Defesa & Fronteiras: novos estudos e perspectivas temáticas

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DEFESA & FRONTEIRAS NOVOS ESTUDOS E PERSPECTIVAS TEMÁTICAS

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CONSELHO EDITORIAL Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Luiz Carlos de Souza Auricchio

André Luís Vieira Elói

Marcelo Campos Galuppo

Bruno de Almeida Oliveira

Marcos Vinício Chein Feres

Bruno Camilloto Arantes

Maria Walkiria de Faro C. G. Cabral

Bruno Valverde Chahaira

Marilene Gomes Durães

Cintia Borges Ferreira Leal

Rafael Alem Mello Ferreira

Flavia Siqueira Cambraia

Rafael Vieira Figueredo Sapucaia

Frederico Menezes Breyner

Rayane Araújo

Jean George Farias do Nascimento

Régis Willyan da Silva Andrade

José Carlos Trinca Zanetti

Renata Furtado de Barros

José Luiz Quadros de Magalhães

Robson Araújo

Leonardo Avelar Guimarães

Rogério Nery

Ligia Barroso Fabri

Vitor Amaral Medrado

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Copyright  2020 by Editora Dialética Ltda. Copyright  2020 by Samuel de Jesus, Viviane Machado Caminha, Luiz Olavo Martins Rodrigues, Dirce Sizuko Soken, Gilberto de Souza Vianna, Leila Bijos, Eduardo Rizzatti Salomão, Maurício Kenyatta Barros da Costa, Flavio Neri Hadmann Jasper, Ádria Saviano Fabricio da Silva e César Augusto Silva da Silva.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.

Capa: Pedro Henrique Azevedo Diagramação: Pedro Henrique Azevedo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Mariana Brandão Silva CRB-1/3150

D313f

Defesa e Fronteiras : novos estudos e perspectivas temáticas / organização Samuel de Jesus. – 1. ed. – Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020. 236 p. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5877-017-6 1. Fronteiras. 2. SISFRON. 3. Segurança Internacional do Brasil. I. Jesus, Samuel de. II. Título. CDD 320.12 CDU 314.9:911.3

/editoradialetica @editoradialetica www.editoradialetica.com

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SOBRE OS AUTORES Samuel de Jesus. É Doutor em Ciências Sociais pela UNESP, professor Adjunto III da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e autor do livro Ecos do Autoritarismo. A Ditadura Revisitada. Editora Oeste, (2019) e organizador do Livro: A Integração Sul-Americana: o caso de Brasil e Peru. Editora UFMS (2020). Contato: samuel.jesus@ufms.br // samueldj36@yahoo.com.br Viviane Machado Caminha. Doutora em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia (HCTE) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É Professora Adjunta na Escola Superior de Guerra (ESG - campus Brasília), com pesquisa voltada para temas em Defesa e Defesa Nacional em perspectiva histórica, bem como para estudos sobre a temática Educação e Ensino de Defesa no Brasil. Contato: vivianecaminha@gmail.com Luiz Olavo Martins Rodrigues. Oficial da Reserva da Arma de Comunicações do Exército Brasileiro. Doutor em aplicações, planejamento e estudos militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Especialista em Política Estratégica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ. Atualmente, exerce a função de assessor do Chefe do Centro de Coordenação de Operações do Comando Militar do Oeste para assuntos do SISFRON (Campo Grande - MS). Contato: luizolavo.mr@bol.com.br Dirce Sizuko Soken. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo, área de concentração Geografia Humana. Mestrado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal de Uberlândia e Graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. É professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal com atuação na área de Teoria Econômica, com ênfase em Economia Política Internacional. Contato: dirce.soken@ufms.br Gilberto de Souza Vianna. Pesquisador Associado IESP-UERJ. Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2001). Possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1993) e Economia pela Universidade Gama Filho. Fundador do LEPDESP, Laboratório de Pesquisa em Defesa e Segurança Pública. Atualmente, é oficial da reserva do Exército, conferencista e membro do corpo permanente da Escola Superior de Guerra. Contato: gilberto.souzavianna@gmail.com

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Leila Bijos. Doutora em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade de Brasília (2004). Professora Visitante do Programa de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Analista de Estudos Geoestratégicos, Coordenadora de Pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEEx). Atua como pesquisadora na área de Empreendedorismo, Internacionalização de Programas Curriculares. Bolsista da CAPES, Programa Fulbright, AIDA/Azerbaijão, Vice-Presidente da Lusophone Studies Association, Canadá. Contato: leilabijos@gmail.com Eduardo Rizzatti Salomão. Doutor em História Social pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos (IMM). É membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG). Contato: salomao.edu@gmail.com Maurício Kenyatta Barros da Costa. Doutorando Bolsista CNPq em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e membro do GEPSI-UnB. Contato: mauriciodfgo@gmail.com Flavio Neri Hadmann Jasper. Professor titular das disciplinas Teoria do Poder Aeroespacial e Pensamento Estratégico Militar da Universidade da Força Aérea (UNIFA). Mestrado e Doutorado em Ciências Aeroespaciais pela UNIFA; graduado em Ciências Econômicas (UFSC); pós-graduado lato sensu em Energia (Coppe-RJ) e em Orçamento (FGV). Contato: fnhjasper@gmail.com Ádria Saviano Fabricio da Silva. Graduada do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS e voluntária da Cruz Vermelha Brasileira Filial Mato Grosso do Sul. Contato: adriafabricio18@gmail.com César Augusto Silva da Silva. Professor adjunto da Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande, e professor do Mestrado Interdisciplinar Fronteiras e Direitos Humanos da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD, em Dourados-MS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, atuando principalmente nos seguintes temas: refugiados, migrações internacionais, direitos humanos, direito internacional, cidadania e relações internacionais. Contato: cesar.a.silva@ufms.br

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“As ideias, pontos de vista e opiniões deste texto expressam o pensamento de seu autor, sendo de sua inteira responsabilidade, não representando necessariamente posições oficiais de qualquer órgão ou entidade do governo brasileiro”.

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SUMÁRIO

1. ENSINO, EDUCAÇÃO E O CAMPO DOS ESTUDOS DE DEFESA NO BRASIL: UMA FRONTEIRA A SER SUPERADA. - VIVIANE MACHADO CAMINHA

13

REFERÊNCIAS

25

2. SISFRON, UMA FERRAMENTA DA EXPRESSÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA. - LUIZ OLAVO MARTINS RODRIGUES

27

1. INTRODUÇÃO

27

2. CONCEPÇÃO DO SISFRON

28

3. O PROJETO PILOTO

32

4. O SISFRON E AS EXPRESSÕES DO PODER NACIONAL

34

a. Expressão Psicossocial

34

b. Expressão Militar

38

c. Expressão Política

40

d. Expressão econômica

44

e. Ciência e Tecnologia

46

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

49

REFERÊNCIAS

51

3. O COMÉRCIO POPULAR TRANSFRONTEIRIÇO - DIRCE SIZUKO SOKEN

53

INTRODUÇÃO

53

METODOLOGIA

54

NUANCES E PERSPECTIVAS DO COMÉRCIO POPULAR DA CALLE 12 DE OCTUBRE E ARREDORES

59

CONCLUSÕES

66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

69

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4.A LÓGICA DO ILÍCITO E AS REDES CRIMINAIS: MATO GROSSO DO SUL E AS ROTAS TRANSNACIONAIS DOS CRIMES ORGANIZADOS-GILBERTO SOUZA VIANNA

73

UM NOVO CAMINHO DO PEABIRU: CAMINHOS DO MATO GROSSO DO SUL

75

A ANÁLISE DE REDES CRIMINAIS

79

UM PEQUENO COMENTÁRIO SOBRE METODOLOGIA DE ANÁLISE DE REDES SOCIAIS COM O SOFTWARE OPEN SOURCE

81

NA FORMAÇÃO DA REDE SOCIAL, AS COMUNIDADES DE INTERESSE NO CRIME

82

CONSIDERAÇÕES FINAIS

84

REFERÊNCIAS

87

5. VULNERABILIDADES ESTATAIS: CRIMINALIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA - LEILA BIJOS

89

INTRODUÇÃO

89

1. MUDANÇAS ATUAIS E FUTURAS: IMPACTOS SOCIAIS

91

2. NOVAS TECNOLOGIAS NO MERCADO DE TRABALHO

95

3. BLOCOS REGIONAIS E INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS

103

4. IMPACTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NA REGIÃO DE FRONTEIRAS

105

5. INTEGRAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA: POLÍTICAS DE SEGURANÇA

108

5.1 Corredor de Armas e Tóxicos

109

5.2 Inteligência Estratégica

111

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

112

REFERÊNCIAS

115

6. ORDEM PÚBLICA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA COMPARADA: CONFRONTANDO A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO BRASILEIRO NO CONTESTADO E NO RIO DE JANEIRO - EDUARDO R. SALOMÃO

119

INTRODUÇÃO

119

A REBELIÃO DO CONTESTADO

123

CONTESTADO E RIO DE JANEIRO

126

PROFISSIONALISMO MILITAR

132

CONSIDERAÇÕES FINAIS

134

REFERÊNCIAS

137

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7. O CASO DA FRONTEIRA BRASILEIRA NA ANÁLISE CONCEITUAL DA SEGURANÇA INTERNACIONAL DO BRASIL - MAURÍCIO KENYATTA BARROS DA COSTA 141 INTRODUÇÃO

141

OS ESTUDOS DE SEGURANÇA INTERNACIONAL (ESI)

143

O CONCEITO DE SEGURANÇA À LUZ DO BINÔMIO INTERNO-EXTERNO NAS ABORDAGENS TRADICIONAIS DAS RI E DA SI

145

O CONCEITO DE SEGURANÇA À LUZ DO BINÔMIO INTERNO-EXTERNO NAS ABORDAGENS CRÍTICAS E ABRANGENTES DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

147

OS CONCEITOS BRASILEIROS DE SEGURANÇA E DEFESA

152

AS FRONTEIRAS BRASILEIRAS NAS POLÍTICAS DE DEFESA NACIONAL

155

POLÍTICA NACIONAL DE DEFESA (PND)

156

A ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA (END)

159

CONCLUSÃO

160

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

163

8. A INTERFACE ENTRE A POLÍTICA DE DEFESA E A POLÍTICA EXTERNA - FLAVIO NERI HADMANN JASPER 167 INTRODUÇÃO

167

1. O ESTADO COMO RESPONSÁVEL POR POLÍTICAS PÚBLICAS

168

2. POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA

174

CONCLUSÃO

181

REFERÊNCIAS

183

9. A LEGITIMIDADE DAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU SOB A ÉGIDE DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E O PROTAGONISMO BRASILEIRO: UMA NOVA PERSPECTIVA. - ÁDRIA SAVIANO FABRICIO DA SILVA & CESAR AUGUSTO SILVA DA SILVA

187

INTRODUÇÃO

187

1 PAZ E SEGURANÇA COMO UNIDADE DE SIGNIFICADO

188

2 AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU

189

2.1 A aplicação do Direito Internacional Humanitário a contextos de intervenção: a legislação internacional

192

2.2 A legitimidade e a responsabilidade de proteger quando confrontadas

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à não-intervenção e à soberania: conceitos

193

2.3 Definição dos critérios de análise das Operações de Manutenção da Paz

196

3 A INSERÇÃO DO BRASIL COMO MANTENEDOR DA PAZ

198

3.1 O modus operandi do Brasil nas Operações de Manutenção da Paz e a atuação dos peacekeepers brasileiros

198

CONSIDERAÇÕES FINAIS

201

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

205

10. A TRAJETÓRIA DA PESQUISA SOBRE MILITARISMO E DEFESA NACIONAL NO BRASIL: O CASO DA ABED. - SAMUEL DE JESUS

209

ETHOS CIVIL E MILITAR

209

ESTUDOS SOBRE OS MILITARES

211

OS ANOS 2000: INFLEXÃO NOS ESTUDOS SOBRE OS MILITARES E A CRIAÇÃO DA ABED.

213

CONSIDERAÇÕES FINAIS

229

REFERÊNCIAS

233

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1 ENSINO, EDUCAÇÃO E O CAMPO DOS ESTUDOS DE DEFESA NO BRASIL: UMA FRONTEIRA A SER SUPERADA.

Viviane Machado Caminha Como palavras iniciais, importa destacar a utilização do termo “fronteira”. Historicamente, a problemática da fronteira foi palco de diversos capítulos de nosso desenvolvimento, sendo dotada de diferentes p'ercepções. Tradicionalmente foi inserida a partir da noção de meio de conquista e área de disputa, tendo por base o princípio romano do uti possidetis e o princípio do elemento natural (fronteira natural). No entanto, em função de demandas de grupos, outros significados foram incorporados a esse conceito ao longo do tempo. A título de ilustração e sem esgotar o assunto, destaco as noções de fronteira como elemento cultural (Sérgio Buarque de Holanda, 1936), espaço não estruturado (Bertha Becker, 1980), lócus de conflito (José de Souza Martins, 1997) e pela perspectiva da volatilidade (Antônio Cláudio Rabello, 2016). A participação em um evento cuja temática central gira em torno do tema “As fronteiras do centro-oeste no contexto da Política de Defesa Nacional”, pressupõem, em um olhar inicial, o uso do conceito territorial de fronteira. Entretanto, os apontamentos aqui feitos partem de uma percepção que compreende “fronteira” enquanto elemento não físico ou palpável. Porém, capaz de delimitar e distinguir uma área, no caso, o campo do ensino e educação, sobretudo, naquilo que se relaciona à temática Defesa. Desse modo, o objetivo é promover uma reflexão sobre o espaço que o ensino e a educação ocupam nas discussões sobre Defesa no país. Para tanto, foram levantadas questões entendidas como pertinentes para reflexão sobre a inserção dessa temática no campo dos estudos de defesa. 13

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Viviane Machado Caminha

Importa inicialmente refletir sobre o montante de produção em pesquisa que se materializa em temas de dissertações e teses na área. Em busca realizada em setembro de 2019, o Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no período de 2014 a 2018 e utilizando o termo indutor “Defesa Nacional”, revelou um total de 321 resultados. Destes, 217 títulos oferecem contribuição direta para a área, estando distribuídos da seguinte forma1: Gráfico 1 – Distribuição anual do quantitativo de Teses e Dissertações.

Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações – CAPES, 2019. Elaboração da autora.

Essa distribuição sinaliza para o crescimento e visibilidade dos estudos de defesa, revelando um enorme manancial de conhecimento que inclui pesquisas desde “A construção do processo decisório de alocação orçamentária para operações de paz do Ministério da Defesa” até “Os símbolos e rituais da brigada de infantaria paraquedista: influências, permanências e rupturas”. No entanto, esse dado também aponta para a necessidade de refletir sobre o destino daqueles que se especializaram na área, tendo em vista a impossibilidade de ingresso na carreira 1

Não foram contabilizados os títulos de trabalhos que possuíam o mesmo recorte temporal estabelecido como filtro na pesquisa do termo indutor, mas que foram finalizados em ano diferente. Dessa forma, para o ano de 2014 não contaram 9 trabalhos; 2015 (9); 2016 (6), 2017 (2) e 2018 (1).

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civil de defesa. Tal fato aparece, sem dúvida, como uma das falhas na condução da política de defesa no Brasil, dificultando o fomento para a formação de uma cultura democrática de defesa (WINAND; SAINT-PIERRE, 2010). Além disso, mesmo com a criação do Ministério da Defesa (1999) tendo inaugurado uma nova era das relações civis-militares no país, a baixa presença de civis em sua composição é vista como fator que contribui para o desinteresse da sociedade pelo tema. Pois, o “debate nacional apenas limitou-se a convidar alguns expertos, escolhidos pelos próprios militares ou com sua anuência, para proferir conferências intramuros” (WINAND; SAINT-PIERRE, 2010: 05). O segundo ponto que merece atenção, se relaciona com uma experiência vivenciada durante aulas na pós-graduação em defesa na Escola Superior de Guerra (ESG). Cabe destacar que a atuação da ESG se constitui em eixo de ação estratégica, previsto na END (2016), cabendo a esta a consolidação como “instituição nacional acadêmica, nos campos do ensino, da pesquisa e da formação de recursos humanos sobre pensamento de defesa” (END, 2016: 43). O Curso de Altos Estudos em Defesa (CAED) contou, em sua segunda edição no ano de 2019, com 77 discentes distribuídos da seguinte forma: 42 militares provenientes das três forças, 32 civis e 3 estrangeiros de nações amigas - Argentina, Peru e Venezuela. Ao longo de 10 meses foram ofertadas disciplinas que ocorreram de forma simultânea ou em blocos de conteúdo de uma única disciplina, sem interação com as demais. Ao final do período de aulas de cada uma das nove disciplinas que compõem o currículo, e buscando o aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem, os discentes são convidados a responder pesquisa expondo sua opinião sobre a disciplina, conteúdo e desempenho docente dos profissionais do corpo permanente e de palestrantes convidados. O relatório da disciplina “Evolução Política do Estado Brasileiro (EPB)” se constituiu em apontamento sobre o ponto proposto para reflexão acima mencionada. Com o objetivo de analisar a influência da trajetória do Estado brasileiro na formulação de políticas e estratégias em torno dos conceitos de identidade e defesa em perspectiva histórica, a avaliação geral da disciplina foi concluída com 75% dos discentes considerando-a excelente e 25% muito bom. Em sua terceira unidade de estudo, “A historicidade da relação Estado e Defesa Nacional”, a disciplina recebeu, em uma das aulas, a participação de professor convidado 15

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Viviane Machado Caminha

externo (palestrante), incumbido de abordar o tema “20 anos de Ministério da Defesa no Brasil: perspectivas e desafios”. Para ministrar essa aula foi convidado docente da Universidade de Brasília (UnB) com estudos voltados, entre outros aspectos, para teoria de relações internacionais, processo decisório em política externa e segurança e defesa. Sua apresentação foi iniciada com a informação de que trazia para aquela explanação considerações e dados apresentados quando de sua participação em evento internacional no ano anterior. Apoiado em literatura especializada, o docente conduziu a aula abordando os seguintes pontos: as principais funções de um Ministério da Defesa, o processo orçamentário, sobretudo, o orçamento de defesa com pessoal e para investimento nas forças, estudos comparativos sobre o tamanho do contingente militar ativo em países como Brasil, França, Reino Unido e Itália, a composição do MD na França, Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, a forma como se estabeleceu a racionalização da defesa nesses países, o controle civil e a realidade de desvio de função da missão das Forças Armadas no Brasil. Da avaliação feita pelos discentes, o conteúdo trazido obteve o seguinte resultado: Tabela 1 - Relatório EPB CAED 2019. EIXO TEMÁTICO III: A historicidade da relação Estado e Defesa Nacional DOCENTE

Excelente

Muito Bom Bom

Regular

Ruim

Palestrante Externo

15%

15%

41%

5%

24%

Fonte: Relatório EPB CAED 2019. Elaboração da Coordenação Pedagógica.

Conforme se percebe 46% dos discentes consideraram a aula do professor externo regular ou ruim, tendo por base as seguintes justificativas: A palestra fugiu ao tema proposto. Para se falar do MD, nada mais coerente e apropriado do que se chamar alguém do próprio MD, que tenha domínio de conhecimentos sobre o momento e as circunstâncias políticas de quando o MD foi criado, disputas e diferenças de opiniões que dominaram a narrativa à época, etc. Na história do MD, pode-se falar das consequências das correntes de pensamento que dominaram a condução do Ministério ao longo dos governos que dirigiram o País no período, dos projetos nos 16

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quais o MD está envolvido, das contribuições e interações internacionais do MD etc. Enfim, o palestrante entrou por uma área que pareceu não ter todo domínio e acabou se defrontando com especialistas no assunto sentados na plateia, qual seja, orçamento. Aplicou a maior parte de seu tempo enfocando este tema e não abordou tantos outros que fariam muito mais sentido face ao título da palestra: 20 Anos do Ministério da Defesa no Brasil: Perspectivas e Desafios. Ninguém melhor do que alguém que está dentro do MD para falar do que se está pensando para os próximos anos, talvez o próprio ministro. Rever alguns palestrantes. Devem colocar slides com dados mais atualizados na apresentação. A comparação entre países profundamente diferentes em termos geopolíticos, econômicos, culturais e militares (Brasil, França e Itália) não foi devidamente cuidadosa e levou a diversos questionamentos por parte dos alunos. A visão de “militarização” do MD também não foi bem aceita pelos alunos, por parecer ter um viés mais político que técnico. O professor, apesar de conhecer o assunto, passou a impressão de estar desatualizado da realidade do MD. A condução do professor não acompanhou a expectativa sobre o assunto. Sugere-se que essa palestra seja proferida pelo Ministro da Defesa, como tratado anteriormente. Sugiro trocar a palestra do professor por alguém de dentro do MD. Assim poderíamos ter uma melhor visão do que foi apresentado (Relatório EPB, CAED, 2019).

Da análise das justificativas discentes depreende-se de início o questionamento sobre o lugar de fala do professor, ou seja, a percepção do capital intelectual para argumentação na área. Embora este possuísse todas as credenciais de qualificação, apontamentos feitos por membros da turma destacaram que o tema em questão deveria ser apresentado por alguém de dentro do MD ou mesmo pelo próprio Ministro da Defesa, este sim revestido de autoridade e conhecimento suficientes na área. Outro ponto perceptível é o da confrontação dos dados trazidos pelo professor com a expertise dos “especialistas no assunto”. Pelo fato de alguns discentes ocuparem cargos no MD, entenderam que teriam conhecimento superior, sobretudo no que se referiu a questão orçamentária e de pessoal, em relação aos dados apresentados pelo professor. Essa percepção ignora por completo o fato de que, exatamente por fazerem 17

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Viviane Machado Caminha

parte da instituição, o discurso e a forma de pensar e agir reverberam envolvimento afetivo, desembocando em visões e preleções de cunho institucional, com pouca, e não raras vezes, nenhuma perspectiva crítico-reflexiva. Para o caso dos discentes militares, o processo de internalização dos valores das forças, ao longo de todo o processo formativo, se configura em fator de reforço do entendimento de que ser militar pressupõem necessariamente conhecer todas as questões que envolvem o campo da defesa. Um último apontamento a se ressaltar é a ênfase dada pelo professor externo a chamada “militarização do MD”. Para os discentes a afirmação do quantitativo elevado de militares no MD se traduziu em uma perspectiva política e não técnica. Esse apontamento permite refletir sobre a visão que, em alguma medida, a caserna guarda do mundo civil, além de evidenciar que constatações dessa natureza invariavelmente são compreendidas pelo binômio provocação/agressão. Por fim, é necessário registrar que para justificar a superioridade numérica de militares atuando no MD, é comum que estes sinalizem que sua ocorrência se relaciona à carência de servidores civis qualificados. Justificativa essa que poderia ser resolvida a partir da vontade política em efetivar a carreira civil de defesa na instituição. A terceira questão relevante para a reflexão sobre o distanciamento entre ensino, educação e estudos de defesa no Brasil diz respeito ao espaço que essas categorias ocupam em trabalhos ou discussões realizadas nos encontros nacionais promovidos pela Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), conforme tabela abaixo: Tabela 2 – ENABED X Ensino, Educação e Defesa. ENABED

LOCAL

ENSINO, EDUCAÇÃO E DEFESA

I ENABED (2007)

São Paulo

-

II ENABED (2008)

Niterói

Mesa redonda “Educação, Ciência e Tecnologia: a Cooperação Civil-Militar”

III ENABED (2009)

Londrina

Mesa redonda “Estudos Estratégicos como campo de ensino e de pesquisa”

IV ENABED (2010)

Brasília

Seção temática “Educação e Formação Militar”

18

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Defesa & Fronteiras

V ENABED (2011)

Fortaleza

Dois Simpósios Temáticos: “Educação e Formação Militar” e “Educação, Doutrina Militar e Regimes Políticos”

VI ENABED (2012)

São Paulo

Não trouxe nomenclatura para os simpósios temáticos, mas a análise do conteúdo dos anais do evento apontou para a existência de pesquisas sobre os desafios para o ensino militar

VII ENABED (2013)

Belém

Simpósio Temático “Estudos de Defesa e Sociedade”

VIII ENABED (2014)

Brasília

Simpósio Temático “Educação e Profissão Militar: debates e perspectivas”

XI ENABED (2016)

Florianópolis Área temática “Ensino, Formação Profissional e Pesquisa em Defesa”

X ENABED (2018)

São Paulo

Área temática “Ensino, Formação Profissional e Pesquisa em Defesa”

Fonte: Anais eletrônicos ENABED, 2007-2018. Elaboração da autora.

Da análise dos anais dos Encontros Nacionais da ABED, se percebeu um esforço no sentido de inserir a temática do ensino/educação de defesa, a partir de iniciativas como palestras em mesas redondas e apresentação de trabalhos em simpósios ou áreas temáticas. Entretanto, ficou evidente que esse tema ainda é percebido, predominantemente, na esfera do ensino militar, principalmente no que se refere a doutrina, formação de quadros e profissionalização. A constatação dessa percepção reduz em muito as possibilidades de análise provenientes do campo do ensino e da educação voltados para a área da defesa. Na proposição de um cenário mais abrangente e que objetiva compreender a relação entre as categorias “Ensino”, “Educação” e “Defesa”, pesquisas baseadas, por exemplo, na análise curricular de pós-graduações stricto sensu brasileiras, que têm defesa como área central ou linha de pesquisa, podem contribuir para o entendimento, a partir de um diagnóstico raio-x, do que se ensina e forma nessa área em perspectiva comparada. Também, tem potencial o desenvolvimento de investigações sobre as possibilidades e modalidades de inserção da temática defesa no sistema educacional nacional, contribuindo diretamente para a “promoção da temática de defesa na educação”, conforme postulou a Estratégia Nacional de Defesa (2016: 43). Ou ainda, a elaboração de 19

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Viviane Machado Caminha

estudos sobre mecanismos para o envolvimento da sociedade em assuntos ligados à defesa, em consonância com o oitavo objetivo da política Nacional de Defesa, que figuram como ações com potencial decisivo de impacto na formulação de políticas e programas para a área. Uma última questão a se destacar dentro da proposta desse texto se relaciona a ideia de “educação de defesa” que aparece nos documentos oficiais da área como, por exemplo, a Estratégia Nacional de Defesa (END), 2016. Uma rápida investigação revela que carecemos da formulação de uma política educativa para o conhecimento de questões atreladas tanto a Segurança, quanto a Defesa tal qual existe em países como Portugal, Espanha, França e Reino Unido, conforme tabela abaixo: Tabela 3 – Educação para Segurança e Defesa em países europeus. EDUCAÇÃO PARA SEGURANÇA E DEFESA PORTUGAL

ESPANHA

Eixo: Educação para Cidadania

Eixo: Educação para Cidadania

Programa: Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz

Programa: Educação para a Cidadania, a Defesa, Compromisso Cívico e Solidário ao serviço da Paz

Tema transversal: Segurança, Defesa e Paz – Um Projeto de Todos e para Todos

Tema transversal: Educação para Cidadania e Cultura de Paz

Subtemas: 1. A Segurança, a Defesa e a Paz 2. O Contexto Internacional e o Quadro Nacional – A Mundialização e a Interdependência 3. A Identidade Nacional e o Quadro Internacional da Segurança, da Defesa e da Paz 4. As Forças Armadas e as Forças e Serviços de Segurança – O Quadro Institucional, Organização e Missões

Subtemas: Cidadania e Direitos Humanos Um Compromisso com a Paz Ética de Resolução de Conflitos

Educação Pré-Escolar, Ensino Básico e Ensino Secundário2

Ensino primário e secundário3

O sistema de educação em Portugal é dividido em 3 ciclos: Educação Pré-Escolar, Infantário, 3 meses - 5 anos, Ensino Básico, obrigatório para faixa etária de 6 – 15 anos, equivale ao Ensino Fundamental I e II Brasileiro e Ensino Secundário, 16 – 18 anos, equivalente ao nosso Ensino Médio.

O ensino na Espanha é dividido da seguinte forma: Ciclo 1 - Educação Primária (3 subciclos), Ciclo 2 - Educação Secundária Obrigatória (4 cursos distintos) e Ciclo 3 – Educação Secundária Não Obrigatória (Bacharelato).

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EDUCAÇÃO PARA SEGURANÇA E DEFESA FRANÇA

REINO UNIDO

Eixo: Educação para Cidadania

Eixo: Educação para Cidadania não está unificado como temática transversal curricular

Programa: Educação para Segurança Nacional

Escócia e o País de Gales promovem o eixo Educação para Cidadania a partir do estabelecimento da Cultura Cívica, que envolve uma série de atributos da identidade cultural e nacional.

Tema transversal: Educação para Segurança Nacional

Irlanda do Norte trabalha com a noção de Educação para Cidadania para a compreensão mútua que visa melhorar as relações intercomunitárias apaziguando os mecanismos de violência

Subtemas Reconhecimento e histórico dos símbolos nacionais e no processo de construção da Nação Sentimento nacional na Europa, geoestratégia marítima e desafio da defesa econômica no contexto da defesa global e “defesa e segurança, busca da paz, cooperação internacional e ação internacional da França no que toca a defesa Direitos e deveres dos cidadãos, a cidadania e as transformações do mundo contemporâneo, os deveres da defesa e o papel do país enquanto potência econômica, geopolítica e cultural.

Inglaterra busca por meio do eixo Educação para a Cidadania a promoção da ativa participação cívica na vida pública e política.

École, College e Lycée4

Ciclo Primário e Ciclo Secundário5

Fonte: Duarte, 2013. Elaboração da autora.

O ensino francês está dividido em 3 ciclos, a saber: École (Escola), 3 - 10 anos, subdividida em École Maternalle (Escola Maternal) e École Elementar (Escola Elementar); College (Colégio), 11 – 14 anos, subdividido em 4 sessões; Lycée (Liceu), 15 – 18 anos, com o curso terminal abarcando a faixa dos 15 e 16 anos e o Bacharelato, para aqueles que desejam fazer um curso profissional mais avançando e prosseguir nos estudos.

O sistema de ensino do Reino Unido, apesar de não unificado, se organiza a partir de 2 grandes ciclos: o Primário, 10 – 11 anos e o Secundário, com educação compulsória até os 16 anos. A partir disso, há a possibilidade de prosseguir para os Estudos Avançados, que finda aos 18 anos e dá acesso à Universidade.

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Viviane Machado Caminha

Apesar das particularidades, invariavelmente, é notório que a temática Educação para Segurança e Defesa está alicerçada no âmbito da Educação para a Cidadania, integrando os discentes à vida cívica e contribuindo para o desenvolvendo de valores éticos e morais da sociedade. A inserção curricular em eixo transversal dos pressupostos da Educação para a Cidadania apareceu, nesses países, complementada por disciplinas como Cultura cívica, História, Filosofia, Geografia e Estudos Sociais, definindo-a como presente em “todo ato educativo que consubstancia mesmo toda a essência da educação, e nesse sentido, ela é igualmente uma disciplina que visa desenvolver a dimensão ética e moral do Homem” (DUARTE, 2013: 1). Em perspectiva comparada com os exemplos fornecidos, no Brasil não se verifica nenhuma iniciativa específica para a promoção de uma Educação para a Cidadania que envolvesse questões atreladas aos campos da Segurança e Defesa. A despeito disso, tivemos um histórico de quase um século, fins do século XIX à década de 1980, de inserções no processo ensino-aprendizagem de conteúdos sobre moral e civismo. A educação moral e cívica, situada na seara da formação política, especificamente no que se refere ao exercício da cidadania, teve como função a internalização de valores fundamentais para o desenvolvimento da vida em sociedade, se baseando para tanto na estruturação de comportamento em que o interesse coletivo suplantasse o particular, no que se relaciona à esfera pública. Especialistas destacam sua relevância para a emergência do cidadão ativo, ciente dos direitos, atuante na defesa de seus interesses e empenhado em ações de assistência aos grupos menos favorecidos. Na prática, entretanto, a educação moral e cívica se limitou a projetar um sentimento patriótico, valorizando o dever militar, sobretudo durante o mais recente período ditatorial brasileiro (1964-1985). A inexistência, e mesmo previsão, de um tema transversal que instrumentalize jovens em processo de formação para compreensão de questões que envolvem temas relacionados à Segurança e Defesa no currículo escolar, faz com que o Brasil caminhe a passos vagarosos no sentido de popularizar essa temática na sociedade. O acesso e mobilização de conhecimentos atrelados a esse debate somente ocorre por meio da educação superior, comumente pelo ingresso em cursos como Ciência Política e Relações Internacionais, preferencialmente. 22

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Embora a documentação do sistema educacional brasileiro como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN`s) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) esbocem a relação do ensino com a prática da cidadania não é encontrada qualquer menção aos temas Segurança e Defesa como nos demais países. Por todo o exposto nessas breves linhas, foi possível lançar luz sobre a fronteira existente entre educação, ensino e estudos de defesa no Brasil e seu reflexo para a integração dessas temáticas à sociedade. Entendemos, por fim, que apesar de um longo e desafiador caminho a trilhar, essa fronteira, que delimita e demarca campos de estudo, tem o potencial de ser atravessada pela interseção dessas áreas. Para tanto, carecemos ainda de uma definição sobre o real projeto de defesa nacional que se pretende desenvolver no Brasil.

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REFERÊNCIAS: BRASIL. MINISTÉRIO DA DEFESA. Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. 2016. Disponível em https://www.defesa.gov.br/arquivos/2017/mes03/pnd_end.pdf Acesso em 13 mai. 2020. CORREIA, Wilson Francisco. A Educação Moral e Cívica do Regime Militar Brasileiro, 1964-1985: a filosofia do controle e o controle da filosofia. EccoS – Revista Científica, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 489-500, jul./dez. 2007. COOREDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE ENSINO SUPERIOR - CAPES. Catálogo de Teses e Dissertações. Brasília: Distrito Federal. Disponível em https://catalogodeteses.capes.gov.br Acesso em 13 mai. 2020. CUNHA, Luiz Antônio. Sintonia Oscilante: Religião, Moral e Civismo no Brasil (1931-1997). Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 131, p. 285-302, maio/ago. 2007. DIAS, António [Et al.] Referencial de Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz. Ministério da Educação e Ciência: Portugal, 2014. Disponível em https://www.idn. gov.pt › documentos › Referencial-EBOOK-versaodigital Acesso em 13 mai. 2020. DUARTE, António Paulo. Modelos de Educação para a Cultura de Segurança e Defesa: os casos da Espanha, da França e do Reino Unido. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, 2013. Disponível em https://www.idn.gov.pt/conteudos/documentos/e-briefing_papers/Strategic_Paper_1_Modelos_de_Educacao_para_a_Cultura_de_Seguranca_e_Defesa.pdf Acesso em 13 mai. 2020. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Relatório das Disciplinas Humanidades e Evolução Política do Estado Brasileiro. Brasília: Distrito Federal, 2019. WINAND, Érica. SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A fragilidade da condução política da defesa no Brasil. História [online]. 2010, vol.29, n.2, pp.3-29.

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2 SISFRON, UMA FERRAMENTA DA EXPRESSÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA.

Luiz Olavo Martins Rodrigues 1. INTRODUÇÃO A Expressão Científica e Tecnológica no contexto do Poder Nacional representa a manifestação deste Poder nas vertentes da ciência e da tecnologia. Abrange todas as atividades relacionadas à geração, disseminação e aplicação dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Compreende, principalmente, os homens e meios envolvidos naquelas vertentes, caracterizando a capacitação nacional em ciência e tecnologia. Os Recursos Humanos, na Expressão Científica e Tecnológica do Poder Nacional, constituem-se das pessoas que se envolvem nas atividades científicas e tecnológicas. A disponibilidade de Recursos Humanos, em todos os níveis de qualificação é condição essencial à geração, transferência e utilização, eficaz e eficiente, dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Na sociedade atual, há necessidade de talentos humanos cada vez mais capazes, para fazer frente aos desafios crescentes que esta realidade apresenta. Sabe-se que as tecnologias modernas exigem uma base sólida de conhecimento, acompanhada por maior flexibilidade da mão-de-obra. O binômio informação e conhecimento assumem dimensões relevantes e prioritárias em termos de poder, sendo que se caracteriza, de forma cada vez mais marcante, a correlação entre a disponibilidade de Recursos Humanos bem treinados e o desenvolvimento e poder das Nações. Considerando essa abordagem, cresce de importância da condução de projetos com elevada densidade tecnológica, que tendem a desenvolver sistemas e equipamentos modernos de emprego militar de uso 27

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dual, com possibilidade de atuar em operações de Defesa da Pátria ou em situações da Garantia de Lei e da Ordem (GLO). Neste mundo global, vislumbra-se um período de desafios onde pessoas, organizações e instituições procuram interagir de maneira transparente, informacional e em tempo real com extrema velocidade. A transformação é a palavra-chave, para que as organizações possam ousar e buscar a devida conexão ao novo paradigma que impõe formas completamente diferentes de aguçar nosso poder de visão diante do mundo que muda a cada segundo, onde a busca pela superioridade de informações é primordial, para que se tenha uma pronta resposta eficiente. No Exército, a transformação é alicerçada pelo Portfólio Estratégico do Exército, o qual engloba os Programas Estratégicos, que contribuem, para que sejam atingidos um ou mais Objetivos Estratégicos do Exército, gerem ferramentas para o Estado Brasileiro, não somente para o Exército Brasileiro (EB) e desenvolvem capacidades, habilitando a Força Terrestre a conduzir operações em um amplo espectro, desde as ações subsidiárias até o conflito armado. Ressalta-se que as entregas do Portfólio Estratégico do Exército não se restringem a bens (produtos de defesa, instalações e outros serviços). Seu foco é propor benefícios à Sociedade, tais como: fortalecimento da Base Industrial de Defesa, desenvolvimento de tecnologias duais, que possam ser aplicadas em tempo de paz, geração de empregos, projeção internacional e paz social e segurança. É no contexto da transformação que surge o Programa SISFRON, enquadrado pelo subportfólio Defesa da Sociedade, como indutor de novas capacidades, em busca de soluções de monitoramento com captação e fluxo de dados até a interpretação e produção de informações confiáveis para a tomada de decisões.

2. CONCEPÇÃO DO SISFRON A implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON se destina ao sensoriamento, ao apoio à decisão e ao apoio à operação, a fim de permitir o monitoramento e o controle de forma efetiva das áreas de fronteira do Oiapoque ao Chuí, bem como à atuação rápida e adequada do Poder Público, cooperando, dessa maneira, 28

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para a segurança, a redução de ilícitos transfronteiriços, a preservação ambiental e a obtenção do efeito dissuasório, por meio da utilização da capacidade operacional do Exército Brasileiro, em diversos ambientes do País, isoladamente ou em conjunto com outros órgãos governamentais. As ações serão conduzidas pelo Comando do Exército, em especial pelos setores de ciência e tecnologia, logística, engenharia e construção, operações, pessoal e ensino, sob a supervisão do Estado-Maior do Exército, por meio de: aquisições diretas no Brasil ou no Exterior; contratações de serviços; contratações sob regime de empreitada integral, desenvolvimento de protótipos, equipamentos e sistemas; instrumentos de parcerias nacionais e internacionais; contratos de “off-set”; internalizações de tecnologias e outras parcerias com empresas privadas nacionais e parceiros públicos, como as demais Forças Armadas, o Ministério da Defesa, as Universidades, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ministério da Justiça, o Ministério da Fazenda e o Ministério do Meio Ambiente. As auditorias serão realizadas pelo Centro de Controle Interno do Exército (CCIEx) e demais órgãos de controle. Quando implantado, o SISFRON terá o seu emprego coordenado pelo Comando de Operações Terrestres, órgão central do Sistema de Comando e Controle da Força Terrestre e responsável por coordenar o emprego das tropas do Exército. O Plano Orçamentário 1 (PO 1) trata da Implantação do Sistema de Sensoriamento e Apoio à Decisão do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON - e tem com características o desenvolvimento, aquisição de meios, contratação de serviços para implantação de sistemas de sensoriamento instalados em plataformas de superfície, aéreas e orbitais, de sistemas de comunicações; de sistemas de tecnologia da informação aplicados à decisão; bem como das infraestruturas necessárias de: logística; obras; segurança da informação e comunicações e defesa cibernética; capacitação, simulação e treinamento; desenvolvimento e aquisição de aeróstatos e de sistemas de aeronaves remotamente pilotadas e sua infraestrutura de apoio. Aquisição de aeronaves de asa fixa e sua infraestrutura de apoio; aquisição e desenvolvimento de meios de comando e controle e de sistemas de defesa para uso no ambiente operacional do SISFRON; aquisição de meios e contratação de serviços para atendimento às demais despesas para o apoio à implantação do projeto tais como: maquinários e ferramentais, adequação à legislação e obten29

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ção de licença ambiental, despesas judiciais, administração de importações (armazenagem, taxas, seguros, etc.), transporte e acondicionamento de cargas, publicação de manuais e cadernos de instrução, manutenção de depósitos, laboratórios e outros (instalações, equipamentos e materiais); mapeamento cartográfico de fronteiras. O Plano Orçamentário 2 (PO 2) abrange a implantação do Sistema de Apoio às Operações na área de influência do SISFRON, tendo como características o desenvolvimento e aquisição de meios de autoproteção, emprego individual e coletivo, mobilidade tática e estratégica necessários ao cumprimento das missões de vigilância e reconhecimento e às atividades de apoio logístico, exigidas para sua disponibilidade e pronto emprego em todos os escalões envolvidos (Pelotões Especiais de Fronteira, Destacamentos de Fronteira, Subunidades, Batalhões, Regimentos, Grupos, Centros, Brigadas, Divisões, Comandos Militares de Área, Comando de Operações Terrestres e Comando do Exército); aquisição de produtos de defesa para uso no ambiente operacional do SISFRON; aquisição de meios e contratação de serviços para atendimento às demais despesas para o apoio à implantação do projeto tais como: maquinários e ferramentais, despesas judiciais, administração de importações (armazenagem, taxas, seguros, etc.), transporte e acondicionamento de cargas, publicação de manuais e cadernos de instrução, manutenção de depósitos, laboratórios e outros (instalações, equipamentos e materiais). O Plano Orçamentário 3 (PO 3) se refere à infraestrutura para Implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON – e tem como características a adequação, adaptação, recuperação, reparação e construção de instalações e organizações militares participantes do SISFRON e suas estruturas de apoio ao pessoal (instalações de saúde, residências etc.); aquisição de materiais e contratação de serviços para atendimento às demais obras de infraestrutura: redes de abastecimento de água e esgoto, elétrica, lógica, telefônica, subestação de energia elétrica, urbanização, pavimentação, drenagem, cercamento, estacionamento, proteção ambiental, construção e manutenção de poços artesianos, equipamentos fixos, divisórias e mobiliário complementar; aquisição de materiais e meios e contratação de serviços para atendimento às demais despesas para o apoio à implementação da ação, tais como: maquinários e ferramentais, administração de importações (armazenagem, taxas, seguros, etc.), transporte e acondicionamento 30

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de cargas, manutenção de depósitos, laboratórios e outros (instalações, equipamentos e materiais); contratação de pessoal por tempo determinado nas condições e prazos previstos na Lei nº 8.745/93 para atender as atividades especiais referentes a encargos temporários de obras e serviços de engenharia. O Plano Orçamentário 4 (PO 4) aborda o Suporte Logístico e de funcionamento integrados com o objetivo de atender às necessidades de apoio logístico efetivo e econômico do ciclo de vida dos subsistemas, materiais, equipamentos e instalações fixas e móveis componentes do SISFRON, bem como às necessidades de funcionamento das Organizações Militares (OM) envolvidas no processo de execução do Projeto, desde a sua concepção e desenvolvimento até a sua implantação e operação plena, por intermédio do custeio do Suporte Logístico Integrado (SLI) e das despesas operacionais de funcionamento efetivados por um conjunto de atividades, tais como: gerenciamento; diárias e passagens; gestão de obsolescência; disponibilidade operacional; confiabilidade; manutenibilidade; manutenção e conservação; suprimento; peças de reposição e equipamentos de apoio; publicações técnicas e catalogação; material de tecnologia da informação, de expediente e de escritório; capacitação e treinamento de pessoal; suporte técnico; custos da gestão do ciclo de vida; gestão da cadeia de suprimentos; software de gerenciamento logístico; garantia; contratação de serviços técnicos e administrativos; contratação de serviços para atendimento às ações do suporte logístico integrado; pagamento de despesas com serviços diversos decorrentes da implantação dos subsistemas integrantes nas OM envolvidas; aquisição de combustíveis para utilização na implantação e sustentação do Sistema; e manutenção e conservação de instalações fixas integrantes dos subsistemas. Adicionalmente, este PO constituir-se-á em um centro de custos das necessidades de apoio logístico e de sustentação do SISFRON.

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3. O PROJETO PILOTO O Comando Militar do Oeste (CMO) é representado pelos Estados do Mato Grosso do Sul (MS) e o Mato Grosso (MT) e a cidade de Aragarças (GO) e, ainda, faz divisa com 8 (oito) Estados Brasileiros Rondônia (RO), Amazonas (AM), Pará (PA), Tocantins (TO), Goiás (GO), Minas Gerais (MG), São Paulo (SP) e Paraná (PR) e tem como países lindeiros a Bolívia (1.314 Km) e o Paraguai (1.209Km), totalizando 2.523Km de fronteiras. A expansão territorial do CMO, cuja sede fica na cidade de Campo Grande-MS, permite englobar todo a área do Reino Unido, França e Alemanha, além de se destacar pela existência de quatro biomas bem distintos: a floresta amazônica, o pantanal, o cerrado e o campo, características que exigem o emprego de tropa adequada, em um terreno específico e num espaço de dimensões continentais, com possibilidade de mobilização e apoio logístico adequado. Em função dessas considerações, o Exército Brasileiro emitiu a Portaria EME nº 193, de 23 DEZ 2010 sobre a diretriz de implantação do SISFRON e no final de 2013 o CMO elaborou uma diretriz para reestruturar as forças na faixa de fronteira e realizar os devidos aperfeiçoamentos em função da evolução da implantação do Programa, o qual terá que se adequar a fatos portadores de futuro, como no caso da Rota de Integração Latino Americana (RILA), cuja a ponte de integração com o Paraguai na região de Porto Murtinho-MS está prevista para 2023, tornando-se mais uma penetrante incidindo em território brasileiro com possíveis transtornos fronteiriços. O Projeto Piloto abrange uma faixa de fronteira com cerca de 700Km, desde a cidade de Mundo Novo-MS até o município de Caracol-MS, sob a jurisdição da 4ª Brigada de Cavalaria Mecanizada (4ª Bda C Mec) com sede em Dourados-MS, e subordinada ao Comando Militar do Oeste (CMO), em Campo Grande. Por ser uma Grande Unidade completa, a 4ª Bda C Mec é dotada de organizações militares de combate desdobradas na faixa de fronteira e outras organizações de apoio ao combate em profundidade, o que permite a utilização de diversos meios adquiridos pelo Programa SISFRON em condições ideais de emprego, considerando as características e a natureza de cada Organização Militar desdobrada no terreno. As penetrantes rodoviárias que levam até a fron32

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teira possibilitam deslocamento em terreno de boas condições de trafegabilidade e facilita o desdobramento de meios necessários a qualquer tipo de operação, além de facilitar a mobilização e todo suporte logístico com maior rapidez. Cabe ressaltar que os dois países com os quais o Comando Militar do Oeste faz fronteira se destacam na produção de cocaína (Bolívia) e maconha (Paraguai), sendo o Brasil um dos maiores consumidores mundiais. Assim, esse corredor que incide no território brasileiro é vasto em ilícitos de toda ordem, com reflexos nos grandes centros do país e com repercussões internacionais. Os Planos Orçamentários, já definidos, contemplaram os efetivos da 4ª Bda C Mec com equipamentos modernos, materiais da melhor qualidade, infraestrutura adequada e a devida capacitação, fazendo com que essa Grande Unidade esteja com elevada capacidade operacional. Até o presente momento a execução da fase piloto já atingiu 76% do previsto, com um desempenho financeiro de cerca de 898 milhões. Para fins de ilustração, essa fase apresenta alguns indicadores: - 300 módulos veiculares para diferentes aplicações. - 600 sistemas optrônicos para uso fixo ou portátil. - 2.600 Km de rede de banda larga dedicada com disponibilidade 99,99%. - 1.300 rádios táticos para transmissão de voz e dados. Com a validação do Projeto Piloto em meados de 2018, em atendimento a um parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) para prosseguimento do Programa, a portaria 305-EME, de 12 de dezembro de 2018 aprovou as Diretrizes de Iniciação dos Projetos de Sensoriamento e Apoio à Decisão das Fases 2, 3 e 3A (SAD 2, SAD 3 e SAD 3A) do Programa Estratégico Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON). A equipe de iniciação dos referidos projetos iniciou os seus trabalhos em fevereiro de 2019 com o objetivo de elaborar os Projetos Conceituais, os Estudos de Viabilidade (EV), as Propostas de Modelo de Obtenção dos Projetos e a documentação do planejamento da contratação do Projeto de Sensoriamento e Apoio à Decisão referente à cada fase. O objetivo do Projeto SAD 2 é implantar e integrar a Fase 2 do Sistema de Sensoriamento e Apoio à Decisão do Programa SISFRON na área de atuação da 13ª Bda Inf Mtz, com sede em Cuiabá-MT e a 18ª Bda Inf Fron, com sede em Corumbá-MS, na faixa de fronteira oeste do 33

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Brasil com o Paraguai e a Bolívia com impacto direto para o Comando Militar do Oeste. O objetivo do Projeto SAD 3 é implantar e integrar a Fase 3 do Sistema de Sensoriamento e Apoio à Decisão do Programa SISFRON na área de atuação da 15ª Bda Inf Mec, com sede em Cascável-PR e o 14º RCMec, com sede em São Miguel do Oeste (SC) na área do Comando Militar do Sul (CMS). O objetivo do Projeto SAD 3A é implantar e integrar a Fase 3A do Sistema de Sensoriamento e Apoio à Decisão do Programa SISFRON na área de atuação da 2ª Bda Inf Sl, com sede em São Gabriel da Cachoeira-AM e a 16ª Bda Inf Sl, com sede em Tefé-AM, área de responsabilidade do Comando Militar da Amazônia (CMA). Para o CMO, o Projeto SAD 2 tem importância fundamental, já que permitirá complementar o Programa SISFRON na faixa de fronteira sob jurisdição desse Comando Militar, contemplando suas Organizações Militares com meios modernos e necessários para exercer o monitoramento e controle contínuo e permanente de áreas de interesse do território nacional, garantindo fluxo ágil e seguro de informações confiáveis e oportunas, de modo a possibilitar o exercício do comando e controle e de atuação integrada em todos os níveis.

4. O SISFRON E AS EXPRESSÕES DO PODER NACIONAL a. Expressão Psicossocial A circulação de pessoas ao longo da Fronteira Oeste é caracterizada pela Linha Internacional que margeia algumas cidades brasileiras, como Mundo Novo, Sete Quedas, Paranhos, Coronel Sapucaia, Aral Moreira, Ponta Porã, Bela Vista e Antônio João, todas no estado do Mato Grosso do Sul. Algumas destas cidades são chamadas de “cidades gêmeas”, por terem uma fronteira direta com outra cidade no país vizinho. No caso do trecho que corresponde à “Linha Internacional”, as cidades de Mundo Novo, Bela Vista, Coronel Sapucaia, Paranhos e Ponta Porã são consideradas gêmeas. 34

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A Linha Internacional é a faixa seca de fronteira que separa o Brasil do Paraguai. A faixa seca de fronteira não é uma BR, e, sim composta pela MS-165, MS-385, MS-267, MS-299 e estradas rurais municipais. Este trecho, de aproximadamente 1.131 km de estrada de chão, passa quase que em sua totalidade por propriedades rurais, sem nenhuma infraestrutura e nenhum policiamento em seu percurso, permitindo, assim, que o contrabando atravesse livremente e seja um mecanismo de sobrevivência para a população que vive em suas imediações. Estudos recentes comprovam que esses municípios “Cidades Gêmeas” se destacaram negativamente em múltiplos aspectos: em relação ao PIB, as cidades de Paranhos e Coronel Sapucaia apresentam os menores PIBs entre todas as cidades gêmeas. No que tange à segurança, os dados são ainda mais preocupantes. Em relação ao “Volume de Homicídios nas Cidades Gêmeas”, as cidades de Coronel Sapucaia, Ponta Porã e Paranhos se destacam entre as demais. Pode-se acrescentar também a quantidade significante de “Óbitos por Agressão com Uso de Armas de Fogo”, no qual Coronel Sapucaia, Ponta Porã, Mundo Novo e Paranhos também lideram as estatísticas e quanto ao “Índice de Suicídios”, as cidades de Paranhos e Coronel Sapucaia são os maiores destaques. O crescente aumento de rotas de entrada de contrabando está diretamente relacionado ao controle efetivo nas fronteiras, ou seja, enquanto se reforçam as fronteiras em uma região do País, o contrabando migra para outra região menos protegida, e assim sucessivamente. Uma prática eficiente e eficaz foi adotada na cidade de Mundo Novo, quando meios SISFRON empregados em apoio às operações de fronteira com outro órgãos de segurança naquela região permitiram reduzir o contrabando em curto espaço de tempo e, com isso, houve um aumento das arrecadações com o IPI (Imposto sobre produtos importados) e o II (Imposto de Importação). Paralelo ao emprego de sensores do SISFRON cabe ressaltar que o Exército também proporciona apoio às operações com efetivos devidamente preparados para atuar em conjunto com os profissionais da área de segurança pública, os quais, na maioria das vezes também sofrem as consequências da ousadia dos criminosos. Constata-se, que outros crimes derivam das atividades de contrabando, tais como o furto e o roubo de veículos – muitas vezes com o uso de violência -, que são utilizados no carregamento, o aliciamento de pessoas, 35

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incluindo menores, para transportar a mercadoria ao seu destino. A cidade de Paranhos/MS é um exemplo de que o alto índice de reprovações nos bancos escolares, redunda em atividades informais como o contrabando e inclusive o tráfico, envolvem jovens em idade escolar, contribuindo negativamente no rendimento escolar, aumentando os índices de reprovação e evasão. As pessoas que vivem debruçadas no arco fronteiriço convivem com uma realidade diferente de qualquer lugar do país, fruto de uma violência gerada pelo contrabando que a todo instante vai corroendo a sociedade em todos os seus segmentos com sequelas consideráveis para a indústria, o Estado e o desenvolvido do país, bem como, para o próprio cidadão que passa a perder a autoestima, carente de valores cívicos e distante de padrões éticos e, acima de tudo, sem uma expectativa de vida condizente. É previsto no bojo do Programa SISFRON atividades de Compensação Ambiental com o objetivo de se evitar danos consideráveis aos diversos biomas existentes no território nacional. Fato recente ocorreu em novembro de 2019, ocasião que alunos do Colégio Militar de Campo Grande, juntamente com os professores da instituição, realizaram o plantio de 30 mudas de aroeira, no Parque Estadual Matas do Segredo, em Campo Grande-MS. A atividade faz parte do Programa de Compensação Ambiental do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras, elaborado em parceria com a Savis Tecnologia e Sistemas, Casa da Floresta e Exército Brasileiro. De acordo com o engenheiro florestal e diretor da Casa da Floresta, Klaus Duarte Barretto, ao todo serão plantadas no local 12 mil e 600 mudas de espécies legalmente protegidas no Estado do Mato Grosso do Sul. “Hoje as crianças deram o pontapé inicial no plantio, mas, ainda temos muito trabalho pela frente. Porém, essa integração com os alunos e professores é muito importante para que possamos mostrar a eles os benefícios do SISFRON, que além de proteger nossas fronteiras, auxilia os órgãos do governo na preservação e proteção da biodiversidade, reduzindo os crimes ambientais e ainda preservando nossa fauna e flora”, explicou Klaus. No Parque Estadual Matas do Segredo será realizada a restauração ambiental de 16,7 hectares, “nós ficamos imensamente gratos com essa parceria, que por intermédio do plantio de árvores nos auxiliam na recuperação de áreas específicas aqui no Parque, contribuindo assim, para o bem-estar de futuras gerações”, disse a gestora do Parque, Ana Bergler, que na oportunidade acompanhou o plantio das mudas. 36

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Para aluna do 6º ano, Laís Alves, participar da atividade foi um complemento do que aprendem em sala de aula, “a professora sempre fala sobre as plantas do cerrado em sala de aula e hoje tivemos a oportunidade de plantar uma dessas espécies, nossa contribuição mesmo que pequena, ficará eternizada no Parque através desse plantio”, concluiu Laís. Com o objetivo de cumprir a regulamentação existente de preservação do ambiente que se desenvolve, o Programa SISFRON engloba atividades de gerenciamento de resíduos sólidos, produtos oleosos, controle de ruídos, educação ambiental, supressão de vegetação, afugentamento da fauna, compensação ambiental e Plano de recuperação de áreas antropizadas6. Fica evidente que o Programa SISFRON tem transmitido uma consciência ecológica à sociedade e demonstrado ser possível um desenvolvimento tecnológico com sustentabilidade e controle do desperdício, coerente com a elaboração do licenciamento ambiental como exigência estabelecida pela Política Nacional de Meio Ambiente, sendo por meio desse procedimento que o Exército Brasileiro formaliza sua preocupação com os recursos naturais, garantindo o reconhecimento público que a instalação e a operação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras será realizada dentro da perspectiva de conciliação do avanço tecnológico dos sistemas de monitoramento com a preservação da biodiversidade. Outro ponto a mencionar é a integração perfeita com instituições de ensino, integrantes do sistema “S” e institutos federais na busca do conhecimento técnico que seja benéfico para os operadores dos diversos sistemas do Programa SISFRON. Universidades estaduais e federais também participam do processo, na elaboração de seminários, palestras, conferências, feiras, workshops buscando trocar experiências com outras áreas do conhecimento, em particular com órgãos de segurança pública. O Programa poderá no futuro até beneficiar entidades de cunho social e educacional, pois desfruta de estruturas físicas que percorrem vários munícipios de ambos os Estados, as quais, poderão ser ampliadas para atender, por exemplo, uma banda maior de internet, e proporcionar um serviço de educação à distância, que no momento atual, diante do problema da COVID-19, parece ser um ponto crucial para se manter o

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Transformação que exerce o ser humano sobre o meio ambiente

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nível da escolas. Pode-se também evoluir para a área da saúde, com tratamento por videoconferência. Verifica-se que o Programa é maleável, mas exige a interação de vários atores e a busca de objetivo comuns para que a faixa de fronteira, principalmente, seja a maior beneficiada para superar todo tipo de carência.

b. Expressão Militar A capacitação do pessoal deve ser efetiva (desenvolver as competências necessárias ao desempenho da função), ser abrangente (alcançar o maior número de militares em todas as OM) e ser contínua; A preparação de recursos humanos devidamente preparados e atualizados é uma preocupação constante do Exército com a inserção das ferramentas do Programa SISFRON no contexto do Ensino em Escolas Militares (formação, aperfeiçoamento e especialização) e na Instrução Militar (formação/qualificação) preconizada nas Organizações Militares empregadas na faixa de fronteira. Assim, a capacitação continuada possibilita a replicação de conhecimentos adquiridos com a chegada de novos equipamentos. O Grupo Temático – Capacitação - que trabalhou na 4ª Reunião de Integração Sistêmica (RIS) do Programa SISFRON em agosto de 2019 visualizou a necessidade de adequação de um novo perfil aos militares envolvidos com o SISFRON, causado pelo impacto de novas tecnologias agregadas, bem como uma atualização dos Planos de Disciplinas e Programas-Padrão de Instrução empregados nas Organizações Militares, além da criação de cursos específicos em determinadas áreas de conhecimento. Paralelo a essas medidas há a necessidade de uma política de pessoal devidamente ajustada para atender os cargos existentes nos diversos quartéis debruçados na faixa de fronteira. Para as próximas fases do Programa SISFRON que já estão se desenvolvendo, visualiza-se estruturas regionais de capacitação, conforme experiência ocorrida no Projeto Piloto no Comando da 4ª Bda C Mec, apoio da empresa integradora, adequando conhecimento às práticas militares, investimentos em conteúdo de Ensino à Distância (EAD) e ferramentas de simulação e a capacitação com modelo misto, contemplando fases EAD e presenciais. 38

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Dessa forma, o Programa SISFRON, indutor da transformação no Exército Brasileiro está preparado para se adequar às ferramentas tecnológicas modernas, a uma doutrina compatível com a evolução dos Meios de Emprego Militar (MEM), às competências e processos inovadores e às novas capacidades que surgem e se fazem necessárias. A cada etapa superada constata-se o melhoramento do moral da tropa, o aperfeiçoamento do adestramento e a prontificação militar a todo momento. O CMO, em razão da implantação do SISFRON, tem sido foco de interesse de vários militares que estão servindo em várias localidades deste país, pois sabem que neste ambiente fronteiriço e repleto de adversidades, o militar requer permanente qualificação e o Programa SISFRON proporciona vários desafios que exigem um perfil de elevado preparo e emprego O acrônimo DOAMEPI permite mapear os benefícios que surgem à medida que o Programa evolui como um Sistema Integrado, gerando aptidões adequadas para se atingir um efeito desejado, sob condições específicas, por meio de um conjunto de atividades/tarefa/ ações. A Doutrina (D) tende a evoluir diante da aquisição e utilização de uma tecnologia moderna; a Organização (O) passa a adotar uma nova estrutura organizacional; o Adestramento (A) busca atingir níveis mais elevados; o Material (M) é cada vez mais dotado de alto valor agregado; o Ensino (E) passa a exigir revisão de manuais e implantação nas Escolas Militares dos Planos de Disciplinas correspondentes; o Pessoal (P) é constantemente capacitado para operar as novas capacidades que são desenvolvidas; e a Infraestrutura (I) é sempre adequada para dar suporte às entregas efetuadas. Assim, o Exército valoriza seus recursos humanos e dentro do contexto do Programa SISFRON, este aspecto é fundamental para que se tenha mentes preparadas em todos os setores e a todo tempo para atender as diversas demandas e pensar no que ainda poderá ser feito. Cabe destacar que o Instituto Militar de Engenharia (IME), com sede no Rio de Janeiro-RJ é presença constante na área do CMO com o objetivo de conhecer o Programa SISFRON e colaborar com melhorias na elaboração de Requisitos Operacionais (RO) e Requisitos Técnicos, Logísticos e Industriais (RTLI), conforme a espeficidade de seus cursos de engenharia: Na Fortificação e Construção houve uma avaliação da concretagem, descarte de efluentes, calheamento em estruturas do SISFRON, na área Elétrica foi feita uma análise do impacto de descargas 39

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atmosféricas nos sistemas existentes; no ramo da Eletrônica verificou-se um estudo sobre o conversor de tensão de viaturas; nas Comunicações buscou-se aprimorar o sistema de antenas; quanto à Engenharia de Material avaliou-se as capotas das viaturas Marruá; o curso de Mecânica de Automóvel verificou a melhoria do sistema de refrigeração do shelter das viaturas do SISFRON; no setor de Mecânica de Armamento verificou-se o sistema de fixação da câmara no capacete; a engenharia Química analisou a identificação de agentes químicos; e a Cartografia um breve estudo do terreno para fins de digitalização. Fica evidente que a participação de Escolas desse patamar no contexto do Programa SISFRON só tem a contribuir para a evolução do sistema como um todo e a buscar soluções viáveis e baratas na resolução de problemas que possam surgir. Uma das principais características do SISFRON é a integração entre os projetos das Forças Armadas e com diversos órgãos do governo, destacando-se o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM); o Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA); o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SISGAAZ); a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN); o Ministério da Agricultura e o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET); o Ministério da Saúde; as defesas civis e os governos dos estados fronteiriços; o Ministério da Justiça, com o Departamento de Polícia Federal (DPF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF); a Receita Federal (RF); o Ministério do Meio Ambiente; e, no sentido transnacional, as Forças Armadas dos países vizinhos.

c. Expressão Política O Brasil é um país continental e faz divisa com 10 (dez) países da América do Sul e sua faixa de fronteira terrestre se estende por 16.886 Km2, mais que o dobro de uma linha reta entre Paris e Pequim, abrangendo uma área de 2,553 milhões de Km2 (cerca de 27% do território nacional), com uma população estimada de 10 milhões de pessoas, desde os Estados do Amapá até o Rio Grande do Sul. Essa faixa de fronteira sofre delitos que geram problemas sociais e econômicos nas grandes cidades como tráfico internacional de drogas e 40

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armas, tráfico de pessoas, evasão fiscal, imigração ilegal, pistas de pouso ilegais, ações do crime organizado e a ilícitos ambientais com focos no desmatamento, garimpo ilegal e a exploração predatória de recursos naturais. A faixa de fronteira terrestre possui uma diversidade regional considerável, se caracteriza por grandes distâncias e apresenta áreas remotas marcantes. É possível constatar que diante de um cenário da segurança pública no Brasil cada vez mais preocupante, face aos crimes que ocorrem por todo país, sejam nos grandes centros urbanos ou em cidades de menor expressão, o custo-benefício do SISFRON pode ser delineado com facilidade. Estudos das Nações Unidas indicam que o corredor que incide no Brasil proveniente da fronteira oeste, na faixa correspondente ao Paraguai e a Bolívia, é o responsável por inúmeros ilícitos de várias naturezas com incidência marcante em países europeus. “Os custos econômicos anuais [da violência no Brasil] são estimados em R$ 285 bilhões (2015), englobando gastos com segurança pública e privada, seguros, perda da capacidade produtiva, encarceramento e serviços médicos.” (Relatório “Custos Econômicos da Criminalidade no Brasil”, Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República). Se o SISFRON reduzir este custo em 3,5%, por meio do melhor controle das fronteiras, ele se paga em UM ANO. Ao possibilitar tal controle nas faixas lindeiras do país, o Programa SISFRON irá possibilitar maior presença do Estado em áreas fronteiriças, com aprimoramento de segmentos importantes para que todo cidadão possa exercer o seu direito de cidadania, inclusive, com possibilidade de escolher governantes capazes de proporcionar melhores condições de vida à população, evitar a evasão de divisas e aprimorar o sistema educacional e com isso tornar a geração de emprego cada vez mais viável. A Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END) vem exigindo uma transformação do Setor de Defesa no cenário nacional. Essa transformação implica em novas formas de organização e emprego, baseadas em novas capacidades e padrões de pensamento, transcendendo a simples modernização ou atualização de procedimentos e materiais. 41

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As diretrizes delineadas na END caracterizam de forma precípua a capacidade dissuasória, a qual se visualiza nos seguintes pontos: - dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres, nos limites das águas jurisdicionais brasileiras e impedir-lhes o uso do espaço aéreo nacional; - organizar as Forças Armadas sob a égide do trinômio monitoramento/controle, mobilidade e presença; e - desenvolver, lastreado na capacidade de monitorar/controlar, a capacidade de responder prontamente a qualquer ameaça ou agressão: a mobilidade estratégica. Fica evidente o emprego do trinômio monitoramento/controle, mobilidade e presença que aliado aos meios adequados de comando e controle e às unidades de ação rápida, estrategicamente posicionadas, multiplicam a capacidade de ação. A intensa utilização de recursos tecnológicos, combinada com a adequada preparação das estruturas operativas, a capacidade de interoperabilidade entre as Forças Armadas em ambiente interagências e a capacitação de recursos humanos determinará a obtenção da capacidade preconizada na END. Paralelo à END, as ações implementadas em diversas operações são respaldadas na Constituição Federal em seus artigos 142 e 144, cabendo às Forças Armadas a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por inciativa de qualquer deste, da lei e da ordem. A Lei Complementar 97/1999 diz que cabe às Forças Armadas atuar contra delitos transfronteiriços e ambientais isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo. O Decreto nº 8.903, de 16 de novembro de 2016 instituiu o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF), o qual visa fortalecer a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão aos delitos transfronteiriços, portanto, deverá: realizar a atuação integrada e coordenada dos órgãos de segurança pública, dos órgãos de inteligência, da Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda e do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, além da cooperação e integração com os países vizinhos. Dessa forma, o alinhamento entre esses instrumentos legais fortalecem a presença do Exército na faixa de fronteira e o credenciam ainda mais a conduzir o maior Programa de Monitoramento de Fronteiras, integrando uma tecnologia moderna e órgãos das esferas federais, 42

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estaduais e municipais com a incumbência de mitigar as problemáticas que permeiam a extensa fronteira brasileira. Nas Operações Interagências, a estrutura física das torres da infovia tem proporcionado parcerias e convênios com outros órgãos, permitindo otimizar os recursos por eles recebidos, além de agilizar a implantação de seus respectivos sistemas em prol da população. Na Fronteira Oeste, parcerias e acordos já foram implementados com a Polícia Rodoviária Federal, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP/MS), a Receita Federal, a Força Nacional e as Prefeituras de Campo Grande-MS e Dourados-MS. O compartilhamento dos Programas de Consciência Situacional C2 Cmb permite o acompanhamento da localização e situação permanente dos operadores e gerenciamento do ambiente operacional. O compartilhamento das Estruturas de Centro de Coordenação de Operações fixas possui salas de situação, Sistema de Comunicações seguros e ambientes dedicados aos Órgãos de Segurança Pública (OSP) instalados nos Estados do MS, MT e PR. O Apoio em Comunicações Táticas é prestado pelos Centro de Operações móveis e Sistema de Rádios com apoio em meios de monitoramento sejam os radares e câmeras e equipamentos termais e óculos de visão noturna. O Apoio Logístico contempla o transporte, alojamento e suprimento, conforme a base legal preconizada nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Em curto prazo poderá usufruir de apoio de Comunicações Satelitais, bem como de compartilhamento de dados de inteligência oriundos do monitoramento eletromagnético em toda a faixa de fronteira e sistemas de aeronaves não tripuladas. O foco do apoio aos diversos órgãos na faixa de fronteira é garantir um fluxo ágil e seguro de informações confiáveis e oportunas, por meio do exercício do monitoramento e controle contínuo e permanente de áreas de interesse no Território Nacional, particularmente da faixa de fronteira terrestre brasileira. A missão do Exército não muda com a disponibilização de meios tecnológicos para a tropa posicionada na faixa limítrofe do Brasil. Por outro lado, ela será muito facilitada pela melhoria que estes proporcionarão ao sistema de inteligência e ao sistema de comando e controle do Exército no contexto de uma operação interagência. 43

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d. Expressão econômica Integrando o Consórcio Tepro, a Savis Tecnologia e Sistemas, empresa subsidiária da Embraer Defesa e Segurança (EDS), foi selecionada pelo Exército, em agosto de 2012, para realizar a implementação do projeto piloto do SISFRON atuando na gestão integrada de projetos de monitoramento e controle de fronteiras. A BRADAR (ex-Orbisat), especializada em sensoriamento remoto e radares de vigilância aérea e terrestre, é a parceira natural da Savis já que também é uma empresa integrante do portfólio da EDS. Em novembro do mesmo ano, o Exército assinou o contrato com o Consórcio Tepro, avaliado em R$ 839 milhões para esta fase. A proposta vencedora apresentou 75,8% de índice de nacionalização, traduzindo-se no fomento e capacitação da indústria nacional em áreas de produtos duais, de alto valor agregado. Este índice visa garantir a necessária autonomia tecnológica, sobretudo para a Indústria Nacional de Defesa. Tal índice é requisito dos subsistemas do Projeto Piloto. O índice de nacionalização dos subsistemas de Apoio à Decisão e Sensoriamento é o seguinte: 100%; apoio à decisão e Infovia, na faixa entre 50% a 99%; Centro de Comando e Controle, Sistema de Vigilância Monitoramento e Reconhecimento, Comunicações por Satélites, e na faixa abaixo dos 50%; Sensores de Sinais Eletromagnéticos, Sensores Ópticos e Optrônicos e Comunicações Táticas. Segue abaixo uma relação da cadeia de fornecedores, subsidiárias da SAVIS e que estão diretamente envolvidas com o Programa SISFRON no fornecimento de suprimentos indispensáveis ao suporte e interface com o cliente. Tabela 01 Fornecedor

Área de atuação

Localidade

AGEPLAN

Shelter PVC Concreto

São Paulo - SP

Agrale

Viaturas

Caxias do Sul - RS

BrasilSat

Torres e Antenas (Infovia)

Curitiba - PR

Casa da Floresta Assessoria Ambiental

Piracicaba-SP

CM Comandos

São Paulo - SP

No breaks

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Digitel

Rádios Digitais + Switches (Infovia)

Alvorada - RS

Embraer

Radar M20, Receptores/ Antena MAGE

Campinas - SP

Enecol

Infraestrutura

Aparecida de Goiânia - GO

Kryptus

CommGuard - Criptografia

Campinas - SP

MAN Latin America Indús- Viaturas 5 Toneladas tria (Caminhão Volkswagen

São Paulo - SP

MTEL

Equipamentos de TI

Barueri - SP

RF COM

Shelter Metálico

São José dos Campos - SP

Rustcon

Software de Gerenciamento Logístico - SGL

Rio de Janeiro - RJ

Stemac

Grupo Motogeradores - GMG

Porto Alegre - RS

Union

Sistemas de retificadores e baterias

São Paulo - SP

Entre as empresas estrangeiras selecionadas estão a Medav, que fornecerá o sistema de sensores de sinais eletromagnéticos, tendo como provedor a MEDAV – Alemanha, no desenvolvimento do receptor de sinais eletromagnéticos no Brasil. A Harris - EUA, na capacitação da atividade de manutenção, com oficinas completas, peças de reposição e treinamento; desenvolvimento da solução criptográfica customizada e de propriedade do Exército Brasileiro; e software de comando e controle customizado e de propriedade do Exército Brasileiro; a AEL International, tendo como provedor a ELOP - Israel, na montagem dos óculos de visão noturna LORIS no Brasil, com transferência de propriedade intelectual; e a ADVANTEC – Canadá, na transferência de tecnologia para permitir a manufatura no Brasil de módulos do sistema de comunicações por satélite, como também o desenvolvimento, a manufatura e controle de qualidade no Brasil do Terminal Manpack (Banda X). Como resultado, o SISFRON representa uma significativa janela de oportunidades para as empresas brasileiras, inovação, investimento de longo prazo, com estímulo à geração de empregos na indústria nacional, em especial na indústria relacionada à defesa, havendo uma expectativa de mais de 12 mil empregos anuais. O valor total da melhoria relacionada à renda decorrente da geração de empregos diretos e indiretos 45

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poderá, assim, atingir um total de R$ 2,309 bilhões, durante os 10 anos de implantação do Sistema. Praticamente 2/3 (dois terços) deste total poderá vir do setor de tecnologia, com a execução de atividades de desenvolvimento de componentes e subsistemas, desenvolvimento de software e integração do sistema final, por empresa nacional. Deverá criar, também, oportunidade de sustentabilidade tecnológica, por meio da venda de produtos e serviços de uso dual e da diversificação da pauta de exportações. As estimativas para a captação de recursos provenientes da comercialização desses itens nos mercados interno e externo são da ordem de até R$ 1 bilhão por ano. Atribuindo-se prioridade ao aproveitamento do que já existe no País, segundo orientação da Estratégia Nacional de Defesa, haverá motivação para transferência de tecnologia, capacitação de recursos humanos especializados e estímulo para a infraestrutura tecnológica, sendo R$ 3,002 bilhões para a infraestrutura de obras civis e R$ 3,060 bilhões para a infraestrutura de apoio à operação.

e. Ciência e Tecnologia O Exército Brasileiro (EB), alinhado com a Estratégia Nacional de Defesa, estabeleceu o Plano Básico de C&T, impulsionando a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico e contemplando um conceito de dualidade que atende às necessidades militares e às da sociedade (em grande parte dos projetos). Esta iniciativa é inteiramente convergente com a implantação do SISFRON, aqui listado como significativa oportunidade de reversão deste cenário. A implantação do Sistema envolverá a captação de recursos para a modernização das estruturas militares voltadas para o monitoramento das fronteiras terrestres, e isto compreenderá a aquisição de equipamentos e sistemas de variadas tecnologias, tornando possível a negociação e aquisição de pacotes tecnológicos diferenciados, que atendam às reais necessidades do EB. Para tanto, estrategicamente para o setor de C&T do EB, todos os subsistemas do SISFRON e suas interações deverão ser considerados no desenvolvimento de linhas de pesquisa tecnológica, na identificação 46

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de possibilidades de absorção das tecnologias previstas, no direcionamento das negociações de Offset, dentre outras situações. O aprofundamento sobre as possibilidades de acordos de compensação comercial, tecnológica e industrial (Offset) é fundamental para que as negociações possam ser vantajosas para o País, que historicamente tem tido dificuldades no acesso às tecnologias de ponta por parte de países que investem pesadamente na pesquisa e desenvolvimento de armamentos e outros materiais de emprego militar. Entre as vantagens do Offset para o País está o equilíbrio comercial, que faz com que a decisão de adotar uma política de compensação seja estratégica. O Exército também concluiu as negociações de compensação comercial, industrial e tecnológica (offset), resultando em significativos investimentos em áreas como linhas de produção, desenvolvimento tecnológico e capacitação para os produtos que estão sendo implantados na primeira fase do projeto. Até o momento, o SISFRON já possibilitou desenvolver tecnologias na produção de desenvolvimento de radares, integração de sinais de rádio com dados, produção de viaturas especializadas, análise de espectro eletromagnético; programa de consciência situacional e programa de planejamento e controle logístico. Ressalta-se o avanço tecnológico no desenvolvimento, do hardware para inteligência de sinais (receptor sentinela) e do Radar de Vigilância Terrestre (Sentir-20). Verifica-se abaixo, alguns acordos de compensação (Off-set) já proporcionados pelo Programa SISFRON: - Manutenção de optrônicos, gerando: •

Capacitação de empresa brasileira na montagem final dos optrônicos do SISFRON.

Maior autonomia na manutenção dos equipamentos.

Menor tempo de indisponibilidade dos optrônicos.

Desenvolvimento de novos produtos junto à UFRGS, spin-off 7 dos offsets.

termo utilizado para designar aquilo que foi derivado de algo já desenvolvido ou pesquisado anteriormente

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- Manutenção de Harris: •

Criação da 1ª oficina de manutenção da HARRIS fora de Rochester, NY.

Treinamento de militares na manutenção dos rádios do SISFRON.

Menor tempo de indisponibilidade do equipamento em campo.

Maior autonomia do EB, uma vez que não é necessário contratar empresas para realizar a manutenção. - Campo de calibração de antenas

Independência de calibração, atendimento, suporte e configuração durante todo o ciclo de vida das antenas.

Projeto com ótimo tempo de payback8 e projeção de economia financeira. - Desenvolvimento do OMT9

Desenvolvimento de Linha de Sintonizadores de Banda Larga OMT.

Estudos da empresa SMT MEDAV da Alemanha foram compartilhados com a EMBRAER de modo a criar o hardware do OMT.

Brasil se torna um dos 7 países detentores de tal tecnologia.

Assim, a Compensação é uma poderosa ferramenta à disposição de projetos estratégicos como o SISFRON, que visam a modernizar o EB, com a aquisição de materiais e tecnologias inovadoras na área de Defesa, oportunizando cooperação científica e tecnológica, investimentos industriais e abertura de novos mercados internacionais, inserindo órgãos de governo e empresas nacionais na cadeia de fornecedores globais. 8

técnica muito utilizada nas empresas para análise do prazo de retorno do investimento em um projeto

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técnica de modelagem de objetos

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Programa SISFRON permeia todas as Expressões do Poder Nacional e, assim está em consonância com os Objetivos Nacionais da Nação Brasileira, definidos por uma Democracia pujante, o que permite à sociedade um estilo vida coerente com a dignidade humana, a Integração Territorial com o foco em reduzir os desequilíbrios regionais e sociais, a Integridade do Patrimônio Nacional com a preservação dos recursos nacionais e do meio ambiente; a Paz Social, por intermédio da harmonia entre as pessoas e grupos, garantindo a justiça social, o Progresso constante com a capacidade de prover segurança, avanço científico-tecnológico, adequado crescimento econômico e melhoria do padrão de vida; e, por fim, o fortalecimento da Soberania com a manutenção da intangibilidade da Nação, em condições de combater o adverso. Enfim, o impacto do SISFRON no campo da Ciência e Tecnologia é convergente com o Plano Básico de C&T e envolverá a captação de recursos para a modernização das estruturas militares voltadas para o monitoramento das fronteiras terrestres. Este processo compreenderá a aquisição e o desenvolvimento de equipamentos e sistemas de variadas tecnologias, tornando possível a negociação e aquisição de pacotes tecnológicos diferenciados, que atendam às reais necessidades do EB e, portanto, envolverá os setores de formação e de P&D tecnológico. Estrategicamente, será necessário considerar a possibilidade de desenvolvimento de novas linhas de pesquisa tecnológica, o dimensionamento de pessoal a capacitar, a necessidade de ajuste de conteúdos curriculares de Cursos e Estágios existentes no EB, além da identificação de possibilidades de absorção de tecnologias previstas. A identificação do público a ser capacitado e dos conhecimentos tecnológicos e científicos a serem buscados, são questões fundamentais para o sucesso da implantação do SISFRON, que requererá pessoal adequadamente preparado para operacionalizar os equipamentos e sistemas adquiridos.

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REFERÊNCIAS ____Constituição Federal de 05 OUT 1988. ____Decreto 6703, de 18 DEZ 2008-- Estratégia Nacional de Defesa. ____Decreto nº 8.903, de 16 NOV 2016-- instituiu o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF), organizando a atuação de unidades da administração pública federal para sua execução. ____Lei Complementar (LC) 97, 09 JUN 1999 -- dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. ____Lei Complementar (LC) 117, 02 SET 2004 -– dispõe sobre Poder de Polícia do Exército na Faixa de Fronteira. ____Portaria 061-Cmt Ex, de 16 FEV 2005-- diretriz estratégica para atuação na faixa de fronteira contra delitos transfronteiriços e ambientais, integrante das diretrizes estratégicas do exército ____Portaria 075-EME, de 10 JUN 2010 -– aprova a Diretriz para Implantação do Processo de Transformação do Exército Brasileiro. Portaria EME nº 193, de 23 DEZ 2010 -– diretriz para a Implantação do Projeto SISFRON. ____Portaria 322/EME, de 08 DEZ 2015 -– aprova a Diretriz de Orientação aos C Mil A para o Emprego da FT na Faixa de Fronteira. ____Portaria 233 – Cmt Ex, de 15 MAR 2016-- aprova as Instruções Gerais para a Gestão do Ciclo de Vida dos Sistemas e Materiais de Emprego Militar. ____Portaria nº 462-EME, de 21 NOV 2017 -- aprova a Compreensão das Operações (COMOP) nº 08/2017, do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON). ____Portaria nº 512- EME, de 11 DEZ 2017 -- aprova a Diretriz de Implantação do Programa Estratégico do Exército Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON. 51

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____Portaria nº 305-EME, de 12 DEZ 2018 -- aprova a Diretriz de Iniciação do Projeto de Sensoriamento e Apoio à Decisão da Fase 3 (SAD 3) do Programa Estratégico do Exército Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON). ____Revista Verde-Oliva 217 – Novembro 2012 – Centro de Comunicação Social do Exército (CComSEx)

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3 O COMÉRCIO POPULAR TRANSFRONTEIRIÇO

Dirce Sizuko Soken INTRODUÇÃO O comércio popular retratado por esta pesquisa foi determinante para a dinamização da atividade comercial vigente na faixa de fronteira entre as cidades gêmeas do Brasil e Bolívia. Observou-se que por três décadas essas localidades fronteiriças foram impulsionadas pelas atividades comerciais organizadas por grupos de familiares originários das cidades cruceñas e andinas. As cidades gêmeas mencionadas neste estudo estão localizadas na faixa de fronteira entre Brasil e Bolívia, segundo a geógrafa Lia Osório Machado (2005) tais localidades apresentam relação do tipo interação capilar, trata-se de uma: (...) situação geográfica de fronteira seca (...) do tipo de interação capilar, onde as trocas são difusas e emergem espontaneamente entre as aglomerações e que podem evoluir no sentido de integração sem patrocínio governamental, seja na construção de infraestrutura de articulação transfronteiriça, seja na realização de acordos bilaterais (Machado, 2005, p.275).

Foi destaque nesse estudo as relações familiares que aproximaram os povos das cidades gêmeas da fronteira entre Brasil e Bolívia que se caracterizaram por relações comerciais transfronteiriças, uma vez que tais relações se intensificaram pelas ações e interesses dos atores responsáveis pela circulação de produtos populares para além da linha de fronteira, portanto, transfronteiriça. 53

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O comércio popular andino se esparramou por toda a Bolívia e encontrou nas faixas de fronteira ambiente adequado para sua expansão e consolidação. As formas de comercialização encontradas foram de organizações entre familiares originários de diversas localidades, em especial das cidades bolivianas que fazem limites com as cidades peruanas, argentinas e outras cidades brasileiras situadas em faixas de fronteira. Com base nos dados levantados nessas localidades foi possível afirmar que essas cidades gêmeas de fronteira representaram unidades territoriais de acumulação pautadas no comércio de produtos populares e de preços baixos que atraíram pessoas para os dois lados da linha de fronteira. Além disso, a vasta oportunidade de realizar transações comerciais por toda a Bolívia contribuiu para compreender a formação e crescimento do comércio em cidades gêmeas localizadas em faixa de fronteira. Por ora, este estudo revelou a importância da circulação de mais de uma moeda, fator de dinamismo para o comércio popular transfronteiriço, uma vez que as variações cambiais do mercado de moeda local mantiveram os preços dos produtos mais competitivos na faixa de fronteira. Sobretudo, foi possível constatar que os grupos familiares estavam sempre em busca de novas oportunidades de negócios, considerando que a fronteira é um território de múltiplos usos, quando não está bom de um lado, buscam la plata do outro lado.

METODOLOGIA A realização deste estudo contou com a participação ativa da pesquisadora para o levantamento de informações necessárias a fim de compreender a estrutura dinâmica do comércio da faixa de fronteira entre Brasil e Bolívia. Durante o processo de coleta de dados a pesquisadora residiu na cidade de Corumbá o que tornou possível a observação e o registro de pesquisa de campo sobre esse espaço de fronteira entre os anos de 2008 a 2014. A coleta de fontes bibliográficas foi realizada por meio de busca eletrônica, visitas às bibliotecas locais e nacionais e obtidos também nos documentos oficiais disponibilizados pelos órgãos municipais. Ao longo de sete anos foram registradas imagens dos elementos urbanos da área 54

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comercial, tais como ruas, calçadas, prédios comerciais e residenciais, área de circulação de moradores e turistas etc com o propósito de demostrar as transformações desse espaço popular transfronteiriço. O relatório de pesquisa foi composto por narrativas de 10 mulheres que trabalhavam na atividade comercial na faixa de fronteira e que se dispuseram voluntariamente a dialogar sobre os aspectos do trabalho e moradia nas cidades gêmeas fronteiriças. Considerando que a organização política do território boliviano é constituída por departamento, província e municípios, faz-se necessário uma breve descrição geográfica do objeto investigado. A cidade de Puerto Quijarro pertencente à segunda seção municipal da Província de German Bush, possui importante centro comercial na linha de fronteira localizado em Arroyo Concepción que se encontra entre as coordenadas Latitude 17º 40’ e 18º 36’ Sul e Longitude 57º17’ e 57 26’ Oeste no departamento de Santa Cruz. A localidade delimitada pela pesquisa foi o centro comercial de Arroyo Concepción que mantém proximidade da cidade brasileira de Corumbá cerca de 4,5km e 15km de Puerto Suarez, sendo esta última a capital da Província de German Bush. Corumbá é o principal núcleo urbano dessa faixa de fronteira, representa 74% da população e está a 420 km de distância de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul e possui as seguintes coordenadas geográficas Latitude: 19° 0’ 35’’ Sul, Longitude: 57° 39’ 17’’ Oeste. Em termos de dimensão do território o município de Corumbá é o mais representativo totaliza 64.962,8 km2, representando 18,2% da área do estado de Mato Grosso do Sul, no entanto, sua densidade demográfica é de apenas 1,6 habitantes por km2 (BRASIL/IBGE, 2010). O município de Puerto Suarez está organizado numa área de 9.406,46 km2. Já Puerto Quijarro é o menor município da Província totaliza 2.033 km2 e possui maior densidade populacional de 8,58 habitantes por km2. Quanto a extensão estes dois municípios bolivianos representam apenas 3% da área do departamento de Santa Cruz (BOLÍVIA/INE, 2012). O local do comércio popular está concentrado próximo a linha de fronteira, especificamente entre as Calles 12 de Octubre e 11 de Septiembre, em Arroyo Concepción situado no município de Puerto Quijarro. Além disso, foi considerado que a rota do comércio popular era procedente do mercado atacadista e varejista das ruas da cidade de Santa 55

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Cruz de la Sierra que fica a 660 km da linha de fronteira boliviana e da cidade de La Paz que está a 1.109 km dessa localidade. Durante o levantamento de informações foram visitadas as seguintes localidades na cidade de Puerto Quijarro, foram estes: a) “Shopping de Puerto Aguirre”; b) Avenida Luis Salazar de la Vega e c) Centro Comercial “12 de Octubre”. Nas duas primeiras localidades o consumo estava direcionado para o turismo de compras, com destaque para os produtos importados do ramo de cosméticos, eletrônicos, bebidas, calçados esportivos, vestuário, decoração, artigos de pesca entre outros. Já a atividade comercial “12 de Octubre” estava direcionada para a revenda e consumo de produtos populares. A narrativa deste texto tratou sobre os principais elementos norteadores da estrutura dinâmica destas localidades, formados pelas diversas frentes de ocupação econômica, populacional e, recentemente, pela circulação de produtos populares organizada pelas famílias bolivianas.

O DESENVOLVIMENTO RECENTE DO COMÉRCIO POPULAR NA FAIXA DE FRONTEIRA ENTRE BRASIL E BOLÍVIA Até a década de sessenta do século XX a faixa de fronteira entre as cidades gêmeas de Corumbá e Puerto Quijarro era pouca povoada, de acordo com Oliveira (2009, p. 34) “(...) durante esse período a fronteira foi, nada mais, que um marco divisório sem expressão, de comunicação reduzida e ineficiente”. Apenas a cidade de Corumbá respondia por um dinamismo próprio pautado pelo comércio de exportação e importação, pelos investimentos no setor industrial e pelas relações comerciais e de produção da pecuária bovina (OLIVEIRA, 2009). Em termos gerais, pode-se dizer que, o dinamismo econômico da faixa de fronteira no período de 1938 a 1955 foi determinado pela expansão da pecuária extensiva realizada por brasileiros (OLIVEIRA, 1998). Enquanto no período de 1980 a 1990 a dinâmica foi dada pela exportação de grãos do departamento de Santa Cruz a partir da hidrovia do rio Paraguai (OLIVEIRA, 1998), (SANDOVAL, 2013). E por fim, nos anos 2000 o comércio popular transfronteiriço ditou o novo fluxo migratório e novas rotas de mercadorias que partiram de várias localidades da Bolí56

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via (TASSI et al., 2013) e do estado de Mato Grosso do Sul em direção a faixa de fronteira (SOKEN, 2016). O crescimento populacional de Puerto Quijarro aconteceu a partir da concentração de estabelecimentos comerciais nas proximidades da linha de fronteira. Nos anos 1990 um grupo com duzentos comerciantes bolivianos iniciou a construção do prédio comercial de produtos populares, tal investimento atraiu inúmeros outros comerciantes da parte ocidental boliviana para Arroyo Concepción (SOKEN, 2016). Atualmente, esse aglomerado urbano está localizado na segunda seção do município de Puerto Quijarro e participou com a população de aproximadamente 5000 habitantes no último censo boliviano (BOLÍVIA/INE, 2012). Além disso, os efeitos das políticas de controle inflacionário do Brasil, principalmente das décadas de 1980 e 1990, impactaram positivamente nas relações comerciais dessa fronteira com aumento de mais de cinco vezes os estabelecimentos comerciais atacadistas em relação aos varejistas na cidade de Corumbá, especialmente do comércio de produtos alimentícios industrializados (OLIVEIRA, 1998). Essas cidades fronteiriças receberam intensa corrente migratória da Bolívia proporcionada pela importante infraestrutura ferroviária (Red Oriental) e rodoviária (Ruta Nacional 4) que contribuíram para o deslocamento da população boliviana até a linha de fronteira (SANDOVAL, 2013). Segundo Pfrimer e Roseira (2009) foram os subsídios dados ao setor agroexportador na década de 1940 que atraíram novos investimentos de infraestrutura (ferrovia, estrada, energia, serviços financeiros, entre outros) para o lado oriental da Bolívia. Desta forma, entende-se que a dinâmica espacial de produção de commodities e a circulação de bens e serviços diversos possibilitou a recuperação da dinâmica comercial na faixa de fronteira das cidades gêmeas. A atividade atacadista gerida por famílias corumbaenses, na sua maioria de origem árabe, veio a suprir a demanda por produtos alimentícios, vestuário e calçados, enquanto do lado boliviano, outras famílias capitalizadas pelo comércio de fronteira se especializam em produtos importados de origem americana, chilena, entre outros e, posteriormente, na época se instalam nas zonas francas de Puerto Suarez e Puerto Aguirre. O comércio popular na fronteira boliviana, de acordo com Tassi et al (2013), é resultado da expansão dos pequenos negócios de exportação e importação para a linha de fronteira, organizados pelas famí57

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lias bolivianas. Trata-se de um tipo de comércio decorrente da flexibilidade industrial chinesa, que adapta os produtos populares conforme as necessidades e disposição de pagamento da população, adequando a qualidade, aparência, marca, embalagem e preço dos produtos ao gosto do consumidor, além disso oferece aos pequenos comerciantes lotes de mercadorias com custo reduzido. A sofisticação desse tipo de comércio popular está na venda de produtos pirateados oferecidos a preço atrativos. Outro fato que acelerou a inserção em massa de produtos chineses no território boliviano foi a política migratória que facilitou a ida de pequenos comerciantes para a China, bem como a baixa burocratização e institucionalização para exportar. Estas condições foram propícias para o crescimento do comércio popular no país (TASSI et al, 2013). Além disso, Tassi et al (2013) destacou a importância da expansão das redes familiares de comércio popular para às margens do território boliviano, que possibilitou ao Estado boliviano direcionar os investimentos em infraestrutura (pavimentação da Ruta 4) e reorganizar o território oferecendo novas oportunidades de negócios para áreas menos povoadas do país. Como destacado pela pesquisa, o distrito industrial de La Paz denominado de El Alto é o reduto de comerciantes populares de importação e exportação, foi o responsável pelo espraiamento dos negócios populares por todo o território até a faixa de fronteira boliviana. Conforme observado neste estudo, de fato os comerciantes populares da linha de fronteira receberam incentivos do Estado boliviano mediante permuta de investimentos privados em infraestrutura local em favor da manutenção da carga tributária baixa. A forma de organização política desses grupos comerciais familiares de Arroyo Concepción proporcionou poder político com cadeiras representativas nos comitês cívicos de Puerto Quijarro, considerando assim a sua importância, uma vez que a atividade comercial na faixa da fronteira ultrapassava a um milhão de dólares. É sabido que a cultura andina prioriza a organização econômica do trabalho familiar não remunerado, sendo assim, observou-se inclusive que a expansão do comércio para todas as partes da Bolívia ocorreu articulada às redes comerciais e produtivas de familiares chineses e bolivianos, cuja mão de obra boliviana na atividade comercial era predominantemente feminina. 58

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A partir da análise de Tassi et al (2013) sobre o comércio popular na Bolívia, pode-se entender que a condição de existência desse tipo de atividade na fronteira depende dessa multiplicidade de instituições, como bem disse: Estas diferentes institucionalidades y redes si, por un lado, garantizan ciertos niveles de confianza entre diferentes actores – camioneros, comerciantes, provedores -, en contexto donde las instituciones tradicionales no han logrado proveer un marco económico regulador, por el otro lado, generan un entramado de relaciones que funciona como una forma extensa de control y prevención de atividades y prácticas antisociales en el ámbito de la economia informal y de una serie de prácticas ilícitas. El capital social, en el contexto del comercio popular, cumple una función bastante más extensa y compleja de la de simple “lubricante” del sistema económico; con sus redes y estructuras, parece definir el “como” y el “hacia donde” este tipo de economia se expande (TASSI et al, 2013, p. 161).

Para fins de entender como a atividade de comércio popular se desenvolveu na faixa da fronteira entre Brasil e Bolívia, foi utilizado o relato da pesquisa de campo realizado no período de 2008 a 2014 sobre a organização das famílias bolivianas nesse lado do país.

NUANCES E PERSPECTIVAS DO COMÉRCIO POPULAR DA CALLE 12 DE OCTUBRE E ARREDORES Este relatório de pesquisa tratou de mostrar as transformações ocorridas no espaço urbano de uma cidade transfronteiriça. As imagens realizadas entre os anos de 2008 a 2014 permitiram evidenciar a estrutura da dinâmica comercial da Calle 12 de Octubre, a principal rua do comércio popular de Arroyo Concepción localizada próxima à linha de fronteira na cidade de Puerto Quijarro. O destaque comercial desta rua foi o “Centro Comercial 12 de Octubre” fundado pela associação de comerciantes em 12 de outubro de 1980, popularmente conhecido pelos brasileiros como “Feirinha” ou 59

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“Shopping Chão”. Este estabelecimento comercial localizado na Calle 12 de Octubre teve como primeira constituição a formação de cerca de mil comerciantes que se instalaram precariamente em uma área próxima à linha da fronteira e vendiam a céu aberto em terreno de chão batido produtos importados diversos. Em meados da década de 1990 restaram apenas uns duzentos comerciantes que formaram uma nova associação de comerciantes varejistas e atacadistas, cuja maioria era proveniente das cidades de La Paz, Oruro, Cochabamba e Santa Cruz e que coordenava a distribuição de produtos importados nesta localidade. Esse grupo construiu o atual prédio do Centro Comercial denominado “12 de Octubre”. Uma característica comum observada no “Centro Comercial 12 de Octubre” foi a predominância de bolivianas à frente dos negócios de compra e venda, elas formavam um pequeno grupo de atacadistas e varejistas especializado no setor de confecção. A forma de organização do trabalho predominante era familiar e acontecia com a seguinte definição de funções. Ao homem cabia o trabalho de carregar e transportar a mercadoria até o local de comercialização, no geral a maioria prestava serviço de fretamento de mercadorias entre as cidades fronteiriças. A mulher se responsabilizava em atender ao público, buscar informações sobre quais produtos seriam vendidos, barganhar na negociação com os fornecedores e viajar para realizar compras até as cidades bolivianas e/ou para o centro comercial popular das metrópoles brasileiras, dentre elas a cidade de São Paulo e Goiás. Quanto aos elementos urbanos dessa localidade com base nas imagens (Figuras 1 e 3), retratadas em agosto de 2008 foi possível evidenciar que a ocupação nos arredores da Calle 12 de Octubre era desordenada, a disposição dos elementos urbanos era precária, haviam ruas sem asfalto e sem calçamento, prédios inacabados, falta de ordenamento de trânsito, os locais para estacionamento de ônibus e vans estavam sem cobertura e havia esgotamento a céu aberto nas vias públicas. Passados os sete anos de atividade comercial transfronteiriça houve melhorias nas condições de oferta de infraestrutura urbana das principais ruas do comércio popular da fronteira, como o asfaltamento, o calçamento, o ordenamento do trânsito e construção do estacionamento de ônibus e vans. Nos terrenos vazios foram construídos novos prédios comerciais e residenciais. As fachadas dos prédios comerciais 60

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passaram a ter identificação dos estabelecimentos, embora ainda foi possível encontrar alguns estabelecimentos com fachadas inacabadas (ver Figuras 2 e 4). A imagem (Figura 5) revelou o crescimento da área comercial ao redor da linha de fronteira com a construção de novos empreendimentos cujas atividades complementam o comércio popular, tais como as atividades de serviços de hotéis, restaurantes, supermercado, agência bancária, agências de turismo, casas de câmbio etc. Ao longo de sete anos de observação, foi possível verificar que os comerciantes da Calle 12 de Octubre quando na fase de estruturação comercial teve como incentivo a cooperação financeira entre familiares e amigos, conhecida como pasanako. Trata-se de um consórcio entre amigos e familiares que funciona como um sistema informal de capitalização financeira, cuja estrutura depende de confiança entre os integrantes do grupo. Esse sistema informal de capitalização exige que cada participante realize depósitos mensais referentes a valores previamente definidos pelos integrantes. Ao final de cada mês forma um montante que é sacado por um participante de cada vez mediante a realização de lance. O comerciante de posse do montante obtido pelo sistema financeiro informal realizava compras de mercadorias e/ou investia em novas propriedades comerciais e residenciais na faixa da fronteira ou destinava esses recursos para outras atividades na cidade de Santa Cruz de la Sierra. Outra estratégia financeira que beneficiou os comerciantes fronteiriços foram as variações da taxa de câmbio das moedas cotadas em Reais, Boliviano e Dólar. É comum ocorrer em espaços fronteiriços a circulação de mais de uma moeda. Tal estratégia mantém os preços dos produtos vendidos mais competitivos. As cotações de moedas possibilitaram aos comerciantes realizar transações mais vantajosas nessas localidades de fronteira. O comércio das três moedas Real (R$), Dólar (US$) e Boliviano (Bs$) era realizado pelo mercado informal de câmbio na linha de fronteira do lado boliviano, considerada a forma de transação comercial mais comum entre as comerciantes bolivianas que estavam acostumadas a receber a moeda brasileira (R$) e realizavam a troca para moeda local, o boliviano (Bs$) que é três vezes menos valorizado10 que o Real, ou seja,

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A taxa de câmbio da moeda boliviana está em R$ 0,33 conforme consulta ao Banco Central do Brasil em 08/07/2013.

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a cada um Real recebido convertido em moeda boliviana recebia cerca de três bolivianos. Já a circulação da moeda americana (US$)11 ocorria intensivamente entre os comerciantes de importação, restando a circulação das moedas Reais e os Bolivianos no comércio da linha de fronteira que eram mais comuns entre as comerciantes populares. A relação entre a instituição bancária e o comércio popular é um tanto instigante. Na Bolívia, conforme observado por Tassi et al (2013), é comum o comerciante utilizar os serviços bancários apenas para algumas situações, tais como manter uma conta corrente apenas para receber o pagamento de mercadoria, uma vez que a tomada de empréstimos é realizada sem a exigência de abertura de conta bancária. Durante a pesquisa de campo foi observado significativa presença de instituições financeiras na cidade de Puerto Quijarro, entre elas se destacaram, o Banco Unión, o Banco Bisa, Banco Sol, a Cooperativa Jesus Nazareno e outras. A tomada de empréstimos era facilitada para os comerciantes da fronteira, cuja avaliação se fazia in loco onde se analisava o tamanho do estabelecimento, o volume de mercadorias compradas. Além disso, era costume estabelecer o contato pessoal. É fato que a circulação de dinheiro em espécie no comércio popular tem relação direta com o tipo de gestão familiar operacionalizado pelas famílias bolivianas. Segundo as observações de Tassi et al (2013), era comum o pagamento de pequenas despesas domésticas com o fluxo de caixa, bem como a realização de negócios diariamente que envolviam desde pequenos valores a grande quantidade de dinheiro. Com base no levantamento de estabelecimentos bancários na Bolívia, Tassi et al (2013, p. 61) revelou que o tamanho da rede financeira na Bolívia quase duplicou no período entre 2007 e 2012. Em 2007 existiam 1.813 pontos de atendimento financeiro e no ano de 2012 esse número subiu para 3.736 pontos espalhados pelo país. O crédito para o comércio se manteve as taxas elevadas de 49% em 2010 e 32% em 2011, bem superior aos demais setores produtivos, como a indústria manufatureira e a construção civil, que chegaram a 14% em 2011 e as atividades de serviços, como transporte, armazéns e comunicação que não passaram de 9%. Outra característica observada nessas localidades fronteiriças foi a forma que as famílias bolivianas se apropriavam de renda extra

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A moeda americana está cotada em R$ 2,26 (reais) e Bs$ 6,86 (bolivianos), conforme BACEN em 08/07/2013.

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geradas pelas transações comerciais de carros e motos, mercadorias de alta liquidez que eram cotizadas em moedas diversas. Tal negócio rendia uma boa margem de lucratividade. Uma situação que foi diagnosticada durante a pesquisa na faixa da fronteira foi quanto ao destino do dinheiro que era utilizado tanto para os investimentos de compra e venda de veículos automotores quanto para os gastos do cotidiano doméstico da família. Dentre as decisões de investimentos, observou-se que algumas famílias preferiram investir em bens imóveis nas cidades da linha de fronteira ou nos centros urbanos mais dinâmicos da Bolívia, principalmente em Santa Cruz de la Sierra, já outras optaram em investir na educação dos filhos com pagamento de mensalidades da escola/faculdade que ficam na cidade de Santa Cruz. No geral existem nessa faixa de fronteira, assim como em outras localidades, conforme observou Tassi et al (2013) uma multiplicidade de instituições que se relacionam com as associações comerciais, familiares e a vizinhança; há uma rede de compadrios e de parentesco que subsidiam o mercado de trabalho; há uma rede de fornecedores, clientes e atravessadores (sacoleiras) que garantem a estabilidade dos negócios, e por fim, existem formas de articulação com funcionários da aduana, instituições estatais, que ajudam com os trâmites administrativos do processo de importação.

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Figura 1 – Calle 12 de Octubre, Arroyo Concepción, Puerto Quijarro, centro de produtos populares, agosto de 2008. Fonte: autora

Figura 2 – Calle 12 de Octubre, Arroyo Concepción, Puerto Quijarro, centro de produtos populares, setembro de 2014. Fonte: autora

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Figura 3 – Calle 21 de Septimbre, Arroyo Concepción, Puerto Quijarro, centro de produtos populares, agosto de 2008. Fonte: autora

Figura 4 – Calle 21 de Septimbre, Arroyo Concepción, Puerto Quijarro, centro de produtos populares, setembro de 2014. Fonte: autora

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Figura 5 - Ruta Nacional 4, Arroyo Concepción, Puerto Quijarro. Área comercial na linha de fronteira, setembro de 2014. Fonte: autora

CONCLUSÕES O comércio popular existente nas proximidades da linha de fronteira entre Brasil e Bolívia foi organizado por unidades familiares que se juntaram e formaram grupos que cooperaram entre si. Entende-se por comércio popular a atividade comercial que circula os produtos de consumo básico e úteis, geralmente oferecidos com preços reduzidos e em localidades de grande fluxo de pessoas. É importante ressaltar que essa pesquisa não tratou de atividade comercial informal ou ilegal, uma vez que todas as informações levantadas foram realizadas em estabelecimentos comerciais selecionados e devidamente instalados, que adotavam pelo menos um dos métodos de controle, seja de contrato de trabalho e/ou controle das transações comerciais mesmo que de modo simples para realizar a atividade. Os resultados dessa pesquisa corroboram com a ideia de que as famílias transfronteiriças se apropriaram da atividade comercial na faixa de fronteira para obter vantagens comerciais com uso de várias moedas. 66

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As variações cambiais possibilitaram alternância dos negócios familiares nos dois lados da linha de fronteira. Observou que o comércio local já tem sua dinâmica atrelada à variação das taxas de câmbios entre as moedas boliviana, brasileira e americana. Por ora, é comum encontrar estabelecimentos comerciais de brasileiros e de bolivianos localizados nos dois lados da linha de fronteira que aceitam realizar transações comerciais utilizando mais de uma moeda. Quanto ao acelerado processo de ocupação dos espaços urbanos da faixa de fronteira foi possível observar que os vínculos familiares e de amizades foram determinantes para a organização dos negócios e dos contratos de trabalho somados à vasta oportunidade de realizar a atividade comercial por toda a Bolívia. Tais aspectos ajudaram a compreender a formação e o crescimento da atividade comercial nas cidades fronteiriças. No geral foi observado que a expansão do comércio popular dependia da amplitude da rede familiar. Um comerciante solteiro precisava de uma esposa e filhos para conseguir diversificar o negócio e poder se deslocar para outros mercados mais atrativos; dependia da rede social criada pelos parentes (irmãos, tios, cunhados) para facilitar o acesso a novos mercados e também para conseguir reduzir custos ao realizar compras em cooperação. Até o momento, constatou-se que a atividade comercial da cidade de Corumbá esteve vinculada ao comércio de exportação e importação. Tem sua dinâmica econômica determinada de fora para dentro do local. Por outro lado, a atividade comercial da cidade boliviana de Puerto Quijarro se apoia no grupo familiar existentes nas cidades cruceña e no altiplano boliviano, além do estreitamento de amizades com as comerciantes brasileiras conhecidas por “sacoleiras” provenientes de várias localidades do estado de Mato Grosso do Sul que complementam a dinâmica comercial determinado pelo próprio espaço fronteiriço. Então, este estudo concluiu que as dinâmicas comercias das cidades gêmeas da faixa de fronteira estão suportadas pelas taxas cambiais e por preços baixos dos produtos do comércio popular, sendo assim é louvável pensar esse espaço de fronteira a partir da sua dinâmica local.

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4 A LÓGICA DO ILÍCITO E AS REDES CRIMINAIS: MATO GROSSO DO SUL E AS ROTAS TRANSNACIONAIS DOS CRIMES ORGANIZADOS

Gilberto de Souza Vianna O presente texto foi elaborado para o III Encontro Regional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ERABED), que foi realizado em 201912 no campus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, na aprazível cidade de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. A ideia principal do artigo é inserir o Estado referido na órbita dos debates de uma das linhas de pesquisa realizadas no Laboratório de Estudos e Pesquisa em Defesa e Segurança Pública (LEPDESP13): a de crime organizado, redes criminais e rotas do crime organizado. As possibilidades de inserção do Mato Grosso do Sul – e não apenas Mato Grosso do Sul, mas toda a região Centro-Oeste do Brasil – vem da posição geoestratégica que este estado possui no território brasileiro: o estado do Mato Grosso do Sul faz fronteira seca com o Paraguai e a Bolívia e, por sua posição central na América do Sul, onde se pode acessar pelas vias de transporte, praticamente para todas as regiões da América do Sul. Os estados do Centro-oeste, desde o século XVI, são importantes para a expansão colonial do Brasil. Na verdade, antes mesmo, no período pré-cabralino, o caminho indígena do Peabiru fazia uma intensa rota entre os litorais dos atuais estados de São Paulo e do

A pandemia da Covid-19 ainda nem era cogitada.

Até a data do ERABED, 2019. O LEPDESP é fruto de uma parceria com a ESG (Escola Superior de Guerra) e o IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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Paraná com as culturas do altiplano andino (DONATO, 1997). O próprio aventureiro espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca, um aventureiro ímpar no século XVI, percorreu e narrou a existência do caminho. Outra característica que esta região possui é ser uma região de fronteira de contato e de conflitos. Com a União Ibérica (1580-1640), a região foi foco de expansão territorial protagonizada pelos bandeirantes – ou, como os espanhóis os chamavam, os portugueses de São Paulo –, que percorreram a terra mato-grossense em seus ciclos de ouro de lavagem e de caça ao índio. Existe uma narrativa de Basílio de Magalhães, datada em 1648, sobre este tráfico de bandeirantes em território sul-mato-grossense: Partiu Antônio Raposo de São Paulo em 1648, por caminhos que os cronistas não mencionam; em 1649, estava ele em território de Mato Grosso, onde encontrou várias aldeias de índios catequizados pelos jesuítas espanhóis vindos do Paraguai. (MAGALHÃES, 1979, p. 105)

Com o fim da União Ibérica (1640) e a assinatura do Tratado de Madrid (1750), a região de Mato Grosso e Goiás foi incorporada aos territórios do novo mundo sobre domínio português e Mato Grosso e Goiás logo foram elevadas a condição de capitanias gerais, como novamente narra Basílio de Magalhães: É incontestável que essas explorações dos rios ocidentais do Brasil influíram consideravelmente nas negociações do tratado de Madri de 1750, que triplicou a área atribuída ao nosso país pelo pacto de Tordesilhas. Além da sábia medida de ereção das terras de Goiás e Mato Grosso, em 1744 e 1748, à categoria de Capitanias-Gerais- argumento robusto para a vitória do princípio do Uti-possidetis. (MAGALHÃES, 1979, p 193)

Não é a intenção deste artigo realizar um debate sobre a história do Estado do Mato Grosso do Sul, mas demostrar que tal Estado é um espaço de disputa de trânsito e caminho. Isso se intensifica ainda no século XVIII com o movimento das monções, palavra de origem árabe segundo Vainfas (2000, p. 405). Este termo designa, na verdade, uma rota comercial que partia de São Paulo e chegava a Cuiabá, realizando um 74

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fluxo de mercadorias. As monções duravam em torno de seis meses. Utilizando os rios, atravessavam todo o estado de Mato Grosso e, segundo Sergio Buarque de Holanda (1990, p. 85), durante todo o século XVIII, tinham uma frequência anual até o estabelecimento de transportes fluviais via Rio Paraguai e transporte a vapor depois da segunda metade do século XIX, só interrompido com o período da Guerra do Paraguai e retornando ao fim do conflito. Os antigos caminhos indígenas, bandeirantes e fluviais foram modernizados, inicialmente, com a estrada de Ferro em 1914, a famosa transpantaneira, objeto de música e poesia regional, e uma intensa malha rodoviária visando transporte e escoamento da produção agropecuária da região que, na segunda metade do século XX, iniciou como fronteira agrícola. Em 11 de novembro de 1974, no governo do presidente Ernesto Geisel, ocorreu o desmembramento do estado do Mato Grosso do Sul – e é considerada quase uma heresia de quem visita o estado e não pronuncia o “Sul” como forma de diferenciação entre os estados.

UM NOVO CAMINHO DO PEABIRU: CAMINHOS DO MATO GROSSO DO SUL O pequeno exercício histórico serve para uma provocação de que assim como existe uma nova rota da seda utilizando um antigo e secular caminho apenas modernizado ligando a China à Europa, Mato Grosso do Sul sofre com a existência de um novo caminho do Peabiru, que liga os portos do Paraná e de São Paulo aos países do Altiplano. Com uma estrutura interessante, a BR-364, conhecida como rodovia interoceânica, praticamente foi construída no mesmo traço do antigo caminho indígena e depois bandeirante do Peabiru. É justamente aí que temos o encontro de Mato Grosso do Sul com a nossa linha de pesquisa. As redes criminais utilizam frequentemente as estruturas de infraestrutura do Estado e, muitas vezes, estabelecem relações com redes não criminais como forma de diversificação de suas atividades. Mesmo sem se concretizar a finalização da BR-364, o crime organizado de diversas atividades ilícitas, como contrabando de cigarros, contrabando e produtos falsificados e os nefastos tráficos de drogas e tráfico de pessoas para trabalho escravo, faz uso desta rodovia. 75

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Antes de prosseguir, temos que fazer um exercício importante: identificar que todo crime organizado é a concretização de uma ação comercial ilícita. O crime organizado necessita de segurança, principalmente por seu produto ser ilícito, necessita de estruturas para escoar seus produtos ilícitos e, antes de tudo, necessita de apoio regional para a concretização de suas atividades. Por isso ele realiza uma rede criminal: para que sua rota de produtos ilícitos seja estabelecida e mantida sem interferência dos que deveriam interferir. Dentro desta lógica do crime organizado, a corrupção do agente público (em qualquer esfera) é uma forma de pagar imposto para o fluxo de suas atividades. Pelo crime organizado ser ilícito, junto a ele existe o tráfico de armas, que garante a segurança do empreendimento e que, gostaria de acrescentar, é sempre de risco. A dimensão transnacional da indústria das drogas ilícitas não é apenas em função da distância territorial entre as principais regiões de produção e de consumo. Ela também consiste nas conexões que são feitas por meio de redes e organizações com diversas bases que, às vezes, desenvolvem operações transnacionais. Assim, as diferenças nos códigos legais dos países e as capacidades de aplicação da lei moldam as oportunidades para os empresários de drogas evitarem os riscos de interdição e acusação e proporcionar o florescimento de seus negócios. Para analisamos o crime organizado e o narcotráfico como uma atividade econômica ilícita e melhor compreendermos a sua atuação no corpo social (e como, em nossa sociedade, ele passa a ser a cada etapa de sua superestrutura um agente da violência tanto pelo crime organizado, quanto pelas forças repressoras), o conflito, a violação e o abuso de força somados à violência endêmica provocada pelo Estado, principalmente quando promovida por políticas sociais desastrosas ou, simplesmente, o abandono de áreas urbanas socialmente vulneráveis, constroem uma equação não muito fácil de resolver, surgindo clamores por estado de exceção, o que é algo bastante perigoso e desgraçadamente atual, como fala Agamben (2002, p. 17): A nossa política não conhece hoje outro valor (e, consequentemente, outro desvalor) que a vida, e até que as condições que isto implica não forem solucionadas, nazismo e fascismo, que haviam feito da decisão sobre a vida nua o critério político supremo, permanecerão desgraçadamente atuais. 76

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Assim como os indivíduos podem ficar viciados no uso de drogas, grupos dessas comunidades estão se tornando viciados no dinheiro gerado no negócio de drogas, isso parece ser igualmente verdadeiro para as agências com a atribuição de controlá-los. O comércio de drogas possibilita aos empresários do tráfico (os gerentes da estrutura) contatos com políticos, lembrando que, além de financiarem as campanhas com vultosas quantias em dinheiro obtidas pela atividade, podem ser bons “cabos eleitorais” e contam com a imunidade e a licença de exercer a violência. Dessa maneira, as facções que controlam o tráfico no Brasil têm conseguido alterar a ordem histórica do Estado e da economia ao promoverem uma violência maior do que a tradicional, mas oferecendo mais oportunidades de mobilidade e promoção para os estratos mais baixos, pois impõem uma ordem econômica nas respectivas regiões, gerando benefícios para a comunidade de maneira fácil e ágil. A logística e sua estrutura organizacional são simples e rapidamente reconectadas. O tráfico de drogas é, em grande parte, um negócio transnacional. A sua indústria consiste em várias etapas: cultivo, refinação, transporte, distribuição, lavagem de dinheiro e investimento de receitas. Em cada estágio da trajetória da droga, desde a produção até a distribuição, obtêm-se lucros que são consumidos ou investidos, mas, muitas vezes, exigem alguma forma de lavagem para esconder suas origens ilegais. Ao legalizar o dinheiro proveniente do comércio de drogas, a criminalidade passa a participar da normalidade da vida econômica, criando entidades e empresas. Esse processo gera uma competição desigual entre os investidores lícitos e aqueles detentores de capitais de origem ignorada, o que compromete a estabilidade econômica, a normalidade política derivada da economia e as bases legais do Estado, pois, ao contrário do que muitos acreditam, estes grupos à margem da Lei não só controlam a atividade do tráfico, mas também regulam o acesso a instituições nacionais, estabelecendo estruturas de controle clientelista locais e o exercício da violência, elementos que compõem o seu poder logístico. Não obstante as estruturas internas das grandes organizações criminosas, essas organizações mudaram dinamicamente nos últimos anos no Brasil. Atuando no Mato Grosso do Sul, temos o Primeiro Comando da Capital (PCC), originário dos presídios de São Paulo, uma organização criminosa transnacional; e o Comando Vermelho (CV), ori77

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ginário dos presídios do Rio de Janeiro, com uma atuação nacional. Em 2019, no Brasil e principalmente em Mato Grosso do Sul, não se encontrou com facilidade grupos criminosos organizados em uma estrutura vertical, operando exclusivamente em uma determinada região ou envolvidos exclusivamente em apenas um tipo de atividade criminosa. No Mato Grosso do Sul, a facilidade em cruzar a fronteira permite que os centros de produção e de comercialização de produtos ilícitos se aproximem. Graças a isso, encontramos, nas organizações criminosas estabelecidas na região, estruturas muito complexas que compartilham riscos14, dividem tarefas e geram padrões que, constantemente, se modificam com alianças que podem ser reconfiguradas a qualquer momento. Paradoxalmente, a forma como muitos governos estão lutando contra essas organizações criminosas praticamente não mudou e a utilização das forças armadas, a Garantida da Lei e da Ordem (GLO), se tornou comum com a invocação do artigo nº 142 da Constituição Brasileira, geralmente recorrido para realizações de combate ao tráfico de drogas. É importante lembrar que a cidade de Campo Grande é a cede do Comando Militar do Oeste (CMO), fundado em 1985, e as ações dos militares, muitas vezes em conjunto com a polícia local, acaba sendo algo necessário em um estado com uma larga fronteira e que está no meio do caminho entre os centros produtores de produtos ilícitos e os grandes centros consumidores como São Paulo e Rio de Janeiro – somado a isso, no meio do caminho dos portos por onde escoa, de forma ilícita, toda uma grande produção de drogas. Geralmente, as estratégias do governo são limitadas ao nível local e os mecanismos projetados para o combate como um fenômeno transnacional raramente são implementados.15

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A exceção de organizações concorrentes como o PCC, CV e Família do Norte.

O mercado global de cocaína vale cerca de 71 bilhões. Os maiores produtores são a Colômbia, equivalendo a cerca de 50%; Peru, 32%; e Bolívia, 15%. Destes três países, a Colômbia é o maior produtor de folha de coca e de cocaína desde 1997. No mundo, existem 13 milhões de consumidores de cocaína, 2 milhões estão no Brasil (ONU, 2017).

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A ANÁLISE DE REDES CRIMINAIS Já defendemos a ideia de que as redes de transporte e comunicação construídas no estado de Mato Grosso do Sul, durante séculos, são um facilitador de transporte de mercadorias e escoamento da produção do estado, mas também são utilizadas como rotas por diversas facções de crime organizado. Para que isso ocorra, o crime organizado estabelece uma rede facilitadora e de confiança que permite a sua atividade, utilizando, para isso, uma rede de corrupção que atinge um número de agentes públicos. Como as organizações criminosas têm uma arquitetura complexa, a mais objetiva forma de mapear a sua estrutura interna e as suas relações com outras organizações criminosas – e até com agentes públicos – é através do levantamento e estudo de redes, e não através de diagramas hierárquicos. A partir da análise de redes, podemos obter informações relevantes que podem auxiliar o desenho de políticas de segurança pública em todas as esferas; além do que, uma correta análise de rede alimentada, obviamente, pelos bancos de dados das secretarias de segurança e fazendo o cruzamento entre eles pode contribuir para construir cenários, sendo, portanto, uma ferramenta útil para fazer previsões sobre o comportamento de uma ou mais organizações criminosas. Claro que esse estudo não é simples, pois as organizações criminosas são extremamente criativas e mudam a sua atividade mediante o lucro ou o grau de periculosidade. As formas organizacionais menores podem parecer eventos tão triviais, mas, quando agregados, emergem como um problema considerável – a maioria dos crimes envolve mais de uma pessoa. Pequenas atividades, como a organização de festas rave, podem servir com ponto de venda de drogas sintéticas e se articular em uma rede maior. Portanto, podemos dizer que a finalidade, as formas e o conteúdo das organizações criminosas variam em uma contínua metamorfose, como afirma o pesquisador italiano Carlo Morselli em seu livro “Inside Criminal Networks” (2009). O crime organizado é extremamente dinâmico, as atividades de suas redes criminais variam de simples decisões de ações ilícitas para aproveitar uma oportunidade criminosa momentânea até sofisticados projetos para monopolizar um determinado mercado ou território geográfico. Como exemplo, podemos utilizar o fato ocorrido na cidade de Pedro Juan Caballero, cidade vizinha de Ponta Porã. O assassinato de 79

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Jorge Rafaat (comerciante com negócios ilícitos na fronteira) pelo PCC com uma metralhadora .50 para furar a blindagem do seu carro fez com que tal grupo dominasse a rota de tráfico de drogas que parte de Ponta Porã, chega em São Paulo (capital) e é encaminhada ao porto de Santos para ser entregue na África, na Europa e no Oriente Médio. Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias narram em seu livro “Guerra: ascensão do PCC e o mundo do Crime no Brasil” a situação em Ponta Porã após o assassinato de Jorge Rafaat: “A fronteira é lugar perigoso”, disse um interlocutor, natural de Ponta Porã e um dos primeiros líderes do PCC em solo paraguaio. Após a Execução do Rei da fronteira, um vácuo de poder foi sentido na região, mas não faltariam grupos e indivíduos dispostos a preenchê-lo. Uma constelação desmanchava-se conforme os tiros da metralhadora antiaérea furavam a blindagem do jipe Hummer dirigido por Jorge Rafaat Toumani. Caminhando por Ponta Porã e Pedro Juan Caballero nas semanas após a execução, era possível perceber o clima de apreensão, incerteza e medo. A população dos dois lados da fronteira não sabia o que aconteceria a partir dali, mas tinha uma certeza: aquele era o episódio mais marcante da guerra e estava longe de ser seu capítulo derradeiro. O derramamento de sangue não acabaria tão cedo. (MANSO; DIAS, 2018, p. 71)

O exercício da violência praticado pelo crime organizado nos leva a outra vertente, ou seja, à exposição e ao uso ostensivo de armamentos (notadamente fuzis), dois movimentos complementares: o tráfico de armas e o tráfico de drogas. Importante salientar que a ostentação de armas tem uma concentração maior onde existe uma disputa de rotas e de fornecedores para a comercialização do varejo de drogas entre as várias facções. O tráfico faz um movimento identificado por Michael Mann (2013) como “a revolução violenta da arma barata”. Mann aplicou a grupos terroristas, mas cabe bem no caso do tráfico.

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UM PEQUENO COMENTÁRIO SOBRE METODOLOGIA DE ANÁLISE DE REDES SOCIAIS COM O SOFTWARE OPEN SOURCE Esta pesquisa de redes criminais começou a evoluiu com a formação do LEPDESP e com a utilização de bancos de dados extraídos de programas gestores de redes sociais on-line como o Facebook e o Twitter. Este levantamento inicial constituiu um empreendimento árduo, demorado e contou com o relevante apoio do então Capitão Luiz Américo, graduado em estatística e membro do quadro permanente da Escola Superior de Guerra (ESG). Foram utilizados o programa Microsoft Access 2007, para a criação do banco de dados e listas nominativas, juntamente com o software Open Source, denominado Gephi, que possibilita a construção de grafos que podem ser empregados para análise de redes sociais. A escolha do Gephi se deu pelo fato de o programa ser amigável e de fácil criação de conectores de dados sociais no mapeamento das organizações comunitárias e redes associativas, porém existem outros programas com o mesmo fim. O levantamento de banco de dados identificando criminosos, agentes públicos e, mais ainda, as suas ligações em redes de amizades estabelecidas em programas sociais foi um passo para a utilização deste banco de dados interligados ao estudo das redes sociais e associativas. Esse levantamento foi bastante útil no decorrer da pesquisa piloto e, para alimentá-lo, foi iniciado um trabalho de levantamento de fontes a partir dos arquivos, identificando um possível criminoso e o elegendo como nó principal, partindo, então, para mapear a sua rede de confiança e estabelecer elos e ligações, nos quais foi possível delinear as relações estabelecidas e a prática do ilícito. A organização é vital para caracterizar como crime organizado uma associação delinquente: alto poder de intimidação e violência; preferência pela prática de crimes rentáveis, entre eles extorsão, pornografia, prostituição, jogos de azar, tráfico de armas e entorpecentes; tendência a expandir suas atividades para outros países em forma de multinacionais criminosas; e, finalmente, diversidades de atividades para garantir uma maior lucratividade. Dentre a gama de sistemas organizacionais criminais, as interações entre coparticipantes podem ser baseadas em laços familiares ou de amizade, afinidades de fundo, compartilhamento de recursos, expe81

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riência individual, lealdade de grupo ou governança por um líder dominante. Criam redes de confiança criminal, claro que garantidas em um “jus criminal”, em que a pena quase sempre é a morte de quem falha com a organização e seus familiares. As redes sociais criminais se tornam um fator decisivo para entender as diversas ramificações que elas podem atingir. Porém, compreendendo que as organizações criminais não pretendem se sobrepor ao Estado ou substituí-lo, pretendem, sim, utilizar o seu recurso e a sua estrutura, e preferem um Estado mínimo em ação de segurança e fiscalização, esses anseios são de uma vasta organização criminosa que rege as ações que possam afetar e interromper os sistemas de valores que mantêm a ordem coletiva.

NA FORMAÇÃO DA REDE SOCIAL, AS COMUNIDADES DE INTERESSE NO CRIME Em recente artigo publicado na revista da Escola Superior de Guerra denominado “As fronteiras do Estado: violência, milícia, crime organizado e políticas de segurança públicas em áreas socialmente vulneráveis”, Vianna e Castelo Branco (2017) estabelecem que uma das condições para a criação do crime organizado e das redes criminais é a criação e o desenvolvimento de uma “comunidade de interesse no crime” – uma coalizão de grupos com interesses psicológicos, morais e materiais – entre empresários de drogas e agências estatais coercitivas ou pelas elites de poder que as controlam. Neste contexto, podemos ver um aumento aparentemente contraditório tanto na importância de atividades criminosas ou criminalizadas específicas, como nos poderes coercitivos dos Estados (polícia, militares, agências alfandegárias, aparelhos fiscais e de inteligência). A complexidade política e burocrática do Estado, que retarda o atendimento às necessidades dos moradores (saúde, emprego, saneamento básico), favorece a “comunidade de interesse no crime”, onde coabitam as forças de repressão e o narcotráfico. Por outro lado, não se pode negar que o narcotráfico assume o papel “social” realizando pequenas ações assistenciais como auxílio no pagamento de contas básicas dos moradores, custeando consultas médicas, ou intermediando pequenos conflitos e disputas entre moradores. 82

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A existência de crime e de violência com diversas facções criminosas e milícias dominando extensas áreas, colocando grande quantidade de pessoas à margem do poder do Estado e em situação de vulnerabilidade denotam a ausência efetiva do poder público. Diante desse cenário, podem ser elaboradas algumas hipóteses básicas que se busca seguir neste ensaio, como a dinâmica dentro e entre as forças sociais de ambos os lados da que lei não tende a se manter umas às outras, mas reforça-se mutuamente, seja agindo de forma concentrada ou por interações mais sistêmicas. Este apoio mútuo tem muitas formas e muitos níveis, mudando ao longo do tempo e localização. No entanto, a consequência dessa troca é que os interesses de ambos os grupos são avançados em detrimento do interesse da população local, de terceiros e de segmentos significativos das sociedades em que se desenvolve, tornando precária a vida das pessoas fora desta “comunidade de interesse no crime”. Em Mato Grosso do Sul, esta situação é visível nas periferias de Campo Grande, Dourados, Corumbá, Porto Murtinho, Bela Vista e Ponta Porã. No sistema financeiro do país, a ordem jurídica da redistribuição dos lucros é mais complicada e os resultados dos programas sociais demoram a beneficiar as sociedades carentes. Grande culpa desse cenário pode ser atribuída ao Estado que, devido à sua desorganização, perde a credibilidade quando, em nome de interesse político, divulga e promete medidas para combater a criminalidade, promessas que ficam além de sua eficiência e não são aplicadas. Ao mesmo tempo, os participantes da rede não estão necessariamente conscientes da rede de que fazem parte, nem estão necessariamente conscientes de sua posição entre outros. Com estas iniciativas, o crime organizado conquista a simpatia dos moradores e provoca a intolerância entre moradores e policiais, principalmente quando estes intensificam a sua ação legal no “território do tráfico”, ficando evidenciada a preferência do domínio do poder marginal ao Estado. Essa precariedade é denunciada por Judith Butler (2016, p. 34): A precariedade perpassa as categorias identitárias e os mapas multiculturais, criando, assim, a base para uma aliança centrada na oposição à violência de Estado e sua capacidade de produzir, explorar e distribuir condições precárias e para fins de lucro e defesa territorial. 83

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Portanto, uma rede criminosa está estruturada e se ajusta aos agentes de controle social formais e informais – notadamente a ação da polícia, serviços públicos e um certo controle da comunidade. Por outro lado, esta rede está estruturada e se ajusta a disputas e conflitos típicos de concorrência que não podem ser resolvidos por controle social legítimo. O aumento concomitante do poder das forças de mercado e o impacto das reformas neoliberais debilitaram as capacidades dos Estados ou a disposição de regular e controlar esses fluxos. A globalização também tem promovido a expansão de redes e transações ilegais em todo o mundo. A tecnologia financeira torna mais fácil esconder o produto do crime e aumentar o comércio em geral, susceptível em relação às oportunidades de contrabando e fraude. Tais consequências podem, no entanto, ser provocadas mais pelo fato de suas atividades serem ilegais, do que as suas organizações criminosas. O maior poder de alavanca que o crime organizado pode atingir é a sua intocabilidade – que vem com a internacionalização de suas atividades –, que o torna uma ameaça à autoridade de um Estado, situação que se agrava na medida em que os governos recorrem, cada vez mais, à criminalização e a meios repressivos para o controle de suas atividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O estado do Mato Grosso do Sul é um fator de integração do Brasil. De área de expansão colonial no século XVII à revolução do agronegócio implementada em seu território, a sua rede de estradas e malha fluvial e rodoferroviária fortalecem o caráter geoestratégico do Estado. No entanto, as mesmas condições estratégicas que favorecerem uma marcha para o Oeste, atualmente, são utilizadas por diversos setores do crime organizado, que se aproveitam desse território e de seu sistema viário para atingir os grandes centros consumidores e os portos nos quais o seu produto ilícito pode ser embarcado para fora da América. O crime organizado, no entanto, causa danos na periferia, deixando as vidas das pessoas que moram nessas áreas em que mantém um controle velado vulneráveis à sua lógica. O crescimento desse crime organizado ocorreu na ausência do Estado, em todas as esferas, e favoreceu uma “comuni84

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dade de interesse no crime”, visto que o tem como fonte de renda. Além de afetar as relações interpessoais e o patrimônio individual, o crime organizado e a lavagem de dinheiro têm objetivos e finalidades especiais, com espírito empresarial, uma série de macro atuações – algumas de caráter multinacional – e que influenciam, de maneira importante, o próprio sistema econômico, permitindo ter um grande poder de corromper agentes públicos. A questão é: como realizar uma política pública de Estado no combate ao crime organizado em um mundo globalizado onde o crime age como empresa transnacional e amplia as suas operações constantemente? Uma resposta pode ser o mapeamento científico destas rotas e o Estado, junto com as universidades, possibilitar o estudo da sociologia do crime para, assim, ter subsídios. Na formulação de sua política, Mato Grosso do Sul é peça chave nesta estrutura, mas, antes disso, tem que se conhecer a estrutura perversa que passa pelos caminhos do Estado.

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5 VULNERABILIDADES ESTATAIS: CRIMINALIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA

Leila Bijos INTRODUÇÃO As vulnerabilidades estatais em face das mudanças contemporâneas observadas nas grandes potências mostram a necessidade de formação de capacidades, decorrente da ausência de fronteiras entre os países, do livre trânsito de pessoas e mercadorias, o que redunda no incremento de negócios ilícitos, como o narcotráfico, tráfico de armas, de substâncias entorpecentes, e atividades terroristas. O terrorismo age sub-repticiamente, não mostra a sua face, ataca as nações, desestabiliza os sistemas governamentais e insufla a insegurança internacional. Segurança para a maioria das pessoas significa segurança física e psíquica para si e para os seus; por conseguinte, representa paz e sua preservação. Preservar a paz exige tanto a habilidade de evitar o uso da força quanto de oferecer-lhe resistência; e a salvaguarda da segurança de outros valores, em geral, requer a mesma habilidade. Propiciar a segurança, portanto, significa organizar o poder do Estado Nacional e dos organismos internacionais, de forma a capacitá-los para enfrentar novas situações, em que o terrorismo se faz presente, antecipar-se aos ataques das organizações terroristas, conjugar ações e compromissos dos Estados visando evitar a agressão de um Estado contra o outro, ou a insurreição de grupos terroristas. Ao engendrar uma ameaça crível contra um Estado, organismo ou pessoa humana, as ações devem contemplar boicotes, pressões econômicas, como os orquestrados pelas grandes potências, vislumbrando 89

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minar as forças de um governante ditatorial ou grupos rebeldes. O sistema de coalizão internacional deve inibir os atores da empreitada militar, e deter a ação das forças ditatoriais ou facção terrorista, mesmo sem uma agressão direta. Documentos do Banco Mundial (Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, 2011) e da Official Development Assistance (ODA), mostram que os países membros da Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), além da ajuda financeira, técnica, e de serviços humanos, preocupa-se com as missões de paz, e atividades de segurança para os países em desenvolvimento. O Japão faz parte do Committee of Development Assistance (DAC), e salientou em sua Carta de Ajuda para o Desenvolvimento (ODA, Japan, Human Security, 2003), sérias preocupações concernentes às nações nas tratativas de implementação efetiva e operacional da segurança, evitando-se o uso da força, combatendo o terrorismo, promovendo a paz, e trabalhando para a melhoria de vida de todos os membros da sociedade. Como marco teórico verifica-se que há duas maneiras de se analisar o crime organizado, transnacional (TOC): alguns se concentram em grupos multi-crime de criminosos profissionais, enquanto outros se concentram em mercados ilícitos. Atualmente, a maioria dos problemas do crime organizado parece ser menos uma questão de um grupo de indivíduos envolvidos em uma série de atividades ilícitas, e mais de alguns indivíduos, que estão inseridos numa dinâmica de mercado. A segurança jurídica e a eficiência de políticas públicas têm sido colocadas à prova, em parte, devido à abertura de fronteiras, o fluxo constante de pessoas, bens e capital, o que acarreta um ambiente fecundo para situações jurídicas multiconectadas, o que exige uma constante atualização de contratos e a celebração de atos não nacionais. As ameaças advindas do entorno estratégico sul americano tem abalado os alicerces democráticos na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru, com crises políticas, desequilíbrios sociais, econômicos e produtivos, recebendo influência de potências mundiais, com reflexos para a Segurança e Defesa no continente. Em face da desestabilização na região, com áreas obscuras, urge lançar luzes, apresentar novas análises, delimitar o modelo de força, preparar uma agenda de defesa e segurança. 90

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As delimitações geoestratégicas na América Latina e Caribe mostram um tabuleiro geopolítico de disputas pelo poder, com um regime ditatorial na Venezuela, que se alia a Rússia, à China e ao Irã para evitar o desabastecimento de petróleo e gêneros de primeira necessidade, o que redunda em isolamento total na região, com milhares de cidadãos atravessando as fronteiras dos países vizinhos, em busca de proteção e refúgio. Percebe-se, claramente a presença de atores não-estatais como vetores com potencial de desestabilização no entorno estratégico capaz de comprometer a estabilidade regional na América do Sul. Fatores como o crime organizado transnacional, com ênfase no narcotráfico, tráfico de armas e munições, terrorismo, mineração e extrativismo ilegais, movimentos insurgentes, que com suas ações comprometem a estabilidade dos cidadãos, uma massa de excluídos, que precisa ser integrada em todos os tecidos sociais. O crime organizado elenca a crescente exposição do Brasil e da América do Sul ao Comando de Operações Terrestres (COT), e ao narcotráfico, de modo particular, impõe condições mais complexas e restritivas ao seu enfrentamento, inclusive no engajamento das Forças Armadas, dado um maior enraizamento local dos grupos do crime organizado simultaneamente aos crescentes vínculos transnacionais. O cenário apresenta uma maior volatilidade das condições de enfrentamento, o que demanda fortalecer o exército, a polícia, e as organizações não-governamentais, numa identificação única e nacional, voltada ao sistema de prevenção, com medidas cautelares e patrimoniais. A região de fronteiras carece da união de centros comuns de ordenamentos jurídicos, visando à segurança cidadã e a garantia plena dos direitos humanos. São estes os principais questionamentos que serão elencados no decorrer desta pesquisa empírica.

1. MUDANÇAS ATUAIS E FUTURAS: IMPACTOS SOCIAIS A segurança das pessoas em todo o mundo está interligada com os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas (ONU, ODM, 2000), que ressaltam os fluxos mundiais de bens, serviços, capi91

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tais, pessoas e imagens. A Agenda 2030 foi aprovada em 25 de setembro de 2015, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e apresenta uma abrangência e equilíbrio entre as várias dimensões do desenvolvimento sustentável, do ponto de vista econômico, social e ambiental, integrante dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que se desdobram em 169 metas a serem alcançadas nos próximos 11 anos, sucedendo desta forma os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que ressaltam a erradicação da pobreza extrema em todos os rincões do planeta até 2030, eliminar a fome e todas as formas de desnutrição, além de alcançar o acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos. A importância dessas metas evidencia o propósito da comunidade internacional em transformar o século 21 em um período “centrado no homem”, em que a segurança humana e a cooperação internacional possam estabelecer parâmetros comuns para os mais diversos países, incluindo governos, organizações internacionais e a sociedade civil. As ações com as comunidades incluem o apoio a projetos, para que possam efetivamente concretizar a segurança humana nas regiões agrárias, por meio do Fundo Fiduciário das Nações Unidas para a Segurança Humana, estabelecido pelas Nações Unidas em 1999, incluindo-se a Assistência a Subsídios para a Segurança Humana de Base, com “grassroots projects”: projetos de base, simples e eficazes. A democratização de políticas em países vulneráveis, oferece novas oportunidades, que merecem ser trabalhadas pari pasu com a liberalização da economia, mas com uma atenção especial às vulnerabilidades, como a instabilidade político-econômica; e o acirramento de conflitos no seio dos Estados. Há evidências de que apenas o aumento da inteligência e o aprimoramento dos meios de comunicação não estão garantindo o desenvolvimento humano, a diluição de conflitos e nem ações de política externa positivas. Parte-se para a busca de soluções positivas, imediatas, efetivas, que devem ser oferecidas pelas instituições de governança global, inseridas em negociações multilaterais. Pensar a segurança humana implica redirecionar a perspectiva da segurança do Estado para o indivíduo e a comunidade, isto é, trabalhar com a interoperabilidade. A conjuntura atual espelha claramente o surgimento de novos atores e ameaças no cenário global, crime e terrorismo. O exercício da violência já não contempla somente as ações do Estado, ou o campo da ação armada, mas insere-se numa dimensão 92

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abrangente de segurança ambiental, alimentar, sanitária, econômica, englobando a segurança dos cidadãos em nível transnacional. Os indivíduos na comunidade devem ser fortalecidos, principalmente aqueles que estão expostos às ameaças, a partir do desenvolvimento de estratégias de segurança, com a busca de esforços globais. Do ponto de vista jurídico, urge elaborar normas e diretrizes para a integração das Forças Armadas, e mecanismos que fortaleçam as comunidades locais, balizando uma assistência ampla, concreta, para a superação de crimes, injustiças sociais, inserção de indivíduos e de suas famílias. A teoria e a investigação empírica nas ciências sociais nos remete a uma prévia localização de um conjunto de problemas surgidos na análise da segurança, na formação de uma rede de proteção para debelar a criminalidade econômico-financeira, visando a um processo de produção de conhecimentos científicos, suas condições, mecanismos e fases de desenvolvimento dos obstáculos que lhes antepõem, listados como obtenção de documentos oficiais para se com dados qualitativos e quantitativos, mapeamento, e a proposição de soluções que incluem ações integradas entre Estados, instituições internacionais e a sociedade civil. O objetivo final culminará em unir esforços na construção e sustentação das sociedades, voltadas para o aprimoramento das capacidades das pessoas (The Trust Fund for Human Security, 2010). As operações balizadas por coalizões internacionais têm se mostrado cada vez mais eficazes, não só nos Estados Unidos da América, mas com os países aliados, priorizando a necessidade de atuação de organizações e indivíduos para atuarem de forma conjunta para se alcançar um mesmo objetivo (HURA et al., 2000): Interoperability would seem to be a straightforward concept. Put simply, is a measure of the degree to which various organizations or individuals are able to operate together to achieve a common goal. From this top-level perspective, interoperability is a good thing, with overtones of standardization, integration, cooperation, and even synergy. (HURA et al., 2000, Chapter Two, p. 7)

Em suma, este objetivo seria considerado como a busca por padronizar procedimentos e integrar ações, por meio da sinergia e da cooperação entre as partes envolvidas (TEIXEIRA JÚNIOR; FREIRE, 2019, p. 3). 93

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As interações humanas são sublinhadas pelos aspectos de direitos humanos, valores éticos, culturais, educacionais, confiança e entendimentos comuns. Há, no entanto, um preço para se alcançar estes valores, não só em termos de ações militares, mas também de custos políticos e econômicos, para que transformem uma realidade social onde a população se sente à margem de procedimentos organizacionais e de infraestrutura. A visão realista nos remete a questões estruturais no continente sul americano, com mais de 980 milhões de pessoas, atores sociais totalmente abandonados pelo Estado, forçados a sobreviver com menos de US$ 1.00 ao dia, sem que se perceba o papel basilar do Estado em seu desenvolvimento e inserção social (BRANDÃO, 2006, p. 183). São heterogeneidades estruturais (produtivas, sociais, regionais, políticas e culturais) evidentes, que implicam hoje na patente necessidade da reconstrução social e material de uma comunidade atingida duramente por políticas antinacionais e antipopulares há décadas. O enorme continente sul americano não apresenta coerência, na qual a economia monetária é elemento importante para dirimir as assimetrias evidentes em cada um dos países, e prover a criação de polos de desenvolvimento indispensáveis a uma circulação criativa (BRAUDEL, 1979, p. 473). O que se verifica é um desordenado, rápido e massivo movimento de pessoas, bens, dinheiro e informação, que disseminou a insegurança, e os problemas se tornaram transnacionais, incluindo o contrabando de seres humanos, armas e drogas, assim como de doenças infecciosas. A expansão econômica agravou a crise global, com o aquecimento em todo o planeta, séria degradação ambiental e problemas energéticos. Além disso, o colapso da ordem da Guerra Fria desencadeou inúmeros conflitos civis, cujas raízes remontam aos contextos religiosos, raciais e étnicos, que se intensificam com as caravanas de imigrantes, refugiados, pessoas deslocadas por catástrofes ambientais. Agrega-se a este contexto, as minas terrestres unipessoais e as armas ligeiras que se expandem em todos os rincões do planeta. Cada problema torna-se um desafio, pois se transforma em uma ameaça transfronteiriça e direta às pessoas, e reverbera complexas interligações entre si (Trust Fund for Human Security, Japan, 2010). A concepção tradicional de “segurança do Estado”, ancorada na proteção das fronteiras e das pessoas, já não é mais suficiente. Adentra-se num ambiente particular das Forças Armadas de um país, e através da 94

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interoperabilidade convergem-se as ações entre as forças conjuntas culminando num melhor planejamento em prol da defesa de um país e, da união com forças multinacionais, quando empregadas nessas circunstâncias (TEIXEIRA JÚNIOR; FREIRE, 2019, p. 32). Ao se repensar os conceitos do passado, identificar metas e ações inovadoras que possam ser aplicadas no presente, urge superar os mais urgentes problemas locais e regionais. Respostas efetivas para abordar as diversas ameaças de forma abrangente, capturando as interligações entre elas, sob uma perspectiva humana, que devem estar sob um comando único superior, materializado no Ministério da Defesa, respaldado pelo Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN), (BRASIL, 2012b), que ressalta o papel do Estado-Maior do Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) no planejamento das operações e exercícios com ênfase na interoperabilidade. São operações conjuntas, que assessoram o Ministro da Defesa em exercício, com ações que incluem a proteção das fronteiras e planos de segurança para a recepção de grandes eventos (TEIXEIRA JÚNIOR; FREIRE, 2019, p. 33; apud PESSOA, 2017, p. 314). A integração de sistemas incluem Estados, instituições internacionais, sociedade civil e ONGs, que devem combinar esforços para responder eficazmente a estes diversos desafios que se interligam através do estabelecimento de um intercâmbio de informações operacionais entre o Ministério da Defesa, entre as Forças e outras agências, por meio do Sistema de Comando e Controle, a fim de facilitar o compartilhamento, o entendimento no ambiente das operações, e a interrelação com outras nações para operações conjuntas.

2. NOVAS TECNOLOGIAS NO MERCADO DE TRABALHO A perspectiva de desenvolvimento humano inclui reflexões sobre o ambiente de trabalho, mormente medidas que são afetas à seara laboral. As inovações tecnológicas, apresentam um mundo novo, que sai da fase da manufatura para a industrialização e produção de peças em escalas. Essa fase transforma sensivelmente o modo do trabalho e a vida dos trabalhadores, que são explorados e espoliados. Quanto ao estado da arte ou estado de conhecimento, sobressaem-se as crises econômico-financeiras 95

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que assolam os países desenvolvidos, e aqueles em desenvolvimento. Do ponto de vista do Direito Econômico nos debruçamos sobre o macrossistema de produção das empresas, e seus reflexos na vida dos trabalhadores. As mudanças da economia de mercado, a internacionalização das relações econômicas, assim como a influência do poder político na vida dos cidadãos têm evidenciado avanços que ocorreram durante a Revolução Industrial no Século XVIII e XIX, mas, em contrapartida, na vulnerabilidade dos empregos, na exploração laboral e na informalidade. As grandes transformações do século XX trazem à tona a não qualificação dos trabalhadores, a falência dos sistemas educacionais, que tratam teoricamente dos conceitos, e raras vezes preparam os indivíduos para o trabalho na prática, com a resolução de problemas emergentes. Os fatos econômicos relevantes do Século XXI apresentam a era do capitalismo e da legalidade, com a formação da economia capitalista de mercado, sob a ordem das várias facetas das políticas econômicas: liberalismo, neoliberalismo e globalização. Ressalta, ademais, a influência do poder político e dos processos de integração. No que tange aos reflexos do desenvolvimento econômico, sublinha-se os contratos de trabalho, com uma abordagem da internacionalização dos direitos humanos, dos direitos econômicos, sociais e culturais e a relação intrínseca com a dignidade da pessoa humana do trabalhador. É preciso, nessa análise relacionar o desenvolvimento econômico e sustentável, com a observância dos direitos humanos do trabalhador, e os ganhos para o empregado. Como marco histórico analítico, chamamos a atenção para os fatos, dentre eles o modus vivendi dos cidadãos, uma vez que da Revolução Industrial até o final do século XVIII a maioria da população europeia vivia no campo e produzia o que consumia, tal é o sistema de subsistência, de maneira artesanal, e que o produtor dominava todo o processo produtivo. A primeira etapa da Revolução Industrial (1760-1860), limita-se, primeiramente, à Inglaterra quando houve uma quebra, que se sobrepôs à trajetória ascensional, em termos de acumulação de conhecimentos, iniciada na Idade Média. A burguesia poderosa, concentrava riquezas e pôs cabo à monarquia absolutista. Surgiram indústrias de tecidos de algodão, com o uso do tear mecânico, seguindo-se o aprimoramento das máquinas a vapor, que contribuiu de forma indelével para a continuação da evolução tecnicista. 96

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O capitalismo jungido aos princípios da legalidade e da igualdade formal, serviu de lema das revoluções liberais (WEFFORT, 2006, p. 88). A vitória da legalidade é a vitória de um mundo tal qual um grande mercado (MASCARO, 2008, p. 46), é o espelho onde todos se igualam na condição de compradores e de vendedores. Não obstante os principais pontos de desenvolvimento econômico da sociedade, as questões sociais afetam os pilares da segurança, conforme aportes da sociologia weberiana (KRONMAN, 2009, p. 134). A burguesia sempre esteve aliada ao incremento da escala industrial, com o aumento da venda dos produtos, e tinha como meta lucrar ainda mais, mesmo que isso traduzisse na exploração do operário, que se via forçado a trabalhar até quinze horas por dia em troca de um salário insuficiente para cobrir seus gastos pessoais. Com o cercamento das propriedades, o homem do campo perde suas funções laborais, e é obrigado a migrar para os grandes centros urbanos. Os camponeses marcham em levas em direção às cidades industriais, ávidos por trabalho, sujeitando-se ao contexto de exploração, operando máquinas desconhecidas. As fábricas necessitavam de mão de obra, mulheres e crianças foram aproveitadas por serem pequenas e entrar em lugares que os adultos não podiam trabalhar, e cuidavam de trabalhos que exigiam delicadeza. A exploração dos trabalhadores torna-se generalizada. O local de trabalho era insalubre, as mulheres operavam as máquinas com as crianças arrastando-se debaixo de suas pernas, dormiam embaixo das máquinas, e sucumbiam ao esforço da rotina laboral. O panorama de exploração dos trabalhadores, o desequilíbrio na repartição da riqueza, e a tese do Estado Providência surge para regrar, estabelecer parâmetros para frear os abusos econômicos. A época da livre concorrência é questionada, e precisava ser freada (AVELÃS NUNES, 2010, p. 43). O excesso de trabalho e a desproporção salarial, resultam na revolta dos trabalhadores, na consequente destruição das máquinas industriais, sucumbidos por um silêncio que eclode em razão das péssimas condições laborais Direitos humanos não faziam parte do ambiente do trabalho, mas a insalubridade conduz à necessidade de se preservar os direitos de saúde e segurança nas fábricas. Desde cenário, surge o sindicalismo, nasce o Direito do Trabalho, objetivando regular, intervir na vida dos 97

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trabalhadores, com o escopo de protegê-los. As instituições internacionais formulam regramentos, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmados por Estados-partes na Organização das Nações Unidas (1966). O capitalismo instaura a civilização das desigualdades, e cria um fosso entre ricos e pobres, gerando a miséria degradante (HOBSBAWM, 2012, p. 39). É nesse contexto que Tocqueville (WEFFORT, 2002, p. 152) analisa a estrutura de dominação das instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil na Europa e nos Estados Unidos da América, conforme referendado em seu trabalho: “deste imenso esgoto jorra a maior corrente de atividade humana para fertilizar todo o mundo. Desta suja sarjeta corre ouro puro. Aqui a humanidade atinge o seu mais absoluto desenvolvimento e o auge da brutalidade. Aqui a civilização opera seus milagres e o homem civilizado quase se torna um selvagem”. (WEFFORT, 2002, p. 152)

O choque vivenciado pelos trabalhadores ao deixarem sua vida pacata na zona rural, e se transformarem em trabalhadores explorados, desprovidos de emprego, de saúde, de dignidade, espelhava a vulnerabilidade estatal, tornou-se imperioso buscar o socorro do Estado. Um Estado social, e ao mesmo tempo regulador, que pudesse chamar para si a proteção dos trabalhadores em face da exploração inumana dos proprietários das fábricas. Tratava-se de um trabalho degradante, com condições laborais aviltantes, insuportáveis para o ser humano, por mais humilde que fosse. Dá-se início ao Estado de Bem-Estar Social, que nas palavras de Delgado (2007, p. 1159) são “fórmulas privilegiadas da afirmação da liberdade, da democracia, do trabalho e do emprego, enfim, da justiça-social e do bem-estar na desigual sociedade capitalista”. Este palco de acontecimentos dá início a segunda etapa da Revolução Industrial, que ocorre no período de 1860 a 1900, quando emerge o capitalismo monopolista. Ao contrário da primeira fase da Revolução Industrial, países como Alemanha, França, Rússia e Itália também se industrializam, comandados pelo capital bancário, mesclado ao grande capital industrial, conformando-se o capital financeiro, com o surgimento de outras potências industriais como os Estados Unidos da América e o Japão. 98

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As novas potências industriais, modernas e mais bem equipadas, quebram o monopólio industrial inglês. Os países que se destacam com o mercantilismo, exploram o colonialismo monopolista e as principais potências capitalistas repartem o mundo (CATANI, 2011, p. 78). As exportações de capitais se intensificam e, também, acentua-se a concorrência entre os diversos capitalismos financeiros. Os importantes avanços tecnológicos surgidos nos séculos XX e XXI incluem o computador, o fax, a engenharia genética, o celular, a internet, a tecnologia de ponta, que seriam algumas das inovações da abertura de um novo século, com novas regras societais, para uma sociedade de massa. Os produtos são vendidos em todo o mundo, proporcionando uma Idade de Ouro, de 1870 a 1913, e se transforma na primeira fase da globalização, referida por Clark (2008, p. 358), que mesmo com a crise da bolsa de Nova York em 1929, com erros e acertos, volta a emergir na década de 1980, com uma movimentação generalizada em direção ao intercâmbio livre de bens e de capital entre democracias, aliada à queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O mundo tem diante de si quinze novas repúblicas independentes, que lutam para sobressair com parâmetros de eficiência, acesso às novas tecnologias, ao emprego eficaz de uma mão de obra qualificada, o que constata claramente o desequilíbrio entre países ricos e pobres. Surgem, nessa época, os artefatos tecnológicos, que desencadeiam o fenômeno da integração econômica, abordado por Beltran (1998, p. 21). As potências econômicas detentoras de novas tecnologias e da eficiência em processos produtivos, são avaliadas em termos de seus balanços de pagamentos, seus êxitos e fracassos, sua eficiência e investimentos, durante o período de 1800 até o ano 2000. Surge o neoliberalismo, um novo estágio do capitalismo, caracterizando as dinâmicas das hegemonias internacionais, em especial, a norte-americana. O neoliberalismo foi instalado inicialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, difundindo-se pela Europa continental e posteriormente por todo o mundo. Uma nova ordem econômica internacional torna-se conhecida por globalização neoliberal, impondo severos custos para a Ásia e a América Latina nas décadas de 1990 e 2000, uma vez que se valeram de empréstimos internacionais para se modernizarem. Tanto o Banco Mundial quanto o Fundo Monetário Internacional impuseram altas taxas de juros, e planos de desenvolvimento, difíceis de serem alcan99

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çados, devido ao instrumento político da neoglobalização, e da existência de governos locais pró-imperialistas, assentados nas elites oligárquicas. Os problemas sociais são colocados em segundo prisma, uma vez que as metas direcionavam para a busca da extração de excedentes, vislumbrando-se apenas uma maior produção de mercadorias para que as indústrias dominantes se mantivessem na mais alta escala de domínio do mercado. Os países avançados expandiam seus mercados, e escolhiam as antigas colônias, atrasadas, para abrirem suas filiais, e alcançarem altos índices de lucratividade, utilizando-se de mão de obra barata (DINIZ, 1999, p. 48), numa versão desprezível de trabalho escravo. Nesse diapasão, revela-se a negatividade da classe trabalhadora e do trabalho assalariado, prestado em regime de exploração dentro do sistema capitalista, pontuado magistralmente por Grau (2014, p. 19), com ressalte às relações institucionais laborais, o Estado-nação; que regula de forma hegemônica as relações trabalhistas. A respeito do mundo globalizado, infere Diniz: O homem, autor, através de seu trabalho, da sua própria história, desaparece. Se perde no meio de uma multidão de outros homens, se desencontra em meio de tantos desejos e necessidades que existem para suprir numa sociedade hightech. (DINIZ, 1994)

A globalização apresenta pontos positivos e negativos. De um lado, impele o ser humano a reciclar-se, conectar-se com novas descobertas e inovações tecnológicas, mas, a pressão por conectar-se com o mundo virtual o obriga a isolar-se, perdendo-se o fio condutor das relações sociais simples e verdadeiras: “Outra característica do homem moderno é a solidão. Ele a descreve como a expressão “estar por fora” ou, caso seja culto, diz que se sente alienado. (...) A sensação de isolamento ocorre quando a pessoa se sente vazia e amedrontada, não apenas porque deseja sentir-se protegida na multidão, como um animal selvagem se resguarda vivendo em bando. (...) No reverso da solidão do homem moderno está seu grande temor de ficar só”. (DINIZ, 1999).

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Este homem solitário, isolado, se coloca fora do seio da sociedade real, e passa a viver a sociedade virtual, onde a cultura do convívio é nula. Num contexto empresarial global, estabelecem-se processos seletivos em nível mundial, que vão excluindo os países em desenvolvimento, que não estão preparados para grandes investimentos, e nem investem na formação de recursos humanos, para dotarem suas empresas de maior lucratividade num menor espaço de tempo, e com menores custos (CHESNAIS, 1996, p. 37). Surgem as cidades globais dotadas de uma estrutura capitalista, com conglomerados transnacionais, e uma nova visão internacional do trabalho, que propicia a decadência do Estado-nação. A vulnerabilidade estatal se faz presente, uma vez que existe a integração entre os países, e as fusões se mostram com mais frequência, englobando seções e trabalhadores. Verifica-se, nitidamente, o distanciamento entre os mais altos e os mais baixos rendimentos, e cria-se um movimento dual, de polarização; como consequência, advém o desemprego. Aumenta o capital monetário e diminui as relações salariais; bem como, ocorre a polarização internacional, acentuando as distâncias, entre os países no centro do oligopólio mundial e os países periféricos. No comércio internacional, há um predomínio das economias nacionais, embora pareça um paradoxo, ele consiste no intercâmbio de matérias primas e produtos agrícolas por produtos industrializados, que implica na provisão de insumos necessários para os sistemas manufaturados nacionais, o espírito é o nacionalismo das grandes potências. É nessa vertente que Sorensen (2010), fundamentando-se no pensamento de John Keynes esclarece a questão: “os mercados devem ser internos sempre que possível e possivelmente convenientes; e, sobretudo, o financiamento deve ser principalmente nacional”. A par desta observação, se conclui que, deve-se partir de dentro para fora, reforçar o interno para se evitar o externo. Ressalte-se que, nos idos de 1930, os Estados Unidos, adotaram três medidas econômicas, de teor nacionalista, através da Lei Alfandegária Smoot Hawley, aumentaram as tarifas alfandegárias; restringiram as importações e impuseram o dumping cambial, fortalecendo o regime protecionista. Essas medidas afetaram o comércio exterior, e uma reação em cadeia da Austrália, Espanha, Itália, Cuba, Canadá, França, México e Nova Zelândia, que em represália aumentaram suas tarifas. 101

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Em seguida, em 1931, outros 36 países restringiram suas importações, em controle cambial. Em consequência, em 1932, a Inglaterra afasta-se do livre comércio para induzir as tarifas gerais e posteriormente constituir em Ottawa o Sistema de Tarifas Preferenciais do Império da Federação Britânica, o que ocasionou a formação de blocos econômicos entre os países para protegerem suas indústrias, diminuindo-se o comércio nacional e, desencadeando a Segunda Guerra Mundial. A ordem do pós-Segunda Guerra Mundial balizava-se na reconstrução econômico-financeira dos países da Europa, avançando em direção à Ásia. No que concerne ao mundo oriental, a ala asiática (BIJOS, 2016, p. 39), a exemplo, o Japão, que à época, com os conglomerados empresariais, os zaibatsus, formaram-se com a inovação tecnológica e administrativa, importaram tecnologia ocidental, voltada para a transformação dos lucros em expansão e diversificação. Valeram-se dos benefícios para formar grandes concentrações de riqueza e de poder econômico, sedimentando-se no poder político, beneficiando-se das economias externas, captando os lucros para empresas individuais. Os zaibatsus, transformam-se em keiretsus, a nova ordem empresarial, inserida nas exigências do mundo moderno do mercado, sem a hierarquização familiar horizontal, visando à abertura de fronteiras em nível internacional, com informações céleres, ofertas inovadoras e novas técnicas para fidelização da clientela. O Japão moderniza-se, torna-se um país dinâmico, com ações efetivas, abrindo-se ao mundo, inserindo-se em negociações comerciais globalizadas. Pontua-se que “a experiência japonesa apresenta lições indeléveis de uma economia submetida a um processo de rápido crescimento, repleto de conflitos com a política industrial, com a defesa da concorrência, num arcabouço jurídico e institucional necessário para o desenvolvimento do país”. O Japão promove o voo dos gansos levando consigo os países membros do Sudeste Asiático, fortalecendo a ASEAN, imbuído de uma ética nacionalista, trabalhando coletivamente, fomentando uma modernização industrial, econômica e educacional, cujo objetivo era afastar a concorrência de seus produtos, tornando-os mais competitivos.

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3. BLOCOS REGIONAIS E INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS O avanço do Sudeste Asiático foi benéfico para todos os países da Bacia do Pacífico, inclusive para o Brasil, que desenvolveu novas tecnologias na área de cultivos, beneficiando-se da cooperação Japão-Brasil, e com a aprovação do PRODECER I e II, na região do cerrado no Centro-Oeste, que pouco a pouco estendeu-se a outros Estados como Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bahia. Da mesma forma que se implementou uma cooperação internacional, desenvolveram-se processos de integração regional imbuídas de políticas e normativas específicas, com marco jurídico que se estendeu aos países membros do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), abrangendo Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela, tendo como países associados Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, e Suriname. Os Estados Partes fundadores do MERCOSUL e signatários do Tratado de Assunção (TA) são a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai. Em função de que o Tratado de Assunção está aberto à adesão de outros Estados membros, incorporou-se a Venezuela em 2006, e a Bolívia, em 2015. Devido à ruptura da ordem democrática na Venezuela, esta foi suspensa em 10 de abril de 2017. Os Estados Partes devem primar pela segurança jurídica e a eficiência das políticas públicas, especialmente no que tange ao bem-estar dos cidadãos. As fronteiras na atualidade não são rigidamente delimitadas como no passado, são abertas, com um fluxo constante de pessoas, bens e capital, e se percebe uma extraterritorialidade da lei penal e civil (VIEIRA, 2019, p. 19), um ambiente fecundo para geração de situações jurídicas multiconectadas, próprias do Direito Internacional Privado, de um lado a realização de contratos e celebração de atos não nacionais, mas um ambiente fértil para a prática de ilícitos. O que exige a colaboração jurídica internacional – como exequatur a cartas rogatórias e o cumprimento de sentenças estrangeiras, conforme enfatizado por Vieira (2019, p. 19). Com o intuito de gerar um pensamento protetivo para a região de fronteiras, focado em um eixo jurídico unificado, surgiu a figura do transconstitucionalismo prevendo ser possível que se buscasse a união entre os centros comuns dos ordenamentos jurídicos existentes nos países, no que se refere às medidas protetivas da segurança, da regulamentação e das decisões proferidas por tribunais internacionais, visando à 103

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garantia plena dos direitos humanos, pois segundo esta teoria, haveria como integrar os distintos sistemas constitucionais ora vigentes (BIJOS; CRUZ, 2018, p. 2021). Por outro lado, sopesar o caráter soberano de cada país integrante do bloco econômico, a fim de depurar como se dá a aplicabilidade dos direitos humanos em cada território não é tarefa simples, pois por se tratarem de países com graves problemas sociais, os mesmos tendem a mascarar das comunidades internacionais o real caráter das condições em que as populações são de fato tratadas, e encobrir as transgressões. Nesse sentido, o Direito surge como ferramenta indispensável par regular as condutas sociais. A conduta humana tende a sofrer variações, seja devido ao desenvolvimento tecnológico ou à influência de determinados comportamentos detentores de valor moral, os quais são praticamente cobrados pela sociedade (EROUD; MARANINCHI; AQUINO, 2019, p. 35). Promover o crescimento das relações transnacionais, num ambiente de inovações tecnológicas, em perfeita sintonia com a globalização, com a democracia e o respeito às culturas e história de cada país, exige muita diplomacia, e de dispositivos legais revestidos de direitos fundamentais, e normas internacionais de comércio. Trata-se da troca de produtos e consumos de recursos os quais ocorrem principalmente no nível transnacional. Inovações tecnológicas e os avanços das comunicações têm aproximado os países nas relações negociais, primando por uma conduta ilibada entre os parceiros, com o entrelaçamento de instituições bancárias, arrecadação de tributos destinados aos cofres públicos, que será a mola mestre para o crescimento econômico (EROUD; MARANINCHI; AQUINO, 2019, p. 39). Não obstante o desenvolvimento mútuo entre Estados membros do MERCOSUL, com suas dimensões tributárias e especificidades culturais, a Dignidade Humana baliza as atividades mercantis, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

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4. IMPACTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NA REGIÃO DE FRONTEIRAS As relações multilaterais entre os países sul americanos envolvem ações inseridas na realidade prática de cada internacionalista, diplomata ou politólogo. Fazem parte do acervo de estudos, relatórios, textos históricos e ensaios diplomáticos, que denotam nitidamente a cultura de um povo (nação, Estado, governo ou regime) em face de um para com o outro. A história de cada país, com suas diferenças culturais exige uma percepção própria de negociadores internacionais, visando a dirimir problemas e promover o crescimento de relações transnacionais, com dispositivos legais revestidos de direitos fundamentais, e normas internacionais de comércio. Nesse diapasão, Medeiros Filho (2020, p. 78) reporta-se ao contexto geopolítico na região de fronteiras, especialmente no que tange à complexidade dos espaços fronteiriços, que são analisadas de dois vieses: a fronteira como limite exclusivo do território (border), e a fronteira do lugar. As “terras livres”, os espaços vazios, que transcendem a visão de limite territorial onde o Estado exerce sua soberania e mescla-se com um espaço difuso e de transição entre culturas ou civilizações adjacentes (frontier). Nesse sentido, as fronteiras são ambas as coisas e ao mesmo tempo. Há uma tensão entre territórios contíguos, de caráter notadamente político-jurídico. A fronteira border tem uma forte conotação militar, de proteção do Estado soberano. A segunda concepção de fronteira (frontier) se refere à noção de periferia, a regiões distantes, pouco exploradas, pouco desenvolvidas, com escassa presença do Estado, cercadas por matas fechadas, rios, pântanos e igarapés, de difícil controle pelo poder central. Nesse caso, a principal preocupação militar diz respeito à garantia do exercício soberano do Estado e, consequentemente, do monopólio legítimo da violência, em territórios remotos. Nas fronteiras Amazônicas coexistem as duas noções, o que exige a presença do Exército Brasileiro com ações estratégicas militares, para proteger a nossa soberania no âmbito da dimensão geopolítica e securitária. O território soberano, com suas riquezas naturais, e evitar a cobiça potencial de grandes potências. A segunda dimensão, na acepção de Medeiros Filho (2020, p. 84), diz respeito à soberania doméstica e à ameaça de surgimento naquele espaço de “zonas cinzentas”, em que o Estado teria dificuldades de apli105

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car de forma efetiva o monopólio da violência legítima, abrindo espaço para a proliferação de ilícitos de toda ordem e, o que é mais grave, para o aparecimento de poderes paralelos no tecido social. São vulnerabilidades estatais que, não obstante os acordos multilaterais, surgem problemas a cada momento demandando ações imediatas, com ilícitos que atravessam as fronteiras. Contexto este que nos remete ao direito internacional, e a convergência de esforços para o emprego de operações combinadas multinacionais entre os estados-membros, voltadas para debelar traficantes e narcotraficantes. A conjunção de forças entre países para a realização de missões estratégicas ou táticas, agrega um planejamento baseado em capacidades, com apoio logístico e operacional. A visão contemporânea revela uma guerra incessante, que não tem trégua, como se estivéssemos participando de um conflito armado entre entidades políticas soberanas ou, um choque armado entre combatentes soberanos, dentro de vários territórios. São atividades muito diferentes das tradicionalmente balizadas por marcos caracterizadores nos séculos XX e XXI, questões que não envolvem violência letal ou derramamento de sangue, mas que causam um enorme prejuízo às nações. As políticas públicas adquiriram forte elemento belicista, a interação social obteve novos contornos e a diferença entre o mundo exterior e o interior, entre os conflitos externos e a segurança interna se tornaram cada vez menores, de forma que as razões fundantes das batalhas passaram a utilizar-se também de inimigos indefinidos e imateriais. A partir daí passou-se a relativizar os princípios do Estado de Direito e, com isso, fortalecer o estado de exceção que se tornou o modelo político dominante, com consequente diminuição da tradicional distinção entre guerra e política. A projeção deste estado de excepcionalidade transforma radicalmente a estrutura e o conteúdo dos diversos tipos de constituição pelo mundo, uma vez que representa um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo. Como ilustração, têm-se as medidas adotadas pelos EUA no “combate ao terrorismo” em período pós-atentados de 11 de setembro de 2001, as quais se fará menção mais detidamente em seguida. Nesse contexto, apresenta-se um quadro grave: a legislação passa a não ser mais aquilo a que o Estado e sua população estão sujeitos nem tem o papel natural de instrumento legitimador da atuação de um governo, sendo vista de maneira instrumental, como uma expressão de 106

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poder que pode ser aplicada ou suspensa à vontade. A partir daí, cabe ao Executivo avaliar se um determinado acontecimento constitui um perigo para o Estado caracterizador de uma situação excepcional que, ao se apresentar como exceção, acaba por tornar-se a regra, já que estas situações excepcionais suspendem a lei e sustentam um permanente estado de exceção, à medida que se amplia sua frequência. Há, na atualidade, uma luta intransigente contra todas as formas de exclusão, miséria, e violência nos países signatários, evitando-se a recorrência de transgressões. No que se refere à Tríplice Fronteira, Argentina, Brasil e Paraguai, destacam-se estratégias distintas de integração: a primeira binacional e a segunda supranacional (FOLCH, 2018 p. 268), onde há um corredor para os fluxos comerciais entre o Brasil e o Paraguai (SILVA; DOLZAN; COSTA, 2019, p. 51). A Cidade do Leste é conhecida como a cidade do contrabando, do descaminho, da “era dos comboios”, que evoluiu para a “era do crime organizado” (SILVA; COSTA, 2018). O modelo paraguaio é a reexportação comercial, concebido para o recebimento de produtos de inúmeros países, o que se tornou um dos quatro fatores de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Os outros três são: a exportação de produtos florestais e agropecuários; a comercialização de energia elétrica; e o incremento nas exportações, sobretudo a partir de 2010, sob os regimes de maquila e zona franca, em análise seminal de Masi (2011, p. 121). Os produtos para reexportação são basicamente produtos como perfumes, uísques, bebidas espumantes, produtos de informática, telefones celulares, jogos eletrônicos, câmeras fotográficas, acessórios, entre outros, totalizando US$ 3,81 bilhões por ano (SILVA et al., 2019, p. 55). Os autores citados enfatizam que são desconsiderados os produtos produzidos no Paraguai, como o cigarro, que é atualmente o principal item de apreensão da Receita Federal, num total de US$ 97 milhões (2013-2017). Os cigarros fabricados em fundo de quintal são repletos de impurezas como fezes de insetos, o fumo de péssima qualidade. O contrabando, apesar da atuação da Receita Federal do Brasil e demais órgãos que atuam no combate aos ilícitos, mostra que há novas rotas e formas de introduzir estes produtos no Brasil, sobretudo em períodos de crescimento da economia. O cidadão comum não está propenso a chancelar a autoridade do Estado (HOBSBAWM, 2007, p. 144), revelando uma crise 107

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de legitimidade. O contrabandista não se considera ingênuo, e busca alternativas para seus produtos, e como o governo recusa uma solução radical de fechamento total das fronteiras, rende-se ao descontrole provocado pelo fluxo intenso de pessoas e mercadorias (SILVA et al, 2019, p. 57). A Receita Federal do Brasil possui regras aduaneiras que estipulam o que deve ser liberado para ingresso no país, e o que deve ser apreendido. As apreensões ocorrem majoritariamente na zona secundária, onde se observa a ação de criminosos organizados; e as liberações ocorrem na zona primária, em postos aduaneiros imediatos à entrada no Brasil (via Ponte Internacional da Amizade e Guaíra). São turistas, pequenos revendedores, sacoleiros, beneficiados com cotas de isenção de US$ 300.00, por pessoa e por mês; e que efetuam o pagamento do imposto sobre o valor excedente das cotas, via Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF), ou sob o Regime de Tributação Unificada (RTU, Lei do Sacoleiro) (SILVA et al, 2019, p. 59). Ênfase é colocada no papel do Estado no enfrentamento das ações criminosas.

5. INTEGRAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA: POLÍTICAS DE SEGURANÇA A proposta que se faz é conhecer o real problema em suas várias dimensões e executar ações de enfrentamento que venham a minimizar o ingresso ilegal e a evasão de divisas. A análise compreende o modelo de policiamento criado na Polícia Militar do Estado de Goiás, denominado de Comando de Operações de Divisas (COD), para atuar em áreas de divisas, rotas e corredores usados para o cometimento de crimes complexos e de alto impacto na violência e criminalidade. Cumpre, ademais, mapear os protocolos de cooperação internacional, convenções internacionais, e procedimentos administrativos para o enfrentamento sistêmico do contrabando, tráfico de armas, tráfico de drogas, e tráfico de pessoas. Ressalte-se a crise na área de segurança pública, concentrando mais de 10% de homicídios do planeta, tornando as Américas a região mais violenta do mundo, e o Brasil, como o país com a maior quantidade de homicídios de todos os países (UNODC, 2018). A lentidão das ações efetivas na área de segurança pública, mos108

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tra que somente em 11 de junho de 2018, foi aprovada a Lei nº 13.675, como Política de Segurança Pública, que se espera promova uma redução da violência no Brasil. Nesse ínterim, foi lançado um Plano Estratégico de Fronteiras, por meio do Decreto nº 7.496 de 09 de junho de 2011, em uma tentativa do Governo Federal de aprimorar o enfrentamento dos crimes que ocorrem ao longo das fronteiras do Brasil com os dez países vizinhos, o que espelha uma complexidade em face da extensão territorial. Os vizinhos sul-americanos do Brasil precisam coordenar ações conjuntas para cobrir uma área de 17 mil quilômetros, que circunda o Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Departamento Ultramarino da França. Se nos determos nos três grandes arcos (norte, central e sul), entre limites secos, rios, lagos e canais, adentrando o território brasileiro, tem-se uma faixa de 150 quilômetros de extensão, que precisa ser monitorada. No total, são 588 municípios, 122 lindeiros, e desses, 30 “cidades gêmeas”, onde a interação sul-americana é bastante intensa, separadas, às vezes, por uma rua, uma praça ou rio, perfazendo 10.5 milhões de habitantes, o que equivale a cerca de 5% da população brasileira (NEVES; SILVA; LUDWIG, 2019, p. 67). Mulheres bolivianas grávidas atravessam a rua para receberem assistência hospitalar no Brasil, principalmente quando entram em trabalho de parto, através do Sistema Único de Saúde (SUS), e, em seguida, registrarem os bebês como cidadãos brasileiros. Se a extensão geográfica é de tamanho colossal, na acepção de Neves (2016, p. 9), os problemas do dia-a-dia são inúmeros, para um grupo exíguo de policiais, fiscais e agentes tributários encarregados da defesa da soberania nacional, da contenção de guerras interestatais, e de migrantes, refugiados e deslocados ambientais.

5.1 Corredor de Armas e Tóxicos De acordo com mecanismos pactuados no âmbito da Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), torna-se possível mapear os esforços das Polícias Militares Civis dos 11 Estados de Fronteiras. O que surpreende é que dados estatísticos revelam que o 109

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Estado de Mato Grosso do Sul (MS), concentrou entre 2012 e 2015, 78% de toda a droga apreendida nos Estados de Fronteira, o que demanda uma ação conjunta intermitente, com estudos realizados pela Superintendência de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, com atenção especial à região de divisas com os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, e Tocantins, conhecido como corredor de armas e tóxicos (NEVES; SILVA; LUDWIG, 2019, p. 70), o que leva a homicídios dolosos, prostituição e tráfico de pessoas. O conceito de tráfico de pessoas difundido e aplicado internacionalmente é o do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Palermo (UNODC, 2018, p. 3). O tráfico de pessoas é, portanto, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. Na Região de Fronteiras existe um contingente de pessoas vulneráveis, mulheres, jovens e crianças, que circulam em busca de um emprego, um marido estrangeiro, ou na esperança de uma vida melhor, o que leva a armadilhas, exploração, trabalho escravo e falsas promessas. A Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), através de treinamento e capacitação, de diagnósticos oficiais, manuais, e procedimentos operacionais, mapeou todas as estruturas policiais especializadas que atuam nos modais terrestres, hídricos e aéreos em nível federal e estadual, com uma metodologia inovadora, visando a atuar num estado de direito, arranjos sociais com maior legitimidade, melhorias na governança, e aumento dos níveis de proteção contra ameaças naturais e humanas, assim como um maior autocontrole e previsibilidade das trocas entre indivíduos (VILALTA, 2015, p. 4), que sirva de parâmetros de atuação policial especializada em outras regiões do Brasil e do mundo.

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5.2 Inteligência Estratégica O Comando de Operações de Divisas (COD) tem aperfeiçoado seu modelo de atuação, a partir do mapeamento do crime organizado, do enfrentamento aos multi-grupos profissionais de criminosos, utilizando-se de técnicas para capturar os atravessadores de drogas, coibir as gangues que fazem parte do “Novo Cangaço”, e que atuam no roubo de cargas e veículos, roubo às propriedades rurais, que assolam as rodovias estaduais na Tríplice Fronteira. As estratégias criminosas são inteligentes, sutis, ao utilizarem as rodovias goianas, e em ambiente rural, atuando em diversas rotas e corredores de fluxos de ilícitos e atuações criminosas. Nesse sentido, o Comando de Operações de Divisas (COD), com sede em Goiânia, criou seis Companhias descentralizadas, com a intenção de abranger todas as malhas das rodovias goianas com possibilidade de maior organização estratégica e operacional, incluindo-se a Região Oeste. Outra região coberta pelo COD é a 3ª Companhia, responsável pela região Sul e Sudeste, englobando as cidades de Itumbiara, Corumbaíba e Caldas Novas, estendendo-se ao Estado de Minas Gerais, com ações contra o contrabando, descaminho, tráfico de drogas, roubo de cargas, roubo de valores, tráfico de armas, tráfico de pessoas. A 4ª Companhia com Sede em Posse, atua com ações voltadas à prevenção/repressão de roubos a bancos, principalmente na modalidade do “novo cangaço”, por se tratar de uma região mais vulnerável a esse tipo de crime tendo em vistas as divisas com os Estados da Bahia e Tocantins. A 5ª Companhia tem uma estrutura implantada pelo COD com o objetivo de atuar principalmente na repressão/prevenção ao crime contra instituições financeiras. Essa modalidade criminosa é bem violenta, porque inclui em suas ações as explosões de caixas eletrônicos e roubo de cargas. A missão é pacificar o norte goiano, com operações e atuações estratégicas das equipes do COD fazendo o patrulhamento, com intervenções onde havia grande foco de tais modalidades criminosas. No que se refere ao entorno do Distrito Federal, foi criada a 6ª Companhia na Cidade Ocidental, objetivando a redução da criminalidade nas malhas rodoviárias goianas daquela localidade, carente de policiamento, principalmente no que se refere ao roubo de gás, tráfico de drogas e roubo a instituições financeiras (NEVES; SILVA; LUDWIG, 2019, p. 78). 111

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Através da atuação e desenvolvimento estratégico do COD, desde sua criação até aos dias atuais, há um avanço, objetivando o treinamento do pessoal, com resultados efetivos para uma blindagem na região de fronteiras, com a repressão ao crime, no Estado de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Distrito Federal.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisarmos documentos comprobatórios da criminalidade econômico-financeira na Região de Fronteiras, verificamos que as estratégias criminosas são inteligentes, sutis, ao utilizarem a malha rodoviária de vários Estados, adentrando em ambientes rurais, atuando em rotas que mudam constantemente, para dar vasão a diversos corredores de fluxos de ilícitos e atuações criminosas. O Comando de Operações de Divisas, composto por seis Companhias, está se especializando paulatinamente nos tipos de crimes inerentes a cada área geográfica, apesar de que inicialmente o foco está voltado para o fluxo de ilícitos oriundos das fronteiras, que foi se desdobrando em assaltos a instituições financeiras no interior do Estado, próximo ás áreas de divisas, portos, e aeroportos. Enfatiza-se que a segurança jurídica e a eficiência de políticas públicas só serão efetivas a partir de uma cooperação internacional, uma vez que um dos maiores produtores de cocaína e maconha do mundo é a Bolívia e a Colômbia, com exportação extensiva no Paraguai. Depreende-se, portanto, que a reestruturação das unidades especializadas para suportar as demandas crescentes, devem atuar em uníssono com os países vizinhos, unificar suas ações e tratativas, com a instituição efetiva de cinturões e malhas de fiscalização inteligentes e interconectadas, para que se torne um modelo nacional e mundial de repressão aos crimes de alta complexidade. A tendência atual deve ser de se procurar um relacionamento duradouro interagências, que leve a uma diplomacia voltada para missões efetivas entre os atores envolvidos, com o benefício de ambas as partes. Denomina-se de negociação ganha-ganha, em que a identificação de necessidades e interesses, em vez de posições rígidas e inflexíveis, leva a um resultado muito melhor, em todos os sentidos, para as partes envolvidas na negociação. 112

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O Estado brasileiro, por sua vez, é social, à vista dos diversos direitos sociais previstos na lei maior e, por isso, deve ser percebido pela população como garantia da lei e da ordem. O engajamento das Forças Armadas brasileiras com outros órgãos e entidades pertencentes ao Estado, contará com a participação de organizações internacionais, organizações não-governamentais, o terceiro setor, instâncias privadas e agentes civis. A preparação especializada de missões entre agências com capacitação e treinamento validará a cooperação e integração entre as Forças Armadas, a Polícia Federal, a Receita Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a Polícia Rodoviária Federal, e comandos interestaduais, compatibilizando equipamentos, mensagens, sistemas e protocolos de comunicação. Em suma, não pode haver desenvolvimento sem a garantia de direitos e liberdades: direito à saúde, à educação, à moradia; liberdades políticas, culturais, étnicas e religiosas. Independentemente da posição weberiana da neutralidade ética diante do fenômeno cultural dotado de fecundidade econômica e social, a cultura mostra-se essencial para a vida de um povo.

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6 ORDEM PÚBLICA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA COMPARADA: CONFRONTANDO A ATUAÇÃO DO EXÉRCITO BRASILEIRO NO CONTESTADO E NO RIO DE JANEIRO

Eduardo Rizzatti Salomão INTRODUÇÃO No Brasil, diante das recorrentes crises de gestão na segurança pública e da ampliação da sensação de insegurança nas grandes cidades, ampliou-se o clamor pela participação das Forças Armadas no combate às organizações criminosas e no policiamento ostensivo. Sob o manto legal das chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o Estado brasileiro optou por uma trajetória rumo ao fortalecimento da militarização da segurança pública e de “policialização” de organizações destinadas à defesa da soberania nacional (ZAVERUCHA, 2005; SUCCI JUNIOR, 2018). Marcando o ápice do emprego das Forças Armadas em operação de natureza policial, em fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer decretou intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, tendo por fundamento “o objetivo de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública.” (BRASIL, 2018). Entre as alegações apresentadas para a adoção da medida excepcional, nos termos do art. 142 da Constituição Federal de 1988 (que ao tratar das Forças Armadas, cita a possibilidade de aplicação na manutenção da lei e da ordem), constava o agravamento das ações criminosas no decorrer da semana do Carnaval de 2018 (NUNES et al., 2018; PAMPLONA, 2018). Para interventor, com missão restrita à segurança pública, o presidente nomeou o general à frente do Comando Militar do Leste (CML), preservando o governador no exercício do cargo. 119

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A aplicação da intervenção federal causou apreensão e estranheza em vários observadores que questionaram sua legalidade e necessidade, observando, inclusive, a possibilidade de uso político-partidário por parte de um mandatário que assumira o cargo após o polêmico processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff.16 Em sentido diverso, houve manifestações de apoio à decisão, reconhecendo seu caráter legal, emergencial e transitório, uma vez que consubstanciada nos termos da legislação que rege o emprego das Forças Armadas na GLO (BRASIL, 1999; 2001). As forças militares de um país, desde o modelo originário da Paz de Westfália, têm, entre as suas atribuições, a missão de aplicar a violência contra os inimigos que ameaçam a existência do estado soberano, incluindo, nessa ação, a possibilidade de eliminação física de adversários no campo de batalha (GIDDENS, 2008). No desenvolvimento do aparelho estatal contemporâneo, firmou-se a compreensão de que o emprego de militares na segurança pública seria uma excepcionalidade, nunca a regra. Contrariando essa compreensão, a história brasileira registra abundante emprego do aparato das Forças Armadas em operações policiais de natureza variada, tais como apreensão de armas e entorpecentes, ações para pôr fim aos efeitos de greves tidas como ilegais, inspeção de presídios e patrulhamento urbano. O conceito de ordem pública se define como expressão do respeito e obediência à lei, a garantir uma hipotética felicidade pública mediante a manutenção da ordem social, exigindo, na sua consecução, o castigo da prática do crime e a distribuição da justiça (SA; FERREIRA, 2011). Ao reportar-se à manutenção da ordem e da legalidade, surge o conceito de segurança pública, o qual envolve o emprego do poder de polícia. No exercício desse poder, ao agente policial compete a atribuição de agir na repres16

Sobre as dúvidas que cercaram a necessidade da medida, os dados conhecidos apontam que os delitos praticados no Carnaval de 2018 não foram maiores dos que aqueles praticados em anos anteriores: “A diretora-presidente do Instituto de Segurança do Rio (ISP), Joana Monteiro, afirmou que os dados de segurança do Rio de Janeiro divulgados pelo órgão mostram que não houve uma onda de violência atípica neste carnaval, apesar de críticas à Secretaria que motivaram a intervenção federal no Estado. Foram registradas 5.865 ocorrências policiais no total no Rio, entre os dias 9 e 14 de fevereiro, enquanto no carnaval do ano passado (quando a Polícia Civil ainda estava em greve), foram 5.773. Em 2016, 9.016 ocorrências foram registradas e, em 2015, computaram-se no total 9.062.” (REZENDE, 2018).

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são de diversas formas de manifestação da criminalidade, abrangendo atividades investigativa e preventiva, o que inclui o propósito de captura de criminosos e não a sua eliminação física (SUCCI JUNIOR, 2018). Pensando a questão com o olhar do historiador, é necessário rememorar que, de conflitos de origem social a lutas entre facções políticas, a opção de empregar as Forças Armadas, com destaque para o Exército, em situações tidas como de crise é um recurso recorrente no Brasil. E um desses eventos, em particular, interessa a esse trabalho. Dado o agravamento do conflito envolvendo um movimento de inspiração religiosa, permeado por questões políticas e sociais, eclodiu no sul do Brasil uma das mais expressivas revoltas populares da Primeira República, dando início a Guerra do Contestado (1912-1916). Apreciando o ocorrido no Contestado em contraste com a atual conjuntura do Rio de Janeiro, o emprego do Exército atendeu a contexto claramente distinto. Qual, portanto, o propósito em se confrontar dois acontecimentos distantes espacial e temporalmente? Ele se encontra na percepção de que as medidas adotadas nos dois eventos se concentraram no emprego de militares federais contra civis em operações tipicamente atribuídas aos órgãos de segurança pública, promovendo a assimilação pelas organizações militares de tarefas estranhas à finalidade de emprego em operações de guerra e projeção de poder no cenário internacional. Essa assimilação, por sua vez, consagraria um desvio de finalidade e a consequente ampliação do protagonismo militar em área cuja direção não é da competência das Forças Armadas. Outros exemplos da aplicação do poder militar contra a população civil nas primeiras décadas da República poderiam ser elencados, como Canudos (1897), Juazeiro do Norte (1914) e Caldeirão (1937). A escolha do Contestado se deu por ser tema privilegiado, dado se inserir no debate sobre a formação profissional dos militares, o relacionamento destes com a população civil e a reforma e modernização das Forças Armadas durante a Primeira República, o que incluí a problemática do emprego do Exército na manutenção da ordem pública e a apreciação dos possíveis desdobramentos dessa medida para o profissionalismo militar. Pensando no problema dos desdobramentos do emprego do Exército na ordem e segurança públicas, a fundamentação teórico-metodológica que norteou o estudo teve como suporte a sociologia histórica, 121

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que em Charles Tilly encontra um de seus principais representantes17. A relevância da opção se afirma por essa corrente estudar o desenvolvimento das sociedades e para isso se valer do método comparativo para analisar como as estruturas sociais foram moldadas pelos processos históricos. Em sua obra Coerção, capital e estados europeus (1996), Tilly analisou o processo de formação do estado, o que inclui o papel dos militares e aborda reflexões pertinentes a América Latina, apresentando a tese, hoje clássica, do papel da guerra e das forças monopolizadoras da violência na construção do aparato estatal. Sua produção inclui o estudo da democracia, abordando questões que se relacionam com o protagonismo militar (TILLY, 2018). Foram, ainda, consultados autores de perspectivas teóricas distintas, devendo-se distinguir Samuel Huntington (1996), Alain Rouquié (1984) e José Murilo de Carvalho (2005) no que se refere ao estudo do papel dos militares no mundo contemporâneo. A respeito da Campanha Militar no Contestado, foram consultados documentos, obras de época e produções acadêmicas. Substanciando o capítulo, no primeiro momento é abordada a rebelião no Contestado e a experiência desse evento para o Exército e a população local, com vistas a traçar um panorama do impacto desse conflito. Nos momentos posteriores, ocorre a apreciação comparativa entre o Contestado e a intervenção no Rio de Janeiro, confrontando questões que se conectam com a discussão pertinente ao papel das Forças Armadas/Exército, tendo por ambição pensar as consequências da intensificação do emprego de militares federais em operações de natureza policial para o profissionalismo militar e as relações para com os civis.

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Ao estudar a formação do Estado moderno, Charles Tilly (1996) estabeleceu uma analogia entre os estados e os esquemas de chantagem em que criminosos ameaçam com violência e posteriormente cobram pela proteção oferecida contra ameaças. Ao subjugarem seus oponentes e monopolizarem o uso da violência dentro de um território, esses grupos passavam a exigir tributos. Os governantes, por sua vez, ofereciam uma proteção seletiva, de acordo com seus interesses, estabelecendo uma relação que também submetia os governantes aos interesses das classes com maior poder econômico. Essa questão traz à tona a possibilidade de emprego do monopólio estatal da violência em desfavor de setores da sociedade sem poder econômico e com baixa representatividade política.

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A REBELIÃO DO CONTESTADO A região onde se inseriu a rebelião do Contestado, localizada em território atualmente pertencente aos estados do Paraná e Santa Catarina, foi por longa data objeto de preocupação do governo brasileiro. Durante os anos 1890 a 1895, a Argentina e o Brasil disputaram a posse da área, episódio conhecido como Questão de Palmas (ou Questão das Missões) (CERVO; BUENO, 2002). Encerrada a controvérsia com a Argentina em favor dos interesses brasileiros, restava definir as divisas entre os estados sulistas. Essa definição foi objeto de litígio por anos, sendo encerrada somente em 1916. No transcurso da contenda judicial, o governo federal mirou promover o povoamento e o desenvolvimento regional, assumindo como objetivo a construção de uma estrada de ferro ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul, com a interligação, por ramais, de portos e pontos extremos do território. A construção da estrada de ferro ocorreu mediante contrato do Governo Federal com o grupo do empresário norte-americano Percival Farquhar. Formada a Brazil Railway Company, foram cedidos direitos de exploração à empresa. A contrapartida para o pagamento das obras incluiu direitos de colonização das terras devolutas e de exploração madeireira sobre uma extensa faixa de terras que correspondia a um domínio médio de 9 quilômetros a contar das margens da ferrovia (MACHADO, 2004, p. 143). A exploração foi posta em práticas pela empresa Southern Brazil Lumber and Colonization Company. Outras empresas colonizadoras também operaram na região, atendendo ao anseio de intensificar o povoamento do Contestado com imigrantes europeus. Ao ser alvo de uma nova marcha colonizadora, parcela do Contestado experimentou intensa transformação socioeconômica e cultural. Deve-se notar que o Contestado não era uma área desprovida de núcleos de povoamento e dinâmica econômica própria. Há tempos essa região era integrada a economia nacional e internacional por meio da exploração e exportação da erva-mate, do transporte de gado equino e bovino, charque e outros gêneros. O Contestado e a serra catarinense que lhe era vizinha ofereciam generosas possibilidades ao empreendedorismo econômico e ao povoamento, dispondo de terras férteis e amplas florestas cuja oferta de madeiras nobres passou a ser cobiçada. A instalação da estrada de ferro dinamizou a economia local, promo123

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vendo a valorização das terras e, assim, alterando sobremaneira as relações de trabalho e produção. Face ao aquecimento econômico, as terras devolutas passaram a ser arregimentadas pelos fazendeiros em detrimento dos posseiros desprovidos de títulos de propriedade. Outrora dedicados ao trabalho rural, ocupados em pequenas plantações, na lida com o gado e na coleta de erva-mate, centenas de pessoas sofreram com as requisições das empresas madeireiras e colonizadoras, em episódios não raro marcados pela violência. Os acontecimentos no Contestado ocorreram numa conjuntura de concentração de poder nas mãos de coronéis-fazendeiros, portadores de expressivo poder político, e de fragilização de laços de compadrio e camaradagem, outrora cultivados entre posseiros e fazendeiros (MONTEIRO, 1974). Esses personagens eram até então os mediadores entre a população rural e os poderes estaduais, mantendo a ordem local, aplicando a justiça e controlando, em proveito próprio, as eleições, constituindo, na expressão empregada por Victor Nunes Leal (1997), o coronelismo. No contexto da política de salvações nacionais do governo Hermes da Fonseca, e das transformações econômicas e sociais operadas no Contestado, eclodiu um movimento de inspiração messiânica, desafiando a ordem estabelecida ao conclamar a população rural a lutar contra determinados coronéis e representantes das empresas estrangeiras. O ponto inicial do movimento foi o distrito de Taquaruçu, então integrante do município catarinense de Curitibanos. Nessa localidade, em agosto de 1912, a festa em louvor ao Bom Jesus concentrou as atenções de forma incomum. Naquele ano, a disputa política se acirrou, levando a perseguição de um convidado ilustre, desafeto do potentado local, o curandeiro José Maria (que atendia pelo epíteto de monge). José Maria desfrutava da fama de rezador e vendedor de remédios eficazes para males diversos, gozando de relativo prestígio (CABRAL, 1937). Após encerra a festa, dezenas de pessoas permaneceram na localidade junto ao monge, situação percebida como uma ameaça pelo superintendente (prefeito), que telegrafou a Florianópolis denunciando o ajuntamento como um movimento sedicioso pró-restauração da monarquia (BRASIL, 1914). A controversa denúncia provocou o efeito esperado, servindo de justificativa para enviar a polícia catarinense ao encalce do monge em nome da ordem pública. Em fuga, acompanhado de numeroso séquito, José Maria buscou refúgio na localidade de Irani, hoje parte 124

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de Santa Catarina, mas à época sob a jurisdição da cidade paranaense de Palmas e encravada no território em litígio. O governo do Paraná vislumbrou na presença do peregrino um ardil político a atender a causa catarinense e mandou em seu encalço a Força de Segurança Pública estadual (QUEIROZ, 1981; MACHADO, 2004). A ação policial resultou em carnificina, estando entre os mortos o comandante da tropa e o monge-curandeiro. Após a morte de José Maria, espalhou-se a crença de que o curandeiro vaticinara o ocorrido em Irani e anunciara a sua ressurreição à frente de um Exército celestial (QUEIROZ, 1981; SALOMÃO, 2012). Decorrido cerca de um ano, centenas de devotos se reuniram no distrito de Taquaruçu tendo por objetivo aguardar o retorno do monge. Em dezembro de 1913, foram enviadas tropas da Força de Segurança Pública catarinense, agora com o reforço do Exército. Após o insucesso das tratativas visando convencer os acampados a dispersar, ocorreu uma primeira e desastrosa investida militar, rendendo manchetes que comparavam a ação com o fracasso da primeira expedição a Canudos. Em oito de fevereiro de 1914, o povoado foi novamente atacado, tendo por resultado a brutal destruição de Taquaruçu, mediante intenso bombardeio e fogo de metralhadoras, restando casebres em chamas e corpos mutilados entre os escombros (PEIXOTO, 1916). A destruição de Taquaruçu favoreceu a eclosão de um sentimento de revolta latente na região. Sobreviventes do ataque e novos adeptos formaram acampamentos, constituindo um movimento mais amplo que reunia expectativas religiosas e questões políticas. Assassinatos, abigeato, depredações e saques foram computados à conta dos rebeldes. A presença do Exército, de forma maciça, passou a ser exigida pelas autoridades ligadas ao governo e pela Lumber em nome da manutenção da ordem. Essa atitude manifesta correspondência com a análise de Charles Tilly da tendência de setores civis do governo, ou a ele ligados, usarem seus direitos de representação para exigir a atuação repressiva do estado em seu favor e, assim, aumentarem o seu poder por intermédio da guerra (TILLY, 1996). Das expedições militares mobilizadas para atuar no Contestado, as operações de maior vulto estiveram sob o comando do general Fernando Setembrino de Carvalho, nomeado para a função em setembro de 1914. A escolha recaiu sobre um general que demonstrara afinidade com 125

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a política de intervenção de Hermes da Fonseca nos estados.18 Setembrino logrou convocar batalhões e regimentos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, e outras regiões, para atender a necessidade de ampliar os efetivos em campanha. No auge do conflito, foram empregados mais de sete mil militares, numa época em que o efetivo fixado no orçamento de 1915 para o Exército não ultrapassava a previsão de 18 mil alistados (PEIXOTO, 1916, p. 636). Após uma fase inicial de revezes, as forças em operações atacaram acampamentos e povoados, obtendo sucessos traduzidos em centenas de mortes e na aniquilação do potencial ofensivo dos rebeldes. Nos últimos dias de 1915, o movimento estava sufocado. Milhares se renderam em massa. Algo em torno de 20 mil pessoas foram mortas, a imensa maioria civis, marcando um tempo de sofrimento e desconfiança da população local para com os poderes constituídos.

CONTESTADO E RIO DE JANEIRO Na atualidade, afirmar que ocorrem operações de guerra contra a população civil nas comunidades cariocas causa desconforto à opinião pública e é assunto revestido de ilegalidade. Ocorre que, evidenciando a gravidade da questão, há autor que sugira que o emprego do Exército contra a população nacional em operações de GLO revela traços característicos de uma guerra contra brasileiros (MARINHO, 2010), o que levanta o temor de que o caminho trilhado apresente desdobramentos deletérios para o papel institucional das Forças Armadas, revelando, na prática, indiferença à linha legal que separa os papéis do militar e do policial.

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A experiência do general Setembrino de Carvalho incluía a intervenção federal no Ceará. Em 1914, eclodiu a chamada Sedição de Juazeiro, rebelião no contexto do quadro de desestabilização política e social promovida pelas disputas entre grupos políticos rivais ligados ao ex-governador Antônio Pinto Nogueira Acióli (alijado do poder por Hermes da Fonseca) e o governador coronel Carlos Franco Rabelo. Em Juazeiro do Norte, a população foi mobilizada pelo líder acionista Floro Bartolomeu, com o beneplácito e apoio do líder religioso padre Cícero Romão Batista. Seguindo a política das salvações nacionais, Setembrino de Carvalho foi nomeado interventor, obtendo sucesso ao estabelecer um acordo que levou ao fim do movimento. (Sobre o assunto, ver: MONTEIRO, 1997).

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Ao consultar as publicações de época sobre o conflito que a historiografia nacional batizou de Guerra do Contestado, chama atenção que muitas foram as vozes discordantes da solução militar, inclusive no interior da caserna, justamente por implicar no uso do Exército contra nacionais. Não raro, militares clamavam que o problema era principalmente político e uma questão regional. Assim se expressaram os oficiais Demerval Peixoto (1916) e José O. P. Soares (1920), entre outros autores, ao imputarem a revolta as atitudes dos mandatários locais e observarem que os crimes cometidos pelos insurretos eram assunto da alçada da polícia. Evidenciando o desconforto da caserna diante da situação, o editorial da revista militar A defesa nacional comparou o episódio do Contestado à “campanha inglória de Canudos” (A DEFESA NACIONAL, 1914, p. 1). A Constituição de 1891, em seu art. 14, previa o emprego do Exército e da Armada na manutenção das leis no interior do território (BRASIL, 1891). Com a alegação de preservar a ordem pública, o Exército era comumente acionado para atuar contra rebeliões internas e em atendimento aos interesses políticos do executivo federal. Essa situação trazia desconforto a membros de uma instituição que passava, nas primeiras décadas do século XX, por intenso debate a respeito da sua modernização. As queixas do emprego de militares na segurança de prédios públicos, na contenção de criminosos, e outras atividades vistas como inadequadas, vinham de longa data. Outra questão preocupante era a mobilização de militares em favor de interesses político-partidários, o que causava desconforto maior entre a jovem oficialidade. A instituição carecia de adquirir nova doutrina, equipamentos e redefinir o sistema de ensino e o recrutamento. Afastar-se de embates partidários era uma das ambições no caminho do fortalecimento institucional do Exército. Oficiais brasileiros de ímpeto reformista, egressos de missões na Alemanha, foram nomeados de Jovens Turcos19. Esse grupo trouxe na bagagem o ideal de profissionalizar o Exército e convertê-lo numa instituição renovada, digna do papel almejado pelos militares para o Brasil no concerto das nações. Desse grupo partiu a iniciativa de fundar a revista A Defesa Nacional. Para alcançar o propósito de modernizar o Exército, os “turcos” defendiam ser urgente modificar velhas práticas, sobretudo no tocante ao recrutamento forçado, cujo alvo preferencial era o criminoso e o desocu19

O epíteto “Jovem Turco” alude aos integrantes do movimento reformismo político e secularizante promovido na Turquia em 1908.

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pado (a lei do sorteio militar, de 1908, ainda não havia sido aplicada). O uso frequente da violência física como instrumento disciplinar e de coação na lida diária com os praças era igualmente vergonhosa. Os métodos de recrutamento terminaram por converter a caserna em uma instituição punitiva de caráter protopenal (BEATTIE, 2009). Cidadãos sem débitos com a justiça também eram recrutados à força, somando-se aos criminosos e aos acusados de vadiagem. Tal condição tornava o serviço militar, que podia se estender por anos, em uma imposição penosa e impopular. Empregar o Exército contra a população, como no caso do Contestado, estava longe de ser benéfico a uma instituição que almejava a modernização. No Congresso Nacional, vozes se levantaram contrárias ao uso de tropas federais no Contestado, denunciando abusos por parte de mandatários locais e o erro em se autorizar o emprego da força militar na região, a exemplo do deputado federal Maurício P. de Lacerda. Mas a ignomínia toda está na gênese dessa insurreição, que não é outra coisa senão a defesa à mão armada de um direito legítimo que o Estado, para servir aos interesses de constituintes de políticos altamente colocados, de políticos que podem enviar, sem que ninguém a isso se possa opor, a polícia paranaense para subjugar os que protestam em nome dos seus direitos conspurcados, de políticos que têm influência bastante para conseguir do Governo Federal a remessa de expedições para combatê-los. (LACERDA, 1915, p. 371-372).

A oposição ao emprego do Exército no Contestado foi voto vencido. Adotada a medida, como os militares lidariam, na prática, com essa espinhosa questão, uma vez que lutar contra nacionais encerrava dilemas morais? O editorial de A defesa nacional, ecoando o pensamento de parcela da oficialidade, oferece uma resposta parcial à questão. A ação das forças militares assumirá, assim, nitidamente as características de operações de guerra, contra irmãos, é verdade, mas irmãos que, por seus atos, estão reduzidos à condição de inimigos. O destacamento do Exército terá então que resolver a questão com o cunho acentuadamente militar que ela reveste, conduzindo-se realmente como em operações de guerra. Uma vez iniciada a luta, não haverá mais lugar para paliativos nem para concessões, que só servirão para enfraquecer a ação da tropa e desprestigiar 128

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o Exército. Enquanto os fanáticos não pedirem a paz e lealmente depuserem as armas, a ação da tropa só pode ser a consecução de seu objetivo militar: destruir o inimigo. (Grifos no original – A DEFESA NACIONAL, 1914, p. 2).

De acordo com o pensamento clausewitziano, o Exército deveria ser destinado à execução de altos objetivos políticos, levando ao predomínio da vontade do estado vencedor sobre outro estado (CLAUSEWITZ, 1979). Ao ser empregado contra nacionais, o Exército estaria diante de uma situação atípica, pois a doutrina militar e o preparo das tropas conduziriam, inevitavelmente, a um emprego similar ao executado em guerra, em nada semelhante ao papel de uma força policial. Como enfatizou o editorial, a questão não impunha lidar com criminosos – aqueles que agem em desacordo com o pacto social expresso em lei – mas, como a enfrentar uma ameaça à existência do Estado, “destruir inimigos” (A DEFESA NACIONAL, 1914, p. 2). Setembrino de Carvalho se referiu as ações no Contestado como “operações de guerra” ou “pequena guerra” (CARVALHO, 1916, p. 43), expressando a magnitude da mobilização militar em curso e a compreensão do que encerrava a missão. Pensando em termos militares e políticos, é relevante reconhecer que o Contestado não pode ser reconhecido como uma guerra no sentido clausewitziano. No Contestado não houve uma guerra entre os estados sulistas, mas uma rebelião popular com interesses difusos, iniciada em terras catarinenses e que terminou por se expandir para a região em litígio com o Paraná. No tocante a população sublevada, essa não contou com o suporte de um exército regular ou irregular aos moldes de uma força guerrilheira. Muitos exageros foram publicados durante o conflito, aventando a possibilidade de nele se reconhecer a tentativa de separação territorial em favor da fundação de uma monarquia sul-brasileira. Essa denúncia foi tratada como inverossímil pelos próprios militares que atuaram na campanha (PEIXOTO, 1916; ASSUNÇÃO, 1917; SOARES, 1920). Os rebeldes contaram com grupos aguerridos, formando piquetes nomeados de Pares de França que integrariam, no imaginário dos devotos, uma força sobrenatural nomeada de Exército de S. Sebastião (SALOMÃO, 2012). O “exército” dos discípulos do monge contava com a liderança de alguns poucos integrantes da Guarda Nacional (presentes, em maior 129

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número, nas fileiras das forças federais) e alguns bandoleiros experientes (MACHADO, 2004). O conjunto das forças era provido de cavalos, clavinas, revólveres e rifles em número limitado. A vantagem do lado rebelde, no decorrer da luta, foi obtida, sobretudo, do conhecimento do terreno, do uso de investidas furtivas (evitava-se lutar em campo aberto) e da habilidade no combate corpo-a-corpo entre as florestas de pinheiros, onde um facão afiado era instrumento eficiente e temido pelos soldados. Nos combates nas vielas das comunidades cariocas, os pontos de observação elevados e o conhecimento dos caminhos e rotas de fuga são igualmente uma vantagem. Tropas bem armadas, dispondo de veículos blindados e apoio aéreo, adentram áreas controladas por “soldados” do tráfico e milicianos portando fuzis e granadas. Teríamos uma guerra no Rio de Janeiro? Se no Contestado o emprego da expressão guerra não descartada pelos militares, no Rio de Janeiro contemporâneo a expressão é vista como imprópria, encontrando acolhida em alguns comunicadores que contribuíram para divulgar a opinião de que ocorria uma guerra urbana nas comunidades cariocas. A respeito do assunto, as ações de GLO são tratadas em publicação do Ministério da Defesa (MD) como operações de “não guerra” (BRASIL, 2013, p. 17). Segundo essa compreensão, o poder militar, expressão do poder nacional, de acordo com a doutrina exposta na Estratégia e na Política Nacional de Defesa (BRASIL, 2012), é assim percebido porque empregado em operações sem envolver o engajamento dos militares em combate no sentido militar. O emprego da expressão “não guerra” pelo MD soa como um atenuante, observando aspectos morais e jurídicos, uma vez que se quer dar a entender que são ações contra criminosos e não contra inimigos no campo de batalha. O uso dessa expressão, por fim, não deixa de ser inadequado, pois encerra uma confusão conceitual, uma vez que o termo “não guerra” remete a uma expressão correspondente à paz. Guerra, como compreendida pelo senso comum, é sinônimo de conflito. Para a maioria dos moradores das comunidades, é muito provável que pouco ou nada interesse o debate conceitual, acadêmico ou jurídico sobre a guerra. A percepção do aumento da insegurança, a morte de moradores, o emprego de armamento de grosso calibre por criminosos, a violência de narcotraficantes, milicianos e policiais, a detonação de granadas próxima às escolas e as imagens de blindados percorrendo ruas e vielas seriam melhores indicadores de que, de fato, ocorre uma guerra em área urbana. 130

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No Rio de Janeiro, organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas e milícias formadas, em grande parte, por ex-agentes de segurança, atuam para controlar regiões da cidade e disso auferir vantagens monetárias. Até o presente momento, em que pese se constatar o emprego de armas de uso restrito das Forças Armadas por criminosos e o uso do poder econômico de organizações para cooptar políticos e agentes de segurança, nada indica que tais ações visam promover uma guerra contra o Estado, tendo por objetivo a tomada do poder político ou a separação territorial. Se tal situação fosse reconhecida, assumindo se tratar de uma guerra interna, as implicações seriam mais amplas, envolvendo questões relativas à soberania nacional e à aplicação do direito internacional dos conflitos armados. Observado esse contexto, deve-se questionar a validade do emprego persistente das Forças Armadas em operações tipicamente policiais pouco afinadas com o fortalecimento de uma política de segurança pública cidadã20 sob o comando de lideranças civis e tendo como horizonte o que se deseja das instituições militares. A discussão em torno das novas ameaças à segurança do Estado brasileiro não pode favorecer a assimilação automática de tarefas estranhas à finalidade principal das forças militares. É fundamental proceder-se a continua mensuração dos riscos envolvidos. A chamada guerra ao crime organizado, expressão difundida por uma visão estadunidense ligada à agenda de segurança hemisférica (RODRIGUES, 2012), incluindo o combate ao narcotráfico na América Latina, oferece o risco de perverter o papel precípuo de uma instituição voltada à projeção de poder com vistas à garantia da soberania nacional. Lançar o olhar sobre eventos passados, a exemplo do ocorrido no Contestado, faculta a percepção de quais expectativas podem ser desenhadas diante do uso dos recursos militares contra compatriotas, nela incluídas a possibilidade do desgaste da identidade da força armada, promovendo o retrocesso institucional e a perda de confiança de setores da população nas instituições. 20

O conceito de segurança pública cidadã abrange o atendimento de diversas demandas da sociedade, observando o exercício da cidadania, os direitos humanos e o bem-estar social, propondo caminho diverso do policiamento focado exclusivamente na ação repressiva. Esse conceito surge nos regimes democráticos, ao se afastar da noção de segurança interna das doutrinas de segurança nacional próprias do contexto da Guerra Fria (SUCCI JUNIOR, 2018).

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PROFISSIONALISMO MILITAR Ao discutir os desdobramentos da Campanha Militar do Contestado, Frank McCann concluiu que o assunto permaneceu por vários anos como um importante elemento da memória institucional do Exército (MCCANN, 2009, p. 212). Ao servirem na campanha, os oficiais Demerval Peixoto (1916), Herculano Assunção (1917) e José O. P. Soares (1920) testemunharam os desdobramentos da política de tolerância para com os crimes promovidos por chefes políticos, oferecendo aos jovens militares relatos sobre a realidade do interior do país, envolvendo questões políticas e sociais. Muitos dos oficiais e sargentos veteranos do Contestado integraram as fileiras do movimento tenentista, opondo-se às práticas do voto de cabresto e à política de acomodação de interesses própria do coronelismo. A experiência proveniente da campanha do Contestado impactou em alguma medida na constituição da mentalidade desse grupo, com repercussões para o profissionalismo militar nos anos subsequentes, quando das agitações dos anos 1920. Os esforços buscando o afastamento da agitação política terminaram se revelando ineficazes, sendo que o envolvimento se deu mediante rupturas da hierarquia e da disciplina castrense em reação ao contexto político (PRESTES, 1993). Na atualidade, não se pode ignorar que o emprego de tropas em operações de natureza policial, considerando desdobramentos que levem ao confronto direto entre soldados e criminosos, com a possibilidade de morte de civis não envolvidos em atividades criminais, terá reflexos na constituição da autoimagem e na mentalidade dos militares, com efeitos deletérios na formação castrense e quiçá desdobramentos no campo político. Samuel Huntington, em O soldado e o Estado (1996), analisou o relacionamento entre civis e militares e a influência dessa convivência na política e na sociedade. Na apreciação do processo histórico que promoveu a formação das modernas instituições militares, Huntington destacou a profissionalização como fator que conduziu a um elevado grau de especialização, que o autor reporta ter afastado os militares das questões político-partidárias. Esse processo ocorreu na própria constituição do Estado-nação e conduziu a diferenciação do papel do oficial militar daquele atribuído ao político e ao policial. Charles Tilly discorda de Huntington ao observar o contexto latino-americano, observando 132

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que ao longo do processo de profissionalização dos militares ocorreu igualmente um acentuado grau de intervencionismo (TILLY, 1996). Na América Latina, o profissionalismo militar foi estabelecido paulatinamente, com recuos consideráveis. Como ressalta Tilly, a interferência dos militares na vida doméstica foi frequente, e ainda é recente, com consequências danosas aos direitos dos cidadãos e ao fortalecimento do estado democrático. Não raro, muitos dos ocupantes dos altos postos da hierarquia militar latino-americana eram provenientes da aristocracia local ou beneficiários de recompensas, não tendo alcançado por mérito postos que mais correspondiam a títulos. Esses personagens eram pouco sensíveis aos interesses do conjunto da sociedade, empregando a violência estatal como instrumento político e de contenção de adversários. Comentando a obra de Huntington, Alain Rouquié enfatizou que as três características que marcam o profissionalismo militar – tecnicismo, disciplina e espírito de corporação – aplicam-se aos exércitos estatizados cujos integrantes alcançaram alto grau de autonomia (ROUQUIÉ, 1984). No continente latino-americano, a trajetória da autonomia das Forças Armadas foi turbulenta, sendo a profissionalização dos militares e seu afastamento da política partidária, enquanto membros da ativa, um feito recente e passível de retrocesso. No Brasil, a semelhança dos demais países do continente, o caminho para a emancipação da profissão militar e o seu reconhecimento como carreira aberta a talentos foi longo. Dos oficiais positivistas avessos à farda e ressentidos da falta de prestígio aos adeptos da dedicação exclusiva a assuntos militares, muitas décadas se passaram (CARVALHO, 2005). As ações em favor do reconhecimento do Exército como instituição cívica por excelência conduziram ao aprimoramento profissional dos militares. São exemplos de ações que conduziram a esse reconhecimento a adoção do serviço militar por sorteio, iniciada em 1916, o currículo militar voltado para a educação patriótica dos conscritos, a contratação da Missão Militar Francesa (1920-1940) para operar a modernização do Exército, e a experiência adquirida pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. No curso do fortalecimento institucional do Exército, os militares se autoatribuíram um estranho papel de guardiões das instituições republicanas. E esse papel, quase tutelar, não foi exercido sem custos para o conjunto da sociedade em diversos momentos da história brasileira. Em 133

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que pese muitos líderes militares terem buscado na profissionalização a solução para afastar o Exército das lutas partidárias e ideológicas, diversas rebeliões pontuaram a história. Tais acontecimentos prejudicaram o necessário equilíbrio das relações civis-militares e alimentaram ressentimentos mútuos que perduraram por décadas. Com isso não se quer afirmar que a participação na política é vedada ao militar, que no jogo democrático, quando das eleições, encontra no exercício do voto e na possibilidade de ser eleito, como cidadão e não como chefe militar, um campo de expressão que não afronta ou desvirtua o seu papel institucional. O que aguardar do recorrente emprego dos militares em operações de natureza policial? No mundo contemporâneo, as Forças Armadas de um país são o braço armado da nação no sistema internacional. Observados o papel correspondente à dimensão territorial e ambições políticas da nação, as forças militares exercem papel fundamental na balança estratégica, atuando na garantia do posicionamento soberano do país nas relações exteriores. Novos desafios, como o tráfico internacional e o terrorismo, têm imposto uma mudança no papel das Forças Armadas de alguns países sob o peso da agenda hemisférica estadunidense, com destaque para o México e a Colômbia. Há o risco do enfraquecimento das Forças Armadas no cumprimento de suas missões principais. É esse o caminho desejado pelos brasileiros? A história latino-americana alerta para o perigo da adoção de políticas que desvirtuem as forças militares de sua atividade-fim, ao invés de se empreender esforços e aplicar recursos no fortalecimento das instituições de segurança sob uma perspectiva cidadã e em sintonia com os valores democráticos balizados pela Carta Magna.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Décadas foram despendidas com esforços de profissionalização dos militares. A medida de intervenção no Rio de Janeiro expôs uma fratura, pois ao ampliar o emprego e o comprometimento das forças federais no combate às organizações criminosas desviou as organizações militares de seu papel estatal e promoveu junto à população expectativas de solução no curto prazo. Levados a um protagonismo em temas que não são centrais à agenda militar, é necessário pesar as 134

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consequências deletérias para o papel institucional e mesmo o preparo operacional das Forças Armadas. Pensando numa questão da obra de Huntington, sobre que modelo de relação entre civis e militares seria o melhor para preservação da segurança da nação (HUNTINGTON, 1996), pode-se concluir que, nas últimas décadas, as lideranças militares e civis brasileiras responderam parte do problema ao investir na profissionalização da carreira militar e no afastamento da caserna de atividades que lhe são estranhas. Adotar políticas de segurança pública vigorosas, com gestão proporcional ao desafio, é caminho fundamental. Uma alternativa para afastar as Forças Armadas do emprego em ações de GLO seria reforçar a Força Nacional de Segurança, pensando na manutenção de uma força ou guarda intermediária robusta e plenamente capaz de atuar quando requisitado no ambiente urbano em apoio às forças de segurança estaduais, sob a subordinação da pasta da justiça. Essa experiência foi adotada por outros países, a exemplo da Gendarmería Nacional, na Argentina, e dos Carabineros chilenos (SUCCI JUNIOR, 2018). Resta saber se os embates por fatias do orçamento federal e pela busca de missões que justifiquem a manutenção de efetivos não serão um óbice à adoção de uma política de segurança pública mais afinada com a separação de atribuições entre militares e policiais. A ausência de ações eficientes das esferas competentes, promovendo soluções duradouras no tocante a problemas sociais e de segurança, pode estimular um quadro de perda de confiança da população na autoridade estatal. Parcela da população, atemorizada pelo comprometimento da ordem pública, percebendo que somada à violência cotidiana se une a perda de renda, de acesso à saúde e à educação, pode tender a apoiar soluções mal elaboradas apresentadas como emergenciais. Para Charles Tilly, a perda de confiança da população nas instituições representativas é preocupante para a democracia, podendo estimular medidas que conduzam ao que o autor nomeou de desdemocratização (TILLY, 2018). Em caso de ampliação das crises de gestão da segurança pública, pode o executivo federal, com a aprovação dos demais poderes, adotar medidas mais severas justificando preservar ou restabelecer a ordem pública, a exemplo da adoção do estado de defesa e do estado de sítio. A história brasileira está repleta de exemplos de que medidas excepcionais nem sempre são a melhor solução para crises, dado o impacto deletério 135

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para a independência dos poderes e o equilíbrio das relações entre civis e militares em atendimento aos interesses do conjunto da sociedade.

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7 O CASO DA FRONTEIRA BRASILEIRA NA ANÁLISE CONCEITUAL DA SEGURANÇA INTERNACIONAL DO BRASIL21

Maurício Kenyatta Barros INTRODUÇÃO Há mais de duas décadas, a Segurança Internacional (SI) vem passando por transformações ontológicas, epistemológicas e metodológicas acompanhadas das grandes transformações nas Ciências Sociais e seus impactos nas Relações Internacionais. Além dessas transformações, há a própria autonomia que vem ganhando o campo de Relações Internacionais nos últimos anos sobre a sua produção de conhecimento e os ferramentais específicos para a compreensão de determinados fenômenos do mundo. Nesse sentido, percebe-se que as transformações mais amplas e as próprias pelas quais passam o campo de Segurança Internacional indicam novos atores, saberes e lógicas que atuam, ainda que de maneiras distintas, no Sistema Internacional. A complexidade e a diversidade desse debate teórico-conceitual, o qual se ancora na prática política e social que perpassa as relações de poder em diferentes níveis de análise deve ser melhor compreendida à luz da realidade brasileira da SI para que se produza políticas e instituições que lidem com essas realidades de maneira efetiva. O objeto de pesquisa desse artigo é a própria Segurança Internacional em termos de conceito e prática. Recortando-se esse objeto de pesquisa, abordaremos mais especificamente o binômio interno-externo presente no conceito e na prática da Segurança Internacional que faz 21

Esse capítulo é fruto de um processo no doutorado na UnB, no grupo de pesquisa GEPSI-UnB, no III ERABED-CO com apoio do CNPq.

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com a vivência securitária se diferencie nos distintos atores a depender das relações de poder e sociais que se estabeleçam entre eles. Nesse caso, a fronteira brasileira servirá para ilustrar, de um lado, os efeitos disso sobre a realidade de segurança no país e, por outro lado, os efeitos na segurança brasileira em relação aos demais Estados. Desse modo, o binarismo, que parece ser, não é natural aos Estados, e a naturalização realizada desse binarismo esconde a realidade securitária das fronteiras brasileiras e do próprio país. Verifica-se que alguns dilemas na segurança das fronteiras brasileiras devem-se à importação de um modelo de inserção na segurança internacional que destaca o binômio interno-externo em detrimento da própria interconexão entre esses lados, por vezes, considerados distintos e opostos entre si, mas que, independentemente, não são contraditórios. Essa importação deveu-se a influência de teorias, conceitos e práticas políticas advindas dos centros de poderes que influenciaram ao longo do tempo o Brasil, notadamente os Estados Unidos e alguns países europeus. Alguns desses dilemas estão relacionados aos desafios presentes (se estes são preponderantemente locais ou internacionais), às respostas dadas aos desafios (se devem ser dadas preferencialmente pelas instituições estaduais e municipais ou se devem ser dadas pelas federais) e quanto à relação com os países vizinhos (integrar mais ou criar mais barreiras nas fronteiras). Nesse sentido, o objetivo geral desse artigo é identificar a problemática que o binarismo interno-externo causa na conformação de uma abordagem brasileira de segurança internacional. A pergunta desse artigo é: como as dinâmicas internas e externas presentes em conceitos, documentos oficiais e na operacionalização do que seja a Segurança Internacional do país afeta a sua própria segurança, especialmente, a de suas fronteiras? A problematização desse binômio será realizada por meio do debate teórico-conceitual presente no campo da Segurança Internacional e do diálogo deste debate com a concepção brasileira de Segurança Internacional em relação a questão do binômio interno-externo. Argumenta-se que a divisão em níveis de análise é um esforço intelectual para facilitar a compreensão da realidade, mas que, de fato, o interno e o externo são uma única realidade, a qual tem suas dimensões apreendidas de modos distintos por teorias e visões políticas, o que pode obscurecer o entendimento da segurança brasileira e aumentar a vulnerabilidade do país. 142

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O presente artigo divide-se para além desta introdução e de sua conclusão em uma seção única que consta o desenvolvimento do artigo. Essa seção de desenvolvimento será subdividida em três subseções. A primeira aborda as perspectivas tradicionais de segurança internacional. A segunda as perspectivas abrangentes e críticas. Por fim, a terceira aborda uma perspectiva brasileira acerca da sua segurança. O objetivo dessa organização é apresentarmos o debate teórico dos Estudos de Segurança Internacional em torno do binarismo interno-externo e verificar como a concepção brasileira retratada em seus documentos oficiais se posiciona em meio a este debate. Esse artigo baseia-se em documentos oficiais, bibliografia teórica e conceitual e bibliografia secundária. Utiliza-se da teoria e de sua aplicabilidade para destacar os limites da prática de segurança no Brasil.

OS ESTUDOS DE SEGURANÇA INTERNACIONAL (ESI) Os Estudos de Segurança Internacional surgiram após a Segunda Guerra Mundial para proteger o Estado das ameaças internas e externas (BUZAN & HANSEN, 2012). Esse campo foi desenvolvido, inicialmente, a partir dos pressupostos realistas, conhecido como a abordagem tradicionalista. A partir dos anos 1980, as abordagens abrangentes e críticas com base em outros pressupostos começam a surgir como parte do debate de Segurança Internacional (TANNO, 2003). O debate dos ESI é estruturado em torno de quatro questões: a) o Estado como objeto securitizado principal; b) a inclusão de ameaças internas e externas; c) a expansão da segurança para além do setor militar e do uso da força; e d) a conexão entre a segurança e a dinâmica de ameaças, perigos e urgências (BUZAN & HANSEN, 2012). Essas questões nos ajudam entender o próprio debate posicionado também na academia brasileira. Três vertentes teóricas da SI se consolidam entre os anos 1970 e 1990: a tradicionalista, a crítica e a abrangente (TANNO, 2003). A tradicionalista vinculada ao Realismo em suas distintas acepções (Realismo clássico, Neorrealismo, Realismo ofensivo etc.) destaca as questões militares e a centralidade do Estado na compreensão do sistema internacional. A vertente crítica vinculada à Escola de Frankfurt centra-se no 143

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indivíduo, entendendo as ameaças e os objetos de segurança como construções sociais relevantes para a emancipação humana. Por fim, a vertente abrangente criou um conceito para além do âmbito bélico-militar, atuando em posição intermediária em relação as outras duas abordagens (BOOTH, 1991; TANNO, 2003). As abordagens tradicionais do Campo tendem a transformar o provincial em universal, o que obscurece alguns fatores locais da realidade estudada (TICKNER e BLANEY, 2012); entretanto a reflexão teórica não deve ser desprezada, pois destoante da argumentação da ciência normal (KUHN, 1992), a qual apresentaria ciclos paradigmáticos conforme um paradigma supere o outro na evolução da ciência, o que será considerado para o campo de estudo dessa pesquisa, o de Segurança Internacional, é que não há a superação de paradigmas teóricos, mas sim uma convivência conflituosa entre as teorias (BUZAN e HANSEN, 2012). Essa convivência conflituosa entre as abordagens tem gerado confusões quando do uso de determinado conceito, por exemplo o conceito de Guerra, como pode-se verificar do uso circunstancial desse conceito para se declarar guerra contra grupos terroristas (ROCHA, 2015). A definição de segurança internacional também é problemática, já que ela varia conforme a lente analítica adotada. A ideia de que uma teoria sempre serve a um propósito (COX, 1981) também é válida para o conceito de segurança, o qual é conceito central para a organização do Estado e de sua autopercepção e percepção sobre o mundo. Ao pesquisador cabe aceitar essa diversidade e justificar o uso do conceito adotado. O conceito de segurança tradicional informa muito de uma percepção ocidental advinda dos polos acadêmicos das potências do pós-Segunda Guerra Mundial (BUZAN & HANSEN, 2012). Após o fim da Guerra Fria, expande-se os centros de pesquisa e as percepções sobre o tema. Nesse artigo, interessa-nos, principalmente, a relação da percepção brasileira de SI com as distintas abordagens presentes no campo, mas não uma percepção restrita às elites dos centros políticos, mas que também inclua percepções como as engendradas na fronteira para que se tenham uma abordagem de segurança internacional que nos permita lidar efetivamente com nossos problemas de segurança independente de onde eles ocorram.

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O CONCEITO DE SEGURANÇA À LUZ DO BINÔMIO INTERNO-EXTERNO NAS ABORDAGENS TRADICIONAIS DAS RI E DA SI O conceito de segurança é central para o Realismo, pois esta abordagem compreende a insegurança dos Estados como o principal problema das relações internacionais (WALT, 2010). Os conceitos abordados por Kenneth Waltz (1979) para a explicação da política internacional de autoajuda na anarquia, princípio ordenador do sistema internacional, são centrais para a compreensão de que os Estados são os únicos responsáveis para prover sua segurança em um sistema anárquico, sendo a balança de poder o principal mecanismo no qual os principais atores geram estabilidade no sistema internacional. Desse modo, verifica-se que as principais ameaças à segurança na política internacional se encontram no exterior dos Estados, já que o a organização hierárquica do Estado é capaz de prever ordem e estabilidade internamente. O interno é fonte de estabilidade, enquanto o externo é fonte de instabilidade, sendo a segurança um bem escasso que deve ser provida por meio da política de poder (WALTZ, 1979; WALT, 2010). Nesse sentido, o conceito de segurança para o Realismo pode ser compreendido como a proteção contra os ataques violentos ou a coerção de outros Estados sobre seu território, povo, instituições e valores (WALT, 2010). Atualmente, o Neorrealismo (WALTZ, 1979) é a abordagem predominante dentro das abordagens tradicionais, mas cabe destacar aqui também a Paz Democrática, uma das vertentes liberais para o estudo da segurança internacional. Do mesmo modo como no Neorrealismo, essa abordagem encontra no sistema internacional a principal fonte de insegurança na atualidade, já que há uma série de Estados não democráticos ou em processo de democratização, que geram violência tanto interna quanto externamente. Nesse sentido, a segurança só pode ser obtida por uma paz duradoura entre países que compartilhem os valores e responsabilidades liberais e democráticas que os impedem de entrar em conflito entre si (DOYLE, 1986; RUSSET, 1994). Outra abordagem que destacamos aqui é a Teoria do Sistema Mundo de Wallerstein (2004), a qual traz contribuições do materialismo histórico. Ainda que essa abordagem esteja dentro do escopo das abordagens estadocêntricas, ela não naturaliza o sistema internacional como no caso do Neorrealismo, já que apresenta uma visão cíclica da estrutura. Desse modo, os 145

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principais problemas de segurança estão localizados no nível sistêmico. A crescente desigualdade e a exploração da periferia pelo centro geram tensões e conflitos que, por fim, levam a mudança do atual sistema mundo. Quadro 1 - Abordagens de Segurança Internacional em relação ao binômio interno-externo I Abordagens de Segurança Internacional em relação ao binômio interno-externo

Neorrealismo22

Paz Democrática23

Sistema Mundo24

Principal ator

Estado

Estado

Estado

Principal fonte de insegurança (principal objeto securitizado)

Principalmente externa (sistema anárquico; ameaças externas; inimigo externo)

Principalmente externa (sistema anárquico com Estados não democráticos e não liberais)

Externa (excessiva exploração e desigualdade entre Estados eleva conflitos)

Principal fonte de segurança (provedor)

Interna/ Estado (provê segurança para o território e para os habitantes)

Externa/ Sistema internacional democrático e liberal provê paz.

Externa/ Mudança para um Sistema mundo mais igualitário proverá mais estabilidade.

Principal instrumento de poder

Quanto mais poder, mais segurança, principalmente, por meios bélicos.

Uso do poder para exportar democracia e liberalismo por meios bélicos, econômicos e diplomáticos

Uso do poder para reduzir a desigualdade internacional e promover uma economia mais igualitária por meio econômicos, diplomáticos e sociais.

Principal origem da abordagem

Ocidente (Europa e EUA)

Ocidente (Europa e EUA)

Ocidente (Europa)

FONTE: Elaboração própria com base nos autores citados e em BUZAN & HANSEN, 2012.

Baseado em WALTZ (1979) e WALT (2010).

DOYLE, 1986; RUSSETT, 1994.

WALLERSTEIN, 2004.

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O CONCEITO DE SEGURANÇA À LUZ DO BINÔMIO INTERNO-EXTERNO NAS ABORDAGENS CRÍTICAS E ABRANGENTES DA SEGURANÇA INTERNACIONAL A Escola de Copenhague, segundo Buzan e Hansen (2012), é uma abordagem abrangente, sendo o meio termo entre as abordagens tradicionais e as críticas. A abordagem da Escola de Copenhague caracteriza-se pela abrangência para além dos temas militares. Nessa perspectiva, a segurança é um ato de fala, justamente por não poder ser mensurada objetivamente, sendo necessário um ator securitizador e uma audiência que compre a concepção de urgência dada ao objeto securitizado para que este seja uma questão de segurança (DUQUE, 2009). O Estado continua sendo o principal ator por serem seus agentes os que ainda possuem maior capacidade de securitizar um tema. A prática discursiva na segurança é responsável por constituir a concepção de sobrevivência, ameaça, amigo e inimigo. O próprio “eu” e o “outro”, assim como o “interno” e o “externo” fazem parte da prática social de legitimidade social por meio da aceitação da audiência dos discursos de segurança. Desse modo, a segurança é uma iniciativa que transforma uma questão política, que transcorria dentro das regras estabelecidas, em uma questão urgente para além da política, uma questão de segurança ou também chamada de “política do pânico”. A segurança acaba tendo um significado negativo em comparação com a abordagem tradicional, já que nessa perspectiva as questões devem ser evitadas ao máximo em serem securitizadas (BUZAN et al., 1998; DUQUE, 2009). As abordagens críticas da Segurança Internacional (BUZAN & HANSEN, 2012) que discutiremos nesse artigo são os Estudos Críticos de Segurança (ECS), os Estudos de Segurança Pós-Estruturalistas e os Estudos de Segurança Pós-Coloniais. Os ECS alertam que um conceito estrito de segurança gera outras inseguranças, e que, de fato, há uma série de violências para além dos conflitos interestatais que ilustram a realidade da segurança internacional. Os indivíduos são o foco dessa abordagem, pois são eles que sofrem com as violências e não o Estado, que é uma concepção abstrata (BOOTH, 2007). A segurança é um “conceito derivativo”, isto é, a ideia de segurança deriva da maneira como vemos o mundo e compreendemos como ele funciona. Desse modo, o conceito básico apresentado por Booth (1991) de que segurança é a ausência de ameaças depende do que entendemos o que seja ameaça, o que precisa ser protegido e como alcançar essa proteção (PEOPLES & VAUGHAN-WILLIAMS, 2010). 147

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Nos ECS, a compreensão do que seja segurança passa pelo “alargamento”, “aprofundamento”, “extensão” e “foco” dos estudos de segurança. O “alargamento” é a expansão da agenda de segurança para além das questões militares. O “aprofundamento” diz respeito à conexão do conceito de segurança com suposições gerais da natureza política. A “extensão” significa incluir outros atores, principalmente os indivíduos, para além do ator estatal. A segurança deve ser “focada” no princípio normativo da emancipação humana (WYN JONES, 1999; PEOPLES & VAUGHAN-WILLIAMS, 2010). A segurança é mais do que apenas sobreviver, a busca pela segurança envolve a maximização do estar livre de ameaças (bem-estar) (PEOPLES & VAUGHAN-WILLIAMS, 2010). Desse modo, segurança e emancipação são dois lados da mesma moeda, pois a emancipação, e não o poder, produz ordem e segurança, pois somente assim é possível ter consciência e agir para se livrar dos diversos tipos de violência por meio de redes e comunidades de emancipação que gerem as condições de liberdade das ameaças que afetam a vida humana (BOOTH, 2007). Os Estudos de Segurança Pós-Estruturalistas trazem ao campo a centralidade dos discursos na formação do que seja segurança e ameaças. A própria constituição do “eu” acaba por ancorar-se na definição do “outro”, da “ameaça” e do “inimigo”. Essa abordagem sofreu críticas por, inicialmente, reforçar o Realismo ao passo que seria difícil fugir da lógica de rivalidades retratada pela perspectiva realista, porque o Pós-Estruturalismo constituía a ideia de segurança a partir da formação da identidade em termos relacionais-binários (BUZAN e HANSEN, 2012; CAMPBELL, 1998). O fim da Guerra Fria marca um momento de avanços no campo, com vertentes pós-estruturalistas que buscam a superação de análises discursivas binárias. Nesse sentido, a desconstrução dicotômica de termos positivos-negativos torna-se o primeiro passo para as análises discursivas que visam romper com a violência binária gerada. Os discursos de segurança, a partir da relação entre poder e conhecimento, atuam como mecanismos de poder que mobilizam regras, códigos e procedimentos para definir um entendimento particular por meio da construção do conhecimento (DALBY, 1988; HANSEN, 2010). A não neutralidade do conhecimento o torna instrumento de poder tanto para perpetração da violência, quanto para a proteção e segurança de um indivíduo ou coletividade. A “segurança” passa a ser um requerimento duplamente ontológico: o Estado precisa estar seguro, 148

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mas precisa de “outro” que o ameace para definir sua identidade, fornecendo a ele segurança ontológica (HANSEN, 2010). A insegurança e a ameaça são combustíveis que alimentam a busca por segurança e poder. Isso, em termos relacionais, gera a identidade do próprio em relação à identidade do outro. Walker (1990) proporá uma concepção de segurança global que vá além do binarismo existente na segurança interestatal para que se supere as noções provinciais de segurança estadocêntrica para incluir as inseguranças que são silenciadas. O princípio da soberania e as perspectivas de seguranças centradas no Estado obscureceram violências dentro dos próprios Estados e os próprios conflitos intraestatais ao redor do mundo, gerando uma série de silêncios (WALKER, 1990). A desconstrução de conceitos naturalizados, como o de segurança, em conjunto com a compreensão de níveis de alteridade pode auxiliar na análise dos processos discursivos que silenciam ou acabam por deslegitimar certos tipos de violência e dificultar o desenvolvimento de outros tipos de coletividade que melhor atendam às necessidades de segurança de determinados indivíduos (HANSEN, 2010; WALKER, 1990). Os Estudos de Segurança Pós-Coloniais têm sua origem com Ayoob (1995) ao posicionar a exclusão do Terceiro Mundo das formulações teórico-conceituais de segurança. A abordagem Neorrealista e os Estudos Estratégico que enfatizam que as ameaças vêm de fora e devem ser respondidas militarmente não condiz com a realidade securitária de grande parte dos países do mundo, sendo mais representativa e explicativa da própria realidade dos países de onde foram criada, os países considerados do centro. No Terceiro Mundo, as principais ameaças são internas, relacionadas aos problemas e ao processo de construção do Estado, mas isso não descarta também que possa haver ameaças externas ou problemas externos ainda mais por conta dos transbordamentos de questões de segurança interna presente nesse processo de construção do Estado (AYOOB, 1995). A distinção entre os conceitos de segurança das potências e daqueles que passaram por processos de colonização ou imperialismo faz emergir concepções distintas do que seja a segurança do Estado (território e instituições). Nesse sentido, a relação segurança-insegurança é definida por Ayoob em relação às vulnerabilidades (internas e externas) que ameaçam ou têm o potencial de destruir ou enfraquecer as estruturas do 149

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Estado e os regimes governamentais. A compreensão de segurança aqui é essencialmente política, sendo necessário afetar a sobrevivência e a efetividade do Estado e suas instituições para serem consideradas questões de segurança que não as do setor político (AYOOB, 1995). Desse modo, o grau de segurança de um Estado tem correlação positiva com o nível de desenvolvimento dele em termos de efetividade de suas instituições e capacidades políticas (AYOOB, 1995). A centralidade do Estado na perspectiva de Ayoob (1995) deve-se a importância que este autor confere as características do sistema internacional e aos distintos tipos de violências que o Terceiro Mundo sofre devido à sua marginalização nesse sistema. O desenvolvimento de Estados com instituições e regimes políticos efetivos seria a melhor maneira de se alcançar a segurança em âmbito interno e externo, já que a falta desse desenvolvimento gera violências tanto internamente quanto seu transbordamento no meio internacional (AYOOB, 1995). Verifica-se também uma outra abordagem pós-colonial que mantém o foco em dar voz ao Sul Global e não-ocidentais, mas que se distanciam da perspectiva centrada no Estado por considerarem que o Estado também é promotor de silêncios, sendo mais interessante estabelecer uma abordagem focada nas interações entre Norte-Sul, Ocidente-Não-Ocidente, pois assim como o “eu” constitui o “outro”, o “outro” também constitui o “eu”. Nesse sentido, a compreensão da identidade, mas também da segurança, encontra-se no processo de interação (BARKAWI & LAFEY, 2006; BILGIN, 2010). Desse modo, tanto o campo prático quanto teórico da Segurança Internacional teria um problema central que impediria uma compreensão adequada desse campo que seria a não inclusão do “Sul”, do “fraco”, do “outro”, o que implica no provincialismo dos ESI por universalizarem perspectivas de determinadas localidades (das potências) e no caráter periférico do campo por não incluir questões da “baixa política” (de outros setores) dentro do espectro do que seja um assunto de segurança internacional (BILGIN, 2010). A relação tempo-espaço é importante na constituição dos centros e das periferias do sistema, sendo responsável por ter constituído as geografias históricas eurocêntricas, assim como na segunda guerra mundial produziu a anglo-americana, principalmente centrada nos EUA. O poder político envolve fatores materiais, mas estes são apenas instrumentos para a ação política que é imaterial (processual) determinada pela posição na interação de fatos (tempos) em lugares (espaços) que 150

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consigam serem utilizados como símbolos (consistentes empiricamente) para a transformação da realidade. Desse modo, a capacidade em tornar coisas importantes e em definir os rumos e padrões da humanidade é onde reside a verdadeira disputa por poder (BARKAWI & LAFEY, 2006) Quadro 2 - Abordagens de Segurança Internacional em relação ao binômio interno-externo II Abordagens Escola de Cope- Estudos de Segurança nhague25 Críticos de Internacional Segurança26 em relação ao binômio interno-externo

Estudos de Segurança Pós-Estruturalistas27

Estudos de Segurança Pós-Coloniais28

Principal ator

Estado, coletividades e meio ambiente

Indivíduo

Indivíduo e coletividades

Estado e coletividades

Principal fonte de insegurança (principal objeto securitizado)

Interna ou Externa, já que é multissetorial, depende do setor (militar, político, econômico, societal e ambiental).

Interna ou Externa. O Estado ou qualquer outro ator que gere violência contra o indivíduo.

Interna ou Externa. O princípio da soberania do Estado, enquanto prática geradora de violências e silêncios.

Interna: violência e problemas existentes em Estados não efetivos ou em desenvolvimento. Externa: persistência das práticas coloniais.

Principal fonte de segurança (provedor)

Ainda é o Estado (interna), principal ator securitizador, que deve buscar a dessecuritização e a politização das questões.

Interna e externa, comunidades de emancipação. A emancipação é um processo social.

Interna e externa. Desnaturalizar a soberania estatal enquanto provedora de segurança para aceitar outras organizações coletivas que forneçam segurança.

Interna: o Estado ao desenvolver-se proverá segurança. Externa: fim da violência colonial por parte de quem detém poder e práticas de resistência.

BUZAN, 1991; BUZAN et al, 1998.

BOOTH, 2007; PEOPLES & VAUGHAN-WILLIAMS, 2010.

HANSEN, 2010; CAMPBELL, 1998; WALKER, 1990.

AYOOB, 1995; BARKAWI & LAFEY, 2006.

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Maurício Kenyatta Barros Principal instrumento de poder

Ato de fala. Capacidade de securitizar ou dessecuritizar questões. Quanto maior a capacidade de dessecuritizar, maior o sentimento de normalidade e estabilidade.

O conhecimento por meio das comunidades de emancipação. Quanto mais conhecimento, maior emancipação e mais segurança.

O conhecimento para a desconstrução das categorias que reificam e instrumentalizam as subjetividades, a segurança e o poder.

O poder político: a) construção de Estado; b) enquanto processo legitimador de narrativas e padrões.

Principal origem da abordagem

Ocidente (Europa).

Ocidente (Europa).

Ocidente (Europa e EUA).

Distintas localidades, ocidentais e não ocidentais.

FONTE: Elaboração própria com base nos autores citados e em BUZAN & HANSEN, 2012.

OS CONCEITOS BRASILEIROS DE SEGURANÇA E DEFESA Os documentos nacionais de defesa trazem bons indícios do que seja segurança e defesa para o Brasil. Na Política Nacional de Defesa, a segurança é definida como uma condição que caracteriza a preservação da integridade do território nacional e da soberania em relação a possíveis ameaças e pressões. A Defesa Nacional, por sua vez, garantirá a condição de segurança. Desse modo, a Defesa representa o conjunto de medidas e ações do Estado, principalmente militares, para a defesa da soberania, do território e dos interesses do Estado brasileiro (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012). A Constituição Federal de 1988 também completa essa definição ao trazer no Artigo 142 que a função das Forças Armadas, instituições nacionais permanentes e regulares, é a de defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e a lei e a ordem. As Forças Armadas são instrumentos de proteção do Estado brasileiro e garantidoras da condição de segurança. O Artigo 144, o qual versa sobre a Segurança Pública, afirma que esta é composta pela Polícia Federal, Rodoviária Federal, Ferroviá152

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ria Federal, Civil, Militar e Corpos de Bombeiros Militar com o intuito de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e dos patrimônios. Desse modo, a Segurança Pública contribui para a condição de Segurança enquanto livre de ameaças e pressões, ainda que internas para manutenção da integridade territorial. Entretanto, acrescenta-se a importância da proteção das pessoas, aqui o indivíduo ganha relevância dentro do contexto de segurança. Para além dos atores citados aqui, poderíamos citar também o papel da Diplomacia e da Inteligência para a proteção do país. Esses distintos atores que atuam na Segurança e Defesa do Brasil e de sua população possuem missões, objetivos e atuações distintas, as quais se assemelham em alguns pontos e ocasiões, mas que por não terem sido desenhados institucionalmente e nem na prática da realização de suas missões de maneira interconectada e colaborativa faz com que muitas vezes atuem em campos semelhantes ou então que restem lacunas sem atuação de nenhuma instituição. Os conceitos de Segurança e Defesa aparecem interconectados nos Documentos de Defesa, mas como não é clara qual seja essa Segurança em si em termos da prática de segurança, ainda restam dúvidas na conceituação brasileira, maiores dúvidas vemos em sua operacionalização entre os distintos atores. Na Política Externa Brasileira, percebe-se a prevalência dos princípios constitucionais: independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica de conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Esses princípios reforçam a imagem brasileira de país pacífico e multilateralista, o qual se guia por um interesse universalista de corresponsabilidade entre as nações, sendo uma segurança internacional ou coletiva mais bem sustentada por um arranjo multipolar (AMORIM, 1998; VIGEVANI; CORREA & CINTRA, 1998). A Política Externa deve ser assim instrumento de resguardo da soberania brasileira frente aos demais países e de promoção da paz e do progresso no mundo, criando caminhos cooperativos que reforcem a ideia de Segurança enquanto condição livre de ameaças e pressões. A Diplomacia contribuiria também para elevar a confiança, melhorar a comunicação e possibilitar a convergência de interesses entre os países. 153

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A linha de fronteira, vista normalmente como separação de unidades nacionais, conjuga nessa mesma linha, e mais ainda em sua zona fronteiriça que segue paralela a linha29, as dimensões nacionais (internas) e internacionais (externa). Ordenamentos jurídicos, práticas sociais e relações econômicas distintas conversam formal e informalmente no dia-a-dia das fronteiras, não poderia ser diferente com as dinâmicas de segurança. As ameaças, os riscos e as vulnerabilidades mais tradicionais reconhecidas pelo setor militar mesclam-se com dinâmicas que se inserem em redes transnacionais (ou internacionais) e passam a potencializar suas ações criminosas de modo a elevar os desafios às práticas nacionais de resguardo da soberania e da ordem. Os atores transnacionais clandestinos (ATC), como definidos por Andreas (2003), podem atuar regional ou internacionalmente. Eles são diversos, mas o que possuem em comum é que são alvos dos controles fronteiriços. Esses grupos criam estratégias para cruzar as fronteiras e minimizar os riscos de apreensão. Desse modo, atores não-estatais como os ATC, grupos terroristas e outros, ainda que não almejem a posição internacional do Estado, desafiam sua economia, valores, princípios e segurança de seus indivíduos. Esses desafios de segurança relacionam-se às dinâmicas tradicionais de poder ao minar os recursos que fundamentam o poder nacional e desequilibrar o equilíbrio de poder do Estado com demais atores no sistema internacional, mas também nos fazem questionar o que é mais importante: a vida do ente abstrato chamado de Estado ou a vida de indivíduo. Esse falso dilema nos faz pensar que os dois importam, mas a “vida” do Estado não poder ser posta acima da de seu povo. Desse modo, o que nos cabe é perceber a sutil diferenciação criada entre o interno e o externo, como sendo distintos, sendo que os resultados empíricos dos diversos processos sociais, políticos, econômicos e securitários têm por fim os resultados na vida de alguns indivíduos e coletividades. Os riscos, definidos pelo seu potencial incerto e probabilístico de se causar danos, perdas ou consequências prejudiciais (ESCORREGA, 2009), podem tornar-se ameaças quando conjugados com as vulnerabilidades dos Estados, os quais não conseguem atuar na segurança e no

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No caso brasileira, destaca-se a faixa de fronteira de 150 km a partir da linha em direção ao interior do território, como faixa sob influência dos aspectos vivos das relações fronteiriças.

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desenvolvimento das regiões de fronteira. Nesse sentido, questões de segurança pública, as quais domesticamente são de responsabilidade dos órgãos de segurança pública, terminam por necessitar de suporte das Forças Armadas para atuação marítima, aérea e terrestre por causa da sua dimensão transnacional. O vasto território brasileiro e a diversidade de agentes ilegais que atuam nessas regiões justificam sua atuação. Destaca-se no caso brasileiro que as Forças Armadas têm poder de polícia na faixa de fronteira e tem como função subsidiária dar suporte às forças de segurança pública em ações de garantia da lei e da ordem. A noção de Segurança e Defesa nos Documentos Nacionais de Defesa e na Política Externa de maneira geral guiam-se dentro do binômio interno-externo conforme os pressupostos das abordagens tradicionais das Relações Internacionais e da Segurança Internacional. A abordagem institucionalista, a qual sustenta teoricamente um posicionamento multilateralista e a adesão a regimes internacionais, convive com a abordagem realista que guia uma inserção internacional estratégica do Brasil no sistema internacional, considerando o jogo de poder político (PROENÇA JR & BRIGAGÃO, 2002). Ainda que encontremos na Constituição Federal princípios que justifiquem a importância do indivíduo e justifiquem um pensamento mais abrangente na conformação da Segurança Internacional do Brasil, percebe-se que teórica e conceitualmente há poucos avanços e, muito menos, na prática da segurança pelo país, o que pode ser verificado nas políticas e ações na fronteira brasileira, uma região que pede por um novo olhar de segurança.

AS FRONTEIRAS BRASILEIRAS NAS POLÍTICAS DE DEFESA NACIONAL Um dos locais para se compreender a construção da percepção brasileira de segurança internacional parte de uma leitura crítica da visão oficial consolidada nos documentos de Defesa Nacional (Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa do Brasil). Para contrastar esse posicionamento oficial, iremos utilizar as percepções de segurança que emergem das fronteiras nacionais.

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POLÍTICA NACIONAL DE DEFESA (PND) A Política Nacional de Defesa (PND) do Brasil, de 2012, define segurança enquanto uma condição na qual o Estado encontra-se livre de riscos, pressões e ameaças, resguardando sua soberania e integridade nacional. Essa condição de segurança permite que o Estado promova seus interesses e resguarde os direitos e as liberdades de seus cidadãos. Esse mesmo documento destaca que a segurança deve ser garantida não só pela pasta de Defesa, mas sim, por outras também, como as de Justiça e Segurança Pública, Relações Exteriores, Fazenda e Integração Nacional (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012). A PND de 2016, corrobora a concepção de Segurança e Defesa dos documentos de 2012. Entretanto, ela enfatiza a necessidade de maior articulação entre as diversas pastas responsáveis pela Segurança. Essa articulação é importante para consolidar o Poder Nacional do país, compreendido como a capacidade que tem a Nação para alcançar e manter os Objetivos Nacionais, elencados na Estratégia Nacional de Defesa (END), em conformidade com a Vontade Nacional. O Poder Nacional manifesta-se em cinco expressões: a política, a econômica, a psicossocial, a militar e a científico-tecnológica. Nesse sentido, a segurança é a condição de normalidade de vida do Estado e de seus cidadãos, possibilitando o desenvolvimento soberano livre de constrangimentos e pressões internacionais (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016). O Poder Nacional e a Defesa gozam dos benefícios dessa situação de segurança, mas são desenvolvidos para garanti-los, como se fosse uma espécie de seguro da nação. Os documentos oficiais buscam harmonizar as concepções de segurança e defesa para, posteriormente, apresentar a percepção brasileira de segurança internacional, a qual baseia-se nos princípios constitucionais do país: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e concessão de asilo político (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Dentre esses destacam-se os princípios da não-intervenção, da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos que guiam a percepção brasileira oficial de segurança internacional (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016; CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Os princípios constitucionais aliam-se ao longo 156

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histórico do país sem envolvimento em conflitos com vizinhos e em outras partes do mundo, determinando a convivência harmônica com demais nações, e caracterizando o Brasil como um país multilateralista e pacifista em termos de segurança internacional (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016; CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). A Política Externa Brasileira caracteriza-se como pedra angular da segurança internacional do país, justamente, por conta de uma percepção multilateralista e pacifista. Entretanto, o uso da Expressão Militar do Poder Nacional é uma possibilidade em caso de ameaças aos interesses nacionais, quando as negociações não puderem resolver o problema (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016). Desse modo, alterar determinados posicionamentos tradicionais do país no cenário internacional que minem o prestígio internacional podem também minar a própria segurança do país no cenário internacional. Discutimos na seção anterior um pouco desse debate, o qual aprofundamos aqui, cabe destacar alguns princípios que não considerados como os principais na compreensão da Segurança Internacional do Brasil, como o da prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos e repúdio ao terrorismo e racismo. Esses princípios estariam mais próximo a uma agenda mais abrangente de segurança internacional, a qual considere a segurança humana por exemplo. Além disso poderia também corroborar com a concepção de emancipação enquanto fonte de segurança. Abordagens que descontruam as noções de Estado e Soberania evidentemente não encontram respaldos constitucionais, mas a violência com a qual essas noções são praticadas contra os indivíduos, inclusive retirando-lhes qualquer capacidade de serem partícipes de modo ativo nas suas próprias histórias de segurança e violência, merecem reflexão. O Estado pode ser garantidor da emancipação e da segurança dos diversos indivíduos em seu território, não sendo apenas de alguns. A Soberania pode ser o primado da vida coletiva em prol das diversas individualidades, e não em prol de poucas individualidades. Há debates políticos e filosóficos por detrás dessas questões, o que demonstra que sim, o Brasil pode ser um país inclusivo, seguro e poderoso, mas isso dependerá de como essas práticas sejam vivenciadas. Na PND de 2012, as fronteiras são consideradas como regiões sensíveis às incursões militares devido à ocupação do espaço terrestre ao longo do globo. Nessa mesma Política, os ilícitos transnacionais e as ins157

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tabilidades que, por vezes, emergem em países vizinhos são os principais riscos às fronteiras do país. Nesse sentido, torna-se necessário a vivificação das fronteiras e a presença do Estado nessas regiões, já que há muitas porções territoriais do país com baixa densidade populacional e baixa presença do Estado. As questões sociais e ambientais são relevantes nesse cenário securitário para além das questões de segurança pública, de defesa nacional e de infraestrutura (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012). Na PND de 2016, a temática fronteiriça mantém seu espaço e o aumenta em certa medida. A sua relevância deve-se ao trânsito de pessoas, mercadorias e bens, o que gera uma integração e aproximação do Brasil com seus vizinhos. Esses fluxos e essa integração existentes em alguns pontos da fronteira despertam o interesse de atividades criminosas transnacionais, o que demonstra a vulnerabilidade da permeabilidade fronteiriça, e exige constante vigilância e ação coordenada entre órgãos de defesa e segurança pública no Brasil e desses com seus homólogos vizinhos. As questões ambientais e a disputa por recursos naturais podem atrair o interesse de potências extraterritoriais às fronteiras brasileiras (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016). As questões fronteiriças contribuem para que as Forças Armadas Brasileiras atuem mais no campo da Segurança Pública, como pode ser visto pelas leis que lhes conferem poder de polícia na Faixa de Fronteira e pela atuação mais próxima dos órgãos de segurança pública. Esse reposicionamento das Forças em si não é o problema, e nem um problema que comprometa a capacidade de Defesa Nacional. Entretanto, deparamo-nos novamente com uma sutil distinção: a do binômio interno-externo. A atual ação das Forças Armadas, por causa da persistência da separação entre o interno e o externo, tem levado a uma gradual mudança de atribuição e comprometido o preparo e a capacidade brasileira em termos de projeção de poder regional e internacional. Verifica-se a urgência em atualizar as concepções-teóricas e estratégicas que regem a segurança internacional do Brasil para que as Forças Armadas atuem nas questões transnacionais e internacionais, ampliando sua capacidade de dissuasão. Os órgãos de segurança pública e a Abin precisam capacitar-se cada vez mais para atuação integrada com a Defesa Nacional nesses casos.

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A ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA (END) As ENDs de 2012 e 2016 vão destacar a importância do tripé presença, monitoramento e controle das fronteiras brasileiras. Nesse sentido, Programas como o Calha Norte (PCN) e a Promoção do Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF) que aparecem na END de 2012 e o Sistema Integrado de Monitoramento das Fronteiras (SISFRON) que aparece na END de 2016 contemplam essa necessidade de se criar muros e uma capacidade de reação e dissuasão nas fronteiras, mas sem minar os fluxos legais para o país. Na END de 2016, elementos de inteligência, segurança pública e fiscalização são mencionados como importantes para esse esforço nacional (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012; MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016). Os documentos oficiais de Defesa Nacional retratam as especificidades locais em termos das suas vulnerabilidades, riscos e ameaças presentes e possíveis com o intuito de se estabelecer estratégias e ações para se responderem a esses desafios. Entretanto, a fronteira enquanto produtora de percepções de segurança e de novas lógicas securitárias que podem distinguir das existentes nos centros não existe. Essa não existência deve-se à própria função que as Forças Armadas e a Defesa Nacional possuem no país como forças de integração nacional que visam disseminar as ideias de nacionalidade, patriotismo, identidade e interesse nacional mesmo onde há baixa presença do Estado brasileiro. Essa concepção nacional produz uma percepção nacional de segurança internacional que buscamos demonstrar. Verifica-se a relevância das forças que buscam a integração nacional, mas essa integração nacional deve ocorrer respeitando as peculiaridades e dinâmicas locais. Fomentar a integração nacional conjuntamente à integração regional traz desafios, mas também novas possibilidades para a Defesa Nacional e a segurança fronteiriça. O intuito é realizar-se a transição de ações de segurança fronteiriça paliativa para uma segurança efetiva com a valorização das dinâmicas locais e também dos agentes de segurança nessas regiões. Em suma, a fronteira é entendida pela contextualização a partir de casos fronteiriços que demonstram as limitações de uma percepção nacional influenciada majoritariamente pelo centro do país, assim como também das limitações dos modelos teóricos importados de outros países. Por fim, não se descarta a importância nem do nacional, nem das 159

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teorias, e nem o local como único produtor válido de verdades sobre sua existência, mas busca-se exatamente o vácuo analítico deixado pelas limitações de cada perspectiva para encontrarmos meios de aprofundar o debate e de melhor entender o local em meio ao nacional na produção de perspectivas de segurança internacional.

CONCLUSÃO A definição brasileira de segurança enquanto condição de preservação da soberania e da integridade territorial livre de pressões e ameaças apresenta mais afinidades com a perspectiva de segurança pós-colonial de Ayoob, também conhecida como Realismo Subalterno. Em seus documentos de Defesa, o Brasil não declara a existência de um inimigo, o que distancia o país de uma abordagem de segurança Neorrealista. Ainda assim, o Estado continua sendo objeto referente a ser protegido. Nesse caso, a condição de preservação da soberania e da integridade territorial envolve também a preservação das fronteiras, das instituições e regime político do país. Essa definição de segurança brasileira remete às tradições desenvolvimentistas do Brasil desde o Governo Getúlio Vargas (1930-45) até o fim do período caracterizado pelos Governos Militares (1964-85) que foram influenciados pela Teoria da Dependência, a qual une elementos de segurança aqui descritos na Teoria do Sistema Mundo por meio de uma lógica desenvolvimentista de substituição da importação com partes do discurso terceiro mundista que emerge com o movimento dos países não-alinhados a partir de 196130. A reedição dos documentos de Defesa Brasileiro no Governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) com Lula e Dilma trouxeram elementos de valorização da agenda do Sul Global, o que em termos de segurança encontra paralelo com a união entre desenvolvimento e segurança ainda presente na mentalidade das Forças Armadas Brasileiras. O Realismo Subalterno de Ayoob é a perspectiva teórica que melhor explica a concepção brasileira de segurança, ainda mais porque o Brasil não contesta a estrutura westfaliana presente, mas apenas busca

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O Brasil nunca foi membro, apenas consta como país observador.

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reformá-la de modo a inserir-se nela de maneira mais igualitária. Entretanto, cabe destacar que a análise realizada aqui a partir dos documentos de defesa trata o Estado como uma caixa preta, pois não considera a organização de demais setores (mesmo dentro do próprio Estado) que trazem distintas perspectivas de segurança, incluindo umas que posicionam o indivíduo com objeto referente principal. A aproximação do conceito brasileiro de segurança ao do Realismo Subalterno de Ayoob nos diz muito sobre a adoção de uma perspectiva de segurança baseada nas interações securitárias com os vizinhos e, principalmente, com as potências do sistema internacional (grande destaque para os Estados Unidos). A adoção dessa perspectiva expressa uma reatividade a histórica influência das potências na política dos países latino americanos, mas também reforça a soberania e autonomia do país mesmo distante das pressões externas. Além disso, demonstra uma preocupação muito maior com as dinâmicas internas de insegurança, mas cabe o destaque que esse olhar interno ainda é centrado em torno das elites estatais, o que acaba não incorporando a transnacionalidade das fronteiras brasileiras enquanto fornecedora de perspectivas de segurança, mas sim enquanto local passível e preferencial de ações de segurança. As características burocráticas do Estado brasileiro nos mostram que, muitas vezes, as novidades em termos de agenda e práticas de segurança acontecem por meio dos discursos de agentes que contenham credibilidade junto da audiência para introduzir novos temas na agenda de segurança brasileira, como foi o caso das segurança nas fronteiras do país a partir das eleições de 2010 por meio da conexão da criminalidade nos grandes centros urbanos estarem relacionadas com a porosidade das fronteiras do Brasil, buscando a partir daí políticas que incluíssem atores da defesa nacional, segurança pública e fiscalização tributária para desenvolver a adequada ação e perspectiva de segurança nas fronteiras. As políticas brasileiras de Defesa Nacional em seu recorte fronteiriço destacam as próprias limitações existentes por causa da influência do binarismo interno-externo na prática teórico, conceitual e política de segurança no país. As limitações que isso engendra na nossa segurança acaba, por fim, elevando a insegurança do país ao se ter uma ideia de segurança que não se aplica à realidade nacional. O arcabouço securitário do país corresponde parcialmente às necessidades do Brasil, sendo necessário avançar em reflexões pós-coloniais e dos estudos críticos para 161

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situar-nos em nossa realidade geopolítica, assim como para emancipar as coletividades nacionais enquanto agentes que têm a contribuir para a formação da própria segurança do país. Esse pensamento condiz com a estratégia de desenvolvimento de uma cultura nacional de defesa que esteja afinada com a pluralidade da própria sociedade ao invés de querer-se impor uma cultura única que dissemina inseguranças. Esse artigo propôs realizar algumas reflexões iniciais, e deixar algumas provocações interessantes, como a de realizar o interessante exercício de compreensão de outras perspectivas de segurança dentro do Estado brasileiro que possam contribuir para uma inserção brasileira no cenário de segurança internacional de maneira mais adequada a solucionar os problemas de criminalidade transnacional e de violência interna que afetam grande parcela da população. A compreensão de distintas abordagens brasileiras de segurança internacional enriqueceria o debate acerca das atribuições e usos de nossas Forças Armadas, como tem sido em situações de segurança pública, assim como poderia auxiliar com novas possibilidades de se traçar caminhos mais pertinentes para o Brasil em sua política externa.

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8 A INTERFACE ENTRE A POLÍTICA DE DEFESA E A POLÍTICA EXTERNA

Flavio Neri Hardmann Jasper INTRODUÇÃO Enquanto existirem impérios e nações, todos empedernidamente preparados para exterminar o seu rival, todos, sem exceção, devem estar equipados para a guerra. FREUD, Civilization, War and Death. In WALTZ, Kenneth, 2004, pág. 231.

A Segurança é uma necessidade que está sempre presente, sendo a proteção de um povo contra a ambição e as necessidades de recursos de outros povos e nações. A Escola Superior de Guerra (ESG) reforça esse conceito e destaca que o Estado é que é o grande responsável pela Segurança de todos [...]”. (BRASIL (b), 2009, pp. 59-69). Alsina Jr. observa que, na atualidade, o conceito de Segurança teria outras dimensões como a social e a ecológica além das tradicionais dimensões como a econômica, a política e a militar. (2009, p. 25). Esse aspecto pode ser destacado da própria conceituação de defesa descrita na Política Nacional de Defesa (PND), pois acentua a Expressão Militar, todavia destaca que “A partir da análise das realidades que afetam a defesa da Pátria, a Política Nacional de Defesa busca harmonizar as iniciativas de todas as expressões do Poder Nacional intervenientes com o tema, visando melhor aproveitar as potencialidades e as capacidades do País dentre elas as ações relativas à Política Externa”. (BRASIL, 2016, p. 4). (Grifo do autor). A PND também estabelece a relação com a Política Externa ao dizer que “Coordenada pelo Ministério da Defesa, a política de defesa 167

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articula-se com as demais políticas nacionais, com o propósito de integrar os esforços do Estado brasileiro para consolidar seu Poder Nacional, compreendido como a capacidade que tem a Nação para alcançar e manter os Objetivos Nacionais” [...]”. (BRASIL, 2016, p.4- 5). (Grifo do autor). Desta forma, o artigo, em sua primeira parte discutirá o papel do Estado como responsável pela Segurança do país e articulador das Políticas de Defesa e Externa e fará, também, a discussão sobre os construtos importantes como os conceitos de Segurança, Defesa e Política Externa. Na segunda parte, trará a discussão para o cenário da PND, fazendo uma comparação entre o foco e objetivos da política brasileira e os objetivos e foco estabelecidos em documentos similares como a National Defense Strategy (NDS) dos Estados Unidos e o United Kingdom Defence Review (UKDR) do Reino Unido, tendo como eixo de debate os conceitos alinhavados por José Luís Fiori e Alsina Júnior Finalmente, o artigo procurará demonstrar a necessidade de que as políticas declaratórias escritas nos documentos sejam consistentes com a prática exercida pelo país.

1. O ESTADO COMO RESPONSÁVEL POR POLÍTICAS PÚBLICAS Por que a importância de se dar ênfase ao papel do Estado como ator relevante no contexto da Defesa? Segundo a teoria contratualista, de Hobbes e Rousseau, o Estado passou a existir porque os homens, ancorados em pressupostos racionais, deixaram de impor autonomamente sua própria vontade sobre os demais, repassando essa autoridade para um terceiro ente, o Estado, capaz de impor juridicamente (Direito Positivo) a sanção sobre aqueles que se recusassem a seguir as regras definidas por uma determinada sociedade. (REALE, 2002). A PND reforça essa visão ao estabelecer que “[...] baseado nos princípios constitucionais [...] e Objetivos Nacionais Fundamentais [...] consolida os posicionamentos do Estado brasileiro e estabelece os objetivos mais elevados neste tema”. (BRASIL, 2016, p. 4). (Grifo do autor). Reconhece-se que a ideia de Segurança e Defesa não se resume somente às Forças Armadas, cuja amplitude perpassa pelas demais 168

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Expressões do Poder Nacional do país, além de outros atores. O papel do Estado soberano tem sido bastante discutido, uma vez que outros atores, mormente no mundo globalizado atual, têm-se inserido no cenário, interferindo na capacidade de o Estado Nacional dar efetividade às Políticas Públicas. Nesse contexto, Dupas (2002, p. 83) descreve que as grandes empresas transnacionais geraram um sistema global de produção, intercâmbio e acumulação cada vez menos sujeito à autoridade central e com possibilidade de subverter os mecanismos estatais aos próprios interesses, gerando crescente perda da capacidade reguladora dos Estados Nacionais. Acresça-se a influência marcante das Organizações não Governamentais (ONG)31, muitas com matrizes fora do território nacional e movidas por interesses próprios, como por exemplo, ecologia e preservação ambiental e verificar-se-á que o conceito de Estado Soberano (soberania), de fato, torna-se, relativizado. Porém, mesmo com essa visão, por que o Estado continua a ser importante? Porque o Estado soberano continua sendo a entidade detentora, por excelência, da sanção organizada e garantida, sendo a organização da Nação em uma unidade de poder, onde as sanções serão impostas segundo uma proporção objetiva e transpessoal (REALE, 2002(b), p. 76). Alsina Jr. (2009, p. 34) enfatiza que “Sem o controle sobre os meios de coerção passíveis de serem utilizados para a imposição da autoridade legítima e a manutenção da soberania sobre um determinado território, o Estado tende a fragmentar-se”. Komesar (1994) destaca que, em termos de Política Pública, as alternativas devem ser visualizadas como opções institucionais, nas quais se deve evitar visões restritivas que enfoquem apenas um campo, seja ele o do Legislativo (elaboração das leis), Econômico (eficiência da aplicação de recursos, função do Executivo) ou obrigatoriedade do cumprimento das leis (Judiciário). Mas, o conselho de Komesar parece distante da realidade nacional. Apesar de a Política de Defesa Nacional descrever que ela se articula com as demais políticas, a prática se mostra bastante diferente.

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O artigo não discutirá o mérito do trabalho das ONG e o uso de sua possível influência pelos países dominantes do mundo, uma vez que não faz parte do escopo deste trabalho.

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A PND de 2005 destacava que o Brasil deve ter Forças Armadas modernas e com crescente profissionalização, devendo estar dotadas de pessoal e material compatíveis com os planejamentos estratégicos e operacionais (BRASIL, 2005). Nesse sentido, a Orientação Estratégica do Governo no PPA 2004-2007, estabeleceu que “[...] não é possível conceber um sistema de defesa do país sem contar com a existência de uma estrutura militar voltada para essa destinação específica [..]”. O documento enfatizou, ainda que [...] a criação e a manutenção de uma estrutura com tais objetivos exigem política determinada, investimentos significativos e planejamentos de longo prazo.” (BRASIL, 2004, p. 64). Fato que o Reino Unido também destaca quando afirma que” [...] para dar o suporte à vital tarefa das Forças Armadas, o governo está comprometido com o apoio financeiro, recursos e equipamentos que elas precisam para proteger o Reino Unido no exterior e no país [...]”. United Kingdom, 2016, p. 10). (Tradução livre do autor). Ou seja, as Forças Armadas brasileiras deveriam estar aptas, isto é, instrumentalizadas, para exercer o seu papel em defesa da política externa. Porém, no caso brasileiro, Da Silva (2008, p. 14) destaca que os objetivos da política econômica e a contenção de gastos e investimentos públicos influenciaram sobremaneira a Política Externa e de Defesa, fazendo com que fossem relegadas a segundo plano, principalmente nos primeiros governos da Nova República que visaram consolidar a estabilização financeira e realizar o ajuste macroeconômico. Em sua análise, Da Silva (2008, p. 14) antecipa a visão de Ferraço (2013) de que as carências do povo brasileiro, aliadas ao ambiente de relativa estabilidade política da América do Sul contribuíram para que os documentos que trataram sobre política de defesa fossem mera retórica. (Grifo do autor). Essa visão é compartilhada pelo TCU que, no Acórdão da Tomada de Contas de 2003, analisou “[...] as consequências do contingenciamento de recursos, a situação atual dos projetos e o impacto gerado pelo atraso da execução do Programa F-X para a Força Aérea” (BRASIL, 2003). Em sua conclusão, o TCU frisou que o atraso na execução do Projeto F-X era deletério para a missão da Força Aérea Brasileira (FAB) e que comprometia o centro de poder da Nação (BRASIL, 2003). Desta forma, por que as políticas públicas não estão alinhadas de maneira que as Forças Armadas possam exercer o seu papel? w 170

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O Deputado Federal Raul Jungmann, no Prefácio da Separata de Discursos, Pareceres e Projetos da Frente Parlamentar de Defesa, destacou que existiria um paradoxo envolvendo a Defesa Nacional, uma vez que as Forças Armadas gozavam de elevado prestígio junto à sociedade brasileira, mas não possuíam a atenção adequada por parte do Executivo e do Legislativo (BRASIL (a), 2009). Dentre as causas da desatenção com a Defesa Nacional estariam: (a) a ausência de benefícios político-eleitorais para os parlamentares (não dá voto); (b) inexistência de riscos reais à defesa e a soberania nacional; (c) baixo perfil decisório e complementar do Legislativo que teria função coadjuvante em face do Executivo; (d) efeitos decorrentes do ciclo de intervenção militar na política, fazendo com a atual elite no poder (e a própria oposição) relacione a questão da Defesa com repressão e autoritarismo; e (e) o próprio despreparo da classe política com o tema, também resultante das causas citadas anteriormente. Esses aspectos evidenciam a dicotomia, no que tange aos aspectos internos do Estado Brasileiro, com respeito à política declaratória da PND, da END, das orientações contidas nos Planos Plurianuais e a prática demonstrada no aporte de recursos no Orçamento Geral da União (OGU) para permitir a instrumentalidade das Forças Armadas para sua missão constitucional. E como o Estado brasileiro trata, normativamente, o problema da Política de Defesa e aonde dever-se-ia procurar o delineamento dessas políticas públicas? Apesar de a Carta Magna tratar das Forças Armadas, de sua constituição e de seus deveres (arts. 142 e 143), não tem a preocupação, em nenhum momento, com uma Política Nacional de Defesa (BRASIL, 1988). O termo Segurança e seu conceito estão relacionados somente com a preservação da ordem pública (art. 144) e para a incolumidade das pessoas e do patrimônio público, cuja atuação é feita por intermédio das polícias (federal, rodoviária federal, civil e militar) e corpo de bombeiros (BRASIL, 1988). A conceituação de Segurança, no sentido da Defesa Nacional, acaba sendo estabelecida em norma inferior que é a PND, definindo-a como a “condição que permite a preservação da soberania e da integridade territorial, a realização dos interesses nacionais, livre de pressões e ameaças de qualquer natureza, e a garantia aos cidadãos do exercício dos 171

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direitos e deveres constitucionais”. (BRASIL, 2016, p. 5). Observa-se, desta forma, uma dicotomia conceitual entre o previsto na Constituição e o que está estipulado na Política Nacional de Defesa. E qual seria a causa desse paradoxo? A resposta está no posicionamento conceitual e político da Assembleia Constituinte que elaborou os termos da atual Constituição brasileira. O então Deputado Federal e ex-Ministro da Defesa Raul Jungmann apontou como causa os efeitos decorrentes do ciclo de intervenção militar na política, fazendo com que os parlamentares relacionassem a questão da Defesa com repressão e autoritarismo, pois, no imaginário dos constituintes, Segurança estava relacionada com a repressão política da época do regime militar. (BRASIL (a), 2009, p. 17). Alsina Jr. possui uma visão um pouco diferente ao destacar que a “A Constituição de 1998 foi conservadora, incorporando praticamente todas as sugestões do lobby militar [...]” motivada, segundo sua opinião, pela falta de especialistas em assuntos de defesa, tanto no Congresso, quanto na Academia. (2006, p. 152). Como exemplo, destaca a inserção da Garantia da Lei e da Ordem, constante do art. 142 da Constituição Federal de 1988. Mas, Alsina Jr. também reconhece que “[...] diante da grave crise por que passam as instituições brasileiras responsáveis pela segurança pública, muitas vozes, tão influentes quanto irresponsáveis, têm defendido a transformação das Forças Armadas em gendarmeries de forma a conferir utilidade à caserna”32. (2006, p. 157). (Negrito do autor). Essas questões envolvem ameaças não tradicionais, denominadas de ameaças não militares, as quais podem, por vezes, envolver questões internas de um país. Para o Professor Guo Xuetang, da Universidade de Shangai, as questões das ameaças tradicionais são relativamente simples comparadas com as questões das ameaças não tradicionais, referindo-se às que tratam sobre crime transnacional como o contrabando e narcotráfico, epidemias, imigração ilegal, pirataria, lavagem de dinheiro, inclusive problemas internos de um país (Apud CRAIG, 2007, p. 102) Nesse contexto de ameaças não tradicionais, no Relatório sobre a Defesa do Reino Unido, Revisão de 2015, Primeiro Relatório Anual de

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Ë preciso observar, porém, que Alsina Jr. está se referindo aos anos anteriores à publicação de seu livro que ocorreu em 2009, enquanto fatos como os da Rocinha ocorreram em setembro de 2017.

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2016, a Primeira-Ministra do Reino Unido destaca que “Um dos maiores desafios globais atualmente é o fenômeno da imigração em massa que teria se tornado mais proeminente nos últimos 12 meses”. (UNITED KINGDOM, 2016, p. 3). (Tradução do autor). Outro fator é o tráfico de drogas que se tornou de tal importância que o North American Aerospace Command (NORAD), organização binacional de defesa aeroespacial (Canadá e Estados Unidos), tem como tarefa a detecção, monitoramento e controle de aeronaves suspeitas de tráfico ilegal de drogas.33 Os Estados Unidos, quando ameaçados pelo perigo do terrorismo representado pela organização Al Qaeda, decidiram abandonar o multilateralismo, devido à dependência da anuência de terceiras potências e de organismos internacionais, como a ONU. Sua postura de tomar decisões unilaterais pautou-se na sua condição de superpotência que possui poder para impor-se. Além disso, considera-se moralmente justificada porque, em sua visão, seus interesses nacionais correspondem aos interesses dos povos civilizados em geral, mormente, do Ocidente. (JAGUARIBE, 2002, FUKUYAMA, 2006). Essa visão é confirmada por Henry Kissinger: A política externa americana tem refletido a convicção de que seus princípios domésticos eram claramente universais e de que sua implementação era sempre algo positivo; de que o verdadeiro desafio do engajamento americano no exterior não era a política externa no sentido tradicional, mas um projeto de disseminação de valores que, na sua visão, todos os povos aspiravam. (KYSSINGER, 2015, p. 236).

A National Defense Strategy (NDS) dos Estados Unidos também possui esse foco quando estabelece que o país tem conjugado esforços com seus parceiros para derrotar os inimigos da liberdade e da prosperidade, por meio de uma estratégia durável, dinâmica e flexível de forma a contribuir para alcançar os objetivos da NDS e garantir um mundo mais seguro e próspero para o benefício de todos. (USA, 2008, Foreword).

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In conjunction with its aerospace control mission, NORAD assists in the detection and monitoring of aircraft suspected of illegal drug trafficking. Disponível em: < https://www.norad.mil/About-NORAD/ >. Acesso em 17 junho 2020.

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Para ter sucesso, o documento norte-americano enfatiza que é preciso integrar todos os aspectos do poder nacional e trabalhar com um amplo espectro de aliados, amigos e parceiros. (USA, 2008, Introdução p. 1). O documento norte-americano é também assertivo, pois destaca, claramente, possíveis inimigos, estabelecendo a China como um competidor, inclusive na arena militar, e destacando que a sua estratégia “[...] encoraja a China a fazer as escolhas estratégicas corretas em benefício de seu povo, enquanto nos preparamos para outras possibilidades” (USA, 2008, Objetivos, p. 10), além de que deve “[...] desenvolver a capacidade militar para assegurar-se contra incertezas [...]” (USA, 2008, Framework, p. 5) Uma clara acepção à política externa e a necessidade de aparato militar para sustentá-la. (Negrito e tradução livre do autor). Inclusive os EUA foram além, como colocado por Jaguaribe, ao deixarem de atender Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), quando confrontados com o dilema de atender aos seus interesses ou pautar-se pelo interesse coletivo.

2 POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA Faz sentido reforçar os investimentos em defesa num país que não é assombrado pelo fantasma da guerra e no qual falta dinheiro para a saúde, educação, saneamento e infraestrutura? (FERRAÇO, 2013).

Este item do artigo discutirá se as políticas externas e de defesa estão conectadas em termos de visão e objetivos, tendo como pano de fundo a capacidade de as Forças Armadas respaldarem a política externa brasileira e como referencial a visão de Clausewitz. Clausewitz identificou que as sanções de um Estado, aí incluídas as ações bélicas, seriam apenas os reflexos de sua política externa, ou seja, “[...] a guerra é a continuação da política por outros meios” (apud PARET, 2001, p. 271). (Negrito do autor). Portanto, o general prussiano já caracterizava a necessidade de uma articulação entre a Política de Defesa e a Política Externa. Por isso, Paret (2001, p. 288) esclarece que o trabalho de Clausewitz não está focado 174

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na substância da política, mas “[...] na efetividade com que o governo direciona seus recursos militares para atingir seu propósito político”. Clausewitz, em seu livro On War, enfatizou que “[...] em sentido algum, a arte da guerra pode ser considerada como preceptora da política, a qual só deve ser aqui tratada como representante de todos os interesses da comunidade” (Livro 8, Capítulo 6B, pp 606-607, apud PARET, 2001, p. 288). Nesse aspecto, como a atual PND do Brasil vê o processo? Coordenada pelo Ministério da Defesa, a PND articula-se com as demais políticas nacionais, com o propósito de integrar os esforços do Estado brasileiro para consolidar seu Poder Nacional, compreendido como a capacidade que tem a Nação para alcançar e manter os Objetivos Nacionais, em conformidade com a Vontade Nacional. (BRASIL, 2016, p. 5). (Grifo do autor).

Em termos de alinhamento das políticas, inclusive com a política externa, o texto da PND parece descrever que esse cenário existe no contexto nacional. Defesa, na Política Nacional de Defesa (PND), é conceituada como “[...] o conjunto de atitudes, medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas”. (BRASIL, 2016, p. 5). (Grifo do autor). No entanto, o documento revela, também, que a concepção de defesa brasileira tem “[...] como princípios a solução pacífica de controvérsias [...] multilateralismo e a integração sul-americana [...]” para atingir o objetivo de “[...] projeção do país no concerto das nações e a ampliação de sua inserção em processos decisórios internacionais [...] sendo um processo que requer um [...] permanente esforço de articulação diplomático militar”. (BRASIL, 2016, p. 6). (Grifo do autor). Essa visão é destacada em todo o texto da PND e END, mesmo que o documento também reconheça que: Em que pese a América do Sul constituir-se numa das regiões mais estáveis do mundo, não se pode desconsiderar a possibilidade de tal circunstância vir a sofrer interrupção, de sorte que o Brasil poderá ver-se compelido a contribuir para a solução de eventuais controvérsias sub-regionais ou mesmo para defender seus interesses. (PND, 2016, p. 10). 175

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A Estratégia Nacional de Defesa (END) reforça a ideia de solução pacífica de controvérsias destacando que a concepção estratégica “[...] prevê a prevalência da ação diplomática, em tempo de paz ou crise [...]” e que as ações do Ministério da Defesa (MD) e Forças Armadas “[...] contribuem para o propósito da diplomacia ao interagirem com as contrapartes de outros países [...]. Além disso, enfatiza que “[...] o uso da força por meio da Expressão Militar do Poder Nacional [...]” somente ocorrerá “[...] quando, ameaçados os interesses nacionais, as possibilidades de negociação apresentem-se inviáveis [...]”. (BRASIL, 2016, p. 17). (Grifo do autor). Alsina Jr. (2009, Introdução) critica esse aspecto, uma vez que o Brasil teria caminhado para uma inserção externa baseada no conceito de “potência pacífica”, fator que lhe permitiria uma inserção internacional que não se encontraria respaldada por Forças Armadas. Ou seja, na visão de Alsina Júnior, permitiria ao país avançar os seus interesses nacionais independentemente de um respaldo de poder militar relevante. Esse aspecto é destacado por Stuenkel quando afirma que: “Os formuladores de política externa brasileira fizerem do soft power uma das marcas registradas de sua estratégia de política externa”. (STUENKEL, 2018, pág. 109) Alsina Júnior destaca, ainda, que desde a consolidação das fronteiras, a partir da gestão do Barão do Rio Branco, a diplomacia brasileira agiu de forma autônoma “[...] em relação a um dos elementos tradicionais do poder no plano internacional: a Força Armada”. (Alsina Jr., 2009, Introdução). A crítica de Alsina Júnior sobre a condição do Brasil de “potência pacífica” e que o seu poder poderia prescindir do Poder Militar é corroborada pelas palavras do então Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe Lampreia, na Abertura dos Trabalhos da 50ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, no dia 25 de setembro de 1995. O próprio conceito de poder mudou. A soberania de um país e a capacidade de satisfazer as necessidades de sua população dependem cada vez mais de bons indicadores sociais, estabilidade política, competitividade econômica e progresso científico e tecnológico, e não de poderio militar. (BRASIL, MRE, 1995, pág. 141. Grifo do autor).

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A visão do Embaixador Lampreia é reforçada pelo Embaixador Rubens Ricupero ao destacar, em sua opinião, a mudança no conceito de poder. É dinâmico o panorama do poder. A consolidação de uma ordem internacional baseada na Carta da ONU, no direito internacional, na inibição do recurso unilateral à guerra, na sua substituição pelo conceito de segurança coletiva, na reforma mais igualitária do Conselho de Segurança, tudo isso acentua a tendência de superar a ideia de “grande potência” como sinônimo de força militar. (RICUPERO, 2018, pág. 735. Grifo do autor.)

No discurso, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), o embaixador Lampreia ainda destacou que: É hoje geralmente aceito que os principais fatores do orgulho nacional são a democracia, o desenvolvimento, o comércio e a riqueza econômica, ao invés da busca por hegemonia ou ganhos territoriais. (BRASIL, MRE, 1995, pág. 142).

Observa-se que os valores destacados pela diplomacia brasileira são no sentido de que o país poderia prescindir de seu Poder Militar, baseando sua força no Direito Internacional, na cultura igualitária entre os países, nesse fator o “sonho brasileiro” de um assento no Conselho de Segurança, e o apoio de outros países a esse ideário. Todavia, entre o dever ser da diplomacia brasileira e a realidade internacional, há uma grande distância, quando se analisam as duas guerras do Iraque, a guerra do Kosovo, o problema ainda em ebulição no Afeganistão e a ascensão militar da China com suas efetivas ações em termos territoriais no Mar da China. Stuenkel detalha também três casos do Brasil em que a falta de hard power, o Poder Militar, influenciou nas suas relações com o mundo. No primeiro, o detalhe da adesão ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e a rejeição por parte da Índia. O autor destaca que hoje a Índia tem o apoio oficial dos EUA para um assento no Conselho de Segurança da ONU, enquanto o Brasil não é listado com esse apoio, além de a Índia ser tratada como uma potência nuclear. No segundo, a tentativa de o Brasil de negociar um acordo nuclear com o Irã que falhou porque, na visão dos países ocidentais, faltaria legitimidade ao Brasil para 177

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realizar esse acordo. No terceiro caso, a rejeição dos países em relação a uma preocupação expressada pelo Brasil e Índia sobre a implementação da Resolução 1973, do Conselho de Segurança da ONU, relativo à intervenção na Líbia. Stuenkel destaca que, de acordo com os formuladores de política em Londres e Washington, os dois países seriam “pesos leves” na arena internacional, ou seja, lhes faltaria o adequado hard power para ter voz nesses cenários. (STUENKEL, 2018, PÁG. 114-115). A análise de Alsina Júnior, discordante da teoria diplomática, é compartilhada por Malamud e Alcaniz (2016, p. 2) quando destacam que o pouco interesse do Brasil em investir na segurança regional é explicado pela combinação de baixo risco regional, um entorno geoestratégico pacífico, como destacado nas PND de 2005 a 2016, poucos recursos, uma cultura legalista de solução de conflitos e por uma rede interestatal que substitui, ou pelo menos suporta, cooperação entre Estados e instituições regionais. (Grifo do autor). Malamud e Alcaniz (2016, p. 3), citando Proença Júnior e Diniz, destacam o Brasil como um país satisfeito, sem controvérsias de fronteiras que pode se permitir construir uma estratégia baseada na ausência de inimigos. Na visão desses autores, a postura brasileira de não intervenção nos assuntos internos de outros países é fruto desse contexto. Ou seja, a posição brasileira seria resultado de seu entorno histórico e geográfico, tendo como consequência um país de pouco peso no que diz respeito a hard power e com a maioria de seus resultados internacionais sendo obtidos por meio de sua diplomacia. (MALAMUD e ALCANIZ, 2016, p. 5). Fiori (2009, p. 40) converge nessa linha ao destacar que a relação do Brasil com seus vizinhos sempre foi pacífica, de pouca competividade e de integração política e econômica. O autor enfatiza que “[...] sua posição dentro do continente foi a de sócio auxiliar da hegemonia continental dos Estados Unidos”. (Grifo do autor). Fiori destaca ainda (2009, p. 40) que o Brasil “[...] enfrenta limitações importantes para expandir seu poder internacional [...]” pelos seguintes motivos: “[...] primeiro, pelo não reconhecimento estratégico da existência de um competidor [...] na luta pela hegemonia sul-americana, pelo fato de que este competidor responde pelo nome de Estados Unidos da América; segundo pela falta de organização estratégica do seu crescimento econômico [...] pela baixa capacidade de coordenação dos 178

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seus investimentos públicos e privados [..] e devido à força política das elites brasileiras e do próprio establishment da sua política externa, da posição favorável à manutenção do Brasil na condição de sócio menor dentro do espaço hegemônico [...] dos Estados Unidos”. (Grifo do autor).

Esta análise de Fiori coincide com a de Malamud e Alcaniz nos aspectos de cultura legalista para solução de conflitos, entorno geoestratégico pacífico e falta de recursos para alavancar a instrumentalidade das Forças Armadas para sua missão fim, o emprego em combate. Kawaguti (2016), em artigo na BBC Brasil, informa que o Alto Escalão das Forças Armadas e do Ministério da Defesa (MD) estaria analisando a possibilidade de o Brasil fazer parte de missões de peace enforcement da Organização das Nações Unidas (ONU) no oeste da África. Todavia, diplomatas do Ministério das Relações Exteriores (MRE) entenderiam que essa participação só deveria ocorrer se houvesse uma “ justificativa grande”, preferindo que a operação tivesse características de missão de operação de paz e não de imposição da paz “por estar de acordo com a tradição e leis brasileiras”, sendo mais favoráveis ao envolvimento do país no Líbano, onde o Brasil possui embaixada e já comanda a Força Tarefa Naval da ONU. (Grifo do autor). Desta forma, observa-se a dicotomia entre os objetivos da política externa preconizada pelo MRE e o empenho do MD e Forças Armadas no sentido do uso mais enfático da sua Expressão Militar, conforme destacado na própria concepção de Defesa inserida na PND 2016. Os objetivos se alinham desde que o emprego das Forças Armadas seja em missões de paz, mais de acordo com as “tradições brasileiras” e alinhadas, como Fiori destaca, com o pensamento da elite nacional e do establishment da política externa. Fukuyama, analisando a política norte-americana, observa que os “[...] princípios gerais da política externa não determinaram o nível de risco que os Estados Unidos deverão assumir na prossecução de seus objetivos”. O autor refere-se à segunda guerra contra o Iraque, com o objetivo da alteração do regime de Saddam Hussein, tendo como fulcro a acusação de que o regime iraquiano possuía armas de destruição em massa. (2006, págs. 64-73). Fukuyama destaca, em sua análise, que a guerra contra o Iraque trazia motivação de guerra preventiva, mas que tanto a prevenção, 179

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quanto o unilateralismo não são características novas da política externa norte-americana. (2006, p. 75). Portanto, o autor revela a convergência entre os objetivos de política externa e de defesa, bem como a convergência entre uma política declaratória e a de fato praticada. (Grifo do autor). Infelizmente, no caso do Brasil, a contradição se revela quando declara em sua Política Nacional de Defesa que um de seus objetivos é “defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior” (BRASIL, PND de 2005, 2008, 2012 e 2016) e deixa de agir, seja pela diplomacia ou outros meios, como no caso da invasão e estatização de instalações de gás pertencentes a estatal brasileira (Petrobrás) na Bolívia e, mais recente, na estatização da empresa privada nacional América Latina Logística (ALL) pelo então governo de Cristina Kirchner da Argentina (CORREIO BRAZILIENSE, 2013, p. 10). Postura que o Barão do Rio Branco possuía, pois para esse estadista era possível conceber um projeto de política externa e de defesa que fosse capaz de conciliar, de forma harmoniosa, direitos e poder. Na questão do Acre, por exemplo, o Barão do Rio Branco foi capaz de manejar, com moderação, eficiência e legitimidade, o poder que o Brasil, à época, possuía. Era conhecido, também, pelos seus esforços para reequipar as Forças Armadas brasileiras desse período, o Exército e a Marinha. (RICUPERO, 2002, p. 167). A explicação para essa contradição pode estar nas palavras de José Luís Fiori (2009, p. 39) que destaca que o passado do Brasil pesa contra sua posição futura, “[...] porque se trata de um país que nunca teve características expansivas, nem disputou jamais a hegemonia da América do Sul com a Grã-Bretanha ou com os Estados Unidos”. (Grifo do autor). Todavia, o embaixador Samuel P. Guimarães (2004, p. 47), em suas reflexões sobre Defesa e Segurança, já alertava que: [...] à medida que empresas brasileiras se internacionalizam, os interesses políticos do Brasil em outras regiões se tornam cada vez mais complexos e reais, e menos retóricos, e a eficiência na defesa desses interesses têm uma faceta de natureza militar; [...] as despesas com segurança não têm, na maior parte dos países, nenhuma relação com inimigos ou ameaças próximas, mas sim com seus interesses de natureza política e econômica global. As despesas militares dos Estados Uni180

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dos nada têm a ver com ameaças mexicanas ou canadenses e as despesas da França nada têm a ver com a Espanha ou com a Alemanha. (Grifo do autor).

CONCLUSÃO O presente artigo teve como objetivo demonstrar a necessidade de que o Estado brasileiro tenha suas ações no campo da Defesa e Segurança Nacional coerentes e articuladas principalmente no que se refere à convergência entre a Política de Defesa e a Política Externa. O primeiro aspecto evidenciado pelo artigo foi que, mesmo que a PND declare que há uma convergência entre a política de defesa e a política externa, na prática isso não ocorre, principalmente pela visão do establishment diplomático, bem como da elite nacional de que o país vive em um entorno estratégico pacífico e que a solução de conflitos deve ser por meios conciliatórios que Fiori e Malamud e Alcaniz chamaram de “cultura legalista de solução de conflitos”. Por meio da comparação dos documentos dos Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, foi possível perceber a dicotomia existente entre a política declaratória estipulada nos vários documentos do Estado brasileiro e a sua prática, tanto no campo externo, quanto no campo interno. No campo externo, o país não age com a firmeza necessária para assegurar proteção aos seus interesses no exterior, quando não se articula para proteger bens e empresas nacionais estatizadas por países como a Bolívia e a Argentina, enquanto países como os Estados Unidos e Reino Unido são assertivos nas suas políticas declaratórias e, de fato, empregam as Forças Armadas no apoio à sua política externa, evidenciada nas duas guerras no Iraque, tendo como motivação seus próprios valores, no que Fukuyama (2006) destacou como guerra preventiva e como um abandono do multilateralismo, característica anterior da política externa norte-americana. No campo interno, a política declaratória evidenciada na PDN, END e nas Orientações Estratégicas dos Planos Plurianuais não se concretiza nos recursos necessários que deveriam ser destinados às Forças Armadas para que pudessem estar preparadas para cumprir sua missão constitucional e instrumentalizadas para apoiar a política externa. 181

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A desarticulação principal, dentre outros, está na ausência de benefícios político-eleitorais para os parlamentares (não dá voto); inexistência de riscos reais à defesa e à soberania nacional; e o baixo perfil decisório e complementar do Legislativo que teria função coadjuvante em face do Executivo. No entanto, como o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães alerta “[...] à medida que empresas brasileiras se internacionalizam, os interesses [...] se tornam cada vez mais complexos e reais, e menos retóricos, e a eficiência na defesa desses interesses têm uma faceta de natureza militar”. (Guimarães, 2004, p. 47). (Grifo do autor).

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9 A LEGITIMIDADE DAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU SOB A ÉGIDE DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E O PROTAGONISMO BRASILEIRO: UMA NOVA PERSPECTIVA.

Ádria Saviano Fabricio da Silva César Augusto Silva da Silva INTRODUÇÃO Enquanto protagonistas do Sistema de Segurança Coletiva do Conselho de Segurança da ONU, as intervenções humanitárias, aqui compreendidas como sinônimo de Operações Militares pela Paz, podem ser divididas em diversas abordagens, dependendo das circunstâncias em que se encontra o país receptor da operação. Neste trabalho serão analisadas Operações de Estabilização, Multidimensionais, de Segurança e de Manutenção da Paz. Dentre as perspectivas analisadas, o propósito é identificar criticamente se a sociedade internacional e, em recorte, o Estado Brasileiro está oferecendo o tratamento adequado às questões relacionadas às normas internacionais humanitárias nas Missões de Paz. É por meio das etapas descritas que buscamos concluir o nosso estudo, a fim de que, posto isto, sejam potencializados e aprimorados o tratamento correto e a melhor administração dos prejuízos e benefícios provenientes das ocupações humanitárias. O procedimento metodológico do projeto se desenvolveu por meio de análise descritiva, tendo por finalidade a pesquisa básica estratégica com abordagem qualitativa. Já os procedimentos utilizados se dividiram entre o bibliográfico e o documental e o método científico escolhido foi o dedutivo. A etapa de análise histórica e principiológica consiste no estudo aprofundado dos alicerces que regem as normas humanitárias diante de 187

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Operações de Manutenção de Paz, bem como o estudo da atitude do Estado Brasileiro perante a construção do complexo modus operandi teórico e prático que observamos hoje como um padrão de ação próprio da Organização das Nações Unidas para essa espécie de ingerência. Já a etapa de análise fática consiste no estudo bibliográfico de autores sobre a temática e pesquisa doutrinária que nos orientem acerca dos princípios que legitimam as Ocupações Humanitárias e as regulamentam.

1 PAZ E SEGURANÇA COMO UNIDADE DE SIGNIFICADO As forças de paz da ONU (blue helmets ou peacekeepers) representam a maior força militar extra estatal existente no mundo, contando com 81370 pessoas dentre tropas militares, especialistas, policiais, oficiais observadores, funcionários civis e voluntários. Este contingente multifacetado atua com profissionais provenientes de 121 países, em 13 missões em andamento atualmente, das 71 operações desenvolvidas desde 1948, sendo que o total de fatalidades durante as operações chega a 3928, segundo o Global Peacekeeping Data (atualizado até 31 de março de 2020). O termo “manutenção da paz” no texto em português da Carta da ONU é utilizado 20 vezes juntamente com o termo “segurança”, demonstrando o quão caros seriam estes objetos jurídicos para a Organização das Nações Unidas, já no cerne de sua criação. Entretanto, ambos os termos não são definidos em nenhum momento no longo histórico de invocação, de modo que resta necessário salientarmos as significações utilizadas como pontos de partida, já que, por vezes, estes se confundem em uma realidade global em que a busca pela paz passou a significar o controle armado de conflitos em andamento – onde não há trégua para se manter – e, a segurança, a ampla presença armada em torno de áreas protegidas. Ambos os conceitos, apesar de se modificarem ao longo da história, segundo os valores difundidos e desejados pela humanidade (materialismo histórico) – considerando que hoje podemos analisar com solidez a esfera global graças à interdependência e homogeneidade dos povos nunca antes vistas – perderam o seu significado independente para se tornarem este bloco de significado “manutenção da paz e segurança internacionais” diretamente influenciado pela nossa mais nova 188

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noção de Paz e Segurança, que advém da guerra ao terror. Esta expressão está intimamente ligada às Intervenções Humanitárias e o que elas significam para a humanidade. Em outras palavras, a paz não é o melhor ponto de partida para uma Peacekeeping Operation, pois cria expectativas irreais do que de fato é possível realizar e o que de fato a Missão busca, pois, através dela, não é possível atingir a paz sem antes serem atendidas outras circunstâncias conduzidas por outros métodos como o peacemaking, majoritariamente realizado pela diplomacia, já que e o peacekeeping é pura e simplesmente uma técnica de administração de conflitos (CARDOSO, 1998, p. 19).

2 AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU Quando Intervenções Humanitárias pelas Paz organizadas pela ONU são determinadas, então as mazelas sofridas pela população de determinada nação já são reconhecidas internacionalmente e se enquadram em um contexto em que caberia, em termos de poderes implícitos, a ação humanitária. Como bem coloca Bierrenbach (2011, p. 54) ao citar Walzer (2004, p. 68), a Ação Humanitária pode inclusive ser caracterizada como uma obrigação moral internacional de pôr fim ao sofrimento de um povo, na medida em que as instituições locais não são capazes de prover proteção ou são estas os algozes. Previstos inicialmente no relatório “An Agenda for Peace” de Boutros-Ghali, em 1992, os seguintes conceitos devem ser observados: preventive diplomacy, a qual ocorre enquanto o conflito ainda não se instalou e é definida como a ação de prevenir a ocorrência de disputas entre as partes, prevenir disputas existentes de se tornarem conflitos e limitar a propagação dos conflitos quando eles ocorrerem; peacemaking ou promoção da paz, caracteriza-se como a fase na qual o conflito já está instalado e as Nações Unidas se dedicam à solução pacífica de controvérsias e é definido como a ação de levar as partes a realizarem acordos; peacekeeping – desenvolvimento da presença das Nações Unidas no campo, com o consentimento de todas as partes interessadas, normalmente envolvendo militares e civis das Nações Unidas – e Post-conflict Peacebuilding – ação para identificar e apoiar estruturas as quais tende189

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rão a fortalecer a paz a fim de evitar o retorno a um conflito (UN, 1992, p. 05-06, tradução nossa). Por conseguinte, as mencionadas operações pela manutenção da paz (peacekeeping operations) passaram a ser amplamente aceitas como uma técnica de administração de conflitos, em um mundo que não necessita mais de hostilidades como as provenientes de um sistema de segurança coletiva que prevê ações militares (FONTOURA, 1999). Inicialmente, como visto, as operações de manutenção da paz foram idealizadas sob o manto de uma série de belos princípios, elevando a causa à uma responsabilidade conjunta da comunidade internacional de proteger, sob os mandatos do fortalecimento do Estado e da proteção do indivíduo. Verificamos ao longo das décadas uma série de modificações concernentes ao mandato das operações, de modo que se inicialmente a missão se limitava a proteger as fronteiras e a desencorajar o início de conflitos interestatais, ao tornarem-se cada vez mais numerosos os conflitos intraestatais – após o fim da Guerra Fria, envolvendo uma série de outros agentes e circunstâncias e modificando a natureza do que era necessário a operação realizar – modificou-se o mandato, voltadas as atenções para a proteção dos direitos humanos do indivíduo, sendo impossibilitado o uso da força. O uso da força, entretanto, não pode ser justificado juridicamente por razões humanitárias, pois tal depreciação da utilização da Missão para abranger também este método contraria diametralmente a Carta da ONU e as razões de ser das Operações de Paz (FRANÇA, 2004, p. 130). Assim, a “Intervenção Humanitária” e o próprio termo em si são juridicamente condenáveis pela sua injustificabilidade no que tange ao Direito Internacional e, mais especificamente, ao Direito Internacional Humanitário. A Organização das Nações Unidas define em doutrina própria o conceito tradicional de peacekeeping como sendo “uma técnica projetada para preservar a paz, por mais frágil que seja, onde os combates foram interrompidos e para auxiliar na implementação de acordos alcançados pelos pacificadores” (UN, 2008: p. 18, tradução livre). Entretanto hoje compreendemos que muito se evoluiu a partir do modelo proposto, tornando-se uma complexa rede de atuação com a participação de atores militares, civis e policiais e o uso de uma abordagem integrada com características de peacebuilding (fortalecimento das instituições estatais), de peace enforcement (aplicação de medidas coercitivas) e, naturalmente, 190

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de peacekeeping (preservação da paz, ainda que frágil, e a implementação dos acordos obtidos). Dentre os fatores que contribuíram para a transformação da dinâmica do peacekeeping a partir da década de 90, temos a proliferação de Conflitos Armados Não-Internacionais, os quais se dão internamente nos Estados por razões étnicas, políticas ou religiosas (MORAIS, 2015, pp. 46-47) e também podem ser chamados de Guerras Civis. Também observamos na mesma época o caso das Guerras de Libertação Nacional, as quais, equivalentes a Conflitos Armados Não-Internacionais, ocorrem quando povos lutam contra a dominação colonial, a ocupação estrangeira ou contra um regime racista, no exercício do direito dos povos à autodeterminação. Revestidas dessa nova natureza, as Operações Multidimensionais ou de segunda geração, têm por principais diretrizes, conforme o United Nations Peacekeeping Operations: Principles and Guidelines (UN, 2008, p. 22, tradução nossa): “Criar um ambiente seguro e estável, (...) com total respeito pelo Estado de direito e direitos humanos (...) promovendo o diálogo e a reconciliação e apoiar o estabelecimento de meios legítimos e eficazes instituições de governança”. As Operações Multidimensionais geralmente são desenvolvidas em momentos diretamente posteriores ao fim de Conflitos Armados Internacionais ou Não-Internacionais, de modo a reconstruir a democracia, as instituições e a soberania arrasadas. Como verificamos, poucos conceitos no âmbito do Direito Internacional são tão sensíveis quanto as intervenções humanitárias, diante da colisão frequente entre a soberania – relacionada aos princípios previstos da Carta das Nações Unidas, de 1945, da Não-Intervenção e da Abstenção do Uso da Força nas Relações Internacionais – e a Responsabilidade Internacional de Proteger. Antes mesmo da delimitação conceitual, já se utilizavam justificativas genéricas como “razões de humanidade” para a realização de ocupações internacionais organizadas sob o véu da suposta legitimidade, visto que a ideia de intervenção humanitária não é nova e nos remete à antiguidade, quando desde Hugo Grotius já encontramos referências para a temática (MINAYO, 2008, p. 22). De fato, diante dos paradigmas jurídicos que fundamentam o Direito Internacional, encontramos a duplicidade presente na Responsabilidade de Proteger. Para SEITENFUS (2006, p. 5), as razões pelas quais são implementadas Intervenções Humanitárias vão desde interes191

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ses pontuais (financeiros, militares, estratégicos, políticos, diplomáticos etc.) até casos em que a pressão da opinião pública impõe uma atitude ativa por parte do Estado. Tais razões podem decorrer também de um sentimento coletivo de dever moral para com as populações dos Estados falidos, sobre os quais trataremos mais à frente. O desenvolvimento das Operações de Paz ocorreu progressivamente, sempre marcado pelo embate de seus mandatos34 com a realidade que se apresentava, diante das divergências acerca da doutrina humanitária. Após o fim da Guerra Fria, na década de 90, restava claro que o antiquado mandato não abarcava os conflitos internos, em uma relutância generalizada em ofender o princípio da soberania, apartada da necessidade evidente de proteção à população afetada em países como a República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Ruanda. A grande discussão giraria em torno da existência ou não de um direito de intervenção e de como e em que condições este seria legítimo e aplicável, tendo em vista que muitos pedidos de intervenção foram feitos desde a década de 90, alguns atendidos e outros ignorados, sob critérios e circunstâncias por vezes sombrias (ICISS, 2001, p. 07).

2.1 A aplicação do Direito Internacional Humanitário a contextos de intervenção: a legislação internacional O Direito Internacional Humanitário é a vertente que fundamentalmente abarca o ideal de proteção da vida e da dignidade, assim como a mitigação de danos e sofrimento desnecessários em meio a situações de barbárie e violência generalizada, como as decorrentes de conflitos armados internacionais e não-internacionais. Como geralmente as Operações de Paz são destinadas para construir, manter ou impor a paz diante de uma situação latente, em pleno desenvolvimento ou pós conflito armado, é razoável que a mesma vertente que aborda as violações

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O Mandato de uma Operação de Paz da ONU é a projeção de seus objetivos, justificativa, características, meios e demais arranjos financeiros e logísticos definidos por meio de Resoluções do Conselho de Segurança ao aprovar as Operações. Este é utilizado como a norma da Operação e o consequente guia para a concretização dos objetivos nela previstos.

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dos conflitos armados seja utilizada para reger as violações ocorridas durante as Operações, tendo em vista os seus objetivos comuns. Nesse sentido, o Direito Internacional Humanitário no contexto das Operações de Paz pode ser definido como o ramo que prevê as regras aplicáveis durante os conflitos armados, visando limitar os métodos e meios de guerra em patamares suficientes ao êxito das operações, a fim de não causar mais sofrimento desnecessário, além do que as guerras normalmente o fazem (FABRICIO DA SILVA, 2016, p. 24). Assim, consideramos salutares os apontamentos de Swinarski (1996, p. 12), no que concerne à importância do Direito Internacional Humanitário, tido como “direito de guerra”, o respeito à paz é “condição primordial para o pleno respeito aos direitos humanos, sendo a guerra a negação desse direito”. O Direito Internacional Humanitário, surge, assim, como via de proteção legitimada para atuar em ocasiões em que há ausência, inoperância ou ineficiência da paz, de modo que são abrangidas as situações dos países receptores onde se instalam as operações de paz.

2.2 A legitimidade e a responsabilidade de proteger quando confrontadas à não-intervenção e à soberania: conceitos A utilização da defesa da democracia como elemento legitimador das intervenções pacíficas está entre os principais fatores que levaram à busca pela solução das crises humanitárias e à discussão sobre o envolvimento de ingerência estrangeira. Nesse sentido, o caso Haiti se torna central nessa dinâmica, ao se demonstrarem os erros e acertos dos sujeitos protagonistas diante da deterioração do Estado haitiano, enquanto ocorria a evolução dos fundamentos da práxis do Direito Internacional Humanitário aplicado às Operações de Manutenção da Paz e a maturação da própria ONU. A discussão internacional em torno da democracia e do regime democrático enquanto direito humano desenvolve-se em consonância com a criação da Organização dos Estados Americanos, na medida em que o referido órgão ganha visibilidade e legitimidade política. Após um século de desentendimentos ideológicos baseados em divergências de interesses, a ideia de ingerência pacífica finalmente se legitima a partir da possibilidade de coexistência entre o respeito à soberania (não-inter193

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venção) e a defesa da democracia, cenário este nunca antes vislumbrado. A nova interpretação do paradoxo antes irreconciliável, oportunamente modificada, agora se torna fundamento de harmonia de todo o sistema. No caso haitiano, com sua democracia notadamente frágil, a OEA finalmente atua, de modo que alguns países tendem ao ativismo ao defenderem a intervenção – ultrapassando os limites da legalidade – e outros defendem a legalidade estrita sob a égide da não-intervenção e do respeito à soberania (a intervenção pela defesa da democracia nos limites da legalidade). Pela primeira vez, portanto, uma organização multilateral interferia nos assuntos internos de uma nação em crise, sem que qualquer outro mecanismo legitimasse as suas ações a não ser o recentemente acordado compromisso de Santiago e o histórico de discussões por trás deste. Com o fracasso da organização em extinguir a crise haitiana, o próximo passo era pedir auxílio à ONU, a qual requisitou o envolvimento do seu Conselho de Segurança. Mais uma vez, seguiram-se debates acerca da legitimidade do departamento em interferir em assuntos de ordem interna do país, de acordo com o art. 52 da Carta da ONU, o qual descreve os mecanismos regionais de manutenção da paz e a sua indispensabilidade. A ideia de uma “missão multidimensional” nasceu da carta do presidente Aristide à organização enviada ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em 1992. A universalização da crise haitiana foi um dos fenômenos mais importantes para o desenvolvimento das Missões de Paz, pois, assim, considerando a crise política e humanitária do pequeno país caribenho como uma emergência com a qual todos os países deveriam se preocupar e agir para solucionar, a atuação da ONU se tornara essencial e obrigatória. Os próximos passos para impedir um desastre (uma possível intervenção não-pacífica) se deram em direção a fundamentar as Missões de Paz e a fixar a sua regulamentação para que estas se tornassem ferramentas ideais para a solução pacífica de crises humanitárias. Além disso, as missões de paz deveriam se tornar instrumentos democratizantes, apaziguadores e institucionalizadores da segurança jurídica e da proteção das instituições, nas mãos de um órgão historicamente instável. Dentre as principais controvérsias relacionadas às operações militares de paz da ONU, está a legitimidade das intervenções humanitárias, correlacionada diretamente aos princípios da responsabilidade de proteger, da não-intervenção e da soberania nacional, isto porque, ocorre uma antinomia principiológica sem solução, o que nos leva à ponderação. 194

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A soberania sempre se apresentou com um alívio em decorrência da sua face protetora. O conceito de Estado soberano garantia a proteção daquela população contra as ingerências externas, considerando que o Estado era o último marco de poder possível e que todos os Estados teoricamente possuíam o mesmo patamar de poder entre si. É notável, portanto, o apego das nações menores às suas respectivas soberanias ao tentarem se autoafirmar em um contexto de interesses perversos escusos. O princípio da não-intervenção, por sua vez, está intimamente ligado à criação do Estado Nacional e de sua independência (autodeterminação) normativa e a um movimento global em direção ao fim das intervenções militares que levariam às guerras, desde a criação da ONU, em 1948, momento em que o mundo buscava uma paz duradoura, após as atrocidades cometidas. No entanto, quando a colisão de princípios provenientes do jus cogens internacional nos leva a depender de casualidades, questiona-se naturalmente se os Estados mais poderosos, os quais geralmente lideram as operações, estariam explorando as missões para perseguir seus interesses sob a dissimulação de solucionar conflitos ou investir na manutenção da paz (ANI, 2016, pp. 9-10). Nesse contexto, vale observarmos dois outros conceitos: a reponsabilidade de proteger (R2P35) – princípio comumente invocado como justificativa para as intervenções humanitárias – e a seletividade – característica geralmente associada à aplicação da R2P. A previsão normativa que legitimaria o princípio está contida no 2005 World Summit Outcome, da ONU: “Estamos preparados para agir de maneira oportuna e decisiva por meio do Conselho de Segurança, (...) se os meios pacíficos forem inadequados e se as autoridades nacionais manifestamente não conseguirem proteger suas populações” (ONU, 2005). Ademais, nas discussões acerca da legitimidade das intervenções também se confrontam duas narrativas, quais sejam a do “Failed State”36 e a da “Conflict Prevention37”. O Estado falido é aquele no qual os Direi

Responsability to Protect.

Estado Falido (em inglês, é o termo utilizado para descrever Estados que não conseguem se sustentar com base em suas instituições, estando estas em ruínas e a própria democracia, frágil e, por vezes, inoperante).

Prevenção do Conflito (em inglês, termo utilizado para descrever uma forma de argumentação que busca justificar a presença de Operações de interesses escusos em situações em que não há justificativa para tal.

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tos Humanos se apresentam como inefetivos ou inoperantes, de modo que sua eficácia é impossibilitada ou indesejada por parte do Estado, por conta da desestabilização das instituições e da falta de governabilidade. Já a prevenção do conflito estaria ligada à manutenção de uma paz relativamente estável, em uma área historicamente ou momentaneamente instável devido a crises humanitárias ou outros conflitos. A necessidade da atuação das intervenções humanitárias seria produto das preocupações globais em segurança: “Encontrar um consenso sobre a intervenção simplesmente não é uma questão de decidir quem deve autorizá-la e quando é legítimo empreender. É também uma questão de descobrir como fazê-lo, para que metas decentes não sejam manchadas por meios inadequados. (ICISS, 2001, p. 5, tradução livre).

2.3 Definição dos critérios de análise das Operações de Manutenção da Paz Quanto à definição dos critérios para a análise das operações de paz, resta essencial justificarmos a sua escolha. É importante demonstrar que independentemente de quais argumentos sejam utilizados para sustentar a razão de ser de uma Operação de Paz – viciados ou não por outros interesses – não podemos nos afastar jamais do seu principal objetivo, qual seja o direito das vítimas das violações de direitos humanos que estão sendo perpetradas de receber assistência. Assim, como bem coloca LINDGREN-ALVEZ, (2018, p. 148), quando falamos de ingerência devemos retirar o foco da ideia egocêntrica e megalomaníaca das nações de arrogarem para si o título de polícia supranacional e sim, compreendermos na necessidade humana de ajuda humanitária, o fundamento das ações propostas pelas missões. Considerando tal ideal, escolhemos os seguintes critérios, sendo estes voltados para a proteção das vítimas da nação foco da missão, já que isto sim condiz com os princípios sob os quais foi construído o conceito de Operação de Paz, demonstrando coerência com a fundamentação jurídica do Direito Internacional Humanitário. Assim, são os critérios; sendo que a Jurisdição, a Consulta, a Retirada, o Uso da Força e a Imparcialidade e a Neutralidade são todos desmembramentos do principal critério para o sucesso da missão, qual seja o Consentimento do Anfitrião: 1) Consentimento do Anfitrião – 196

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autorização ou mesmo solicitação do Estado foco da Operação em tê-la em seu território; 2) Jurisdição – acordo sobre regime especial de jurisdição, o qual geralmente abrange as imunidades penais e civis em relação à jurisdição do Estado receptor; 3) Consultas para a composição de força ou missão – consiste em levar em consideração para o exercício da Missão os entendimentos e opiniões do Estado anfitrião sobre como deve ser esta realizada, entretanto, não há deveres ou garantias de que estas serão acatadas; 4) Retirada de contingentes – pode ser solicitada ou pelo Estado anfitrião ou pelo Estado que cedeu o contingente por motivos como defesa nacional, problemas de ordem interna, desacordos sobre as condições, duração excessiva da Operação, falta de segurança, etc.; 5) Uso da força – critério este sempre questionado e o mais polêmico de todos os desdobramentos do consentimento do anfitrião, pois a restrição do uso da força nasce na própria razão de ser da Operação de Paz presente na Carta da ONU, sendo permitida somente em situações de autodefesa ou para proteção do pessoal humanitário; 6) Imparcialidade – critério essencial para o sucesso da missão, pois, para tanto, é necessário o perfeito entendimento entre os objetivos da Operação e as partes em conflito; não é possível, entretanto, avaliar a neutralidade, por ser questionável de acordo com o histórico das peacekeeping operations. A seletividade das Intervenções não é e nunca foi um mistério para a literatura da ingerência e ter a consciência de que os interesses em termos de política internacional existem e viciam as Operações é essencial para compreendermos essa dinâmica. Por outro lado, e não menos importante, a militarização também se apresenta como uma questão central, dividindo a doutrina quanto à sua preferência pela missão integralmente civil. Entretanto, precisamos compreender que os debates em torno das Operações de Paz e a avaliação da sua efetividade ou precariedade não podem se resignar a analisar as nações autoras como se estas fossem os sujeitos internacionais da relação jurídica exercendo o seu direito de ingerência ou protegendo o direito da humanidade pela paz. Enquanto tentamos compreender ou desafiar as informações que já possuímos, os verdadeiros sujeitos de direito, vítimas do teatro mundial das nações protetoras, padecem. As Operações de Paz estão deixando países que já não se fazem estratégicos para seus intentos e permanecendo em outros que o são, mesmo após os objetivos terem sido alcançados; estão escolhendo atuar onde lhes convém e confiando ao 197

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extermínio e à desgraça populações inteiras, sem qualquer argumento justificável. Há de se buscar um entendimento analítico baseado nas necessidades das vítimas. Basicamente, muito maior do que o direito de ingerência como um “dever internacional” é o direito das populações vítimas de serem protegidas de suas realidades atrozes.

3 A INSERÇÃO DO BRASIL COMO MANTENEDOR DA PAZ Conforme retiramos do artigo 4º, VI, VII e IX da CF/88, o Estado Brasileiro compromete-se com a defesa da paz, com a solução pacífica de conflitos e com a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, no âmbito internacional, através de seu mais importante diploma legal. Outrossim, sendo também membro fundador das Nações Unidas, o Brasil assume historicamente a responsabilidade internacional de participação nas Operações de Manutenção da Paz da ONU, tendo participado de mais de 50 (cinquenta) operações de paz ao longo da história. Faz-se, portanto, essencial o estudo do presente tema no que tange à atuação brasileira e à inserção do nosso país na temática, pois é notável, já há décadas, a posição de protagonismo que o Brasil vem portando diante da recuperação e manutenção da paz em países que padecem das mais variadas moléstias. Vale salientar que não só sua participação restou importante, como o seu engajamento foi pioneiro (FONTOURA, 1999, p. 279).

3.1 O modus operandi do Brasil nas Operações de Manutenção da Paz e a atuação dos peacekeepers brasileiros A atuação dos peacekeepers brasileiros é pautada em quatro diplomas normativos fundamentais, quais sejam: a Constituição Federal, em seu artigo 4º, inciso VI e IX, o qual determina que as relações internacionais serão regidas pelos princípios da defesa da paz e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; a Estratégia Nacional de Defesa, a Política Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa. Encon198

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tramos na Lei Complementar nº 97 de 9 de junho de 1999 a previsão do destacamento de forças armadas para o emprego em Operações de Paz. A não-ingerência e a solução pacífica de conflitos estão entre os princípios mais enfatizados pela atuação brasileira ao longo das décadas. Entretanto, com a propagação do princípio da não-indiferença – proveniente das discussões pós conflitos armados na África como o caso Ruanda (1994) e Somália (1992), nos quais não houve um posicionamento ativo por parte da comunidade internacional e consequentemente da própria ONU, que se eximiram de proteger da violência e do genocídio a população civil que não participava do conflito – a partir do século XXI, os peacekeepers brasileiros passaram a atuar mediante uma nova diretriz composta pela comunhão do princípio da não-indiferença com o princípio da não-ingerência, representando, assim, o equilíbrio necessário entre a atuação e o resultado eficaz (AGUILAR, 2015, p. 12). Também é notável a resistência do país em enviar contingentes de peacekeepers para Missões de Peace enforcement38 devido principalmente à previsão constitucional acerca da solução pacífica de conflitos, além do modo de agir próprio das Relações Internacionais e do histórico da moderadora diplomacia brasileira, enviando apenas, nesses casos, missões individuais de observadores militares. Outro termo interessante da atuação brasileira nas Operações de Paz se deu no sentido de que a partir do momento em que se passou a ser considerada a possibilidade de ouvir o Estado anfitrião e levar em consideração a sua fala para o exercício da Missão, com a UNFICYP (Chipre), o Brasil passou a exigir o critério para aprovar a sua participação. Quando este critério não foi atendido, enviou somente observadores militares (CARDOSO, 1998, pp. 22-23). A UNIFIL é uma missão de manutenção da paz estabelecida em 1978, a qual, a partir de 2006, passou a contar com uma Força-Tarefa Marítima, ocasião em que se inserem as tropas e embarcações da Marinha brasileira, que, a partir de 2011, tomou a frente da operação. Esse contexto exige a análise pormenorizada do conceito de diplomacia de defesa, a qual pode ser definida como “emprego não coercitivo do poder militar em apoio à política externa” (ALMEIDA, 2017, p. 37-38). Não é por acaso que a MINUSTAH39 merece lugar de destaque dentre as mis

Imposição da Paz, em inglês.

Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti - sigla MINUSTAH em francês.

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sões em que o Brasil participou não só no Século XXI, mas desde 1947, visto que possuiu o maior contingente militar da missão (37 mil pessoas) e garantiu durante todo o mandato o comando militar desta, decisão logística incomum por parte das Nações Unidas, que geralmente efetua a repartição periódica da competência (HAMANN, 2018). É interessante salientarmos que um dos propósitos desenvolvidos na MINUSTAH tinha como objetivo auxiliar na execução de metas presentes na constituição haitiana de 1987, provenientes do projeto de fortalecer as instituições nacionais, quais sejam: a reforma do sistema judiciário, a profissionalização das forças armadas e a formação de uma força policial independente do exército. Passou, então, a ser debatido o objetivo de “atuar nas áreas de reconstrução econômica do Haiti e colaborar com as forças de ordem nacionais, no esforço de apaziguamento interno durante o período de transição para a democracia”. (CÂMARA, 1998, pp. 133/134). Quanto ao caso haitiano, se destaca a participação brasileira nas discussões, quando fez constar a característica de “excepcionalidade” da atuação do Conselho de Segurança nos debates iniciais sobre a MINUSTAH, a fim de que não se instaurasse um precedente para futuras ingerências nos mesmos termos, sem que houvesse fundamentação jurídica suficiente, de modo que não contrariasse claramente o princípio da não-intervenção. Apesar do fundamento ilegítimo, obteve-se uma suposta estrutura pacífica para a intervenção militar norte-americana com base em acordos realizados para uma “invasão consentida”, oportunidade em que nitidamente foram utilizadas interpretações incompatíveis e desencontradas para legitimar interesses, os quais não objetivavam a diminuição do sofrimento do povo haitiano. Quanto ao posicionamento brasileiro em relação às medidas adotadas e o seu modus operandi, desde o início da crise haitiana, o Brasil apoiou a liderança da OEA nas negociações, pois esta seria o ente legítimo para tratar da questão, como guardiã da democracia na região. Mantendo, assim, a sua posição durante todo o desenrolar dos debates de modo coerente, o Brasil foi defensor das negociações diplomáticas e contra quaisquer determinações de ingerência que afetassem a soberania do Haiti, tendo em vista a questão ser interna, não restando justificativas suficientes à intervenção militar ou aos embargos econômicos que restringissem essencialmente a livre determinação do cenário político interno haitiano. 200

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Como já comentado, o agravamento e a extensão da crise levaram o Brasil a apoiar em parte as ações determinadas tendo em vista os objetivos iniciais de reestabelecer a democracia e fortalecer as instituições democráticas, entretanto, o nosso país preocupava-se em impedir que a fórmula construída para a excepcional crise haitiana fosse reutilizada no futuro para situações semelhantes em termos de legitimar quaisquer ações interventivas com base em interpretações arbitrárias. Nessa conjuntura, vale salientar que a preocupação em fortalecer o princípio da não-intervenção e a segurança jurídica da norma internacional, deve imperar, mesmo com os avanços realizados na direção oposta. Isto porque o compromisso com a carta da OEA em relação à abstenção de interferência nos assuntos internos e externos de qualquer país, além de ser um objetivo regional, é uma das premissas da nossa Constituição Federal. A única possibilidade de ingerência registrada prevê um quadro grave atentatório à segurança e à paz regionais, sendo que a carta da OEA ainda determina a proibição de atuações inconsistentes juridicamente, tendo em vista a imprevisibilidade dos desdobramentos e danos de tais ações para a região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Resta essencial salientar, em primeira análise, que há uma eterna confusão conceitual, conforme já descrito, entre os ideais de paz e segurança nas Operações das Nações Unidas e no Conselho de Segurança como um todo. Se inicialmente, as Peacekeeping Operations foram pensadas para de forma objetiva manter a paz, no sentido de manter acordos de paz realizados através da diplomacia e apenas acompanhar a sua efetivação ou descumprimento sem intervir, após a incorporação na memória coletiva da Guerra ao Terror, a paz foi securitizada e comercializada sob essa nova bandeira. Considerando que os conceitos mudam de era em era, o indivíduo do Século XXI compreende a paz como se segurança fosse. Nessa perspectiva, a presença da militarização a fim de garantir a segurança é clara em nossas mentes. Perdemos a compreensão de que quando a paz é alcançada, a segurança é desnecessária e a manutenção da paz pode 201

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ser feita por meio de Missões integralmente compostas por civis. Assim descreve Kant em sua obra “A Paz Perpétua” (2008) “Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, de todo desaparecer. Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra, devido à sua prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados incitam-se reciprocamente”. Se conforme já colocado, os Blue Helmets40 compõe a maior força militar supranacional, podemos compreender as consequências positivas e negativas de sua presença em áreas de conflito. Apesar de garantirem por vezes o êxito de Operações que não poderia de outra forma ser alcançado, observamos também o claro apelo que sua imagem confere à securitização global, caminho este que vai em direção oposta ao que antes historicamente buscávamos como a desejada paz. É clara portanto, a divergência que se apresenta em relação aos objetivos para os quais foram criadas as Operações de Manutenção da Paz e as origens destas no Direito Internacional Humanitário. Unindo-se tal percepção aos demais fatores aqui já discutidos, como os interesses escusos das nações participantes, o direito de ingerência e a seletividade em detrimento do direito à assistência humanitária internacional, que deveria ser o cerne deste teatro de poder, compreendemos as consequências advindas das Missões quando seu mandato é viciado; grande exemplo desse entendimento se apresenta no caso do Iraque. O presente estudo possibilitou um olhar para as diferentes realidades das Operações de Paz desenvolvidas, as quais o Brasil se dedica com esmero. Com este estudo, observamos que o desenvolvimento das Operações de Paz e a construção do que hoje entendemos por mandato ocorreu devido a uma necessidade política das organizações de conquistarem soluções e, principalmente, de os países que dominavam os debates conseguirem um desfecho favorável aos seus interesses, em detrimento de uma fundamentação jurídica razoável. Para tanto, por vezes ao longo das discussões, buscava-se o fundamento para a intervenção do Conselho de Segurança em premissas subsidiárias que, apesar de serem fatos, não enfrentavam devidamente a antinômica relação entre soberania versus direito de intervenção, como por exemplo o argumento do aumento do fluxo de deslocamento de refugiados para países vizinhos em torno dos países foco das Operações, de 40

Capacetes azuis, em inglês, é considerada outra forma de se referir aos Peacekeepers.

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modo que estaria ameaçando a paz e a segurança internacionais. A aplicação do direito internacional humanitário na conjuntura das missões de paz nasce, portanto, com o fundamento de um direito internacional de ingerência que se legitima na medida em que a organização internacional age, interferindo em questões domésticas dos países, em nome da proteção de uma população que está sujeita a sofrimento decorrente de uma violação massiva dos direitos humanos. Assim, sob esse falso manto de legitimidade, o Conselho de Segurança passa a agir com intervenções militares nas crises internas dos países sem fundamentação jurídica que sustente as suas ações e com justificativas vazias legalmente.

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10 A TRAJETÓRIA DA PESQUISA SOBRE MILITARISMO E DEFESA NACIONAL NO BRASIL: O CASO DA ABED.

Samuel de Jesus ETHOS CIVIL E MILITAR Nas fronteiras que dividem socialmente, civis e militares, entre a Universidade e Forças Armadas persistem algumas afirmações vindas dos setores castrenses, dentre elas a ideologia de que não existe uma linha divisória entre civis e militares, no entanto tal perspectiva não poderá se valer desse tênue limite ambivalente. Quando mencionamos o termo Universidade estamos falando de uma instituição civil, laica, pluralmente diversa, desprovida de dogmas e onde a formulação crítica é parte essencial de sua constituição. Esta universidade é muito distinta da instituição militar que possui uma hierarquia voltada à obediência. A instituição militar estaria ancorada na concepção positivista ordem e progresso. A Ordem expressa faz referência ao absolutismo, porém reinventada por Auguste Comte na segunda metade do século XIX. Podemos seguramente afirmar que as forças armadas brasileiras não foram educadas em uma dimensão Rousseauniana, aquela do contrato social, mas Comtiana, positivista, calcada na devoção à ordem sob uma capa de modernidade, incorporando credos, dogmas não afeitos aos princípios contemporâneos de democracia. O ethos civil. Esta definição é urgente, pois atualmente muitos pesquisadores civis tecem suas análises sobre defesa, segurança nacional e internacional com base no ethos militar. As resoluções de problemas que afligem a nacionalidade e a soberania não deverão ser as mesmas para civis e militares. Atualmente, o que observamos é o predomínio 209

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dos preceitos militares sobre uma grande parcela dos acadêmicos civis de universidades civis. Desenvolver, conceitualmente, uma concepção civil sobre assuntos de defesa é contribuir para o fortalecimento da relação entre civis e militares, sobretudo, reforçar a estratégia brasileira. O predomínio do ethos militar (ainda que involuntariamente) levará fatalmente a universidade à alienação e cooptação dos civis aos preceitos militares. É isto que podemos chamar de militarização da universidade brasileira. Afinal, quais os preceitos civis a serem considerados nas formulações de segurança e estratégia de Defesa Nacional? Neste sentido o que vem a ser este ethos a qual chamo de civil, quais são suas premissas? Procuramos a definição clássica em Aristóteles. Os argumentos convincentes fornecidos através do discurso são de três espécies: 1) Alguns fundam-se no caráter de quem fala; 2) alguns, na condição de quem ouve; 3) alguns, no próprio discurso, através da prova ou aparência de prova. Os argumentos são abonados pelo caráter sempre que o discurso é apresentado de forma a fazer quem fala merecer a nossa confiança. Pois temos mais confiança, e temo-la com maior prontidão, em pessoas decentes (...). Isto, contudo, tem de resultar do próprio discurso, e não das perspectivas prévias do auditório quanto ao caráter do orador. A convicção é assegurada através dos ouvintes sempre que o discurso desperta neles alguma emoção. pois não damos os mesmos veredictos quando sentimos angústia e quando sentimos alegria, ou quando estamos numa disposição favorável e numa disposição hostil (...). as pessoas são convencidas pelo próprio discurso sempre que provamos o que é verdade a partir de seja o que for que é convincente em cada tópico. (ARISTÓTELES, 2005, p. 1356a).

Ethos tem origem no grego e significa “caráter moral”. Ethos define hábitos e crenças de uma comunidade ou nação, assim como o comportamento de determinada pessoa ou cultura e o espírito motivador das ideias e costumes. Segundo Aristóteles, ethos está ligado à persuasão ou autoridade que dispõe o orador para cativar o público. Aqui podemos pensar em dois tipos de ethos, o civil e o militar. O que seria o ethos civil? A resposta seria: a formulação civil de resolução dos problemas caros à soberania nacional entendendo que a visão militarista não alcança a dimensão total, pois deverá ser um meio e não uma finalidade. É preciso 210

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escutar outros setores, considerar outras visões, o entendimento de que a instituição Forças Armadas é apenas um dos tentáculos fundamentais para a garantia da soberania nacional, mas não são o fim e apenas um dos meios para o alcance da soberania. Existe uma hegemonia militar em assuntos relativos à Defesa Nacional. Ao longo do século XX foram capazes de desenvolver uma expertise neste assunto. Os civis praticamente ignoram a possibilidade de conceber um ethos civil em assuntos de defesa e, assim acabam por incorporar o ethos militar, ou seja, acabam por pensar os assuntos ligados à defesa, soberania e estratégia como elementos genuinamente da alçada militar. No entanto o monopólio militar sobre estes temas impossibilita uma visão global sobre o assunto. No meio universitário, por exemplo, os grupos de estudos devotados ao militarismo e defesa nacional são pequenos, porém conseguiram nos últimos vinte anos, ampliar sua visibilidade e buscar uma proximidade com setores castrenses ao ponto de formar civis capacitados nestes temas, mas, os militares ainda dominam a agenda governamental para a área de defesa. Soma-se a isto a ausência civil no cargo de Ministro da Defesa. Esse enclave na universidade de estudiosos dos militares e a defesa nacional, sobretudo a formação de especialistas em forças armadas, remonta aos anos 70 e 80, pois importantes estudos foram publicados neste período. Estas obras são uma referência obrigatória para os civis iniciantes nesta temática.

ESTUDOS SOBRE OS MILITARES Em 1975 é publicado o livro do brasilianista Alfred Stephan, intitulado: Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Trata-se de um estudo sobre as características organizacionais e institucionais dos militares. Em 1976, Edmundo Campos Coelho publica “Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira”. René Dreifuss publicou em 1981, o livro: “1964: A conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de classe”, resultado de uma pesquisa sobre as formas de socialização militar, as relações pessoais e laços familiares influenciando nas práticas políticas castrenses. O Politólogo francês Alain Rouquié publicou em 1982 o importante livro, intitulado: O 211

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Estado Militar na América Latina. Este livro explica os fatores históricos de formação política da América Latina que permitiram que as ditaduras latino-americanas ocorressem. Em 1980, Rouquié coordena outro importante livro lançado na França com o título: Les Partis Militaires Au Brésil e traduzido e publicado no Brasil; Os Partidos Militares no Brasil. Este livro reúne textos daqueles pesquisadores que serão os expoentes dos estudos sobre Forças Armadas no Brasil: o professor Eliézer Rizzo de Oliveira, professor do IFCH/UNICAMP e Manuel Domingos Neto, os dois fundariam, em 2005, a Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É preciso mencionar outro livro escrito por outro importante pesquisador estrangeiro, Thomas Skidmore, publicou em 1982 a obra intitulada: Brasil: de Getúlio a Castelo. É um livro essencial para o entendimento da primeira fase do Regime. O livro A Tutela militar, organizado por Eliézer Rizzo de Oliveira, J. Quartim De Moraes e Wilma Peres Costa de 1987 destaca que após à ditadura estaríamos sobre uma tutela militar e também o livro Sociedade e política no Brasil pós-64 de Bernardo Sorj and Maria Herminia Tavares de Almeida. Estas obras não foram, em sua maioria, escritas no espaço da Universidade Brasileira, mas sem dúvida influenciarão uma geração de universitários que viria na década seguinte e que produzirão estudos sobre militarismo, Forças Armadas Brasileiras, estratégia e Defesa Nacional no espaço universitário. Desta relação, três livros não são produzidos por brasileiros, mas por pesquisadores estrangeiros: Alfred Stephan e Thomas Skidmore, estadunidenses e Alain Rouquié, francês. Os pesquisadores da Universidade Brasileira são: René Armand Dreifuss que foi professor de Ciência Política da UFMG (1980-1984), Departamento de Ciência Política da UFF (1986-2003), Eliézer Rizzo de Oliveira da UNICAMP. Dreifuss é o fundador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Eliézer Rizzo, fundador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O NEST e o NEE foram os dois primeiros núcleos a se dedicarem à investigação sobre a Ditadura, Forças Armadas Brasileiras e Defesa e estratégia. Nos anos 90 consolidou-se a pesquisa sobre a Ditadura Civil-Militar. Alguns importantes trabalhos foram produzidos. Em 1997 os pesquisadores Centro de Documentação e Pesquisa (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, entrevis212

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tam o ex-presidente Geisel e lançam o Livro “Ernesto Geisel” que reúne a História do Ex-Ditador e a primeira entrevista após sua saída da Presidência. O livro é um documento precioso. Antes, em 1994 e 1995, juntamente com Glaucio Ary Dillon Soares, Atualmente é Pesquisador Senior Nacional do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - IESP/UERJ, organizaram outra importante obra, uma trilogia: Visões do Golpe, Os anos de Chumbo, ambos lançados em 1994 e o último da série: A Abertura (1995) composta de entrevistas iniciadas em 1991. Foram entrevistados 17 militares que expõem suas opiniões, pontos de vista, críticas e elogios à sua atuação no poder, ou seja, buscam as explicações dos militares sobre os fatores que os tiraram do poder. Um elemento importante para a reflexão dos civis sobre a ascensão e queda dos militares do poder. Neste mesmo ano de 1995, a professora da Universidade Estadual Paulista, Suzeley Kalil Mathias publicou Distensão no Brasil. O projeto Militar pela Editora Papirus. Esta obra é resultado de sua Dissertação de Mestrado apresentada no FFLCH/ USP. O professor Eliézer Rizzo de Oliveira é o coordenador da coleção a qual este livro faz parte: Coleção: Estado e Política. Suzeley utiliza como base de análise, os discursos produzidos por Ernesto Geisel para o entendimento dos limites conjunturais do projeto de distensão, ou a saída planejada dos militares, após o fim da Ditadura. Em 1998, Martha K. Huggins professora e pesquisadora do Union College (Nova York) publicou Polícia e Política: Relações Estados Unidos/América Latina que demonstra a participação da OPS/CIA na preparação e estruturação do sistema de repressão no Brasil que resultará na formação da Operação Bandeirantes (OBAN) mais conhecido como Esquadrão da Morte de São Paulo, chefiado pelo delegado Paranhos Fleury Filho.

OS ANOS 2000: INFLEXÃO NOS ESTUDOS SOBRE OS MILITARES E A CRIAÇÃO DA ABED. Os anos 2000 são marcados por uma importante inflexão nos estudos sobre militarismo. Neste período estes estudos avançam ao ponto de ocorrer uma aproximação entre os pesquisadores e suas fontes, os militares. Isto ocorre devido à formação de grupos e núcleos de estudos que 213

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passaram a tentar compreender a morfologia do estamento militar. Por outro lado, setores militares começaram a cultivar o interesse de uma aproximação com os civis. Sobretudo professores civis de instituições militares prestaram concurso e foram admitidos nas Universidades Públicas, assim começaram a utilizar seus contatos nas academias militares e fazer a conexão entre civis e militares e à convite destes professores universitários vários oficiais começaram a participar de eventos sobre Forças Armadas, Defesa Nacional e demais assuntos estratégicos. Este momento de aproximação levou, em 2005, à criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, instituição que passou a congregar civis e militares sobre o entorno de assuntos de Defesa Nacional. Um desses grupos de pesquisa responsáveis pela construção da ABED foi o GEDES/UNESP. A criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa ocorreu no ano de 2005, em parte, deveu-se aos esforços do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional- GEDES - coordenado pelo professor Héctor Saint-Pierre e a professora Suzeley Kalil Mathias da UNESP, mas, sobretudo ganhou impulso com a criação do Programa de Pós Graduação em Relações internacionais San Tiago Dantas UNESP-UNICAMP-PUC-SP. O Programa Interinstitucional (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas41 resulta doprojeto especial de indução: Além do GEDES importantes pesquisadores estiveram presentes na criação da ABED, tais como os professores como João Roberto Martins Filho (UFSCar), Claudio Silveira (UERJ) e os professores da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina) como Marcelo Fabián Sain, Esteban G. Montenegro e Ernesto Lopez. No período pré-ABED Nacional tivemos também iniciativas

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Edital San Tiago Dantas da CAPES. Associação, construída pela interação das três universidades, mantém importantes bibliotecas, centros de documentação, estruturas informatizadas e para promoção de eventos. O Programa tem representado, desde 2003, a utilização de tais recursos de maneira integrada, evidenciando uma nova capacidade de ensino e pesquisa. Nessa trajetória, de vários lustros, o Programa formou mestres, auxiliou no fortalecimento da área de relações internacionais e inovou na gestão de cursos de pós-graduação. A consolidação do mestrado acadêmico, assim como do curso de especialização (Pós-graduação lato-sensu) em Negociações Econômicas Internacionais, com grande êxito, possibilitaram a ampliação para o doutorado em 2010, ampliando o desafio representado pela adoção de uma linguagem transdisciplinar e crítica na construção da identidade da área de relações internacionais.(Disponível em:http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/ novo/corpo-docente.html Extraído em 22.07.2016).

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como o arquivo Ana Lagôa - UFSCar e o CPDOC-FGV. O Arquivo Ana Lagôa42 é uma demonstração de como a Universidade estava vendo as Forças Armadas no período pré-2005 (período anterior à criação da ABED), é por isto que estudos sobre a Ditadura Militar e seus reflexos políticos estão presentes nos estudos dos primeiros encontros de 2007 e 2008. Outro marco de referência nos estudos sobre a Ditadura é, sem dúvida, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.

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Dez anos do Arquivo de Política Militar da UFSCar. O Arquivo Ana Lagôa, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos foi criado em agosto de 1996, a partir de doação da jornalista Ana Mascia Lagôa, o AAL quadruplicou seu acervo desde então. A doação original constituiu-se de cerca de 10 mil recortes de jornais da época da ditadura militar, além de 400 livros, 400 fascículos de periódicos, monografias, documentos e 6 mil laudas de matérias de autoria da jornalista, quando setorista da área militar da Folha de S. Paulo, em Brasília, na segunda metade dos anos 70, período da abertura política do regime. A organização inicial ficou a cargo dos professores Carlos Massao Hayashi e Maria Cristina Innocentini Hayashi do Departamento de Biblioteconomia da UFSCar. A partir daí, o AAL passou a incorporar material não apenas sobre o regime militar, mas sobre assuntos estratégicos e militares em geral. Nestes dez anos, o AAL absorveu todo o material relacionado às atividades do Grupo de Pesquisa “Forças Armadas e Política” do PPGCSo-UFSCar, principalmente as pesquisas voltadas para a análise da evolução das Forças Armadas brasileiras no pós-guerra fria. Além disso, o professor Shiguenoli Miyamoto, da Unicamp, doou ao AAL parte de sua biblioteca pessoal, totalizando 600 volumes, entre livros e periódicos, incluindo material valioso sobre legislação, pronunciamentos presidenciais e periódicos daEscola Superior de Guerra. Os professores Eliezer Rizzo de Oliveira e Samuel Alves Soares doaram também centenas de livros e periódicos. Com esses acréscimos, o Arquivo Ana Lagôa conta hoje com cerca de 1600 livros, 20 mil recortes de jornal, cerca de 2 mil fascículos de periódicos, além de centenas de documentos, incluindo extensas coleções de periódicos como A Defesa Nacional, Revista Marítima Brasileira e Tecnologia & Defesa. Todos os periódicos militares tiveram seu conteúdo catalogado, num total de 1600artigos e para 2007 está prevista a disponibilização de busca e pesquisa departe do acervo na página do arquivo na Internet. Na sua primeira década de existência o AAL recebeu apoio da UFSCar, FAPESP, CNPq e CAPES e forneceu apoio direto para a defesa de dez dissertações de Mestrado e uma tese de Doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSCar. Atualmente, o AAL integra, juntamente com o CPDOC-FGV e a UFPA (Universidade Federal do Pará), o Consórcio “Forças Armadas Século XXI”, no âmbito do Programa Pró-Defesa, patrocinado pela CAPES e pelo Ministério da Defesa. A comemoração do aniversário de dez anos do AAL será realizada no ano de 2007, quando o arquivo inaugurará suas novas instalações, no prédio do Centro de Educação e Ciências Humanas, no campus da UFSCar em São Carlos. (Disponível site AAL:http://www.arqanalagoa.ufscar.br/aal.asp)

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Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) é a Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Criado em 1973, tem o objetivo de abrigar conjuntos documentais relevantes para a história recente do país, desenvolver pesquisas em sua área de atuação e promover cursos de graduação e pós-graduação. A história da ABED se inicia em 2005 sob a perspectiva de estabelecer o diálogo entre civis e militares no período posterior à Ditadura Militar, aproximadamente, 20 anos posteriores ao fim do regime foi possível a criação de uma associação que representasse essa superação do passado em torno de um diálogo sobre assuntos de defesa. A ABED possui este protagonismo, ou seja, a tentativa de superar as desconfianças do período pós-1985. Estive presente ao Encontro Anual da ANPOCS de 2005 que foi o marco inicial de criação desta associação. Lembro-me que além de mim estavam presentes Suzeley Kalil Mathias, Hector Saint Pierre, Antonio Jorge Ramalho da Rocha, Celso Castro, Manuel Domingues, Suzeley Kalil Mathias, João Roberto Martins Filho, entre outros. A crítica formulada em meu livro: Ecos do Autoritarismo: A Ditadura Revisitada, Editora Oeste, 2019, é que a ABED nos dez anos posteriores à sua criação transformou-se em uma tecnocracia e esqueceu-se de manter-se crítica em relação à atuação das Forças Armadas, acreditou que a questão estava pacificada. Aliás, este pensamento era uníssono na comunidade de estudos sobre Defesa, ou seja, a certeza de que as desconfianças em relação à atuação dos militares. Este período é marcado por uma institucionalização dos estudos sobre Defesa e Segurança Nacional através da ABED. Os estudos produzidos, nestes anos, consideram uma análise diplomática no âmbito das Relações Internacionais e aspectos organizacionais e estruturantes das Forças Armadas Brasileiras, assim assume um aspecto técnico–diplomático-militar em detrimento de uma perspectiva crítica sobre a Defesa e Segurança Nacional. No XXIX Encontro Anual da ANPOCS no GT 08 - Forças Armadas, Estado e Sociedade, em 2005, ocorrido na cidade de Caxambú-MG demonstrou a formação de um grupo já constituído de pesquisadores sobre Forças Armadas. O professor João Roberto Martins Filho, na apresentação, falava sobre a importância deste GT dentro da ANPOCS. Abria-se o espaço para discussões sobre Forças Armadas nos domínios das Ciências Sociais e isto não era pouco. Sobretudo este GT, Forças Armadas Estado e Sociedade, demonstrou um grande avanço das pes216

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quisas sobre Forças Armadas e uma reunião que aconteceu sob a égide da criação da ABED. O GT 08 Forças Armadas, Estado e Sociedade foi coordenado pelos professores João Roberto Martins Filho (UFSCar), Celso Castro (FGV) e Antonio Jorge Ramalho da Rocha (UNB). Foram três sessões. A sessão 1: Forças Armadas e Democracia foi coordenado pelo prof. Celso Castro (FGV) e Eliézer Rizzo de Oliveira (UNICAMP) ocorrido na sala 08 do Hotel Glória Caxambú-MG. Neste período inicial de trabalhos da ABED é possível perceber que os temas tabus estão ainda sendo colocados em debate, dentre eles: o Governo João Goulart que foi derrubado pelo golpe militar de 1964, outros assuntos como vítimas do regime militar, relações civis e militares e o Programa Calha Norte. Todos estes são temas críticos em relação ao período da ditadura. Este período inicial de visão crítica aos poucos vai dando lugar a um aspecto tecnicista em relação aos assuntos relativos à defesa nacional. Ocorreu um impulso crítico inicial, mas que foi paulatinamente saindo de cena, pois temas como, por exemplo, a Comissão da Verdade quase não foi colocado em exposição, menos ainda, debatido. Por isto chamamos o período posterior ao ano 2004 como o período marcado, em tese, por uma construção de confianças entre os civis e militares. Neste período em diante a ABED passa a ser incorporada pelo Livro Branco de Defesa como entidade responsável por promover esta aproximação. No capítulo 4 do Livro Branco de Defesa Nacional, intitulado; Defesa e Sociedade e no item Defesa e a Academia está escrito: Em uma sociedade democrática, a academia desempenha importante papel junto às instituições do Estado produzindo conhecimentos e analises que permitem romper os limites das verdades estabelecidas. A produção de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema; Defesa Nacional aumentou significativamente em período recente, e se tornou sensível particularmente após a criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Embora houvesse acadêmicos que isoladamente, se concentrassem no estudo de pesquisas de temas relacionados à Defesa Nacional, não havia cursos, programas e infraestrutura que permitissem a produção de resultados robustos. (LBDN, 2012).

Na conformação do Livro Branco da Defesa Nacional do Brasil o grande fato inédito é que uma instituição de origem acadêmica foi incor217

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porada às diretrizes do Estado Brasileiro no âmbito de Defesa Nacional. É notado que a relação entre Defesa e a Academia ganham apenas uma página (p. 185) ou no máximo duas se considerarmos o Programa Pró-Defesa (p. 186), embora seja uma página, este é um gesto muito importante. Na edição de 2012 do LBDN é afirmado: A Estratégia Nacional de Defesa enuncia como uma de suas ações estratégicas a necessidade de formar civis especialistas em defesa e apoiar programas e cursos sobre Defesa Nacional. O objetivo é promover maior integração e participação dos setores governamentais na discussão de temas ligados à defesa, assim como a participação efetiva da sociedade brasileira por intermédio de institutos e entidades ligados aos assuntos estratégicos de defesa. (LBDN, 2012).

A institucionalização dos estudos na área de defesa, segurança e estratégia representada pela ABED apresentou limites ou avanços reais ? Esta pergunta tentaremos responder aqui, afinal se o volume de estudos foram ampliados, mas e o aspecto critico? Ganhou a mesma dimensão? Nossa hipótese central é a de que a institucionalização dos estudos de Defesa Nacional, representada pela criação da ABED, ofereceu constrangimentos à formulação da crítica sobre a atuação das Forças Armadas na política brasileira. O I Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa foi realizado pela Universidade Federal de São Carlos, na cidade de São Carlos (SP). O evento ocorreu entre os dias 19 e 21 de setembro de 2007 e com o seguinte tema: “Defesa, Segurança Internacional e Forças Armadas”. Na Conferência de Abertura proferida pelo professor Eliézer Rizzo de Oliveira afirmou: Gostaria de saudá-los e desejar pleno sucesso ao evento. Que novos projetos encontrem aqui sua inspiração e que o conclave estimule novas amizades e oportunidades de cooperação, tendo como pano de fundo o excelente programa de todos conhecido. Em particular, saúdo a Diretoria da ABED na pessoa do Prof. Dr. João Roberto Martins Filho, seu presidente. Estes colegas, encarregados dos primeiros passos da ABED, convidaram-me para falar-lhes neste momento. Agradeço-lhes a enorme generosidade e espero que vocês não se sintam frustrados com o que lhes expo218

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rei a seguir. Tomo a liberdade de destacar a presença do Dr. Richard Downes (do Center for Hemispheric Strategic Studies, Washington, DC, Estados Unidos), um querido amigo que acompanha de perto o processo político, as Relações Exteriores e a Defesa Nacional do Brasil. Saúdo igualmente as pessoas que vieram do exterior para participar deste evento.

Nesta fala é destacada a presença de Richard Downes do Center for Hemisferic Strategic Studies dos Estados Unidos. O William J. Perry Centro de Estudos Hemisféricos de Defesa é um órgão do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Promove cursos, seminários, divulgação, diálogo estratégico e pesquisa. Faz parte funcionários civis e militares de todo o continente americano. Objetiva construir redes e instituições de segurança e defesa, promover maior compreensão da política estadunidense e alinhamento destes estudos com o Escritório de iniciativa global do secretário de Defesa, da Segurança e Defesa Reforço Institucional (SDIB). Na sequência Eliézer Rizzo de Oliveira destaca o avanço dos estudos em temas de segurança e defesa tais como forças armadas, conflitos e processos de paz. O surgimento de disciplinas e Programas de Pós Graduação sobre esta temática. Ressalta a militância na ANPOCS. Nos caminhos que levam a criação da ABED – restrinjo-me ao âmbito brasileiro nestas considerações – acham-se a militância profissional universitária (inclusive nas escolas militares), o oferecimento de disciplinas sobre Forcas Armadas, Defesa Nacional, processos de paz, conflitos, sistemas políticos etc. Além de disciplinas, encontramos programas, geralmente de pós-graduação, que ganharam expressão em anos recentes. Além de disciplinas, acham-se nestes caminhos programas, geralmente de pós-graduação, que ganharam expressão em anos recentes. Onde há disciplinas e programas de pós, há também pesquisas de que alguns centros são realidades altamente consolidadas entre nós. Não é possível deixar de identificar a militância de diversos dos colegas na ANPOCS (não é o meu caso, mas acompanhei esta história), onde labutaram no Grupo Forças Armadas. Mais recentemente, devemos ao professor Manuel Domingos Neto (e ao professor Erney Camargo, então presidente) a novidade do Grupo Técnico Defesa do CNPq, que está fadado a ocupar uma po219

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sição de maior reconhecimento. Aqui está um dos desafios que se colocam a ABED. A partir dos anos 1980 alguns centros e núcleos de pesquisa sobre a temática militar surgiram em nossas universidades. Dado que eles se relacionaram muito estreitamente com o que foi comentado acima, eles funcionaram como propulsores do que veio posteriormente.

As palavras do professor Eliézer, indicavam que os estudos sobre defesa ganhariam um grande impulso, sobretudo através do suporte governamental cujo indicativo era a presença do professor Domingos no Grupo Técnico de Defesa do CNPq. Uma verificação inicial oferece informações importantes, primeiramente é de que em 2007 existe um predomínio de estudos elaborados por estudantes de Pós-Graduação de mestrado e doutoramento oriundos das academias civis como Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas UNESP-PUC-SP-UNICAMP, Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade Federal do Ceará (UFCE), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Candido Mendes (UCAM), Universidade de Brasília (UnB), entre outras civis. Podemos observar que não existe o predomínio dos estudos oriundos das academias militares como a Academia da Força Aérea (AFA), Marinha do Brasil e Exército. Os trabalhos apresentados por oriundos das academias militares envolvem temas sobre doutrina, História militar e aspectos de segurança na Amazônia. Entre as academias civis existem estudos sobre intervenções militares estadunidenses, questões humanitárias e conflitos armados, integração europeia, testes nucleares no nordeste nos anos 50 do século XX e História Militar, no caso o Tenentismo e outras sobre questões de gênero como é o caso da presença feminina nas Forças Armadas do Brasil, estudos civis sobre as Forças Armadas do Brasil preocupações vinculadas ao período da Ditadura Militar, por exemplo, estudos sobre os generais do Golpe de 64, emprego da força pelo Estado Brasileiro, intervenções militares, humanitárias ou até mesmo questões de integração em defesa e gênero. No II ENABED de 2008, em Niterói, a Conferência de Abertura foi proferida pelo então Ministro da Defesa Nelson Jobim. Na sequência, o primeiro conferencista foi o Almirante de Esquadra Carlos Frederico Aguiar, o jornalista Oscar Azêdo, Prof. Dr. Luis Fernandes, o embaixador 220

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Samuel Pinheiro Guimarães e o deputado Marcondes Gadelha. Os trabalhos apresentados por pesquisadores civis e militares (em sua predominância civil) de instituições universitárias como a Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade Federal do Pará (UFPA), COPPE, Universidade Federal do Ceará (UFCE), Academia da Força Aérea (AFA), entre outras. Os temas refletem uma forte presença dos estudos sobre diplomacia, tais como: teoria das Relações Internacionais, Relação Brasil e Argentina, questões humanitárias, teorias para a paz, cooperação internacional, Tribunal Penal Internacional, resolução de conflitos, entre outros. Os estudos militares; doutrina da guerra, educação militar, conceitos militares, famílias militares, Exército e Política, Poder Legislativo e Forças Armadas, segurança hemisférica, conflitos, Ditadura militar e geopolítica dos recursos naturais. Existem grandes diferenças em relação aos temas do I ENABED 2007 e II ENABED 2008 para o VIII ENABED 2014 e o IX ENABED 2016. Faremos aqui uma exposição dos temas das sessões de comunicação do I ENABED e dos Simpósios Temáticos do VIII e IX ENABED. Ao darmos um grande salto e analisarmos os temas dos Simpósios Temáticos do VIII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa - realizado em 2014 observamos a ausência da crítica em relação à atuação das Forças Armadas Brasileiras. Os temas elencados demonstram escolhas temáticas da cúpula da ABED. Podemos afirmar que estas escolhas temáticas dão um direcionamento aos temas em pauta. Neste caso não podemos afirmar que os ENABEDs são apenas receptáculos de trabalhos desenvolvidos. Existe um direcionamento. Analisando os Anais do I ENABED de 2007, observamos que ainda existiam preocupações da sociedade civil expressas em alguns trabalhos, tais como o Programa Nuclear Brasileiro, as intervenções dos Estados Unidos, processo de integração continental em defesa. Ao analisarmos os temas dos simpósios temáticos do VIII ENABED 2014 observamos a ausência de termos como sociedade, democracia, integração e a predominância de temas ligados à Indústria de Defesa do Brasil, à disciplina, profissão, instituição, educação militar, família militar, diplomacia e relações exteriores. Em 2014, passou a existir o predomínio de temas com aspectos técnicos, militares e diplomáticos em detrimento de temas críticos em relação à Defesa Nacional, Segurança e Estratégia. Ainda que estivessem presentes ali professores universitários, diplomatas, políticos e demais setores da sociedade civil. 221

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Os ENABEDs refletem os assuntos dos estudos sobre Defesa Nacional que estão sendo desenvolvidos, os temas escolhidos pelos pesquisadores da área e suas preocupações e problemáticas. Este levantamento já nos faz perguntar o motivo da ausência de preocupações em relação ao autoritarismo militar. Ocorreu um distanciamento na memória dos reflexos do março/abril de 1964? A falta de estudos com massa crítica em relação à Defesa Nacional faz parte de um processo de tecnificação diplomático-militar ocorrido na Universidade? Uma verificação inicial oferece informações importantes, primeiramente é de que em 2007 existe um predomínio de estudos elaborados por estudantes de Pós-Graduação de mestrado e doutoramento oriundos das academias civis como Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas UNESP-PUC-SP-UNICAMP, Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade Federal do Ceará (UFCE), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Candido Mendes (UCAM), Universidade de Brasília (UnB), entre outras civis. O fato é que os trabalhos apresentados nos ENABEDs não estão formulando novos padrões críticos, por exemplo, mesmo diante dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ocorridos no ano de 2013, não observamos menção a CNV nos Simpósios Temáticos. O encontro de 2014 esteve impermeável ao assunto, sobretudo em relação à importância dos documentos a serem revelados pelos trabalhos desta Comissão, muito embora, este assunto esteja presente no IX ANABED 2016. Manuel Domingos e Eliézer Rizzo de Oliveira fizeram parte da mesa redonda 07 - Comissão Nacional da Verdade. (Disponível em http://www.enabed2016.abedef.org/areastematicas Extraído em 02.08.2016). O IX ENABED 2016, sediado na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Florianópolis-SC - teve dentre os eixos temáticos a volta do tema FORÇAS ARMADAS, ESTADO E SOCIEDADE e como um dos coordenadores o prof. João Roberto Martins Filho (que esteve coordenando em 2005 em Caxambú do GT 08 Forças, Armadas, Estado e Sociedade). Porém os trabalhos selecionados em 2016 possuíam preocupações muito diferentes de 2005. Em 2016 não encontraremos mais preocupações sobre as Forças Armadas e a democracia e os reflexos históri222

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cos da Ditadura Militar, esquerda e Forças Armadas como em 2005. Em Florianópolis 2016, o eixo temático Forças Armadas, Estado e Sociedade esteve baseado em assuntos sobre a relação entre civis e militares, porém aplicado ao emprego e concepções de defesa como a profissionalização militar, outros como coordenação entre diplomacia e defesa, modelo do complexo militar industrial brasileiro e a política de investimentos do Ministério da Defesa em 2006. Tivemos apenas um trabalho apresentado sobre o direito à memória e à verdade. Os assuntos técnicos foram predominantes. (Disponivel em http://www.enabed2016.abedef.org/areastematicas Extraído em 02.08.2016). Como podemos ver abaixo: A mudança nos temas de interesse presentes nos encontros do ENABED é significativa se observarmos estes últimos 10 anos, pois assuntos que tinham preocupações urgentes em relação à sociedade civil não mais despertam interesses, assuntos que poderiam e deveriam ser incorporados aos assuntos de defesa não o foram, ao contrário, parece ter ocorrido o prevalecimento de assuntos mais técnicos e de preocupação estritamente militar cujo objetivo é fazer com que os civis obtenham alguns conhecimentos na área de equipamentos ou de qualquer tipo de aplicação militar. A sensação é de que está ocorrendo, neste período, a formação de uma tecnocracia civil - militar que opera sob o ethos militar. Esperamos que este trabalho possa oferecer algum subsídio para o fortalecimento da relação entre civis e militares, sobretudo uma crítica construtiva e necessária à ABED. Nosso objetivo é levar nos encontros nacionais esta crítica sobre os caminhos tomados por esta instituição e que não é somente um receptáculo de trabalhos produzidos em academias civis e militares sobre defesa, mas é fomentadora. Entendemos que o atual caminho seguido poderá levar à formação de uma tecnocracia versada em assuntos de Defesa Nacional e com origem na academia civil. Neste trabalho destacamos muitos elementos que nos permitem fazer esta afirmação. Esta seria uma oportunidade perdida para o fomento do diálogo com autonomia entre a universidade civil e as Forças Armadas. A crítica é necessária e atualmente observamos um silêncio perturbador em relação aos assuntos sobre militarismo e de defesa. Observamos uma grande dificuldade da instituição em formular uma crítica sobre a interferência dos militares na vida política do país ou a formulação crítica sobre as ações das forças armadas que possuem influência sobre a vida do país. Neste âmbito destaco a revitalização da indústria de materiais de 223

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defesa que foi interrompida devido à crise de 2008, mas que poderá ser retomada na sua plenitude quando os indicadores econômicos melhorarem? Outro caso é o da Comissão Nacional da verdade. A ABED não foi capaz de manter uma posição abertamente favorável à CNV. Sabemos que os militares a reprovaram categoricamente. Esperamos lançar alguns lampejos em relação às concepções civis sobre assuntos de Defesa. Entendemos que é possível o fato de muitos civis se apropriarem de uma perspectiva militar sobre este tema. Afirmamos que existe uma hegemonia dos militares sobre assuntos de Defesa Nacional e que este predomínio se deve ao fato dos civis não formularem uma contraproposta. A análise dos trabalhos apresentados nestes encontros nacionais demonstram as limitações a uma alternativa teórica e conceitual civilinizada sobre esta importante temática. Entre os anos de 2005 e 2016, eram tempos de otimismo entre os grandes estudiosos da área de estudos de defesa, sobretudo àqueles pertencentes à ABED. Esta instituição e suas diretrizes foram incorporadas ao Livro Branco de Defesa e seu membro fundador Héctor Saint Pierre (UNESP-PPGRI San Tiago Dantas) foi condecorado pelas Forças Armadas com a Medalha da Ordem do Mérito Militar no grau de Cavaleiro. O CNPq lançou os editais do Pró-Defesa e Pró-Estratégia, ou seja, bolsas para os projetos de pesquisa na área de estudos sobre defesa e estratégia. O professor Antônio Jorge Ramalho também membro fundador da ABED, Diretor da Escola de Defesa da UNASUL. O Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas passou a organizar um encontro anual de seus pesquisadores de mestrado com evento anualmente ocorrido no Memorial da América Latina com a forte presença de oficiais das Forças Armadas, Simpósio de Pesquisa em Relações Internacionais do Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Era o período do Segundo Governo Lula (2007-2010), estava em curso uma revitalização da indústria de defesa do Brasil e a formação de um grupo heterogêneo Pró-revitalização contando, inclusive com a jornalista Mirian Leitão, foi chamado por Renato Dagnino em seu livro A Industria de Defesa no Governo Lula de “grupo da revitalização”. O ex-Deputado José Genoíno, já no Governo Dilma tornou-se Assessor Especial para a área de Defesa e sua atuação se deu em torno do estreitamento e ampliação dos contatos com os empresários do setor de Defesa, assim começou a promover a necessidade de investimen224

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tos do governo para a formação de um complexo industrial militar de defesa. Em 2010, no Programa Globo News Painel conduzido por Willian Waack que perguntava a Alexandre Fuccille (UNESP), futuro presidente da ABED (2012-2016) se a revitalização das Forças Armadas ia para frente. No entanto quando Dilma Rousseff assumiu o Governo em 2011, o orçamento daquele ano previa uma restrição orçamentária que esfriou os ânimos em relação ao projeto da formação de um complexo industrial militar brasileiro. O fato é que não mais era possível represar os efeitos da crise de 2008. Porém, aos abedistas, restava o enclave da UNASUL, mas que seria enterrada após a definitiva deposição de Dilma em 31 de agosto de 2016. A partir deste momento, era uma questão de tempo para que a UNASUL fosse implodida, sobretudo devido à formação do Grupo de Lima, liderado pelo Peru da Administração Pedro Pablo Kuczynski, talvez o primeiro líder sul-americano a se alinhar com os Estados Unidos e promover uma união sul-americana contrária à Venezuela, Fortemente apoiado pela Argentina de Mauricio Macri e o Brasil de Michel Temer cujo Chanceler era Aloyzio Nunes Ferreira que se declarava anti-chavista, anti-bolivarianista. Os principais pesquisadores da ABED demoraram para perceber estas mudanças, pois surpreendentemente, enquanto o cenário mudava rapidamente, no ERABED Sudeste de 2017, ainda se falava da UNASUL e de sua importância em um momento em que o eixo da política externa já tinha se deslocado para o Grupo de Lima e que em 2019 resultaria no inócuo grupo do PRÓ-SUL, fórum político dos países de direita como a Administração Maurício Macri na Argentina e extrema-direita como o Governo Bolsonaro no Brasil. Algumas discussões da ABED em seu encontro regional sudeste 2017 já se encontravam superadas. No momento em que o encontro nacional, o enabed, deu uma guinada à tecnocracia em estudos militares, surgiram os encontros regionais da abed, os erabeds. Foram estes encontros regionais que mantiveram o debate aceso em um nivel relativamente crítico. Alguns encontros regionais ganharam um caráter independente em relação ao núcleo abediano. Exceto, a região sudeste onde se concentram os fundadores da abed, o berço da tecnocracia abediana. Os encontros regionais como o da região centro-oeste mantiveram um nível pragmático em relação à aproximação entre civis e militares, muito embora, a abertura de sua primeira edição tenha ocorrido no QG do Exército em Brasília, organizado 225

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pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx). Dois anos depois, em Goiania, o evento foi realizado na Pontificia Universidade Católica de Goiás em 2017. Um exemplo desta afirmação em relação aos encontros regionais pode ser observado já na primeira mesa que iniciou os trabalhos de 18 de outubro de 2017. A mesa redonda 1 “A Política e a Estratégia Nacionais de Defesa de 2016: inovação ou continuidade?” do II Encontro Regional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa Centro Oeste analisou a minuta da Política e Estratégia Nacional de Defesa. Na mesa estava presente o General Fernando José Soares da Cunha Mattos, Chefe da Assessoria Especial de Planejamento do Ministério da Defesa, responsável por submeter estes importantes documentos à apreciação dos membros da academia civil. O mediador foi o professor Alcides Costa Vaz (UnB) e os outros palestrantes eram Juliano Cortinhas (UnB), Flávio Pedroso (UFU) e Samuel de Jesus (UFMS). É sempre salutar para uma democracia que as formulações no campo de Defesa Nacional possam ser compartilhadas com os civis, não somente parlamentares, mas também com os membros da comunidade universitária. A iniciativa do General de Divisão Cunha Mattos seguiu os valores democráticos fundados no diálogo entre civis e militares. No encontro regional em Campo Grande 2019, ou seja, o III Encontro Regional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa Centro-Oeste Campo Grande 2019 ocorreu em um contexto no qual a sociedade brasileira estava polarizada e dividida. Muitas vozes invocavam os tempos autoritários da Ditadura Civil e Militar ocorrida entre 1964 e 1985. Defendiam o retorno do Ato Institucional número 5, conhecido como AI-5. Este ato governamental suspendeu os habeas corpus, fechou o Congresso Nacional, por exemplo. Diante desta conjuntura, o erabed de 2019 possuiu uma missão muito importante ao congregar pesquisadores civis e militares em torno dos assuntos relativos à Defesa Nacional em um momento tão delicado, sobretudo envolvendo temores de coisas muito caras à universidade como a censura, repressão e expurgo dos tempos da Ditadura. Em Campo Grande 2019 a mesa coordenada 03 As Fronteiras da Relação entre a Universidade e as Forças Armadas no Centro Oeste realizada no dia 24 de setembro de 2019 contou com Antônio Jorge Ramalho e Alcides Costa Vaz da Universidade de Brasília (UnB), Tereza Cristina Higa da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Tenente Coronel Oscar Filho do Centro de Estudos Estratégicos do Estado Maior do 226

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Exército (CEEEx), Matheus Pfrimer da Universidade Federal de Goiás (UFG), Giovanni Okado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Sylvio Andreozzi da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Samuel de Jesus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Foi uma mesa grande, com muitos integrantes e altamente representativa das Universidades do centro-oeste. Pensaram esta relação entre os militares e a universidade. A questão de gênero e forças armadas estava presente também na mesa coordenada A presença Feminina nas Fronteiras do Centro Oeste. Esta mesa foi composta por Major Selma Gonzales da Escola Superior de Guerra de Brasília (ESG-DF), Tereza Cristina Higa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMT), Dirce Soken da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Comandante Kátia Modesto do 6° Distrito Naval da Marinha do Brasil e Renata Melo Rosa especialista em Política Internacional. Esta mesa colocou em pauta a questão de gênero no âmbito da defesa na Marinha do Brasil e deu sequência ao debate iniciado em Goiânia 2017 em outra mesa sobre Mulheres e forças armadas. Mesa Redonda 4: “Forças Armadas e sociedade: o perfil do militar no século XXI” Coordenado por Samuel Jesus (UFMS) e com as palestras da Ten Cel Carla Christina Passos (HMilACG), Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro(2000), Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2013), da Maj Daniela Schmitz Wortmeyer (EB) doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília (2017) e Renata de Melo Rosa (UniCeub), doutorado em Antropologia da América Latina e Caribe pela Universidade de Brasília (2003) e pós-doutorado pelo Institute National de Adminstration, Géstion et Hautes Études Internationales da Universidade do Estado do Haiti (2007). Esta edição do erabed em 2019 contou com algumas linhas temáticas inovadoras, entre elas destacamos: 12. Antropologia e Defesa Nacional. 15. Saúde e Fronteiras. Este caráter progressista cuja proposta é a discussão de gênero é uma das características críticas e progressistas do erabed centro oeste.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho é uma crítica endógena que visa contribuir para o fortalecimento da ABED. Os historiadores possuem um procedimento em suas pesquisas que consiste na crítica ao objeto de investigação, ou seja, manter relativo distanciamento para evitar uma possível influência do objeto de pesquisa sobre o pesquisador. É um pouco disto que este texto propõe, ou seja, fazer uma análise com um relativo distanciamento crítico. Esperamos que este trabalho possa oferecer algum subsídio para o fortalecimento da relação entre civis e militares, sobretudo uma crítica construtiva e necessária à ABED. Nosso objetivo é levar nos encontros nacionais esta crítica sobre os caminhos tomados por esta instituição e que não é somente um receptáculo de trabalhos produzidos em academias civis e militares sobre defesa, mas é fomentadora. Entendemos que o atual caminho seguido poderá levar à formação de uma tecnocracia versada em assuntos de Defesa Nacional e com origem na academia civil. Neste trabalho destacamos muitos elementos que nos permitem fazer esta afirmação. Esta seria uma oportunidade perdida para o fomento do diálogo com autonomia entre a universidade civil e as Forças Armadas. A crítica é necessária e atualmente observamos um silêncio perturbador em relação aos assuntos sobre militarismo e de defesa. A crítica atualmente está vindo de intelectuais ousiders. Observamos uma grande dificuldade da instituição em formular uma crítica sobre a interferência dos militares na vida política do país ou a formulação crítica sobre as ações das forças armadas que possuem influência sobre a vida do país. Outro caso é o da Comissão Nacional da verdade. A ABED não foi capaz de manter uma posição abertamente favorável à CNV. Sabemos que os militares a reprovaram categoricamente ou o silêncio em relação as falas do senador Romero Jucá sobre o envolvimento das Forças Armadas no processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Este não é um caso qualquer, pois demonstra uma clara contradição em relação às últimas declarações dos Comandantes Militares. Eles declaravam que não interfeririam na crise política de 2016. O silêncio sobre este fato no IX ENABED 2016 também deve ser considerado. Esperamos ter lançado alguns lampejos em relação às concepções civis sobre assuntos de Defesa. Entendemos que é possível o fato de muitos civis se apropriarem de uma perspectiva militar sobre este tema. Afirmamos que existe uma hegemonia dos militares sobre assuntos de Defesa 228

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Nacional e que este predomínio se deve ao fato dos civis não formularem uma contraproposta. Este estudo tem como objetivo entender o que seria esta outra visão não-militar sobre assuntos de Defesa Nacional. O objeto estudado são os encontros nacionais da Associação Brasileira de Estudos de Defesa e a relativa independência dos erabeds como o do centro-oeste no qual foi discutida a relação entre a universidade e forças armadas e a questão de gênero envolvendo assuntos de defesa. A análise dos trabalhos apresentados nestes encontros nacionais demonstra as limitações a uma alternativa teórica e conceitual civilizada sobre esta importante temática.

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Este livro foi impresso sob demanda, sem estoques. A tecnologia POD (Print on Demand) utiliza os recursos naturais de forma racional e inteligente, contribuindo para a preservação da natureza. "Rico Ê aquele que sabe ter o suficiente" (Lao Tze)

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