Parte 1 – Antigo Egito 1355 A.C.
Capítulo 1 Areia nos olhos. Areia nos ouvidos. Areia na boca. Talvez o pequeno garoto ganhe a misericórdia dos Deuses e
tenha sorte o
bastante para não se lembrar da sensação de completa impotência ao sentir os grãos pontudos perfurando sua garganta, arranhando suas pupilas e reverberando nos seus tímpanos. Ou talvez... os Deuses estejam ocupados com afazeres mais nobres e se esqueçam de olhar em direção àquela porção do Sahara. Lá, pode ser que os grãos acabem perfurando órgãos vitais da criança desafortunada, causando feridas purulentas e eternas no seu coração...
*****
— Veja, senhor! Acabo de encontrar esse pacote no deserto! — Mas... Oras... Um bebê! — Acho que está morto, senhor. Mesi limpou a areia do peito arranhado e auscultou. — Está vivo. Ainda não fez um mês, mas deve ter mamado o bastante para aguentar esse calor. — Teve sorte por não ter sido comido vivo. O que será que ele estava fazendo no deserto, senhor? — Rápido Zir! Traga uma bacia cheia de água fresca. Mesi tinha jeito com crianças. Tivera nove filhos e perdeu sua mulher quando as crianças ainda eram pequenas. Não que ele se importasse em dar banho e deixá-los apresentáveis, mas sabia como mexer com eles. Hoje seus filhos eram homens feitos,
cada um vivendo sua vida, mas Mesi não esquecera o básico: segurar a nuca e a coluna dos recém nascidos. A água da bacia tornou-se turva logo no primeiro mergulho, além da areia, o bebê estava sujo mesmo. Ele pediu mais água e com as pontas dos dedos molhados, passou um pouco pelos lábios diminutos. O instinto de sobrevivência era forte naquela criatura. Ele se mexeu com dificuldade e ensaiou uns gemidos. Mesi, então, mergulhou um pano na água fresca e deu para que o menino chupasse. Isso o reanimou. Zir olhava pasmo. Tinha quinze anos e nunca tinha visto um bebê antes, assim tão de perto. Mesi continuava a ralhar com ele, pedindo agora um pouco de leite. — Mas, senhor. Tudo que temos é um copo, nada mais. — Não discuta, garoto encardido. Pegue o que tiver. E traga o mel. — Não tem mel, senhor. — Ora! Pegue o que tiver! Mesi enrolou a criança num pano limpo, acomodou-se numa cadeira e continuou dando o pano embebido em água para que ele sugasse. Quando Zir trouxe o pouco leite que lhe restava, ele fez o mesmo com o líquido branco. Parecia que a vida retornava num passe de mágica e o menino sacudia com mais vigor os braços e pernas. Ensaiou um choro, mas era mais importante sugar o pano. Zir misturou um pouco de cerveja no leite. Mesi fez cara feia, mas era a única coisa que tinham por ali. E se o deserto não havia levado aquela criança para o mundo dos mortos, a mistura de cerveja e leite certamente não o faria. — É... Realmente temos aqui um batalhador. Vai me render boas moedas de prata. Talvez de ouro! — Vai vender o menino, senhor? — O que você esperava, imprestável? Que eu fique aqui como ama de leite? Se me oferecerem um bom preço ainda vou mandar você junto! Agora vá pegar os camelos! — Mas fui eu quem o encontrei, senhor! Mereço uma parte do dinheiro! — Ora, peste do deserto! Você merece porcaria nenhuma! Não serve para nada. Espero que o deus Seth lhe carregue para o inferno!
Zir disparou em direção aos camelos ao ouvir aquela blasfêmia. Rezaria para que a praga não lhe pegasse. Mesmo ainda sem entender uma palavra, aquela foi a primeira vez que o bebê sugador de panos ouviu falar no deus Seth, o soberano do ódio, inveja, guerra, desordem e do deserto.
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Mesi criou o garoto do deserto até que ele completasse dois anos. Teve certeza de que havia sido presenteado pelos deuses, pois o menino havia passado pelo seu primeiro ano. Muitas crianças morriam neste período, mas o seu sobrevivera o dobro! Era um investimento que valeria ouro, com certeza. Nem se preocupou em dar-lhe um nome. Simplesmente o chamava de “o garoto”. Planejava um bom lucro com ele, pois seu negócio de transporte com camelos servia apenas para viver o dia-a-dia. Seria bom armazenar umas moedas. Seus filhos já há muito tempo haviam esquecido de lhe ajudar. Zir, agora com dezessete anos, era o único filho que lhe restava, mas permanecia tão estúpido como sempre fora. O tempo passava e Zir não amadurecia nunca, as ideias não se organizavam em sua cabeça. Veio então, uma época de grande míngua de alimentos e Mesi perdeu alguns de seus camelos. Por isso, precisou vender o garoto por algumas moedas de bronze a um casal de comerciantes de quinquilharias. O ouro tão esperado não veio dessa vez, pois o menino ainda era muito novo. Os comerciantes precisavam de alguém com dedos finos para limpar as peças que vendiam, mas o menino não cumpria ordens, era arisco como felino. Quase um ano depois, Mesi aceitou-o de volta pois achava que poderia lucrar um pouco mais quando ele tivesse completado uns quatro anos. Até lá, ele poderia ir ficando junto aos cachorros.
Zir, o abobalhado de sempre, foi o único a comemorar a volta do garoto e prometeu desta vez dar-lhe um nome. Mas Zir pensava devagar e levou alguns meses para decidir como chamá-lo. — Você vai ganhar um nome hoje. Eu pensei em algo nesta manhã... Mas já me esqueci... Então – anunciou com olhar vago – vou te chamar de Zir, também. Mesi passava por perto naquele momento. — O que você está fazendo? — Estou dando um nome pro garoto... Mesi pensou. — Hum... Para quê? — Para podermos chamá-lo, pai. — Já falei para não me chamar assim, peste! Sou seu senhor, está me ouvindo? — Sim, senhor. — Idiota... – Mesi começou a ralhar com ele e no final voltou a perguntar – E qual foi o nome que você deu? — Zir. Mesi sacudiu a cabeça e gargalhou. Zir jamais teria conseguido chegar a outra conclusão que não fosse aquela. Era o único nome que conhecia – o seu próprio. Era capaz de se confundir com a própria sombra. Talvez nem o nome da cidade onde estavam lhe fosse familiar. Era um completo imbecil, afinal. Zir, o garoto, crescia com saúde. Tinha pernas fortes e troncudas. Estatura baixa, pele bronzeada, olhos levemente puxados e muito enigmáticos. Quase não falava, mas podia-se notar que entendia perfeitamente o que lhe era pedido. Novamente, Mesi viu que era chegada a hora de vendê-lo. Agora poderia negociar melhor. No mercado de Giza, a cidade das grandes pirâmides, comercializava-se até os próprios olhos. Se havia alguém para vender, com certeza encontraria seu par ideal para comprar. Mesi e os dois Zirs chegaram à feira livre por volta do horário do almoço. Homens e mulheres gritavam seus produtos, sacudiam as mãos, brigavam entre si. A mistura de cheiros era terrível, pois havia comidas fumegantes misturadas ao odor dos animais e suas fezes. Vendiam cachorros, macacos, serpentes, porcos, camelos, peixes vivos e mortos, aves variadas. Havia escravos, tecidos, ornamentos, condimentos, prata,
ouro, papiros, madeira, carroças, e qualquer coisa que se pudesse pensar em carregar de um lado para outro. A variedade de grãos era incontável. Havia também deuses de madeira, de pedra e de metal, esculpidos e dependurados por todos os lados: Anubis, Rá, Toth, Hórus, Hathor, Isis, Chu, Geb, Ptah, e tantos outros. Estavam todos à venda. Bustos do deus faraó Amenhotep eram mais caros. Mas Nefertiti, sua maravilhosa rainha, não podia ser comprada facilmente. Era cara demais, e portanto, desejada com o mesmo fervor. Com o valor de uma Nefertiti, podia-se comprar alguns escravos. E assim, Mesi achou um lugar apertado no centro daquele tumulto, cruzou os braços e aguardou, enquanto os dois Zir’s olhavam estupefatos as pirâmides que tomavam o horizonte. O garoto não conseguia piscar, pois o magnetismo daquelas formações o capturara para sempre. Algo dentro dele se manifestou e, mesmo ainda tão imaturo, prometeu a si mesmo que um dia conseguiria entrar e colocar suas mãos naquele local sagrado.
Capítulo 2 Quatro anos depois. Dia de chuva era algo a se comemorar. Era momento de parar tudo o que se estava fazendo para apreciar o milagre da água caindo do céu. Safiya já havia descrito como era engraçado ver os pingos vindos de lugar nenhum, enviados direto dos deuses. Eram lágrimas, alguém muito poderoso estava triste, mas para o povo do Egito, era alegria líquida. — Safiya! Água! A senhora com rosto redondo e bondoso veio correndo e abraçou o menino. — Eu te disse, Seth! Demorou, mas finalmente você pode ver! Corra! Vá se molhar! Aproveite enquanto pode. Safiya era uma vendedora de legumes, ervas e folhas verdes, simples e honesta. Trabalhava há muitos anos na tradicional feira de Giza. Cinco anos atrás, fora lá que encontrara o garoto, agora chamado Seth. Na época, o vendedor dissera ser Zir o seu nome. Era tão pequeno e tão adulto ao mesmo tempo. Aqueles olhos não demonstravam nenhum medo ou timidez. Ela o encarou de longe, naquele dia já distante, e ele sustentou seu olhar. Não trazia expressão, nem sentimentos. Não sorria e não chorava, fitando sua alma. Ele a lembrara de um príncipe, que havia visto fazia alguns anos, nobre, altivo, semi-divino. Um impulso contrário às suas regras pessoais, levou-a até o homem que o acompanhava, já não se lembrava mais do nome dele. O garoto estava à venda. Ele explicou que o havia encontrado no deserto, quase morto e cuidara dele. Mas como era muito pobre, não tinha condições de criar mais um filho. Foi por isso que Safyia dera-lhe o nome do deus do deserto, Seth. Era um deus obscuro e controverso, ela sabia disso, mas não pode evitar. Nomeou-o com o mesmo impulso da compra do garoto, sem lutar contra a força maior do que sua vontade. Safyia deixara com o mercador de crianças todas suas moedas. Pagara um preço absurdo, levando o lucro de suas próprias vendas de várias semanas. Entretanto, ela tinha boas economias. Seu marido havia morrido há pouco tempo e lhe deixara vários sacos de
dinheiro. Além do mais, os deuses não haviam enviado uma criança para o seu ventre, e agora ela entendera o porquê. Lá estava seu filho, na feira para ser comprado por qualquer um. Deixaria que ele fosse embora com outro egípcio? De jeito nenhum. Finalmente Thoeris, a deusa hipopótamo, dona dos poderes que trazem as crianças à vida, havia respondido suas preces. Algumas mulheres entravam em trabalho de parto, Safyia teria que pagar por isso. Passados alguns anos, Seth continuava pequeno em estatura, reservado e enigmático. Difícil entender o que se passava em sua mente. Mas Safiya o amava e cuidava dele com carinho. Havia certa retribuição, pois Seth só conseguia dormir direito quando se aninhava nela, como um filhote. Pouco falava e era muito trabalhador, desde tenra idade. A vida em Giza era boa. Por ser uma das maiores cidades, sempre tinha muita gente de passagem, que favorecia o comércio. A proximidade com Mênfis também era uma vantagem, visto que a família real exigia muitos dos bens vendidos por ali. A população usava o Nilo para várias atividades rotineiras tais como subsistência das moradias, construção civil, lavoura e pastagem. A plantação de ervas e folhas verdes de Safiya dependia totalmente do Nilo, e o grande rio nunca havia lhes negado nada. Agora estavam novamente em época de colheita e a matrona havia contratado alguns homens para ajudá-los no trabalho. Seth gostava de dar ordens à eles, que na sua maioria eram núbios simplórios que pareciam ter medo de seu olhar penetrante. Nesta manhã, logo após o início da labuta, todos haviam parado seus afazeres para observar a raríssima água que escorria das nuvens. Safiya abraçava Seth por trás e ele se deixava envolver pelo seu calor carinhoso. — Sabe de onde vem essa água, Seth? — Você me disse que eram lágrimas. — Isso mesmo. São de Ísis, pela perda de seu amado marido Osiris. — Foi Seth quem o matou, não foi? – murmurou ele, carrancudo. — Sim. — E por que você me deu o nome de quem matou Osiris?
— Ora, eu já te disse, meu pequeno. Foi a deusa Thoeris que sussurrou este nome no meu ouvido. Ela me levou até você. E além do mais, Seth é um deus poderoso, ele pode tudo! Seth, o menino, inflou o peito, orgulhoso. — Tudo? — Sim, e você deve honrar o nome dele. — Se eu quiser, posso até ser faraó? Safiya riu, divertindo-se com aquela longa conversa, algo tão raro vindo de seu filho. — Isso cabe aos deuses definirem, meu amor. — Você disse que eu quase morri no deserto, se me mantiveram vivo, é porque esperam algo de mim! — Hum, certo! Isso mesmo, meu pequeno! Nunca havia pensado nisso. Seth ficou mais sério que o normal ao fazer essa grande descoberta. — Safiya – ele nunca a chamava de mãe – não quero mais que me chame de “pequeno”. Aquilo a pegou de surpresa e como um relâmpago, sentiu um arrepio gelado na espinha percorrer suas costas de cima a baixo. Lá no céu, duas nuvens trombaram emitindo um som ensurdecedor. A chuva cessou de repente, assim como aquela conversa estranha. Safiya soltou Seth e disse simplesmente: — Claro, meu filho.
***** A semana passou rapidamente, pois os afazeres da colheita mal lhes deixavam tempo livre para fazer as refeições. Tudo que era colhido era verificado por Safiya, como um controle de qualidade, ensacado e etiquetado. Esta safra de ervas estava excelente. A diversidade de cheiros era maravilhosa. Safiya cheirava cuidadosamente todas elas e separava as medicinais das cosméticas. Os nobres e abastados eram ávidos consumidores
de produtos cosméticos para beleza, tais como óleos, unguentos, perfumes e pinturas para demonstrar sua limpeza e poder social. A maioria desses produtos precisava de ervas aromáticas na sua composição. Enquanto isso, Seth mandava e desmandava os núbios, que carregavam tudo de um lado para outro. Ele inspecionava os legumes, para ter certeza de que os homens não mastigariam toda sua produção. Batata e cenoura eram os carros-chefe. Tudo era encaixotado e ensacado para ser vendido na feira e atender as encomendas que já estavam agendadas. Uma noite, antes de dormir, Seth aproveitava a luminosidade da lua-cheia para contemplar suas amadas pirâmides. Podia vê-las de sua janela. Elas o seguiam por onde quer que ele estivesse e sempre podia sentir seu poder oculto. Sabia que elas o chamavam, e um dia, ele conseguiria entrar lá dentro. O que estaria guardado ali? Havia mil rumores, e ele sabia que encontraria o deus que emanava aquela radiação. Ainda fitando as formas gigantes no horizonte, pousou uma das mãos nos papiros de Safiya que indicavam as encomendas que ela deveria entregar no dia seguinte. Fechou os olhos e guiado pela força da pirâmide maior, Queops, sorteou um deles. Aqueles sinais não faziam o menor sentido. Gostaria muito de aprendê-los. Aliás, Seth andava aborrecido com o trabalho no pequeno sítio. A terra era boa, dava-lhes comida, mas era muito maçante e monótono. Ele queria mais! Como se tivesse lido seus pensamentos, Safiya apareceu silenciosamente e pegou o papiro da mão dele: — Quero que você vá fazer esta entrega aqui. Sabe onde é isso? Ele sacudiu a cabeça. Que idiota era ela? Não sabia que ele não podia ler? Precisava provocá-lo e lembrá-lo de sua ignorância? — É uma entrega em Mênfis! Quero que você veja por si mesmo a beleza daquele lugar. Mênfis! Seth arregalou os olhos e esboçou um sorriso. Como era difícil sorrir... — Obrigado, Safiya. — Você vai entregar várias sacas de ervas medicinais e aromáticas para um dos sacerdotes da “Casa da Cura”. Sabe o que isso significa, não? Ele negou, balançando a cabeça.
— Nosso deus faraó Amenhotep mantém em Mênfis uma de suas residências. Eu fui lá apenas uma vez. É um lugar imenso e divino, Seth. São vários edifícios, proibidos a todos nós, é claro. Mas pode-se enxergá-los do lado de fora. Tudo é brilhante e colorido. Repare nos tons de azul! Há azul por todas as partes... Pelo menos é o que eu me lembro... Safiya ficou perdida em suas lembranças, enquanto o coração de Seth vibrava como tambor em sua garganta. Mênfis! — Olhando as maravilhas do lado de fora, é impossível não imaginar como é por dentro. Lá, existem sacerdotes especiais, homens iniciados que conhecem os astros, sabem como calcular os ciclos de horas do Egito, sabem tudo sobre a magia... Magia? MAGIA?? A palavra causou uma explosão de desejos dentro de Seth. Um dos núbios havia lhe dito que apenas através destes mistérios ocultos podia-se conseguir tudo que se desejava. Ele nunca tinha ouvido falar nesta palavra... E mesmo assim, já havia ficado maravilhado. Agora Safiya o enviaria para um lugar onde existia m-a-g-i-a... Parecia que todas as células de seu corpo giravam em espiral, dando-lhe uma sensação de formigamento geral. — ... para o sacerdote. Entendeu? — ... — Seth, você entendeu? — ... sim, claro. — Então está bem. Não esqueça que você deve ir e voltar no mesmo dia, deverão fazer os camelos correrem tudo que puderem. Somente se tiverem problemas para atravessar o Nilo, voltem no dia seguinte. Mas eu prefiro ter você aqui o mais rápido possível. Ank e Barnab irão junto. Quando você tiver doze anos já poderá ir sozinho. Seth não dormiu naquela noite e montou um plano completo do que faria ao chegar em Mênfis. Rezou a noite toda para o seu deus homônimo, pedindo sua ajuda e prometendo o bem mais precioso que possuía.