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1 I. Os Francas, mareantes de Tavila

I. Os Francas, mareantes de Tavila

Conta-se que um senhor cavaleiro da ordem de sua majestade, de origem genovesa ou francesa, de nome Lopo Afonso da Franca, viera há muitos, muitos anos, só Deus nosso senhor sabe, viver para Tavila para servir de imediato a bordo das naus do Almirante-Mor Manuel Pessanha, ou Emanuelle Pessagno, de origem genovesa, a quem fora dada a honradez de ser o comandante da Frota de Galés de Sua Majestade o Rei D.Dinis, casado com a Santa Rainha que fez um dia fazer passar pães em forma de rosas nas suas saias para distribuir pelos necessitados sem chamar a atenção do rei esposo. Mas não é dessa rainha que falaremos aqui. Este Lopo Afonso era um homem bravo, corajoso, temerário, amante da refrega e do combate, e viera viver para o Algarve conjuntamente com a sua senhora, Violante Valdez, estabelecendo residência nas Terras da Ordem, atribuído pelo pai de D.Dinis, Afonso III, à ordem de Santiago de Espada, cujos monges guerreiros, conta a tradição, conquistaram Tavila sob o comando do grande Paio Peres Correia, seu grão-mestre, mas que após a conquista do Algarve acabaram por se avassalar com o Rei de Castela e por lá se fixaram, não tendo nenhum membro da Ordem vindo tomar posse das referidas propriedades, que ficaram abandonadas desde a fuga dos mouros.

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Então Lopo Afonso da Franca pensou em gizar um acordo com o pároco da Igreja de Santa Maria em Tavila - a que recebeu o túmulo dos sete cavaleiros de Santiago mortos covardemente pela mourama de que pagaria as despesas que fossem necessárias para preservar a igreja e o túmulo, para além de ofertar todos os anos uma décima parte dos proveitos das terras da Ordem a todos os fregueses da dita paróquia, e de dar trabalho e sustento a todos os fregueses se para isso desejassem.

Diz-se que Violante Valdez da Franca ofereceu trabalho a todos quantos se apresentaram para trabalhar na terra e que dela precisavam. Era uma propriedade vasta, com sede no alto de um monte que dominava a oeste todo o vale da Ribeira que agora chamamos de Almargem. Ao monte tinha sido dado pelos mouros o nome de Benamur , de Bin-Ah-mur (o ``filho do devoto'' em árabe), e compreendia outra parte, situada para sul do que restava da antiga estrada romana, o lugar da Gomeira, que se estendia até ao mar. Essa velha estrada romana era a que ligava de oeste a leste a antiga Ossonoba (agora Faro) a Baesuris (Castro Marim), atravessando o Rio Gilão através da chamada ponte romana. Para leste a propriedade ia por terrenos selvagens onde havia muita caça até ao ribeiro de Afonso Martins, que chamam agora de Lacém, onde tinha início o Termo do outro castelo, Cacela. (Antigamente dava-se o nome de termo de uma vila ou cidade com castelo ao que nós hoje chamamos concelho.). Coelhos, lebres, perdizes, javalis, raposas e o grande gato de barbilhos era habitual verem-se nas matas não desbravadas das Terras da Ordem. Eram terrenos de caça onde por vezes a família gostava de praticar as artes de caça.

Apesar de em ambas as propriedades serem vastas e os campos povoados por alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras e oliveiras, estes estavam a precisar de ser desbravados e limpos, porque muitos anos passaram desde que alguém deles tirasse deles sustento. E, além disso, as terras não eram ricas em água para poderem ser irrigadas o suficiente para o trigo poder levantar haste e dar espiga.

Lopo Afonso passava a maior parte do tempo no mar com o almirante Pessanha, nas lutas contra as galés mouras que ameaçavam os cristãos mais lá para das bandas das Colunas de Hércules, e quando

lhes permitiam sossego, em tempos de paz demandaram o mar desconhecido, para muitas léguas além de costas conhecidas, por mar aberto na busca das chamadas Ilhas Afortunadas, e que agora chamamos de Canárias. Mas as batalhas que os ocupavam com a mourama e às vezes também contra a armada castelhana nunca lhes permitiram concluir tais aventuras. Sendo Lopo Afonso um guerreiro constantemente ocupado em batalhas e aventuras em Alto mar, quando tinha tempo ancorava em Tavila e procurava sossego junto do leito de Violante, que tratava sozinha do sustento das propriedades da Ordem. Regressado à quinta, era vê-lo insultar e maltratar todos os camponeses e lavradores, por vezes na frente da esposa, para humilhá-la. —Rodeias-te de gente imbecil e tonta que não sabe sequer como manejar um arado e cultivar cereal de onde possamos fazer pão. —Onde tens andado, meu marido, e o que tens feito ? Apenas vens para junto de mim parar buscares paz junto do meu leito. Trouxeste ao menos riquezas dos longínquos mares ou dos saques que nos ajudem a melhorar as nossas sortes ? E agradecei a Deus os representantes da Ordem de Santiago não terem ainda regressado para vir reclamar estas Terras - redarguiu Violante.

Ao ouvir estas altivas palavras, Lopo Afonso não teve qualquer receio em esbofetear a pobre esposa, porque ele considerava atrevimento para uma mulher levantar a voz para um cavaleiro da casa de sua majestade, ao serviço de Nosso Senhor ao manter seguras as costas portuguesas.

Mas apesar da sua impulsividade, Lopo era um homem temente a Deus que se encomendava sempre à Virgem sempre que tinha de viajar por esses mares longínquos e desconhecidos. E assim visitava sempre a Igreja de Santa Maria para rezar na capela diante do altar da Virgem antes de subir a bordo, acompanhando misser Pessanha nas suas viagens. Apesar de os Franca terem a sua própria santa padroeira, Nossa Senhora A Franca, cuja imagem era guardada a sete chaves num altar dentro do seu próprio solar no Benamur.

A Ordem de Santiago regressou efectivamente para verificar as suas terras, quando D.Afonso IV, que sucedeu a D.Dinis, nomeou um grão-mestre da Ordem de Santiago só para Portugal, que não prestasse obediência à Ordem de Santiago castelhana. E assim de vez em quando os visitadores da ordem visitavam Tavila, e achando em bom estado as terras concedidas no Foral antigo, acabaram por avalizar o acordo que Lopo da Franca fizera com o pároco de Santa Maria.

As condições em que Violante matinha a fazenda não eram famosas, os mouros que antes tinham erguido a quinta tinham deixado uma nora e curtas valas de irrigação que, aproveitando o facto da nora estar situada num lugar elevado, fazia a água descer lentamente, por efeito da gravidade, por valas de irrigação para as hortas, onde se cultivavam cenouras, ervilhas, feijão, linho, grão-de-bico e hortelã. Mas pouco mais. Culturas que exigissem mais água eram escusadas porque a água necessária não vinha em quantidade suficiente.

Mas o estrago feito à quinta depois da conquista aos mouros tinha sido muito e ninguém tinha reparado as estruturas. E o cultivo de trigo estava portanto fora de questão. A Lopo Afonso apenas lhe interessava as estrebarias e os potros e os gloriosos corcéis que eram lá criados e que pudessem ser apresentados em alturas festivas, cavalgando com a esposa e seus cavaleiros exibindo as armas dos Franca pelas ruas de Tavila.

Do casamento de Lopo com Violante nasceram vários filhos, do qual o mais conhecido foi Lançarote da Franca, que a certa altura foi comandante de uma nau da Armada Portuguesa, e estando em tempos de paz, com ela partiu por mar aberto alcançando as tais Ilhas Afortunadas, sabendo que algumas haviam sido há pouco tempo descobertas por outro Lançarote, o Malocello, outro genovês mas ao serviço de Castela. A ideia era reclamar pelo menos algumas das ilhas, sendo um grande arquipélago, para a coroa portuguesa. Já então o rei de Portugal era D. Fernando, o Belo, neto de Afonso IV e filho de D. Pedro, aquele que se deixou morrer de amores pela dama Inês de Castro e que colocou os portugueses em terrível situação após a sua morte sem filho varão. Lançarote deu a uma dessas ilhas descobertas o nome de Nossa Senhora A Franca, como prova dos votos de devoção à sua padroeira e a outra batizou-a de Gomeira, o nome da outra propriedade quem em conjunto com o Benamur constituíam o Mato da

Ordem.

Dispondo de poucos meios, Lançarote da Franca quis instalar-se na Ilha de Lançarote, que havia sido batizada pelo seu homónimo. Acabou por morrer por lá, em luta com os nativos, ao tentar estabelecer uma colónia que desse a Portugal a posse das Canárias. O nome de Gomeira acabou por ficar para a posteridade. De modo que ainda hoje vemos o nome de La Gomera no mapa das Canárias. Mas Portugal após um século de contestação pela posse das outrora chamadas Ilhas Afortunadas, acabou por desistir quando foram descobertas outras terras mais além, os Açores e a Madeira.

Apesar de morrer em terras longínquas, Lançarote da Franca deixou descendência que lhe herdou os foros da Ordem de Santiago em Tavila e da relação de Lançarote com Leonor Abreu, filha de Lopo Vaz Castelo Branco, senhor de Portimão e de Catarina Pessanha, neta do almirante Manuel Pessanha, nasceu Lopo Afonso II da Franca, baptizado com o nome o avô e que esteve do lado do mestre de Avis na Batalha de Aljubarrota quando João de Castela quis reinar também em Portugal quando D.Fernando não havia deixado filho varão no torno. Como recompensa o novo rei D. João I confirmou-lhe a posse das Ilhas de Lanzarote onde o seu pai havia perdido a vida, mas ele nunca chegou de facto a desembarcar nas ditas ilhas. Esteve na frota que partiu com os filhos de D. João I, os infantes da Ínclita Geração a conquistar Ceuta. Este Lopo era também um homem de poucas conversas, e de raivas mal reprimidas, e casou com Môr Eanes da Cunha, descendente dos Cunhas de Vila do Conde. Marinheiro quase por tempo inteiro, como o pai e o avô, dizem que pouco tempo dispunha para partilhar com a esposa e pouca paciência teria igualmente para ocupar-se dos terrenos da Ordem.

O que foi no entanto chegado aos seus ouvidos das poucas vezes que se recolhia em Terra era a que a esposa Môr Eanes o traíra dadas as suas longas ausências na peleja no mar. Em virtude disso, e numa chamada à atenção à esposa, devido ao acesso de ciúme, acabou por a matar. Menos sorte teve a capitanear a galé de que era comandante no ataque a Tânger, já sob as ordens do Infante D.Henrique, pois foi atacado e acabou por morrer afogado no seu afundamento. Dizem que foi castigo divino merecido por ser tão desconfiado e não ter acreditado na esposa, de que eram intrigas movidas pelos seus inimigos na corte, e que usaram a sua impulsividade contra si próprio, da mesma maneira do que quando um feitiço se vira contra o feiticeiro.

Lopo Afonso, o segundo deste nome registado nas linhagens dos da Franca foi pai de Afonso Lopes da Franca, e tal como o pai, detinha o título de senhor da Ilha de Lanzarote, e capitaneou também naus ao serviço do Infante, que foi o que veio a suceder em 1447, quando comandou a frota que içou âncora de Lagos para saber dos destinos de Gonçalo Cintra, que tinha atingido a praça africana de Arguim, já além do Bojador, e daí não havendo dado mais notícias. Deste Afonso Lopes que foi a caminho de Arguim nunca mais nada se soube igualmente, sabendo-se apenas que da relação com Catarina Afonso, que foi pai de cinco mancebos, estando entre eles um terceiro Lopo Afonso, para além de Diogo Lopes da Franca, do qual de seguida esta história se vai concentrar e que tomou como mulher Genoveva Pessanha, filha de Álvaro Pessanha, neto de Manuel Pessanha, o mesmo Pessanha almirante de Portugal. De Diogo Lopes da Franca alguns cronistas diziam que era uma figura importante na vila chegando a dizer que era juíz-môr da alfândega de Tavila e por ventura desse cargo desligou-se das aventuras do mar, procurando, ao contrário dos seus antepassados, dedicar-se à vila e às suas propriedades. Tal como os seus Francas antecessores, manteve o trato com a Ordem e a Igreja de Santa Maria para tomar conta das terras do Benamur e da Gomeira. Enquanto os irmãos voltaram ao mar, marinheiros nas explorações portuguesas para sul da Costa Africana, Diogo Lopes começou a ocupar-se dos resultado das Descobertas na costa africana, pois Tavila era, a par de Lagos, uma dos lugares costeiros com porto favorável ao comércio, largo e aberto ao mar era o rio naquele tempo. Em termos concretos, Diogo Lopes era o novo nobre nomeado para juíz-mor e responsável pela alfândega. Tudo o que entrava e saía de Tavila por mar teria que ser do seu conhecimento.

Já Tavila era uma vila que recebia imensa navegação e comércio, provindo de outros portos do Mediterrâneo, pois sendo o primeiro porto português depois de os mercadores entrarem no Atlântico, era quase lugar de paragem obrigatório de franceses, genoveses, aragoneses, venezianos, sicilianos e outros povos que vinham não só fazer comércio ou no mínimo saber notícias das descobrimentos

para sul ao largo da costa africana. Castro Marim, apesar de se apresentar voltada para o Guadiana, com o seu largo estuário, era uma povoação fechada dentro de muralhas, sempre receosa de qualquer eventual ataque que os castelhanos pudessem infringir na outra margem, e portanto nada feita para poder receber de mãos abertas o comércio.

Assim Tavila era a inevitável primeira paragem para todos estes curiosos e desejosos de venderem os seus produtos, e levarem algum do ouro que haviam ouvido contar corria num rio a céu aberto, o Rio do Ouro, para além do Bojador.

Além disso, também era também lugar de importante estratégia militar, pois era o ponto de embarque que permitia viagens mais rápidas de todos as companhias de guerreiros que iam guarnecer a única praça conquistada até então no Norte de África, Ceuta.

De modo que o rio Gilão recebia dezenas de naus provindas de todas as partes da Europa, principalmente da parte Mediterrânica. E foi assim deste modo que a nobreza floresceu e acalentou-se com as riquezas que chegavam ao porto da vila. Os nobres já não precisavam de mostrar serviço para serem merecedores das mercês que ostentavam, as riquezas que adquiriam de todos os produtos como finas sedas, panos e bordados que chegavam a Tavila, eram suficientes para lhes suster os desejos de luxúria e ostentação.

Da florescente Tavila e da conquista de Ceuta havia brotado um novo clã, que ficaria para sempre gravado na história de Portugal: os Corte-Real descendentes de João Vaz da Costa, na pessoa de seu filho Vasco Anes, grande guerreiro e um dos heróis da tomada de Ceuta, a quem el-rei D. Duarte concedera a graça de se chamar Corte-Real, pois era o cicerone de todos os visitantes da sua corte. Nesta história irão participar diversos personagens oriundos desta família.

Estando no entanto delimitado por oeste do restante termo de Tavila pela irmã mais nova do Rio Gilão, a Ribeira do Almargem, naquele tempo no entanto navegável quase até junto da propriedade gerida pelos Franca, - um vau impedia a progressão das águas do mar na subida do rio - de modo que se Diogo quisesse ir para o Benamur sem ser a cavalo teria que pegar num bote e ir de Tavila até Benamur, aproveitando a proximidade das fozes do Gilão e do Almargem.

Por volta desta altura, um grande conjunto de camponeses, lavradores, pastores, tecedeiras, e lavadeiras laborava na velha propriedade, ora varando oliveiras, tomando conta do gado ovino, e criadores de cavalos que aproveitavam as pastagens do Benamur para criar os melhores cavalos para os Francas. E o novo casamento de Diogo Lopes, arranjado pelo pai Afonso Lopes, combinado por um razão de interesses por insistência do pai,e dos seus entendimentos com Álvaro Pessanha, filho bastardo de Carlos Pessanha, o último almirante Pessanha, e que havia perdido o direito ao título por pecados do seu pai, o último almirante-mor dentro dos Pessanha.

A família Pessanha passava por um mau momento e o casamento com um dos Franca, por acaso seus antigos companheiros e a razão original por se terem estabelecido em Tavila, mais de cem anos antes, e o casamento da filha de Álvaro Pessanha, Genoveva, era visto como uma forma de querer recuperar influência junta da sociedade nobre de uma vila que fervia de comércio e das novas oportunidades abertas pelas descobertas.

Genoveva Pessanha (ou Genebra Pessanha) era uma donzela muito devota ao culto mariano, que professava na concepção imaculada da própria Maria mãe de Cristo. Apesar dos escândalos da família e da bastardia do pai Álvaro Pessanha, Genoveva era a filha do casamento celebrado diante de Deus e por isso com a linhagem entendida pelos linhagistas como a mais pura dentro dos Pessanha. A mãe era Isabel da Cunha, filho do grande Álvaro Vaz de Almada, o conde de Avranches, e primeiro capitãomor em Mar, como se dizia naquele tempo, e que tinha sido um dos célebres ``doze de Inglaterra'' que tinham combatido pelos ingleses em Azincourt e derrotado os franceses num dos períodos de guerra entre estas duas nações que os historiadores insistem em querer chamar guerra dos cem anos.

O primeiro casamento de Genoveva fora com Álvaro de Arca, irmão do navegador e militar Rodrigo da Arca, que já procurava recuperar a reputação dos Pessanha, mas tal não tivera êxito, já que Álvaro de Arca conjuntamente com o irmão morreria na batalha da tentativa de tomada a Alcácer Ceguer -

uma cidadela entre Ceuta e Tanger - poucos meses depois do casamento. Á procura de novo meio de restabelecer os Franca, este encontrara em Diogo Lopes da Franca o possível parceiro ideal para reunir novamente as duas famílias, e com essa possibilidade trazer os Pessanha de Tavila de volta para os fidalgos de honra de sua majestade. O casamento foi realizado na Igreja de Santa Maria, a ela ligados pelo trato com a Ordem, e diz-se que desde o momento do casamento, os Céus haviam abençoado a união.

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