edição foi traduzida para o castelhano, sob o título de “Manual de Técnica Policiaca”.
ambos veteranos de guerra, viviam numa arrumadíssima casa em Redondo Beach, de onde iniciavam suas ações homicidas. Os “assassinos do Saco de Lixo”, como ficaram conhecidos, iniciaram suas atividades em 1975 e terminaram em 1977, quando o casal entrou no centro de informações do xerife em Riverside, viram seu próprio pôster de procurados, e se entregaram. PEDRO ALONSO LOPEZ - 1980 O mais mortal serial killer dos arquivos, conhecido como Monstro dos Andes, agiu em três países. Nasceu na Colômbia, mãe prostituta, o expulsou de casa aos oito anos de idade por ele ter acariciado sua irmã mais nova. Para piorar as coisas, foi recolhido por um pedófilo e sodomizado à força. Aos 18 anos, foi espancado na pri-
são por uma gangue e se vingou matando três de seus algozes. Ao ser solto, começou matando meninas com júbilo e impunidade. Em 1978, já havia assassinado mais de 100 meninas no Peru. Mudou-se para Colômbia e Equador, onde matava, em média, três vezes por semana. Em 1980, um dilúvio de sangue revelou a primeira de suas vítimas. Quando foi preso, contou aos investigadores as assustadoras histórias de sua trilha de morte. Após ser preso o assassino mostrou o local onde estavam enterrados mais de 50 corpos. Acreditase que 300 assassinatos ainda seja uma baixa estimativa para este serial killer. LUIS ALFREDO GAVARITO - 1999 Em 1999, o colombiano Garavito confessou estuprar, torturar e matar 140
crianças em cinco anos de matança. Foram encontrados 114 esqueletos. Em seu bolso, o matador carregava um velho caderno, no qual estavam simbolizadas, em 140 linhas, cada uma de suas vítimas. Os corpos mutilados, em sua maioria masculinos, com idades entre 8 e 16 anos, foram descobertos em mais de 60 cidades da Colômbia. Os cadáveres estavam decapitados e com sinais de amarradura e mutilação. Depois de 18 meses de investigação, Garavito foi preso sob acusação de estuprar uma criança, em Villavivencio. A polícia só se deu conta que ele era um serial killer depois que 25 corpos foram encontrados na cidade de Pereira. As vítimas foram encontradas com a garganta cortada, e alguns traziam nos corpos sinais de tortura e estupro. Garavito era conhecido como PATETA, O LOUCO e O PADRE.
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CAPA | Crimes
meça a tomar corpo em todo o Brasil e começa a ser chamada de Polícia Judiciária. “O que se percebe nessa época é que não existia direitos e garantias das pessoas. A investigação partia do suspeito para o crime, ou seja, o suspeito era interrogado, muitas vezes, com o uso da força, para confessar o crime, não existiam métodos investigativos”, destaca Lordello. Em 1940 e 1941, com o surgimento do Código Penal Brasileiro e o Código de Processo Penal, começa a existir um direcionamento maior nas investigações, uma normatização da polícia, com um formato mais legalista. “Acontece que vivíamos um período de ditadura militar e muitas vezes não se garantia os direitos dos cidadãos investigados”. Com a Constituição de 1988, percebe-se que com as mesmas leis e códigos é possível dar outra diretriz à polícia e garantir os direitos individuais do cidadão. Com isso, a investigação passa a ser do crime para o criminoso. “A Polícia Judiciária se volta para o crime, é realizado todo um trabalho de investigação e perícia para se chegar ao culpado. A polícia investiga para chegar aos culpados”, diz Lordello.
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alcaides, que tinham o poder de fazer diligências e prender os maus feitores nas vilas. Junto com o alcaide surge também a figura do Escrivão. “O alcaide era mais ou menos como um delegado”. Ainda no século 17, surge o Ministro Criminal que trabalhava nas colônias como juiz e polícia, com o objetivo de manter a ordem e a paz. “A grande mudança nesse cenário acontece com a chegada da família real ao Brasil, em 1808”, explica Lordello. D. João traz consigo o modelo europeu da época e nomeia o Intendente Geral de Polícia da Corte, no Rio de Janeiro. Sua função era zelar pela proteção da colônia, o cargo foi ocupado por Paulo Fernandes Viana. “A partir daí surgem os Ouvidores, Corregedores, Capitães, Escrivães e Meirinhos”, afirma. A figura do Intendente cria seus representantes nas províncias, os chamados Delegados da Intendência. “Esse movimento pode ser considerado como os primórdios da Polícia Civil no Brasil”, lembra o delegado. A partir de 1871, a apuração de crimes e autores passou a ser realizada por meio de um inquérito policial, formando um modelo utilizado até os dias de hoje. É em 1889, ano da Declaração da República, que a Polícia Civil co-
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No início do século passado, não se cogitava no Brasil a adoção de métodos científicos na investigação criminal por meio de instituições especializadas junto às organizações policiais. Em 1913, o então Secretário de Justiça e Segurança do Estado de São Paulo, Dr. Rafael de Sampaio Vidal, convidou o professor Rudolph Archibald Reiss, diretor do Laboratório de Polícia Técnica Ilana Casoy e titular da cátedra de Polícia Científica da Universidade de Lausanne, para realizar uma série de conferências para as autoridades policiais de São Paulo. A partir daí tem início um movimento para a formação de uma instituição que utilizasse os métodos científicos disponíveis na época na investigação criminal. Seguindo uma tendência mundial de autonomia das funções da polícia técnica, é criada em São Paulo, pelo então governador Mário Covas, em 1998, a Superintendência da Polícia Técnico-Científica (SPTC) para administrar as perícias criminalísticas e médico-legais realizadas em todo o Estado de São Paulo. Sua função é auxiliar a Polícia Civil e o Sistema Judiciário. Hoje, segundo Jorge Lordello, o estado de São Paulo conta com o maior e mais moderno centro de perícia de todo o país. Porém essa realidade não se repete em todos os estados da federação. “Há alguns estados que também se mantém atualizados, mas infelizmente, há os que não possuem recursos disponíveis e se mantêm à margem do que existe em termos de tecnologia para a investigação criminal”, afirma o delegado licenciado. A escritora Ilana Casoy relata que esse tipo de tecnologia permitiu a solução de casos como o de Isabella Nardoni. Em que, na falta de confissão, o papel da polícia técnica é fundamental na solução do caso. Para Ilana, se o caso Nardoni tivesse ocorrido em outro estado, sem ser São Paulo, a história teria outro desfecho e a falta de investigações técnicas poderia dar a liberdade ao casal. “O trabalho da perícia juntou um número de provas irrefutáveis para confrontar a versão dos réus de que havia uma terceira pessoa na cena do crime”, afirma Ilana. “Foi um caso muito importante para a Polícia Técnica de São Paulo, que transformou a perícia na única testemunha do crime”, completa a escritora.
ANA OTONNI
Métodos mais eficazes de investigação
SHEILA HORVATH é jornalista e
escreve para essa edição
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Nature | Genocídio
Memórias do
horror O revisionismo da Primeira Guerra distorce a História e alarma vários povos Por Bernard Henri Levy Tradução: Marianna D’Amore
Distribuído pelo Sindicato do The New York Times
E
screvo este artigo em memória de Hrant Dink, jornalista turco-armênio, assassinado há três anos e meio, em 19 de janeiro de 2007, por seus comentários sobre o massacre de até 1,5 milhões de armênios pelas forças de Ottoman durante a Primeira Guerra Mundial... Em horror por oficiais de polícia, com a guarda do suspeito pelo assassinato, Ogum Samast, de 17 anos, considerarem apropriado fazer um vídeo em que ele orgulhosamente segura uma bandeira da Turquia enquanto eles gravavam sua breve associação com o suspeito para a posteridade... Em solidariedade ao corajoso grupo de 200 escritores e intelectuais turcos que recentemente assinaram uma petição online se desculpando pelo massacre, arriscando sua liberdade para manter a pressão sobre o governo turco. Ultrajes como o assassinato de Dink continuarão enquanto os turcos, temendo a perda de seu prestígio e alarmados com a possibilidade de que serão obrigados a pagar reparações aos sobreviventes e seus descendentes, continuarem a negar o acontecimento do genocídio armênio. Essa luta continuará enquanto não existirem leis vigentes para penalizar a negação de genocídios – e essas leis são necessárias não apenas na Turquia, mas ao redor do mundo. Críticos podem dizer, “Não é dever da lei escrever a história”. Isso é um absurdo. A história tem sido escrita mais de uma centena de vezes. Os fatos foram estabelecidos e novas leis os protegerão de serem alterados. Em 1929, o primeiro ministro britânico e autor Winston Churchill escreveu que os armênios eram
vítimas de genocídio, uma empresa organizada de aniquilação sistemática. Até mesmo os turcos admitiram. Em 1918, como consequência da Primeira Grande Guerra, Mustafa Kemal – logo nomeado honorífico “Ataturk” – reconheceu os massacres perpetuados pelo governo jovem turco. As leis em vigor em muitos países, em relação à negação do Holocausto, não afetam historiadores – para eles, se a matança de judeus foi ou não foi um genocídio já não está mais em questão. O que está em questão é a prevenção do simples apagamento de tais crimes da memória de nossa sociedade. Tome a lei France Gayssot, que criminalizou a negação de crimes contra a humanidade, a qual tem sido aplicada apenas para a negação do Holocausto judeu. Esta é uma lei que controla a margem e os políticos extremistas que podem estar tentados a defender a negação do Holocausto. Esta é uma lei que previne mascaramentos, como a tentativa do historiador David Irving em Londres, em 2000. Irving apresentou um libelo contra Deborah Lipstadt, autora de “Denying the Holocaust” (Negando o Holocausto), que tinha rotulado-lhe como porta-voz dos negadores do Holocausto. Mesmo que o juiz tenha determinado em notável e forte linguagem que Irving era de fato um negador do Holocausto, na ausência de leis que penalizassem tal crime, Irving foi liberado. Enquanto isso, os jornalistas de tabloides sensacionalistas enlameavam exemplares e davam maior atenção ao trabalho de Irving, o que pode ter sido sua intenção desde o início.
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Campo de batalha da Primeira Guerra Mundial
Críticos dirão, “Onde a lei vai parar?”, já que tecnicamente poderíamos também estender essa lei para incluir a negação dos crimes que aconteceram durante o período colonial, a publicação de tiras sobre o Profeta Maomé na Dinamarca, até o pecado da blasfêmia. Devemos nós proibir a expressão de opiniões que não espelham as nossas? Esta é uma armadilha, por dois motivos. Primeiro, a lei poderia focar especificamente em genocídio, um crime em larga escala no qual, como Hanna Arendt disse, alguém decide quem tem o direito de habitar esse planeta e quem não o tem. Segundo, quem nega esse crime não apenas tem opiniões conflitantes ou não conformistas. Eles categoricamente negam que este crime horroroso tenha acontecido. A lógica e o padrão do crime de genocídio foram esclarecidos e refinados no século 20, com o massacre dos Armênios como um evento seminal. Hitler ficou impressionado, ou melhor, inspirado pelo escopo do genocídio armênio. Em agosto de 1939, dias antes de invadir a Po-
As leis em vigor em muitos países, em relação à negação do Holocausto, não afetam historiadores(...) O que está em questão é a prevenção do simples apagamento de tais crimes da memória de nossa sociedade. lônia, ele disse aos generais “Quem hoje ainda fala sobre o extermínio dos armênios?” Foi uma prova de fogo de genocídios. Foi a base para o uso, pelos aliados, da frase “crimes contra a humanidade” em sua declaração de 24 de maio de 1915, em relação ao massacre de armênios “com a conivência e ajuda das autoridades de Ottoman”. Foi uma referência para o jurista polonês Raphael Lemkin – que criou o termo “genocídio” e é responsável pelo desenvolvimento e entendimento deste crime – quando ele estava incorporando a definição de “genocídio” na Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948.
BERNARD-HENRI LEVY é o autor, mais recentemente, de “Ce Grand Cadavre à la Renverse” - disponível em inglês com o título “Left in Dark Times: A Stand Against the New Barbarism.”
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LIVROS E AUTORES
Oriente x Ocidente
Século Esquecido?
Nabuco Essencial
Imigração e Revolução
Em Mundos em guerra, o escritor e historiador Anthony Pagden, professor de Ciências Políticas e História na Universidade da Califórnia, narra a história de mais de 2.500 anos de batalhas e estranhamentos entre os “mundos” ocidental e oriental, desde a antiguidade até os tempos contemporâneos. Para quem se interessa por teses controversas como a do “choque de civilizações”, advogada pelo cientista político Samuel P. Huntington, o livro de Padgen fornece argumentos e dados sobre esse confronto civilizacional, embora muitos considerem a divisão incapaz de dar conta da complexidade das relações entre povos e culturas.
Autor do excelente Pósguerra – uma história da Europa desde 1945 (Objetiva, 2008), o jornalista, historiador e ensaísta britânico Tony Judt reuniu, nesta coletânea de 24 ensaios publicados em veículos como Foreign Affairs, The New Republic e The New York Review of Books, algumas reflexões acerca das grandes questões colocadas pelos acontecimentos do século 20. A obra de Judt procura desvencilhar-se das respostas fáceis sobre o período, como a noção de “era dos extremos”, e coloca em perspectiva o “poder das ideias” que mobilizou o século passado (como o marxismo), o declínio dos intelectuais (ou o “silêncio dos intelectuais”) e o suposto enfraquecimento do aparato burocrático e institucional do Estado.
O ano de 2010 marca o centenário da morte do advogado, jornalista, diplomata e político pernambucano Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo. A efeméride provocou o lançamento ou relançamento de diversos livros sobre a vida e a obra do autor de O abolicionismo, Um estadista do Império e Minha formação. Nesta seleção de textos organizada pelo historiador Evaldo Cabral de Mello, o leitor terá contato com o melhor do pensamento de Nabuco, de modo a compreender a trajetória de um intelectual e homem público que, nas palavras da socióloga Angela Alonso, “equilibrou-se entre a reforma e a tradição”. Dotado de ideias liberais e modernizantes, Joaquim Nabuco, porém, adorava o estilo de vida aristocrático da sociedade de corte. Uma figura crucial de um período decisivo na história brasileira.
Durante três décadas, entre os anos 1920 e 1950, os imigrantes vindos de países como Rússia e Polônia eram tratados pelo Estado brasileiro com desconfiança redobrada e muitas vezes expulsos do País, considerados “indesejáveis” por sua suposta “vocação revolucionária”. Mestre em História Social, Eric Godliauskas Zen fez uma ampla pesquisa nos arquivos do DEOPS-SP, a extinta polícia política do estado de São Paulo, para contar os detalhes sobre a implacável perseguição a lituanos, russos e poloneses, identificados genericamente como gente do “leste europeu”. O livro de Godliauskas Zen é resultado de sua dissertação de mestrado, defendida na USP em 2006, sob orientação de Maria Luiza Tucci Carneiro.
TÍTULO: Mundos em guerra – a luta de mais de 2.500 anos entre o
TÍTULO: Reflexões sobre um século
Oriente e o Ocidente.
esquecido (1901-2000)
TÍTULO: Joaquim Nabuco Essencial
Lituanos, poloneses e russos sob
AUTOR: Anthony Padgen
AUTOR: Tony Judt
AUTOR: Joaquim Nabuco
vigilância do DEOPS
TRADUÇÃO: Sally Tilleli
TRADUÇÃO: Celso Nogueira
ORGANIZADOR: Evaldo Cabral de Mello
AUTOR: Eric Reis Godliauskas Zen
PÁGINAS: 592
PÁGINAS: 504
PÁGINAS: 632
PÁGINAS: 240
EDITORA: Novo Século
EDITORA: Objetiva
EDITORA: Penguin Companhia
EDITORA: Edusp
TÍTULO: Imigração e revolução –
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Os fatos históricos SHUTTERSTOCK
nas notícias de hoje
Como as referências das reportagens de um passado recente servem de entendimento para os fatos atuais Por eliza Bachega Casadei
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onsiderado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense publicou um editorial, em 1808, em que definia a tarefa do jornalismo em termos curiosos: “referir com imparcialidade as memórias do tempo e dar todos os dados possíveis ao leitor para ajuizar das causas dos acontecimentos e, quando couber na alçada humana, preconizar-lhe as consequências”. Essa imagem de um jornalista que ocupa a posição de um guardião das memórias do tempo sobreviveu às épocas e persiste no jornalismo brasileiro até os dias de hoje, fato que pode ser notado pelo grande número de alusões históricas presentes nas reportagens que noticiam eventos da atualidade. Para se ter um vislumbre disso, as publicações Veja, Época, IstoÉ e Carta Capital publicaram em 2009 um total de 6.489 matérias. Destas, 4.423 faziam menção a algum evento anterior ao ano de 1995, – ou seja, que havia acontecido ao menos quinze anos antes de sua veiculação – aproximadamente 70% dos textos publicados. São textos que perpassam desde a editoria de política até aquelas consideradas mais ligadas aos fatos quentes, como ciência e tecnologia. Isso remete ao fato de que as narrativas sobre o passado não estão circunscritas aos professores e pesquisadores de história. Significa que a nossa visão do passado é desenhada não apenas a partir das narrativas dos livros escolares, mas também dos romances e filmes históricos, dos jornais, das novelas, das revistas informativas, entre outros produtos midiáticos. As implicações disso não são pequenas e dizem respeito à noção de que estas diversas fontes de informação fornecem certos modelos de entendimento que explica o mundo em que vivemos e ajuda a definir o lugar que ocupamos dentro dele. Essa aproximação do jornalista a um arquivo vivo, – no sentido de que ele atua como um armazenador, organizador e transmissor da memória coletiva – não pode mais nos causar estranhamento, na medida em que os usos da memória coletiva são capazes de invocar princípios que funcionam como leis pressupostas de funcionamento social e analogias de situação calcadas em explicações históricas. O passado funciona como um poderoso direcionador de discursos na medida em que evoca, dentro de uma dada plataforma cultural, eventos que
carregam uma série de predeterminações. Dessa forma, ao repisar sobre a origem das coisas ou ao traçar paralelos entre situações presentes e passadas, a narrativa jornalística circunscreve quais são os tipos de generalizações que são permitidas a respeito do fato noticiado, aliados aos tipos de conhecimentos que podemos ter acerca dele. Mais do que isso, já predetermina também os tipos de projetos que são lícitos de serem propostos para mudarem esse presente ou mantê-lo em sua forma atual. Entender a forma a partir das quais o jornalismo usa a história para circunscrever as novidades Essa imagem de um jornalista que pode nos dizer muito ocupa a posição de um guardião acerca do modo em que dotamos o mundas memórias do tempo sobreviveu do de sentido através às épocas e persiste no jornalismo dos movimentos da brasileiro até os dias de hoje memória coletiva. Isso porque, mais do que apenas uma referência ao passado, a história diz respeito ao futuro (sim, ao futuro!) e àquilo que estabelece um laço social que forma o comum.
O uso da história e o delineamento do futuro Os primeiros registros sobre o uso do passado, curiosamente, são anteriores ao aparecimento do que posteriormente seria chamado de ciência histórica. Civilizações como a hitita, por exemplo, já exploravam o decorrido com finalidades didáticas – relacionadas com o oferecimento à nobreza de exemplos de bom comportamento e à legitimação do poder real – muito antes que fosse observado um registro sistemático de seu passado. Neste sentido, os veículos midiáticos que funcionam como condutores da memória coletiva não são invenções recentes. As eloquentes pinturas da Idade Média, que mostravam visadas do Inferno ou do Paraíso, por exemplo, já podem ser consideradas eficientes modos de inscrição da memória coletiva, na medida em que rememoravam figuras exemplares dos ensinamentos cristãos, comemorando alguns dos acontecimentos fundadores desta cultura religiosa. Esta posição de autoridade ocupada pelo passado, bem como o poder persuasivo que ele carrega, leituras da história | 39
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não é, portanto, nada banal e em todas as épocas históricas nós podemos encontrar exemplos que mostram como ele tem sido sistematicamente utilizado como um importante recurso legitimador. A escrita da História assumiu, de fato, em diversos períodos, uma função eminentemente política, a partir de demandas relativas aos negócios públicos e ao controle social. Na Idade Média, por exemplo, grande parte da historiografia esteve voltada ao estudo das genealogias e da historiografia urbana. A essas duas vertentes de mentalidade histórica estavam indissociavelmente ligadas às duas grandes estruturas sociais e políticas desta época: o feudalismo e as cidades.
O passado funciona como um poderoso direcionador de discursos na medida em que evoca, dentro de uma dada plataforma cultural, eventos que carregam uma série de predeterminações Não é de se admirar que ainda na França do século 15 os historiadores recebessem uma pensão do rei e que o seu ingresso na Academia Real das Inscrições e Belas Letras estivesse submetido a uma permissão real, que deveria atestar seus bons costumes e sua reconhecida integridade de caráter. É a partir dessas referências que podemos pensar as inserções históricas na imprensa informativa. A partir de uma vasta pesquisa sobre o uso de referências históricas nos jornais norte-americanos do século 19, Winfield e Hume concluíram que o jornalismo foi uma das primeiras instituições dos Estados Unidos a criar uma narrativa pública sobre a identidade do país calcada em uma narrativa em torno do decorrido. A imprensa, nesse caso, teria precedido os primeiros livros sobre a História norte-americana na função de fornecer um passado comum coerente e sólido na construção das identidades nacionais. É neste sentido que alguns autores colocam que toda história é sempre história contemporânea. Ao nos segredar um passado que nós mesmos construímos (para nós mesmos), ela também nos revela algo sobre como enquadramos o presente e projetamos o futuro. Mas o que a história poderia dizer de novo para sociedades de formações tão distintas? Autores como Eric Hobsbawm e Reinhart Koselleck nos trazem algumas pistas sobre esse assunto.
A questão das significações do passado não pode ser dissociada – uma vez que a história não é meramente uma disciplina teórica e está correlacionada intimamente às práticas sociais – do problema que concerne ao o que as pessoas esperam obter deste passado. Podemos dizer que a resposta a essa pergunta variou consideravelmente ao longo do tempo, circunscrevendo diferentes usos da memória coletiva e diversas formas de mobilização da correlação passado-presente-futuro nas narrativas sobre o presente. Durante a maior parte do passado humano, supunha-se que a história tivesse a capacidade de nos dizer como uma sociedade qualquer deveria funcionar. O passado era mesmo o modelo para o presente e para o futuro. A famosa formulação ciceriana Historia Magistra Vitae (a história é mestra da vida), neste sentido, remetia ao aproveitamento perene do conteúdo da experiência adquirida. Uma vez que os acontecimentos novos não eram tidos como inéditos (mas como uma mera repetição de algo), a máxima remetia a uma compreensão de que as possibilidades humanas estavam contidas em um contínuo histórico de validade geral, tomando a história como um repositório de exemplos. Dentro desse quadro, os mais velhos eram tidos como mais sábios não na medida de sua experiência, mas a partir do fato de que eles eram um repositório da memória coletiva sobre o modo no qual as coisas deveriam ser feitas. E assim, o sentido do passado direcionava os padrões para o presente e mostrava a forma como ele deveria ser vivido. A questão se torna potencialmente mais complexa quando o passado e o futuro deixam de ser vistos como tempos semelhantes, ou seja, quando as ações do presente simplesmente não encontram precedentes ou quando o passado se torna completamente inadequado para o entendimento das coisas, uma vez que a mudança não é somente inevitável como também desejada. Isso apresenta uma série de dificuldades uma vez que determinadas inovações também exigem uma legitimação, tal como a que pode ser fornecida pelo passado, em um período em que este parece deixar de poder ser tomado como mestre da vida. Esse sentimento de transformações rápidas, radicais e contínuas, próprio do final do século 18 e dos tempos atuais, faz com que a velha máxima ciceriana se esvazie até a sua desfiguração, em direção a diferentes sentidos que mostram outras relações com o tempo. Não obstante isso, o passado
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profissão. Podemos notar certa concordância no posicionamento das revistas informativas semanais, que se mostraram favoráveis à decisão. Os argumentos utilizados para justificar o posicionamento também foram concordantes entre si: todas as revistas apelaram para a origem destas medidas, alocada nos obscuros tempos da ditadura militar. A constante rememoração do instante em que a obrigatoriedade foi instituída carrega consigo mais do que uma mera informação: ela engendra mesmo um dos nós da narrativa, sendo responsável por uma série de pré-determinações de sentido. Uma vez que a origem traumática foi utilizada como uma forma de justificar uma decisão do presente, a argumentação central não se estruturou em termos do mérito da proposta em si, mas sim, em torno de um suposto passado condenatório. Desta forma, pouco foi dito sobre o que teria mudado a respeito da temática, depois do fim da ditadura militar. O estabelecimento de uma relação explícita entre uma crise do passado e um dilema do presente faz com que esses usos da História funcionem como poderosos articuladores de sentidos. Esses jogos de similaridades entre o atual e o decorrido circunscrevem não apenas a natureza do problema relatado, mas também delimitam uma série de julgamentos, tais como os agentes responsáveis pelo problema, as suas possíveis resoluções e os padrões por meio dos quais as soluções propostas podem ser julgadas.
continua a ser uma ferramenta analítica bastante útil para lidar com essa mudança constante, mesmo que os princípios pelos quais ele pode ser entendido tenham se modificado de forma drástica. O que muda entre um período e outro diz respeito à correlação deste passado às expectativas futuras. A história deixa de ser entendida como um conjunto de pontos de referências (a Guerra do Peloponeso ou a Revolução Francesa) e passa a ser vista como um singular coletivo. Ou, em outros termos, como um passado em processo de se tornar presente. E, dentro deste quadro, passa a possibilitar também extrapolações mais ou menos sofisticadas que buscam pistas no processo de desenvolvimento dos acontecimentos no passado como uma forma de tentar delinear o que está por vir. A história se torna uma amante promíscua do prognóstico, ao projetar o futuro através do passado. O passado, que antes era tido como um modelo de ação atemporalmente válido, posto na forma de um repositório de exemplos, passa a ser também a própria expressão e justificação do devir. Passa a ser visto como uma forma de conferir a legitimidade de um precedente mesmo para coisas que parecem não possuir precedentes concretos. Dentro desta perspectiva geral, podemos entender como as mídias (e, muito particularmente, a imprensa) articulam a significação do presente com o decorrido e com o porvir. Ao evocar a história, o jornalismo está também conjurado a uma construção temporal que projeta determinadas expectativas em torno do que a história pode nos dizer acerca do presente e do futuro e que dizem respeito mesmo aos modos pelos quais o homem imprime sentido ao mundo. A partir dessas expectativas sociais coordenadas em torno da história é que podemos entender que também no jornalismo há um cruzamento complexo entre as inscrições históricas que dizem respeito a um uso experiencial da História – ou seja, a partir dos quais um conjunto de referências do passado serve como modelos de inscrição que fornecem o molde de entendimento para os eventos do presente – quanto a partir de construções que articulam o presente como um passado em processo de se tornar atual e que se concentra nos possíveis desdobramentos futuros dos acontecimentos através de prognósticos.
Impressora rotativa de alta tecnologia e produtividade
Como exemplo, podemos citar as matérias que foram publicadas por ocasião do fim da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da
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revistas em foco
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Impressora tipográfica de 1888. Tecnologia que foi usada até meados dos anos 1970
Mais do que apenas uma construção de similaridades, essas aproximações funcionam mesmo como poderosos símbolos e ícones noticiosos, na medida em que fornecem as direções de entendimento em torno de um fato. Não raro, esses símbolos históricos também se entregam a determinados exercícios de futurologia, na medida em que tentam inscrever o passado no futuro a partir de prognósticos. As reportagens que foram publicadas na ocasião da descoberta do PréSal brasileiro também trazem exemplos interessantes neste sentido. A revista IstoÉ, por exemplo, remete a outros ciclos econômicos extrativistas brasileiros e afirma que a empreitada terá sucesso se o país não repetir os erros do passado já que “ao longo dos séculos, o País viveu ciclos extrativistas de caráter predatório. Esvaíram-se fortunas incalculáveis em pau-brasil, ouro, pedras preciosas”. Já Época, fez referência às possíveis consequências dos modos de gestão de recurso, colocando que “a história mundial mostra como o Estado, quando posto a executar funções que não são de sua natureza, tem a capacidade de destruir riqueza”. A Veja buscou refletir acerca dos ganhos eleitorais que a descoberta poderia trazer e afirma que “petróleo e política, em momentos distintos da história, também funcionaram como um efi-
ciente combustível eleitoral – fórmula que será repetida pelo governo nas eleições presidenciais do ano que vem”. Cada uma destas reportagens se deteve em um fato histórico diferente para a comparação entre o passado e o presente, aludindo a articulações de sentido diversas sobre o que significaria o Pré-Sal para o futuro brasileiro. Mais do que isso, em cada uma delas, apontou-se um agente responsável pelo fracasso ou pelo sucesso deste achado, de forma que os antecedentes funcionam como uma forma de delimitar o que é lícito conceber em termos de projetos futuros, bem como de agentes responsáveis pela sua realização. Se isso já nos diz algo a respeito da forma como a história imprime sentido ao mundo, a questão se torna potencialmente mais complexa se pensarmos nos laços emocionais que nos ligam ao passado. Esse forte apelo emocional é trabalhado por Carolyn Kitch que, após estudar em torno de sessenta títulos de revistas informativas norte-americanas, afirma que os dados históricos ali inseridos sempre reativavam um mesmo tipo de discurso relacionado ao que significa ser norte-americano. Em outras palavras, eram narrativas que fomentavam a formação de um communitas. Uma vez que o passado é capaz de resgatar certas situações de liminaridade que modificam as relações sociais normais e unem as pessoas a partir da reafirmação dos laços comunais, a mídia seria capaz de criar tais situações através do enquadramento do passado e da reencenação dessas situações-limite da História. É como se as narrativas históricas inseridas na imprensa fossem uma das estratégias possíveis que tivessem o poder de ativar discursos criadores de consenso social e do sentimento de pertencimento. E é por isso que podemos encontrar na imprensa muitas remissões a eventos históricos traumáticos. Uma vez que as consequências desses fatos já estão assentadas sob um solo social comum, isso permite que a transferência passado-presente se opere de forma mais clara e com maior poder persuasivo, uma vez que esses fatos estão ligados a questões de ordem emocional.
a construção do presente e do passado Recorrer ao passado é, dentro desta perspectiva, uma maneira de acionar alguns mapas culturais que formam o acontecimento jornalístico, enqua42 | leituras da história
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Para saber
drando o novo dentro de estruturas culturais já pré-estabelecidas. E, sob este aspecto, o evento jornalístico é constituído justamente a partir da posição que ele ocupa dentro de uma cadeia temporal complexa, de forma que o passado e o futuro funcionam como parâmetros que delimitam o modo como o presente deve ser entendido. Há, no entanto, um outro aspecto presente nesta equação: para que possamos associar um determinado passado e um determinado futuro para um acontecimento, é necessário, antes de tudo, que o próprio acontecimento ocorra. E isso significa que é preciso que algo se manifeste como descontinuidade do contínuo e, mais do que isso, que este algo já tenha sido colocado em função de um contexto de sentido. Somente depois dessa aferição de sentido primeira é que podemos lhe associar um passado e um futuro como modelos de explicação causal. Diante disso, podemos notar que há uma lógica circular que envolve as remissões históricas nas notícias sobre a atualidade. Se, por um lado, os fatos do passado funcionam mesmo como um modo de circunscrever o novo dentro de um quadro de significados já estabelecidos, por outro, é o próprio jornalista que organiza esse material do passado, ressignificando o decorrido a partir das questões do presente. A comparação ou o estabelecimento de uma origem, dentro das narrativas jornalísticas, não diz respeito, neste sentido, a algo que esteja posto no próprio evento da atualidade relatado. Diz respeito, sim, às formas a partir das quais imprimimos sentido ao mundo e nos posicionamos frente aos acontecimentos. Há mesmo uma vontade imaginária social, como coloca Ricoeur, de que a história ocupe o mesmo lugar de um juiz. E isso porque à figura do juiz sempre estão ligados dois desejos principais: o da imparcialidade e o do julgamento. O juiz fornece sempre um determinado tipo de entendimento sobre um presente e um caminho de ação para o futuro. Ele julga e decide. E é justamente esse papel que ela parece ocupar nas narrativas jornalísticas. Ao evocar a história, portanto, as notícias invocam esse juiz implacável que decide o que o presente significa e delineia um prognóstico para o futuro.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. KITCH, Carolyn. Pages from the Past. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2005. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2006. RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. WHITE, Hayden. MetaHistória. São Paulo: Edusp, 2008.
ELIZA BACHEGA CASADEI é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É autora dos livros Palavras Proibidas: pressupostos e subentendidos na censura teatral (Bluecom, 2008) e Saiu da História para entrar nas revistas: enquadramentos da memória coletiva sobre Getulio Vargas em Veja, Realidade e Time (E-papers, 2009)
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O Capital Financeiro e o Mercado de Ações A história do sistema financeiro, dos primórdios até sua consolidação nos dias atuais
O
Mercado Financeiro1 compreende o Mercado Monetário (títulos e obrigações financeiras de curto prazo, até um ano, mais líquidos) e o Mercado de Capitais (títulos e dívidas de longo prazo e títulos de propriedade, caso de ações). Pode-se também dizer que o Mercado de Capitais2, de prazo superior a um ano, compreende o Mercado de Títulos de Dívida, de Financiamentos e o de Derivativos. Os Mercados de Capitais3 cresceram em complexidade e importância nos últimos 30 anos. Além disso, tornaramse verdadeiramente globais; empresas buscam recursos fazendo dívidas em todo o mundo, seus títulos passaram a ser negociados em países desenvolvidos e emergentes nos quais investidores em crescente número compram e vendem ações por meio de intermediários financeiros ou, diretamente, via sites de corretoras de valores, por meio de novas tecnologias de informação. O capital financeiro4 desenvolveu-se rapidamente em Londres, com o financiamento de guerras e dos negócios transoceânicos no século 16 e 17. Os projetos de canais no século 18, as ferrovias e as minerações no século 19. Empresas foram constituídas como sociedades por ações tanto para a construção de canais, como de ferrovias, as quais também emitiam debêntures, um título de dívida, com prazos longos. A partir de Londres eram também financiados empreendimentos no exterior, com emissão de títulos, com remuneração mais atrativa que o das empresas locais. Estatísticas5 comparando o fluxo de investimentos dos países europeus colocam a Grã-Bretanha num plano acima dos demais países europeus, com volumes anuais superiores aos recursos somados dos demais países, tais como França, Alemanha e Holanda, demonstrando que a Inglaterra já se achava mais desenvolvida em finanças internacionais. Nova Iorque é o maior em volume de operações na
Por João Francisco de Aguiar
atualidade, Londres permanece o mais internacionalizado e o preferido para sede de multinacionais. Foram6 banqueiros europeus que começaram a utilizar os mercados de títulos, com objetivo de reduzir os custos de intermediação financeira e procurando montar operações de porte por meio de sindicatos de bancos, possibilitando financiamentos internacionais de ferrovias em países da América Latina, inclusive no Brasil, desde meados do século 19, com o lançamento de dívida, de financiamentos e de ações. No Brasil do século 19, o “Barão de Mauá”, Irineu Evangelista de Souza (1813-1889)7 já explorava os limites do mercado financeiro internacional tomando financiamentos, emitindo ações e aplicando nos melhores títulos financeiros do planeta: de sua mesa saíam ordens para os diretores de dezessete empresas instaladas em sete países e informações para um grupo de sócios, no qual despontavam milionários ingleses, nobres franceses, especuladores norte-americanos, comerciantes do Pará e fazendeiros do Rio Grande do Sul. Todas as noites, além de administrar esse império, ele ainda movimentava sua fortuna pessoal, aplicada nos melhores títulos do planeta. Barão de Mauá foi um investidor e empresário de grande valor, mas seus projetos arriscados levaram-no à bancarrota, apontando para a necessidade de uma administração financeira mais firme e um planejamento financeiro e estratégico mais rigoroso para o sucesso das empresas no longo prazo.
As Sociedades por Ações no Brasil e no mundo As sociedades por ações8 foram desenvolvidas para atender à necessidade de recursos do comércio de longa distância. A administração dessas sociedades já trazia as sementes das empresas de capital aberto no mercado internacional, ao tomarem medidas visando à satisfação
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s enganar quanto à importância dos seus acionistas e ao buscaO mercado de ações tem uma das inversões. Para distribuir rem rentabilizar o capital dos longa história. As navegações no os riscos, tomavam-se “partes” investidores. Na opinião do ecoMediterrâneo nos séculos Xiii - XiV em vários barcos, simultaneanomista Adam Smith: “a consmente. A sociedade em comantante visão destas sociedades foram financiadas por bancos, dita, tão florescente no século era somente buscar a elevação capitais privados e pelo estado XII, permite compreender o da sua taxa de lucros aos níveis papel que nela desempenhou o mais altos possíveis...”. crédito comercial. O comanditário antecipa ao comandiPercebe-se9, pelos fatos a seguir, que as Sociedades de tado, em troca de uma participação nos lucros eventuais, Comandita por Ações eram muito lucrativas, remuneranum capital que este fará frutificar no estrangeiro”. do regiamente os seus investidores, em que pese o elevado No texto acima, a fala do autor refere-se às “partes” risco do tipo de projetos dos quais extraia seus lucros, a que os investidores detinham nas embarcações, “partes” navegação de além mar: essas que correspondem às participações atuais dos ina) 1499: “...diz-se que Vasco da Gama regressou à Lisvestidores no capital das empresas, em outras palavras, boa em 1949, com uma carga que pagava 60 vezes ( às ações. Valorizando-se a empreitada, o patrimônio lí5.900%) o custo da expedição; quanto a DRAKE (o faquido da empresa cresce com a apropriação dos lucros moso pirata inglês), afirma-se ter voltado no Golden não distribuídos e o valor das partes cresce. Hind com um saque avaliado entre meio e 1,5 milhão Em 1551, ocorreu a primeira oferta privada de ações da de libras esterlinas, após uma viagem que custou inglesa “The Muscovi Company”12. Para o historiador13, as 5.000 libras; e a Cia. das Índias Orientais, diz-se que sociedades por ações alcançaram sucesso por combinateria uma taxa média anual de lucros da ordem de rem importantes características de duas sociedades me100% no século 17”; dievais: as sociedades comerciais (indivíduos aventuramb) 1499: Vasco da Gama, rota para as Índias (60 vezes custo); se a bancar o risco juntos) e as corporações (alguns sócios c) 1499: Vasco da Gama, rota para as Índias (60 vezes custo). tomam as decisões, outros são investidores). Na InglaterEsses fatos são também comprovados10 no caso da Cia. ra, surgiram as primeiras sociedades a levantarem capital das Índias Orientais – taxa média de lucros em 100% (sécuprivado por meio de ações. lo 17). O comércio de pimenta (conservação de alimentos) com as Índias alcançava no mercado de Antuérpia (Bélgionde o mercado de ações começou ca) 20 vezes mais que o preço original pago. Não parece haver unanimidade sobre este assunto. O As primeiras sociedades foram organizadas11 como Somercado de ações tem uma longa história. As navegações no ciedades de Comandita por Ações, na qual o risco do inMediterrâneo nos séculos XIII - XIV foram financiadas por vestidor é limitado ao valor investido no negócio. A esse bancos, capitais privados e pelo Estado. O mercado de ações respeito, o historiador citado sugeriu: tomou fôlego com os comerciantes de “commodities”, que se “A insignificância das quantias invertidas não deve nos leituras da história | 45
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reuniam em Bruges, na casa de um mercador de nome Van der Burse. A maior parte dos historiadores, como Fernand Braudel, sugere ter sido na Holanda o surgimento das primeiras sociedades por ações, com a Companhia das Índias Orientais como a primeira empresa a realizar uma emissão de ações na Bolsa de Valores de Amsterdam, no caso, uma emissão pública. Provavelmente, foi a partir deste primeiro local de negociação, onde se negociavam mercadorias, que se desenvolveram posteriormente as Bolsas de Valores. A primeira oferta pública importante foi da “United East India Company” (Holanda), em 1602, a qual chegou a possuir trinta e seis navios e novecentos e trinta e quatro acionistas em 1617, sendo negociada em bolsa de Valores.
Os Mercados de ações e a cultura dos povos Os mercados de ações comportam-se de forma diversa, conforme a cultura dos povos. Autores14 constataram que a diversidade cultural dos países de língua inglesa, em contraposição a países, como a Alemanha e o Japão, tem influenciado a formação dos mercados financeiros e de ações. Assim,
Mercado de ações de cultura inglesa País
Total
Domésticas Estrangeiras
2:1
(1)
(2)
(%)
Reino Unido
2929
2603
501
17,1
EUA (NYS)
2408
2035
433
17,5
EUA (NASDAQ)
4726
4239
487
10,3
Alemanha
989
744
245
24,8
Luxemburgo
270
54
216
80,0
Franca
1185
1021
164
13,8
Suíça
416
252
164
39,4
Holanda
392
234
158
40,3
Bélgica
265
161
104
39,2
Fonte: Choi, Froste e International Accounting. Prentice Hall, 4 ed.
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haveria uma tendência de maior conservadorismo nos modelos contábeis japoneses (consciência de grupo, centralização, conservadorismo e continuidade) e germânicos (força e conservadorismo), atribuindo menor importância para os resultados periódicos, de curto prazo e priorizando a continuidade da empresa. Na Alemanha e no Japão, há traços de forte relacionamento financeiro e acionário entre o sistema bancário mais tradicional e as empresas produtivas, reduzindo a necessidade de maior transparência nas demonstrações financeiras. Por outro lado, o pesquisador ressaltou que a cultura britânica deu mais importância para os resultados das empresas, a prazos mais curtos, pois, historicamente, suas empresas dependeram mais do financiamento de capitais do mercado acionário, vindo também a influenciar o mercado de ações norte-americano. Os mercados de Ações de cultura inglesa têm despontado como os mais importantes do mundo, como mostra a tabela abaixo.
A Integração dos Mercados de Ações e os Investidores Institucionais O mercado internacional15 tem passado por uma progressiva integração e, neste processo, mercados financeiros domésticos de cada país têm se internacionalizado e, entre eles, o Mercado de Ações. A integração dos mercados acionários requer a adoção de certa uniformidade dos princípios contábeis na apuração das demonstrações financeiras, para maior segurança dos investidores estrangeiros Assim, os investidores mais profissionalizados são, por exemplo, fundos de pensão; os fundos mútuos (de aplicação e gestão de carteiras de títulos) e as companhias de seguro, mais orientadas para os seguros de vida e de aposentadoria complementar. Esses investidores são comumente denominados “investidores institucionais”, devido à sua colaboração com o aumento da liquidez, conhecidos por serem instituições jurídicas que têm a faculdade de administrar uma carteira de investimentos em renda fixa e variável. Seus ativos têm crescido de forma destacada nas duas últimas décadas. O gráfico ao lado mostra a crescente tendência de investimentos por parte desses investidores em ações de empresas situadas em países fora dos EUA pelo mecanismo de Recibos de Depósitos em Ações ou ADR, de 1987 a 2002. Os Recibos de Depósitos em Ações foram criados em 1927, pelo Morgan Guaranty Trust Co. (NY)16 para viabilizar a aquisição de ações de empresas inglesas por investidores dos EUA. Muitos disseram que o ADR era a inovação da década, embora tecnicamente existisse desde 1927. Ao comprar ações e sobre estas emitir um recibo negociável, o banco permite ao investidor estrangeiro comprar ações de outro país na moeda de origem, sem necessidade de correr o risco cambial.
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Risco e o investimento em ações O investimento em ações é de alto risco e de alto retorno. Um dos maiores bancos do Brasil tem uma frase no seu site principal, frase essa que deve ter em mente o investidor em renda variável, ao investir em ações: “Se escolher navegar os mares do sistema bancário, construa seu banco como construiria o seu barco: sólido para enfrentar, com segurança, qualquer tempestade” A história verídica da Muscovi Company expressa muito bem essa situação: de três barcos, dois se perdem e o que chegou teve sucesso. Esse é o risco que sempre corre o investidor em ações.
o mercado de ações no Brasil Os registros históricos17 mostram um período curto de forte aquecimento do Mercado de Ações no início do século, de 1905 a 1917, quando uma série de empresas brasileiras ligadas às ferrovias e ao setor cafeeiro emitiu ações nas bolsas de valores, voltando a refluir logo em seguida. O Mercado de Capitais18 teve pouca importância na economia até meados dos anos sessenta, embora já existissem as bolsas de valores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nos anos sessenta, o mercado de ações era pouco desenvolvido, com pequeno número de empresas e forte concentração em poucas ações, de maior liquidez e frequência nos pregões. Segundo estudos realizados pelo CEMLA (1971) durante o último semestre de 1965 e o primeiro trimestre de 1966, o mercado de ações do Brasil apresentou um volume mensal de apenas US$ 720.000. Apesar da baixa liquidez e do seu insuficiente desenvolvimento, o mercado de ações, em 1965, era dominado pelas ações da espécie ordinária, com direito de voto e o próprio
O mercado internacional tem passado por uma progressiva integração e, neste processo, mercados financeiros domésticos de cada país têm se internacionalizado e, entre eles, o Mercado de Ações índice Bovespa, em 1970, era composto por mais de 60% de ações ordinárias segundo a carteira teórica do Índice Bovespa de 197019, de forma consistente com as bolsas de valores dos principais mercados desenvolvidos nos quais, até hoje, prevalecem as ordinárias.
incentivos Fiscais e o mercado de ações no Brasil
Mattos Filho20, ex-Diretor Presidente da CVM, é da opinião de que “o mercado de ações brasileiro tem uma origem curiosa, nasceu da vontade do governo em 1964(...). A atuação do governo na criação do mercado, recordou ele, aconteceu com incentivos fiscais, juros subsidiados e compradores compulsórios (fundos de pensão e seguradoras)”. Na época, o Governo Federal introduziu na Lei 6404 de 1976, uma série de mecanismos para incentivar a abertura de capital de empresas por meio da emissão de ações preferenciais, sem direito a voto, mas com direito à preferência no recebimento de dividendos variáveis com os lucros das empresas, assim criando uma espécie de ação com privilégios especiais em relação às ações preferenciais tradicionais dos países dos mercados de ações mais fortes e tradicionais, como o dos EUA e Inglaterra. Essa nova espécie de ação21 preferencial teve consequências positivas ao atrair empresários e investidores. Por outro lado, essa nova preferencial veio a provocar uma série de distorções, devido ao excesso de reciBOs de dePÓsitOs emissão de ações preferenciais, eM Ações (Adr) tomando espaço das ações ordinárias, em relação aos principais mercados do mundo, em que o domínio é da ação ordinária votante, alterando a relação de preço e liquidez entre as ações ordinárias, votantes, e as preferenciais. Essa questão afetou a política de abertura e o próprio relacionamento da empresa aberta nacional e seus investidores, talvez uma das mais importantes razões do lançamento do Programa do Novo Mercado. $ bilhões % of all equity holdings
Fonte: Federal Reserve Board Flow of Funds
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economia | Negócio
Governança Corporativa: o Novo Mercado
n João Francisco de Aguiar é Economista, doutor e mestre em administração de empresas, professor do curso de Administração de Empresas e de Comex na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O programa do Novo Mercado foi lançado pela Bovespa em Dezembro de 2001 com o objetivo específico de aprimorar o mercado de ações nacional, com relação a uma série de questões, entre elas a necessidade de valorizar as ações ordinárias e de dar melhor tratamento aos acionistas minoritários. Consta que as primeiras sementes do Novo Mercado22, concebidas na Alemanha, ‘Newer Market”, foram lançadas em meados de 1999, por Peter Chapman, Diretor de Investimentos do “TIAA-CREFF, um dos maiores fundos de previdência norte-americanos, com o objetivo de incentivar o mercado de ações nacional e melhorar as relações entre controladores e acionistas minoritários. Atendendo aos anseios dos investidores, o segmento do Novo Mercado foi adotado pela Bovespa23, em 2000. Na adoção deste programa, foram definidos três níveis, de forma a exigir um crescente rigor em padrões de Governança Corporativa das quais citamos algumas: • Nível 1: no mínimo, ter um “Free Float” de 25% das ações do capital social, em circulação; ações disponíveis para negociação no mercado secundário; • Nível 2 - de Governança Corporativa: exige demonstrações financeiras anuais nos padrões US GAAP ou IASC GAAP; exige adoção do “tag-along”, estendendo para todos os acionistas detentores de ações ordinárias o mesmo preço das ações de controle na venda da companhia e, para os preferencialistas, 70% do preço do controle; di-
reito de voto aos preferencialistas em matérias, tais como transformação, incorporação, cisão, fusão e aprovação de contratos com empresas do mesmo grupo; obrigatoriedade de oferta de compra de todas as ações pelo valor econômico, conforme definido em lei, no fechamento do capital ou cancelamento do registro do nível 1 e adesão à câmara de arbitragem para dirimir conflitos societários; e • Novo Mercado: emissão de apenas ações ordinárias, com direito de voto, mais as exigências acima referidas, dentre outras. Em agosto de 2010, havia 37424 empresas listadas na BM&F Bovespa, das quais 151 empresas, que voluntariamente decidiram listar-se no programa, submetendo-se a regras mais rigorosas de Governança Corporativa. Em Agosto de 201025, eram as seguintes as principais representantes de cada segmento, separadas por nível de Governança Corporativa, sendo o nível do Novo Mercado o mais rigoroso: - Novo mercado: ao todo 96 empresas, das quais, destacam-se: Embraer, SABESP, “Natura”, BM&F BOVESPA, FIBRIA, OGX PETRÓLEO, WEG, entre outras, todas com Capital Social 100% composto por ações ordinárias votantes. - Nível 2: ao todo, 20 empresas, destacando-se: Eletropaulo, NET Serviços, Marcopolo, Celesc, ALL – América Latina Logística, Gol Linhas Aéreas, entre outras; e - Nível 1: ao todo, 35 empresas no nível 1, entre elas importantes empresas brasileiras: VALE, Itaú Unibanco, Bradesco, Gerdau, Brasken, Klabin, Alpargatas, e outras. Do total de 374 empresas listadas, exceto as 151 participantes do Novo Mercado, as 223 empresas remanescentes não se decidiram ainda pelas regras do Programa do Novo Mercado. Esse aparente baixo nível de adesão às novas regras de Governança Corporativa no Brasil pode estar relacionado ao elevado custo de uma empresa aberta no Brasil e às dificuldades macroeconômicas por que passa o país, inviabilizando captações de recursos via emissão de ações, a um custo de capital adequado. Vale ressaltar que, nos EUA, desde o início do século passado, as famílias já investiam parte da poupança em ações, motivo pelo qual tanta importância foi dada à forte queda da Bolsa de Nova Iorque, na Crise de 1929. Na atualidade, mais da metade da população dos EUA investe regularmente em ações, muitas em fundos de investimentos e no mercado de índices. A BM&F Bovespa também possui índices, cujas quotas podem ser adquiridas pelos investidores. Concluindo esta breve resenha26, devemos alertar aos leitores que os investimentos em ações devem sempre ser baseados em expectativa de retornos em longo prazo, como se fosse investir em um negócio, com a desvantagem de não tomarem as decisões a cada dia.
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O Mercado de capitais teve pouca importância na economia até meados dos anos sessenta, embora já existissem as bolsas de valores do rio de Janeiro e de são Paulo
nOtAs eXPlicAtiVAs 1 MISHKIN, F.S. Moedas, Bancos e Mercados Financeiros. 5 Edição. Ed. LTC: Rio de Janeiro, 2000.
BODIE, Z; KANE, A; MARCUS, A.J. Fundamentos de Investimentos. Porto Alegre: Bookman, 2002. 2
3 GRIMBLATT, M; TITMAN, S. Mercados Financeiros: Estratégia Corporativa. 2ª Edição. Porto Alegre: Ed. Bookman, 2005. 4 KINDLEBERGER, Charles P. A Financial History of Western Europe. 2d Edition. Oxford: Oxford University Press, 1993.
KINDLEBERGER, Charles P. A Financial History of Western Europe. 2d Edition. Oxford: Oxford University Press, 1993. 5
BITENCOURT, G. Brazil in the Euromarket. New York: Prestige Graphic Services Inc, 1993. 6
7 CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. 12 Edição. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1995.
SMITH, Adam. apud KINDLEBERGER, Charles, P. A. Financial History of Western Europe. 2d Edition. Oxford: Oxford University Press, 1993. 8
9 DOBB, Maurice, A Acumulação de Capital e o Mercantilismo. Edição. Editora Zahar, 1987.
SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil. # Edição. São Paulo, cia Editora Nacional, p.39. 10
11 PIRENNE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. 4 Edição. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968.
O caso da Muscovi Company (“THE MUSCOVI COMPANY ” ( The Russia Company”- 1551), como relata Sharp (1989), foi singular. O nome oficial era “ The Mysterie and Companie of Merchant Adventurers for the Discovery of Regions, Dominions, Islands and Places Unknowen”. Foi realizada uma .oferta Pública de 6000 libras, a 25 libra por “ação, o contrato dizia que o capital seria reinvestido e as ações não seriam transferíveis ( idéia de prazo indeterminado). O objetivo da empresa era o de conseguir uma rota para a Rússia, com vista a uma possível passagem a nordeste para a Ásia onde havia um lucrativo comércio. A empreitada foi bem sucedida, três navios, dois meses após a partida dois extraviaram-se com seus membros, um deles iniciou uma rota comercial para a Rússia,sendo bem recebidos na Rússia de “Ivan: o Terrível”. Os pioneiros receberam do Governo
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Britânico e Russo exclusivos direitos desta rota de comércio onde roupas eram exportadas e em troca de madeira e peles. Caso típico de risco e retorno, caso de alguns projetos modernos de “Venture Capital” . 13 SHARP, Robert M. The Lore and Legends of Wall Street. Illinoys, Dow Jones Irwin, 1989. 14 LAWRENCE, Steve. International Accounting. International Thonson Business Press. UK, 1996. 15 SMITH, Roy. World Financial Integration. In: Choi, Frederick D.S. (org). International financial Accounting and finance Handbook. 2 Edition. New York: John Willey & Sons, Inc, 1997. 16 LEVY, Maurice D. International Finance: the markes and Financial Management at Multinational Business. New York: McGraw Hill, 1990. 17 HANLEY, Anne. A Bolsa de Valores e o financiamento de empresas em São Paulo. , 1886-1917. História econômica e História de Empresas. ISSN 1219-3314. IV. I São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 2001. 18 ANDREZZO, Andréa Fernandez e SIQUEIRA LIMA, Iran. Mercado Financeiro, aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Editora Pioneira, 1999. 19 BOVESPA . Carteira Teórica do Índice Bovespa. Boletim técnico: Jan. a Dez. 1970. 20 MATTOS FILHO, Ariosvaldo. Inovar, aproveitando a cultura de investimentos. CASAGRANDE NETO et. al. (orgs) in Mercado de Capitais, a saída para o crescimento. BOVESPA/ SÉRIE ABAMEC. São Paulo: Lazuli Editora, 2002. 21 RIOLI, Vladimir. Reforma da Lei das S.As, para que e para quem ?. Revista do Mercado de Capitais. Congresso ABAMEC, 2000. 22 KARMIN, Craig e KARP, Jonathan. The Alure of ADRs. New York: The Wall Street Journal, 1999. 23 YOKOI, Yuki. Novo Mercado. Ano 6. Nro 66. São Paulo: Editora Capital Aberto, 2009, pg.38. 24 AVILA, Marília. Lanterna da Turma. Capital Aberto. São Paulo: Editora Capital Aberto, 2010. 25 BOVESPA. Empresas Listadas. Disponível em http://www.bmfbovespa.com.br/cias-listadas/ empresas-listadas/BuscaEmpresaListada. aspx?Idioma=pt-br, Acesso em Agosto d e 2010. 26 Com base em AGUIAR, João Francisco de. O dinamismo do mercado acionário nos anos 90 e a colocação de recibos de depósitos em ações no exterior: O Caso do ADR-3 da Aracruz Celulose. Dissertação de mestrado. São Paulo, UniFECAP, 2004.
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cinema | Cultura
Preservação e
difusão O surgimento das cinematecas no mundo e sua importância para a divulgação do patrimônio artístico
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ensar a relação entre a produção cultural e a sociedade por meio das instituições de arte (como os museus, por exemplo) é um caminho privilegiado para entender tal relação, uma vez que são essas instituições aquelas que têm por atribuição institucional cuidar da memória da produção artística da sociedade (de um país, de um período, etc.). Essas instituições são referências fundamentais quando pensamos a memória de nossa sociedade, porque trabalham diretamente na “construção’ e institucionalização dessa memória. O fundamental é entender como se dá essa “construção”. Por que preservar isso e não aquilo? Porque desse modo e não daquele? Se a pergunta pode parecer estranha, mudemos seu enfoque: o que estamos produzindo e que posteriormente poderá se transformar em “nossa” memória? Nosso tema, aqui, será pensar um pouco essa relação (produção cultural e sociedade) pela ótica do cinema, ou mais especificamente pela ótica das cinematecas (museus de cinema). Mas o que vem a ser uma cinemateca? É fundamentalmente um arquivo de filmes, que pode ser público ou privado. Ele pode ter como escopo o cinema como um todo, ou ter alguma especialidade sobre a qual se dedica (filmes de animação, por exemplo – podendo mesmo ser ainda mais específico – como trabalhar apenas com filmes de animação de um determinado país, e assim por diante). No entanto, uma cinemateca não se dedica “apenas” a preservar os filmes. Em geral, esse tipo de instituição preserva os filmes e todo o universo documental que o circunda diretamente (cartazes, roteiros, revistas especializadas em cinema, livros, etc.), e
Por Fausto Douglas Correa Júnior
mesmo indiretamente, (como, por exemplo, as partes do arquivo pessoal de um crítico de cinema que não dizem respeito a sua profissão, como sua correspondência familiar, documentação jurídica, entre outras). A etapa seguinte do trabalho da instituição é difundir esse patrimônio, em seu caso específico, difundir cultura cinematográfica, o que trocando em miúdos pode ser traduzido como difundir as obras (história do cinema) e o pensamento (a crítica, por exemplo) sobre as obras ao longo da história. É recomendável que existam cinematecas que se preocupem com o cinema como um todo, mais do que isso, que sejam públicas. Isso tem implicações específicas em países como o Brasil de industrialização tardia. Tento explicar melhor. No Brasil, valem hoje as leis de “incentivo à cultura”, nas quais os produtores captam recursos privados (ou públicos, como é o caso da Petrobrás), por meio de mecanismos de isenção fiscal por parte das empresas, que assim patrocinam os filmes que serão produzidos a partir desse tipo de dispositivo legal. Antes disso, porém, os projetos cinematográficos (roteiros) passam por uma espécie de licitação pública, aberta por meio de inúmeros editais para produção de longas e curtas-metragens. Pode-se objetar a respeito dos critérios de escolha das comissões (compostas por integrantes da classe cinematográfica e de instituições de cultura) que avaliam os projetos, sem dúvida. É bem verdade que esse sistema está cheio de distorções, como, por exemplo, devido ao fato de que as empresas ganham assim duas vezes, uma com a isenção fiscal e outra com a exposição de sua “marca”, ou ainda devido ao fato das empresas apoiarem apenas os filmes que
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elas entenderem como adequados à sua “marca”. Mas, de qualquer modo, é esse o caminho principal para se produzir cinema no Brasil, sobretudo no que diz respeito a posteriores contratos de distribuição e exibição dos filmes. Uma vez que esse é o sistema hegemônico, é dele que sai o padrão hegemônico de produção, ou seja, aquele padrão mais facilmente aceito pelo circuito comercial, e mesmo pelo circuito dito “alternativo” de cinema no Brasil.
Preservação do patrimônio Esse dispositivo legal atribui hoje à Cinemateca Brasileira (criada oficialmente em 1949 como uma espécie de departamento do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM-SP) uma enorme responsabilidade no que diz respeito à guarda (e preservação) do patrimônio cinematográfico brasileiro. Isso porque todo filme produzido com as atuais leis de incentivos à cultura devem ter no mínimo uma cópia depositada na Cinemateca Brasileira (existe uma lei que cita explicitamente essa instituição). A responsabilidade da instituição é ainda maior na medida em que, como autoridade que é no campo cinematográfico, ela participa diretamente das comissões que escolhem os projetos (roteiros) que poderão ser contemplados pelas leis de incentivo. É claro que cumprindo a missão de preservar esse patrimônio, a Cinemateca Brasileira já está fazendo o mais importante e essencial de seu trabalho, e só mesmo quem lida cotidianamente com as tarefas impostas por essa missão sabe o trabalho que isso dá – por exemplo, por que nem sempre é fácil o contato com os detentores legais dos filmes; nem sempre esses aceitam ou compreendem as necessidades da instituição, que deveriam ser explicitamente aceitas por esses detentores nos contratos firmados entre eles e a instituição. O fato é que a relação entre o âmbito da produção e da preservação no Brasil hoje,
como se pode ver, é bastante direta, e a lógica que rege a primeira acaba por ter implicações diretas no cotidiano de quem cuida da segunda, e aqui chegamos a uma questão fundamental para as cinematecas. Uma questão histórica: a relação entre a difusão e a preservação desse patrimônio (dessa memória). Ou de como estamos sugerindo, da produção com a preservação. Segundo Peter Bürger, o efeito da arte depende em geral dos mecanismos de disseminação dela, e uma das chaves para se pensar o problema reside na relação entre análise imanente e análise sociológica de como um determinado período em foco percebe e ‘institucionaliza’ a arte. Em suma: de como a arte assumiu essa ou aquela função predominante na sociedade de um determinado período. Ora, se a instituição da obra arte faz a mediação entre o trabalho do artista e o público, e se as funções da arte na sociedade dependem das condições de produção e de recepção dela, então fica claro que as instituições de arte (museus, cinematecas, etc.) não deixaram jamais de cumprir, do ponto de vista material, a encarnação viva desse processo abstrato. Elas são partes centrais da cristalização de um jogo dialético onde o elemento central não poderia ser outro senão o ideológico. Bürger lembra que o termo singular instituição de arte enfatiza a hegemonia de uma concepção de arte na sociedade burguesa, e que ela é hegemônica, pois soube fazer frente e vencer outras concepções. Em outras palavras, a disputa pela significação do conceito de cinemateca tem como base, e faz parte da disputa pela hegemonia do sentido social da arte ao longo da história. As cinematecas (que são arquivos/ museus de cinema) nasceram da conjunção dos esforços oriundos, de um lado, das primeiras experiências da arquivística fílmica, – tão antiga quanto o cinema, que reconhecendo o valor de certos documentos cinematográficos tentou preservá-los – e de outro, do movimento
“A Cinemateca Brasileira criada oficialmente em 1949 como uma espécie de departamento do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM-SP”
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cinema | Cultura
cineclubista (também tão antigo quanto o cinema) que contribuiu decisivamente para a história das cinematecas ao valorizar o filme de ficção como objeto digno de ser preservado. Desde o início, houve quem já percebesse a importância de pensar em preservar o que era produzido pelo cinema então nascente. O polonês Boleslaw Matuszewski é tradicionalmente considerado precursor no tema. Ele publicou (ainda no final do século XIX) textos que pediam o esforço da sociedade em preservar o que considerava provas irrefutáveis da ação humana (o que incluía inclusive o sentido jurídico de prova). Outra ação pioneira nesse campo foi a da Biblioteca do Congresso de Washington, que preservava cópias de filmes (inicialmente impressas em papel)
“ A disputa pela significação do conceito de cinemateca faz parte da disputa pela hegemonia do sentido social da arte ao longo da história. ” visando proteger o copyright dos autores dos filmes. Como podemos ver nesses exemplos do pioneirismo no campo da arquivística fílmica, desde o início, o problema da preservação de filmes está ligado à construção da memória do cinema. A questão é que sempre essa construção (de algum modo) estará direcionada a uma finalidade específica. No caso de Matuszewski, o maior problema era certa “ingenuidade” quanto à veracidade do registro cinematográfico. Sua noção de utilidade do registro (no sentido deste ser uma prova) colocava de lado toda a produção ficcional do cinema, como algo descartável, pois a ficção para ele nada poderia provar. No caso da Biblioteca do Congresso de Washington, ainda que não fosse propriamente uma preocupação para com a memória que estivesse em jogo no trabalho de preservação dos filmes, esse trabalho não estaria preservando mais do que o que era produzido sem se preocupar com a origem desse material. Sem se preocupar com as condições sociais que permitiam aquela produção existir (com o tipo de imagem que essa produção “criava” da sociedade da qual ela é oriunda).
Trabalho de difusão
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Carlos Roberto de Souza (figura histórica da Cinemateca Brasileira e atual curador
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da mais importante atividade de difusão da Cinemateca hoje, a Jornada Brasileira de Cinema Silencioso) tentou esclarecer na abertura da IV Jornada (6 de agosto de 2010) o que é uma faceta absolutamente fundamental e muito rica do trabalho de difusão de uma cinemateca, algo que José Manuel Costa (da Cinemateca Portuguesa) também afirma com muita propriedade: ninguém conhece melhor os materiais dos arquivos de cinema do que as próprias cinematecas. Isso ocorre porque além de reunir todas as condições para conhecer esse material em seus aspectos estéticos-históricos-sociológicos, essas instituições conhecem os filmes enquanto materiais. A sua história enquanto material. Tentaremos dar um exemplo hipotético. O que é exatamente o filme X produzido em 1926 que conhecemos hoje? Esse filme pode ter sido salvo a partir de um contratipo (basicamente uma cópia do negativo) feito de uma cópia distribuída na Hungria, que pode ter sofrido cortes (não ser completa), não ter guardado suas colorações originais (como os tingimentos de películas – característicos de parte da produção silenciosa), sua trilha musical original (se havia uma, é desconhecida), etc. Ninguém melhor que as cinematecas para remontar essa história do filme enquanto material, e não “apenas” enquanto luz projetada em uma tela. Esse trabalho maravilhoso é feito com o material que já está nos arquivos. Estamos propondo pensar no que ainda vai se tornar material de arquivo. Um enfoque fundamental para pensar essa questão é analisar a história da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (Fiaf), criada em 1938 para unir e traçar diretrizes comuns a todas as cinematecas existentes e para as que ainda surgiriam. O livro de Raymond Borde (Les Cinémathèques, 1983) pode ser considerado fonte privilegiada para se estudar a história dessa federação, devido não só ao fato de ser o único trabalho a abordar (e dar uma interpretação) para história das cinematecas em geral, e tão pouco apenas pela importância de Borde na história da Fiaf, mas, sobretudo pela data em que foi publicado (1983 – ano da publicação pela Unesco de sua importante recomendação visando a preservação do patrimônio cinematográfico mundial). A tese de Raymond Borde (que a recomendação da Unesco parecia confirmar) era a de que, passado o primeiro ciclo de vida das cinematecas (isso é, de sua afirmação institucional) essas instituições deveriam se voltar para sua “missão principal”: preservar o patrimônio; fazendo a preservação passar à frente como prioridade das cinematecas em relação à difusão. Tendo em vista a complexidade de
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Discurso técnico A questão é que o desenvolvimento histórico desses aspectos foi mesmo desigual. No final da década de 1950 o discurso técnico começa a ganhar mais força. Até então, o cinema tinha pouco mais ou pouco menos de 60 anos – e a questão da sobrevida dos materiais se colocava de forma um tanto quanto diversa da que entendemos hoje. Por mais que o material fosse mais delicado (nitrato), era não só mais fácil de encontrar filmes desaparecidos, como havia menos o que salvar – proporcionalmente aos tempos de hoje. De fato, estava chegando a hora de se ser mais incisivo no campo da preservação; mas o que não se podemos levar a sério é a ideia de que uma coisa exclui a outra – que a preservação exclui a difusão. O fato é que o impulso que ganhou o discurso técnico veio acompanhando (simultaneamente) de um impulso também do polo de mercado, que acabaria por configurar um novo mercado do patrimônio (presente desde o início da formação do conceito de cinemate-
ca – pois o cinema nasceu da indústria). Isso porque, colocando a difusão em segundo plano as cinematecas criaram uma tendência que poderia transformálas em meros receptáculos da indústria. Uma indústria por sua vez com fortes tendências monopolistas, que produz, distribui e divulga os filmes ela mesma. O avanço do mercado do patrimônio sobre o campo do cinema colaborou (e mesmo agiu diretamente) por vias diversas para obliterar o sentido político de alguns projetos da Fiaf, e das cinematecas membros que os defendiam, uma vez que os canais de entrada dos arquivos diminuíam conforme variava o pêndulo da balança entre o monopólio e a democracia no campo da produção e, sobretudo na distribuição e exibição do cinema. Projetos esses que buscavam uma relação mais próxima entre difusão e produção contemporânea diversa daquela dos quadros da grande indústria. E isso tem toda a relação com o enfraquecimento, e mesmo desaparição da crítica. Assim, ao abrir mão de uma primazia também no campo da difusão, as cinematecas foram aparentemente abrindo mão de sua relação com o campo da produção, isso é foram abrindo mão de sua relação com o próprio cinema, mas como vimos não é exatamente disso que se trata. A difusão se tornou apenas e tão somente uma consequência da preservação, perdendo sua autonomia. Uma cinemateca que pensa o cinema não apenas como passado, mas como presente e futuro, pode entender como sendo tarefa da difusão ajudar na criação de uma rede de espaços para a divulgação do cinema contemporâneo que lhe convém (por assim dizer). Em rápido exemplo: em 1962, a Cinemateca Brasileira promoveu uma grande mostra de cinema polonês contemporâneo, com a publicação de um importante livro/catálogo sobre a mostra, que caminhava exatamente nesse sentido, de abrir espaço para uma produção contemporânea que conviesse ao projeto de cinema da cinemateca. Há tempos não vemos isso, e o caso da quase total ausência do bom cinema argentino das telas brasileiras é um dos piores e mais indicativos sintomas disso. São muitas as instituições que cuidam e preservam o patrimônio cinematográfico brasileiro, e o trabalho delas é extremamente importante e impressionante, com absoluto destaque para a Cinemateca Brasileira (que mereceria uma matéria à parte) e também da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esse texto não tem por objetivo criticar esses notáveis trabalhos, mas sim propor um debate específico sobre um aspecto teórico do conceito desse tipo de instituição.
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ambas as tarefas, era preciso escolher o essencial. Era “natural” que a ideia de difusão tivesse tanta força nas primeiras duas décadas de vida da federação. Grande parte dessa força vinha de um movimento cineclubista de extrema vitalidade, que, em alguns casos (como na França), foi a grande pedra de torque dos projetos de cinemateca – parte fundamental da história da institucionalização do cinema, e mais especificamente, da institucionalização da pesquisa sobre cinema. Tínhamos, deste modo, uma difusão preocupada com a pesquisa e também com a produção cinematográfica. Devemos considerar que se trata de um período florescente na história da produção cinematográfica – de consolidação do cinema moderno, processo no qual as cinematecas tiveram papel fundamental. Estávamos no meio de um furacão produtivo, da mais alta qualidade e significação estética e sociológica, e existia nesse sentido uma relação bastante clara entre produção, preservação e difusão. Como exemplos disso, podemos citar a importância da “descoberta” dos franceses (proporcionada em grande medida pelos cineclubes e salas especializadas) do cinema americano e, sobretudo, do cinema soviético para o florescimento da vanguarda cinematográfica francesa (Epstein, Renoir, Clair, Cavalcanti, etc.), e posteriormente no relacionamento entre os cineclubes e cinematecas nascentes na França e na Itália que ajudou decisivamente na construção da “ponte” que uniu o “realismo poético francês” dos anos 30 ao neorrealismo italiano.
“Um enfoque fundamental para pensar essa questão é analisar a história da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (Fiaf), criada em 1938 para unir e traçar diretrizes comuns a todas as cinematecas existentes e para as que ainda surgiriam”
FAUSTO DOUGLAS CORREA JÚNIOR é doutorando em história na unesp de Assis - sP. Bolsista da Fapesp, e autor do livro A Cinemateca Brasileira: das luzes aos anos de chumbo. são Paulo: ed. unesp, 2010
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Um mergulho na arte de Botticelli Por que o pintor busca a presença de São João Batista e a representação da geologia desértica da Judeia em suas obras Por Átila Soares da Costa Filho
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tornar mais simbólica, esotérica. Motivos para tal existiriam: a proximidade do ano 1500, quando, segundo o imaginário popular – em boa parte, graças a certas interpretações da Cabala, à Astrologia e a outras ciências ocultas -, o mundo acabaria. Aliás, o artista costumava, já por aí, a estudar as doutrinas gnósticas1 em voga nos cantos mais intelectuais. Mais tarde, a influência do dominicano Savonarola, uma espécie de “xiita” da cristandade, reformador, que tomara poder após a instalação da República de Florença, o conduziria a uma vertente mais austera em sua busca espiritual. Inclusive, era de conhecimento geral que Botticelli mantinha estreita 1 Na obra do artista intitulada “Madonna do Livro”, hoje no Poldi Pezzoli, Milão, veremos um sol que se assemelha a um olho costurado no manto da Virgem na altura de seu ombro esquerdo, muito frequente na simbologia hermética. Este sol é o “Olho que tudo vê”, ou o Deus-Pai (para os egípcios, Hórus), o qual também surgirá, variavelmente, em outras pinturas atribuídas a Botticelli ou de sua escola. Entretanto, as labaredas em seus raios centrais parecem nos indicar a iconografia da catequese da virgindade trina de Maria, pré-humanista e pré-neoplatônica, e, muito provavelmente, sugerida pela presença de Savonarola: três chamas - na verdade, estrelas – que são sua condição de virgem no antes, durante e depois do nascimento de Cristo. Esta ideia pictórica remontava já aos bizantinos; vide também a “Madonna e o Menino com S.João Batista Criança” (Palazzo Vecchio, Florença) de Jacopo del Sellaio, um discípulo de Botticelli.
Galeria degli Uffizi – florenza
O
período de 1480-81 certamente seria um marco na produção do florentino “Sandro” Botticelli (Alessandro di Mariano Filipepi, Florença, 1º de março de 1445 – 17 de maio de 1510). Este, um dos grandes da pintura italiana da segunda metade do século 15, começaria justamente por aí a desenvolver certa peculiaridade na grande maioria de suas obras de devoção. São João Batista, primo legítimo de Jesus Cristo e padroeiro da cidade natal de Botticelli, - gérmen da Renascença - seria o protagonista. Baseando-se, sobretudo, nos escritos de Giorgio Vasari em sua Vite de' più eccellenti architetti, pittori, et scultori Italiani (1550-68) - a “Vida dos Artistas” - e, distorções à parte, temos a figura de Botticelli como alguém espirituoso que, com sua maior maturidade desenvolveria um perfil notadamente místico. Para tal, poderíamos citar algumas obras-primas como o “Retábulo Bardi” da Gemäldegalerie de Berlim (1485), ou o surpreendente “Palas e o Centauro”, hoje na Uffizi, Florença, e provavelmente da mesma época; ou, ainda, a “Natividade Mística” (1500) da National Gallery de Londres. Além do mais, Sandro também costumava conferir, a várias de suas composições, poderes de talismã no intuito de beneficiar, de alguma forma, aquele que habitasse o recinto onde a pintura repousasse. Realmente, coincidindo com o início de sua iconografia joanita, sua produção passaria a se
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Em detalhe, auto-retrato presente na obra “A Adoração dos Magos” de 1476, hoje na Galeria degli Uffizi, em Florença
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mentes do Velho Mundo às zonas mais antigas, distantes e obscuras dos ritos, do pensamento e do conhecimento, na tentativa de se responder sobre onde residiria a origem do ser e qual sua essência. O “Livro de Toth”, o Corpus Hermeticum, miticamente atribuído ao deus grego Hermes Trismegisto (por sua vez, identificado como Toth), os “Versos Áureos” de Pitágoras, o De Triplici Vita, obra original de Ficino, o Rosarium Philosophorum e o Re Metallica, de Agrícola, se tornariam objeto de curiosidade e algumas das fontes de estudo nos altos círculos filosóficos e científicos. Queria-se fazer nascer uma espiritualidade revisada, que ajudaria a libertar o homem das trevas, e a enxergar a Criação e a realidade das coisas de maneira multifacetada. Michelangelo, em sua busca pela beleza divina, é um bom exemplo disto.
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amizade com o monge, sobretudo após certas predições que o mesmo havia lançado contra os Médici – de que seriam expulsos do controle da cidade - terem, de fato, se concretizado nos anos 1490. Provavelmente, também possam ter contribuído outras profecias de Savonarola, - não menos sensacionalistas - as quais eram atiradas contra o Papa Alexandre VI (da poderosa casa Borgia), e que serviriam para patrocinar, ainda mais, um clima já altamente carregado de tensão àquela realidade, à mesma proporção em que se permitia crescer a autoridade – e pretenso misticismo – do monge. Assim, Sandro chegara, mesmo, a adotar a meditação como conduta de vida... e a tornar-se mais introspectivo. Outro possível motivo para a conversão que também não se poderia descartar seria o mesmo que se verificara com o próprio Savonarola no início de sua vida monástica: uma experiência mística; – ainda que indefinida - mesmo que até hoje jamais tenha sido achado algum documento que confirmasse o evento – o que também não implicaria, necessariamente, que não pudesse ter existido. Na verdade, o próprio fenômeno do Renascimento italiano se deve, em grande parte, à importação de massas de gregos fugidos da invasão turca a Constantinopla em 1453. Dentre eles, havia Gemistos Plethon, considerado a própria encarnação de Platão, e cujos discursos e ensinamentos ocultos vieram a impressionar os poderosos Médici. Estes, por sua vez, o contratam para traduzir integralmente os textos gregos que eram a base das ideias de Plethon, o filósofo Marsílio Ficino2, o qual ainda fundaria a Academia de Careggi em Florença. Foi uma época em que a sede por uma sabedoria maior lançava as mais brilhantes e ousadas 2 as consideradas duas maiores obras-primas de Botticelli, “Primavera” (1478) e “O Nascimento de Vênus” (1485), foram orientadas durante suas execuções pelas cartas de Ficino, e se constroem a partir de alegorias esquemáticas tendo como base estudos de mapas astrais.
O FatOr ESSÊniO
Madonna della Melagrana Cena: Maria com o menino Jesus e seis anjos
A peculiaridade a que nos referimos no início deste estudo aponta para a busca de um modelo de representação que coloca São João Batista à frente de uma formação rochosa – ora montesa -, de aspecto desértico na paisagem, estrategicamente posta atrás do santo, em praticamente todas as suas ocorrências. E isto, mesmo que o restante da obra – no caso de composições mais complexas, com mais personagens -, não seja coerente com tal tipo de geografia, ou ambientação. Em sua produção, Botticelli teria realizado, aproximadamente, 184 obras, sendo 21 pinturas representando a figura do Batista as quais 16 seriam com paisagem e, destas, 13 seguindo o modelo desta geologia – ou seja, o evento se repete numa proporção de mais de 81%. Tal verificação prontamente nos força a imaginar sobre se houve um planejamento mais intelectual, no qual se poderia traçar uma ligação com a gnose dos essênios, num recurso de se estabelecer novo grau de importância à figura do santo - não obstante, como já dito, padroeiro de Florença e, juntamente com São João Evangelista, um pilar de algumas das antigas seitas cristãs do início dos séculos I e II, que se
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perpetuariam ainda por mais séculos afora, incluindo a Idade Média e a Renascença. Dissecando a iconografia do artista nesta parte, identificamos dois fatores que poderiam estar interligados tendo a filosofia essênia como base nas construções dos elementos pictóricos de Botticelli, a saber: a presença de São João Batista; e a representação da típica geologia desértica da Judeia, a qual remete à ideia de fuga dos antigos padres do deserto e onde os essênios criaram uma sociedade a partir de 170 a.C. Inclusive, tal configuração rochosa acabou, mesmo, por se transformar num símbolo do essênio. Ora, o fato de que João Batista fosse um membro da seita dos essênios foi algo levado muito a sério desde sua morte no século 1, – talvez a 30 d.C. - e, especialmente entre algumas filosofias orientais que chegaram até nós, quase um dogma. Tal tese, além da tradição, ganhou força após a descoberta e tradução do Evangelho dos Doze Santos em 1880, e do Evangelho Essênio da Paz em 1923. É interessante salientar que esta filosofia, de uma comunidade mística
O Nascimento de Vênus pelo pintor Sandro Botticelli exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália. A pintura representa a deusa Vênus emergindo do mar como mulher adulta, conforme descrito na mitologia romana.
de judeus-egípcios, que se estabeleceram no deserto às margens do Mar Morto, foi uma das grandes da antiga Palestina, juntamente com a dos saduceus e dos fariseus, e atravessou mais de dois milênios de maneira mais ou menos inalterada. Uma de suas maiores manifestações, hoje, é a Igreja Essênia de Cristo, fundada em Creswell, Oregon (Estados Unidos) em 1984, pelo teólogo e filósofo americano Abba Nazariah. Também, a Antiga e Mística Ordem Rosacruz (AMORC), pretende resgatar a importância essênia quando proclama Jesus Cristo seu mais ilustre representante, só para citar alguns exemplos de suas reminiscências contemporâneas e universais. Além do mais, em outros textos rosacruzes, os essênios são vistos como sucessores da Grande Fraternidade Branca, fundada no governo de Akenaton. Atualmente, historiadores e críticos se dividem sobre esta discussão, apoiando ou não a teoria do Batista essênio. Mas, ao menos, nutriria o florentino certo interesse por algum dos valores essênios? Na verdade, bastaria se olhássemos para algumas prováveis evidências que o artista deixou
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em vida: ignora-se por completo que Botticelli tivesse tido filhos, ou mesmo companheira... ou um simples caso. Entretanto, se houvesse de fato ocorrido algum envolvimento sentimental em sua vida, não há razões aparentes para que o mesmo nunca fosse revelado por meio de alguma de suas belas imagens femininas3 - como os de Simonetta Vespucci, “a mulher mais bela da Renascença” e modelo da célebre Vênus – ou, mesmo, textualmente. Ora, os essênios praticavam o celibato na busca extrema da purificação corporal. O Codex Romanoff de Leonardo da Vinci, descoberto em 1981, nos informa ainda que Botticelli também era vegetariano, como os essênios4, e chegou a abrir um restaurante em Florença, em sociedade com o próprio Leonardo. E, claro, também temos todo o aspecto místico em sua personalidade. Mas, qual a significação do culto aos santos à época do artista, já que havia tamanho apego aos mesmos que, de certa forma, tomavam o lugar dos antigos deuses pagãos? Como entender esta identificação particular de Botticelli com o Batista?
LuZES E trEVaS SOBrE a EurOpa Como já colocado, o santo é o patrono de Florença desde a invasão longobarda em 570, substituindo a figura do deus Marte, porém, conservando-se alguns de seus atributos de personalidade valente e guerreira. A obra Le Culte des Saints, de Peter Brown, vem a analisar, dentre outras coisas, o desenvolvimento do culto aos mártires (e de suas relíquias), como o Batista: seria uma das questões fundamentais do cris3 Mesmo uma acusação de homossexualismo que se tenha recaído sobre Botticelli, após a morte de Savonarola, jamais foi comprovada. 4 Os essênios, para com o reino animal, apenas se alimentavam de peixes - e ainda vivos. a razão para tal é que, diferentemente de outras criaturas, os peixes se reproduzem assexuadamente – ficando de fora da lista de animais sujeitos a uma transmigração espiritual na reencarnação -; e vivos, pois, assim, os seguidores da doutrina não pensariam comer matéria morta, uma impureza.
a obra “a adoração dos Magos” de Botticelli em óleo sobre tela: no centro da pintura estão a Virgem e o Menino Jesus
tianismo, o estabelecimento das relações CéuTerra. Ora, os próprios locais de sepultura dos mártires viriam a se transformar em centros religiosos no Ocidente. O historiador Anderson José Machado de Oliveira, em seu trabalho “O Culto dos Santos no Brasil Colonial: aspectos teóricos e metodológicos”, nos informa que as sepulturas foram trazidas para o espaço de convivência dos vivos, “marcando uma profunda ruptura com os padrões da Antiguidade”. Para o autor, tal transformação na mentalidade com relação aos mortos se tornaria elemento de crucial importância na constituição da sociedade medieval. O episódio, na sequência, também provocaria um crescimento do poder episcopal: “Os bispos teriam sido os principais estimuladores do culto das relíquias e das sepulturas de santos, já que, na maior parte das vezes, a basílica episcopal se transformou no local de guarda dessas relíquias”. Desta forma, havia, por parte dos bispos, um relacionamento do culto com o direto fortalecimento do poder dos mesmos, já que “o deslocamento dos fiéis aos santuários com relíquias implicava uma forma de submissão ao poder episcopal, que se colocava como guardião por excelência daquele lugar de devoção”. Logo – e ainda em concordância com Peter Brown -, o culto dos santos poderá ser identificado “como um elemento de compreensão das mentalidades coletivas e também como um dos elementos da estruturação do poder político e ideológico da Igreja na Idade Média”. Daí concluirmos que o terreno já vinha sendo preparado àquela Florença do Quattrocento. No mesmo estudo, Anderson de Oliveira comenta outro autor, André Vauchez, ao analisar a Baixa Idade Média e apontar que as fontes privilegiadas são os processos de canonização instruídos pela Cúria Romana entre 1198 e 1431: o culto aos santos, simplesmente, foi um dos elementos que permitiram a consolidação do poder da Igreja no Ocidente, e exemplifica citando o processo para a conversão dos germânicos, e o papel de suma importância destes cultos. Porém, Vauchez apontará que, ainda que servindo ao poder
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nus na logomarca do produto em todas as suas edições. Até nos parece que aquela astrologia que chegou a guiar sua arte esteja, agora, revelando a conexão já existente do presente do pintor com o nosso... e com o futuro – de certa forma, um passeio transcendental pelo tempo. São coisas assim que fazem da figura de Sandro um gênio intrigante. Esta pluralidade de possibilidades que marca seu legado, certamente, não é fato tão corriqueiro na História da Arte. E, como vimos, talvez seja possível um estreitamento de Sandro Botticelli com a filosofia essênia – seja em que nível for - e, daí, uma busca por padronizar a iconografia de São João Batista. Se levarmos em conta que o enigmático artista também adorava surpreender5, então, deve haver um leque de temas a se debruçar para uma mais rica compreensão sobre este seu legado - e uma provável inspiração em série na obra de Botticelli a partir da sabedoria gnóstico-essênia pode ser uma vertente pouco explorada no meio acadêmico.
institucional da Igreja, a santidade não seria um objeto de leitura “unívoca” das hierarquias e dos fiéis. Então, quando analisa os processos de canonização, o cerne da questão será as disputas entre o papado e a população “no sentido do estabelecimento dos critérios de santidade, o que conduziria a concomitância de uma leitura dita oficial da santidade - ligada à hierarquia eclesiástica - e uma leitura ‘popular’”. Esta última se identificaria bem com um Botticelli interessado no misticismo joanita. Logo, atenta em educar – e aprimorar - a relação das massas com seus santos, em grande parte graças à fúria protestante, a Igreja elabora sua “Reforma Tridentina” (do Concílio de Trento). E também havia aquela atmosfera na qual o medievo e, subsequentemente, o homem renascentista, costumavam levar suas vidas sob a égide do terror diabólico. Para Delumeau, a Peste Negra de 1348 – que ressuscitaria outras tantas epidemias mortais -, as sublevações se revezando entre os países, a “interminável” Guerra dos Cem Anos, o avanço turco com as derrotas em Kossovo e Nicópolis, o Grande Cisma, as cruzadas contra os hussitas, a decadência moral da Roma de antes da Contra-Reforma e a própria Reforma de Lutero – e suas catastróficas sequelas - seriam razões mais que suficientes para que alguém vivesse obcecado com a figura do Diabo, enquanto refém do pavor das profundas inconstâncias sociais. De fato, o período que compreende o espaço entre a crise do Feudalismo e o advento da Renascença é considerado como o auge da presença do Mal no imaginário europeu (sécs. 14-16).
Botticelli vem em nossos dias com tal força que o apelo contemporâneo de suas criações é poderoso. O seu “Nascimento de Vênus” - a exemplo da “Gioconda” de Leonardo - tornouse um ícone da figura da mulher, mais ainda que a “Eva” de algum outro artista. Daí seu apelo místico: uma presença feminina ao mesmo tempo deusa do amor erótico e platônico – Afrodite e Maria -, e cujo poder de entrar em harmonia com o presente e o futuro nos é tão elegante. Assim, já tocando o século 21, o software da gigante Adobe Systems Incorporated, o Adobe Illustrator, traz a cabeça de sua Vê-
Átila Soares da Costa Filho é desenhista industrial pela pontifícia Universidade Católica do rio de Janeiro, pós-graduado em história da arte pela Universidade Geraldo Di Biase, Volta redonda (rJ), e professor de história da arte, design de moda e educação artística
Para saber
uM LEGaDO ainDa pOr SE rEDESCOBrir
5 Vasari chega a narrar em “Vida dos artistas” uma ingênua brincadeira que o pintor teria elaborado em seu estúdio para diversão geral às custas de um incauto colaborador.
DELUMEaU, Jean. A Civilização do Renascimento. 2 vols, Lisboa: Estampa, 1994. ________________. A História do Medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. MaNDEL, Gabriele. The Complete Paintings of Botticelli. Introdução de Michael Levey. Harmonsworth: Penguin Books, 1985. OLIVEIra, a. J. M. O Culto dos Santos no Brasil Colonial: aspectos teóricos e metodológicos, aNPUH (associação Nacional de História). rio de Janeiro: aNPUH (associação Nacional de História), 1998. em: <http://www.rj.anpuh.org>. acesso em 20 mai. 2008. rOST, Leonard. Introdução aos livros apócrifos e pseudepígrafos do Antigo Testamento e aos manuscritos de Qumran. São Paulo: Paulinas (Paulus), 1981. VaSarI, Giorgio. Vida de Botticelli. In: Vidas de pintores, escultores y arquitectos ilustres. Buenos aires: El ateneo, 1945.
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Arte | Renascimento
Pintura,
física e geometria Como os pensadores do período Renascentista utilizaram o legado franciscano para dar forma às várias expressões artísticas Por Francisco Caruso
U Museu do louvre
ma das maiores contribuições do Renascimento Italiano é, em última análise, a mudança do conceito de verdade, e de como buscá-la, com enorme impacto sobre a Arte e a Ciência, entendidas com formas de representação da Natureza. Aos poucos, vai se disseminando a ideia de que se deve observar a natureza tal qual ela é.
Giotto, São Francisco de Assis pregando aos pássaros
No lento processo que caracteriza este riquíssimo período histórico, no qual o que podemos chamar de um genérico estado mental religioso medieval foi sacudido e aparece uma nova orientação para os pensamentos teológico e filosófico-científico, sendo digna de destaque a contribuição de um novo suporte da escrita: o livro impresso. A invenção da imprensa teve, em última análise, um papel na história da ciência e na história das religiões, do momento em que contribuiu para preparar a transição do pensamento medieval ao moderno e para disseminar o conhecimento. A isto se sobrepõe – como resultado desse novo ambiente cultural e intelectual – o aumento da demanda por livros que então se afigurava: esse era o cenário nos albores da imprensa, no qual se começa a construir um novo estado mental que preparará o caminho para o Renascimento e para a Revolução Científica. Entretanto, do ponto de vista da história das ideias, como toda mudança profunda, esta também tem importantes raízes que remontam aos séculos 12 e 13. Na Arte, por exemplo, é fácil notar que o dourado é a cor consagrada do céu medieval, marca da pintura bizantina, que simboliza o quão rico é este lugar para uma cultura essencialmente teocêntrica. O uso em abundância do dourado está associado à riqueza material do ouro. Por um lado, corrobora a ostentação da Igreja naquela época;
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Galeria Nacional de Arte, Washington (D.C.)
por outro, o céu – a morada de Deus e o lugar onde as almas boas desfrutariam da vida eterna – deve ser o que há de mais valioso a ser almejado pelos homens de bem. Portanto, este céu estilizado, dourado, casa da vida eterna, é um céu a ser admirado, a ser contemplado, a ser respeitado. Um exemplo, é a pintura emblemática de Duccio di Buoninsegna (1255-1319), provavelmente o mais influente artista da Siena do seu tempo, contemporâneo de Giotto di Bondone (1266-1337), na qual se destaca o céu completamente dourado. Giotto será o primeiro, neste período, a pintar o céu de azul, sob inspiração franciscana, como veremos a seguir, em um reflexo de uma nova compreensão da Natureza e do próprio homem que começa, então, a se delinear. De fato, São Francisco lança um novo olhar sobre a Natureza, buscando, na simplicidade e na harmonia das coisas, a beleza suprema da obra divina. O homem de Assis é quem vai pregar para os pássaros, como retrata o próprio Giotto, e vai ver, em todas as criaturas e coisas do Mundo, a mão do Criador. Este ato é um ato de amor, um ato integrador: todas as criaturas são expressões da vontade
de Deus. É de São Francisco a ideia de que há outro livro diferente da Bíblia que pode nos levar a Deus: O Livro da Natureza, construído a partir da observação de como realmente ela é. Esta metáfora da Natureza como um Livro será consagrada por autores como Dante Alighieri (1265-1321) e Galileu Galilei (1564-1642). Não por acaso, Giotto é considerado o elo entre a pintura medieval bizantina e a renascentista. Introdutor do espaço tridimensional e da perspectiva na pintura, Giotto, em cuja obra o céu é representado em tons de azul, é fiel a um compromisso com os ideais franciscanos, que refletem uma nova visão mais humanista e realista do Mundo.
Duccio, o chamado dos apóstolos Pedro e André, 1308-1311
Influência franciscana Este legado franciscano vai longe, tangenciando também a Ciência. De fato, é frequente encontrarmos franciscanos que se dedicaram a estudos científicos. Podemos citar Roger Bacon (1214-1294) que, por volta de 1240, ingressou para a Ordem Franciscana, sob influência de Robert Grosseteste (1168-1253), e dedicou-se a estudos nos quais introduziu a observação da natureza e a experimentaleituras da história | 61
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biblioteca britânica harley
Arte | Renascimento
Representação antiga do Mundo de Ptolomeu
Fase inventiva
Web Gallery of Art
Dürer, um homem desenhando um instr umento musical utilizando a perspectiva
ção como fundamentos do conhecimento natural. Na verdade, ele foi além de seu tutor, afirmando que o método científico depende de observação, da experimentação, da elaboração de hipóteses e da necessidade de verificação independente. Também o nominalismo de William de Ockham (12801349) tem raízes franciscanas. Os nominalistas vão tender a considerar apenas a causa eficiente de Aristóteles como a única necessária para explicar o Mundo e não se pode negar que este será, mais tarde, o fulcro da Mecânica desenvolvida por Isaac Newton (1643-1727). Um dos primeiros filósofos renascentistas, o cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464) dá, com seu pensamento, importante contribuição ao processo de transição da Idade Média para o Renascimento. Além de ter sido um dos primeiros a questionar o modelo ptolomaico geocêntrico do mundo, per-
cebeu que em tudo havia Matemática e que esta deveria ser a linguagem da Ciência. No que se refere a esta compreensão ainda embrionária de um novo método científico – que só vai se consolidar com Galileu – é ela que, em última análise, irá libertar de vez a Ciência, e em particular a Astronomia, de todo um conjunto de atitudes cerceadoras, impostas pela representação sistemática do céu dourado. Assim, há autores que consideram Nicolau Copérnico (1473-1543) um divisor de águas, como Alexandre Koyré (1892-1964). Para o grande Leonardo da Vinci (1452-1519), tanto a Arte como a Ciência são provenientes da natureza, produzidas pela imaginação e pela razão, respectivamente. E tanto a razão como a imaginação seriam tomadas como diferentes maneiras de o homem criar e dar forma. Assim, Leonardo quis mostrar que a razão e o experimento são etapas do mesmo processo, o do descobrimento do saber científico, incluindo a busca da evidência empírica. É este conceito e entendimento do ato de produzir o conhecimento científico que vai guiar todos os seus adeptos e contemporâneos do movimento renascentista. Leonardo via na experimentação, um instrumento de honestidade intelectual. Podemos adiantar que Galileu Galilei condivide esta opinião quando o vemos afirmar, em seu famoso Diálogo, de 1632, que “nas ciências naturais, cujas conclusões são verdadeiras e necessárias e não têm qualquer relação com o arbítrio humano, é preciso precaver-se para não se colocar em defesa do falso (...)”.
A última raiz do Renascimento à qual queremos aludir é a retomada de interesse pelos estudos de Geometria. Há, de fato, um crescente atrativo pela Geometria nos últimos séculos da Idade Média, associado, em uma primeira fase, ao desenvolvimento de uma tecnologia entre os séculos 11 e 19, notadamente: a invenção do moinho de vento, aperfeiçoamentos náuticos e a construção das catedrais; em uma fase seguinte, haverá uma retomada de interesse por este ramo da Matemática no meio artístico e acadêmico, na pintura do Renascimento Italiano, e na Astronomia, através de Copérnico, Kepler e Galileu. Não é por acaso que, no século 15, o livro Os Elementos da Geometria, de Euclides, figurava entre as obras mais procuradas pelos scholars. Platão havia operado o que muitos autores denominam de “a primeira geometrização da Física”.
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Particular de um afresco de Masaccio, de cerca de 1451, Urbino, Itália
Em sua filosofia, procurava identificar os corpos físicos com o mundo das formas geométricas. O mundo perfeito das ideias, no qual a physis é representada, é para Platão o mundo da Geometria. Do ponto de vista epistemológico, o programa platônico de valorizar a ciência, a epistheme, e de combater a opinião, a dóxa, leva, simultaneamente, à sedimentação do pensamento geométrico e à crítica severa da cultura oral, representada pelos Sofistas e pelos Poetas. A Geometria era vista como parte essencial da formação dos filósofos, ao ponto de se propagar o fato de que Platão teria mandado escrever na porta de sua Academia algo como “proibida a entrada a quem não conhece Geometria”. É digno de nota que a invenção da imprensa é contemporânea a uma tendência de se geometrizar a pintura, evidente na obra de Masaccio (14011428), Piero della Francesca (1416-1492), Rafaello Sanzio (1483-1520) e outros, marcada pela perspectiva (Fig. 4). Esse fato reflete uma nova propensão de representar o mundo no espaço pictórico, no qual a tela não é mais somente um suporte de uma arte simbólica bidimensional, mas algo que pode dar vida e significado ao espaço perceptivo tridimensional por meio da perspectiva. Tal movimento espelha um novo tipo de relação do homem com o mundo, presságio da ruptura com o pensamento medieval, que não deve ser entendido como um fato cultural isolado; na realidade,
Flagelação de Cristo de Piero della Francesca
Galeria Nacional de Marcas. Urbino
Santa Maria Novella, Florença - Itália
preanuncia o início daquilo que podemos chamar de “a segunda geometrização da Física”. Um dos primeiros inovadores da época, com relação à complementaridade da arte com a matemática, foi Masaccio. Ele foi o responsável pelas primeiras obras feitas em perspectiva, tal qual a conhecemos hoje, nas quais conseguiu criar com perfeição a ilusão de profundidade e traduzir em imagens planas algo que nunca antes tinha sido alcançado (a tridimensionalidade do mundo). Um exemplo é o quadro Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca. Um observador acostumado a decodificar apenas quadros medievais, nos quais os artistas recorriam a uma série de simbolismos, teria muita dificuldade em enterder por que o Cristo é menor do que os demais personagens. Nossa mente, acostumada com o uso da perspectiva na pintura, imediatamente conclui que o tamanho é uma simples consequência do fato de o Cristo estar em um plano no fundo da cena. Linhas do teto e do chão, confluentes para um ponto, são a pista para essa leitura do quadro. Isto nada tem a ver com quem é o personagem mais importante do quadro. O céu azul e o chão quadriculado de mármore, parecido com um tabuleiro de damas, também deve ser observado. Tal representação é recorrente na pintura deste período e alude ao espaço euclidiano, plano e homogêneo, espaço este que será também adotado pela Física pós-aristotélica. Em uma das pinturas mais famosas do Renascimento, afresco encomendado pelo Vaticano, a
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Royal Society
Escola de Atenas de Rafael
Frontespício da obra maior de Copérnico publicada em 1543
“Escola de Atenas” de Rafael, existe a representação de filósofos e pensadores de diversas épocas dividos em grupos de estudiosos em torno de Platão e Aristóteles que estão no centro. O ponto que nos interessa comentar aqui é uma espécie de declaração pública de Rafael sobre a importância da Geometria. De fato, ele próprio se inclui no grupo do primeiro plano à direita, que estuda Geometria com Euclides, Ptolomeu e outros. Afinal, o quadro representa a Academia de Platão. Você se lembra da frase que Platão mandou afixar na entrada? Pois então, no frontespício da edição de 1543 da obra maior de Copérnico sobre o movimento das estrelas fixas e dos planetas, por exemplo, se antepõe uma advertência escrita em grego (assinalada em amarelo), de cunho platônico: ninguém não treinado em geometria deve entrar naquele livro. Declaração análoga é encontrada no frontespício da primeira obra impressa de Kepler, de 1596. Mais tarde, Galileu lança as bases do método científico moderno, associando, de modo indissolúvel, o conhecimento empírico
e a Matemática, em particular, a Geometria, referindo-se à Geometria como a linguagem do Livro da Natureza. No “novo mundo” da Ciência, que começou a se delinear com Copérnico, Galileu foi o primeiro astrônomo a utilizar o telescópio em toda a sua potencialidade, o que o levou a observar as crateras da Lua e os satélites de Júpiter. É importante destacar que uma cultura na qual se pinta o céu de dourado é incapaz de produzir a revolução copernicana, de descobrir as imperfeições da lua, como fez Galileu. Só o céu azul pode ser escrutinado com uma luneta (ou, mais tarde, com um telescópio), tornando-se objeto de um olhar investigativo, questionador e de estudos empíricos. É o céu da nova Física, da nova Astronomia. Mais tarde, Newton sustentou que a Geometria não é um sistema de proposições puramente hipotético, dedutível logicamente de axiomas e definições; ao contrário, não é outra coisa senão uma espécie de ramo da Mecânica. Paralelamente a essa escalada do pensamento geométrico no Renascimento, nasce uma crise na Ciência. Do momento em que Copérnico anuncia que a Terra não é mais o centro do Mundo, é introduzida uma inconsistência: en-
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Palácio Apostólico, Vaticano
Arte | Renascimento
O Renascimento O Renascimento, movimento que teve origem na Itália, entre os séculos 15 e 17, representou uma transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Diversos fatores e transformações, tanto sociais quanto técnicos, propiciaram o seu surgimento. A ascensão da classe burguesa foi um deles, pois contribuiu para o acúmulo de capital nas cidades, onde investimentos em novas áreas, tais como a da educação, foram realizados. A invenção da imprensa, o declínio do feudalismo, os Descobrimentos e a Reforma também foram imprescindíveis para dar o impulso de partida para as mudanças intelectuais, traduzindo-se em uma notável mudança na forma de pensar do homem.
Pródromo de um livro de Kepler publicado em 1596
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Para saber
PRoJeto GAlileu
desenhos da lua destacando suas imperfeições, feitos pelo próprio Galileu
quanto o mundo terrestre (sublunar) continua a ser descrito pela física aristotélica, a nova astronomia é antiaristotélica. Essa crise se relaciona à questão do espaço físico e sua solução requer a reunificação da Física e da Astronomia. Foi Newton quem a resolveu, explicando a dinâmica dos corpos celestes e terrestres por meio de uma teoria universal da gravitação, introduzindo o conceito de espaço absoluto e adotando um novo sistema explicativo causal. Assim, Newton conseguiu finalmente conciliar uma teoria do movimento com a identificação do espaço com Deus, coisa que nenhuma teoria física medieval foi capaz de alcançar. Mas se Deus não é mais a causa do movimento é necessário introduzir outro conceito responsável pela origem do movimento: o de força. No que se refere, entretanto, à compreensão física do mundo, o mecanicismo é o corpus que dominará o cenário científico-filosófico até o início do século 20, mas isto é outra história.
AtAlAy, bülent. A Matemática e a Monalisa. São Paulo: Mercuryo editora, 2007. cARuSo, Francisco & XAvieR, Roberto Moreira. “A Física e a Geometrização do Mundo: construindo uma cosmovisão científica”, in: Jenner barreto bastos Filho; Nádia Fernanda Maia de Amorim; vinicius Nobre lages (orgs.): Cultura e Desenvolvimento: A Sustentabilidade Cultural em Questão. Recife: eduFPe, 1999, p. 85-106. cASSiReR, ernest. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2001.
FRanCisCO CaRUsO é físico, pesquisador
titular do centro brasileiro de Pesquisas Físicas, professor associado da ueRJ, membro do Programa de história das ciências e das técnicas e epistemolgia da uFRJ e membro do PeN club.
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GENTE e Sociedade
N
o dia 3 de abril de 1946, o mundo conheceu a trágica história de Annelisse Maria Frank, mais conhecida como Anne Frank, uma adolescente alemã de origem judaica, morta aos 15 anos em um campo de concentração. Por meio do diário que ganhou do seu pai, o relato da adolescente se transformou num comovente testemunho do terror nazista. Nele, a jovem registrou fatos da vida de uma adolescente. Pouco a pouco, Anne começou a escrever sobre as dificuldades enfrentadas pelos judeus por causa da ocupação nazista. Na manhã de 4 de agosto de 1944, a polícia nazista invadiu o esconderijo onde estava com sua família. Ela e os parentes foram levados para o campo de Auschwitz, na Polônia. O pai da garota, Otto Frank foi o único membro da família que sobreviveu às atrocidades. Sobre a adorável Anne Frank, primo Leví dizia que “Uma única Anne Frank nos emociona mais do que milhares de outros que sofreram tanto quanto ela, mas cujos rostos permaneceram na sombra. Talvez seja melhor desta forma, pois, se tivéssemos que absorver o sofrimento de todas essas pessoas, seria impossível continuarmos a viver”.
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