Tese romaygarcia tensao ordem/desordem lugar posturas

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INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ROMAY CONDE GARCIA

TENSÃO ORDEM/DESORDEM, LUGAR E POSTURAS MUNICIPAIS NO LARGO DO MACHADO

ORIENTADOR: PROF. DR. IVALDO GONÇALVES DE LIMA

Niterói, 2012


ROMAY CONDE GARCIA

TENSÃO ORDEM/DESORDEM, LUGAR E POSTURAS MUNICIPAIS NO LARGO DO MACHADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Universidade

em

Geografia

Federal

da

Fluminense,

como requisito parcial para obtenção do

grau

de

doutor.

Área

de

concentração: Ordenamento Territorial.

Orientador: Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves de Lima

Niterói 2012



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Este trabalho é dedicado à memória dos mestres Alcides Rodrigues Redondo Carlos Nelson Ferreira dos Santos e Maurício de Almeida Abreu


4 AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à Rosanna, Joana e Beatriz. O doutorado exigiu muito de mim e de vocês, onde encontrei apoio, compreensão e sustentação. Superamos e construímos juntos. Também agradeço aos meus pais, irmãos, cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas.

Agradeço especialmente ao Programa de Pós Graduação de Geografia da UFF, que me acolheu dentro de um processo seletivo justo e me deu o suporte reflexivo e metodológico necessário. Desde a orientação rica de Ivaldo Lima às aulas de Ruy Moreira e aos comentários de Carlos Alberto Franco, Ester Limonad e Jorge Luiz Barbosa. Me orgulho de me formar neste ambiente!

Grande parte dessa pesquisa resultou de trabalhos realizados no Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM. Na impossibilidade de registrar o nome de tantos colegas sem incorrer em lapsos de memória, agradeço ao Paulo Timm e à Mara Biasi, superintendentes no período em que me dediquei às Posturas Municipais. Dedico este trabalho ao Alcides.

Agradeço também aos amigos da arquitetura e urbanismo, dentro e fora da UFF, Eduardo Vasconcellos, Elisabeth Reis, Maria Laís Pereira da Silva, Helia Nacif Xavier, Teresa Carvalho, Isabel Eiras de Oliveira e Sergio Bahia. Temos de ser rebeldes arquitetos e inquietos construtores! Carlos Nelson construiu mesmo quando “apenas” falou...

Agradeço ainda a ajuda da equipe da biblioteca do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, aos vereadores Eliomar Coelho e Andrea Gouvêa Vieira, ao colega Ivan Junqueira, ao IBGE que me acolheu e apoiou na finalização do doutorado, aos amigos de Niterói, tanto aqueles das mesas de bar quanto dos fóruns virtuais, aos camelôs e lojistas do Largo do Machado e, finalmente, aos garçons da Adega Portugália!


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Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas que anos a fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcável numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada se mudou para lá. Era como se em sua janela um projetor estivesse instalado e decompusesse a região com feixes de luz.

Walter Benjamin


6 RESUMO

No dia 19 de Abril de 2007, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro instaurou Comissão Parlamentar de Inquérito para “investigar as causas da crescente desordem urbana nos logradouros públicos do município”. Dois anos depois, a Prefeitura adotou em diversos pontos da cidade operações de caráter repressivo denominadas “Choque de Ordem”, visando a aplicação das Posturas Municipais - um conjunto de normas de caráter local que regulam especialmente o espaço destinado ao uso coletivo.

A contraposição, manifestada no discurso oficial, entre as tríades ordemlegalidade-normalidade e desordem-ilegalidade-irregularidade foi o ponto de partida para uma reflexão sobre a relação entre norma e lugar. Ou seja, como as Posturas Municipais, na forma como foram e vem sendo concebidas, instauradas e praticadas no Rio de Janeiro afetam, alteram, constrangem, interditam e favorecem as práticas cotidianas inerentes ao lugar, ao mesmo tempo que refletem as tensões do ordenamento territorial, que oscilam da apropriação à regulação; do espontâneo ao induzido e ao coagido; do concebido ao vivido.

Dessa premissa, resultou um estudo pautado na observação de campo onde busquei, entre a deriva e o flâneur, compreender como normas e mecanismos do Poder de Polícia podem ser revistos à luz dos conflitos que propagam e da desordem que julga combater. Ou seja, como ordem e desordem, antes de simples choque entre contrários, tornam-se forças construtoras da organização do lugar, enquanto locus do cotidiano, da multiplicidade e da diferenciação, em processo constante de mudança.


7 ABSTRACT

On April 19, 2007, the City Council of Rio de Janeiro established the Parliamentary Committee of Inquiry to "investigate the causes of the growing urban disorder in public places of the city." Two years later, the government adopted some repressive operations called "Shock of Order", aimed to implement the Municipality Laws - Posturas - a set of rules to regulate the space for collective use.

An opposition between the triads order-legality-normality and disorder-illegalityirregularity, expressed in the official discourse , was the starting point for a reflection about the relationship about norm and place. That is, how Municipality Laws, by the way it were created, introduced and practiced in Rio de Janeiro affect, change, constrict, interdict and encourage daily practices in the place, while reflect the tensions of territorial planning, from appropriation to regulation, from the spontaneous to the induced and the coerced, from planned to the experienced.

This study results from these ideas, guided by the perception of place, among dÊrive and flâneur, to understand how actions and principles of Posturas can be reviewed by the conflicts and by the "disorder". That is, as order and disorder, before simple confrontation between opposites, become forces that organize the place, while locus of daily and ordinary life, the multiplicity and differentiation, in a constant process of change.


8 SUMÁRIO I. Introdução.................................................................................................... 11 II. O Diabo e a Utopia: do Campanário à Calçada........................................ 17 1. (Des)Ordem em “Estado de Choque” ....................................................... 20 2. O Largo, o Bairro e a Ordem .................................................................... 24 3. Lugar e Cotidiano ..................................................................................... 31 4. Espaço Público, Espaço Coletivo e Logradouro ....................................... 36 5. O Urbanismo: Entre o Vivido e o Concebido ............................................ 41 III. (Des)Ordem entre o Lugar e o Mundo ..................................................... 53 1. A Filosofia e a (Des)Ordem ...................................................................... 57 2. A Ciência e a (Des)Ordem........................................................................ 61 3. (Des)Ordenando o Mundo ........................................................................ 70 IV. Do Poder Concelhio ao “Bota-Abaixo!”.................................................. 80 1. As Hordenaçõoes das Assembléias do Concelhio ................................... 81 2. O Primeiro Código de Posturas do Rio ..................................................... 89 3. Posturas nos Tempos do “Bota-Abaixo!” .................................................. 98 V. Posturas Hoje e o Choque de Ordem..................................................... 119 1. Do Legado de Passos às Novas Posturas.............................................. 119 2. Constituição de 88 e o Poder de Polícia no Município............................ 129 3. Posturas e o Discurso de Ordem............................................................ 147 VI. Largo do Machado: o Lugar Muito Além das Posturas ....................... 154 1. Percepções entre a Deriva e o Flâneur .................................................. 158 2. Posturas da Ordem e da Desordem ....................................................... 174 VII. Conclusões............................................................................................. 190 Referências Bibliográficas .......................................................................... 197 Legislação................................................................................................... 197 Bibliografia .................................................................................................. 200 Anexo I - Largo do Machado: Localização ................................................. 213 Anexo II - Decreto 29.881 de 2/09/08: Sumário do Regulamento no 2...... 214 Anexo III - Decreto 29.881 de 2/09/08: Taxas do Regulamento no 2 ......... 216 Anexo IV - Largo do Machado: Logradouros e Edifícios .......................... 218 Anexo V - Largo do Machado: Mobiliário e Equipamentos Urbanos....... 219 Anexo VI - SIG de Apoio: Atividades e Estabelecimentos........................ 220


9 LISTA DE FIGURAS E QUADROS Figura 1: Igreja Matriz de N.S. Glória ............................................................... 17 Figura 2: Largo do Machado e centros dos bairros de entorno. ....................... 27 Figura 3: Cartaz da campanha por aumento salarial dos fiscais de posturas .. 48 Figura 4: Escher - Order & Chaos (1950)......................................................... 53 Figura 5: Magritte - La Trahison des Images (1929) ........................................ 55 Figura 6: Escher - Heaven and Hell IV – Circle Limits (1960) .......................... 78 Figura 7: Ordenações Afonsinas, Livro I - Título XXVII, p.174. ........................ 83 Figura 8: Ordenações Manuelinas, Livro I - Título XLVI, 28............................. 83 Quadro I - Estrutura do Código de Posturas de 1838 ...................................... 91 Quadro II - Estrutura da Consolidação das Leis e Posturas 1905.................. 105 Figuras 9, 10 e 11: Ambulantes do Rio de Janeiro, de Marc Ferrez. ............. 109 Figuras 12 e 13: Praça XV de Novembro em 1870 e em 1911. ..................... 117 Quadro III - Regulamentos da Consolidação das Posturas Municipais de 1976 ....................................................................................................................... 126 Quadro IV - Descrição da Iniciativa Estratégica de “Ações de Ordenamento”135 Quadro V - Regulamentos da Consolidação das Posturas Municipais de 2008 ....................................................................................................................... 140 Tabela I - Diferentes valores de multas segundo atividade fiscalizada .......... 144 Figuras 14 e 15: Choque de Ordem e Apreensão de Mercadorias ................ 145 Figuras 16, 17 e 18: conflitos entre Guarda Municipal e camelôs .................. 146 Figura 19: Giuliani no Rio, sob olhar atento de Paes. .................................... 152 Figura 20. Lambe-Lambe no Largo do Machado. .......................................... 155 Figura 21: Largo do Machado, Logradouros, Edificações e Limites Referenciais. ....................................................................................................................... 157 Figura 22: Largo do Machado e mobiliário e equipamentos urbanos mais significativos - Fonte: cartograma do autor..................................................... 160 Figura 23: Descanso no Banco ...................................................................... 161 Figura 24: Parquinho...................................................................................... 161 Figura 25: Feira de Sábado............................................................................ 162 Figura 26: Estação de Metrô .......................................................................... 162 Figura 27: Academia da Terceira Idade ......................................................... 162 Figura 28: Jogo de Carteado.......................................................................... 162 Figura 29: Carrocinha de Ambulante.............................................................. 162


10 Figura 30: Desfile de Modas........................................................................... 162 Figura 31: Teatro de Rua ............................................................................... 163 Figura 32: Feira de Artesanato....................................................................... 163 Figura 33. Largo do Machado, situação entre 1954 e 1995. .......................... 163 Figura 34: Chafariz e escultura de Canova .................................................... 164 Figura 35: “Puxadinho” sobre Calçada........................................................... 165 Figura 36: Mesas sobre Calçada.................................................................... 165 Figura 37: Galeria Condor.............................................................................. 166 Figura 38: Trânsito no Largo .......................................................................... 166 Figuras 39, 40 e 41: Movimento nas proximidades da Galeria Condor.......... 167 Figuras 42, 43 e 44: Galerias Condor, Metropolitan e São Luiz. .................... 168 Figura 45: Chalé Shopping............................................................................. 169 Figura 46: Barracas na rua do Catete ............................................................ 169 Figura 47: Galeria São Luís............................................................................ 170 Figura 48: Barracas regularizadas ................................................................. 170 Figura 49: Bastidores - muro da Secretaria de Obras, rua I. Bornhausen...... 171 Figura 50: Bastidores - “Puxadinho” em terreno do Metrô cedido ao Detran . 171 Figura 51: Casa Realce.................................................................................. 172 Figura 52: Colégio Amaro Cavalcante............................................................ 172 Figuras 53 e 54: Artistas de rua ..................................................................... 173 Figura 55: Cartograma de Atividades e Estabelecimentos no Largo do Machado ....................................................................................................................... 175 Figura 56: Vendedor de frutas regularizado: “se vale pra mim, vale pra todos!” ....................................................................................................................... 182 Figura 57: Uma brincadeira de gato e rato ..................................................... 189


11 I. INTRODUÇÃO

Como arquiteto-urbanista por várias vezes me senti comprometido com a ordem. Como projetar, conceber, desenhar e construir espaços sem partir de um princípio ordenador? No urbanismo, por mais flexíveis que sejam os projetos, por mais participativos que sejam os debates, como implementar o concebido sem cair na tentação de ajustar/regular o vivido? E como negar que tal tentação, na verdade, também atende à commande social das forças políticas e econômicas que produzem o espaço urbano?1.

Da primeira vez que trabalhei na revisão de um Código de Posturas, em São Luís do Maranhão, senti-me como o arquiteto-urbanista regulador. Pouco conhecia sobre Posturas, polícia administrativa, licença, autorização, auto de infração, empachamento, sanções (exceto aquelas relacionadas ao projeto e construção de edificações) e fui aprendendo nas ruas, nas feiras e mercados, nas repartições públicas ou acompanhando ações de fiscalização. Foi quando percebi que a mais “desordenada” feira nordestina podia ser também o mais “ordenado” dos espaços. Normas não escritas poderiam ser até mais restritivas que as Posturas - mesmo quando as desobedecem - e o mais programático regulamento poderia produzir desordens e perturbações. Elaborei a proposta de Código de Posturas para São Luís e depois, para várias outras cidades, buscando preservar sempre que possível uma outra ordem, conforme o pensamento de Jacobs: “Sob a aparente desordem da cidade tradicional existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança.” (JACOBS, 2003, p.52)

Identifiquei na contradição/oposição entre ordem e desordem um tema que deveria ser estudado com maior aprofundamento, especialmente quando tal discussão se dá em relação ao espaço urbano e, mais precisamente, ao 1

Cf. Lefebvre, 1999, p.139. Abordagem será discutida mais diante.


12 espaço público. Com tal enfoque definido, busquei na geografia o aporte tanto metodológico quanto conceitual para empreender o estudo das Posturas Municipais e suas implicações no uso público dos logradouros da cidade.

O primeiro recorte que fiz foi definir o lugar como a categoria geográfica de estudo. E por que o lugar? Porque o lugar é o cenário imediato das relações cotidianas afetadas diretamente pela regulação das Posturas e traz consigo a diferenciação espacial que se confronta com a totalidade e a isonomia pretendidas pela norma que se volta para toda a cidade. O lugar dá ainda visibilidade às questões mais objetivas relacionadas ao espaço público, enquanto arena política onde colidem o vivido e o concebido, a ordem e a desordem, o legal e o ilegal. Mesmo quando oscilei da cidade ao bairro, do bairro ao logradouro, do espaço urbano ao espaço público - porque tais categorias, de um modo ou de outro, são evocadas ao estudar o ordenamento e o arranjo espacial em questão - procurei fazê-lo sem se distanciar da dimensão do espaço vivido e percebido, devidamente ancorado no conceito de lugar.

De algumas perspectivas para o lugar na geografia recente, estive mais diretamente envolvido com a de Yi-Fu Tuan, que partiu da relação de pertencimento e de identidade (de certa forma um processo de ordenamento) espacial. Também me identifiquei com outras duas visões: a de Doreen Massey - do lugar enquanto eventualidade e permanente devir - e de Milton Santos - do lugar como horizontalidade e verticalidade, inclusão e exclusão.

O Largo do Machado se encaixou assim, como o lugar da pesquisa e enquanto espaço percebido e vivenciado, onde foi possível observar as normas vigentes, mais precisamente o Choque de Ordem, dentro de um processo constante de observação e interação. Vale destacar que apesar da importância do Largo do Machado para a pesquisa, não pretendi conduzi-lo ao patamar de objeto central da tese. Este papel coube, inicialmente à contradição e posteriormente à tensão entre ordem e desordem produzidas pelas Posturas no Rio de Janeiro.


13 A substituição da idéia de contradição pela de tensão foi realizada durante a pesquisa, na medida que avancei na reflexão sobre os conceitos de ordem e desordem. Neste processo, utilizei o pensamento de filósofos como Platão, Nietzsche, Marx, Bergson, Foucault, Conche e Comte-Sponville, as críticas de Lefebvre ao ordenamento urbanístico e, do ponto de vista epistemológico, de Morin, de quem tomei os conceitos de complexidade e de par dialógico para compreender a relação ordem-desordem para além do simples antagonismo e reavaliar o cotidiano e o lugar como um todo organizado a partir de colisões, interdependências, compromissos, casualidades, rotinas e vínculos dos mais diversos e plurais.

O tema ordem/desordem acabou abrindo muitas janelas que eu não poderia atravessar sem colocar em risco o mínimo de objetividade necessário à conclusão da tese. Foi assim que tive de relegar para um momento posterior a discussão sobre ordem/desordem na arquitetura - que inevitavelmente desembocaria para uma discussão da ordem/desordem na arte. Sacrifício em prol do aprofundamento que cada tema exige e o tempo impõe.

Parti então para enfrentar meu demônio ordenador e entender (superar talvez) a

tensão

entre

ordem-desordem,

entre

o

concebido/planejado

e

o

vivido/espontâneo nas ruas, a partir das regulações urbanísticas das Posturas. Como estas somente são perceptíveis na escala e na vivência do lugar, o Rio de Janeiro e o Largo do Machado surgiram como recorte espacial oportuno, um vez que a Prefeitura, com amplo respaldo da mídia, lançou-se numa campanha ostensiva de ordenamento dos logradouros que não somente resgatou as Posturas de um certo ostracismo cativo dos interesses tributários, como transformou, substancialmente, o próprio poder de polícia municipal. Um cenário que classifico como preocupante.

No decorrer do estudo, que se realizou ao longo desses últimos quatro anos, não me pautei por uma metodologia mais rigorosa de análise: apenas busquei perceber o lugar, as práticas, os sujeitos; conversei com as pessoas e pesquisei a legislação. Para as observações de campo, alternei a imersão do flâneur, inspirado nas crônicas de João do Rio e nas narrativas de Walter


14 Benjamin, com a deriva proposta pelos Situacionistas. Procurei propositalmente não me comprometer com um método mais rigoroso de investigação e análise que inibisse a minha percepção, o aleatório e o inesperado.

Reconheço que para muitas questões levantadas não encontrei a resposta satisfatória e talvez nem exista. Admito que na forma como as Posturas Municipais foram e são concebidas e executadas no Rio de Janeiro grande parte do problema decorre de uma certa tradição de poder local, peculiar à cidade, que constrói uma institucionalidade e um discurso que já foram evocados outras vezes, com propósitos não muito distintos.

A tese que ora apresento foi estruturada em cinco capítulos, desenvolvidos sequëncialmente ao longo do tempo. O Capítulo I - O Diabo e a Utopia: do Campanário à Calçada; tratou de uma primeira aproximação perceptiva do que poderia ser ordem/desordem no lugar e resgatou minhas motivações iniciais em relação ao tema. Trouxe a idéia, em estado bruto, do que seria estudado. Por isso as conceituações preliminares de lugar, cotidiano, logradouro, espaço público, espaço coletivo e o papel do urbanismo.

O capítulo II - (Des)Ordem entre o Lugar e o Mundo; contém uma investigação sobre ordem/desordem na filosofia, na ciência, na geografia e no exercício do poder político das cidades. Interessou-me especialmente o discurso de valorização da ordem em detrimento da desordem - uma espécie de apropriação moral que serviu, escondeu e disfarçou medidas de controle político e de ordem pública. Duas questões centrais nortearam a reflexão: se “a desordem é uma ordem que exige uma leitura mais atenta”, como afirmou Carlos Nelson Ferreira dos Santos, então não há lugar para desordem? E por que, como afirmou Bergson, a ordem é o espírito reencontrando-se nas coisas? Parti de um quadro de Escher - Order and Chaos, passei pela tradição judaicocristã, pelo pensamento platônico, pelo iluminismo, pelo idealismo, pela fenomenologia, pelo materialismo dialético, pela inversão do platonismo e cheguei a outro quadro de Escher - Heaven and Hell, numa trajetória de construção de sentido e compreensão dos discursos.


15 O capítulo III - Do Poder Concelhio ao “Bota-Abaixo!” contém uma trajetória das Posturas enquanto expressão da autonomia do poder local, desde a formação do estado português às reformas urbanas no Rio de Janeiro, identificando cenários institucionais do poder de polícia, os discursos legitimadores do ordenamento espacial, das Ordenações Afonsinas ao Código de Posturas de 1838, deste à grande Consolidação realizada em 1904. Nesse processo é possível perceber a construção de certa noção de ordem pública, a partir dos interesses das elites e através de ações da Intendência e da Prefeitura, pela fiscalização, pelo licenciamento, pela tributação e pelo urbanismo.

As análises dos capítulos II e III convergem no capítulo IV - Posturas Hoje e o Choque de Ordem; para o cenário da política de Posturas praticada mais recentemente no Rio de Janeiro. De um lado, uma cultura institucional e normativa erguida a partir de um processo de controle do espaço urbano, que busca esconder, eliminar ou enquadrar o contra-espaço. De outro, a preparação do espaço urbano para mais uma supervalorização do capital (principalmente imobiliário, mas não somente) orientada segundo a lógica da globalização, dos megaeventos e da paisagem enquanto mercadoria. Tanto a cobrança feita pelos meios de comunicação contra a “desordem” quanto o discurso e medidas de ordem realizadas pela Prefeitura têm características geográficas e históricas muito nítidas. É neste confronto entre valor de troca e valor de uso, espaço concebido e vivido que analiso o Choque de Ordem de uma maneira geral no capítulo IV e no Largo do Machado no Capítulo V.

A partir do Capítulo IV vou elaborando, aos poucos, a conclusão do estudo, que no Capítulo V - Largo do Machado: o Lugar Muito Além das Posturas; confronta o cotidiano e a (des)ordem do lugar com a (des)ordem imposta pelas ações de Posturas. Como antecipei, o Largo do Machado surge aqui como espaço vivido onde se realizava, efetivamente, a implantação do Choque de Ordem. Não duvido que outros lugares da cidade oferecessem condições até mais interessantes para observações, como o Largo da Carioca ou Calçadão de Copacabana que, assim como outros, também foram objeto da política de ordenamento pelas Posturas. Contudo, não poderia tratá-los com a mesma propriedade, a partir da experiência cotidiana. Era preciso interagir, tropeçar


16 nas pessoas, vivenciar a fuga de camelôs pelas calçadas, conhecer lugar o suficiente para examiná-lo à contrapelo, identificar suas (des)ordens para além das normas concebidas.

E assim, o estudo começa e termina numa relação empírica com a rua, na experiência (des)ordenada do cotidiano. Também começa e termina com Escher e seu quadro Order & Chaos, numa reflexão teórica entre contrários complementares, reflexos, parte e todo. Um trabalho que me proporcionou grande prazer em realizá-lo, seja na rua, na biblioteca, ou na universidade. Mais do que um estudo acadêmico, um ensaio sobre a minha percepção de lugar em conflito com meu demônio ordenador.


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II. O DIABO E A UTOPIA: DO CAMPANÁRIO À CALÇADA

Figura 1: Igreja Matriz de N.S. Glória Arquivo do Autor2.

Do alto do campanário da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória observo o Largo do Machado. As árvores bloqueiam a visão de boa parte do logradouro: prefiro pensar que não se trata exatamente de um panóptico e sim de uma varanda com vista diferenciada que inspira reflexões sobre o lugar. Lá embaixo, percebo fluxos que se repetem quase que diariamente ao ponto de parecem fixados ao lugar e à sua dinâmica. Percebo também objetos cuja transitoriedade altera constantemente a configuração da praça. Fixos que fluem e fluxos que se fixam (SANTOS, 2007, p.142)3.

No conto de Poe, Vondervotteimittiss é um lugarejo ordenado e plano, onde as casas são precisamente idênticas, no jardim, na arquitetura e no mobiliário, 2

Todas as fotos registradas como “do arquivo do autor” são de minha autoria. Embora Milton Santos num momento posterior tenha adotado outro par de categorias sistema de objetos e sistema de ações (SANTOS, 1996, p.50) - entendo que a análise sistêmica proposta é distinta da, e de certo modo, complementar àquela que o conjunto de fixos e fluxos oferece para se trabalhar o espaço, mais precisamente o lugar.

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18 onde os aldeões que se vestem da mesma maneira, comem o mesmo chucrute e fumam cachimbos iguais e onde vivia-se na mais perfeita ordem, com hábitos rigorosamente regidos pelo relógio situado no campanário do Conselho Municipal. Um demônio se instala no campanário e instaura a desordem com uma simples badalada a mais. Imagino o que mudaria no Largo do Machado se alterasse o número de badaladas do relógio da Igreja ao meio dia? Que desordem se instauraria? Quem perceberia uma badalada a mais em meio ao ruído constante dos carros e dos ônibus, dos alto-falantes de propaganda política ou da perfuratriz pneumática? Ou ainda, quem alteraria sua rotina em decorrência de uma badalada a mais no relógio da igreja? Ainda assim, percebe-se regularidade, fixidez e repetição em meio ao intenso movimento do Largo. Regularidade no pedido de esmola do cego, na disposição das bancas de camelôs, na roda de sueca dos velhos, no namoro dos estudantes ou no trajeto do entregador de quentinhas.

Vejo aqui um grande campo de reflexão e pesquisa envolvendo os conceitos de lugar e de cotidiano, especialmente quando estes conceitos colidem ou dialogam com práticas urbanísticas de planejamento, gestão e regulação do espaço público, resultando numa tensão entre ordem e desordem.

Essa tensão entre ordem e desordem decorre ainda de algumas relações aparentemente conflitantes ou contraditórias que se dão no espaço público, formando pares normalmente entendidos como dicotômicos:

regular/irregular; legal/ilegal; formal/informal: confronto entre as normas e leis que formam o conjunto das Posturas Municipais e estabelecem princípios básicos de ordenamento das práticas cotidianas em espaço público ou ainda que condicionam o exercício de direitos individuais segundo uma definição prévia de interesse coletivo e bem-estar social; ordenado/desordenado;

organizado/desorganizado:

conflito

que

se

verifica mais ou menos intenso conforme a percepção de diferentes sujeitos

(trato

arquiteto/urbanista

aqui

mais

que

especificamente

incluiria

ainda

da o

percepção par

do

dicotômico


19 planejado/espontâneo ou concebido/vivido) em relação a um certo ideal de ordem.

Observando o Largo do Machado do alto do campanário da Igreja, penso no conto de Poe e identifico semelhanças entre a descrição de Vondervotteimittiss com Amaurota de Morus, especialmente na periodização do cotidiano e no aproveitamento do tempo. Como se o diabo de Poe tomasse as trombetas do palácio dos sifograntes e desregulasse o cotidiano de Utopia. Porém há algo mais nesta relação que chama a atenção do urbanista tenso entre a ordem e a desordem no espaço público: as duas narrativas também trazem a preocupação com a regularidade das ruas e quadras, com a distribuição harmônica e simétrica dos edifícios e espaços públicos.

A tentação de associar a Utopia a um paradigma de ordenação urbana é grande. Contudo, Barbosa lembra que

“Morus não pode ser interpretado como matriz de paraísos dirigidos. Utopos, criador do plano geral das cidades, não conclui as construções e embelezamentos, sendo sábio o suficiente para entregar às gerações futuras o trabalho de continuidade e aperfeiçoamento de sua obra” (BARBOSA, 2003, p.40). De fato, o trabalho de planejamento de Utopos não está acabado: seria uma construção coletiva que transcende o desenho urbano e ao plano estéticoedilício. Parece-me que o espaço urbano em Utopia é produto de um processo de auto-regulação via costumes, ao ponto das leis serem em número bastante reduzido. (MORUS, 1972, p.273).

De certo modo, o papel desempenhado por Utopos foi o prover o sistema urbano de Utopia (através de legislação e de plano urbanístico) das condições iniciais necessárias ao seu “funcionamento” visando “o desenvolvimento da vida de sujeitos (individuais e coletivos) autônomos e ativos” (BARBOSA, op.cit., p.41). Morus faz da razão o princípio norteador da base social e política de Utopia. É a razão que norteará, desde de então, as relações sociais que se traduzem ao longo do tempo em costumes que regulam o cotidiano. Daí não


20 haver tensões (mesmo com a presença de escravos, clero e magistrados que indica a existência de diferenças sociais e hierarquia) uma vez que foram devidamente superadas pelos costumes. As tensões, assim como as guerras, se dão fora de Utopia.

O urbanismo também se institui a partir de uma forte aposta da razão... mais do que isso: distancia-se de uma arte em busca de uma ciência, que por mais se assuma complexa assumiu os mesmos pressupostos de simplicidade, de estabilidade e de objetividade do paradigma tradicional científico, conforme sintetizado por Vasconcellos (2002, p.69). Até que ponto a razão pode estabelecer as condições iniciais da vida coletiva para que os costumes regulem o cotidiano sem tensões, ao ponto de ordem e desordem se anularem e/ou complementarem?

1. (Des)Ordem em “Estado de Choque”

No dia 19 de Abril de 2007, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro instaurou Comissão Parlamentar de Inquérito para “investigar as causas da crescente desordem urbana nos logradouros públicos do município”. A CPI da Desordem Urbana vem a reboque da série de reportagens do jornal O Globo, denominada “Ilegal. E daí?” que durante semanas deu destaque a toda sorte de mazelas da metrópole: estacionamento irregular, ocupação irregular de passeios, terrenos, praias e encostas, comércio informal, construções irregulares, transporte informal, lixo nas ruas, enfim: a cultura do “jeitinho brasileiro” que estaria levando a cidade ao caos. Segundo matéria de O Globo (27/04/07) a CPI pretende cobrar responsabilidades e exigir soluções: “por que os problemas acontecem? Como corrigi-los? Quem é o responsável? Como educar a população?”.

Minha pesquisa em Geografia parte de uma experiência profissional adquirida no Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM nos últimos dez anos. Neste período foi possível avaliar, revisar e elaborar leis e regulamentos de ordenamento urbano, revisar processos de trabalho e medidas de atuação das Prefeituras nos municípios de São Luís (MA), Manaus (AM), Macapá (AP),


21 Arapiraca (AL), Blumenau (SC), Mogi das Cruzes e Santa Fé do Sul (SP), Colombo e Campina Grande do Sul (PR), Macaé, Piraí e Nilópolis (RJ) e Natal (RN). O que inicialmente tomei por uma crise no exercício do poder de polícia municipal, posteriormente revelou-se produto de uma tensão interna do próprio urbanismo em relação à ordem e à desordem, entendidas apenas como dicotomia e antagonismo e não como um par dialógico.

Recentes correntes filosóficas e científicas que investigam a complexidade entendem a relação ordem/desordem como estados complementares e concorrentes. Tal concepção remete a uma reflexão do papel do urbanismo diante do que se convencionou chamar de desordem e da sua prevenção, eliminação

ou

redução

da

possibilidade

de

ocorrência

através

da

proposição/instauração de uma ordem, consubstanciada num plano, num projeto ou numa norma.

Há ainda o compromisso do urbanismo com a ciência. Seja o urbanismo que se institucionalizou no final do Século XIX com evidentes pretensões científicas subsidiadas pelo utilitarismo, pela medicina social e pela economia política. Destacam-se no período as contribuições de Eugene Hennard e Ildefonso Cerdà. A Teoria de La Urbanización, de Cerdà, por exemplo, volta-se para uma “fisiologia” e “funcionomia” urbanas. Com isso, não somente busca um rompimento com a Arte Urbana como aproxima-se da Biologia e da Medicina Social. Tal aproximação de modo algum é inédita. Antes já havia ressaltado a influência de Hipócrates em De Architectura. Mais adiante, o compromisso científico do urbanismo mudará levemente seu eixo para as vertentes das ciências humanas, com importantes contribuições da sociologia e da antropologia. Foi seguindo esta linha que o urbanista Carlos Nelson dos Santos, analisando a questão das favelas do Rio de Janeiro escreveu que “a desordem é uma ordem que exige uma leitura mais atenta”. (dos SANTOS, 1982) e elimina a desordem do cenário da cidade. Tudo passa a ser inteligível dependendo do método usado para a percepção do problema.

No entanto, a discussão está longe de um termo. O filósofo Marcel Conche afirma que “a ordem não passa de um caso particular da desordem”, pois


22 acredita numa “desordem criadora” que recusa a ordem estabelecida e a transforma (CONCHE, 2000). Nesta ótica, a desordem predominaria e a ordem seria apenas uma pequena parcela inteligível do real. Já para Edgar Morin ordem e desordem formam um par dialógico explicado desde a escala cósmica, onde a desordem aparece como uma “desigualdade multiforme” que se dispersa e multiplica, desde o bigbang:

“E esta impressionante práxis das desordens misturadas (pois desigualdades, turbulências, agitações, encontros aleatórios, etc., são formas de desordem) é a usina cósmica da ordem e da organização, inseparáveis, compreende-se agora, de uma formidável e geral dispersão, inseparáveis de um desperdício fabuloso...” (MORIN, 2005a, p.70) Ao propor estudar a tensão entre ordem e desordem dentro do urbanismo através de seus mecanismos de regulação do cotidiano e dos lugares, busco uma “saída” para superar um antagonismo histórico do pensamento urbanístico racionalista, criticado por vários pensadores e correntes, como o Movimento Situacionista:

“Os racionalistas funcionalistas, por causa da homogeneização, imaginaram que só se pode alcançar formas definitivas, ideais, de diferentes objetos que interessam ao homem. A evolução hoje mostra que esta concepção estática estava errada. (...) A falha dos racionalistas foi não ter compreendido que a única maneira de se evitar a anarquia da transformação consiste em entender suas leis internas e utilizar-se delas.” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, Potlach n15, 1959.) Lefebvre foi tão contundente em sua crítica quanto os Situacionistas, dos quais esteve

muito

próximo.

Considero

seu

pensamento

chave

para

a

fundamentação teórica de uma proposta baseada em momentos ou situações, conforme destacarei mais adiante.

No momento,

vale

ressaltar seu

posicionamento crítico em relação ao urbanismo racionalista, no qual identificou uma ilusão:

“Os urbanistas parecem ignorar ou desconhecer que eles próprios figuram nas relações de produção, que cumprem ordens. Executam


23 quando acreditam comandar o espaço. Obedecem a uma commande social que não concerne a este ou aquele objeto, mas a este ou aquele produto (mercadoria), mas a um objeto global, este produto supremo, este último objeto de troca: o espaço.” (LEFEBVRE, 1999, p.139.) A tensão entre ordem e desordem foi ainda observada por Harvey, que ao defender o arquiteto rebelde que se presta à causa de “mudar o mundo”, identificou (sem citar a palavra urbanismo) como um de seus principais desafios:

“Mas também temos de decidir – construir a estrada, a fábrica, as casas, o parque de diversões, o muro, o espaço aberto... E toda a decisão, uma vez tomada, impede ao menos por um tempo que se concretizem outras possibilidades. As decisões trazem em si suas próprias determinações, seus próprios fechamentos, sua própria carga autoritária. A práxis envolve intrinsecamente enfrentar a dialética em sua forma “ou-isso-ou-aquilo”, em vez de na forma transcendente “tanto-isso-como-aquilo”. A dialética sempre apresenta seus momentos existenciais” (HARVEY, 2000, p.308) A referência ao arquiteto rebelde de Harvey remete às minhas motivações pessoais em relação ao tema, pois enquanto consultor contratado por prefeituras raramente tive a oportunidade de construir ou desenvolver a solução que julguei mais adequada para o Código de Posturas e para a regulação dos usos e práticas urbanas em logradouros e estabelecimentos. Esta frustração decorre primeiramente dos papéis que o conhecimento técnico acaba desempenhando nos trabalhos de consultoria: ao mesmo tempo de mercadoria e de instrumento de governo, tal como bem destacou Lefebvre: commande social.

Tais experiências, todavia, viabilizaram um processo de interação que considero bastante rico com diferentes práticas cotidianas, grupos sociais e mecanismos de regulação (formais e informais, escritos ou não) que consubstanciam certo de sistema de ações (Santos, 1996) do espaço urbano e, mais precisamente, do lugar. Em cada um dos municípios visitados as observações de campo, entrevistas realizadas e as análises da legislação vigente e dos processos institucionais de controle e regulação instaurados


24 foram registradas em relatórios. Hoje, tento reunir esta experiência profissional com outra, vivencial, num espaço mais familiar e onde desempenho outros papéis além do urbanista: o Largo do Machado.

2. O Largo, o Bairro e a Ordem

Uma encruzilhada movimentada cercada de permanência e repetição, onde as pessoas param e andam, param de novo e andam de novo. E correm! Correm para aproveitar o sinal que pisca. Correm para pegar o ônibus e o metrô. Correm para não se atrasar algum compromisso ou consulta. Correm do rapa. E param por um tempo... para jogar sueca, para tomar um chope, comer uma esfirra ou churrasquinho. Para ouvir índios tocar Beatles ao estilo dos Andes. Para vender e comprar. Para trabalhar na loja, no escritório, no consultório ou na rua mesmo. Param diante da estátua viva, que está ali, paradinha perto da carrocinha de churros. Param diante da ópera que passa na televisão da locadora. E esperam o ônibus, o namorado, a amiga ou simplesmente o tempo passar. Parece que tudo que para é passageiro e todo passageiro para pelo Largo do Machado.

Até a arquitetura se “move”, altera, renova, monta e desmonta. Os tapumes sobem e descem: a obra não para nunca. A feira monta e desmonta duas, três vezes por semana. Tem cheiro de flores, de acarajé, de milho verde, de pipoca. Nos sábados tem cheiro de peixe, de pastel, de caldo de cana e de frutas fresquinhas. Cheiro que vem e que passa, como a música. O Largo do Machado tem xaxado e tem forró, mas tem também funk, tem samba, tem axé e tem música romântica tocando alto na radiola do boteco. E tocam os sinos da Igreja, se o diabo não chegar ao campanário.

E tem gente que mora ali. Nos apartamentos de alguns prédios, nos bancos do Largo ou debaixo das marquises. Mas não se caracteriza exatamente pelo morar e mais pelo parar e passar. Um lugar bem definido em meio a limites indefinidos de bairros. Quero dizer, os limites estão traçados no mapa da Prefeitura e descritos na lei. Mas quem os vê assim? Será que importa mesmo saber onde começam ou terminam os bairros do Catete, do Flamengo ou de


25 Laranjeiras? Ser ou estar precisa necessariamente de início e fim? Afinal, seria o Largo do Machado um bairro?4

Figura 1: Largo do Machado, área de estudo e divisões de bairros. Fonte: cartograma elaborado pelo autor.

As definições de bairro, na maioria das vezes, remetem ao lugar de residência ou moradia. Para Segadas Soares, citado na introdução do documento “Bairros do Rio de Janeiro”5, a noção de bairro “se baseia num sentimento coletivo dos habitantes, que têm a consciência de morarem em tal ou qual bairro”. E ressalva:

“Apesar da administração municipal se aproveitar muitas vezes dessa noção para com ela rotular as circunscrições administrativas em que a cidade está dividida, não há, na maioria das vezes, coincidência entre a noção popular de bairros e as pequenas unidades administrativas ou fiscais” (SOARES, 1962 apud Bairros do Rio de Janeiro - SEPLAN, 1981, p.15).

4 A Prefeitura do Rio reconhece oficialmente os bairros da Praça da Bandeira e da Praça Seca, mas não considera bairro o “Bairro de Fátima” na área central ou o “Bairro Jabour” na Zona Oeste. 5

A denominação; delimitação e codificação dos bairros do Rio de Janeiro foram estabelecidas pelo Decreto Nº 3158, de 23 de julho de 1981 com alterações do Decreto Nº 5280 de 23 de agosto de 1985, além de várias alterações pontuais como a criação de novas Regiões Administrativas.


26

O bairro definido segundo uma relação de identidade, construída pela sensação de pertencimento relacionada ao morar – minha casa, minha rua, meu bairro - também foi destacada por Mayol, em trabalho orientado por de Certeau, onde se enfatiza também o caminhar:

“O bairro surge como o domínio onde a relação espaço/tempo é a mais favorável para um usuário que deseja deslocar-se por ele a pé saindo de sua casa. Por conseguinte, é o pedaço de cidade atravessado por um limite distinguindo o espaço privado do espaço público: é o que resulta de uma caminhada, da sucessão de passos numa calçada, pouco a pouco significada pelo seu vínculo orgânico com a residência.” (MAYOL, 2008, p. 41). Yi-Fu Tuan também relaciona o conceito de bairro à moradia. Preocupado com a distinção de limites dessas compartimentações urbanas, Tuan lembra que “as palavras "bairro" e "distrito" tendem a evocar na mente dos estranhos imagens de formas geométricas simples, quando de fato os canais de atos amistosos, que definem o bairro podem ser extremamente complexos e variam entre os pequenos grupos que vivem muito próximos. Além disso, a extensão percebida do bairro não corresponde necessariamente à rede de contatos amistosos numerosos. Parece que a palavra "bairro" é uma construção da mente que não é essencial para a vida amistosa; o seu reconhecimento e aceitação dependem do conhecimento do mundo externo.” (TUAN, 1980, p.243). Kevin Lynch, por sua vez, não vincula o bairro essencialmente à função morar e abre a perspectiva do “sentimento de pertencimento” por outras atividades e práticas: “Os bairros são áreas citadinas relativamente grandes, em que o observador pode penetrar mentalmente, e que têm alguns aspectos comuns. Podem estar organizados do ponto de vista interno e, ocasionalmente, podem servir de ponto de referência externo, quando alguém por eles passa ou os atravessa. (...) As características físicas que determinam bairros são continuidades temáticas, que podem consistir em variantes de componentes inumeráveis: textura, espaço, forma, detalhe, símbolo, tipo de edifícios, costumes, actividades, habitantes, estado de conservação, topografia.” (LYNCH, 1980, p.78-79).


27

Penso que a identificação de uma pessoa com um determinado lugar pode se dar também através do trabalho ou mesmo através das práticas cotidianas de deslocamento, lazer, culto ou ensino. Suponho que no Largo do Machado, tais práticas teriam praticamente o mesmo “peso” no cotidiano que o morar, construindo vínculos de pertencimento e identidade tão fortes quanto à moradia. Mas daí concluir se tratar de um bairro não seria, no momento, seguro ou mesmo o objeto deste estudo.

Mesmo que a hipótese de bairro seja plausível do ponto de vista de organização administrativa do território municipal, o Largo do Machado antes é visto apenas como um logradouro para onde convergem três bairros: Catete, Laranjeiras e Flamengo. Não é exatamente o centro referencial desses bairros, que possuem seus próprios núcleos simbólicos de centralidade ou identidade, como as ruas das Laranjeiras, do Catete e Senador Vergueiro.

Figura 2: Largo do Machado e centros dos bairros de entorno. Fonte: cartograma elaborado pelo autor (vide Anexo I)

O Largo funciona como ponto nodal ou cruzamento, na definição de Lynch, importante para os três bairros mas sem maior relação de pertencimento a qualquer um deles (Lynch, 1980, p.84). Contudo, a relação entre o Largo do


28 Machado com o Catete é histórica. Originalmente o Largo surgiu do rossio do carioca ou Campo do Catete, como descreve Abreu (2010, p.289). Desde então, recebeu vários nomes: Campo da Glória, Praça da Glória, Campo das Laranjeiras, Campo das Pitangueiras, Largo do Machado, Praça Duque de Caxias e depois novamente Largo do Machado. Brasil Gerson chama-o de “capital do bairro” Catete. Contudo, sua história e localização também o vinculam originalmente à Freguesia da Glória e depois ao bairro das Laranjeiras, ao ponto do mesmo autor admitir que o Largo está “metade do Catete e metade das Laranjeiras”.

Nos tempos de poucas alternativas viárias, pelo Largo chegava-se às localidades de Laranjeiras e de Botafogo pelo Catete, o que conferiu ao Largo o papel de encruzilhada ou cruzamento, seja de estradas ou de rios, já que por ali também passava o Catete, um braço menor do rio Carioca. (GERSON, 2000, p.267-268). Além de cruzamento, o logradouro foi também tomado por referência de limite, pelo Edital de Posturas de 25/7/1864 que dividiu a Freguesia da Glória em dois distritos.

A vida no Largo se dinamizaria ainda mais depois da abertura Igreja Matriz de N.S. Glória em 1872. Nesta época havia ainda no Largo uma espécie de teatro campestre, o Parque Fluminense que se tornou ponto de reunião da vizinhança, além da estação e cocheira dos bondes que reforçava ainda mais este caráter de baldeação e encruzilhada, tornando-se o ponto cada vez mais atraente ao comércio e aos serviços.

E assim, ao longo do tempo o Largo se estrutura como passagem, residência, comércio, trabalho, lazer e culto, num arranjo espacial bastante complexo: não haveria assim oposição entre lugar e mundo ou, como afirmou Milton Santos, “cada lugar é, a sua maneira, o mundo.” (SANTOS, 1996, p.252). Ruy Moreira analisa os conceitos de lugar utilizados por Santos e por Tuan, identifica assim uma convergência importante que o caso do Largo do Machado ajuda a exemplificar, com seus fluxos e fixos, baldeação e permanência: o lugar enquanto relação nodal e enquanto relação de pertencimento. (MOREIRA, 2008, p.164). Porque o comércio (seja ambulante ou estabelecido), os


29 transportes, os serviços bancários, por exemplo, integram redes que transcendem ao arranjo espacial do lugar, conectando-o a outras escalas e representações espaciais ao mesmo que tempo que fomentam relações e práticas cotidianas que se fixam, caracterizam e distinguem o lugar, como o trabalho, o passeio, o comprar e o morar.

Hoje a vida pelas calçadas, galerias e estabelecimentos do Largo têm ritmo diferenciado segundo períodos do dia e da noite e segundo dias da semana, segundo atividade e segundo sujeitos e grupos sociais. Pode ser afetada por ocorrências e eventos no Centro, Botafogo ou qualquer outro bairro integrado, por exemplo, na rede de metrô. estes ritmos podem tanto evidenciar certa regularidade de ocorrência, como o horário das missas, das aulas, do funcionamento das lojas e galerias, da feira livre, etc. quanto fluir aleatoriamente em razão de eventualidades como uma ação da guarda municipal, uma obra no passeio, uma briga entre menores de rua, o enguiço de um ônibus ou uma passeata de professores. As eventualidades, contudo, ocorrem quase diariamente, costumeiramente, ao ponto de fazer parte do cotidiano do lugar.

O Largo, por sua vez, submete-se às Posturas Municipais, expressas na forma de leis e normas de abrangência local e de caráter urbanístico, tributário e sanitário. A origem do termo postura está relacionada à consolidação do Poder Conselho nas cidades portuguesas da reconquista. Durante muito tempo no Brasil foi tomada por tudo o que era de interesse local, constava das Posturas: segurança pública, urbanismo, higiene, costumes, comércio, etc. A partir da década de 50, provavelmente em decorrência da aplicação indiscriminada de modelos e o enfraquecimento da autonomia municipal, perdeu-se muito da riqueza e peculiaridade dos Códigos de Posturas. Estes, que deveriam refletir a realidade local e os costumes das cidades, como nas Ordenações Manuelinas, passaram a expressar muito mais um princípio homogeneizador, com raízes num ideal de cidade e vida urbana, se impondo sobre a tradição local. Hoje, o termo encontra-se em desuso, segundo juristas como Hely Lopes Meirelles, pelo fato de os Municípios terem autonomia para criar suas próprias leis (MEIRELLES, 1966). Postura aqui é entendida como instrumento jurídico. Se


30 entendida como expressão local de ordenamento, o termo ainda tem validade, sendo aplicado a toda a norma (lei, decreto, portaria ou mecanismos de regulação) aprovada pela Câmara. (GARCIA, 2004 & 2007)

Apesar da profusão de leis criadas tanto pelo legislativo e quanto pelo executivo direcionadas à convivência urbana, as Posturas são balizadas por alguns instrumentos que sugerem maior (e de certo modo necessária) fixidez legal: a Lei Orgânica e o Plano Diretor, em âmbito municipal, além da Constituição e a legislação Federal e Estadual. Disse fixidez porque a alteração desses instrumentos impõe um rito legislativo e político mais complexo que sugere vigência num intervalo bem mais longo no tempo. Do ponto de vista legal, exigem quorum e processos de discussão diferenciados (por exemplo: qualquer alteração de Lei Complementar exige aprovação de 2/3 da Câmara).

A última mudança mais abrangente das Posturas Municipais no Rio de Janeiro ocorreu através da Consolidação das Posturas Municipais do Decreto 29.881, de 18 de setembro de 2008. São estas normas que respaldam o Choque de Ordem que as autoridades evocam em relação às práticas ilegais e irregulares que se desenvolvem no espaço público e, consequentemente, no Largo do Machado.

Talvez o verdadeiro Choque de Ordem resulte, de fato, do descompasso entre o processo de elaboração, discussão, votação e aplicação das leis e normas urbanísticas e aquelas práticas cotidianas (táticas e estratégias) que se desenvolvem espontaneamente na cidade, não escritas, não formalizadas em instrumento legal, normas cuja vigência independe de legislatura ou mandato. A dimensão do lugar também é negligenciada na formulação da maioria das Posturas que tratam o território municipal de modo homogêneo, ainda que o Plano Diretor e os PEUs - Planos de Estruturação Urbana, busquem a diferenciação entre áreas e zonas da cidade sem, contudo, definir medidas de poder de polícia mais claras.

Minha experiência na revisão de Códigos de Posturas em municípios do Brasil aponta para um processo, na maioria das vezes de gabinete e de iniciativa do


31 executivo. Não cheguei a presenciar pressão ou iniciativa espontâneas da sociedade em relação às Posturas, exceto nos casos de Planos Diretores que, a rigor, nada mais são que posturas de planejamento urbano. Ainda assim, o processo participativo do planejamento quando adotado no Plano Diretor, raramente se mantém para a regulamentação, justamente as normas que mais interferem no cotidiano dos cidadãos. Se não houver uma discussão mais abrangente sobre o desejo de ordem e sobre as normas e regras que daí resultam, ao fiscal caberá apenas o dilema de aplicá-las, quase sempre em confronto com a própria sociedade, que não se vê retratada nestas normas e regras. As regras da construção, por exemplo, colidem com o processo de autoconstrução típico das cidades brasileiras, onde coexistem importantes aspectos de cultura, de condições econômicas e de acesso às orientações técnicas. Impor a ordem segundo uma lógica externa a este contexto, por simples aplicação de princípios técnico-científicos da construção civil parece não ser mais adequado à realidade da maioria das cidades brasileiras.

3. Lugar e Cotidiano

Como objeto de análise e pesquisa geográfica, o lugar ganhou mais consistência e destaque, segundo Holzer (2003), a partir da década de 70 através dos trabalhos de Relph e Yi-Fu Tuan. Recentemente Valcárcer (2000) e Moreira (2008), identificam o lugar como uma nova frente de investigação geográfica que supera a dicotomia local-global: “Entre lo local y el espacio terrestre, el espacio geográfico se configura como instancias o sistemas de relaciones cambiantes. En su materialidad, las denominamos sistema-mundo, «mercado mundial». Estados, regiones, lugares, terrazgos, ciudades. mercados locales, lugares centrales, periferias, áreas industriales, centro urbano, city, subúrbio, barrio, aldea, ciudad dormitório, conurbación, megalópolis, entre otros muchos términos, que definen la trama conceptual de la geografia.” (VALCÁCER, op.cit., p.507) O lugar é hoje uma realidade determinada em sua forma e conteúdo pela rede global da nodosidade e ao mesmo tempo pela necessidade do homem de (re)fazer o sentido do espaço, ressignificando-o como relação de ambiência e


32 de pertencimento. Dito de outro modo, é o lugar que dá o tom da diferenciação do espaço do homem – não do capital – em nosso tempo. (MOREIRA, op.cit., p.165)

Essa condição do lugar, articulando local e sistema-mundo ao mesmo tempo em que produz, é produzido por relações de pertencimento e vivência, permite uma aproximação com o pensamento de Henri Lefebvre sobre ordem próxima e ordem distante, conforme analisado por Limonad e Lima:

“O lugar, então, se configura como a expressão mais nítida de uma ordem local, encarada como aquela que se define, sobretudo pelas relações de proximidade, pela co-presença, por um cotidiano compartilhado (...) e corresponderia à escala da habitação, do abrigo, do lar. Já a reprodução da força de trabalho e dos meios de produção seriam mediadas pelo espaço percebido das práticas espaciais e regidas pelo espaço concebido das representações do espaço que corresponderiam, por sua vez, respectivamente à escala do lugar, do território e do global.” (LIMONAD & LIMA, 2003, p.25) A ordem próxima manifesta-se assim nas práticas, processos e estratégias de (re)produção e configuração do lugar. Desse modo, é possível estabelecer uma convergência entre a ordem próxima e o cotidiano, como uma prática espacial do tempo vivido. E esta prática organiza o espaço através de táticas, estratégias, trajetórias, e discursos, socialmente construída por um ininterrupto jogo de distanciamentos e aproximações que findam por configurar arranjos espaço-temporais específicos. (LEFEBVRE apud LINONAD & de LIMA, op.cit.)

A prática que associa lugar e cotidiano, conforme de Certeau, antes de ser ordem, por excelência, é ordinária, pois provém de pequenos eventos relacionados ao “homem ordinário”, isto é, ao homem comum. Ordinário aqui remete ao trivial, banal, corriqueiro onde a própria criatividade, tratada por de Certeau como estratégias e táticas onde a casualidade se inclui, faz parte de programação e ordem (de CERTEAU, op.cit., p.57). Remete, de certo modo, àquela ordem que Lefebvre critica em La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne, onde o cotidiano é programado, “semiplanejado” pelas estratégias capitalistas do consumo e da publicidade, reflexos da ordem distante. Mas esta


33 programação também se refere à ordem próxima constituída de preferências, hábitos, costumes, opções e situações forjadas ou espontâneas, mas definidas no plano do indivíduo, no caso, aquele que vive o lugar. O cotidiano se dá no espaço vivido e no tempo presente:

“O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partïlha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, naquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.” (de CERTEAU, 2008, p.31) O cotidiano está repleto de movimentos repetitivos e ordenados, seja no trabalho, na rua ou em casa como na canção de Chico Buarque. O cotidiano das ruas é composto por atividades ritmadas, como o trajeto diário entre casa ou trabalho à estação do metrô ou ao ponto de ônibus, a montagem dos tabuleiros de exposição de mercadorias nas ruas e lojas, a leitura de jornais expostos nas bancas, consulta ao resultado do jogo do bicho no poste e inúmeras outras situações que resultam em certa regularidade, integrando tempo e espaço, objetos e ações.

E o cotidiano das ruas também é formado por acasos, agitações, eventualidades e desencontros que tanto podem resultar de movimentos regulares ou de perturbações ocasionais. Desordens que reviram o ritmo e a sequência de eventos e fluxos. Tais eventos ocorrem de forma pulverizada, se multiplicam no espaço e no tempo de tal modo que passam a compor a própria organização do lugar numa relação dialógica, num jogo de interações entre indivíduos, trajetórias e práticas. Este jogo de interações, que Morin analisa desde o cosmos, é também observado nas miudezas do cotidiano:

“As interações foram uma espécie de nó górdio de ordem e desordem. Os encontros são aleatórios, mas os efeitos desses encontros em elementos bem determinados, em condições determinadas, tornam-se necessários e fundam a ordem das “leis”. (...) A interação torna-se assim uma noção intermediária entre desordem, ordem e organização.” (MORIN, 2005a, p.73)


34

Uma dessas interações que surge na relação entre cotidiano e lugar é aquela que expõe o indivíduo e o outro (os outros), manifestando-se de diversas formas, desde a associação até a competição, mesmo a indiferença ou a solidariedade. esta interação se dá numa dimensão muito próxima, num processo de apropriação do espaço pelo corpo que o configura e o define como lugar, conforme lembra Ana Carlos:

“Trata-se de um espaço palpável - a extensão exterior, o que é exterior a nós, no meio do qual nos deslocamos. Nada também de espaços infinitos. São a rua, a praça, o bairro, - espaços do vivido, apropriados através do corpo - espaço públicos, divididos entre zonas de veículos e a calçada de pedestres dizem respeito ao passo e a um ritmo que é humano e que pode fugir aquele do tempo da técnica (ou que pode revelá-la em sua amplitude).” (CARLOS, 2007, p.18) São estas interações no espaço do vivido que estabelecem as ordens e os arranjos que identificam, singularizam o espaço segundo o uso e o caracterizam como lugar. Ordens e arranjos que, muitas vezes, colidem com as normas (Posturas) criadas não exatamente para este ou aquele lugar, mas para o município como um todo, que acaba configurando-se numa espécie de não-lugar: um ente político-administrativo organizado por leis e planos que, ao invés de afirmar a riqueza singular do lugar e do vivido, aposta num projeto, num ideal e numa ordem muitas vezes estranha.

Ana Carlos refere-se ao não-lugar como sendo da “não-relação ou mesmo da não-identidade”, que resulta do processo de artificialização das relações no espaço urbano. Creio que tal definição pode ser extensiva às normas urbanísticas mais gerais, como algumas Posturas, entre as quais aquelas que tentam retirar os ambulantes das calçadas através de “choques de ordem”. Desse modo, as Posturas distanciam-se dos costumes, tornando-se cada vez mais um instrumento de regulação técnica. Afinal, de que lugar tratam as Posturas? Quais sujeitos as formulam e as praticam? Qual o seu princípio ordenador?


35 É a este não-lugar que se refere Lefebvre ao criticar um certo tipo de urbanismo, tecnocrático, burocrático e regulador:

“Que é que se estuda, que é que se elabora com um grande esforço de cálculos e competência? Normas, coações que limitam tanto a ação como o pensamento. Que dizer daquilo que oficialmente se chama de urbanismo a não ser que se trata teoricamente de uma ideologia e praticamente de regras a imobilizar a construção das cidades naquilo que pode haver de menos racional, sob a capa de uma racionalidade tecnicista.” (LEFEBVRE, 1969, p.14) Tanto o que se evoca como ordem através das Posturas Municipais quanto a política de Choque de Ordem pela aplicação dessas mesmas Posturas são resquícios do urbanismo de um não-lugar, mesmo depois do mea culpa feito pela busca do planejamento participativo. O urbanismo do não-lugar, que atende aos interesses e estratégias do Estado, produz o espaço regulador e ordenador, (CARLOS, op.cit., p. 24) e acentua dicotomias como centroperiferia, formal-informal, ordem-desordem, local-global, etc.), sem atentar para a complementaridade que estas mesmas condições mantém entre si, especialmente na escala do lugar. É esta complementaridade que deve nortear uma revisão do princípio de ordenação subjacente nas Posturas, de modo a valorizar a força do lugar sem, no entanto, cair nos vícios do localismo. É a superação dessa visão dicotômica que busco através de aproximações sucessivas entre diversas ordens, partindo das Posturas de um não-lugar para o cotidiano do lugar através de um exercício de dialógica, como lembram Limonad e Lima articulando os pensamentos de Lefebvre e Morin: “É no desdobramento das práticas espaciais e das representações, consoante os distintos espaços e tempos a eles correspondentes, que se vislumbra a importância da dialógica instituída entre a ordem próxima e a ordem distante. Uma dialógica que se define por simultâneas relações de antagonismo - já que existe um elemento de oposição -, de concorrência - à medida em que há uma correlação negativa entre ambas -, e de complementaridade atestando o traço de complexidade que marca um par dialógico.” (LIMONAD & de LIMA, 2003, p.25)


36 4. Espaço Público, Espaço Coletivo e Logradouro

As Posturas Municipais destinam-se, em grande parte, à regulação do espaço público, entendido para efeitos desse estudo na sua dimensão física imediata e que se encontra no cerne do lugar e do cotidiano, ou seja, sua materialidade mais objetiva, o logradouro, e sua institucionalidade, que na visão de Castro se expressa numa territorialidade construída segundo relações políticas. (2004, p.142).6

Dimensão física que se observa, por exemplo, em Habermas, ainda que este não trate literalmente de espaço e sim da esfera pública – öffentlichkeit – que amplia bastante a noção. Habermas menciona claramente a praça do comércio e a feira das cidades medievais, cujas atividades seriam reguladas pelo Estado como espaços públicos (HABERMAS, 1984, p.28). Acrescento que não somente as atividades do comércio e do câmbio seriam reguladas, mas a própria praça e a própria feira seriam reguladas enquanto espaços, através de Posturas relacionadas com a localização, dimensão, extensão, organização e distribuição dessas e outras atividades (GARCIA, 2004).

Numa outra linha de pensamento, Sennet usa a expressão “domínio público” para demarcar um ambiente de relações sociais distintas daquelas que se dão no “domínio privado”. Em sua investigação, Sennet parte do uso e dos significados

das

palavras

“público”

e

“privado”

detendo-se

mais

especificamente no limite entre estas duas noções, que adquirem contornos geográficos, sendo tratadas como “regiões da vida social” (SENNET, 1988, p.31). Domínio, aqui, resulta não apenas de uma relação de poder (influência), mas também de localização: domínio público é estar em público e também ser público.

6 A noção de espaço público, é bastante complexa, sendo tratada de modo diferente segundo autores, especialmente geógrafos. Admitindo a impossibilidade de tratar aqui de todas visões e entendimentos, tentarei ater-me na sua relação mais direta com o cotidiano das cidades, enquanto território da postura, da norma e da ação direta do poder político que controla a cidade.


37 É esta dimensão física e material que Gomes acrescenta à noção política de Habermas (GOMES, 2006, p.159) na qual o espaço público assume aspectos de jurisdição, de extensão e de arranjo espacial, construídos a partir do conceito de cidadania, cujo recuo determina o declínio do homem público descrito por Sennet, em

“um processo de redefinição dos quadros da vida social coletiva que vem, gradativamente, modificando o estatuto das práticas sociais e espaciais de modo geral.” (GOMES, op.cit., p.174). O espaço público para Gomes é um arranjo espacial normatizado e organizado pela cidadania, sem a qual, passaria a mero espaço comum ou coletivo. A “dimensão física” do espaço público utilizada na definição de Gomes se aproxima daquela utilizada por Carlos, citada anteriormente, que trata do “espaço palpável” do lugar. Embora sem mencionar diretamente, os dois autores citam logradouros como exemplos de espaço público.

“(...)fisicamente o espaço público é, antes de mais nada, o lugar, a praça, rua, shopping7, praia, qualquer tipo de espaço onde não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participação de qualquer tipo de pessoa.” (GOMES, op.cit., p.162) Iná de Castro, traz uma outra abordagem em relação ao espaço público, que destaca a ordem como “forma institucional de controle da imprevisibilidade dos espaços das sociedades humanas” (op.cit.p.147). A institucionalidade seria a “regra do jogo” que dá visibilidade ao espaço público, em sua materialidade, organização, extensão e dimensão. E mais do que isso:

Ultrapassando os limites formais de uma definição de espaço público que o veja apenas como a extensão aberta ao público, mantida ou ocupada para este fim, como praças, jardins, espaço verde, passeios, ruas, calçadas etc., é possível problematizá-lo. Primeiro, aceitando que todo território submetido pelo Estado é por definição um espaço político, o espaço público também o é. Porém ele se

7 Não considero o shopping um espaço público. Não apenas por tratar-se de um espaço geralmente privado, mas porque não possui os atributos de logradouro, conforme destaco mais adiante no texto.


38 diferencia do conjunto pelo direito que toda a sociedade possui de acesso a ele. (op.cit.pp. 151,152) Demonstrarei, mais adiante, como as Posturas, entendidas como esta “regra do jogo” que ordena o espaço público, foram produzidas no Rio de Janeiro num processo de controle da cidade, imbricado com a própria história das instituições locais como a Câmara, a Intendência, a Polícia e a Prefeitura. E aqui, caberia ainda citar que em seus estudos de geografia histórica do Rio de Janeiro, Abreu destaca a definição de espaço público num “sentido morfológico” como “área comum, de livre acesso, e se contrapõe ao espaço privado”. Contudo, destaca problemas de anacronismo na transferência da dicotomia público-privado, como a entendemos hoje, para o passado. Daí, citando Gomes, ponderar que a expressão “espaço coletivo” soe mais adequada às ruas, praças e praias do Rio de Janeiro colonial (ABREU, 2010-II, p.445) e, por conseguinte, à própria noção de logradouro.

A distinção entre espaço público e espaço coletivo, ainda segundo Abreu, se atém às condições temporais específicas relacionadas ao “comportamento público”, que pressupõe a relação (e mais especificamente o tratamento isonômico) entre os indivíduos. (ABREU, op.cit. p.445). Tal distinção configura princípios de ordem e de organização do espaço coletivo que o qualificam e o diferenciam enquanto público.

A palavra logradouro deriva do verbo lograr, que segundo Fiúza, significa “utilizar-se ou servir-se de alguma cousa” (FIÚZA, 1865). Da associação do verbo lograr com o sufixo douro, doiro (do latim torium) vêm definições largamente difundidas como “lugar onde se pode lograr, fruir, gozar, divertir-se. Lugar onde os animais são alimentados” (SILVEIRA BUENO, 1968) e

“o que pode ser logrado, fruído por alguém. Terreno que um particular tem diante de sua casa para diversos usos; público, terreno rural, praça, beco, travessa, via pública em geral, destinado ao uso público.” (NASCENTES, 1967).


39 Como antes sinalizei no breve histórico do Largo do Machado, as atribuições do logradouro estão associadas historicamente ao rossio. Lembra Abreu que o rossio era o principal espaço comunal do período colonial: o “baldio do povo”, o logradouro público por excelência, onde se colhia frutos, onde se alimentava os animais (op.cit., p.277). Dessa rápida pesquisa etimológica deduzo que o logradouro é o espaço coletivo, posto que está disponível ao uso de todos. Seu caráter público, todavia, será conferido por duas maneiras: através dos símbolos, normas, práticas, pactos e estratégias de convivência, construídos no cotidiano ou através da tutela do Estado, suas leis e regulamentos (Posturas), geralmente direcionadas de modo a impor ou garantir a ordem pública8. Entre as possíveis perturbações do caráter público do logradouro estão algumas formas apropriações vistas indesejáveis à ordem pública:

“na rua se tornam claras as formas de apropriação do lugar e da cidade, e é aí que afloram as diferenças e as contradições que permeiam a vida cotidiana, bem como as tendências de homogeneização e normatização impostas pelas estratégias do poder que subordina o social.” (CARLOS, op.cit., p.51) Gomes cita, entre outros, dois casos polêmicos de apropriação do logradouro, alvos da política do Choque de Ordem no Rio de Janeiro: os camelôs9 e os flanelinhas (GOMES, op.cit., 177,178). O exemplo dos camelôs, todavia, está historicamente relacionado ao uso do espaço coletivo para fins de comércio. Tal forma de apropriação está na gênese do significado do logradouro “praça”:

8 Vergottini, ao tratar do assunto para o Dicionário de Política de Bobbio, identifica dois sentidos para a expressão ordem pública, no primeiro seria tanto o fato quanto o próprio objetivo do ordenamento político e estatal; no segundo seria “o limite ao exercício da autonomia contratual” no âmbito do direito privado. (BOBBIO, 1998, p.851) Como o próprio autor ressalva o uso mais restrito da segunda acepção, utilizarei aqui primeira. tomarei ordem pública como “convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento” (BOBBIO, 1998, p.851). 9 O camelô não necessariamente implica numa apropriação informal do espaço público, como sugere Gomes (op.cit., p.177) visto que as Posturas Municipais admitem a prática do comércio em logradouros, seja através de barracas ou na forma ambulante, desde que devidamente autorizada pela Prefeitura, conforme a Lei Municipal nº 1.876, de 29 de junho de 1992. A maioria das barracas instaladas na passeio da rua do Catete, próximo ao à galeria do Cinema São Luiz, por exemplo, estão devidamente cadastradas na Prefeitura, portam seus respectivos alvarás de autorização que pressupõem, inclusive, o pagamento de uma taxa. Voltarei a tratar do assunto mais adiante, nas atuais posturas do Rio de Janeiro.


40 “Praça: largo ao qual confluem várias ruas, pátio. Do lat. platea. Situação do comércio, o conjunto de comerciantes, negociantes das transações comerciais. Ostentar, exibir-se publicamente.” (SILVEIRA BUENO, op.cit.) É nesta complexidade do logradouro, suas tensões entre o individual e o coletivo, entre a ordem e a desordem, entre o oficial e o informal, entre o público e o privado, entre o planejado e o auto-organizado que reside o foco da minha pesquisa na busca de uma metodologia para ajustes nas Posturas Municipais, como expressão efetiva do cotidiano e do lugar. O choque entre as normas e as ordens do espaço público - pensado não a partir da singularidade do lugar e sim como expressão de uma política territorial do governo municipal ou de uma lógica urbanística idealizadora - e o uso, as apropriações e as estratégias do cotidiano, definidas como reação àquelas normas e ordens “oficiais” ou à revelia delas expressa a contradição do logradouro, percebida por Lefebvre e sintetizada em argumentos a favor da rua:

“A rua é a desordem? Certamente. Todos os elementos da vida urbana, noutra parte congelados numa ordem imóvel e redundante, liberam-se e afluem às ruas e por elas em direção aos centros; aí se encontram, arrancados de seus lugares fixos. esta desordem vive. Informa. Surpreende. Além disso, esta desordem constrói uma ordem superior.” (LEFEBVRE, 1999, p.27) E contra a rua:

“Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapropriação do espaço que o poder autoriza quando permite a realização de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais folclóricos. Quanto à verdadeira apropriação, a da "manifestação" efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento.” (LEFEBVRE, op.cit., p.29) As Posturas Municipais são instrumentos reguladores dessa apropriação. Regulam a rua, as calçadas, as vitrinas, o comércio estabelecido e o ambulante, a poda das árvores, a publicidade, as bancas de jornais, a “faixa” mínima de passeio livre, a carga e descarga, as feiras, os eventos, as mesas e cadeiras nas calçadas. Para isso condiciona através da obrigatoriedade das


41 licenças, autorizações e permissões administrativas. Para isso infraciona através da fiscalização efetiva dos logradouros, estabelecimentos e obras.

Muito do que se vê como espontâneo nas ruas pode nada ter de espontâneo. Muito do que se entende das Posturas como sendo desordem está, de certa forma, ordenado. Os camelôs, o estacionamento, a carga e descarga que contrariam as normas oficiais se submetem a outras normas não reconhecidas ou conhecidas e por isso reprimidas: Muito do que se acredita projetar, ordenar, organizar e reprimir acaba descaracterizando ou (des/re)ordenando o lugar e alterando profundamente seu cotidiano.

5. O Urbanismo: Entre o Vivido e o Concebido

Daqui pra frente, deparo-me com a relação entre duas faces do urbanismo, que estão imanentes na minha leitura e no meu vivenciar o Largo do Machado: enquanto processo e enquanto ciência. estas duas visões (des)orientam a análise espacial, a percepção de ordem e desordem e, principalmente, a proposta. O urbanista, assim como o arquiteto, trabalha quase sempre na perspectiva da proposta, do projeto, da proposição, de uma ação que conduz ao ordenamento e à organização. A palavra intervenção ganhou uma conotação recentes negativa, no entanto, também não pode ser descartada dependendo da proposta e da ação. O fato é que o urbanista não tem apenas algo a dizer e refletir sobre o espaço: ele precisa propor. É esta particularidade que o difere de outras áreas de conhecimento que igualmente trabalham com o espaço urbano. Aqui se aproxima do fazer, da arte urbana como defendia Sitte.

De um lado, o processo de organização e desenvolvimento das cidades, reunindo um conjunto de práticas cotidianas que se dão de modo eventual ou coordenado e que transformam espaço em lugar. Dessa prática - fazer - resulta um certo saber fazer ou conhecimento que em meados do século XIX e início do século XX foi institucionalizado e estruturado como ciência, adotando os nomes de Urbanização (com Ildefonso Cerdà) e Urbanismo (com Eugène Hennard).


42 A primeira concepção - urbanismo como processo – é percebida em autores como LeGoff, Secchi, Lefebvre e Pierre George. Le Goff, por exemplo, olha para a cidade medieval e vê neste período a convergência entre Roma e Manhattan. Relaciona urbanismo, urbanidade e as ações do bom governo, quando o príncipe intervém na cidade:

“Perto de 1200, Filipe Augusto, saindo de seu palácio na Citè, num dia chuvoso, atola na rua. Ele manda pavimentar uma parte das ruas de Paris. O senso crescente de ordem e limpeza, visível no espaço urbano, estranho ao campo, faz progredir o urbanismo.(...) Creio que a conversão ao urbanismo se dá no século XII, não apenas para fazer desaparecer as contrariedades materiais como aquelas que acabo de lembrar, mas ainda sob influência da arte gótica nascente e o pensamento escolástico em desenvolvimento (...) A arte gótica e a escolástica das novas escolas urbanas estabelecem, como norma de urbanismo, ordem e luz, matemática e razão, cor e verticalidade.” (LE GOFF, 1998, p.114.) O relato de LeGoff remonta à origem do urbanismo, ou melhor, à invenção do urbanismo. E aqui entendo invenção no sentido nietzscheano de erfindung, conforme a interpretação de Foucault: “por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui em pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável.” (FOUCAULT, 1998, 15p.). Le Goff entende o urbanismo como produto (intervenções, normas, acordos) da urbanidade, surgindo de situações banais do cotidiano, reforçando a visão Foucault.

Urbanidade: do latim urbānĭtate, a vida numa cidade; qualidade do que pertence a uma cidade; características do que é urbano; urbanidade, bom tom, bons costumes, polidez; linguagem espirituosa, espírito. (MACHADO, 1952, p.2137) Ainda na perspectiva do urbanismo como processo, Secchi o define como “testemunho de um vasto conjunto de práticas, quais sejam as da contínua e consciente modificação do estado do território e da cidade10” (Secchi, 2006, p.18) e George como “um conjunto de princípios e de técnicas para 10 No mesmo trecho, Secchi busca distinguir com mais clareza este conjunto de práticas de outras concepções, como “conjunto de obras, de projetos, de teorias ou normas associadas a um tema, uma linguagem e a uma organização discursiva” e de “um determinado setor de ensino”.


43 organização do espaço urbano” (GEORGE et all, 1972, p.258). Ou seja, uma invenção sem inventor. O produto de um determinado gênero de vida. É nesta perspectiva do processo, que o urbanismo é entendido como arte urbana, que pode ser autoral ou não, estatal ou não, cuja existência coincide com a existência da cidade.

Em verdade o urbanismo existiu desde sempre, como nos exemplos romano e grego (...) mas os exemplos de urbanismo até os finais do século XIX estão mais ligados ao desenho urbano como actividade empírica ou arte urbana do que à visão integrada e pluridisciplinar que a urbanística vai ter da cidade. (LAMAS, 2000, p.231) Já o urbanismo em sua concepção científica deriva tanto da arquitetura, da engenharia e do sanitarismo, como na definição utilizada por Bardet, ao descrever o processo de institucionalização na França, no início do século XX, e o processo de transformação dos grandes centros urbanos da época:

“a fim de disciplinar estas massas que traziam problemas de "grandes números" devido a sua concentração em certos pontos do espaço — em consequência disso insolúveis — uma nova ciência de aplicação devia eclodir: a ciência da organização das massas sobre o solo. Por volta de 1910, ela foi batizada na França de Urbanismo (tow planning, Stadtebau), o que quer dizer, etimologicamente, ciência do planejamento das cidades.” (BARDET, 1990. p.8) Ainda no século XIX, Cerdà em sua Teoria Geral da Urbanização, usava o termo urbanizacion tanto para o processo, muitas vezes “anárquico”, de transformação das cidades, quanto para uma “ciência urbanizadora”, que seria

“un conjunto de conocimientos, principios, doctrinas y reglas, encaminados á enseñar de que manera debe estar ordenado todo agrupamiento de edilicios, á fin de que responda á su objeto, que se reduce á que sus moradores puedan vivir cómodamente y puedan prestarse recíprocos servicios, contribuyendo así al comun bienestar.” (Cerdà, 1867-I, p.31) Neste caso, o conhecimento científico volta-se para controle, regulação e interferência direta no processo de transformação das cidades, a partir do plano, do projeto ou da norma e também através de um profissional


44 especialista. A necessidade de se definir e demarcar uma nova área do saber, especialmente no século XIX, teve raízes positivistas e colocou em xeque a relação dessa nova ciência com a arte e com a própria arquitetura. Em Bardet, esta demarcação foi feita através da distinção entre Urbanismo e a Arte Urbana, esta considerada insuficiente para lidar com a complexidade do fenômeno urbano (Bardet, 1980, p9).

Voltarei a esta abordagem em diferentes momentos do presente trabalho para tratar de regulação, de ordenamento e da complexidade inerente ao tema. Cabe destacar, por enquanto, que as duas definições do urbanismo (processo e conhecimento) se complementam, sobrepõem, conflituam e tensionam tanto a compreensão do lugar quanto as perspectivas de atuação do arquitetourbanista, seja na análise, na formulação de soluções e na interação com aquele espaço. Ou seja, é possível que a tensão entre ordem e desordem não resida apenas nos conflitos e nas dicotomias entre organizado/desorganizado, regular/irregular; legal/ilegal; formal/informal; no Largo do Machado ou outra área de estudo qualquer, outrossim faça parte do meu próprio olhar e do meu próprio entendimento, enquanto produtos de um processo de aprendizado e de prática de urbanismo.11

E tanto de um lado quanto de outro existem os riscos dos excessos. A aposta exagerada tanto no concebido quanto no vivido, no planejado ou no espontâneo, na ordem ou na desordem. Há o risco, por exemplo, que a compreensão do processo dinâmico da cidade, a autoprodução do cotidiano e a auto-organização do lugar fascinem o urbanista ao ponto intimidar a ousadia de propor e de imaginar soluções de caráter mais autoral, artístico e subjetivo:

11 Aqui posso refletir a condição do urbanista em relação ao lugar que analisa e planeja de modo similar à reflexão feita por Morin, para o sociólogo que se vê na obrigação de incluir-se na sua visão de sociedade: “Se o sociólogo categoriza e determina o seu local particular e singular na sociedade, torna-se prisioneiro desta categoria singular e particular que descreveu e conceptualizou, e retira de si próprio o direito à verdade científica sobre o conjunto. Se o sociólogo se vê de certo modo como uma subcategoria social especializada, limitada, da sociedade, como poderá ele mesmo justificar uma metavisão que lhe permite considerar as outras subcategorias como se ele não detivesse a visão objectiva do todo, como se detivesse os verdadeiros instrumentos, as verdadeiras chaves que permitem elucidar a estrutura e a organização da sociedade? (MORIN, in Sociologia. Lisboa: Europa-América, 1998. p.28/29).


45 que o vivido iniba a possibilidade do concebido. O urbanista atônito diante do urbanismo anônimo. No Renascimento a arquitetura formula uma poética da cidade, pela aplicação da perspectiva, pela revolução da engenharia e pelo resgate da intervenção artística, hoje a vertigem, a mudança, a autopoesis da cidade são, elas mesmas, poéticas independentes, autônomas que cabe ao Orfeu extático na grande metrópole, captar, filtrar e descrever. A frase sobre Orfeu alude ao título do trabalho de Nicolau Sevcenco12. Apesar do autor tratar das mudanças culturais na sociedade paulista dos anos 20, a imagem sempre pareceu-me extrapolar este contexto histórico. Trata-se de uma adaptação do Anjo da História de Walter Benjamin, trazido para uma São Paulo revolucionária. Mas este anjo, assim como Orfeu, continuam extáticos na cidade contemporânea, admirados do processo espetacular e inexorável de urbanização constante e ininterrupto, quando qualquer reflexão conduz a impasses e tensões. A outra alternativa é igualmente perturbadora: ser mais uma engrenagem do processo, reproduzindo os modelos cansativos da arquitetura padronizada pelo mercado imobiliário ou mais uma legislação de caráter disciplinar orientada para um ideal distante ou, pior, de fundo fiscal ou policial que só funcionará na base do “choque”: Posturas e fiscalização.

O verso da moeda seria a regulação do espaço pelo urbanismo seguindo um ideal de ordem que, muitas vezes, se ampara em princípios racionalistas, estéticos, funcionais e operacionais para encobrir interesses de controle desse mesmo espaço. Aqui o urbanismo torna-se ferramenta modeladora do território da autoridade, conforme os interesses dos grupos dominantes. Neste aspecto, a crítica de Lefebvre é precisa e ácida:

“Os urbanistas parecem ignorar ou desconhecer que eles próprios figuram nas relações de produção, que cumprem ordens. Executam quando acreditam comandar o espaço. Obedecem a uma commande social que não concerne a este ou àquele objeto, nem a este ou aquele produto (mercadoria), mas a um objeto global, este produto supremo, este último objeto de troca: o espaço.” (1999, p.139-140) 12

SEVCENCO. Nicolau: Orfeu Estático na Grande Metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 390p.


46

No momento que o espaço urbano é produzido, todos os argumentos ordenadores de fundo estético, projetual, funcional, etc. não podem ser assepticamente isolados dos interesses econômicos e políticos de controle desse mesmo espaço. Falar, portanto, de uma ordem urbanística amparada apenas nos ideais arquitetônicos de composição, compreensão e fruição dos espaços, sem considerar as diferenças entre a casa e a cidade, e, principalmente, a commande social que solicita, contrata, seleciona e orienta os projetos de intervenção, seria ilusão senão cumplicidade. Logo, parece-me impossível que traçados reguladores do espaço urbano não sejam, na verdade. mecanismos controle desse mesmo espaço... e quais os sujeitos envolvidos nestas ações?

O urbanismo encobre esta gigantesca operação. Ele dissimula seus traços fundamentais, seu sentido e finalidade. Ele oculta, sob urna aparência positiva, humanista, tecnológica, a estratégia capitalista: o domínio do espaço (...) esta estratégia oprime o "usuário", o "participante", o simples "habitante". Ele é reduzido não apenas à função do habitar (ao habitat como função), mas à função de comprador de espaço, realizando a mais-valia. (LEFEBVRE, op.cit., p.141) A ordem no urbanismo compartilha, de certo modo, da mesma matriz da arquitetura, porém suas consequências sociais são mais significativas, servindo via de regra como justificativas para medidas ostensivas de ordem e de controle nos espaços públicos. Daí a palavra caos ser constantemente evocada nos discursos de alguns urbanistas: Malta Filho, por exemplo, publicou o livro “Cidades Brasileiras: seu Controle ou o Caos”13; a Universidade Lusófona criou a exposição “30 Anos de Caos Urbanístico”14; Sergio Kon vê São Paulo como “um Caos sem Cura”15. Longe de mim a pretensão de criticar as análises feitas

13 MALTA Fo, Candido: Cidades Brasileiras, seu Controle ou o Caos. São Paulo: Nobel, 1989. 14 Exposição virtual "30 anos de caos urbanístico" organizada pela Universidade Lusófona, Lisboa. URL: http://www.urbanismoportugal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=30&Itemid=43, acessado em 20/03/2012. 15 A (Des)Construção do Caos: Propostas Urbanas para São Paulo / KON, Sergio e Duarte, Fabio (orgs): São Paulo: Perspectiva, 2008.


47 pelos urbanistas aqui citados em relação aos casos por eles estudados. Detenho-me apenas no uso da palavra caos enquanto desordem máxima e que sugere a associação entre ordem/desordem com bem/mal de forma dicotômica singela e, talvez, maniqueísta. E restaria indagar se as cidades em estudo se desenvolveram

livres

que

qualquer

projeto,

modelo

ou

pensamento

urbanístico... Diria mais uma vez Lefebvre:

“Poder-se-á objetar: “sem os urbanistas seria o caos”. Ora, exatamente, é o caos, sob uma ordem imposta.” (LEVEBVRE, , op.cit., p.141) As críticas ao urbanismo formuladas entre meados dos anos 60 e 70, entre as quais destaco os situacionistas e Lefebvre, também surgiram dentro da própria arquitetura e urbanismo. Convém destacar que as importantes contribuições de Jane Jacobs, do Team-X, de Gordon Cullen e Kevin Lynch , continham instrumentos para uma revisão do processo de compreensão do espaço no qual projeto urbanístico se insere. Mais adiante, do final dos anos 70 em diante, algumas respostas foram formuladas, por exemplo, nos trabalhos de Carlos Nelson dos Santos, Christopher Alexander, Collin Rowe, Leon Krier, Aldo Rossi, que chamo de urbanismo crítico e que aposta no processo participativo do planejamento, na heterogeneidade do olhar e do vivenciar urbanos, no fracasso do funcionalismo, do zonning e de outros postulados do urbanismo racionalista.

No entanto, ainda que o processo democrático de construção de cenários e de planejamento participativo tenham sido efetivamente adotados no Brasil a partir da Constituição de 1988, o que pude verificar, na maioria das cidades em que trabalhei, foi que as soluções consagradas de zonning, controle de usos e de espaços, regulação da construção e do exercício de atividades econômicas, não foram alteradas. Alguns Códigos de Obras e de Posturas advém de modelos da década de 50 e seu processo de revisão passa ao largo do processo participativo defendido no urbanismo crítico. Por quê?


48 Hoje é possível que a incapacidade de controle do espaço urbano (admitida pelo urbanismo crítico) intimide o ato de planejar. Se a cidade tem capacidade de auto-gestão, auto-organização, num processo evolutivo permanente o que restará fazer senão apenas a análise e compreensão do processo, ora crítica, ora apaixonada, ora engajada, ora desertora?

Referências à teoria da administração e à busca de uma “cidade-empresa, planejada e gerida estrategicamente” focada na eficácia, produtividade e competitividade, atendem, como aponta Vainer, ao projeto político neoliberal, que redefine papéis no jogo urbano. (2000, p.87). Uma reação do poder econômico à aparente desordem. Outras referências à anarquia urbana e à desordem servem de mote às ações urbanísticas pontuais baseadas numa “estética do heterogêneo” que, no parecer de Arantes, apenas disfarçam os conflitos da cidade. (2001, p.177)

Figura 3: Cartaz da campanha por aumento salarial dos fiscais de posturas Fonte: Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Curitiba - 201216

Jacques destaca outra dicotomia, fruto da mesma crise de referências: duas correntes do pensamento urbanístico que, “aparentemente antagônicas” produzem efeitos semelhantes de “espetacularização da cidade”. Uma corrente “pós-modernista 16

tardia”

ou

“neoculturalista”,

dedicada

à

museificação,

Disponível na url http://www.fiscaldeposturas.com.br/municipal/2011/06/18/sem-fiscal-acidade-vira-um-caos/ e acessado em 12/4/2012.


49 petrificação e ao pastiche. Outra neo-racionalista ou progressista, desprendida de maiores compromissos ideológicos e utópicos, aposta na estetização do caos urbano. (2004, p.23)

Essa “esquizofrenia” identificada por Jacques pode ser resultado da carência de fundamentos mais sólidos, do ponto de vista conceitual e teórico, que superem a tensão ordem/desordem na cidade e vislumbrem possíveis caminhos para a prática do urbanismo crítico. Ou isso ou o “fim de linha” sinalizado por Arantes...

O caos é uma das grandes interrogações em meu estudo. De um lado, contribui para o questionamento das Posturas, principalmente quando sua imagem é usada para medidas de exceção e força, que Barbosa identificou como “apelos à normatização da cidade diante do caótico vêm orientando práticas de vigilância e disciplinarização de corpos indesejáveis (migrantes pobres, população de rua, lumpemproletários), como também as de isolamento e de contenção de territórios considerados perigosos. Práticas discricionárias que se amparam no objetivo, sempre pretenso, de defender o cidadãoconsumidor da “barbárie” instaurada pelo desintegração do tecido social, e que, notoriamente, se apóiam na violência policial do Estado e em corporações privadas de segurança, para garantir a “civilidade” local e privada na cidade.” (BARBOSA, 1999, p.61)

A interessante pesquisa realizada por Vogel e Santos no bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro, tem muito a contribuir com o estudo em curso e reforça a visão de Barbosa, quando confronta o suposto caos a uma outra ordem, criada por sujeitos alijados do debate ordenador oficial:

“a maioria da população que não tem tido outra alternativa senão aceitar as imposições, acabou por criar mecanismos de defesa e superação. Reverte os significados dos espaços que lhe são impingidos. Cria, às vezes com muita dificuldade e desgaste, ordens próprias que ultrapassem as ordens simplistas e abstratas dos planejadores. Acumula-se desta forma um desconhecimento exponencial. Se o pensamento erudito sabia pouco sobre os


50 usuários que pretendia atingir, passa a saber menos ainda sobre os efeitos "distorcidos" de suas intervenções. (IBAM/CPU, 1985, p.12) Por outro lado, o caos impôs uma reviravolta no paradigma científico no qual se fundamentou a defesa de uma ciência urbanística e, em especial, ao planejamento urbano determinista e tecnocrático que ainda está presente seja no campo profissional, seja na academia, apesar das justificáveis críticas. esta mesma mudança paradigmática trouxe uma nova discussão sobre ordem e desordem, dicotomias e dialogias, simplicidade e complexidade, cujo cenário contextualizei no projeto de tese de doutoramento.

Mas a estetização do caos traria outra frente de indagação: o retorno do dionisíaco nas artes e, consequentemente, no que ainda restaria de artístico no urbanismo. Neste caso, não seria exatamente o caos que corrompe a ordem das coisas e do mundo, mas o caos que engendra o mundo ordenado, conforme Hesíodo. O fator dionisíaco nas artes, segundo Nietzsche, surge como aquele terror que se apodera do ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas configurações, parece sofrer uma exceção. (NIETZSCHE, 1992, p.27).

Nesse caso, não se trata exatamente de uma estetização, mas talvez o caos como imanente ao princípio estético e ao processo de criação. este foi, certo modo, um dos patamares das propostas dos situacionistas: a colagem, a mistura e a diversidade em contraposição ao excesso de racionalidade e funcionalidade modernista (JACQUES, 2003, p. 27) que subsidiam a metodologia de compreensão do lugar: a deriva, o flâneur e a bricolagem.

Esta nova frente de estudos coloca em evidência a ambiguidade que reside no urbanista ao oscilar entre a arte e a ciência, tateando na ausência de um meio termo entre a arte urbana (herdeira da arquitetura) e a ciência social aplicada. É possível que neste ponto do presente artigo você que o lê identifique ser Largo do Machado muito mais que uma encruzilhada de bairros, caminhos e rios urbanos que me dedico apreciar e compreender. Seria antes uma


51 encruzilhada de trajetórias da minha própria formação profissional e acadêmica: de um lado o consultor em Administração Municipal e de outro o professor de arquitetura e urbanismo.

Vejo na abordagem da complexidade no urbanismo um desafio que extrapola o debate epistemológico, porque está além da mudança do paradigma científico. Como ciência, Cerdà já havia percebido sobreposições, concorrências e complementaridades entre arquitetura, epidemiologia, economia, direito, física, biologia, administração, história, etc.: áreas do conhecimento científico e, por ora direi, formal e disciplinar. Cerdà tentou criar uma nova ciência que abrigasse todas estas interfaces. Na alternativa de Morin, a complexidade não cabe numa única ciência e muito menos se encaixa num formato disciplinar vigente. Mas trata-se de um debate epistemológico.

Na quinta jornada temática de Religação dos Saberes, há um pequeno espaço para a arte na abordagem de Morin, que admite a dificuldade sobre o tema: “constitui uma guinada aparente”, “corte epistemológico acrescido de disjunção”

(MORIN,

2010,

p.269).

Pena

que

a

jornada

dedicou-se

prioritariamente à literatura, com pequenas “brechas” para o cinema e a música. Escultura, pintura, arquitetura, fotografia, teatro e outras formas de arte não são abordadas.

Minha preocupação aqui é com a relação entre ciência e arte, ou ciências e artes, talvez tão complexas quanto (senão mais) que a relação entre biologia e física ou entre geografia e química. Trata-se de um campo que infelizmente não poderei desenvolver na presente pesquisa, a discussão do urbanismo enquanto conhecimento científico sua complexa relação com a arte. 17 E aqui percebo a necessidade de uma distinção, deveras polêmica e dicotômica, que usarei inicialmente apenas para dar visibilidade à relação ciência-arte: 1. a arte como expressão da intencionalidade e subjetividade do arquiteto e do artista; 2.

17

Carlos Alberto Franco da Silva viu nessa discussão o princípio de um “Urbanismo Trágico”, que recebo com muito apreço, lamentando ter de postergar esta reflexão para um estudo posterior da tensão ordem/desordem dentro da teoria da arquitetura e urbanismo, com o auxílio imprescindível de Elisabeth Reis e Eduardo Mendes de Vasconcellos.


52 a arte como “maneiras de fazer”, ou seja, práticas e estratégias utilizadas por diferentes sujeitos – usuários - para apropriação do espaço urbanisticamente planejado, produzido e regulado.

Ou seja, de um lado, a arte enquanto produto de uma percepção e de uma reflexão estimuladas por um processo de sensibilização e de aprendizado devidamente orientado por obras paradigmáticas, como os textos instauradores de uma teoria da arquitetura e do urbanismo. De outro lado, a arte como “maneiras de fazer” e apropriações, que de Certeau analisou a partir de questões análogas e contrárias ao pensamento de Foucault em Vigiar e Punir:

“análoga, porque se trata de distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de "táticas" articuladas sobre os "detalhes" do cotidiano; contrárias, por não se tratar mais de precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes da vigilância". (De CERTEAU, 2009, p.41) Qual seria o método de abordagem para pensar Posturas enquanto expressão de política urbana, concepção e ordenação do espaço, considerando estas táticas, práticas e artes cotidianas, que ao mesmo tampo não anulasse o papel científico e artístico do urbanista que investiga o lugar? É o que busco neste processo de imersão, deriva e flâneur no Largo do Machado, cuja fundamentação conceitual é sintetizada pela pena de João do Rio.

“É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela, como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem das Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes”. (João do Rio, 1997, p.51)


53 III. (DES)ORDEM ENTRE O LUGAR E O MUNDO

“Atire um punhado de pedras no chão: terá a sensação da desordem. Se, extraordinariamente, as pedras formarem uma figura identificável, por exemplo, um hexágono ou um rosto, você terá a sensação de uma ordem. Para as pedras, no entanto, não há nem ordem nem desordem, num caso ou no outro”.(COMTESPONVILLE, 2003, p.156)

Figura 4: Escher - Order & Chaos (1950) Fonte: M.C. Escher Official Website18

Na primeira vez que vi o quadro de Escher me perguntei “onde está o caos?”. Tudo perece muito bem equilibrado, seja no traço, ou na disposição dos objetos no plano, que sugere regularidade e discretas simetrias pelas diagonais e diversos eixos. Todos os objetos são reconhecíveis, apesar de - à exceção do poliedro inscrito na esfera - fragmentados, amassados e gastos. Não se

18

Disponível

22/12/10.

em

http://www.mcescher.com/Gallery/back-bmp/LW366.jpg.

Acessado

em


54 sobrepõem uns aos outros: não há empilhamento e não vejo nesta disposição qualquer alusão à aleatoriedade e ao acaso. No vídeo exibido na mostra “O Mundo de Escher”19, o próprio autor comenta o quadro e sua dificuldade em ver desordem quando se tem “fascínio pela regularidade”. Sua preocupação na escolha dos objetos descartados no lixo e de certa forma descaracterizados no uso e na integridade, não teria inibido sua lógica e olhar ordenador.

Retorno a Ordem e Caos, na busca da desordem, para além das dificuldades admitidas pelo artista. Os objetos retirados do lixo não estão visíveis em sua integridade: estão quebrados, amassados e distorcidos. Efeitos de uma ação talvez espontânea talvez aleatória que precedeu o descarte. Os contornos e linhas produzidas deformam os objetos, mas que ainda assim se mostram compreensíveis, reconhecíveis: a casca do ovo, a lata de sardinhas, o copo...

No centro do quadro, o poliedro-esfera de cristal e sua completude regular. O cristal é símbolo de regularidade e de ordem. Subirats lembra que nos aforismos estéticos de Novalis, o cristal aparece como a conciliação espontânea da matéria sensível e a pureza formal, “de ordem espiritual, geométrica e matemática” (1988, p.7). Não à toa, Atlan evoca o cristal ao abordar o ruído e a “desordem” das organizações vivas:

“O turbilhão líquido — destronando a ordenação do cristal — se transformou ou retransformou em seu modelo, do mesmo modo que a chama da vela, em algum ponto entre a rigidez do mineral e a decomposição da fumaça.” (ATLAN, 1992, p.9) O quadro justapõe a perfeição da forma do cristal à distorção, à fragmentação e à descaracterização do lixo, que se decompõe e desagrega. Lixo que é refletido pela superfície regular do cristal resultando em formas ainda mais distorcidas. Porém a confusão se desfaz ao perceber que se trata de reflexos.

19 Exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, entre 18 de janeiro e 27 de março de 2011.


55

Os quadros de Escher costumam reservar enigmas, como a janela refletida no cristal. Um vão de onde vem a luz que define os objetos e divisa suas formas, tanto para quem contempla o quadro quanto para quem o pinta. Na verdade, isto não é uma janela, é um reflexo de janela. Antes ainda: isto não é um reflexo, é um desenho tal qual o cachimbo de Magritte: uma expressão do mundo que o artista vê e sente, suas indagações e sua expressão.

Figura 5: Magritte - La Trahison des Images (1929) Fonte: Foucault, 2002. p.86.

Ordem e desordem não estão exatamente no quadro. Estão na percepção que Escher tem do mundo e nas formas que usou como modelos. O caos dos objetos

que

retirou

do

lixo,

suas

deformidades,

irregularidades

e

incompletudes: negação da geometria do poliedro de cristal. Daí o enigma que o reflexo da janela me inspira, pois a percepção é a janela do espírito e, como lembrou, Anaxágoras, o espírito põe tudo em ordem. (1973, p.269).

Assim, o (des)ordenamento do mundo é fruto da percepção. Chauí lembra que a percepção é uma relação entre sujeito e mundo, uma “experiência dotada de significação” que qualifica e estrutura (2003, p.135) Seu resultado é o sentido. A idéia de ordem e caos trazida por Escher, funciona como enunciado de um problema hermenêutico que manifesta as tensões entre unidade e fragmento, parte

e

todo,

regularidade

e

deformação,

empírico

e

representado,

vivido/percebido e concebido, completo e incompleto, na ótica do artista e que repercute, de algum modo, no fruidor.


56

Contudo, o sentido não existe em si. É um resultado perceptivo, existencial, corporal, social, histórico do ser-no-mundo. Marleau-Ponty insiste que o sentido não está no objeto, como o sentido de um ato não é o próprio ato, porque sentido (tanto na acepção de direção quanto de significado) é uma relação de exterioridade (1999, p.574). Qual o sentido da ordem? Uma não-ordem, uma outra ordem ou mesmo a desordem.

A ordem também pode ser confundida com o próprio sentido. Aquilo que é organizado e estruturado segundo a percepção, que atua como uma espécie de fio de Ariadne que nos conduz através de um labirinto de formas, acontecimentos, objetos, que se nos apresentam “empilhados” no mundo.

“Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história. (...) Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece.” (Merleau-Ponty, 1999, p.18) Na medida que as relações entre formas, acontecimentos, objetos são percebidas, desvendadas, encontradas ou inventadas, surge uma ordem, um nexo, um sentido. Mas, lembrando Chauí, a percepção é a “maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo” e por isso também provém de nossa personalidade, paixões, história pessoal. (2003, p.136), é resultante de processo histórico de valoração moral, político, cultural, social, espacial, de modo que quando o “espírito se reencontra” na ordem, conforme defende Bergson (2005, p.241) de certa maneira reencontra uma idéia que foi construída, transmitida e ensinada através de gerações. Tais noções em alguns momentos se revestem de discursos filosóficos e científicos e se fazem presentes na arquitetura, na geografia, no direito, na política e nas relações cotidianas da própria cidade.

Em todas as áreas do conhecimento, incluindo a geografia e a arquitetura, a noção de ordem e suas variantes como desordem, ordenamento, ordenação... têm papel essencial, geralmente amparado por algum pensamento filosófico.


57 Marcel Conche inicia suas reflexões a respeito afirmando que “toda filosofia é uma representação da ordem do mundo” (2000, p.295) e é justamente por suas “orientações filosóficas” que pretendo iniciar algumas considerações a respeito da ordem e desordem, do ponto de vista ontológico.

Voltarei mais adiante a estas questões, pois discutir a idéia e o sentido de (des)ordem que nos chega através da experiência e da consciência e seus efeitos, é o que proponho a seguir, sem a pretensão de fazer uma genealogia, outrossim para fundamentar a crítica do sentido com que se evoca a ordem e a desordem no espaço urbano das grandes cidades.

1. A Filosofia e a (Des)Ordem

Seja na arquitetura, na arte, na geografia, na física, na política... encontram-se exemplos de ordem e desordem que podem ainda ter sido construídos dentro de uma ótica disciplinar. Digo exemplos e não conceitos porque geralmente descreve-se o que está (des)ordenado e acaba-se deduzindo o conceito pelo exemplo. Geralmente os exemplos de ordem apontam para situações de coerência, nexo, inteligibilidade, equilíbrio, harmonia, (ver outras) e a desordem pela negação dessas situações. A preferência pela ordem pode ser, como identifica Lima, um “excedente utópico” (2005, p.16) que, de certo modo, reflete uma aposta racional no uno, no cosmos e numa certa noção de mundo.

Nesta linha de raciocínio, Conche lembra a tradição grega de mundo e de cosmos, um conjunto de corpos que se organiza a partir do caos, mas em oposição ao mesmo:

O conceito de mundo é, pois, inicialmente, um conceito fenomenológico que traduz a experiência fundamental que o homem tem do espetáculo da natureza como espetáculo ordenado. (CONCHE, op.cit., p.272) Para o filósofo, mundo e cosmos podem ser concebidos como conjuntos de elementos e nesta perspectiva “ordem e desordem dizem respeito à relação do todo com as partes (ou do uno com o múltiplo) nos conjuntos de elementos”


58 (op.cit., 299). O conflito entre duas ordens distintas, resultaria assim numa desordem positiva ou falsa, enquanto a “desagregação da estrutura” do conjunto levaria ao “desaparecimento da ordem”, o que chama de desordem negativa. (op.cit. 304).

Mas ainda assim, mesmo no caso da desordem negativa, Conche conclui que daí resultará outra ordem, não necessariamente estruturada, mas de “somação”. Logo, a diferença entre as desordens só pode originar-se de uma diferença entre ordens (op.cit. 306).

Essa distinção feita por Conche para a desordem (entre as polaridades negativa e positiva) pode ajudar na análise de algumas práticas discursivas muitas delas relacionadas à política urbana, às práticas cotidianas, aos espaços públicos e às tensões sociais nas cidades - que se valem do termo desordem apenas para garantir uma ordem ao invés de outra, como no contexto a que se referiu dos Santos:

“Toda desordem urbana que a gente denuncia, simplesmente é a ordem que ainda não está no poder. Há uma ordem escolhida, hegemônica, para nossas cidades. Tudo o que sair fora dela é imediatamente classificado como desordem.” (SANTOS, 1982, s/p)20 Ainda nesta perspectiva do conflito de ordens ou da desordem positiva ou falsa, vale relembrar a posição de Bergson que acaba por eliminar a possibilidade da desordem desestruturante ou negativa21, na visão de Conche. Bergson parte da existência conflituosa de duas ordens, entretanto, apenas uma delas “satisfaz ao espírito”:

“A ideia de desordem teria então uma significação clara na prática comum da vida; objetivaria, para a comodidade da linguagem, a decepção de um espírito que encontra frente a si uma ordem diferente daquela de que precisa, ordem que de nada lhe serve por

20 dos SANTOS, Carlos Nelson F.: O Mercado de Trabalho e a Construção Civil. Comunicação no Seminário O Mercado de Trabalho e a Construção Civil. –complementar a referência com Isabel Eiras de Oliveira), 1982. sem paginação. 21 Mais adiante retornarei ao assunto a partir do entendimento de Morin.


59 enquanto e que, nesse sentido, não existe para ele.(...) De um modo geral, a realidade é ordenada na exata medida em que satisfaz nosso pensamento. A ordem, portanto, é um certo acordo entre o sujeito e o objeto. É o espírito reencontrando-se nas coisas. (BERGSON, 2005, p.241) Mas por que o espírito se “decepciona” ou se “reencontra”? No caso de duas ordens distintas, se uma é chamada de desordem por decepcionar o espírito ou por não estar devidamente instituída, não reside aí certa rejeição à mesma? A “decepção” em relação a esta ordem talvez remeta à capacidade de justificá-la. Mas qual a motivação que subjaz nestas escolhas?

Encontraremos dois interessantes exemplos de motivação. O primeiro na escolha feita por Descartes, no Discurso do Método, quando parte de um princípio de unidade formal que, na verdade, resulta de um exercício da razão. Foi assim que manifestou sua preferência por obras realizadas por um único arquiteto em detrimento daquelas feitas por várias mãos; e as praças regulares em planície em contrapartida às cidades antigas que cresceram de pequenos burgos, com seus edifícios “aqui um grande, ali um pequeno” e ruas curvas desiguais: “dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs.” (DESCARTES, 1973, p.42)

O segundo exemplo encontro na “Ética” de Espinosa, que tenta explicar a preferência pelas coisas ordenadas em decorrência da “facilidade” que temos em imaginá-las ou memorizá-las. Neste caso, a ordem dependerá de como nossos sentidos “representam” a disposição das coisas. Assim como Descartes,

Espinosa

desvincula

a

ordem

das

coisas

de

Deus

e,

consequëntemente, da Natureza para associá-la ao próprio homem: “os homens preferem a ordem à confusão, como se a ordem, salvo em relação à nossa imaginação, fosse algo existente na Natureza.” (ESPINOSA, 1973, p.127)

Volto assim à questão inspirada em Bergson: por que o espírito se reconhece na ordem? Parece existir um lastro precedente que faria da ordem um produto de Deus ou da Razão, e daí as escolhas estarem forradas de alguns


60 pressupostos, que no caso da razão podem resultar nos excedentes utópicos que tratou Lima, (op.cit., p.15) mas que também poderiam ter origem na presunção de uma essência que antecede a existência:

“Deus quis que tudo fosse bom: excluiu pelo seu poder, toda a imperfeição, e assim, tomou esta massa visível, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois estimou que a ordem vale infinitamente mais que a desordem.” (PLATÃO, Tempo - VI.22) Em Platão o Demiurgo é também o Ordenador: aquele que organiza o caos em cosmos. Sua criação é um ato de ordem, mas também um movimento estético que une alma, razão (intelecto) e corpo: o cosmos é essencialmente a mais bela e melhor obra. Daí pra frente percebe-se uma aliança entre logos e mito, entre o entendimento racional da ordem e com a origem tenista do mundo. Esta aliança ficará mais evidente quando a tradição judaico-cristã foi assimilada pelo Império Romano e formatada através do neoplatonismo, dando mais tarde as bases do classicismo nas artes, na ciência, na filosofia, na arquitetura e, consequentemente, no urbanismo.

Aliás, como comentou Conche, “a existência de Deus passou a ser ‘provada’ a partir da ordem do mundo”. (op.cit., p.272) Identificar a ordem seria, neste caso, reencontrá-la e reencontrar o espírito, daí a posição de Bergson. Entretanto, esta identificação de ordem e Deus - a própria associação entre Logos e Verbo - seria, para Lefebvre, um modo de isolar o divino numa espécie de “indiferença criadora” diante das contradições da própria criação, ou seja, vida e morte, bem e mal, ascensão e decadência, brilho e putrefação, violência e sossego, pureza e mancha (2006, p.140). esta indiferença e esta objetividade, tomadas mais por atributo do que por essência seria o máximo de subjetividade – Deus – também será adotada na ciência. 22 Sobre a referência direta a Deus no texto do Timeu, busquei ainda a versão em italiano, destacando este trecho: “Imperocché Iddio, volendo che tutte le cose fossero buone, e, quanto poteva, niuna rea, prendendo ciò ch'era a vedere, che non istava quieto ma sregolatamente movevasi e inordinatamente, sí dal disordine ridusselo a ordine, giudicando egli questo al tutto estere migliore di quello.” PLATO - Timeo. Disponível em http://www.liberliber.it/biblioteca/licenze/ em 22/02/2010.


61

2. A Ciência e a (Des)Ordem

Na perspectiva das ciências, Prigogine e Stengers falam de “relatividade da concepção de ordem no mundo, mas também de relatividade das noções de ordem e desordem” Desde a síntese newtoniana, que unificou ordem terrestre e celeste numa ordem natural universal à teoria da informação que tenta estruturar “uma definição rigorosa da ordem e da desordem”, encontram ambiguidades e perturbações (1993, p.133).

Uma das dificuldades da noção de ordem está na sua estreita relação com modelos físicos de equilíbrio, vistos na mecânica, na cinética e que, ainda no século XIX, se expandem para outras áreas de conhecimento, como a economia, a sociologia, a biologia, a demografia e a epidemiologia. Contudo,

“o papel do equilíbrio no que se refere à maneira de reflectir sobre o destino do homem, das sociedades humanas e das sociedades naturais não provém de uma transposição de conceitos próprios das modernas ciências da natureza: sucede exactamente o contrário. No entanto, as ciências do homem e das sociedades que se constituíram nos séculos XIX e XX encontraram, por várias vezes, uma fonte de inspiração nos modelos físicos do equilíbrio.” (PRIGOGINE & STENGERS, 1993, p.64 – grifo meu) Essa importância dada ao equilíbrio nas “modernas ciências da natureza” poderia, de certa forma, “satisfazer ao espírito”, como identificou Bergson em relação à ordem ou justificar o pensamento platônico de que a ordem só se realiza plenamente como o “melhor arranjo – ao mesmo tempo racional, belo e bom” como lembrou Balandier (1997, p.45). Contudo, a posição de Prigogine e Stengers vai mais além, pois esta relação ordem/equilíbrio teria sido tomada de empréstimo pelas ciências da natureza à uma tradição cosmogônica precedente. Arrisco dizer que uma espécie de compromisso com a ordem, de origem possivelmente teísta23 e monista como advertiu Conche, pode ter orientado algumas teorias científicas, inclusive o pensamento geográfico. 23

A teologia influenciou significativamente teorias sobre o espaço. Ver Jammer, Max: Conceitos de Espaço. Rio de Janeiro: Contraponto/Puc, 2010, p.53 e seguintes.


62

Geografia, a ordem imanente e a ordem construída

“não é o geógrafo que põe ordem na compacta superposição dos fenômenos e clareia o obscuro jogo de forças, que é ele o único a compreender, no final de sua pesquisa?” (LACOSTE, 1997, p.135) Lima lembra que a ordem ronda o pensamento geográfico tal qual um espectro que se verifica “num desejo incontrolável de interpretar e propor ordens” (2005, p16,1724). Em seguida dá exemplos na geografia quantitativa, como a noção de equilíbrio espacial, citando Lobato; na geografia política, como a lógica de unidade territorial; e nos estudos regionais, a partir da recorrência dos termos e conceitos de estabilidade e continuidade (op.cit., pp28-30).

Sem ter a pretensão de fazer um estudo mais aprofundado sobre o papel da ordem - natural, econômica, social etc. – e da desordem na evolução do pensamento geográfico, sinto necessidade de enfatizar alguns aspectos dessa relação nas matrizes da geografia moderna.

Por exemplo, a influência de Hegel no pensamento geográfico de Humboldt, contextualizada ao panorama do romantismo alemão, dá pistas de como a compreensão da natureza e do mundo conforme um conceito de ordem podem ser creditadas à herança de Platão, mesmo que os excessos do idealismo tenham sido cuidadosamente evitados, como ressaltou Horacio Capel. A ordem e harmonia do universo teriam sido para Humboldt primeiramente intuídas pelo homem, “como um vago pressentimento” para depois serem confirmadas cientificamente. Desse modo, cabe à geografia, através de procedimentos empíricos - como experimentação e observação - aliados à contemplação reflexiva da natureza, descobrir, desvendar este “encadeamento oculto e permanente”. (CAPEL, 1988, p.33)

24

Lima, Ivaldo: Redes Políticas e Recomposição do Território. Tese de doutorado em Geografia - Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense - UFF, 2005. (conferir referência bibliográfica e número de páginas).


63 Também em Ritter encontraremos, até mesmo com maior ênfase, a “busca de uma ordem subjacente” na natureza e no mundo. Caberá ao geógrafo seguir o fio de Ariadne que conduzirá o pensamento e a percepção através da aparente desordem e “descobrir”, a ordem como expressão das leis cósmicas universais (CAPEL, op.cit., p.58). Tal ponto de vista é reforçado pela religiosidade de Ritter que entendia, conforme Moraes, a ciência como “uma forma de relação entre o homem e o criador”. (2003, p.63) Ritter teve o mérito, sinalizado por Moreira, de “transpor a fase taxonômica descritiva” para a fase da ciência moderna, “centrada no conceito e na explicação” (2008, p.15). Ao mesmo tempo ancora, de um lado, os conceitos científicos numa tradição moral teísta renovada pela visão de Pestalozzi e, de outro, na concepção kantiana de conhecimento empírico. Trata-se, pois, de uma perspectiva teoteleológica.

Ainda nas matrizes clássicas do pensamento geográfico encontraremos exemplo interessante em Jean Brunhes, que sem fazer referências ao Demiurgo, identifica no mundo “uma causa de ordem inviolável” quando opõe a “força louca do Sol” à “força sábia da Terra”:

“Sobre o globo terrestre, a radiação solar é, portanto, uma causa sem fim de desequilíbrio e, por conseguinte, de movimento. Mas este movimento seria desordenado se não existisse, para combater tal causa de desordem, uma causa geral de ordem; esta força, que chamarei força sábia da Terra, em oposição à força louca do Sol, é a atração centrípeta do peso. Impõe aos corpos diferentes pesos, diferentes densidades, uma só ordem de estabilidade, um só modo de equilíbrio. Finalmente, uma obra una e regular dessa luta entre uma causa infatigável de ativídade e uma causa de ordem inviolável.”(BRUNHES, 1962, p.28) A força sábia da terra é a gravidade, tal qual explicada pela física de Newton. Jean Brunhes segue um dos paradigmas científicos hegemônicos de seu tempo, mas vale lembrar que também foi engajado ao movimento católicosocial Le Sillon25 , fato que está longe de ofuscar sua importante contribuição à geografia, mas de certa forma abre a possibilidade de um compromisso prévio

25

Claval, P. & Sanguín, Andre-Louis: La Géographie française à l'époque classique (19181968). Paris: L'Harmattan, 1996. 346p.


64 com a unidade e a ordem teístas.26 Daí o compromisso da geografia com a cosmovisão através da busca um significado de mundo e, consequentemente, de uma ordem espacial das coisas, como lembrou Gomes (1997, p.34).

É importante ressaltar que tal compromisso tem de ser devidamente contextualizado no tempo e nas correntes do pensamento geográfico. Pierre George já havia identificado como sendo uma das orientações da pesquisa geográfica no final do século XIX a busca por “relações de causalidade” que poderiam resultar na “formulação de leis da geografia” (1975, p.9). Capel chamou atenção para a busca “obsessiva” da geografia quantitativa, de uma ordem espacial subjacente. esta busca não se limitou a experimentos e observações, mas também partiu de “teorias previamente formuladas” (1988, p. 392).

Permito-me acrescentar a esta ordem subjacente os atributos de imanente e precedente. Alguns fundamentos podem, inclusive, preceder à própria teoria. Restaria assim responder se tal ordem ou organização do espaço se dá de forma independente do pensamento, percepção e análise do geógrafo, como questionou Lacoste:

“Os geógrafos não falam de "organização do espaço", mesmo quando eles tratam de geografia física, quando eles percebem a disposição das montanhas, o traçado dás grandes eixos da rede hidrográfica - e com mais razão ainda, quando eles explicam o contraste entre espaços abandonados e regiões densamente povoadas? Mas quem organiza? É a Natureza? Deus?” (1997, p.135). Contudo, cabe ressaltar que não se trata aqui de fazer uma crítica à cosmovisão, enquanto busca de um sistema universal, integrador e complexo, que auxilie na ou resulte da compreensão dos fenômenos espaço-temporais da natureza e homem no mundo. Apenas assinalo que a busca de uma ordem

26

A partir do pensamento de Brunhes, Moreira destaca duas outras situações: a ordem da destruição construtiva e a desordem da construção destrutiva. Ambas as situações resultam de processos interação entre cidade e paisagem, entre a economia que devasta e que constrói, numa relação complexa.(2008, pp 83-88)


65 subjacente pode derivar de outro compromisso, muito além do discurso científico ou mesmo filosófico: uma certa visão de cosmos que precede à cosmovisão.

Outros geógrafos sinalizam que a ordem decorre da análise ou da interpretação. Max Sorre destaca o papel do geógrafo na compreensão do complexo geográfico, num processo que reúne tanto objetividade (do dado geográfico) quanto subjetividade (do geógrafo):

“Conforme a natureza de suas preocupações, o geógrafo privilegia, em sua descrição, este ou aquele traço: a paisagem vegetal, as formas do relevo, a atividade do homem. Neste último caso, a paisagem é ordenada em função do homem, de suas necessidades, de sua força criadora.” (1984, p.126 – grifo meu). Vejo na expressão paisagem é ordenada em função de... como sendo resultado da aplicação efetiva de um conhecimento e mesmo de um método de observação e percepção. A própria noção de ordem – seja quando trata de espaço como no espaço social – foi substituída aqui por um estado dinâmico e complexo, resultante de tensões internas, estado que Sorre chama de mobilidade social. Contudo, mesmo a suposta objetividade do dado geográfico está em questão, pois como disse Lacoste:

“os "dados" geográficos não são fornecidos por Deus, mas por um tal geógrafo que, não contente de os ter apreendido a uma determinada escala, os escolheu e os classificou numa certa ordem.” (op.cit. p.110) Quando Sorre fala que o espaço social é também uma aspiração do indivíduo (op.cit. p.184), posso daqui inferir que o geógrafo também é indivíduo e sujeito desse processo. Seriam então a paisagem, a região, o território, o lugar e o próprio espaço ordens que se descobre, pois existem a priori; ou ordens que se deduz e inventa, enfim, constructos, como identificou Lima? (op.cit. p.18). Tanto uma como outra hipótese pode-se aspirar, perseguir e se reencontrar: satisfazendo ao espírito, como argumentou Bergson. Neste ponto, deixando em


66 aberto o debate, julgo interessante transcrever uma passagem em Vidal de La Blache, sobre o espírito do geógrafo:

“se desejarmos nos colocar no espírito de um geógrafo, (...) estaremos ligados a fatores de ordem diversos, de proveniência heterogênea, e formando entre si combinações múltiplas; sentiremos que o equilíbrio resultante dessas combinações não tem absolutamente nada de estável, que ele está à mercê de modificações cuja multiplicidade dos fatores abre uma ampla margem. (1984, p.43) A desordem no (ou do) paradigma científico

A partir do século XIX o acordo entre equilibro/ordem/natureza começa a ser questionado. Balandier descreve este processo como sendo a mudança do modelo de referência: de “uma natureza autômata cuja ordem é imutável” para um universo “de turbulências, dos movimentos de aparência errática”. (1997, pp. 53 e 59) Contribui decisivamente para esta passagem a segunda lei da termodinâmica, de Boltzmann, que identifica um aumento irreversível da entropia numa sequência de estados de um determinado sistema, ou seja, em consequência do crescimento da desordem molecular. Morin destaca que “nessa perspectiva, as configurações desordenadas são as mais prováveis e as configurações ordenadas as menos prováveis” (2005a, p.54) e assim, o segundo princípio da termodinâmica perturba aquela estabilidade da mecânica clássica, cuja reversibilidade permitia retomar ao estágio de equilíbrio e de ordem conhecido.

Não arriscaria aqui a descrever a evolução do pensamento científico depois da contestação termodinâmica de Clausius e do princípio de entropia em Boltzmann e Gibbs. Muito já foi explicado nos trabalhos de Morin, Atlan, Ruelle, Prigogine e Stengers, entre outros. Caberia todavia sinalizar que a idéia de ordem na natureza, no mundo, no universo e que justificaria o cosmos, se pautava no paradigma científico da mecânica clássica. Ao longo do século XX a instabilidade da própria ciência abalou a estabilidade do próprio universo, ou ainda, a instabilidade do universo abalou a estabilidade da ciência, num movimento dialético que redescobre a assimetria, o acaso, a turbulência, o


67 desequilíbrio, a incerteza e o movimento aleatório. Os estudos de Monod sobre o papel do acaso na evolução das espécies e na organização dos seres vivos; de Prigogine sobre as estruturas dissipativas, irreversibilidade e sistemas longe do equilíbrio, de Atlan sobre o papel do ruído e da desordem nos processos de auto-organização dos sistemas vivos ou ainda de Thom que relaciona morfogênese à uma grande catástrofe inicial, revelam que a ciência não pode mais dar o devido lastro aqueles princípios de equilíbrio, ordem e harmonia do mundo, que apontavam para “Jesus ou Newton”, como explicou Prigogine:

“Se verdadeiramente o universo for um autômato, não há maneira de evitar a idéia de que é um deus, alguma coisa de exterior, que o pôs em movimento. Portanto, o materialismo clássico, o determinismo clássico, conduz justamente a uma teologia.” (PRIGOGINE, 2002, p.28) Desse contexto de mudanças, rupturas e novas perspectivas em todos os campos do saber, Edgar Morin vislumbra uma nova relação entre ordem e desordem, segundo o princípio dialógico, ou seja, “associação complexa (complementar/concorrente/antagônica) de instâncias necessárias em conjunto à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado” (2008, p.110). Morin tem o cuidado em defini-las como instâncias, que posso também interpretar como estados, classes, presenças, evidências.

Ordem e desordem estariam em diálogo desde o surgimento do universo, sem distinção hierárquica:

“a ordem traz a marca irremediável dos acontecimentos iniciais de um universo singular! A ordem, que emerge sob forma de determinações / imposições iniciais, vai se desenvolver através de materializações, depois interações e organizações. (MORIN, 2005a, p.101) “O universo não é somente construído apesar da desordem, ele também é construído na e pela desordem, quer dizer, na e pela catástrofe original e as rupturas que se seguiram, no e pelo desdobramento desordenado de calor, nas e pelas turbulências, nas e pelas desigualdades de processo que comandaram toda


68 materialização, toda diversificação, toda interação, toda organização. (MORIN, op.cit., p.99) No pensamento de Morin, esta dialogia ordem / desordem segue uma trajetória que parte da gênese do universo, atravessa a natureza, a vida, a sociedade, o conhecimento e o indivíduo, sem que estas categorias ou níveis signifiquem ganho ou perda de complexidade em relação à outra. esta trajetória permite a Morin conceber uma epistemologia da complexidade, recolocando o sujeito na base de sua reorganização epistemológica. Um sujeito “vivo, aleatório, insuficiente, vacilante, modesto, que menciona sua própria finitude” (2008, p.30) que traz em si o princípio da incerteza e relações simultâneas de autonomia e de dependência (2005b, p.306). esta visão epistemológica, de certo modo “redime” os pressupostos trazidos para dentro da investigação e das teorias ao mesmo tempo em que os revela e identifica.

Diferentemente de Conche, Morin diz não ser possível uma classificação da desordem em positiva - construtora, estruturante - e negativa - destrutiva, dispersora – (2005a, p.100) porque a desordem que desestrutura é também a da morfogênese e este raciocínio também vale para a ordem. Contudo, entendo que Conche se vale da distinção positivo/negativo tomando a relação reencontro/decepção, também mencionada por Bergson, ou seja, ainda pautada por um sistema de valoração precedente. Conche supera esta polaridade ao diferenciar ordem e desordem partindo do que percebemos, assim a ordem é “uma desordem fácil de memorizar, de reconhecer ou de utilizar” (apud COMTE-SPONVILLE, 2003, p.156) ou ainda, segundo Espinosa, de imaginar.

Sendo assim, partindo da definição de Morin para ordem e desordem instâncias que caminham juntas desde a origem do universo -restaria ainda indagar pela produção desses conceitos e dessa diferenciação, assinalada por um simples sufixo –des. Ordem e desordem antecedem o homem, porém a essência dessas instâncias não poderia preceder a existência, uma vez que é o homem em seu exercício cognitivo, através do cogito de Descartes, da


69 imaginação de Espinosa ou mesmo da percepção de Kant que identifica e nomeia ordem e desordem.

Aqui é conveniente retornar ao câmbio paradigmático provocado pelo reconhecimento da importância do acaso, da bifurcação, da contingência, do ruído na física, na química e na biologia, porque as ciências humanas, num dado momento anterior, reivindicaram para si não só a cientificidade destas, como também sua emancipação da própria filosofia. Morin descreveu este movimento de busca de cientificidade na sociologia (1998, p.9), Moreira tratou da influência do naturalismo mecanicista do positivismo na geografia (2008, p.27) e Bardet assumiu tal caráter para o urbanismo, fazendo da arte mera aplicação desse propósito (1990, p.27).

O compromisso com a ciência moderna resultou no compromisso com a objetividade

e

com

o

distanciamento

(e

consequentemente

ao

desaparecimento) do sujeito da ciência. Uma tentativa de eliminar a contingência, a bifurcação, o ruído, não apenas das formulações lógicas, nos métodos e nas experiências da ciência, mas (e talvez principalmente) naquele que faz a ciência. É neste sentido que Stengers faz sua análise crítica de Popper, para quem “tudo que é humano mescla sentido e significado” e o sujeito da evolução da ciência deixaria de ser “o indivíduo, psicológico ou ético” (2002, p.59 e 57). Stengers, contudo, identifica no discurso de Popper algo mais, além de um positivismo redivivo, outrossim “a incapacidade da lógica em dar conta do conhecimento científico” (op.cit. p.58) pelo papel e situação que o sujeito dessa ciência (que poderia ser marxista, bergsonista ou freudiano, por exemplo) teria na escolha das hipóteses, métodos e condução do experimento.

Assim a mudança do paradigma científico recolocou o sujeito no cerne da questão, como Morin o fez em relação à sociologia: “temos de tentar não só distanciar-nos pelo espírito, mas também utilizar plenamente a aderência subjetiva finalmente não suprimível” (1998, p.31). Seria este o sétimo princípio de reforma do pensamento proposto por Morin: “todo o conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro, em uma cultura e época determinadas” (2001, p.96). Seria inclusive o caso de colocar o próprio Morin


70 como sujeito de seu pensamento e o decorrente entendimento de que a dialogia ordem/desordem pré-existiria como um acontecimento verificável, pois que a interpretação/tradução do acontecimento não precede o próprio acontecimento. Esta tradução caberá ao sujeito.

3. (Des)Ordenando o Mundo

“No Princípio Elohîms criava os céus e a terra. A terra era desordem e deserto Uma treva sobre as faces do abismo Mas o sopro de Elohîms planava Sobre as faces das águas. Elohîms diz: Uma luz será” - E é uma luz Elohîms vê a luz: grande bem!27 O Deus dos Judeus tem muitos nomes. Como lembrou Morin, além de Elohîms, o sopro criador, chama-se Adonaï, o senhor que se adora, e chama-se IHVH aquele que legisla o mundo dos homens - o “Deus-programa que controla a máquina antropossocial” (2005a, p.280). Mas o sopro criador é também o demiurgo ordenador. Chouraqui esclarece que os rabinos relacionam o nome Elohîms às leis fundamentais da natureza (1995, p31) e assim, a criação do universo é um ato de ordenamento e também um ato de normatização. O homem nasce num mundo previamente ordenado, mas outras normas se farão necessárias a partir do momento que os homens se organizam em grupos e em povos. E então Elohîms passa a IHVH. Aquele que criou o mundo natural também organiza a sociedade dos filhos de Adão.

Muito antes que Moisés recebesse os mandamentos do Deus dos Judeus, Hamurabi teria recebido suas leis diretamente do deus Marduk ou Shamash. Trata-se da primeira compilação escrita de leis. Diferentemente dos mandamentos de Moisés, as leis de Hamurabi não regulam apenas as relações sociais do grupo ou da tribo, mas trata também de questões relacionadas ao 27

A Bíblia - No Princípio (Gênesis): tradução e comentários de André:Chouraqui. Rio de Janeiro: Imago, 1995. 548P.


71 espaço da sociedade babilônica, como transferência de propriedade, arrendamento e cultivo de campo e horto, funcionamento das tabernas e atividade de comércio e construção. As leis de Hamurabi tratam da vida na cidade e marcam um processo de sedentarização coordenado pelo rei e relatado no epílogo do Código:

Quando Anu e Enlil deram-me a governar as terras de Sumer e Acad, e confiaram a mim este cetro, eu abri o canal. Hammurabinukhush-nish que traz água copiosa para as terras de Sumer e Acad. Suas margens de ambos os lados eu as transformei em campos de cultura; amontoei montes de grãos, provi todas as terras de água que não falha. O povo disperso se reuniu; dei-lhe pastagens em abundância e o estabeleci em pacíficas moradias".28 Se a natureza foi ordenada pela divindade, a cidade foi ordenada pelo monarca, mas o poder desse monarca nada mais é do que uma extensão do poder da divindade, o que confere às leis um caráter quase de sacramento. Em relação a este período, Lewis Mumford lembra que a cidade “constituía uma réplica do universo fabricada pelo homem”: o “vislumbre do próprio céu”. (1998, p.54) E desse céu estrelado, dessa abóboda celeste que advém, segundo Conche, a noção de uma “natureza como espetáculo ordenado.” (2000, p.272)

No princípio grego havia o caos... Do caos todos os deuses e todo o universo surgiram. “E o caos, de onde veio ele?” Perguntou o ainda moço Epicuro ao seu professor, que então o mandou ir aos filósofos. (JOYAU, 1973, p.11). Se Epicuro procurasse Anaxágoras - se fosse possível tal encontro - este explicaria que a mistura original (caos) foi separada e ordenada pelo espírito (nous), que é “ilimitado, autônomo e não está misturado com nenhuma coisa” (1973, p.269). Novamente o espírito como força externa que organiza o mundo. Mesmo no projeto filosófico grego de superar o mito e em seu lugar estabelecer o logos, o Demiurgo é aquele que institui a ordem e a ordem é boa, como explicou Platão no Timeu.

28

Enciclopédia Mirador Internacional. 1999. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil. Volume 20 v. (11.565 p.)


72 Mas a pólis grega não foi exatamente a manifestação da ordem divina, outrossim da ordem que emergiu daquele grupo social, evoluindo no tempo e espaço. Mumford chama a atenção para o caráter “orgânico” da cidade grega do século V29:

“aquela ordem tinha emergido na forma de uma idéia, nos séculos VII e VI, uma fogosa união de opostos, a restrição e a exuberância, a disciplina apolínea e o delírio dionisíaco, a inteligência racional e a cega intuição, a fuga em direção aos céus e os tropeços na lama: o exato oposto de tudo o que hoje caracterizamos como clássico” (1997, p.178) Não se trata de uma ordem em relação à forma da cidade e sim da organização social que esta cidade abrigava. Mas por que esta dialogia ordem/desordem sucumbiu no tempo, chegando à máxima ordem do período helenístico? Há uma pista na citação de Mumford: a importância princípios apolíneo e dionisíaco, manifestos tanto no modo de vida da pólis, quanto na arte e mais especificamente na tragédia grega. Esta pista leva à crítica astuta de Nietzsche sobre a influência do logos e do nous no teatro grego, consubstanciada na figura de Sócrates:

“Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico e o fora através de um poder demoníaco que falava pela boca de Eurípides. Também Eurípides foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade, que falava por sua boca, não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um demónio de recentíssimo nascimento, chamado SOCRATES. Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e por causa dela a obra de arte da tragédia grega foi abaixo.” (2007, p.76) A crítica de Nietzsche ao que chamou de “socratismo estético” é também uma crítica à inteligilibilidade que passou a nortear a arte (e a própria vida e o próprio mundo) especialmente com o advento do “homem teórico” (op.cit. p.90) e sua ordem filosófica: “tudo deve ser inteligível para ser belo” ou “só o sabedor é virtuoso” (op.cit. p.78). Mais do que isso, é direcionada à “herança de Platão”, que se verá mais adiante em Plotino, Proclo, Agostinho, Espinosa, Schiller e 29

Trata-se do século quinto antes de Cristo.


73 Hegel (CIRNE-LIMA, 2004, p.71). Dos helenistas convertidos no século III dc., o platonismo sofrerá adaptações que resultarão em poderosa “aliança”30, alicerce da cultura cristã no ocidente: moralidade judaica + racionalidade grega.

Sobre a “herança de Platão”, Cirne-Lima chama a atenção para a gradual eliminação da contingência e consequentemente do papel do indivíduo, em sua liberdade e multiplicidade, ao ponto da “história se transformar em lógica” em Schiller e em Hegel (op.cit., p.68). A contingência perturba a ordem e “costuma ser definida como o contrário da necessidade”, conforme explicou ComteSponville (2003, p.124). Aqui então se estabeleceria uma forte dependência entre ordem e necessidade resultando na necessidade de ordem.

Sócrates mostrou como a ordem é útil. Platão mostrou como a ordem é boa e bela. E como em Platão, o bem e a verdade são do mundo das Idéias, a busca pela ordem parte de um modelo ideal, ao qual a razão deve se pautar para lidar com o mundo. E como o espírito se encontra na ordem, a razão - este instrumental do espírito - buscará a ordem seja na interpretação do mundo - a busca pelo nexo e a inteligibilidade do espaço do homem - ou na realização deste mundo - a construção e a transformação do espaço do homem. É por isso, como lembrou Conche, que Platão estabelece o espírito, enquanto “alma inteligente”, como princípio da ordem e do movimento do mundo (2000, p.254) e é a este espírito que se refere Bergson: o espírito como uma potência racional que se reencontra ao mirar o mundo das idéias através da ordem. Esta herança platônica - a crença de que o mundo real é o produto do mundo ideal é chamada por Marx como “a ilusão de Hegel”31, pois “são os homens que produzem as suas representações, as suas idéias”. Ou ainda, “não é a

30

Para alguns autores, esta suposta convergência entre platonismo e teologia cristã teria sido, na verdade, uma espécie de “subversão de conceitos” efetuada pelos helenistas convertidos, como Justino, Tertuliano, Clemente de Alexadria, Orígenes, Gregório de Nazianzo entre outros (cf. Spinelli, Miguel: Platonismo Cristão? Que Platonismo? in Boletim do CPA,, nº 15, jan./jun. 2003, Campinas: UNICAMP. Pp.157-168). Entretanto, mesmo que não tenha sido de fato uma aliança e sim uma adaptação ou mesmo subversão, é inegável a sobreposição de princípios. 31

“Desnorteados pelo mundo hegeliano dos pensamentos, os filósofos alemães afirmam que as idéias, as representações que até então, segundo pensam, quer dizer, segundo a ilusão de Hegel, produziram, determinaram e dominaram o mundo real. Fazem seu protesto e morrem.” (Marx e Engels, 2011, p.524. grifo dos autores)


74 consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (MARX & ENGELS, 2011, p.94).

A crítica de Marx ao “idealismo dos filósofos” é, na verdade, a crítica ao desconhecimento dos vínculos entre discurso e vida material, entre sociedade e idéias. (CONCHE, 2000, p.257). Seria tal “desconhecimento” apenas uma “ilusão”? Em seu idealismo, Hegel concebe o Estado e a Arte, como realizações do espírito cuja verdade é essencialmente racional. Logo, as normas do Estado (que são a expressão de uma ordem social política) “constituem momentos de um devir absoluto” (HEGEL, 1974b, p.600) e os princípios da arte seguem função moralizadora destinada a “suavizar os costumes” e libertar o espírito: “esse é o plano da arte, e a realidade da arte é o ideal” (HEGEL, 1974, p.109, 209).

O movimento dialético do pensamento de Marx em suas críticas a Hegel e à ideologia alemã acaba promovendo uma inversão na relação idéias/essência x matéria/substância. Tratava-se não somente de uma posição contrária ao idealismo, ao cosmismo e ao teísmo como fundamentações da ordem no mundo. Antes disso, foi um questionamento radical da própria ordem existente e consequentemente do discurso daqueles que identifica como adversários: a classe burguesa, os detentores dos meios de produção e seus ideólogos. Posição contrária mesmo, pois se define segundo uma negação. A própria revolução da classe operária, defendida no Manifesto do Partido Comunista, supõe a substituição de uma ordem por outra, mas não sem antes que a desordem seja evocada como força de mudança:

A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie; parece-lhe que uma fome, uma guerra de aniquilação universal lhe cortaram todos os meios de subsistência; a indústria, o comércio, parecem aniquilados. E por quê? (...) As forças produtivas que estão à sua disposição já não servem para promoção das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, e são por elas tolhidas; e logo que triunfam deste tolhimento lançam na desordem toda a sociedade burguesa. (MARX, 1997, cap.1 - grifo nosso)


75 Antes no 18 Brumário, Marx havia sinalizado o embate entre o partido da ordem, de caráter contra-revolucionário, e o partido da anarquia, dos insurretos da Comuna de Paris e relacionado ao socialismo e ao comunismo. Nesta passagem a ordem é evocada no discurso contra-revolucionário ao lado da propriedade, família e religião, palavras que funcionam como “senhas da velha sociedade” (1974, p.341). A tensão entre ordem e desordem em Marx aqui está longe de ser dicotômica, pois apesar de derivar de uma relação de forte antagonismo, também revela relação de dependência: a desordem da revolução é estágio necessário para a criação de uma nova ordem. Desordem aqui é movimento de ruptura e força de mudança que consegue desfazer a ordem instituída e construir uma outra e Marx não hesita em evocar a figura da desordem para descrever o processo revolucionário.

A herança platônica será alvo de outra crítica radical no século XIX: a reversão ou inversão do platonismo defendida por Nietzsche, que surge com mais evidência no prefácio e nos primeiros aforismos de Para Além de Bem e Mal, reunidos como “preconceitos dos filósofos”. A oposição entre mundo real (das idéias) e mundo aparente (da matéria) está, para Nietzsche, longe de uma “vontade de verdade”, pois “o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platónica do puro espírito e do bem em si” (2005, p.8). No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche volta a criticar Platão e seu “mais alto embuste”: “essa fascinação dúbia chamada Ideal”, (2000, p.127 1973, p.351) que cria um abismo entre o que considera a vida ativa - a realidade no plano do vivido - e a especulação metafísica. Os ideais são “fabricados” em “negras oficinas” (1994, p.37).

A inversão do platonismo é comparada, segundo análise de Conche, à inversão materialista da dialética de Marx (op.cit., p.257) - Apesar de ser Nietzsche um crítico da dialética socrática32 e do próprio socialismo. Todavia tanto em Marx quanto em Nietzsche o sujeito e o conhecimento são produzidos e condicionados, o mundo não é uma manifestação - mesmo que imperfeita -

32

“Só se escolhe a dialética, quando não se tem mais nenhuma outra saída. Sabe-se que se suscita desconfiança com ela, que ela é pouco convincente.” (Conche, 2005, p.22)


76 do mundo das idéias e que estas se prestam à relações de poder e de submissão. esta perspectiva é vista, por exemplo, na gealogia da moral e do próprio conceito de “bom”: atos que designam a superioridade de alguns homens - “os poderosos”, “os donos”, “os que mandam” - sobre os outros. (1994, af.4,5).

A rejeição de Nietzsche aos ideais (de bondade, de beleza, de justiça etc.) enquanto valores trans-humanos se inscreve, em última análise, à sua rejeição da própria metafísica33 e as categorias de razão, princípio, finalidade e o próprio Ser, conforme se vê no Crepúsculo dos Ídolos34. Poderíamos incluir a ordem nestes ideais? Parece-me que sim, embora Nietzsche não se refira à ordem em si mesma enquanto ideal (muito menos a desordem), sua rejeição à metafísica pela inversão do platonismo e pela a negação do mundo das idéias enquanto causa e finalidade, permite deslocar a ordem para o plano da invenção, como fez com todos os valores, ideais e com o próprio conhecimento. Uma invenção, de certo, relacionada ao poder, assim como o conceito de bom. Os exemplos de Hamurabi, de Moisés e tantos outros corroboram para tal conclusão. Ordem moral e ordem social caminham juntas, determinando a construção dos juízos e dos padrões de conduta que para Nietzsche enfraquecem e aprisionam o homem.

Tal perspectiva da conduta será retomada por Foucault ao examinar a disciplina, os jogos de poder e os sistemas de legalidade. Afinal, são estes sistemas que definirão regras de conduta na forma de lei, cuja preocupação está em proibir, coibir e impedir:

“é tomando o ponto de vista da desordem que se vai analisar cada vez mais apuradamente, que se vai estabelecer a ordem - ou seja: é

33

esta rejeição à metafísica, manifesta em Para Além de Bem e Mal e no Crepúsculo dos Ídolos, por exemplo, é contestada por Heidegger que vê em Nietzsche o acabamento, a consumação e um “envolvimento definitivo” com a metafísica (Heidegger, 2002, p.68). Contudo, não tenho porque nem como aprofundar-me nesta questão. Vale, para efeitos do presente estudo, ver como rejeição à metafísica a inversão do platonismo e a negação do mundo das idéias como causa, que fundamentam, entre outras coisas, a noção de um ideal de ordem. 34

Cf. A “Razão” da Filosofia. (2000, pp27-34)


77 o que resta. A ordem é o que resta quando se houver impedido de fato tudo o que é proibido. este pensamento negativo é o que, a meu ver, caracteriza um código legal. (2008, p.60) O código legal como instrumento de busca da ordem e de repressão da desordem refletirá dois extremos das relações de poder: expressão da autoridade, de um lado, e obediência do pastorado, de outro. Foucault usa a palavra pastorado em alusão às relações entre Deus e os homens, construídas desde as cosmogonias e tábuas sagradas, com a intermediação do rei (op.cit., p.167). Mas para desenvolver este raciocínio em relação à ordem e ao estado, Foucault se debruça sobre o conceito de ordem:

A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada. (2007, p.XV) Esta interessante passagem – “aquilo que se oferece nas coisas” - será elucidada mais diante, pois não se trata de uma ordem anterior ao homem, mas sim aquilo que a ele se oferece empiricamente, através da cultura e seus “códigos fundamentais”: linguagem, esquemas perceptivos, trocas, técnicas, valores e a hierarquia de suas práticas (2007, p.XVI)

A ordem se manifesta nas “casas brancas” de um quadriculado que nos remete a um tabuleiro de xadrez, minuciosamente construído pela cultura. Neste jogo, práticas e códigos podem ser substituídos ou mesmo invertidos. Para Foucault a questão não está exatamente nas casas brancas e pretas, mas justamente no que chamou de domínio entre estas duas regiões ou casas, uma do que é apreendido

no

uso

e

outra

do

que

é

estabelecido

racionalmente,

filosoficamente, cientificamente, etc. Um domínio onde existiria uma “a experiência nua da ordem e de seus modos de ser”, (2007, p.XVII) onde ocorre a mudança, a opção ou a imposição de uma ordem ou outra. Trata-se, sim de um jogo de contrários - ordem e desordem, claro e escuro, bem e mal – que só


78 está completo num todo se acrescentarmos este intermezzo oculto, que está além das casas pretas e brancas.

Tomei novamente um quadro de Escher para desenvolver um pouco mais este pensamento de Foucault. Nele anjos e demônios são peças complementares de um todo, formado por contrastes e encaixes onde visualizamos preto/branco, bem/mal, céu/inferno, anjo/demônio justapostos regularmente, ordenadamente. Mas onde está o domínio que falou Foucault – “a experiência nua da ordem”? Em Escher, em mim e em você. Este domínio está no quadro e fora dele!

Figura 6: Escher - Heaven and Hell IV – Circle Limits (1960) Fonte: M.C. Escher Official Website35

Aqui há forte componente cultural – e também político - que relaciona negrodemônio-mal em contraposição a branco-anjo-bem. Mas a ordem da composição une os opostos e os entrelaça como duas partes de um mesmo

35

Disponível em http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-bmp/LW436.jpg Acessado em

19/01/11.


79 todo. Assim como no quadro Ordem e Caos é a instância de exercício da ordem que prevalece à suposta e sugerida dicotomia. Há escolha no final, porque se trata, antes de mais nada, de um arranjo, uma composição. Uma escolha afinal... mesmo que não seja entre um ou outro, mas por um e também pelo outro, pelo que se elege como ordem e desordem.

E para investigar esta tensão ordem/desordem justamente em relação aos espaço público e ao espaço coletivo, no âmbito do lugar, era antes necessária uma imersão nos meus próprios fantasmas (des)ordenadores, construídos a partir de dúvidas e inquietações sobre certo e errado, bem e mal, bom e ruim, que se manifestam tanto quando se pratica e vivencia a arquitetura (dos espaços privados, coletivos e públicos); quando se pratica o urbanismo de regulação/controle (que se pretende assepticamente técnico mas que, na verdade, submete, reprime e condiciona) ou que cria espaços de convivência e inclusão. Porque ser o autor de uma tese de doutorado, de uma pesquisa científica, de um projeto urbanístico, de uma obra de arte ou de uma solução institucional é assumir uma determinada posição em relação não só ao que se produz, mas também em relação ao próprio processo de produção. O produto final estaria, de um modo ou de outro, ordenado pelas opções e decisões tomadas durante o processo e orientadas a priori, por convicções e dilemas que, em grande parte e no meu caso, surgiram dentro da formação acadêmica em arquitetura.


80 IV. DO PODER CONCELHIO AO “BOTA-ABAIXO!”

Mencionei no início que Posturas são normas e leis de caráter local que estabelecem princípios básicos de ordenamento das práticas cotidianas no espaço coletivo, contudo seu significado vai muito além.

Entre os juristas brasileiros o emprego do termo foi (e ainda é) objeto de discussões e divergências. Antonio Tito da Costa e Hely Lopes Meirelles, por exemplo, qualificam a expressão como “imprópria”, “obsoleta” e “em desuso”. Reivindicam os conceituados juristas para as deliberações de caráter local a mesma designação dos atos legislativos da União e dos Estados, uma vez que o Município desde a Constituição de 1988 foi alçado à categoria de ente federativo, condição antes restrita aqueles dois níveis de governo36. Ainda que tal consideração esteja correta do ponto de vista técnico jurídico, a palavra ainda é usada com relativa frequência. De minha parte, aceito o termo não apenas porque integre o cada vez mais recorrente discurso de ordem nas cidades brasileiras, mas principalmente porque enfatiza a dimensão geográfica dessa ordem, de caráter local, descendente de uma autonomia, cuja importância julgo necessário e a todo custo preservar.

Além disso, na sua definição jurídica para a palavra “postura”, Cretella Jr. estabeleceu interessante conexão, ao tomar o termo em latim positura do De Natura Rerum de Lucrécio (1978, p.409), onde postura foi traduzida tanto como posição, quanto como ordem e arranjo37. Tal compreensão se aproxima daquela que busco enfatizar: as Posturas não apenas como deliberações ou atos, mas como a própria ordem no mundo-lugar.

36

“No passado empregou-se a expressão postura municipal para designar indistintamente os atos legislativos e administrativos dos Municípios. Tal expressão se acha em desuso por não ter significado jurídico no direito moderno. As deliberações da Câmara e os atos do Prefeito devem receber a designação própria e técnica correspondente: lei, decreto, resolução, portaria, etc. Nem se justifica a errônea denominação de Código de Posturas Municipais, para os regulamentos locais.” (MEIRELLES, 1966, p.468)

37

Sobre tal emprego, ver LUCRECIO, livro I, 683, 910 e 1030. Ou ainda em 683: sunt quaedam corpora, quorum concursus motus ordo positura figurae efficiunt ignis mutato que ordine mutant naturam neque sunt igni (...)” ou seja, “há certos elementos cuja reunião e cujos movimentos, ordem, posição, feitios produzem o fogo (...)” (LUCRÉCIO, 1973, p.47)


81

1. As Hordenaçõoes das Assembléias do Concelhio

Para se compreender as práticas de polícia administrativa nos logradouros da cidade, é necessário voltar no tempo e no espaço. O clássico dicionário enciclopédico português Lello define postura como “posição do corpo, attitude; (...) ordem, disposição emanada das câmaras municipaes. Preceitos, deliberações ou resoluções camarárias sobre assumptos de polícia municipal nos seus differentes ramos ou manifestações. Carecem de approvação superior e revestem, em geral, a forma de um Código, mas as vezes estabelecem-se por um simples edital, assignado pelo presidente do município. Em caso algum podem coarctar direitos invividuaes e de propriedade , nem podem ser contrárias ás leis e regulamentos de administração geral ou distrital.” (LELLO,v.II, s.d., p.746) O emprego da palavra remonta aos primórdios da cidade moderna portuguesa e aos burgos medievais, que gozavam de autonomia para estabelecer normas de caráter local. (GARCIA, 2004, p.38). Em Portugal e Espanha, este poder autônomo mesclou-se ainda com os princípios da administração de cidades utilizados pelos mouros, o que conferiu ao Poder Concelhio português um diferencial em relação às cidades e vilas do restante da Europa. Daí palavras como almoxarife, alcaide, almotacé, alfândega e alvará entre outras, representando cargos, funções e instrumentos administrativos cujo uso ainda hoje se verifica (COELHO & MAGALHÃES, 1986, p.4).

Em Portugal o Poder Concelhio se instituiu antes mesmo que o próprio Reino. Sua peculiaridade legislativa nasceu das Cartas de Forais, introduzidas em 1050 pelo Concílio de Coyanza e, conforme lembra Lobo, o caráter particular dos forais retardou em muito a adoção de leis gerais e próprio processo de unidade nacional (2006, p.481). Com o gradual fortalecimento da Coroa, mudanças institucionais e legislativas foram gradualmente introduzidas até que no Século XIV surgiram ordenações gerais, como Livro das Leis e Posturas38 e 38

A palavra posturas também foi usada para deliberações reais, como se viu no Livro das Leis e Posturas. Segundo Fernandes, “trata-se de uma compilação sem data precisa, segundo as referências dos estudiosos, a qual deve ter sido coligida no reinado de D. João I” (2004, p.80) Ou seja, entre 1385 e 1433.


82 as Ordenações dos Pelouros (1391), que definiram os cargos da administração pública, envolvendo os papéis dos Vereadores, dos Corregedores de Comarcas, dos Alcaides, dos Tabeliães, entre outros. Carvalho Homem destaca que neste período alterou-se profundamente a autonomia do Poder Concelhio, fosse pelo crescimento populacional urbano que inviabilizava as assembléias vicinais, fosse pela intromissão dos poderes do Rei, das ordens militares ou do clero, ou ainda pela “complexidade acrescida das matérias do governo da comunidade como que crescentemente exigia a presença de “especialistas” na gestão do quotidiano municipal, a qual poderão tender a – elitisticamente – monopolizar.” (CARVALHO HOMEM, 2006, p.39). Neste contexto, pode-se dizer sem embargo que, apesar da presença do alcaide e do corregedor, o Poder Concelhio era exercido essencialmente pelos vereadores, representantes de uma emergente oligarquia de “homens bons”, formada pelos “homens de cabeceira”, isto é, fazendeiros influentes que formavam a “cavalaria vilã”, chegando alguns a permanecer na vereação por mais de vinte anos, num mandato quase vitalício (MORENO, 1996, p.112 e 117). No caso de Lisboa, Porto e outras cidades maiores, ricos comerciantes também

tiveram

papéis

significativos

nas

vereações

(e

também

na

administração pública), representando uma oligarquia urbana que então se consolidava.

As Posturas eram assim a expressões normativas da autonomia dessas oligarquias de homens-bons, cujo poder era intransigentemente defendido contra interferências seja da Coroa ou de outro poder que não fosse local. Moreno traz registros da rejeição veemente tanto da presença de magistrados nas assembléias do Concelhio e quanto da nomeação de fidalgos para a função de alcaide, cuja tradição do cargo exigia “huu homrrado çydadão” (op.cit. p. 121).

O papel dos vereadores foi definido no Livro Primeiro, Título XXVII das Ordenações Afonsinas e em relação às Posturas o item 7 estabelece:


83

Figura 7: Ordenações Afonsinas, Livro I - Título XXVII, p.174.

Aqui o termo hordenaçoões é usado como sinônimo de Posturas, neste e em vários

outros

trechos39:

nas

Ordenações

Manuelinas

a

palavra

hordenaçoões foi devidamente substituída por Posturas, sem alteração do sentido do objeto:

Figura 8: Ordenações Manuelinas, Livro I - Título XLVI, 2840.

As Ordenações Manuelinas, no Livro I, Título XLVI, esmiúçam mais as atribuições dos vereadores e reforçam o poder das Posturas. O item 9, por exemplo, impede ao Corregedor da Comarca, Desembargador ou outro Oficial de revogá-las. O item 10 proíbe a entrada dos “Senhores da Terra” e seus ouvidores na Câmara, exceto sob autorização dos vereadores.

A despeito das ordenações régias eram as Posturas que regulavam de fato muito das atividades econômicas nas cidades, controlando inclusive preços e o próprio abastecimento local chegando a definir mesmo as quantidades de mercadoria a comerciar. Figueiredo traz interessante registro de uma postura do Concelhio do Porto, de 1497, que trata da desocupação de um logradouro 39 40

Op.cit. pp 177 e 179.

“Proveram as Posturas e Vereaçoes, costumes antigos da cidade, ou villa; e as que virem que são boas, segundo o tempo, façam-nas guardar, e as outras façam corrigir, e outras façam de novo se cumprir ao prol e bom regimento da terra.” (Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel. Coimbra, 1797, Livro I - Título XLVI , p.325).


84 da cidade, a Ribeira, obrigando a retirada de tudo que a obstruísse ou a ensombrasse, ou seja: “tavolleiros e tabernacollos en cima de suas portas os quaees hocupavom muito a dieta praça e desfazia muito nella e os quaes visto ho empedimento e ocupaçom que faziam aa dieta praça”. (FIGUEIREDO, 1996, p.104) As penalidades estabelecidas pelas Posturas costumavam ser duras e geralmente resultavam em cadeia, o que demonstra a força do poder local que detinha também funções de polícia judiciária, apesar da presença dos alquaides e corregedores da corte incumbidos de aplicar as leis gerais. Com tal propósito, as Ordenações Afonsinas reuniram no Livro V um autêntico Código Penal e Criminal. Este livro trata de alguns assuntos que também foram objeto das Posturas de alguns Concelhios e mesmo da própria Cidade do Rio de Janeiro, entre os quais ordenações relativas aos escravos, aos vadios, às alcoviteiras, aos feiticeiros e às bestas e muares.

Dessa rápida investigação histórica identifico nas origens do termo Postura na tradição portuguesa três aspectos a destacar:

está diretamente relacionado à noção de ordem, chegando mesmo a ser tomada como sinônimo da mesma; é uma deliberação que se inscreve espacialmente e está vinculada à escala do lugar, da cidade e da vila; afirma a condição de autonomia do lugar (vila ou conselho) em relação ao poder central ou provincial e trata das questões segundo o recorte espacial e do interesse do grupo social dominante.

Sobre o conceito de ordem neste período, vale ressaltar que antes mesmo da intenção de controle da vida e do cotidiano nos espaços da cidade o que está em jogo é o controle da cidade enquanto território de um determinado grupo de poder: daí a tensão entre a autonomia local (ordem próxima e peculiar) e o poder central (ordem distante e geral).


85 Este complexo modelo de governo, com sua tensão entre a ordem local e a ordem geral (do reino e depois da metrópole) foi trazido para o Brasil e, de certa forma, contribuiu para o desenvolvimento das cidades e vilas da colônia, quando a ordem geral tornou-se também uma ordem ainda mais distante e, muitas vezes, inadequada à vida nas colônias. Reis Filho destaca este diferencial41, especialmente na consolidação de uma oligarquia local de homens-bons: “A insuficiência das Ordenações e mesmo o inconveniente do cumprimento de parte delas seriam percebidos logo pelos primeiros povoadores (...). O isolamento das povoações exigia frequëntemente de seus moradores a solução de problemas que, em. condições normais, seriam de competência do Governo Central. Se, por um lado, esta condição de vida representava uma desvantagem e a exigência de sacrifícios suplementares (...) por outro, representava uma autonomia não prevista na legislação, já que eram transferidas para as câmaras as responsabilidades de inúmeras decisões de que se beneficiariam largamente os grandes proprietários rurais de quem as câmaras eram instrumento.” (REIS FILHO, p.36)42 Gradualmente as vilas e cidades da colônia foram se desenvolvendo, as Câmaras assumindo um papel mais efetivo no processo e Posturas começam a ser editadas. Taunay descreve passagem relativa às Posturas da Vila de Piratininga: “Eram as posturas, aceitas em Câmara, solenemente apregoadas a mandado dos almotacéis e em ocasião em que todos os moradores da Vila pudessem ouvi-las. Assim se determinou que todos os atos municipais fossem tornados públicos, aos domingos, depois da missa, no adro da Vila, em frente à igreja, reza o termo de 24 de maio de 1583. Não decorria o ato desprovido de certo cerimonial para que aos olhos dos paulistanos não se revestisse de imponência. Lia o escrivão da Câmara as posturas junto ao pelourinho, repetindo-as a gritar o porteiro, e tempos a tempos

41

esta posição de Reis Filho contrasta com a de alguns juristas, entre os quais Lobo que reclamam do enfraquecimento do Poder Central, em especial do ponto de vista jurídico, “conduzindo a nação ao deplorável estado de não ter leis uniformes para poder assegurar a unidade nacional.” (2006, p.481). Talvez este pensamento tenha contribuído para as posições de Costa e Meirelles criticando o uso do termo posturas no atual cenário do Município no Brasil.

42

Outro aspecto a ser considerado para o enfraquecimento das ordenações como expressão da ordem distante na colônia foi o período de Unificação Ibérica, que resultou nas Ordenações Filipinas. A conflituosa relação de Portugal com a coroa da Espanha, distanciou ainda mais a ordem de caráter geral e permitiu às Câmaras uma maior autonomia e conferiu às posturas um papel ímpar na história do Brasil.


86 reformava a Câmara o seu código, como o fez na sessão de 14 de abril de 1590, tomando uma série de providências acerca da moralidade pública, das relações dos brancos com os índios, do modo de se guardarem os rebanhos, das providências sobre incêndios, etc.” (TAUNAY, 2003, p.84) As Posturas tratavam, geralmente, de questões edilícias, de higiene, moralidade e de abastecimento. Pereira cita o caso de Curitiba, cujas Posturas seriam criadas a partir de 1721 quando da visita do ouvidor geral de São Paulo, Rafael Pires Pardinho e suas instruções para “o correto funcionamento das instituições municipais” (PEREIRA, 2003, p.8).

Com a chegada da Corte em 1808 e a criação da Intendência Geral da Polícia43 houve uma clara ruptura no papel desempenhado pelas Câmaras na manutenção da ordem pública nas cidades e vilas - primeiramente no Rio de Janeiro. Antes da criação da Guarda policiamento era feito por um serviço de vigilância de “quadrilheiros”, uma espécie de guarda civil temporária. Uma passagem pitoresca desta atuação da polícia de Posturas foi narrada por Manuel Antonio de Almeida quando o Major Vidigal interrompe uma “roda de caboclos” numa casa para as bandas do mangue, onde se “tirava a fortuna”. Neste caso, os vadios foram devidamente chicoteados enquanto o oficial de justiça que participava do rito foi levado à Casa da Guarda, no Largo da Sé.

O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a este ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo (...) Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. (ALMEIDA, 2005, p.25) O intendente, além de ser o chefe da Guarda Real de Polícia, também passou a desempenhar outras funções “como administrador da cidade e juiz” conforme destacou Bretas (1997, p.41). Ou seja, o intendente acumulou as funções de alcaide e corregedor, assim a ordem distante passou a ser exercida na própria 43

Pelo Alvará Régio de 10 de maio de 1808. BRETAS, 1997, p.41)


87 cidade do Rio de Janeiro: seus instrumentos tornaram-se visivelmente presentes tanto na institucionalidade do poder de polícia - agora em parte desvinculado da Câmara e das Posturas - quanto no controle do próprio território, que se reconfigura a partir da presença da corte e da guarda, esta formada exclusivamente por portugueses.

Apesar de todas as medidas e dispositivos legais decorrentes da nova condição de Reino do Brasil, as Câmaras continuaram regidas pelas Ordenações Filipinas até a Constituição de 1824 e a decorrente Lei de 1o de Outubro de 1828, conhecida como Regimento das Câmaras Municipais, demarcou o recuo do poder local no Brasil e com ele a extensão e importância das Posturas. Apesar de o Regimento definir melhor as “Posturas Policiais”, destinando um título inteiro sobre o assunto, tal preocupação decorreu de uma redefinição do papel das Câmaras, doravante reduzidas à “corporações meramente administrativas”44. O Regimento não somente retirou o que restava de caráter judiciário que as Câmaras mantinham até então como também condicionou as Posturas à aprovação dos Conselhos Gerais das Províncias45. Mera formalidade que serviu muito mais para sinalizar o lugar político ocupado pelas Câmaras na hierarquia de governo, pois os Conselhos aprovavam as Posturas sem maiores alterações, conforme destacou Campos (1988, p.43).

De um modo geral o Regimento das Câmaras definiu como sendo assunto de Posturas Policiais46: alinhamento, limpeza, iluminação, conservação e desempachamento de lugares públicos; saneamento e salubridade, incluindo cemitérios, pântanos, currais, matadouros, etc.; conservação das edificações e atividades de construção;

44

Constituição de 1824, artigo 24. (Constituições do Brasil, 1954, p.56)

45

Lei de 1 de Outubro de 1828, artigo 72. (Op.cit., 1954, p.67)

46

o

o

Lei de 1 de Outubro de 1828, artigo 66. (Op.cit., 1954, p.64-66) Como alguns incisos agrupavam mais de um tema, tomei a liberdade de relacionar os assuntos de modo diverso. O artigo consta transcrito, conforme a redação original no Anexo I.


88 segurança

dos

lugares

públicos,

incluindo

cautela

com

loucos,

embriagados e vadios; vozerias, injúrías, e obscenidades contra a moral pública; gado e animais soltos, ferozes ou danados, répteis venenosos e insetos nocivos; construção, reparo e conservação das estradas, caminhos e arborização; rossios e pastagens públicas; venda e abate do gado nos matadouros públicos e conforme medidas da Câmara; feiras, mercados, abastecimento e salubridade do comércio; pesos e medidas; lugares apropriados para venda de pólvora e explosivos; espetáculos públicos.

Sobre a expressão “Posturas de Polícia”, lembra Campos que o Regimento utilizava o “sentido antigo” do termo polícia, ou seja, “educação, civilidade” (op.cit., 1988, p.43). De fato, Bobbio destaca que “o termo indicou, na Idade Média, a boa ordem da sociedade civil, da competência das autoridades políticas do Estado, em contraposição à boa ordem moral, do cuidado exclusivo da autoridade religiosa.” (BOBBIO, 1988, p.944) Considerando que tal definição seja a mais precisa em relação ao propósito do Regimento de 1828, é necessário destacar a influência do modelo francês police47 na criação tanto do cargo de Intendente Geral de Polícia da Corte quanto das funções da própria Guarda Real de Policia em 1808.

Com base nas funções “meramente administrativas” das Câmaras e da organização funcional da polícia identificada por Bobbio (op.cit. p.945) pode-se deduzir que as Posturas, enquanto preceitos de polícia administrativa, teriam caráter essencialmente preventivo e não repressivo como a polícia judiciária,

47

Segundo Norberto Bobbio no modelo francês a police, embora entendida de início como conjunto das atividades de Governo” foi se ajustando, a partir de definições jurídicas e intervenções de âmbito administrativo, às medidas e estrutura dedicada “à segurança e à tranquilidade dos súditos (e do príncipe).” (1988, p.410)


89 sob responsabilidade das Províncias. Mas o Regimento estabeleceu ainda que as Câmaras, através das Posturas, poderiam aplicar penas de prisão e multas, mas os açoites também eram utilizados, com vários exemplos no caso das Posturas do Rio de Janeiro de 1838.

Ou seja, apesar das funções “meramente administrativas” da Câmara, as Posturas seriam também cumpridas pela guarda, ainda que esta estivesse subordinada ao Intendente ou a outra instância do governo do Império, uma vez que continha dispositivos relacionados à ordem pública, especialmente na repressão às vozerias, batuques, vadiagem e outras práticas que atentassem contra a moral pública. Tomarei este momento e este documento para analisar com mais propriedade as Posturas do Rio de Janeiro.

2. O Primeiro Código de Posturas do Rio

“A Illustrissima Camara Municipal desta Muito Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro faz saber...”48 Começo a tratar das Posturas Municipais do Rio de Janeiro a partir do Código de Posturas de 1838. Não que antes não existissem Posturas no Rio, haviam muitas e há muito tempo... Porém, além de tratar-se do Primeiro Código de Posturas da cidade, seu esboço histórico nos conta a dificuldade do Arquivo Municipal em resgatar e manter os documentos antigos assim como o funcionamento da própria repartição: Em 1781, o ouvidor Antonio Pinheiro Amado providenciou afim de que se fizessem livros distinctos onde se lançassem todas as posturas do Senado da Câmara que se encontravam escriptas nos livros de vereança e de accordãos. Em 1799, resolveram os vereadores resguardar, mediante medidas acertadas, a preciosa correspondência da corporação. (...) O Incêndio de 1790, consumiu quase a totalidade dos importantes documentos do Archivo. Escaparam á catastrophe os livros de vereança que abrangem os annos de 1595 a 1683 e de 1717 a 1725.”(Consolidação das Leis e Posturas Municipaes, 1905, p.94)

48

Extraído dos Editais de Posturas do Século XIX.


90 O primeiro Código de Posturas da cidade foi aprovado em sessão da Câmara Municipal em 11 de setembro de 1938. O Código não foi o mais antigo registro de compilação de Posturas que se conhece, pois em 30 de outubro de 1830 a Câmara elaborou o documento Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, cujo conteúdo corresponde a grande parte do Código aprovado oito anos depois. Contudo, além de não evocar a condição de Código, não chega sequer a ser efetivado, pois meses depois, em 1831, se inicia o período de Regência Imperial e as consequentes mudanças políticas e legais, incluindo o Ato Adicional de 1934 que conferiu maior autonomia para as Províncias.

Ainda em 1834 os edis iniciam uma revisão das Posturas de 1830, porém o Código somente foi aprovado e publicado pela Câmara em 1838 (Los Rios Filho, 1946, p. 108, Andreatta, 2006, p.90). Outros autores, como Souza (2007, p.32) consideram a iniciativa de 1830 como sendo, de fato, o primeiro Código de Posturas, que só foi “oficialmente publicado” em 1838, após o trabalho de revisão.

O Código de Posturas de 1838 manteve as duas secções previstas nas Posturas de 1830: Saúde Pública e Polícia, acrescentando alguns dispositivos e alternando outros. Na maioria das vezes o Código de 1838 foi mais restritivo e mais específico em suas deliberações. A mudança mais recorrente, além do aumento de valores das multas, foi uma tipificação mais precisa do objeto ou da situação a ser regulada.

À secção de Polícia, contudo, foram acrescentados três novos títulos, dois deles focando situações cotidianas em logradouros e locais públicos: negócios fraudulentos, vadios, “tiradores de esmolas”, rifas e escravos (Título VII); casas de bilhar, jogos de entrudo e theatros (Título VIII).


91

Quadro I - Estrutura do Código de Posturas de 1838 1a Secção: Saúde Pública: Título I - Cemiterios e Enterros Título II - Venda de Gêneros e Remedios Título III - Estagnamento de Pantanos e Águas Infectas e Tapamento de Terrenos Abertos Título IV - Economia e Aceio dos Curraes e Matadouros Título V - Hospitaes, Casas de Saúde Título VI - Cortumes, Fabricas, Manufaturas e depósitos de Immundicies Título VII - Objectos que Corrompem a Atmosphera 2a Secção: Policia Título I: Alinhamento das Ruas e Edificações Título II: Sobre Edifícios Ruinosos, e Quaesquer Precipícios nas Vizinhanças das Povoações Título III: Sobre Limpeza e Desempachamento das Ruas e Praças, e Providencias contra a Divagação de Loucos e Embriagados, de Animaes Ferozes e dos que podem incomodar o publico.) Título IV: Sobre Vozerias nas Ruas, Injurias e Obscenidades Contra a Moral Pública Título V: Sobre Estradas, Caminhos, Plantações de Árvores e Extinção de Formigas Título VI: Sobre a Policia dos Mercados, Casas de Negocio, Portos de Embarque e Pesca Título VII: A Respeito dos Negócios Fraudulentos, de Vadios, de Tiradores de Esmolas, de Rifas de Ganhadores e de Escravos Título VIII: Sobre Bilhares, Entrudo e Jogos, a Respeito de Theatros, Moeda de Cobre, e Marcas nas Obras de Ouro e Prata Título IX: Sobre Alistamento dos Habitantes do Município, a Armas que Poderão Trazer Título X: Sobre Diversos Meios de Manter a Segurança, Commodidade e Tranquilidade dos Habitantes Título XI: Sobre Vaccinas e Expostos Título XII: Disposições Geraes á Cerca dos Meios de Execução

Fonte: Código de Posturas da Illustríssima Câmara Municipal, 1860.

Sublimarei a tentação de um mergulho histórico nas Posturas do Rio de Janeiro - o que exigiria um esforço similar ao próprio objetivo desse estudo - para aterme na construção do sentido de ordem no espaço público segundo as Posturas Municipais de 1838. Conforme ressaltei anteriormente, seguindo o pensamento de Gomes, Sennet e Abreu49, o espaço coletivo assume o caráter de público quando seu arranjo resulta de relações que pressupõem a isonomia entre aqueles que o vivenciam e experimentam, cotidianamente. Nem sempre as Posturas serviram a este propósito. O Código de 1938 apenas demonstrou a 49

SENNET, 1988, p.31; GOMES, 2006, p.159 e ABREU, 2010-II, p.445.


92 condição desfavorável de escravos, loucos, marinheiros e miseráveis (muitas vezes classificados como vadios) na sociedade urbana de então.

Os loucos teriam de ser conduzidos à Santa Casa da Misericórdia (SII, TIII, §750); as casas de batuques e zungú foram proibidas (SII, TV, §7); ajuntamentos de mais de quatro escravos não eram permitidos nas tavernas e “lugares públicos” (Seção II, Título VI, §12); os “reconhecidamente vadios” teriam de ser detidos51 (SII, TVII, §6); os escravos não poderiam transitar nas ruas à noite sem a autorização escrita do senhor (SII, TVII, §6); assim como não era permitido aos marinheiros andar em terra à noite (SII, TX, §27) e a esmola era condicionada à licença da Câmara (SII, TVII, §3).

Para impor a ordem emanada das Posturas a Câmara contava com os fiscaes mas alguns dispositivos davam poderes à Guarda. Mas que Guarda era esta afinal? Tratava-se do Corpo de Guardas Municipais Permanentes, instituição de caráter militar e remunerado, criada em 1831 e subordinada ao Intendente e ao Ministério da Justiça, que passou a ser denominada de Corpo Militar de Polícia da Corte em 1866 e de Brigada de Polícia da Capital Federal em 189052. É a esta corporação que se referem às Posturas de 1838 quando estabelecem que:

“§3. A autoridade dos fiscaes é cumulativa em todo o município e os guardas municipaes são obrigados a obedecer-lhes todas as vezes que sejam chamados para qualquer diligência. §4. Os guardas ficam autorizados a mandar por em custódia á sua ordem, até satisfação da multa, os infractores de posturas que

50

Daqui para frente para referência da postura no Código, substituirei a expressão Seção X, Título Y e §n pela abreviatura (SX, TY, §n). 51

“Exceptuam-se desta diposição os mendigos que foram visivel e reconhecidamente incapazes de serem ocupados em qualquer trabalho, em quanto se não dão outra providência a respeito dos mesmos” (Seção II, Título VII, §6).

52

Musumeci e Muniz relatam a evolução institucional do serviço de polícia no Rio de Janeiro, desde a substituição, em 1831, da Guarda Real de Polícia pela Guarda Municipal (de caráter civil e não profissionalizada) e pelos Oficiais-Soldados ou Voluntários da Pátria (remanescentes da Guarda). Tal solução institucional durou pouco. No mesmo ano, além do Corpo da Guarda Municipal Permanente, foi criada a Guarda Nacional, um serviço paramilitar não remunerado e obrigatório, que foi desativada e absorvida pelo Exército em 1922. (2000, pp 3-8)


93 forem, desconhecidos ou escravos; e a mandá-los soltar, quando no artigo violado não haja pena de prisão.”(S2, TXII). Apesar desse dispositivo, a Guarda Municipal não estava subordinada à autoridade local (muito menos aos fiscaes) e sim ao Império. E como tratava-se de uma instituição militar, sua relação com autoridades civis, como a própria Secretaria de Polícia da Corte era permeada por tensões. A tentativa de instaurar a Guarda Urbana, de caráter civil e destinada ao policiamento de Posturas, com atuação regionalizada segundo bairros e formada por moradores “de reconhecida moralidade” não logrou êxito e perdurou apenas entre 1865 e 1885 (MUSUMECI & MUNIZ, 2000. p.6). Vê-se que a necessidade do apoio policial para ações de manutenção da ordem instaurada pelas Posturas é antiga e estará na base de argumentação para a criação das atuais Guardas Municipais53.

Cabe destacar no Código de 1838 o uso constante da expressão “lugares públicos” que tanto poderiam ser as ruas, as praças de mercado e os logradouros em geral, como também as tavernas, casas de negócio, teatros e estabelecimentos comerciais. Ou seja, em determinados lugares não havia contradição entre público e privado. Tavernas e estabelecimentos comerciais são negócios privados em espaços abertos ao público (ainda que por um período determinado de tempo) onde o proprietário responde perante a Câmara pela ordem em seu interior e o cumprimento das Posturas. O taverneiro, por exemplo, poderia ser multado e até mesmo recolhido à prisão nos casos de ajuntamento de pessoas com “tocatas, dansas e vozerias” no estabelecimento (SII, TVI, §10).

“As ruas, praças e praias do Rio de Janeiro foram locais de intensa atividade e burburinho no período colonial. Ali se circulava, se trabalhava, se consumia, se brigava e se divertia. Lugares de atuação preferencial do "povo" e dos escravos, os espaços coletivos foram objeto, igualmente, de intenso controle por parte do Estado e 53

Cabe registrar a diferença entre as Guarda Municipal do Império e a criada pelo prefeito Cesar Maia em 1992. Enquanto a primeira deu origem à atual Polícia Militar, dedicada à manutenção da ordem segundo o Código Penal e a política de segurança, a segunda volta-se claramente para as posturas municipais.


94 serviram de cenário para a imposição pública de numerosos castigos, inclusive capitais. Desempenharam, por fim, um papel importante na realimentação contínua das estruturas sociais vigentes, servindo, não raro, de palco para a reafirmação das práticas e representações de poder.” (ABREU, 2010, p.445) Registro de viagem do alemão Ernst Ebel sobre o Rio de Janeiro em 1824, citado por Paranhos Antunes, trata de um cenário de negros seminus em constante movimento e alarido, fosse no transporte de sacos de café e barris de vinho, ou na venda de água, doces e bananas.

“Nada se faz sem canções e gritos. O ruído ainda é aumentado por uma tropa de mulas carregadas com café, que se reúne em frente à nossa casa, enchendo a rua. Depois, ressoa mais um formidável barulho, como se estivessem quebrando ferro e pedras. É um enorme carro de duas rodas que passa, puxado por dois possantes bois e carregado com pedras para construção; as grandes rodas maciças e de construção grosseira giram juntamente com o eixo, produzindo esta música infernal. E todo este terrível barulho, que nos deixa com a cabeça realmente tonta, é ainda acrescido do repique quase contínuo dos sinos.” (ANTUNES, 1961, p. 121,122) É este espaço de movimento e agitação que julgava-se (e ainda julga-se) desordenado e carente de controle. Entretanto, não seria exatamente o ruído, que tanto incomodou o viajante alemão, o real motivo da ação ordenadora do governo local, como ressalta Souza:

“depois das revoltas ocorridas ainda na Regência, a chamada arraiamiúda passou a ser reconhecida pelos governantes como um fator de risco à manutenção da ordem pública e à preservação do poder constituído. Portanto, decidir sobre a proximidade do convívio entre os sujeitos do poder, as instituições que representavam os poderes gerais e esta força política potencialmente perigosa, representada pelos trabalhadores pobres da cidade, era uma das mais importantes atribuições a serem desempenhadas pelos sujeitos responsáveis pelo governo da cidade.” (SOUZA, 2007, p.32) A regulação e ordenamento do espaço da cidade como forma de enquadramento dos pobres e de grupos marginalizados é perceptível em vários momentos da história. Tratando do racionalismo do espaço burguês no século XIX e XX, Lefebvre descreve como “uma estratégia de classe orientou a


95 análise e a decupagem da realidade urbana” (2001, p30). Mesmo que o ambiente do Rio de Janeiro do primeiro Código de Posturas não correspondesse ao da cidade burguesa européia e mesmo ao Rio de Janeiro das reformas urbanas do século XX, de certa forma o antecipa. Os principais argumentos do discurso da ordem que as Posturas evocaram podem variar de uma época para outra - moralidade e segurança no Império; higiene e racionalidade na República, mas a necessidade de controlar o espaço e, com isso, definir e lugares e papéis, atividades e domínios, se mantêm como produto de uma relação de poder.

A regulação dos “lugares do povo” ou dos “lugares públicos” era (e ainda é) a essência das medidas de polícia estabelecidas nas Posturas, geralmente agrupadas

sob

títulos

de

ordem

pública,

costumes,

moralidade

e

empachamento. A palavra empachar quando aplicada ao espaço público toma o sentido de obstruir; impedir, sobrecarregar, embaraçar e perturbar, ações geralmente decorrentes da apropriação e do uso desses espaços por indivíduos e grupos. Indivíduos e grupos que aqui formam uma noção geral do “povo da rua” ou simplesmente “povo”: escravos e trabalhadores pobres. A rua enfim é o lugar da “arraia-miúda” e do “populacho”, que nela está e trabalha, enquanto integrantes da pequena elite local apenas transitam por ela de um lugar a outro. Damázio lembra que em 1890 cerca de 72% da população possuía somente sua força de trabalho e em 1906 este percentual subiu para 78% (1996, p.39), logo os serviços e o comércio nas ruas representavam não somente alternativa para reforço do orçamento doméstico como até o principal ganha-pão, inclusive para várias mulheres que assim conquistaram espaços no fechado mercado de trabalho de então. (op.cit., p.38)

Alguns desses ofícios de rua construídos na “academia da miséria” foram registrados nas atentas crônicas de João do Rio:

“Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! O ofício e as ocupações não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos repórteres.” (1997, p.90)


96 Vocações de rua, como trapeiros, apanha-rótulos, selistas, leitora de buena dicha, ratoeiros, caçadores de gatos, sabidos (catadores de cisco), tatuadores, (op.cit. p.91 e seguintes) são raramente mencionadas nas Posturas, mas não significa que não fossem reprimidas pela fiscalização, geralmente nas medidas de desempachamento, de combate à vadiagem e de licença. Porém nem sempre tais medidas logravam êxito. Foi o caso, citado por Damázio, da vendedora de laranjas do Largo de São Francisco que proibida pela Câmara de ali instalar seu tabuleiro, retornou ao local depois de forte pressão de seus fregueses, incluindo os estudantes de Direito (op.cit., p.38).

Nesse contexto, a desordem aparente dos espaços coletivos e dos lugares públicos é antes um discurso de controle que ideal urbanístico. Sua evidência e constatação decorrem de um plano ideológico que se manifesta como se fosse uma lente, através da qual se interpreta o lugar público. O mote que mais tarde justificou o urbanismo enquanto ciência e as grandes intervenções urbanas.

Outros dispositivos do Código de Posturas destinavam-se ao funcionamento do comércio em estabelecimentos (SII, TVI), incluindo horário de fechamento (§3); licença annual (§4,28,31); padronização de pesos, medidas e balanças (§§5,6,12) e a definição de locais de adequados para a prática do comércio, conforme tipos de mercadorias (§1, 23,25). Neste caso as Posturas permitem compreender que o logradouro, apesar de objeto de rigoroso controle e vigilância, era essencialmente o espaço do comércio: “Permitte-se a todas as pessoas vender pelas ruas da cidade legumes, fructas, aves e peixe, bem como outro qualquer comestível; sendo prohibido estarem pousadas em lugares públicos fora das praças e largos para isso destinados pela Câmara.” (Código de Posturas, Seção II, Título VI, §1) “É livre a qualquer um vender peixe pelas ruas desta cidade e seu termo trazendo para este effeito uma licença annual da Câmara.” (Op.Cit., Seção II, Título VI, §25) A redação desses dispositivos chama atenção para seu caráter positivo: “permitte-se a todos” e “é livre a qualquer um” são expressões que incentivam


97 mais do que restringem - poder-se-ía reescrevê-las como uma restrição: “é proibido comerciar sem a devida licença e fora dos locais designados pela Câmara”. Numa e noutra situação a atividade estaria condicionada, porém são distintos os efeitos dos discursos. Num tempo e lugar em que se proibiam cativos de administrar negócios (§9) e estrangeiros de vender retalhos (§20), tal postura demonstra, no mínimo tolerância em relação a uma prática que se mostra necessária tanto ao abastecimento quanto à economia local.

Um ponto a destacar no Código é uma certa flexibilidade verificada em relação a algumas práticas cuja proibição salvaguardava situações cotidianamente aceitas. É o caso da proibição da retirada de areia das praias que não incluía “as pequenas porções de areia indispensáveis aos usos domésticos” e não se destinassem às obras e ao comércio (SII, TII, §4) e a proibição de vozerias, alaridos e gritos nas ruas “sem ser para objecto de necessidade” (SII, TIV, §2). Tais situações poderiam ser traços do direito consuetudinário que se respaldava pelos antigos costumes das vilas, cujo elemento material é a repetição de uma conduta, uso ou prática, que ainda pressupunha certo grau de razoabilidade e de oportunidade na aplicação da postura.

As Posturas, em geral, tratam dos problemas e incômodos que algumas práticas provocam no cotidiano da cidade, cuja regulação evidencia a tensão entre o vivido e o concebido, entre o praticado e o desejado, entre o público e o privado, entre a ordem próxima e a ordem distante (Lefebvre, 2001, p.52). Rastreando as Posturas do Rio de Janeiro do século XIX teremos pistas do ambiente da cidade. A preocupação com o alinhamento da ruas e edificações (SII, TI), com a limpeza de currais e matadouros (SI, TIV), com a presença de cavalos e muares atados às portas das casas (SII, TIII, §6), condução de tropas de animais pelas ruas (SII, TIII, §10 e11) e com a presença de caprinos nas praças (SII, TIII, §13) revelam a transição do rural para o urbano, com o adensamento e diferenciação segundo classes sociais nas freguesias urbanas da Candelária, São José, Sacramento, Santa Rita e Santana e com o retalhamento das fazendas nas freguesias rurais de São Cristóvão, Glória e Lagoa e também (ABREU, 1997, p.37).


98 Apesar das Posturas de 1838 raramente se referirem especificamente a algum logradouro da cidade, algumas proibições são dirigidas aos lugares onde o adensamento se dá com maior intensidade, resultando em mudanças nos logradouros como a instalação de lajes de passeios e de alinhamento das ruas. Aí a preocupação dos edis volta-se para o calçamento (SII, TI, §12), limpeza das ruas (SII, TIII), objetos pendurados nas janelas (SII, TIII, §5) e o trânsito de cavalos (SII, TIII, §9,11). As praças de mercado e as praias foram contempladas com Posturas ajustadas aos respectivos tipo e uso. Já a lagoa Rodrigo de Freitas mereceu tratamento mais específico por conta do movimento das águas. Proprietários e arrendatários das terras localizadas na barra e arredores da lagoa foram obrigados a contribuir com escravos para os trabalhos de “entrada” (SII, TVI, §27).

O Código de 1838 permanecerá em vigor até 1905, quando um novo veio a ser elaborado no governo de Pereira Passos. Durante mais de sessenta anos a Câmara se valeu de editais que ou alteravam Posturas antigas ou criavam novas, acompanhando as profundas alterações da estrutura urbana da cidade, especialmente a introdução dos trens em 1858 e dos carris a tração animal em 1868 (Abreu, 1997, p.44). Sendo a maioria das Posturas relacionadas ao trânsito posteriores a esta última data. Outras Posturas apontam para a intensificação de atividades comerciais em freguesias mais afastadas, como a criação de uma nova praça de mercado e feiras em Campo Grande e Realengo ou a regulação da pesca e de bancas de pescado em Guaratiba e Barra da Tijuca. Mas no geral as Posturas voltavam-se para as áreas centrais antecipando um período mais ostensivo de intervenção no cotidiano da cidade, como se verá a seguir.

3. Posturas nos Tempos do “Bota-Abaixo!”

A evolução do espaço urbano do Rio de Janeiro exigiu do governo novas medidas de controle e a expansão da ação fiscal para outras freguesias além das centrais. Ainda que as Posturas raramente diferenciassem lugares da cidade, salvo quando citado em razão de uma questão mais específica, seu foco era evidentemente as freguesias do centro:


99 “Estar próximo ao centro significava garantir a sobrevivência, mesmo porque, para grande parte da população ativa, constituída de vendedores ambulantes e de prestadores dos mais variados serviços, o trabalho não existia enquanto local, mas só aparecia como decorrência das demandas advindas da aglomeração de um grande número de pessoas e de atividades econômicas.” (Abreu, 1986, p.48) Uma das mudanças mais perceptíveis nos editais de Posturas do período posterior ao Código de 1838 foi a crescente preocupação com a atividade edilícia. Neste tema, as Posturas não somente atenderiam às prescrições higienistas como também de controle do espaço da população pobre. Em 19 de dezembro de 1869 é lançado edital que trata dos requerimentos para a realização de obras na cidade (1884, p.162). Em 5 de dezembro de 1873 é proibida “a construcção de habitações chamadas de cortiços” (op.cit. p.223). Em 5 de maio de 1886 é lançado um edital mais completo sobre o assunto, tratando não somente dos requerimentos de licença como também contém uma classificação do tipo de obra. (op.cit. p.286). Já o edital de 15 de setembro de 1892 configurou-se como uma espécie de Código de Obras (o primeiro veio ser elaborado somente em 192554). Aqui se trataram de maneira diferenciada as obras realizadas dentro e fora da área de incidência da “décima urbana”. Embora a licença fosse exigida para qualquer construção, a isenção dos emolumentos decorrentes do licenciamento foi uma forma de abrandar a ação fiscal nos subúrbios que emergiam a reboque da expansão da estrada de ferro, onde certa permissividade seja de construção ou de costumes foi tolerada por algum tempo55. A própria delimitação da décima urbana já indicaria esta diferenciação, do ponto de vista tributário.

A proclamação da República atropelou a elaboração de um novo Código de Posturas em 188756, que manteria boa parte da estrutura do código de 1838,

54

Decreto 2087, de 19 de janeiro de 1925. Alguns autores defendem ser o Decreto-Lei 6000 de o 1 de julho.

55

Abreu, tratando do governo de Pereira Passos, associa o fim da “liberdade de construção nos subúrbios” ao Decreto 39, de 10 de fevereiro de 1903, que entre outras medidas passou a exigir “plantas e construtores legalmente habilitados”. (1986, p.56) 56

O Código de Posturas de 1897 é mencionado na mensagem de encaminhamento do Projeto o de Lei n 41, destinado ao que seria então novo Código de Posturas, em 1928. Tive acesso aos


100 incorporando alguns editais e criando um terceiro título destinado ao “Aformoseamento e Decoração da Cidade, Povoações, Estradas e Caminhos Públicos”. O excesso de exigências, em especial, relacionadas à higiene das habitações, foi alvo de crítica em parecer do recém-criado Clube de Engenharia, (1886, p.9 apud HONORATO et al., 1996, p.39) que as considerou “fruto do exagero que mui commumente se encontra nos higienistas que tem tratado taes questões”. Este mesmo documento alertou que as exigências acabariam por encarecer a produção de habitação, prejudicando justamente a quem se pensava beneficiar: a população mais pobre (op.cit., 1996, p.40). Detalhe que já antecipa o conflito entre exigências formais, técnicas e econômicas impostas pelas Posturas e as práticas populares, que se verá, com mais intensidade a partir do período Passos.

Ainda neste projeto de código, as Posturas que se referiam aos escravos foram retiradas em razão do ato de abolição do ano anterior. Contudo, outras que incidiam diretamente sobre práticas e estratégias de sobrevivência da população pobre das freguesias centrais (constituída em boa parte por negros) como aquelas relativas aos vadios, tiradores de esmolas, ganhadores e ajuntamentos de pessoas, a proibição do entrudo, dos batuques e zungús, foram mantidas ou revisadas para maior rigor.

Este período foi também marcado por aquela se caracterizou como uma das primeiras e mais espetaculares operações de polícia de Posturas até então: a demolição do cortiço Cabeça de Porco em 1893. O Prefeito Baratta Ribeiro mobilizou um verdadeiro exército de servidores públicos, entre os quais a cavalaria policial, a inspetoria de higiene, o corpo de bombeiros, delegados, engenheiros, ajudantes de ordens, além de serventes com pás, pés-de-cabra e picaretas (VAZ, 1986, p.33) numa ação espetacular de evidente afirmação da

fac-símile tanto do Código de Posturas de 1887 quanto de 1928 no Arquivo Geral da Cidade. Em princípio o documento de 1897 causou certa confusão não por conter impresso data, prefácio, justificativa ou anotações impressas que permitissem sua identificação precisa, a não ser pelos registros do próprio Arquivo. Nessas anotações, contudo, constava a data de 1889 e não 1897. Como o trâmite e o processo de aprovação dessas leis era demorado (vide o Código de 1830/38) e nesse caso a lei não foi sancionada, tal desencontro histórico é justificável. Para efeitos desse trabalho, opto pela data de 1897.


101 autoridade local. Tais ações de caráter quase cenográfico cujos planejamento e exercício visa marcar simbolicamente o poder de polícia local voltarão a ser usadas pela Prefeitura, tanto no conturbado governo de Pereira Passos quanto nos embates mais recentes entre a Guarda Municipal e camelôs nas ruas da cidade. O próprio termo Choque de Ordem evoca esta espetacularização das medidas de ordenação.

No governo Pereira Passos houve recrudescimento das medidas de segurança e de repressão - algumas destas instauradas através de Posturas, a maioria, contudo, através de decretos do executivo - e significou um recuo da autonomia da Câmara. Em 1902, o Decreto Federal 939 de 29 de dezembro alterou a Lei Orgânica do Rio de Janeiro e suspendeu as atividades da Câmara por seis meses. Neste mesmo ano um grande número de medidas de higiene e saúde pública deixaram de ser Posturas Municipais, com a transferência do Serviço de Hygiene Defensiva na capital para a competência da Administração Federal57 e a revisão do Código Penal. Em 1904, o Decreto 1101 de 19 de novembro instituiu uma nova Lei Orgânica.

Desde as Ordenações o poder local nas cidades portuguesas e brasileiras era caracterizado pelo Conselho ou Câmara. O poder central se fazia presente através dos alcaides e ouvidores do rei, mas respeitadas as prerrogativas dos vereadores58. A Constituição de 1824 já havia reduzido a autonomia municipal e a Constituição de 1891 foi ainda mais modesta na definição das competências do Município, limitando-se a um único artigo: “os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”59.

Com a República a Câmara do Município Neutro foi dissolvida e em seu lugar foi criado o Conselho de Intendência Municipal60, ao qual coube apenas o

57

Decreto 4.463, de 12 de setembro de 1902.

58

Sobre autonomia das Câmaras ver a seção I deste capítulo e MORENO, 1996.

59

Constituição de 1891, artigo 68.

60

Decreto 50 de 7 de dezembro de 1808 in Consolidação das


102 julgamento das contravenções das Posturas, enquanto que ao Congresso Nacional coube, como competência privativa

“legislar sobre a organização municipal do Distrito Federal bem como sobre a polícia, o ensino superior e os demais serviços que na capital forem reservados para o Governo da União”. (Constituição de 1891, art.34-30) Essa condição simultânea do Rio de Janeiro, de cidade e de sede do governo geral, seja como Município Neutro na Monarquia ou Distrito Federal na República, estará no cerne de tensões entre duas ordens: uma ordem próxima, local que se manifesta nas funções do Conselho e de suas Posturas e outra, uma ordem distante, emanada, pelos poderes e interesses de âmbito nacional. Esta última tomará o Rio como modelo de um processo, a “cabeça urbana do país”, como lembrou Benchimol (1992, p.270).

No choque entre a ordem distante e a ordem próxima, o poder das Câmaras foi alvo de ataques, especialmente daqueles que viam na atuação de Pereira Passos o “distanciamento técnico” necessário para combater as velhas práticas da população. Ainda que as Câmaras fossem, de fato, a representação das elites locais, o poder dessas elites por vezes se capilarizava em práticas urbanas reguladas e até mesmo condenadas pelas próprias Posturas Municipais, como a exploração de cortiços61, de escravos de ganho e do próprio comércio de rua. Tais situações serão usadas como pretexto pela Prefeitura para redução da influência da Câmara nos projetos de transformação do Centro do Rio, foi amplamente registrada pela imprensa, como neste artigo de O Commentário, em fevereiro de 1904:

“a situação da Municipalidade, é, pois, em resumo, a seguinte: um Prefeito illustrado, enérgico, activíssimo, disposto a fazer desta Capital uma cidade moderna, e um Conselho Legislativo, que, para servir aos interesses dos corrilhos, que se desacostumaram de cumprir as leis e se julgam acima dellas, outra cousa não têm feito senão obstar a acção enérgica e decisiva do poder executivo.” (O Rio de Janeiro de Pereira Passos, 1985, p.151) 61

Sobre a exploração dos cortiços, ver VAZ, op.cit., pp.30,31.


103

Discurso do deputado do Distrito Federal Jose Cândido de Albuquerque Melo Matos retrata bem a posição daqueles que se colocaram a favor do centralismo da Prefeitura em detrimento da autonomia da Câmara:

O Distrito Federal tem o caráter preponderante de agente do governo central da União. (...) nas várias fases de sua evolução histórica, deve muitíssimo de sua civilização mais à ação do Governo Nacional do que aos esforços próprios de sua comunidade urbana. Se, pois, é isto assim, nada mais justo do que sacrificar-se algo da autonomia municipal desta cidade em troca e recompensa dos enormissímos lucros que ela tem auferido, está auferindo, e ainda há de auferir da sua condição de domicilio do governo geral. (BENCHIMOL, op.cit., p.270) Além das habitações coletivas, as “velhas usanças” do espaço público foram focos das ações de polícia da Intendência nos tempos de Pereira Passos: vendedores de loteria, de retalhos e trapos, os kiosques e, como sempre, os “vadios”, os “vabagundos” e os mendigos e as reformas urbanas que recortavam a cidade e requalificavam espaços através de restrições de uso. (BENCHIMOL, op.cit.279)

Sobre algumas atividades de ambulantes, o próprio Pereira Passos deixou depoimento, numa mensagem em 19/09/1903: “Comecei a impedir a venda pelas ruas de visceras de rezes expostas em taboleiros, cercado pelo vôo contínuo de insectos, o que constituía espetáculo repugnante. Aboli a prática rústica de se ordenharem vaccas leiteiras na via pública, que iam cobrindo com seus dejetos, scenas estas que ninguém, certamente, achará digna de uma cidade civilisada” (...) Tenho procurado pôr termo à praga dos vendedores ambulantes de bilhetes de loteria, que, por toda parte, perseguiam a população, incommodando-a com infernal grita e dando á cidade o aspecto de uma tavolagem. (O Rio de Janeiro de Pereira Passos, 1985, p.98,99)


104 Nem sempre as medidas de polícia lograram êxito, mesmo com todos os esforços da Intendência. Pereira Passos teve de recuar na proibição da venda de vísceras, mesmo com tantos argumentos contrários, especialmente sanitários (Benchimol, op.cit., p.279). Tal recuo não é procedimento raro nas Posturas, mas na maioria das vezes um dispositivo que encontra muita resistência por parte da população ou dificuldades de implementação pela fiscalização acaba esquecido num canto qualquer da lei. Foi o que registraram Alexandrino Freire do Amaral e Ernesto dos Santos Silva em relação às Posturas do período monárquico, quando chamados por Pereira Passos a fazerem os trabalhos de Consolidação das Leis e Posturas Municipaes, em 1904, que deu origem a um conjunto de novas Posturas em 1905 que, no entanto, não chega a ser um novo código.

O minucioso trabalho desses dois compiladores revelou não somente medidas “antiquadas” que ainda vigiam desde o código de 1838 como também e principalmente Posturas consideradas “inexequíveis”. São vários os exemplos, como algumas Posturas destinadas à regulação das praças de mercado, cujas disposições “há muito que não são cumpridas” (1906b, p.97) ou ainda o edital destinado ao controle de procedimentos monopolistas, postura considerada “attentadora da liberdade de commercio” e que, como a postura sobre o peso do pão, “não foi cumprida nem mesmo na emergência que pareceu reclamal-a” (op.cit. p.99).

Elaborar a Consolidação das Leis e Posturas do Rio de Janeiro de Pereira Passos foi um trabalho árduo. Não somente pela revisão cuidadosa das Posturas antigas, outrossim porque incluiu um primeiro volume com 900 páginas contendo somente a legislação federal que incidia sobre o Distrito Federal, o que demonstra bem a confusa situação político-institucional que ordenava a cidade. A começar pelo fato de que Posturas eram (e ainda são) normas de caráter local emanadas por um poder igualmente local. Todavia, a Intendência era antes de qualquer coisa um “braço” do Governo Federal e do próprio Congresso Nacional. Daí o instrumento distinguir, já em seu próprio título, Posturas e leis, além de reunir tanto as leis e os decretos federais quanto as Posturas e deliberações camarárias relacionadas à capital.


105

Quadro II - Estrutura da Consolidação das Leis e Posturas 1905 1a Parte: Legislação Federal: Secção I - Leis Constitucionaes (Inclui as Leis Orgânicas do Districto Federal - Título II , que contém as Attribuições dos Fiscaes e dos Guardas Municipaes - Capítulo IV) Secção III - Justiça e Legislação (Inclui Código Penal- Título III) 2a Parte: Legislação Districtal Secção I - Conselho Municipal Secção II - Policia Municipal Titulo I: Posturas, Leis e Decretos Titulo II: Legislação em Vigor Parte I - Regulamento da Directoria Geral de Policia Administrativa Parte II - Attribuições do Consultor Jurídico Parte III - Regulamento das Agencias Municipaes Parte IV - Fianças dos Agentes Parte V - Districtos de Inflammaveis Parte VI - Regulamento para o Processo Administrativo das Infracções de Posturas Parte VII - Cemitérios Parte VIII - Deposito Central da Municipalidade Parte IX - Loterias Concedidas a Irmandade do Sacramento da Candelária Parte X - Matricula, Apanha e Extinção de Cães Vadios Parte XI - Tiradores de Esmolas e Mendigos Parte XII - Regulamentação do Serviço Doméstico Parte XIII - Fogueiras e Fogos de Artifício Parte IV - Policia das Ruas, Praças e Demais Logradouros; Segurança Publica; Exercício de Negócios, Profissões ou Industria Secção III: Fazenda Municipal Secção IV: Patrimônio Municipal Secção V: Instrucção Primaria e Profissional Secção VI: Saúde e Assistência Publica Secção VII: Obras e Viação Seguem normas edilícias, Partes I a XLV Secção VIII: Mattas, Jardins, Arborisação, Caça e Pesca Secção IX: Limpeza Publica e Particular Secção X - Laboratório Municipal de Analyses

Fonte: Consolidação das Leis e Posturas Municipaes, 1906a.

Desse modo, as estrutura da Consolidação de 1905 mostrou-se bastante complexa. De um lado por incluir dispositivos de organização administrativa do Distrito Federal emanados pelo Congresso e de outro por redistribuir antigas Posturas (algumas revisadas) em várias partes e seções do documento, ou porque passaram a ser da competência da Intendência (que comandava a


106 polícia) ou porque passaram ao Governo Federal (como nos casos da Higiene Pública e das infrações ao Código Penal).

Numa comparação com o Código de 1838, vários dispositivos foram transferidos para leis e decretos da União, como aqueles destinados à higiene, aos negócios fraudulentos, às vacinas, aos teatros e às armas de fogo. Outras Posturas, especialmente aquelas relacionadas às licenças, permaneceram com o Município, porém com caráter estritamente administrativo. Admitia-se ainda, como no caso dos tiradores de esmolas (art. 593) e mendigos (art. 594) que o indivíduo fosse recolhido a um asilo, entretanto, nos casos previstos pelo Código Penal os mesmos seriam apresentados pela fiscalização “às autoridades competentes”.

A separação entre polícia judiciária e polícia administrativa, embora tentada desde o Regimento das Câmaras de 1828, não era plena na prática uma vez que a fiscalização de Posturas ainda podia, amparada na lei, abordar aqueles que se enquadrassem nas categorias de mendigos e vadios, bem como fazer incursões no espaço privado na repressão às práticas como vozerias, fado, zungú, jogo e consultas de “sorte” e “destino”.

Desde o Código de Posturas de 1838 tentou-se na organização da polícia administrativa uma vinculação da guarda aos agentes fiscais. Em 1892, a Câmara chegou a publicar um edital de Posturas definindo, com maior propriedade e clareza, as atribuições tanto de fiscais quanto da guarda municipal. A consolidação de 1905 foi ainda mais específica62 e ampliou as tarefas da guarda que passou a “dar parte circumstaciada de occorrências”, providenciar “activamente para sejam cumpridas as posturas e as ordens emanadas dos agentes fiscaes” e “multar infractores e intimá-los a comparecer nas agências”63. Ainda tentou-se, através da lei, a vinculação funcional da guarda aos agentes fiscais, contudo, na prática, a guarda agia com mais

62

Consolidação das Leis e Posturas Municipaes de 1906a, Capítulo IV, Título II do Volume I: Legislação Federal. 63

Op.cit., artigo 455, §§ 1, 4, 6 e 8.


107 liberdade que no Império. Além disso, passou a ter funções antes exclusivas dos fiscais como multar e intimar.

Por outro lado, os agentes fiscais passaram a desempenhar novas atribuições de caráter tributário que não tinham nos tempos monárquicos, como “recolher ao erário municipal” a importância das multas e dos emolumentos provenientes de impostos de licença de espetáculos e diversões que arrecadarem, além de controlar a contribuição de impostos de licença dos estabelecimentos e dos impostos de profissões e indústrias64.

Antes mesmo da revisão de algumas Posturas feitas pela Consolidação de 1905, a receita advinda da atuação do poder de polícia no Distrito Federal havia crescido consideravelmente. Benchimol mostra que em 1903 a arrecadação de multas por infrações às Posturas quase triplicou e com taxa sanitária praticamente quintuplicou. (op.cit., p.258) o que significou, para o autor, que, “ independentemente dos objetivos visados por estas medidas, elas serviram para descarregar parte do ônus da "modernização" sobre a heterogênea plebe carioca.” (op.cit., p.276).

A relação entre polícia de Posturas e arrecadação de impostos nem sempre foi tão evidente. Nos períodos colonial e monárquico a arrecadação e fiscalização de impostos eram atribuições do almotacé, espécie de fiscal do erário da Coroa. Naquele período a tributação era atribuição do governo colonial e tinha um caráter mais aduaneiro, incidindo basicamente sobre a produção e consumo. Desde a instalação da Corte, com a criação da Décima Urbana, um imposto predial, o Rio de Janeiro passou a arrecadar imposto, tal qual uma Província, porém não gozava de plenitude tributária65. A Câmara fazia a fiscalização e o recolhimento, bem como fixava as despesas municipais. Possuía estrutura administrativa e regulamentos específicos, como o Decreto

64 65

Op.cit., artigo 436, §§ 5, 6 e 7..

A Constituição de 24 definiu claramente as competências tributárias, mas vinculou a receita de impostos do Município Neutro às do Governo Geral (Cf. HUGON, 1951, p.


108 2551, de 17 de março de 1860, que definia as competências dos lançadores de impostos prediais do Município da Corte.

A criação da Décima Urbana foi duplamente importante para a compreensão da trajetória da polícia de Posturas no Rio de Janeiro porque, de um lado, pressupôs uma condição espacial (urbana) de um imposto e, de outro, aproximou uma prática de finalidade tributária à polícia de Posturas66. Como destaquei anteriormente, as medidas de controle da atividade edilícia surgiram durante o século XIX, seguiriam tímidas até a última década quando se intensificaram as ações sobre cortiços, estalagens e habitações coletivas. Desde então os emolumentos sobre a construção passaram a ser orientados conforme o zoneamento da Décima Urbana.

Já as licenças para comerciar eram exigidas desde o Código de 1838 (SII, TVI, §2), porém, apesar de resultarem em tributos anuais, sua arrecadação era bastante irregular e restrita às barracas, bancas de pescado e aos estabelecimentos comerciais e de ofícios. O imposto decorrente da licença foi “rebaixado” à categoria de taxa pela Lei Orçamentária de 1860 e restaurado como imposto catorze anos depois. Ainda assim, conforme consta do Regulamento da Directoria Geral da Fazenda Municipal67, “raros os estabelecimentos que a pagavam” devido à “incúria, desidia e tolerância” da Câmara. este cenário se alterou com o governo republicano. O imposto de licença68 não só foi retomado como fonte de rendas públicas assim também e principalmente como instrumento de ordenação dos espaços públicos e logradouros, pois a licença para comerciar como volante, ambulante, 66

Vale registrar que para lançamento do imposto predial, que unificou os tributos territoriais entre os quais a décima urbana, conforme o Decreto 7051, de 18 de outubro de 1878, não importava a regularidade da construção, tanto que nos casos de edificação executada em terreno alheio, o imóvel seria inscrito no nome do construtor e não do proprietário do terreno.

67

Consolidação das Leis e Posturas Municipaes de 1906a, Capítulo XX, Título II do Volume I: Legislação Federal., p. 258. 68 Para cobrar o imposto de licença, o governo do Distrito Federal se valeu da mesma classificação de atividades usada pelo imposto de indústrias e profissões, fixada num Decreto Federal 5.142, de 27/2/1904. Nessa classificação não havia distinção alguma para diferentes modos de exercício da atividade: se ambulante ou fixo, se em espaço público ou em estabelecimento. Um vendedor de frutas pagaria o imposto de profissão correspondente à classe de negócio, fosse volante ou estabelecido. Já para o imposto de licença o modo de exercício foi (e ainda é) determinante conforme regulado pelas posturas.


109 barraqueiro pressupunha o pagamento do imposto. Ou seja, ainda que a atividade fosse tolerada pelas Posturas, seu exercício dependia ainda de recursos financeiros (Figura 11). Às infrações decorrentes das Posturas acresciam as infrações de caráter tributário e ambas eram arrecadadas pelos agentes fiscais da Intendência69.

Figuras 9, 10 e 11: Ambulantes do Rio de Janeiro, de Marc Ferrez. Fonte: O Rio de Janeiro de Pereira Passos, 1992, p. 80.

Para ordenar o novo espaço urbano do centro do Rio, Pereira Passos se valeu amplamente da discricionariedade. Como tal atributo precisa ser amparado pela lei que institui juridicamente a ordem, as elites da época e, em especial, o capital imobiliário, mobilizaram-se para ampará-lo. Aqui é válido o pensamento de Foucault sobre a relação entre o edifício jurídico e o poder - no caso de Pereira Passos não exatamente poder real mas, de certo modo, de autoridade tal qual inquestionável:

“é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado” (FOUCAULT, 2000, p.180).

69

Ainda hoje tal modelo se aplica: os ambulantes regularizados são aqueles devidamente cadastrados na Secretaria de Fazenda, contribuintes de tributos e controlados pela Fiscalização de Atividades Econômicas, enquanto que os irregulares são aqueles sem a devida autorização, sem o pagamento da taxa e são reprimidos pela Guarda Municipal.


110 Neste contexto, boa parte da imprensa da época foi uma forte aliada de Passos. Os argumentos não eram muito distintos daqueles hoje arrolados em reportagens como a série “Ilegal, e daí?” do jornal O Globo, ou seja, a ordem que se defendia (e ainda se defende) é aquela mesma ordem que exclui e criminaliza práticas de sobrevivência da população mais pobre.

A ordem resulta no período Passos como um arranjo espacial físico mas que deriva de um conceito de espaço, onde cada prática, cada grupo/classe social tem seu lugar na cidade definido segundo os interesses do capital e das elites, como destacou Abreu, de “adequar a forma urbana às necessidades reais de criação, concentração e acumulação do capital” (1997, p.59): uma ordem instaurada pela técnica, amparada pela lei e resguardada pela polícia.

Alargamento Pobre da rua do Senhor dos Passos! Já tinha tantas e alargadas fendas nos edifícios velhos e nas vendas, E ei-la, hoje - a pobre! - com o prefeito a braços! Fujam os vagabundos e os madraços! Fujam turcos com fitas e com rendas! No ponto aberto já não quer mais tendas o prefeito doutor Passos! Corta-se a rua. Cahem casas. Tudo vai por terra... Da gente estuporada todo o ar é surpreso, o lábio é mudo ... E o que inda é caso p'ra maior espanto É ver hoje, de súbito, cortada a rua alegre que cortava tanto! O Malho, 18.4.190370 A cidade instaurada pela Velha República - onde a capital é o modelo e referência - é a afirmação da economia cafeeira, orientada pela ordem distante do contexto capitalista internacional: era necessário que o principal exportador de café “expressasse os valores e os modus vivendi cosmopolitas e modernos das elites econômicas e políticas nacionais” (Abreu, op.cit. 60). este novo

70

Extraído de O Rio de Janeiro de Pereira Passos, p.50


111 arranjo de cidade que, como lembrou Moreira, resulta de um “cosmopolistismo rural” e do “absenteísmo do fazendeiro” que se fixa na cidade e passa a cuidar de outros negócios: “cria ele uma nova forma de cidade e de relação entre a cidade e o campo, dentro do qual ele se põe antes de tudo como classe urbana” (Moreira, 2011, p.90). A contradição cidade-campo se refletiu nas Posturas que expulsaram as “velhas usanças” da cidade, algumas delas relacionadas ao espaço rural, como a criação de animais, ordenha de vacas, as carroças, os cavalos e até os mascates.

Em 1927, na gestão de Prado Junior, a Câmara Municipal do Distrito Federal tentou, sem sucesso, aprovar um novo Código de Posturas. A gestão seguiu a linha das reformas urbanas de caráter gentrificador iniciadas por Pereira Passos e reforçadas por Carlos Sampaio, com o desmonte do morro do Castelo. A mensagem de encaminhamento do Projeto de Lei no 41, de 5 de junho, foi assinada por Pio Cunha e refería-se ao Código de 1838, tido - justificadamente, aliás - como antiquado: “baldadas71 as duas tentativas do Conselho Municipal no sentido de dotar esta Capital de um Código de Posturas - até o presente, o antigo Código, se é que tal denominação possa ter o que possuímos, de data de epoca immemoravel, continua a ser citado e aplicado (...) Se o Executivo Municipal, em 1897, tivesse sanccionado o novo Código e solicitado ao Legislativo Municipal as alterações necessárias, teria insophismavelmente cooperado para dotar este Districto de um novo Código, em substituição ao que existe e ainda está em vigor, repleto de dispositivos humilhantes, vexatórios, inquisitoriaes, etc. Mas... os vetos foram approvados, continuando em vigor as disposições do Código ante-diluviano ao par da legislação republicana esparsa e cahotica e, portanto, de difícil consulta.” (Câmara Municipal, PL 41, 1827, p3.) A estrutura da proposta, mesmo com todas as críticas direcionadas à legislação republicana, mostrou-se igualmente confusa. A preocupação em

71

Tanto a Lei Orgânica de 1892 quanto o Decreto 5160 de 1904 trataram da necessidade de revisão das posturas.


112 facilitar a consulta por parte de servidores públicos acabou priorizando uma organização segundo assuntos, em ordem alfabética: Açougues, Agrião, Água, Algazarra, etc., sem títulos, capítulos e seções que agrupassem os temas. Também não houve muita atenção para com os instrumentos de fiscalização e processo administrativo decorrente, legado ao Decreto 4769, de 9 de fevereiro de 1903, que integra a Consolidação das Leis e Posturas do início da República. Muitos dos artigos não só seguiram a mesma lógica da legislação anterior, isto é, o controle quando não a extinção de velhas práticas populares como muitas vezes manteve a mesma redação. Foi o caso dos dispositivos destinados à defesa da moralidade - decência dos trajes, indecências e obsenidades em via pública, injúrias, folguedo de Judas, intrudo, tocatas, danças e vozerias - e de repressão às práticas rurais como a lavagem de animais, o transporte de gado, a criação de porcos e suínos, ordenha de vacas... (Conselho Municipal, 1928)

Considero esta não aprovação do projeto de lei do novo Código de Posturas bastante significativa. Com a Prefeitura a frente de um processo de reformas urbanas de cunho modernizador diretamente atrelado aos interesses nacionais e ao cenário econômico mundial, a Câmara e as antigas Posturas foram perdendo espaço e importância, ao passo que as questões de ordem próxima e local, essência histórica das Posturas, foram substituídas por atos unilaterais do prefeito, decretos e resoluções, que eram antes projeções da ordem distante que modelava o novo espaço urbano do Distrito Federal. Para tanto, o prefeito era nomeado pelo presidente da república e geralmente escolhido entre seus companheiros mais leais, independentemente de sua vivência da cidade, com o foram os casos de Alaor Prata e Prado Junior.

Esta nova ordem urbana que rasgou o tecido das velhas freguesias do Centro para a abertura da Avenida Central e alargamento de várias ruas, expandiu os melhoramentos para a orla, Rio Comprido e Tijuca, modernizou o porto (obra do governo federal) e arrasou com o Morro do Castelo, se impôs sob a força do capital mas também da técnica: o urbanismo surgiu no cenário políticoinstitucional brasileiro e com ele novas estratégias de regulação do espaço: os


113 planos e os projetos. E assim, as Posturas passam também a fazer parte das “velhas usanças”.

Se antes eram as Posturas a regular as práticas e costumes da “arraia-miúda”, com as reformas urbanas do início do século XX a própria forma da cidade passou também a exercer tal controle, com a criação de espaços de exclusão e zoneamentos

que

surgiram

depois

dos

alargamentos

e

demolições,

acompanhados pelo aumento do valor do solo urbano e da moradia. É neste cenário que o urbanismo é evocado: o desmonte do morro do Castelo, a elaboração do Código de Obras e, principalmente, de um plano para a cidade que culminará na contratação de Donat-Afred Agache. Tudo acompanhado de calorosos debates técnicos e político, além de mudanças na estrutura administrativa da Prefeitura.

Enquanto o Código de Posturas que ainda vigorava nascera em 1838, aos poucos os dispositivos relacionados à construção ganharam importância, clamando por um regulamento próprio. Antes havia o edital de Posturas de 15 de setembro de 1892, que regulamentava o licenciamento das construções. A Consolidação das Leis e Posturas do Distrito Federal reservou ao tema o nada menos que 45 partes na secção que tratava de obras e viações72.

Na gestão Alaor Prata foi publicado o decreto 2087, de 19 de janeiro de 1925 que, embora não reivindique textualmente a alcunha de Código de Obras, foi tratado como tal por Armando de Godoy, que integrou a comissão que elaborou o regulamento. Em artigo da Revista da Directoria de Engenharia do Districto Federal de 1934, Godoy afirma que “até aquele ano [1925], esta capital dispunha de uma legislação de obras em extremo acanhada, contendo exigências absurdas e lacunas lamentáveis.” E que para elaborá-la, a comissão buscou “luzes” em códigos de outros países e bibliografia clássica sobre o tema. (GODOY, 1934, p.53)

72

Vide Quadro II - Estrutura da Consolidação das Leis e Posturas 1905. As partes correspondem a grupamentos de artigos sobre um mesmo assunto. Como as seções na legislação moderna.


114 Um novo Código de Obras foi elaborado apenas doze anos depois, na gestão de Olympio de Mello. Este sim, auto-intitulou-se Código de Obras do Discricto Federal, pelo Decreto 6.000, de 1 de julho de 1937. Não se trata apenas de uma questão de nome, já que o Código de Obras de 1937 contém capítulos específicos dedicados aos procedimentos e atos administrativos de polícia das construções, como Intimações e Embargo (Cap. XXVI), Auto de Constatação de Infrações (Cap. XXVII), Vistoria Administrativa (Cap. XXVIII) e Multas (Cap.XXX). Neste aspecto, o regulamento anterior (decreto 2087 de 1925) ainda se valeu dos dispositivos da Consolidação de Leis e Posturas (1905), para a fiscalização das obras, especialmente nos assuntos relacionados às infrações e aos autos, fosse no caso. O licenciamento de construções, por sua vez, foi objeto do decreto 2852, de 18 de dezembro de 1928.

73

Mesmo com

tantas fragmentações, o regulamento de Obras de 1925 pode ser considerado como o primeiro Código de Obras, uma vez que foi elaborado num momento de afirmação do conhecimento técnico-científico do urbanismo na Prefeitura do Distrito Federal e da necessidade de criar normas para o uso do concretoarmado, rompendo com conceitos e práticas anteriores, especialmente com as antigas Posturas.

Antigas Posturas... que não foram revisadas e as novas Posturas nem Posturas se chamam! Por que as leis e decretos que instituíram (e ainda instituem) o Código de Obras e o Plano Diretor não foram (e ainda não são) considerados Posturas? Nas primeiras décadas do século XX havia uma grande diferença entre os papéis desempenhados pela Prefeitura e pelo Conselho no Distrito Federal. A primeira respondia por uma ordem distante, um lugar-cidade cuja representação extrapolava seus limites: tratava-se do Distrito

73

Sobre esta dependência do Código de Obras de 1925 em relação às posturas de 1903, ver Índice Remissivo das Leis da Diretoria Geral de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, compilado por Valdemar de Mendonça, na Revista dessa mesma repartição, Ano III, n11, Julho de 1934. Tal documento tornou-se fundamental para a pesquisa porque, mesmo no ACRJ, não foi possível encontrar uma publicação contendo, na íntegra, o decreto 2087, de 19 de janeiro de 1925, exceto sua estrutura. Caberia aqui conjecturar que Armando de Godoy, integrante da comissão que elaborou o decreto 2087, pode ter passado a evocar para este a primazia justamente no momento em que se elaborava um novo código de obras, em pleno Estado Novo. Novamente traí o desejo de uma investigação mais profunda dessas filigranas políticoadministrativas em favor do prosseguimento na compreensão das posturas num contexto mais amplo.


115 Federal, sede do poder da Federação e cartão de visitas do Brasil republicano. A segunda, atrelada às elites locais, perdeu espaço até mesmo para o Senado, que chegou a aprovar os atos do Prefeito quando havia algum impasse com a Câmara.

Os instrumentos que tanto caracterizaram o período em questão - os códigos de obras de 1925 e 1937, o Plano Agache de 1929 e mesmo os PAs - Projetos de Alinhamento - iniciados com Pereira Passos e amplamente utilizados daí pra frente, foram (e ainda são), na verdade, instrumentos jurídicos - a maioria decretos do prefeito. Normas de caráter local: Posturas! Mesmo que, de fato, o prefeito concentrasse mais poderes que o próprio Conselho e estivesse mais atrelado ao governo federal e não às elites locais, não haveria razão para que estes instrumentos não fossem considerados Posturas74, a menos que este termo estivesse vinculado a um certo tempo, espaço e práticas com os quais deseja romper e mudar: a velha cidade.

Os Códigos de Obras e o Plano Diretor foram tidos como expressões de um conhecimento técnico-científico que se afirmava - segundo difundido na época acima dos interesses políticos, o urbanismo, ainda que, na verdade, os representasse e obedecesse. O exemplo do Plano Agache é dado por Silva como o alinhamento de interesse dos técnicos da Prefeitura tanto com as elites locais, representadas pelo Conselho e interessadas em mudanças na infraestrutura, quanto das elites nacionais, mais interessadas numa capital emblemática e representadas pelo Senado e União:

Se, concretamente, todos desejavam o plano, as motivações eram diferentes. Os técnicos da prefeitura procuraram criar uma cultura administrativa, em função disso, conseguiram aglutinar os diversos setores da sociedade. esta cultura administrativa traduzia-se no aspecto do plano que mais interessava aos técnicos da prefeitura: o 74

Tratei em nota anterior da posição de Hely Lopes Meirelles que refuta o termo por preferir lei, decreto, portaria. Mas as posturas eram resoluções porque os municípios não podiam editar leis ou decretos. Nesse aspecto, concordo com Cretella Jr. Para quem as posturas passam a ser “toda e qualquer norma de caráter genérico (lei, regulamento, decreto) posta ou editada pelo Município” (1978, p.409). De acordo com tal definição, a postura pode ser editada tanto pelo legislativo quanto pelo executivo, tanto pode ser um decreto como ser uma lei. Contudo, a lei é votada e o decreto não.


116 urbanismo como agente disciplinador e civilizatório, além, é claro, de pontuá-lo como instrumento técnico e legal. Criar um espaço disciplinado a partir de uma racionalidade objetiva seria ponto em comum com os outros movimentos reformadores. (SILVA, 2003, p.98) A ordem que surge com estes instrumentos é bem distinta daquela ordem das Posturas de polícia do período monárquico. Se antes o poder de polícia enquadrava a arraia-miúda, os indesejados e os inconvenientes segundo os interesses das elites e pela ação da guarda, nas primeiras décadas do século XX é o próprio espaço que será transformado em instrumento de ordem pelo traço do arquiteto e pela obra do engenheiro. O técnico no lugar do guarda. O urbanismo no lugar da polícia.

Foi assim que medidas relacionadas aos logradouros e passeios passaram a constar do Código de Obras, a começar pela própria definição:

Logradouro público: é toda a parte da superfície da cidade destinada ao trânsito público, oficialmente reconhecida e designada por um nome, de acordo com a legislação em vigor. Passeio: é a parte do logradouro destinada ao trânsito de pedestres. (Decreto 6000, de 01/07/1938, Art. I, p.4) O dispositivo é bem claro: o logradouro passa a ser entendido segundo a função trânsito e seu reconhecimento oficial. Então tem-se o logradouro reconhecido e o não-reconhecido, o logradouro formal e o informal, o da ordem e o da desordem. Não mais aquele terreno público que antes podia ser logrado, fruído por alguém, com diversos usos, como a antiga definição enciclopédica75.

Este novo espaço projetado é regulador: confunde-se com a própria ordem das elites. E seus resultados podem ser percebidos na vasta iconografia da cidade. Onde antes havia uma rua heterogênea, com distintos personagens entre os quais burgueses, taverneiros, escravos, trabalhadores e animais, imersa no

75

Vide capítulo I-4. Espaço Público, Espaço Coletivo e Logradouro.


117 ruído incessante dos pregoeiros, dos cavalos, do falatório do povo e das cantorias e batuques quando não reprimidos; passou a vicejar um certo padrão de comportamento tido como civilizado, emoldurado por roupas e gestos apropriados ao logradouro modernizado e reformado.

Figuras 12 e 13: Praça XV de Novembro em 1870 e em 1911. Fonte: Praça XV 1580 a 2002 - Um Passeio no Tempo. PCRJ e IPP, 2002.

O espaço público ordenado pelo urbanismo da belle epoque carioca pode ser poeticamente comparado ao quarto burguês que tratou Benjamin em Experiência e Pobreza:

“Se entrarmos num quarto burguês dos anos oitenta, apesar de todo o "aconchego" que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: "Não tens nada a fazer aqui". (...) Uma bela frase de Brecht pode ajudar-nos a compreender o que está em jogo: "Apaguem os rastros!", diz o estribilho do primeiro poema da Cartilha para os Citadinos.” (BENJAMIN, 1968, p.117)


118 Assim como o ambiente organizado e estruturado do quarto burguês impõe um nada a fazer para quem não o habita, também o faz aquele ambiente reformado do Rio de Janeiro para quem não pode usufruí-lo senão como as “mariposas” da rua do Ouvidor ao cair da tarde, voltando do trabalho, como na crônica de João do Rio:

“Elas, coitaditas! passam todos os dias a esta hora indecisa e parecem sempre pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. (...) Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera.” (JOÃO DO RIO, 1997, p.247) É como se a nova rua, reformada e aformoseada, perguntasse: o que fazes aqui, mariposas? Um tipo de ordenamento mais sutil talvez que um guarda a cobrar modos ou a recolher o vadio e o mendigo: que fazes aqui, cigano? Nem por isso menos eficiente.


119

V. POSTURAS HOJE E O CHOQUE DE ORDEM

1. Do Legado de Passos às Novas Posturas

Depois do período Passos, o Rio de Janeiro só vislumbrou algum instrumento similar a um novo Código de Posturas em 1976, no governo Marcos Tamoyo. E tal como em 1905, não chegou a ser um código de Posturas e sim uma “consolidação” de normas feita através do decreto 345 de 25 de Março de 1976 que continha, em anexo, dezenove regulamentos. Aliás, desde o período Passos praticamente todas as iniciativas de Posturas Municipais couberam ao Executivo, geralmente na forma de decreto, o que permite concluir que apenas o Código de 1838 teve a participação decisiva da Câmara.

Das Posturas de 1905 até as de 1976 o Brasil experimentou uma revolução, um golpe de estado, duas ditaduras e cinco constituições. Um tempo conturbado politicamente no qual, à exceção do interlúdio democrático entre 1945 e o golpe de 1964, o município brasileiro de pouca ou nenhuma autonomia gozou. Sobre a condição do município no Estado Novo, Meirelles foi taxativo:

“Pode-se afirmar, sem vislumbre de erro, que no regime de 1937 as Municipalidades foram menos autônomas que sob o centralismo imperial, porque na Monarquia os interesses locais eram debatidos nas Câmaras de Vereadores e levados ao conhecimento dos governadores (Lei de 1828) ou das Assembléias Legislativas das Províncias (Ato Adicional de 1834), que proviam a respeito, ao passo que no sistema interventorial do Estado Novo não havia qualquer respiradouro para as manifestações locais em prol do Município, visto que os prefeitos nomeados governavam discricionariamente, sem a colaboração de qualquer órgão local de representação popular.” (MEIRELLES, 2006, p.41) Nestes governos autoritários e centralizadores a perda de autonomia pelo Município veio acompanhada - senão à reboque - do fortalecimento excessivo do poder executivo em relação ao legislativo. O decreto-lei federal 1202, de


120 8/4/1939, por exemplo, sequer mencionou a palavra “câmara” e transferiu ao Prefeito as funções legislativas e normatizadoras de interesse local:

Art. 12. Compete ao Prefeito: I – expedir decretos-leis nas matérias da competência do Município; II – expedir decretos, regulamentos, posturas, instruções e demais atos necessários ao cumprimento das leis e á administração ao Município; III – organizar o projeto de orçamento do Município, e sancioná-lo depois de revisto pelo Interventor, ou Governador, que o remeterá ao Departamento Administrativo para os efeitos do art. 17, letra b; IV – nomear, aposentar, pôr em disponibilidade, demitir e licenciar os funcionários municipais, e impor-lhes penas disciplinares, respeitado o disposto na Constituição e nas leis; V – praticar todos os atos necessários à administração do Município e à sua representação. Este decreto-lei foi substancialmente alterado pelo decreto-lei 5511, de 21/5/1943 que além de retirar a palavra “posturas” condicionou a expedição pelo prefeito de decretos, regulamentos e instruções ao exame prévio do Conselho Administrativo, órgão de perfil inteiramente diverso dos antigos conselhos autárquicos portugueses e vinculado ao Ministro da Justiça.

As Posturas já haviam deixado de ser a expressão dos interesses (e das contradições) locais trazidos à norma pelo papel desempenhado pelas Câmaras e foram absorvidas pela autoridade fazendária local. Ou seja, as Posturas, mesmo legadas a segundo plano pelo pensamento urbanístico que se institucionalizou nos anos 20 e 30, não foram esquecidas no cotidiano da prefeitura. Seu foco, porém, sofreu sensível deslocamento. Desde o período Passos que alguns dos dispositivos de Posturas foram sendo, aos poucos, assimilados pela Fazenda Municipal por conta do recolhimento do imposto de licença - seja de comércio estabelecido ou ambulante -, realização de eventos e espetáculos abertos ao público e o empachamento dos passeios, especialmente quando este decorria de atividades comerciais.


121 Um manual compilado no final de 1948 por um delegado fiscal da receita do Distrito Federal76 mostra como, desde muito tempo, passou a fiscalização de Posturas gradualmente para a Fazenda Municipal. O documento refere-se às “Taxas, Contribuições e Posturas Municipais”, agrupadas numa única brochura e reúne artigos de vários decretos antigos, como o Decreto 1.888 de 3/12/1917 que trata do comércio ambulante, os Decretos 22.131 de 23/11/32 e 22.300 de 4/1/33 que versam sobre equipamentos e veículos utilizados no comércio ambulante, o Decreto 6.000 de 01/07/1938 - Código de Obras - sobre painéis e anúncios. O foco do manual era subsidiar a atividade dos fiscais de Posturas, desde então vinculados à Fazenda do Distrito Federal.

Neste contexto, a regulação do espaço público coletivo se fez não apenas segundo normas de comportamento e prática, mas também segundo uma lógica econômica, manifesta através dos tributos e dos emolumentos instituídos pela legislação tributária e recolhidos pela Prefeitura. Simbolicamente as Posturas deixam de ser evocadas como instrumentos de polícia administrativa para ser objeto de fiscalização tributária. A alteração é sutil porém significativa77, pois a palavra fiscalização deriva de fisco - rendas públicas e tributos.

Os imposto de licença para comercialização de produtos alimentícios de fabricação caseira em barraquinhas nos logradouros, por exemplo, ficava em Cr$ 100 por ano; para tráfego de veículos (equivalente ao atual IPVA) em Cr$ 312,00 anuais para veículos até 1.200 kg. Entender tais valores exigiria grande esforço de conversão de moeda e compreensão da economia naqueles tempos. Todavia, sabe-se que o salário mínimo em 1948 era de Cr$ 380,0078.

76

Vide Prefeitura do Distrito Federal: Tributos do Distrito Federal, organizado por Teixeira, Alberto W., 1949.

77

A fiscalização é, a rigor, meio de atuação do poder de polícia municipal, de caráter administrativo (MEIRELLES, 2006, p.478) mas a palavra vem do latim fiscus - arrecadação de rendas públicas.

78

Valor do salário mínimo extraído da Evolução do Salário Mínimo do Ministério do Trabalho. Disponível em http://carep.mte.gov.br/sal_min/EVOLEISM.pdf, acessado em 5/12/2011.


122 Como era pago antecipadamente, ter dinheiro era condição para exercer o direito79.

Além das licenças, o ambulante deveria satisfazer as exigências de padronização dos veículos necessários à atividade, documentos para inscrição no fisco e, nos casos de venda a peso ou a metro, submeter-se também à Taxa de Aferição de Pesos e Medidas. Muitas das exigências para comércio ambulante tinham em foco a aparência e condições de saúde do vendedor, como no caso do comércio e transporte de pão em cesto na zona urbana que obrigava ao uso de paletó e calçado (Decreto 1888, de 3/12/1917, ainda vigente em 1948) ou de exame anual para “visto” de saúde do mercador ambulante (Decreto-Lei 2041, de 27/02/1940). As multas também eram bastante restritivas do ponto de vista econômico. Segundo a lei 312 de 12/12/1948, mercadejar com licença vencida incorria numa multa de Cr$ 300,00 e no caso do ambulante não possuir licença o valor passava a Cr$ 500,00.

Os custos dessa regularidade afetaram especialmente a população mais pobre da cidade ,não somente em relação ao exercício da atividade (trabalho) mas também ao acesso ao serviço oferecido ou produto posto à venda (consumo), afetando toda uma cadeia econômica que Milton Santos chamou de circuito inferior da economia, baseado no trabalho intensivo, no crédito pessoal nãoinstitucionalizado (o antigo fiado), relação direta e personalizada com a clientela, frequente reutilização de bens, (SANTOS, 2004, p.44), sistema de negócios arcaico, equipamentos de má qualidade, artesanato tradicional e familiar (op.cit., p198) e, principalmente, baixos custos e preços.

Desse modo, tanto as Posturas de urbanismo quanto às normas de higiene reforçam e institucionalizam esta divisão de circuitos da economia urbana, seja espacialmente através da criação de zonas de maior ou menor restrição, seja tecnicamente no controle dos equipamentos e do processo de fabricação e de prestação do serviço. E, a reboque, a tributação nem sempre se orienta 79

Artigo 36, da Lei 312 de 12 de dezembro de 1948.


123 segundo a condição econômica do contribuinte, mas sim do tipo de negócio que pretende realizar.

Mudança substancial ocorreu neste cenário tributário a partir da reforma constitucional decorrente do golpe de estado de 1964. O imposto de licença foi extinto pela lei federal 5.172 de 25/10/1966, que instituiu o novo sistema tributário nacional e que ainda vigora até hoje, com algumas modificações. No lugar do antigo imposto, as prefeituras puderam criar taxas de licença e de autorização, conforme as Posturas Municipais. A diferença entre imposto e taxa é que a segunda é (ou deveria ser) calculada em função de um serviço prestado. Tal alteração na natureza do tributo não será percebida na prática, pois em geral as prefeituras passaram a tratar as taxas decorrentes do exercício do poder de polícia como fonte regular de receita, enquanto que estas deveriam, por definição, apenas cobrir o custo de um serviço prestado e eventual.

O principal argumento para a regularidade na cobrança da taxa de licença foi extraído dos próprios dispositivos da lei 5.172:

“Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.” (Redação dada pelo Ato Complementar no 31, de 28.12.1966)” Art. 78.

Ou seja, a prática ostensiva da fiscalização passou a ser entendida como prestação de serviço decorrente de uma medida de polícia administrativa: o


124 licenciamento. Entretanto, sua definição ser feita através de uma lei que instituiu as regras do sistema tributário nacional não deixa dúvidas de que o poder de polícia local estaria, em primeiro plano, vinculado aos interesses de receitas e não necessariamente à ordem estabelecida e desejada.80 Trata-se de uma inversão do foco: a ordem tributária e econômica, seguindo uma lógica e um formato nacional, é que passa a definir a ordem dos espaços públicos e práticas urbanas. O fisco definiu as Posturas.

Prosseguindo com a evolução histórica das Posturas Municipais no Rio de Janeiro, falta tratar das Consolidações feitas na gestão de Marcos Tamoyo, nos anos 70, e do período Maia/Conde/Paes, dos anos 90 em diante. A primeira dessas consolidações resultou de significativas mudanças na esfera políticoadministrativa, com a transferência da capital para Brasília e a condição de cidade-estado que acumulava atribuições de Estado e Município - ainda que neste período fossem reduzidas a competência e autonomia municipais - e, finalmente, pela transformação de Estado em Município do Rio de Janeiro, em 1975. Muito já foi estudado em relação às transformações de ordem socioeconômicas e político-administrativas que ocorreram no Rio de Janeiro desde a perda do status de capital, transformação em Cidade-Estado em 1961 e depois em Município, com a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro.

Os anos 70 foram marcados pela ditadura militar e forte centralização das medidas de segurança, marcadamente nos grandes centros urbanos. Infrações de comportamento em espaços públicos, antes reguladas pelas posturas passaram a ser objeto de polícia judiciária e poderiam ter, a julgamento da autoridade competente, tratamento de crimes contra a ordem pública.

Mesmo mencionando a autonomia municipal nos artigos 10 e 16 da Constituição de 1967, esta não reservou aos Municípios um único dispositivo que tratasse de Poder de Polícia, independente da função tributária. Parte das 80

Para aprofundar na relação entre posturas e tributos municipais, cf. GARCIA, R.: Uma Questão De Posturas: Crise e Renovação do Poder de Polícia Municipal, in Revista Municípios no 248. Rio de Janeiro - RJ: Jul/Ago, 2004. pp. 38-45.


125 posturas já havia sido transferida para o Código de Obras, outras tornaram-se meras estratégias de arrecadação e as demais usurpadas pela autoridade Federal ou Estadual. Desse modo, não há muito o que comentar da Consolidação das Posturas Municipais, instaurada pelo decreto 1.601 de 21 de junho de 1978, antes da gestão do prefeito César Maia (1993-97) que o recuperou enquanto instrumento de política de ordenamento, definindo um novo cenário para as Posturas Municipais.

Em que pese o período político crítico, as Posturas de 1978 trouxeram alguns dispositivos merecedores de apreciação, como o Regulamento 10 que trata do exercício do comércio e atividades profissionais nas favelas. A rigor, o regulamento 10 não era de todo inédito, pois o Decreto “N” no 1.130 de 17 de setembro de 1968 já fixava a possibilidade de autorização - mediante alvará a título precário - de estabelecimentos comerciais em favelas, desde que destinados às atividades de bares e botequins; mercearias, quitandas, açougues, peixarias, etc.; utensílios domésticos e armarinhos; barbeiros, funileiros,

fotógrafos,

alfaiates,

costureiros,

sapateiros

e

até

mesmo

consultórios. O Regulamento 10, todavia, ampliou o rol de atividades, incluindo escolas, creches e até mesmo clínicas e indústrias de pequeno impacto81. Ainda que a intenção fosse o enquadramento tributário e o controle de atividades comerciais, a inclusão da favela na pauta das posturas municipais a inclui, de certo modo, no espaço de atenção do Poder Público.

81

o

desde que respeitado outro decreto municipal, de n 322/1976.


126

Quadro III - Regulamentos da Consolidação das Posturas Municipais de 1976 1. Da concessão de licença para localização; 2. Do exercício do comércio e atividades profissionais ambulantes; 3. Da veiculação de publicidade ao ar livre ou em local exposto ao público; 4. Do licenciamento, da fiscalização e do funcionamento de casas de diversões; 5. Da concessão de licença, funcionamento e fiscalização de estabelecimentos hoteleiros; 6. Do licenciamento e funcionamento das bancas de jornais e revistas; 7. Da construção e licenciamento de estabelecimentos de comércio varejista de combustíveis minerais; 8. Do fabrico, trânsito, comércio, depósito, e queima de fogos de artifício; 9. Da exploração de atividades desportivas ou recreativas no mar, praias, lagoas e lagos dos parques da cidade; 10. Do exercício do comércio e atividades profissionais em favelas; 11. Da utilização de terrenos baldios particulares para estacionamento de veículos; 12. Do horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais; 13. Do plantão de farmácias e drogarias; 14. Da exposição de artigos nas ombreiras e vãos de portas, e objetos em portas e janelas de estabelecimentos comerciais e industriais; 15. Da proteção contra ruídos; 16. De exposições permanentes de arte popular 17. Da venda e solta de "pipas", "papagaios", "pandorgas" ou semelhantes; 18. Da exibição, em logradouros públicos, de cantores, músicos e pequenos conjuntos musicais; 19. Da lavratura, do registro e controle de autos de infração; 20. Da execução de serviços mecânicos em vias públicas; 21. Da construção de canteiros ajardinados e/ou colocação de dispositivos especiais nos passeios de logradouros públicos82; 22. Da preservação do asseio e conservação de calçadas fronteiras a estabelecimentos comerciais83; 23. Da concessão da permissão às empresas de publicidade, para instalação de indicadores de logradouros públicos; 24. Do exercício do comércio em feiras-livres; 25. Do estacionamento de veículos sobre passeios de logradouros públicos municipais84;

Fonte: Decreto no 10273, de 17/7/199185

E aqui praticamente se consolida um processo que teve início no período Passos: as Posturas como extensão dos interesses do tesouro municipal e como expressão de força do poder executivo. Situação que será objeto de ligeiras mudanças no Rio de Janeiro depois da criação da Guarda Municipal

82

o

Título e nova redação dados pelo Decreto n 2.224, de 31/7/1979. o Título e nova redação dados Decreto n 8.360, de 3/2/1989. 84 o Acrescentado à Consolidação das Posturas Municipais pelo Decreto n 10273, de 17/7/1991 85 Incluídas as alterações. 83


127 nos anos 90 e da atual política do Choque de Ordem. este processo foi acompanhado pela construção de uma forte cultura institucional nos setores da administração pública relacionados ao poder de polícia, como a fazenda e o urbanismo, num primeiro momento e, mais recentemente, da vigilância sanitária e do controle ambiental, amparados por iniciativas federais de verticalização de temas e políticas, como o Sistema Único de Saúde - SUS e o Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA.

Desde

a

criação

do

SUS

observou-se

um

processo

acelerado

de

municipalização das ações de vigilância sanitária. Se, por um lado, o serviço de vigilância sanitária com base em novas exigências e paradigma, abriu uma nova frente de fiscalização dentro do governo municipal, por outro algumas colisões foram inevitáveis. As normas sanitárias foram rebatidas em nível local, suplantando as antigas posturas de higiene vigentes que não conseguiram acompanhar o ritmo do desenvolvimento técnico-científico da área da saúde.

Também o Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA, embora um pouco menos eficiente que o SUS em sua estruturação enquanto sistema, afetou sobremaneira as Posturas através de sobreposições e revogações. A Lei Federal 6.938, de 31 de agosto de 1981, instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente e criou o SISNAMA que, assim como o SUS, depende da comunicação e integração entre os subsistemas que o integram, especialmente diferentes esferas de governo. A mesma lei determinou que os órgãos ou entidades estaduais serão responsáveis pela execução de programas e projetos e de controle e fiscalização das atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental e os órgãos ou entidades municipais serão responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas áreas de jurisdição.

Assim como a vigilância sanitária, o controle ambiental promoveu um complexo processo de municipalização das ações de licenciamento e fiscalização que, seguindo uma lógica de escala federativa, simplesmente ignorou as Posturas Municipais. Como um trabalho de compatibilização entre Posturas e normas federais não foi feito, algumas antigas posturas foram sendo revogadas ou


128 esquecidas. Esta coexistência entre posturas e as normas federais de vigilância sanitária e controle ambiental, foi apenas a ponta do iceberg, já que à reboque outras colisões ocorreram em ambiente administrativo, como aquelas entre instrumentos normativos, penalidades, etapas processuais, rotinas de trabalho e, até mesmo, políticas salariais.

Na forma como foram concebidos e implantados o SUS e o SISNAMA suas normas não constituem posturas, pois não resultam da perspectiva local. Aí estaria o cerne da questão político-institucional do Poder de Polícia em âmbito municipal: adotou-se para as áreas de saúde e de meio ambiente um conceito de sistema onde a dimensão regional e local (incluindo características, interesses, aspirações, vocações e políticas) submeteu-se aos valores e interesses universais, construídos no desenvolvimento de algumas áreas do conhecimento científico e influenciados por uma lógica internacional, como por exemplo a Organização Mundial de Saúde - OMS, que define padrões e indicadores que devem ser praticados pelas Prefeituras do Oiapoque ao Chuí. A discussão universal versus local, científico versus tradicional está subjacente nas contradições dos sistemas e impõe o desafio da transdisciplinaridade que, em termos de políticas governamentais está muito longe de ser enfrentado.

Este processo de fragmentação do Poder de Polícia foi acompanhado pelo esvaziamento das posturas e colocou em crise a fiscalização e o licenciamento em nível municipal, especialmente nos anos 80 e 9086. De um lado, as posturas, muitas vezes elaboradas sem o devido respaldo técnico-científico, desatualizadas, executadas por fiscais leigos ou agentes fazendários. De outro, normas universais, atualizadas, executadas por técnicos especializados, solidários a um sistema que por muitas vezes ignora a autonomia municipal e a realidade local.

86

Cf. Garcia: Uma Questão de Posturas: Crise e Renovação do Poder de Polícia Municipal in Revista Municípios, 2004. pp. 38-45.


129 2. Constituição de 88 e o Poder de Polícia no Município

A Constituição de 1988 elevou o Município ao patamar de ente federativo trazendo novas perspectivas e competências para as administrações locais, entre as quais, conforme o artigo 23, de “legislar sobre assuntos de interesse local”. Também estabeleceu que

“a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (CF 1988, Art.182). E as Posturas retornaram lentamente à pauta. Inicialmente nas novas Leis Orgânicas Municipais apenas como expressão simbólica do poder local, há tanto tempo negligenciado, e como instrumento de fortalecimento das combalidas receitas municipais. Sua associação ao urbanismo era fraca. Raríssimos municípios as tinham revisado ou atualizado na década anterior. E tal cenário não mudou rapidamente87.

De certo modo, a primeira gestão de César Maia (93/96) na Prefeitura do Rio de Janeiro resgatou as Posturas para além da subordinação fazendária e as transformou num efetivo instrumento de política de controle do espaço urbano seguindo uma orientação neoliberal que privilegiava (e ainda privilegia) a ações na escala local conforme a lógica global capitalista. A construção da imagem da cidade como destino turístico - mais tarde reforçada por grandes eventos internacionais, como os Jogos Panamericanos, a Conferência Rio +20, a Copa do Mundo e as Olimpíadas, entre outros de menor abrangência - trouxe, a reboque, o debate amplamente respaldado pela mídia e por setores da

87

Pela minha experiência nos trabalhos de consultoria realizados pelo IBAM na década de 90 posso afirmar que a grande demanda de Planos Diretores pelos Municípios não foi acompanhada por solicitações para revisão do Código de Posturas. Quando muito, surgiu um ou outro pedido de modelos de lei, mais no âmbito fazendário que urbanístico. De fato, num período anterior viu-se a proliferação de manuais de apoio aos Municípios, contendo modelos de leis - cito como exemplo Manual do Legislador Público Municipal, de Raphael Mayr, publicado em 1956 - dentro do espírito padronizador característico deste tipo de obra. Nada que viesse efetivamente a mudar o cenário de ostracismo das Posturas.


130 sociedade sobre hábitos, usos, apropriações do espaço coletivo que passa a ser gerenciado pelo Poder Público, como ativo econômico.

Em

1993,

César

Maia

promoveu

uma

reestruturação

dos

setores

administrativos envolvidos com o Poder de Polícia e as Posturas Municipais de 1978 foram retomadas como base para ações da Prefeitura. Algumas modificações importantes foram anteriores à gestão Maia, com destaque para a Lei no 1.876 de 6 de junho de 1992 que tratou do comércio ambulante (convertida mais tarde em Regulamento no 2) e a Lei no 1.887, de 27 de junho de 1992, que autorizou a criação da Guarda, ambas no governo de Marcello Alencar. Esta última definiu assim as atribuições da nova corporação:

“São funções institucionais da Guarda Municipal: I - a proteção dos bens, serviços e instalações municipais do Rio de Janeiro, incluídos os de sua administração direta, indireta e fundacional; II - a fiscalização, organização e orientação do tráfego de veículos em território municipal, observadas estritamente as competências municipais; III - a orientação à comunidade local quanto ao direito de utilização dos bens e serviços públicos; IV - a proteção ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, cultural, ecológico e paisagísticos do Município; V - o apoio e orientação aos turistas brasileiros e estrangeiros; VI - a colaboração, em caráter excepcional, com as operações de defesa civil do Município.”88 A questão não estava exatamente na elaboração de novas Posturas, outrossim na aplicação efetiva das existentes, com uma ou outra atualização que se fizesse necessária.

Em junho de 1994, o jornal o Globo noticiou: “Camelôs vão ter que sair do Centro”89 antecipando uma grande ação da Prefeitura nesta área da cidade, visando a aplicação das novas posturas sobre comércio em logradouros. A 88

o

Lei no 1.887, de 27 de junho de 1992, Artigo 1 . Esta lei foi, posteriormente revogada pela lei n 4.497 de 26 de abril de 2007. 89 Cf. Fonte: O Globo, 2/6/1994. o


131 repressão aos camelôs decorrente da nova política de ordenamento foi amplamente acompanhada pela mídia e tendia a espetacularização das operações, remetendo aos tempos de Baratta Ribeiro e de Passos. Mafra descreve uma ação na rua Uruguaiana que

“mobilizou 150 guardas municipais, 100 fiscais e 40 policiais militares, para esvaziar a área e dar início às obras de reurbanização, confirmando que a “grande operação” tinha como prioridade “limpar” e “recuperar” as ruas do Centro da cidade” (Mafra, 2005, p.77) Os conflitos eram praticamente inevitáveis porque eram cuidadosamente planejados. Alcides Redondo acompanhou na época uma ação em Copacabana da janela do apartamento90. Segundo seu relato, a Guarda Municipal era distribuída ao longo de um perímetro estrategicamente demarcado de modo a cercar os camelôs num certo trecho de logradouro e evitar fugas. Tudo devidamente registrado pelas câmeras de TV. Segundo as Posturas91, ambulante ou camelô é quem exerce temporariamente atividade profissional em logradouro público, “por sua conta e risco”, apregoando mercadoria”. Para habilitar-se à atividade lei obriga à inscrição como autônomo na Previdência Social e pertencer a algum dos seguintes grupos:

“os cegos, os paraplégicos, mutilados e demais deficientes físicos; os carentes, aí entendidas as pessoas físicas com idade superior a quarenta e cinco anos, e desempregados por tempo ininterrupto superior a um ano e os egressos do sistema penitenciário; as pessoas físicas que já exerçam atividades profissionais previstas nesta Lei na data de sua promulgação.”92 Além disso, o interessado deveria apresentar comprovante de residência no Município, prova de incapacidade física (quando esta não for evidente) e 90

Alcides Rodrigues Redondo foi chefe do Centro de Desenvolvimento Municipal do IBAM, onde o conheci. Devo muito aos seus comentários sobre Posturas e Administração Municipais. 91 o Lei n 1,876, de 29 de junho de 1992 92 o o o Artigos 1 , 3 e 5 .


132 declaração de “não ser portador de moléstia infecto-contagiosa”. Tais condições não trouxeram nada de novo em relação aos antigos modelos de Códigos de Posturas dos anos 50 e mesmo anteriores, quando as condições de trabalho nas principais cidades eram muito diversas daquelas que levava às ruas do Rio centenas de trabalhadores nos anos 90.

A lei é bastante extensa e detalhista. São ao todo 72 artigos e organizados em 12 títulos e 2 anexos. Fixa, como as clássicas posturas, o que pode e o que não pode ser comercializado, além de restrições de localização. A intenção da lei foi restringir o ambulante às mercadorias que não ofereçam concorrência ao comércio estabelecido, incluindo bebidas alcoólicas, calçados, malas, material eletrônico, óculos, relógios, etc. além de colaborar com a Polícia e autoridades competentes no combate ao contrabando e pirataria ainda que tal tarefa não seja da competência do Município.

A localização dos pontos de comércio ambulante foi definida de modo a não perturbar a circulação das pessoas nas calçadas, especialmente nos locais de maior aglomeração, como acessos às estações de trens, metrô, templos, escolas, quartéis e repartições públicas93. Já o anexo II contém o número máximo de ambulantes para cada Região Administrativa. As Regiões I e II que incluem o Centro e adjacências poderiam receber até 1.500 ambulantes e a IV Região, onde localiza-se o Largo do Machado94, poderia receber até 1.000. cabe destacar, contudo, que este número não garante em nada a presença dos camelôs nas ruas uma vez que outras exigências precisariam ser cumpridas e que o poder do Município sobre tal questão é discricionário95.

Sobre estas restrições, ressalto a especial atenção das autoridades com a funcionalidade das calçadas dos centros de bairros, como se fosse este o principal uso destas. A história das cidades demonstra que o logradouro está

93

A Lei fixa distância mínima de 50 metros desses locais. Artigo 30. A IV Região abrange os bairros de Botafogo, Catete, Flamengo, Glória, Laranjeiras e Cosme Velho. 95 Tratei do tema na seção 3 deste mesmo Capítulo. 94


133 longe de se limitar à mera passagem: foi o berço do comércio, o palco dos dramas e comédias da vida urbana e a expressão mais visível da vida coletiva.

O discurso oficial que retomou as Posturas como instrumento de ordem pública nos anos 1990 não se restringiu à opção funcionalista da Carta de Atenas em relação à circulação. O Projeto Rio Cidade, do mesmo período, voltou-se para a reurbanização de centros de bairros que resultaram em espaços de valorização e, em contrapartida, de restrição à camelotagem. Na verdade, a política de espaços públicos e logradouros de Maia voltou-se, de fato, para o que considerou “caos” e a “desordem” nos espaços coletivos. Piñon chamou a atenção para algumas expressões utilizadas repetidas vezes no diagnóstico que subsidiou o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro: desordem urbana, decadência dos espaços públicos, desequilíbrio social, degradação da rua, desvalorização da vida comunitária, medo e violência, insegurança social, falta de civilidade, baixa auto-estima do carioca (2006, p.184)

O diagnóstico foi concluído em 1995, mas as ações contra a “desordem” urbana já vinham sendo implementadas muito antes dessa data, como se viu nas Posturas. Vainer analisou o processo de elaboração e homologação do Plano Estratégico pelo Conselho da Cidade e o qualificou como “bem orquestrada farsa, cujo objetivo tem sido o de legitimar orientações e projetos caros aos grupos dominantes da cidade” e citou os projetos do Teleporto, do Centro Internacional do Comércio, Porto de Sepetiba, etc. (2000, p.115).

Uma entrevista de Cesar Maia ao Jornal do Brasil e capturada por Vainer resume bem o espírito de seu governo e a lógica que orientou e ainda orienta o Poder de Polícia no Rio de Janeiro:

“Meu discurso é o da ordem. O eleitorado conservador encampou minha candidatura e entre eles sou imbatível. Vou mostrar que é possível ser transformador pela direita.” (Jornal do Brasil 10/02/92 apud VAINER, op.cit., p.105) O atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, surgiu para o cenário político nos governos de Cesar Maia, chegando a ocupar cargos de subprefeito e de


134 secretário municipal. Em que pese o arranjo político-partidário diferente, sua gestão é caracterizada pelas intervenções urbanas de grande visibilidade e impacto e pelo mesmo apelo à ordem que César Maia. Às Posturas Municipais é reservado papel de destaque e uma unidade administrativa específica, a Secretaria Especial de Ordem Pública, que se define como “um órgão regulador e fiscalizador da atividade econômica, das posturas municipais e regulamentador do uso do espaço público”, cuja missão é “ordenar os espaços públicos do Rio de Janeiro fazendo valer as legislações municipais e o Código de Posturas”96. Ao mesmo tempo que promove o Choque de Ordem, o governo Paes implementa medidas e desenvolve projetos - como o Porto Maravilha, por exemplo - com vistas aos megaeventos Rio +20, Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas.

O Plano Estratégico da Prefeitura para o quadriênio de 2009/2012, voltado para “integração e competitividade”, eleva o tema ordem pública à “área de resultado”, nivelado a outros mais tradicionais como saúde, educação, meio ambiente, transporte, assistência social. Trata-se, sem dúvida, da mais alta condição adquirida pelas Posturas numa Prefeitura da cidade. Os argumentos utilizados para tal são muito similares aqueles trazidos pelo Plano Estratégico da gestão César Maia:

“Desrespeito frequente às normas de trânsito e aos limites de estacionamento, expansão do comércio irregular no espaço público, proliferação do transporte coletivo irregular nas ruas da cidade, aumento da população de rua, crescimento das ocupações ilegais no asfalto e nas comunidades.” (PEPRJ, 2009-2012, p.58) Entre os fatores que contribuíram para este contexto de “desordem” e “caos”, o Plano Estratégico destaca a “situação precária” da Guarda Municipal e dos setores de fiscalização das Coordenadorias de Controle Urbano, Licenciamento e Fiscalização: “desmotivadas”, “desequipadas” e “sem clareza do foco”. Entre as metas consta “formalizar e ordenar 25.000 comerciantes que operam no

96

Definições publicadas no site oficial da Prefeitura e disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=94564 . Último acesso em abril de 2011.


135 espaço público até 2012”. Número pouco acima do total de 18.400 admitidos pelo anexo II da Lei 1.976 de vinte anos antes. O Choque de Ordem entra assim em choque também com a ordem pretendida anteriormente e que, apesar dos conflitos amplamente registrados pela mídia, não teria logrado êxito esperado.

Quadro IV - Descrição da Iniciativa Estratégica de “Ações de Ordenamento” SITUAÇÃO ATUAL A cidade do Rio de Janeiro vem sofrendo nos últimos anos com a ocupação desordenada dos espaços públicos. É frequente encontrar transporte, estacionamento, publicidade, construções e negócios irregulares na cidade. DESCRIÇÃO Este programa consiste no fortalecimento das ações de fiscalização e monitoramento da ordem pública e do controle urbano, através do aperfeiçoamento e automatização de rotinas de fiscalização, informatização de processos, uso de tecnologia móvel e implementação de uma base única de dados cadastrais. RESULTADOS ESPERADOS Restauração da ordem pública na cidade, fomentando a cultura de civilidade e o combate à ilegalidade.

Fonte: Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro, p. 62.

Nas demais ações do Choque de Ordem - Guarda Municipal e Câmeras de Vigilância - a Prefeitura envereda pelo tema segurança pública, extrapolando os limites das Posturas. Aumentar a “sensação de segurança” e reduzir “índices de criminalidade” remetem a outro contexto de Poder de Polícia que precisa ser analisado. Existe outro fato, de âmbito nacional, que modificou sobremaneira o papel das Guardas Municipais e corroborou para um discurso mais ostensivo pública nos logradouros. A criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) - lançado em 2003 mas somente regulamentado através da Lei Federal 11.530 de 24 de outubro de 2007, que definiu o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). O programa incluiu as Guardas Municipais na política integrada de segurança pública e para tanto, reservou ações de reaparelhamento e capacitação das corporações.

Apesar de não ser objeto desta pesquisa aprofundar o debate sobre segurança pública no cenário atual das cidades brasileiras, sua relação com o discurso


136 ordenador que orienta as intervenções municipais no espaço público do Rio de Janeiro nos últimos vinte anos, incluindo as Posturas Municiais, é bastante sensível. Quando o prefeito evoca a ordem urbana, não o faz através de simples fiscalização, que é o procedimento de controle administrativo clássico de exercício do Poder de Polícia municipal que, segundo Meirelles, “restringese à verificação da normalidade do uso do bem ou do exercício da atividade policiada em face das normas legais e regulamentares que os regem” (2006, p.479). Em suma: o fiscal não usa cacetete ou spray de pimenta e sim o auto de infração e, quando se fizer necessária, solicita a presença da autoridade policial. Porém, nem sempre a Guarda Municipal solicitará a presença do fiscal de posturas. No governo de Luiz Paulo Conde, através do decreto "N"17.931, de 24 de setembro de 1999, a Guarda Municipal, com a justificativa de desobstruir os bens públicos municipais, passou a realizar apreensão de mercadorias e lavrar o respectivo termo, antes competência exclusiva do Fiscal de Atividades Econômicas. Tal atribuição vem sendo questionada por fiscais e juristas que entendem tratar-se de uma invasão de competências ou mesmo uma distorção de funções.

A sobreposição de papéis e de atribuições da Guarda Municipal: segurança pública de um lado e posturas de outro; verticalização do SUSP de um lado e a horizontalidade da política local de outro - pode colocar num mesmo patamar e sob o mesmo agente de polícia situações completamente distintas. O prefeito, se quisesse, dar maiores poderes à fiscalização de posturas, hoje restrita às atividades econômicas e controle urbano. Mesmo subordinadas à nova Secretaria de Ordem Pública, estão desintegradas de seu conteúdo conceitual e normativo, ou seja: o urbanismo (ainda que este, para retomar o pensamento de Lefebvre, seja também uma estratégia). A Prefeitura adota um conceito restrito e simplista de ordem, que para ser entendida como resultado precisa derivar da política urbana e, principalmente, do debate político na esfera da polis. Porém tal possibilidade evidentemente não se coaduna com a ordem defendida e, especialmente, com o tipo de ação que pretende implantar. Ou seja: o governo usa a ordem apenas como meio e justificativa para suas ações, estratégias e projetos - não o contrário! Ordem aqui não seria exatamente o


137 resultado, outrossim a estratégia e a prática discursiva utilizada. E com forte apelo junto aos meios de comunicação.

Enquanto isso, as Guardas seguem se “aparelhando” para cumprimento das Posturas. Apesar de ser discutível a utilização de armas não letais pelas Guardas Municipais, várias vem se municiando desse modo, como se pode ver em diversas matérias jornalísticas recentes. Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo, tramita o Projeto de Lei 1373/201297, que prevê o uso de armas não letais pela Guarda Municipal a capacitação técnica da corporação. O PL define como não letal

“a arma projetada, especificamente, para conter, debilitar ou incapacitar, temporariamente, pessoas, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, tais como: I - gás lacrimogêneo; II - bala de borracha; III - bastão de Choque; IV - canhão de água; V - spray de pimenta; e VI - tasers98”. O Choque de Ordem deixará assim de ser uma metáfora e os choques passarão a ser voltaicos? Que cenário está reservado aos conflitos urbanos, até de certo modo inerentes às disputas por espaços e territórios nas cidades? Sobre este aspecto o Pronasci não tem muito a dizer, uma vez que não trata diretamente do futuro das Guardas Municipais no contexto da segurança. Dúvidas ficaram no ar e algumas delas foram trazidas por Soares:

Essa mudança de status é desejável sem que as Guardas se submetam a intensa preparação e profunda reorganização, para que estas futuras polícias municipais não reproduzam os vícios das PM? A ruptura do ciclo de trabalho policial deveria ser replicada na esfera 97

O PL, de autoria do vereador Jorge Manaia, torna obrigatório o treinamento da corporação para uso de armas não letais. Todavia, como pode-se perceber no restante da lei, tal dispositivo ainda que necessário, acaba tornado-se secundário em relação ao real objeto da lei e acaba viabilizando o uso de armas não letais pela Guarda 98 Pistolas de raios tipo teaser.


138 municipal, ou seja, as Guardas deveriam ser pequenas PM? (2007, p.91) Na verdade, o que a Prefeitura chama de Choque de Ordem nada mais é que o exercício efetivo das Posturas Municipais. Ordem aqui significa, nada menos, que Posturas. Raciocínio no mínimo simplista já que sobre tais Posturas99 recaem as dúvidas de sua legitimidade democrática - trata-se de um decreto! e de seu propósito, uma vez que não pode se auto-validar, ou seja, estabelecer a ordem através da própria ordem. Ainda que almeje ordenar, a lei não é a ordem. Talvez nem a alcance e mesmo que alcance, nada garante que seja boa, razoável ou desejada.

Vê-se aqui a dicotomia ordem/desordem provocando tensões e equívocos. O primeiro desses equívocos surge na associação ordem/legalidade/bem de um lado, e desordem/ilegalidade/mal de outro. E daí, outras associações deflagram, mesclando-se com um “senso comum” construído através dos tempos: ordem/regular/formal versus desordem/irregular/informal. A desordem urbana é irregularidade no uso dos logradouros, conforme a lei. E ninguém questiona a lei?

No caso específico do Rio de Janeiro, falar em lei seria apenas figura de retórica, já que desde os tempos de Pereira Passos que o executivo se vale do decreto para estabelecer a maioria das Posturas Municipais. O papel da Câmara no caso das Posturas tem sido nulo há tempos, como afirmaram tanto o vereador Eliomar Coelho quanto a vereadora Andrea Carneiro100. Se nos tempos de Pereira Passos a Câmara ofereceu resistência aos atos da Intendência que reduziam sensivelmente seu poder, hoje limita-se a uma base de sustentação parlamentar das iniciativas do executivo, sem iniciativa e sem independência.

99

Na maioria dos Municípios que visitei as Posturas são leis. Apenas o Rio de Janeiro adota costumeiramente o decreto como instrumento de Posturas, conforme analisado no Capítulo 100 Entrevistas realizadas respectivamente dias 21 e 13 de setembro de 2011.


139 A exceção, segundo Eliomar, teria sido justamente a lei 1.876 de29 de junho de 1992, que tratou do comércio ambulante nas alterações das Posturas consolidadas em 1978, que teria sido amplamente discutida pelas várias comissões da Câmara e aprovada após 103 dias de tramitação. Contudo, o Decreto 29.881 de 18 de Setembro de 2008101 que trouxe a mais recente Consolidação das Posturas Municipais do Rio de Janeiro, dedicou o Título II ao mesmo tema. Situação no mínimo confusa: de um lado o decreto não pode revogar lei como reza o sistema jurídico brasileiro, porém não a regulamenta, como deveria. Aliás, sequer a cita e altera sensivelmente seu conteúdo. Tal medida, além de autocrática e contrária ao sistema jurídico brasileiro, está longe de se prestar à ordem tão propalada, uma vez que viola o próprio ordenamento jurídico do Estado Democrático.

Sob tal lógica, as Posturas do Decreto 29.881 fundem num mesmo e único instrumento jurídico assuntos da competência da lei - que exigem aprovação da Câmara como proibições e obrigações - com medidas de caráter meramente administrativo, relacionadas à burocracia estatal, especificidades técnicas ou instruções normativas, que poderiam ser objeto de simples portaria.

Em comparação com a Consolidação de Posturas anterior, o decreto 29.881 buscou uma organização de temas tecnicamente mais coerente, separando as posturas

de

licenciamento

e

autorização,

que

envolvem

processos

administrativos mais complexos incluindo a análise de documentação, reconhecimento de direitos e processos tributários (Livro I - Posturas de Licenciamento e Funcionamento de Atividades Econômicas), das posturas de fiscalização preventiva envolvendo hábitos, práticas, usos e circulação (Livro II Posturas de Manutenção da Ordem e Convivência Urbana).

101

Data da última gestão de Cesar Maia.


140

Quadro V - Regulamentos da Consolidação das Posturas Municipais de 2008 Livro I Posturas de Licenciamento e Funcionamento de Atividades Econômicas. 1. Do Licenciamento e Funcionamento das Atividades Econômicas exercidas em áreas particulares. 2. Da Autorização e Exercício das Atividades Econômicas Exercidas em Área Pública102. 3. Da Exibição e Exploração de Publicidade. Livro II Posturas Referentes à Manutenção da Ordem e Convivência Urbana. 1. Sobre Fogos de Artifício. 2- Da Proteção Contra Ruídos. 3. Das Pipas, Papagaios, Pandorgas e Semelhantes. 4. Da Construção de Canteiros Jardinados e/ou Colocação de Dispositivos Especiais nos Passeios dos Logradouros Públicos. 5. Da Construção, Manutenção e Conservação de Calçadas e dos Logradouros Públicos. 6. Da Conservação e Manutenção de Terrenos não Edificados. 7. Da Defesa dos Cursos de Água. 8. Da Manutenção e Conservação das Edificações e Estabelecimentos Comerciais. 9. Do Tráfego de Veículos e Pedestres nas Vias e Logradouros Públicos. 10. Do Trânsito e da Permanência de Animais no Logradouro Público. 11. Das Ciclovias, Bicicletários e do Uso de Bicicletas. 12. Do Estacionamento de Veículos Sobre Passeios de Logradouros Públicos. 13. Das Posturas Relativas ao Sistema Municipal de Transportes de Ônibus. 14. Do Serviço de Transporte de Passageiro em Veículos de Aluguel a Taxímetro. 15. Do Serviço de Transportes de Escolares no Município do Rio de Janeiro. 16. Da Prática Esportiva nas Praias. 17. Do Uso Das Praças, Parques e Jardins. 18. Das Normas de Proteção Ambiental para Utilização das Praias Municipais. 19. Sobre a Lavratura, Registro a Controle de Autos de Infração.

Fonte: Decreto 29.881 de 18 de Setembro de 2008

A rigor o Decreto não trouxe novidades nas Posturas Municipais. O Regulamento no 2, por exemplo, manteve em essência a mesma orientação das posturas anteriores - na maioria das vezes mantendo o texto anterior - para com o comércio na rua, detalhando um pouco mais os tipos de mercadorias, atualizando as exigências quanto ao equipamento e natureza de negócio. Foi mantida a diferenciação entre licença e autorização, obedecendo renomados autores do Direito Administrativo, como Meirelles, di Pietro e Homem de Mello.

102

o

O detalhamento de Regulamento n 2 consta do Anexo I.


141 Esta diferenciação é crucial para se compreender a fundamentação do Poder de Polícia nos logradouros, pois o regime jurídico da autorização é o mais apropriado quando se trata de atividades em espaços públicos. Enquanto a licença supõe uma relação jurídica estável, a autorização é caracterizada pela precariedade conferida aos atos administrativos discricionários103 inerentes ao poder de polícia. Aqui o Estado se faz sujeito da ordem104 no espaço público, pois a discricionariedade se traduz

“na livre escolha, pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções legais e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público” (MEIRELLES, 2006, p.474) Embora muitos se refiram à licença quando se trata de comércio ambulante ou atividades em logradouros públicos, este pressupõe um direito pré-existente, como o direito de construir em terrenos definidos como edificáveis, desde que devidamente satisfeitas as exigências da autoridade legal. Ou seja, na licença, o requerente é o detentor do direito (sujeito), cabendo ao poder público condicionar a atividade. Satisfeitas as condições, a Administração é obrigada a conceder a licença. No caso das autorizações, é o poder público o detentor do direito (sujeito) e não quem o procura com a intenção de realizar alguma atividade. Sobre o assunto trataram Meirelles (2006, p.478), Di Pietro (2002, p.218) e Mello (2009, p.432). Tal compreensão respalda as atuais Posturas do Rio na questão, assim expressa no Regulamento no 2: Art. 3o. As autorizações para o exercício de atividades econômicas nas áreas públicas serão concedidas a título precário, conforme critério de conveniência, oportunidade e interesse público e poderão 103

Di Pietro define autorização como “ato administrativo unilateral, discricionário e precário, pelo qual a Administração faculta ao particular o uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem o consentimento, seriam legalmente proibidos.” (2000, p.218), enquanto licença é “ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de determinada atividade” (op.cit., p.219). 104

O Estado se faz sujeito ainda porque juridicamente “sujeito é aquele a quem a lei atribui competência para a prática do ato” (DI PIETRO, 2002, p.195) e o espaço público (e aqui incluem-se os ambientes coletivos ou mesmo particulares abertos ao público) será regido pelo interesse público.


142 ser revogadas a qualquer tempo, a juízo da autoridade competente, sempre que ocorrer motivo superveniente que justifique tal ato. Assim sendo, toda atividade em logradouro público pode se tornar refém do juízo da “autoridade competente”. Tal condição é sempre arriscada, especialmente quando a “autoridade competente” não se orienta pelo debate democrático e participativo: controla, normatiza e regula através de decretos. Cabe ressaltar que não estou a negar, aqui ou nos demais capítulos do presente trabalho, a necessidade das Posturas enquanto instrumento regulador que visa garantir, com isonomia de tratamento, o mínimo de organização do espaço público em defesa do lugar, isto é, das práticas cotidianas, da convivência, da paisagem, da história, do cidadão e da sociedade, segundo localização e recorte espacial. Entretanto, existem outras formas de se propor e estabelecer tais normas que não seja um decreto elaborado segundo os interesses e entendimento da Prefeitura ou segundo um Plano Estratégico onde, como bem observou Vainer, “já se sabe, de antemão, o que é bom e o que é ruim, o desejável e o indesejável” (op.cit. p.113).

As Posturas fixam, ainda que por vias erradas como é o caso do decreto em estudo, obrigações e proibições reconhecidamente necessárias, como a proibição de comercialização ambulante de medicamento, material inflamável, corrosivo e explosivo105; do uso de recipientes de vidro em comércio de praia106; emissão de níveis de poluição sonora e do ar acima do permitido pela legislação ambiental107; as obrigações de manter os equipamentos para passeio e lazer em perfeito estado de conservação108 ou manter, durante o horário de funcionamento, um serviço de limpeza da calçada ocupada e preservar faixa livre e desimpedida destinada à circulação de pedestres109. Creio que não seria difícil, num debate amplo e democrático envolvendo

105

o

Regulamento n 2, artigo 19. Idem, artigo 41. 107 Idem, artigo 55. 108 Idem, artigo 64. 109 Idem, artigo 168. O caso da instalação de mesas e cadeiras sobre calçadas é exemplo do pensamento generalizante que norteou o decreto. Enquanto a Norma Brasileira de Acessibilidade - NBR9050 estabelece a obrigação de se reservar uma faixa mínima livre e desimpedida de 1,20 metros, o decreto fixa este mínimo em 2,5 metros, independentemente do lugar e seu movimento. 106


143 diferentes setores do comércio e população do lugar aprovar tais dispositivos, porém poder-se-ia implementar esforços para que tais atitudes e preocupações não demandassem leis para vigorar.

Outras exigências podem ser entendidas como requintes e exageros de ordenação, padronização, estetização ou mesmo tentativas de restringir uma atividade ou o acesso ao alvará, como por exemplo a obrigação do uso de jaleco e boné, na cor verde, nos quiosques de planta110; a proibição de qualquer

comércio

ambulante

num

raio

de

duzentos

metros

de

estabelecimentos de ensino111 a proibição de novas feiras-livres na cidade112. Na maioria dos casos, tratou-se de uma imposição do executivo, elaborada à revelia do debate e consulta popular e ao largo do processo legislativo das Câmaras.

A atividade ambulante, além de submetida à discricionariedade do Poder de Polícia, submete-se à pesadas multas, que são aplicadas apenas nos casos de camelôs devidamente autorizados por meio de alvará. Nos casos não autorizados, a mercadoria é simplesmente apreendida, o que resulta, na maioria das vezes, num valor até maior que a multa aplicada nos casos autorizados. A tabela I compara os valores de multas praticados segundo diferentes tipos de atividade fiscalizada. Percebe-se que o dimensionamento desses valores não leva em consideração a capacidade econômica do fiscalizado que, no caso do camelô de pista ou de barraca, é inferior ao do comerciante de feira e do lojista.

A apreensão de mercadoria, contudo, é a ação repressiva mais utilizada, porque inibe justamente a situação não autorizada. Para reaver a mercadoria e o material não perecível o camelô deverá arrolar recurso num prazo de até três dias úteis, contados a partir do auto de apreensão, sendo que “não serão liberadas, sob qualquer pretexto, as mercadorias apreendidas que não tiverem

110

Idem, artigo 37. Idem, artigo 21. 112 Idem, artigo 120. 111


144 comprovação aceitável das respectivas procedências113” ou quando requeridas após o prazo. E o prazo é relativamente curto, se comparado aos prazos fixados para recurso das infrações tributárias (que admite renegociação do prazo) ou edilícias. Devido às dificuldades para reaver a mercadoria, são as ações de apreensão que provocam as maiores tensões e conflitos.

Tabela I - Diferentes valores de multas segundo atividade fiscalizada Tipo de Infração Não apresentar os documentos exigidos Vender mercadorias não permitidas Funcionar fora do local permitido Não manter em local visível a tabela de preços de mercadorias Deixar de cumprir os preceitos sanitários e de higiene do tipo de comércio Não se apresentar decentemente trajado Apregoar ou produzir qualquer ruído evitável, buzinas, campainhas, etc. Dificultar ou ludibriar de qualquer forma a fiscalização Perturbação da ordem pública, falta de urbanidade, incontinência pública

Estabelecido de 22,89 a 228,94114 de 22,89 a 228,94 não cabível de 22,89 a 228,94 de 22,89 a 228,94 228,94 de 22,89 a 228,94 não menciona não menciona

Feirante 22,89

Ambulante 228,94

114,47

915,77

22,89 22,89

228,94 228,94

114,47

228,94

22,89 22,89

228,94 228,94

114,47

228,94

cassação de alvará

457,88

Fonte: Decreto 29.881 de 18 de Setembro de 2008115

A apreensão da mercadoria é, na prática, a base do conflito nas ações do Choque de Ordem. Apesar de não ter vínculos empregatícios formais - carteira assinada, contrato de trabalho, etc. - o camelô, seja “da pista”, do box ou da barraca é, na maioria das vezes, empregado e responsável pela mercadoria. A apreensão desta pela guarda é, de certa forma, uma violência amparada pela lei, pois pode resultar em perda do emprego e dívida para com o dono do negócio. 116

113

Artigo 194, do Decreto 29.881 de 18 de Setembro de 2008. As infrações ao comércio estabelecido variam conforme diferentes situações: se atividade não constante do alvará for adequada ou tolerada no local e compatível com as licenciadas. 115 Para elaboração da tabela foram utilizados os artigos 99 do Regulamento 1 (comércio estabelecido); 180 e 187 do Regulamento 2 (comercio em logradouros) 116 Mafra destaca que as atividades de comércio ambulante que paga melhor o trabalho do camelô são justamente aquelas relacionadas às mercadorias consideradas ilegais, como a venda de cópias de programas de computador. Tais atividades, contudo, permitem ao vendedor, além de melhor salário, o contato com a tecnologia e a chance de “subir” de status na categoria. Sobre o trabalho do camelô ver MAFRA, 2005, pp. 70, 71, 91 e seguintes. 114


145

Figuras 14 e 15: Choque de Ordem e Apreensão de Mercadorias Fonte: site G1117 e Sidney Rezende118

O discurso de ordem, no que tange às atividades comerciais em logradouros públicos, manteve-se tão restritivo, coercitivo e discricionário quanto no Reinado, no Império ou na República Velha. Mesmo considerando a necessidade do Poder de Polícia como meio de resguardar valores coletivos, comunitários e de convivência que definem o lugar, ações repressivas promovidas pelo Choque de Ordem que, por tantas vezes, se convertem em verdadeiras batalhas campais e escaramuças urbanas - estrategicamente planejadas, convém ressaltar - transforma lugar em não-lugar, tensão em conflito. No instante que ocorre, é apenas “choque” a contrair o tecido nervoso do complexo sistema de ações e objetos que define o espaço urbano.

117

Foto obtida no site G1. Disponível em http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2011/05/choque-de-ordem-apreende-duas-toneladas-de-quinquilharias-norio.html. Acessada em 07/01/2012 118 Foto obtida no site Rio +, do repórter Sidney Rezende. Disponível em http://www.sidneyrezende.com/noticia/143978+policia+e+chamada+para+conter+confronto+ent re+gm+e+ambulantes+no+rio. Acessada em 9/10/2011.


146 Não é difícil de entender porque algumas ações de repressão à camelotagem ocorrem, na maioria das vezes, depois de já instaladas as bancas, as barracas e as mercadorias. Geralmente tais ações são previamente comunicadas à mídia que acompanha a ação em tempo real e as noticiam com os mesmos recursos editoriais das operações contra o tráfico de drogas e outros crimes.

Figuras 16, 17 e 18: conflitos entre Guarda Municipal e camelôs. Fonte: Centro de Mídia Independente119

Novamente ressalto que seria ingenuidade tratar desta tensão através da simples dicotomia bandidos x paladinos, bem x mal, ordem x desordem, vilão x

119

Imagens obtidas em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/03/275885.shtml acessado em janeiro de 2011.


147 vítima. Sabe-se que o exercício do comércio ambulante também envolve estratégias e mecanismos de controle territorial que também ameaçam o lugar e a vida nos centros de bairros. Reprimir a ação criminosa é tarefa dos aparelhos de segurança social que extrapolam, em muito, a abrangência das Posturas Municipais, no desenho constitucional vigente. Porém as Posturas tratam tão somente das infrações administrativas: não aplicam penas e sim sanções! Delinear, cuidadosamente, o limite entre as instâncias criminal e administrativa nas ações de polícia de costumes é tarefa árdua que o Pronasci ainda precisa enfrentar ao integrar as Guardas Municipais ao sistema de segurança pública, para que firmeza da autoridade não seja substituída pela truculência da arbitrariedade.

3. Posturas e o Discurso de Ordem

Em suma, as novas Posturas são, em certo modo, as antigas Posturas. Pelo caráter restritivo e repressivo do ordenamento que se aplica hoje e se aplicou ontem, pouco se alcançou em termos de normas não escritas estabelecidas e acertadas segundo o lugar. Mas são aplicadas, a juízo da “autoridade competente” segundo a lógica de valorização imobiliária e mercantil de áreas da cidade escolhidas estrategicamente.

O discurso de ordem e está longe de se justificar apenas no desejo de uma classe média urbana politicamente mais conservadora. Na análise de Barbosa (2006, p.126), o apelo à tríade ordem-lei-segurança funciona como um “vigoroso clichê legitimador” que constrói a imagem de caos urbano e de crise da cidade para viabilizar o projeto de uma reestruturação mercantil do território. Assim como o Rio-Cidade iniciado por Maia, outros projetos urbanísticos que requalificam partes da cidade, trazendo valorização do patrimônio imobiliário, pontos de comércio e novos empreendimentos empresariais e turísticos que não se coadunam com a exposição das contradições que esse mesmo processo produz.

“Novos imperativos de eficiência e rentabilidade começam a ganhar corpo nos dispositivos urbanísticos destinados a realizar a


148 performance mimetizada dos lugares. A racionalidade econômica redefine o monumentalismo arquitetônico para erigir uma "ética do mérito", em que o agradável e a segurança desempenham papéis decisivos. (...) Um novo sentido é atribuído às cidades: não são mais lugares para se habitar, mas para exibir. As cidades são tratadas como ambientes visuais, como se fossem imensos videoclipes publicitários.” (BARBOSA, op.cit., 127) Ordem neste contexto é antes de mais nada um discurso político e as ações realizadas em seu nome, ainda que vez por outra logrem passageiros benefícios, funcionam mais como mise-en-scène de eficiência administrativa, amparada num conceito de legalidade comprovadamente autocrático. Ordenar, por em ordem, seria assim uma estratégia de gestão que redefine territórios de legalidade e ilegalidade (ROLNIK, 1997, p.13) e, por isso mesmo, se aplica a uma parte muito pequena da cidade (MARICATO, 2000, P.124).

Uma estratégia que reforça a seletividade das antigas políticas de zoneamento e de segregação urbana. Ordena-se o que se pretende exibir. E para isso, é preciso controlar o contra-espaço, que segundo o pensamento de Moreira

“é o modo espacial por meio do qual excluídos e dominados põem em questão a ordem espacial instituída como forma de organização da sociedade, rejeitando ou copiando o modo de vida que ela impõe aos que vivem embaixo e dentro dela. Pode ser contra-espaço um movimento de confronto, de resistência, de mimetismo ou de simples questionamento da ordem espacial existente.” (MOREIRA, 2006, p.101) O contra-espaço é o que chamam de “desordem”. Seu rebatimento espacial nos lugares reservados à valorização turística, imobiliária e empresarial está longe de ser o motivo principal da ação do governo e do Choque de Ordem, pois o contra-espaço não se restringe à ocupação física de logradouros: o contra-espaço busca um lugar ao sol na vida econômica da cidade, na forma do circuito inferior da economia, analisado por Santos (2004, p.197).

Trata-se do contra-espaço do circuito superior da economia, que o invade fisicamente - territórios - e quantitativamente - negócios - através da apropriação, da réplica, da improvisação, da pirataria, do reaproveitamento, do


149 contrabando de mercadorias e da sonegação de impostos que, importante frisar, não são práticas exclusivas do circuito inferior, mas ganham mais visibilidade quando praticadas por este em pleno logradouro público de áreas mais valorizadas da cidade. Daí a preocupação expressa nas Posturas em reprimir o comércio de mercadorias que ameaçam o circuito superior da economia, como fixa o artigo 19 do Regulamento no 2 que proíbe o comércio ambulante de relógio, óculos, artigos elétricos e eletrônicos; de obra musical, cinematográfica, fotográfica, literária ou programas de TV, gravados em mídia eletrônica (CD e DVD) ou não; de programa de computador; disquete, CD, DVD ou qualquer outro tipo de mídia eletrônica.

Não pretendo aqui a defender ou condenar a réplica e a sonegação de impostos120, mas reconheço tratar-se de um tema que, assim como a ordem urbana, vem sendo abordado - especialmente pela mídia - apenas em termos de legal e ilegal, sem o devido questionamento da lei que estabelece o que é e não é legal. Desse modo, tanto ordem como legalidade se auto-legitimam no discurso da repressão, simultaneamente como meio e fim, instrumento e propósito.

Todavia existe o outro lado da moeda, no qual o comércio de rua seria apenas uma extensão das disputas de território de vendas do comércio estabelecido. Tal condição foi também sinalizada por Santos, ao ressaltar as relações entre os circuitos superior e inferior da economia na prática dos vendedores de rua: “Essa atividade pode ser uma resposta às necessidades próprias do circuito superior do comércio e da fabricação. Os comerciantes usam os vendedores de rua para fugir ao pagamento dos impostos, para poder empregar menores e velhos, para ir ao encontro de uma clientela que não tem tempo ou não gosta de entrar nas casas de comércio ou, ainda, para escoar os produtos não vendidos ou invendáveis por diferentes motivos, incluindo-se entre eles artigos da moda. Acontece que os pequenos vendedores ambulantes não são 120

A diferenciação entre infrações administrativas e crimes extrapola o contexto das Posturas, mas afeta sobremaneira o comércio nas ruas. Cabe às Policias Civil e Federal atuar no caso da comercialização de produtos roubados e contrabandeados - prática até certo ponto comum no tipo de atividades que se analisa. Contudo, o camelô terá seu alvará cassado nos casos desse tipo de crime, ou seja, além das penalidades da legislação criminal, sofrerá sanções administrativas.


150 independentes, mas verdadeiros empregados de patrões invisíveis que comandam microcadeias de comercialização.” (Op.Cit., 218) Esta compreensão da relação entre os circuitos da economia urbana realizada por Milton Santos também é reforçada pela pesquisa sobre camelôs do Centro do Rio, realizada por Mafra:

“A relação entre camelôs e lojistas é ambígua. Os lojistas da Saara, por exemplo, têm forte participação na camelotagem, oferecendo facilidades de compra no atacado. Outros lojistas estendem o seu comércio para a calçada das ruas através de camelôs, assim como os comerciantes dos boxes do camelódromo.” (2005, p.86) Além da relação ambígua entre camelôs e lojistas, existe a relação entre o camelô e sua freguesia, seu mercado consumidor. Muito além da evidente apropriação de espaço público - e da violação de Posturas Municipais - as práticas e negócios típicos do circuito inferior da economia e realizados nos logradouros da cidade são manifestações do processo de formação do espaço urbano das metrópoles latino-americanas e de suas contradições, no campo econômico, cultural e comportamental.

A freguesia do camelô varia dependendo de seu local de comércio. O camelódromo da rua Uruguaiana atrai clientes de diversas áreas da cidade e diferentes classes sociais, favorecido pela localização privilegiada - (estação de metrô e o movimento do Centro da Cidade) e pela oferta de produtos eletrônicos, software e games (geralmente piratas) e acessórios de informática e de telefonia celular. Já o comércio de rua no Largo do Machado caracterizase pela forte presença de peças de vestuário, como camisetas, blusas e vestidos, de padrões bem diferentes daqueles vendidos na rua Uruguaiana. Ao que parece, essa ambígua relação entre camelô e clientela incomoda às autoridades para além da questão da ilegalidade. Ou por outras, são definidos como ilegais e irregulares determinados hábitos indesejáveis em relação ao projeto estratégico de espaço urbano.

Sobre hábitos indesejáveis do carioca, pode-se dizer que discurso de ordem foi bem recebido por setores da classe média e da imprensa, especialmente nos


151 temas trânsito, higiene e medicância. Praticamente os mesmos reclamados nos tempos de Passos, mantendo as devidas diferenças de contexto histórico. Se vozerio do pregoeiro ou o ruído do carro de boi foi substituído pelas buzinas e motores de automóveis - quando não das britadeiras e dos bate-estacas, o problema da medicância agravou-se pela invasão do crack e pela quase ostensiva presença de crianças nas ruas praticando pequenos furtos. Se clamava-se por medidas de controle - quando não de proibição - do entrudo, os blocos carnavalescos que revitalizaram o carnaval de rua no Rio também foram alvo de medidas reguladoras da Prefeitura. Nas duas situações, o olhar do visitante estrangeiro foi e é evocado como força motriz da intervenção estatal no espaço. A capital do café que recebia uma exposição internacional e a capital do turismo que recebe conferência internacional, copa do mundo e olimpíada. Seria a lógica da ordem distante impondo competitividade entre cidades e entre destinos turísticos e de negócios criando, através das Posturas, um cenário de ordem próxima que tenta sufocar as contradições do espaço.

Uma dessas contradições é analisada por Dahul que identifica no espaço da metrópole latinoamericana, um “mundo popular” que se mescla com as classes médias, compartilhando, disputando e se apropriando de espaços tidos como mais valorizados através de fontes de trabalho formais e informais:

“Ni los poderosos actores globales, ni las empresas formales en general, ni el gobierno, logran controlar de manera efectiva este mundo popular. Lo que significa que el espacio urbano, y en particular los espacios públicos, donde se desarrollan prácticas sociales simultáneas y contiguas, son espacios disputados, y en muchas ocasiones apropiados exitosamente por grupos populares” (2008, p14) Este “mundo popular” se enquadra melhor nas estratégias de desenvolvimento econômico globalizado quando mimetizado, adestrado, padronizado para ser consumido como produto cultural local, entre o pitoresco e o exótico. É a sua forma “bruta”, espontânea e visceral, ordenada conforme suas próprias estratégias que precisa de outra ordem, a do Estado e, no caso, das Posturas. Foi assim que o urbanismo “retornou” às ruas em projetos de “requalificação” urbana que, além de redesenhar passeios, alinhamentos e mobiliário, redefiniu


152 o lugar da camelotagem. E foi assim que as Posturas renasceram nos anos 90, como uma lei antiga - que já existia e não era cumprida. Uma lei que pré-existe ao caos.

E foi assim que a autoridade municipal adotou o discurso da segurança atrelado à ordem e à lei, mesmo com reduzidas competências no campo normativo e executivo. Maia, reiteradas vezes declarou ter sido inspirado pelo Programa de Tolerância Zero, implementado em Nova Iorque pelo prefeito republicano Rudolph Giulianni, nos anos 90, com medidas para redução da violência urbana - pouco se discutiu as particularidades da Federação Americana e competências locais. Recentemente foi a vez do governador Sergio Cabral anunciar a contratação do próprio Rudolph Giuliani como consultor em política de segurança pública para a Copa e Olimpíada. Mais do que ações em nível local, uma estratégia voltada para o global - tal como a contratação de Agache e seu plano diretor.

Figura 19: Giuliani no Rio, sob olhar atento de Paes. Fonte: Site IG - Esportes121

121

Foto publicada em dezembro de 2009 e acessada em janeiro de 2010, pela URL http://esporte.ig.com.br/mais/2009/12/03/rio+importa+tolerancia+zero+de+nova+york+para+jog os+de+2016+9193901.html


153 Sob a neurose da segurança, todo mendigo pode ser visto como um criminoso em potencial, toda criança de rua pode ser vista como pivete, todo camelô passa a ser visto apenas como contrabandista ou falsário. Nesta floresta de estereótipos, os conflitos entre a guarda e os ambulantes soam como uma operação policial - mais uma - como aquelas de repressão ao tráfico de drogas e armas. Nesse discurso de ordem não há mais espaço para o fiscal, apenas para o guarda. Não há espaço para sanções administrativas e sim para penalidades. Criminalizar a infração e militarizar a fiscalização de posturas.


154

VI. LARGO DO MACHADO: O LUGAR MUITO ALÉM DAS POSTURAS

O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. As idéias de espaço e lugar não podem ser definidas uma sem a outra.” (TUAN,1983, p.6) Largo: o nome do logradouro confunde-se com uma propriedade física. Sugere comprimento, amplitude, dimensão e estabelece uma relação direta com seu caráter original de cruzamento: mais largo que as ruas ou onde as ruas se alargam. É possível imaginar ali um prisma ladeado por algumas edificações relativamente altas que mais ou menos definem e confinam aquele espaço. Mas as ruas atravessam o prisma e impedem o rigor da geometria: funcionam como canais entre prédios que vazam e atravessam o prisma imaginário, roubando-lhe a completude. Difícil de cartografar. Difícil de delimitar: onde começa e onde termina o lugar?

Uma cidade pode ser o lugar e conter vários lugares. Um bairro pode ser o lugar e conter vários lugares. Demarcar bairros num mapa pode ser tarefa razoavelmente complicada, principalmente se o critério adotado remeter às relações de pertencimento e de identidade do habitante com o ambiente vivido122, pois encontraremos tanto sobreposições quanto vazios de referenciais, além de limites fracos ou imperceptíveis. No caso de um logradouro a tarefa não é mais simples, embora o ponto de partida é um local bem definido da cidade: uma rua, uma praça, um largo.

A demarcação do lugar num mapa força uma variação de escala não somente na análise e na representação do espaço, mas também na abrangência e foco dos mecanismos de gestão e regulação, entre eles Posturas Municipais. Tal condição remete à reflexão de Cullen sobre escalas e paisagem urbana onde um parque cheio de árvores, velhas e frondosas, estátuas de personagens famosas, bancos de

122

Já comentei na Seção 2 do Capítulo I a divisão de bairros do Rio de Janeiro e a localização do Largo do Machado nessa divisão. Vale aqui ressaltar que a atual delimitação de bairros encontra-se devidamente cartografada e, inclusive, compatibilizada com os setores censitários do IBGE.


155

jardim, um jardim de pedras e uma bela vista pode significar apenas um pontinho num mapa (1983, p.82).

Figura 20. Lambe-Lambe no Largo do Machado. (inspirada na ilustração do livro de Cullen). Fontes: Prefeitura do Rio de Janeiro – Instituto Pereira Passos e LambeLambe Cultura123

A experiência do lugar se dá na escala de 1:1 e em três dimensões, como aquela experiência de representação do espaço no conto de Borges. Meu esforço será descrever o lugar segundo da perspectiva do pedestre e analisar a lógica das posturas na escala do lugar. Para isso, não descarto a cartografia tampouco o

123

Fotografia disponível em http://lambelambecultural.blogspot.com.br, acessada em 23/05/2011.


156

geoprocessamento (ferramentas úteis para sínteses e totalizações) mas faço-o apenas como recurso ilustrativo, devidamente acompanhado de fotografias.

O exercício de descrever o lugar é também um exercício de ordenar o lugar. Primeiramente porque pressupõe um método de leitura, de percepção e de busca de significados. Depois é preciso organizar idéias, impressões e resultados, estruturando um relato compreensível, especialmente por quem não teve a mesma experiência de observação. Ferrara exprimiu bem este processo de ordenação quando disse que “a cidade é mensagem à procura de significado que se atualiza em uso” (1988, p.40) e por isso que ler/descrever um ambiente, seja rural ou urbano, seria no final das contas transformá-lo em lugar.

Nem sempre percebemos um logradouro quando passamos por ele. Contudo a repetição de um determinado trajeto aliada ao registro de pontos, referências, trechos, sujeitos necessários tanto à simples locomoção quanto à própria sobrevivência no espaço transformam o hábito em “habilidade espacial” e sua esquematização, ainda que elementar, em “conhecimento espacial”, conforme analisou Tuan. E é neste ponto que o espaço torna-se lugar (1983, p.83).

O Largo do Machado que tratarei daqui em diante é o resultado de uma construção mental feita no exercício cotidiano aliada a recortes bem específicos de usos, tensões, sujeitos e objetos, segundo análise ora geográfica, ora urbanística e vez ou outra etnográfica. Trata-se de uma conclusão que não poderia justificar todos os pressupostos até aqui construídos, outrossim é o relato de uma experiência espacial que pressupôs todas as leituras e análises realizadas no âmbito do presente estudo.

No início descrevi o Largo do Machado a partir da vista privilegiada do campanário da igreja, numa perspectiva organizada por um eixo que atravessa o logradouro longitudinalmente e sugere certa simetria em relação aos edifícios laterais, mais ou menos nivelados pelo gabarito estabelecido na legislação urbanística. esta sensação de simetria é perceptível também no nível do chão, devido à localização do chafariz e de uma certa regularidade do traçado.


157

O Largo não se limita ao largo... Procurei no cartograma da figura 14 demarcar o lugar partindo de um ponto central - o próprio Largo - e sua área de vizinhança imediata, composta por trechos dos logradouros públicos que o atravessam e envolvem: ruas do Catete, Bento Lisboa e Tavares Lira. Uma área de influência que é facilmente verificada no uso cotidiano do topônimo pela população. Alguns estabelecimentos próximos, mesmo quando não localizados no Largo, referenciamse por ele: um hotel na rua Bento Lisboa, um restaurante e um ponto de jogo do bicho na rua Tavares Lira ou um teatro e um conjunto de barraquinhas instaladas na rua do Catete. No cartograma 4 e anexo IV procurei demarcar o largo (núcleo referencial) e sua vizinhança (área de influência). Para isso, sugeri alguns limites124 que mesmo não sendo muito precisos foram demarcados depois de conversas informais com lojistas, passantes e ambulantes.

Figura 21: Largo do Machado, Logradouros, Edificações e Limites Referenciais. Fonte: Cartograma do autor.

124

Limites tomados aqui segundo o conceito usado por Lynch, como elementos que marcam “fronteiras” entre áreas diferentes da cidade ou mesmo de um bairro. Podem ser fortes ou fracos conforme importância visual, física, etc. (1980, p.73)


158

É preciso ainda considerar que o lugar não se resume aos logradouros. Todas as edificações, galerias e estabelecimentos comerciais também são parte do Largo. E este conjunto espacial que integra elementos como edificações e vias, áreas cobertas e descobertas, ajardinadas e pavimentadas além de usos variados, habitantes e errantes de diversos tipos, constitui essencialmente o lugar, que adquire uma dimensão visível e material. Tuan identificou o lugar como “um tipo de objeto” que define o espaço “dando–lhe uma personalidade geométrica” (op.cit., p.20) e este tipo de leitura é um exercício de ordenação, mas que precisa lidar com a imprecisão e a subjetividade.

1. Percepções entre a Deriva e o Flâneur

Chega-se ao Largo do Machado de várias maneiras. Costumo fazê-lo pela rua das Laranjeiras, quando aos poucos se abre o Largo numa perspectiva mais generosa, próximo ao cruzamento com a rua Tavares Lira. este trecho da rua das Laranjeiras é de intenso tráfego de carros e pedestres: um canal relativamente estreito, com calçadas igualmente estreitas, ladeado pela Igreja de Nossa Senhora da Glória pelo Colégio Franco Brasileiro, além de árvores altas e algumas outras edificações com lojas comerciais. A banca de jornais125 na esquina costuma reunir um grupo de pessoas mais pelos vídeos que exibe do que pela exposição dos diários e revistas. Neste ponto a calçada alarga-se um pouco mais, mesmo com a cerca de ferro que protege a entrada de um curso de inglês.126 Em frente à banca costumam se instalar dois ou três camelôs, desses “de pista”127, com tabuleiros facilmente dobráveis que permitem eficiente ação evasiva no caso repressão.

125

Autorização instruída pelas Posturas Municipais, A Prefeitura recentemente passou a permitir que as edificações retomassem da calçada, através de cercas, o afastamento exigido em lei justamente para alargamento do passeio. Ou seja, aquela porção de propriedade privada que antes contribuía para a melhoria do logradouro hoje o estrangula e o delimita, mantendo, como no caso, o piso da calçada implantado pela mesma prefeitura no projeto Rio Cidade. 127 Segundo Mafra, encontraremos 3 tipos de ocupação de logradouros na camelotagem carioca: “de pista” ou sem ponto fixo; de barraca ou de camelódromo (MAFRA, 2005, p.45). 126


159

Do outro lado da rua Tavares Lira situa-se modesta edificação art-deco de seis andares que abriga a escola de música Angelus e alguns consultórios. No térreo recentemente abriu-se o Café do Largo, no lugar de uma antiga ótica. Logo após a inauguração o dono do estabelecimento tentou expandir sua área de atendimento sobre a calçada, como fizeram tantos outros, como o Restaurante Brasa Grill ao lado. Tal medida foi imediatamente reprimida pela prefeitura que obrigou à retirada dos suportes do toldo. Não demorou muito e o dispositivo foi autorizado depois de pagas as devidas taxas.128 Talvez o cliente que bebe tranquilamente o bom café da casa não se dê conta que a lanchonete, mesmo que devidamente autorizada, também se apropria do logradouro público tal como o camelô em frente - ocupando uma área bem maior que este, inclusive. Apropriar-se de um trecho de área pública não significa cometer uma irregularidade perante as Posturas, uma vez que estas podem autorizar tal apropriação.

Deste

ponto

pode-se

atravessar

as

pistas

de

automóveis,

de

tráfego

costumeiramente intenso e confuso, para a praça central do Largo ou continuar pela calçada junto às lojas e galerias. Classificar desse elemento central do lugar como “praça” não chega a ser uma licença poética mas pode gerar dúvidas, afinal largo e praça são estruturas urbanas que se confundem com limites bastante flexíveis entre conceitos e aparências. O Largo da Machado, como registrei antes, ao longo do tempo já foi denominado de campo, praça e largo. Campo quando ainda possuía semelhanças com os antigos rossios. Largo quando o cruzamento de importantes vias fomentou o desenvolvimento de um comércio local e a instalação da igreja. Praça quando sofreu intervenções de caráter urbanístico e paisagístico. Apesar do povo ter rejeitado a denominação de praça, a forma, o mobiliário, a arborização e principalmente as atividades, as práticas, os comportamentos, a vida enfim, caracterizam este espaço central efetivamente como praça. Ali encontra-se, conforme o cartograma da figura 15, um parquinho (1), quiosques de vendas de

128

Estabelece o artigo 31 do Regulamento 1 que “a instalação de mesas e cadeiras pelo estabelecimento em área de afastamento frontal do imóvel ou no passeio público fronteiro ao imóvel sujeita-se a prévia autorização da Secretaria Municipal de Fazenda, observado o disposto na legislação específica”, o que à norma brasileira de acessibilidade, NBR 9050: “calçadas, passeios e vias exclusivas de pedestres devem incorporar faixa livre com largura mínima recomendável de 1,50 m, sendo o mínimo admissível de 1,20 m e altura livre mínima de 2,10 m.”


160

flores (2), mesas e bancos (3), equipamentos de ginástica129 (4), cabine policial (5), chafariz (6), estátuas, bustos e monumentos (7), acesso à estação de metrô (8), ponto final de ônibus (9) e de vans (10), ponto de táxi (11), estacionamento (12), trailler da Prefeitura130 (13), banheiro químico (14) e jardins (15), distribuídos conforme cartograma a seguir e Anexo V.

Figura 22: Largo do Machado e mobiliário e equipamentos urbanos mais significativos - Fonte: cartograma do autor.

O jardim central do Largo do Machado é uma área que mescla atividades lentas e rápidas: estar e passar. Algumas pessoas sentam-se na borda do chafariz e apreciam o movimento, outras usam o Largo apenas como atalho, outras trabalham vendendo milho cozido, pipoca, água de coco, acarajé. A rigor qualquer atividade comercial exercida nos logradouros depende da autorização da Prefeitura, conforme o Decreto Regulamento 2 das Posturas Municipais, Decreto 29.881 de 18/09/2008. É o caso dos quiosques. Mas alguns ambulantes não estão devidamente regularizados. Difícil identificar a situação sem um exame cuidadoso... As posturas 129 130

Equipamentos da Academia da Terceira Idade, programa da Prefeitura. Atendimento veterinário.


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estabelecem que o alvará de autorização deve estar exposto em local visível, mas quem além da fiscalização procura por tal documento?131.

Figura 23: Descanso no Banco

Figura 24: Parquinho

Fonte: Arquivo do Autor

São inúmeras as práticas e usos que ocorrem diariamente na praça central do Largo do Machado, entre as quais são mais evidentes o descanso nos bancos ao redor do chafariz, o comércio em tabuleiro e carrocinha, o jogo de cartas nas mesas de concreto, a convivência de colegiais nos bancos da praça em frente ao colégio Amaro Cavalcanti, o entra-e-sai da estação do metrô e dos pontos de ônibus e vans, a prática de exercícios nos equipamentos da Academia da Terceira Idade e a concentração de população de rua nos bancos próximos ao cruzamento com Bento Lisboa.

131

Regulamento n2: Da Autorização e Exercício das Atividades Econômicas Exercidas em Área Pública: Art. 3º. As autorizações para o exercício de atividades econômicas nas áreas públicas serão concedidas a título precário, conforme critério de conveniência, oportunidade e interesse público e poderão ser revogadas a qualquer tempo, a juízo da autoridade competente, sempre que ocorrer motivo superveniente que justifique tal ato.” (Posturas Municipais, Decreto 29.881 de 18/09/2008)


162

Figura 25: Feira de Sábado

Figura 26: Estação de Metrô

Figura 27: Academia da Terceira Idade

Figura 28: Jogo de Carteado

Figura 29: Carrocinha de Ambulante

Figura 30: Desfile de Modas

Fonte: Arquivo do Autor


163

Figura 31: Teatro de Rua

Figura 32: Feira de Artesanato

Fonte: Arquivo do Autor

O desenho do jardim do Largo do Machado foi muito alterado ao longo dos tempos. O desenho de hoje é projeto paisagístico de Burle Marx, elaborado quando o Largo ainda se chamava Praça Duque de Caxias, em 1954 e alia, segundo Santos, as formas orgânicas e cubistas do modernismo com as palmeiras e figueiras preservadas do projeto de Glaziou (2008, p88). Este desenho nos chega alterado pelas obras do metrô e pelo Rio Cidade que, no entanto, não chegaram a descaracterizá-lo no todo.

Figura 33. Largo do Machado, situação entre 1954 e 1995. Fonte: trabalho de alunos de Fernando Chacel no curso de especialização em Paisagismo da Sociedade Nacional de Agricultura, 1995, apud Santos, 2008, p.93.


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O centro da praça abriga o chafariz numa espécie de clareira que se abre entre as altas e antigas árvores... uma centralidade que é reforçada por um eixo imaginário que alinha a escultura de Antonio Canova no alto do chafariz com o campanário da Igreja Matriz, contrastando com a planta orgânica de Burle Marx. Uma tensão entre modelos paisagísticos que pode passar despercebida ao observador distraído mas marca o coração do Largo do Machado e, de certa forma, o ponto central do lugar.

Figura 34: Chafariz e escultura de Canova Fonte: Arquivo do Autor

Atravesso o jardim até a face voltada para o colégio Amaro Cavalcanti. Este trecho de rua é destinado ao estacionamento de carros e por isso tem uma pavimentação de blocos de concreto, distinto do asfalto das vias de tráfego mais intenso. O trânsito por ali deveria ser mais calmo, senão pelo piso outrossim pelo colégio, contudo o trecho é utilizado como atalho pelos motoristas que tentam fugir do engarrafamento do lado oposto. Resultado: tráfego intenso em alguns períodos do dia e buzinas irritantes dos motoristas impacientes. Depois de atravessar a via, chega-se à Adega Portugália, ao colégio e ao conjunto de antigos sobrados comerciais na esquina com a rua do Catete, descaracterizados pelos anexos, puxadinhos e letreiros dos restaurantes Gambino e Galeto, que invadem o passeio público numa desordem com alvará, uma vez que autorizada pela Prefeitura.


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O restaurante e a adega também instalam cadeiras e mesas pelas calçadas. Tal prática pode ser autorizada desde que o estabelecimento pague as taxas previstas e preserve uma faixa livre de passeio de 1,2 m132. Particularmente acho simpático mesas e cadeiras ao ar livre e várias vezes as utilizei como ponto de observação para a presente pesquisa. O impacto em relação ao trânsito de pedestres seria mínimo se o movimento de carros correspondesse de fato ao esperado para um estacionamento, o que não ocorre infelizmente.

Figura 35: “Puxadinho” sobre Calçada

Figura 36: Mesas sobre Calçada

Fonte: Arquivo do Autor

Este trecho do Largo é ocupado, aos sábados, por uma pequena feira, já que o trecho não oferece espaço para muitas barracas... outra feira maior ocorre às quartas, na rua Arno Konder, contornando o edifício da Galeria São Luiz. As feiras são eventos que ocorrem regularmente no Largo e reforçam seu caráter popular, ruidoso e agitado. Apesar do discurso contrário à esta antiga prática de abastecimento - incluindo autoridades e mídia - as feiras do Largo do Machado, como tantas outras, são bastante concorridas. As feiras sempre foram alvo das posturas municipais, seja pela necessidade de organizá-la e compatibilizá-la com outras práticas e atividades do lugar, seja pela ação de controle sanitário e tributário sobre o comércio. As feiras hoje, assim como os camelôs, são orientadas pelo Regulamento no 2 - Da Autorização e Exercício das Atividades Econômicas Exercidas em Área Pública133.

132 133

Lei Brasileira de Acessibilidade Título VII – Das Feiras; Capítulo II – Das Feiras Livres.


166

Volto a atravessar o praça central em direção à Galeria Condor, através de uma área recentemente incorporada ao desenho original do Largo por força das obras do Metrô, cujas árvores plantadas nos anos 80 são novas, baixas e estão dispostas com certa regularidade. Esta parte sul da praça costuma abrigar, vez ou outra, a feira do livro, que distribui suas barracas padronizadas pelos intervalos das árvores. Mais recentemente passou a ser instalada ali, aos sábados, uma feira para adoção de animais que atrai muitas crianças. Esta parte está longe ter o mesmo tratamento paisagístico do restante da praça: a cabine de polícia, o trailler da Prefeitura e a ventilação do metrô são obstáculos que estrangulam os trajetos e criam cantos esquecidos. Procuro logo atravessar a rua mas tal tarefa, dependendo do horário, pode ser complicada mesmo obedecendo a faixa de pedestres e o sinal. È que neste cruzamento carros, ônibus, pedestres, motocicletas e caminhões disputam um pequeno ponto do lugar. Aqui é intenso o fluxo de pedestres para todas as direções do Largo. De um lado da via os ônibus manobram e estacionam no ponto final, do outro as entradas do supermercado e da Galeria Condor atraem gente, táxis, caminhões e mais carros. Nem pedestre e motorista obedecem a sinalização, mas nem sempre a sinalização respeita motorista e pedestre. Quem por ali passa rotineiramente já se acostumou com a lentidão da travessia.

Figura 37: Galeria Condor

Figura 38: Trânsito no Largo

Fonte: Arquivo do Autor

A calçada da Galeria Condor tem dimensões generosas. Ainda assim cada palmo de sua superfície é disputada por pedestres, lojistas, ambulantes, motocicletas e triciclos. No trecho de calçada compreendido entre a Drogaria Pacheco e o Café do Largo a prefeitura não permite a instalação de barracas, bancas ou tabuleiros.


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Apenas a banca de jornal e a cabine do chaveiro foram devidamente autorizadas. Ainda assim o movimento de pedestres junto ao forte comércio da rua e das galerias atrai camelôs que, quando não há repressão, abrem panos, tabuleiros ou painéis sobre as calçadas para exposição de mercadorias. A disposição dos camelôs e o alinhamento das edificações cria um canal estreito de pedestres. Parar neste ponto, seja para comprar algum produto, admirar uma vitrina ou conversar com alguém, significa iniciar rápida turbulência no fluxo constante de gente.

Figuras 39, 40 e 41: Movimento nas proximidades da Galeria Condor Fonte: Arquivo do Autor

Pouco antes da entrada da Galeria Condor, a entrada do estacionamento do supermercado Extra (que já foi Sendas e Disco) causa mais impacto que os camelôs: o movimento de veículos - incluindo caminhões - está diretamente conectado ao tráfego da via e de pedestres... O supermercado ocupa um terreno no centro de quadra com acesso apenas pelas galerias que atravessam diferentes edifícios, um de frente para o Largo e outro de frente para a rua do Catete. Certamente a história de seu licenciamento pela prefeitura é um desafio à ordem legal que as mesmas autoridades evocam para os logradouros. No entanto, quem imagina o Largo do Machado sem o seu supermercado?

As galerias não são logradouros públicos. Contudo, durante o horário comercial, guardam algumas características destes: a possibilidade relativa de ir e vir e sentar num banco e esperar o tempo passar, as lojas, os letreiros e até mesmo brinquedos,


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quiosques e barraquinhas. São ao todo sete galerias na área de estudo, cinco delas voltadas diretamente para o Largo: a Condor, a São Luiz, a galeria de acesso ao Extra (sob o Edifício Metropolitan) e a dos edifícios Atta e Visconde da Penha. Mas nenhuma se compara à Galeria Condor em seu vínculo simbólico com o Largo do Machado. Em horário comercial a galeria é como uma extensão coberta do Largo. O fluxo de pedestres é praticamente o mesmo e os estabelecimentos atraem mais público que aqueles voltados diretamente para a rua. O movimento é reforçado pelo acesso às salas comerciais, escritórios e consultórios instalados no edifício, cujo hall de elevadores volta-se para a galeria.

Figuras 42, 43 e 44: Galerias Condor, Metropolitan e São Luiz. Fonte: Arquivo do Autor

Contudo, a galeria (assim como os shoppings centers) tem seu próprio sistema de segurança, que a diferencia do logradouro público. Mendigos, menores de rua e outros tipos indesejados não são tolerados no ambiente e convidados a sair, de um jeito ou de outro. Eficiente sistema de segurança, sem dúvida, uma vez que se impõe sem ostentar qualquer aparato visível de repressão. Tal condição se consolidou com o tempo. Hoje as medidas extremas são raras e incidem, geralmente, sobre os estranhos e desavisados, pois os pedintes que já habitam o Largo reconhecem os limites estabelecidos pela segurança privada da galeria. Uma ordem velada que ultrapassa as leis do Estado134.

134

Voltarei ao tema mais adiante, ao tratar das posturas que incidem no logradouro e nas galerias.


169

Da Galeria Condor à Galeria São Luiz volta-se o pedestre à rua do Catete. Reformada na primeira fase do Projeto Rio Cidade (1994-1996), a rua do Catete concentra um comércio forte com calçadas de largura variável (bem estreitas em alguns trechos) e bastante movimentadas. Atualmente a Prefeitura regularizou a condição de algumas barracas nas proximidades do Largo. São aproximadamente doze barracas na entrada do Metrô e outras doze no lado oposto, junto ao posto de vistoria do Detran. Nos dois trechos costuma-se encontrar vários “camelôs de pista” quando a fiscalização não atua. Seguindo pela rua do Catete, na direção sul, percebo aos poucos que o Largo perde seu poder referencial... Até o grande cruzamento entre as ruas Conde Baependi, Barão do Flamengo, Senador Vergueiro e Marquês de Abranches, centralizado pelo monumento a José de Alencar que marca o limite entre Catete e Flamengo, pode-se considerar ainda como Largo do Machado. Seja pelo Chalé Shopping, espaço comercial com quiosques na forma de chalé, pela Galeria do Teatro Cacilda Becker ou pelos edifícios residenciais que seguem.

Figura 45: Chalé Shopping

Figura 46: Barracas na rua do Catete

Fonte: Arquivo do Autor

Deste ponto, atravesso o grande cruzamento e sigo na direção norte, na direção da Galeria São Luiz. O movimento de carros, pedestres e camelôs vai aumentando na medida que reaproximo do Largo, passando pelo Botequim Manuel e Juaquim e pela Galeria do Catete Center. Neste ponto o passeio reduz em largura. Trata-se da testada do posto de vistoria do Detran, um dos vários terrenos não edificados remanescentes das obras do Metrô. Curioso notar que a precariedade dessas instalações - também observada no terreno imediatamente em frente, já na quadra


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da Galeria São Luiz - sugere a mesma improvisação evocada pelas autoridades quando o assunto é camelotagem (Figura 43)

Neste trecho, a rua do Catete confunde-se com o próprio Largo, numa sobreposição de referenciais de logradouro e de bairro. O endereço da Galeria São Luiz: rua do Catete, número 311, Largo do Machado, por exemplo, refere-se aos dois logradouros como se o Largo fosse um bairro da cidade.

Figura 47: Galeria São Luís

Figura 48: Barracas regularizadas

Fonte: Arquivo do Autor

Infelizmente o edifício do cinema São Luiz foi demolido e o que se construiu no lugar não se destaca da paisagem... Mas o antigo cinema foi por sua vez edificado no lugar da antiga garagem da Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico. Restou pouco da arquitetura mais antiga no Largo: a Igreja Matriz, o Colégio Amaro Cavalcanti, o conjunto de sobrados na esquina com a rua do Catete. Restou, de fato, a grande clareira do Largo que pode ser bem percebida do próprio cinema. Os fixos, como ressaltei no início, fluem e as vezes se desmancham no ar, enquanto alguns fluxos se fixam, como o movimento em direção aos bairros vizinhos.

Desta calçada sigo na direção do limite norte do Largo, o cruzamento entre as ruas Dois de Dezembro e do Catete, passando pela fileira de barraquinhas de camelôs, quase encostadas no muro de mais um terreno remanescente das obras do metrô e que hoje abriga instalações da Prefeitura. Assim como as dependências do Detran, as instalações da Secretaria de Obras são precárias e transitórias, tal como a barraca do ambulante não regularizado. Os muros dessas repartições públicas criam


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trechos de pouco movimento e, no caso, escondido atrás de uma barreira de carros estacionados. este e outros cantos são a própria negação da rua, como bem lembrou Jacobs (2003, pp. 32 e 35). E neste caso, uma negação promovida justamente pelo desleixo de quem pretende estabelecer a ordem nas calçadas.

Figura 49: Bastidores - muro da

Figura 50: Bastidores - “Puxadinho”

Secretaria de Obras, rua I. Bornhausen em terreno do Metrô cedido ao Detran Fonte: Arquivo do Autor

Difícil explicar este limite norte porque a rua do Catete segue movimentada, cercada de comércio e gente e agitação. Sua relação com o Largo é praticamente visceral e pouco muda na paisagem, exceto pela maior presença de edificações antigas e preservadas. Contudo, assim como nos demais limites, tive de fixar arbitrariamente o território da pesquisa e seu entorno imediato. E o fiz seguindo os prolongamentos das calçadas que emolduram o Largo.

Pela faixa de travessia de pedestres atravesso a rua do Catete e retomo a direção do Largo pela calçada que deveria ser a mais generosa em termos de dimensões mas que foram parcialmente ocupadas pelos “puxadinhos”135 dos estabelecimentos comerciais - na verdade, varandas que acabaram sendo totalmente fechadas, numa estratégia que aumentou bastante a área útil (e privativa) das lojas, além de trazer, segundo um argumento muito citado, mais comodidade (ar condicionado) e segurança ao cliente. O pouco que restou de calçada comprime pedestres e

135

Vide figura 31.


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ambulantes. Estes são reprimidos pelas Posturas, entre outras justificativas, por ocupar o logradouro indevidamente.

Desta passagem, abre-se novamente o Largo, numa esquina de curvatura suave que terminará na entrada da galeria do Edifício Visconde da Penha, de estilo artdeco, onde ainda sobrevive a antiga Casa Realce, ladeada por um fastfood e uma papelaria. Aproximo da entrada do colégio Amaro Cavalcanti, imponente edifício recentemente restaurado. Em sua frente é costumeiro que estudantes se aglomerem no Largo. Se fosse possível uma reforma no Largo segundo os princípios de Camilo Sitte, creio que esta trecho de via - um prolongamento da Gago Coutinho - deveria ser suprimido em favor de uma continuidade física entre o colégio e a praça. Tal via hoje destina-se ao estacionamento de carros mas tornou-se, como mencionei antes, no trajeto alternativo de veículos que fogem do engarrafamento do trecho em frente à galeria Condor.

Figura 51: Casa Realce

Figura 52: Colégio Amaro Cavalcante

Fonte: Arquivo do Autor

Seguindo por este trecho chega-se ao cruzamento entre o Largo e a rua Bento Lisboa. Daí divisa-se de um lado um trecho mais abandonado da praça, costumeiramente ocupado por mendigos e menores de rua, e de outro a esquina bastante movimentada do Edifício Big Redlaves, com seus três bares muito concorridos e o restaurante Estação Largo do Machado. Enquanto este último trecho mostra certa continuidade com a Igreja, devido ao fraco movimento de carros da rua Gago Coutinho, o canto oposto do Largo ficou mais isolado, seja porque o fluxo de


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pedestres cruza o largo seguindo a faixa de travessia da rua Bento Lisboa, seja por conta do intenso tráfego de veículos que o circunda. este isolamento facilitou em alguns horários a concentração de mendigos que, normalmente, passam o dia nas redondezas do largo. Esta concentração vem sendo inibida pela Guarda Municipal, em ações do Choque de Ordem, que comentarei mais adiante.

Encerro esta trajetória, misto de deriva e de flâneur (distante das linhas do João do Rio) descritiva na Adega Portugália. Neste breve passeio sinto que não consegui caracterizar os sujeitos dos lugar para além de suas ocupações: pedestres, camelôs, motoristas, estudantes, lojistas e clientes, velhos e crianças, trabalhadores e vagabundos, nordestinos e ciganos, artistas e feirantes. Talvez porque todos são parte do todo-lugar, e como parte, todos são cada um. E todos são o lugar, inseparáveis dele, seja qual for o papel que assumem no espaço. E são múltiplos os papéis: alguém pode ser vendedor, cliente, pedestre, motorista e jogador de sueca num mesmo dia. No mesmo lugar.

Figuras 53 e 54: Artistas de rua Fonte: Arquivo do Autor

O lugar é um todo ordenado. Porque o processo de ambientação e vivência que decodifica o espaço e desenvolve habilidades para transitar com desenvoltura no labirinto de fixos e fluxos, de pessoas, coisas, símbolos e ações é um processo de


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ordenação, como bem identificou Tuan. Não apenas transitar, mas tornar uma parte da cidade em lugar é, em essência, ordenar, pois “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (1983, p.83).

Tanto o flâneur de João do Rio e Baudelaire como a deriva de Debord e Constant são processos ordenadores do espaço. Seu resultado não é o estranhamento e sim a familiaridade. É integração, complementaridade, estruturação e não o contrário. partir desses passeios e trajetórias - aleatórias ou planejadas - e a partir da observação participativa e integrada, atenta ou mesmo distraída, construí o lugar que percebo e percebi o lugar construído pelos outros. Por que estaria desordenado se percebo e entendo, se conheço e identifico?

Desse modo, em relação ao lugar, a ordenação está longe de ser o cumprimento de normas e posturas municipais. Não resulta de um choque de polícia administrativa ou de projetos re (requalificação, reestruturação, renovação, etc.) tão em moda ultimamente. Contudo, o lugar pode ser ameaçado por outros movimentos ordenadores, do governo ou de grupos criminosos, se a nova ordem que se constrói ameaçar a topofilia e daí resultar um não-lugar, esvaziado de vida e dos significados e valores sociais, individuais e coletivos que estruturaram o lugar136.

2. Posturas da Ordem e da Desordem

Quem quer manter a ordem? Quem quer criar desordem? Titãs, 1987137 Frequento o do Largo do Machado a, pelo menos, uns vinte anos. Contudo, minhas observações para efeitos desse estudo ocorreram nos últimos cinco, desde a criação na Câmara da CPI da Desordem Urbana, em 2007. Já a pesquisa de campo, com fins acadêmicos se deu, com mais ênfase, durante a gestão do prefeito Eduardo Paes, subsidiada pela retomada de importância das Posturas Municipais da 136

Sobre a questão de valores sociais e coletivos, Marcel Conche fala da relação entre racional e razoável, entre a razão lógica ou científica e a razão moral ou prática, relação esta que “humaniza” o mundo e viabiliza sua existência (2000, p.308). Acredito que tal definição pode ser também aplicada ao lugar: 137 Extraído da música "Desordem", composta por Charles Gavin, Marcelo Fromer e Sérgio Britto.


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gestão César Maia. Ressalto este recorte temporal porque durante estes últimos dois anos o Largo foi alvo do Choque de Ordem.

Minha estratégia foi a de interação cotidiana com a vida no Largo. Não estruturei entrevistas e preferi o diálogo informal. Vivenciei as calçadas, as lojas, os bares, os bancos da praça, as cadeiras de barbeiros, os pontos de ônibus, o metrô e as galerias. Junto aos ambulantes comprei milho cozido, tapioca, água de coco, guarda-chuva, headfone, pilhas, camisas, anel, capa de celular e até apostei no jogo do bicho. Tive muitos informantes que pediram para não ser identificados... quando se trata de lugar, os sujeitos são facilmente reconhecidos, sejam eles agentes públicos ou simples frequentadores. Respeitei.

Não fiz nada diferente do que faço sempre que passo por ali. Resolvi então cartografar logradouros, estabelecimentos, pontos de ambulantes, mobiliário e principais edificações. Depois de algumas semanas montei uma espécie de cadastro, que georreferenciei através de SIG, conforme a Fig. 55 e Anexo VI.

Figura 55: Cartograma de Atividades e Estabelecimentos no Largo do Machado Fonte: Base de Dados do Autor.


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Acreditava que ali estavam registrados os fixos, os objetos... faltavam os fluxos, as ações: comprar, caminhar, descansar, transportar, vender, jogar, esperar, exercitar, vigiar, trabalhar, roubar, namorar, passear, comer, mendigar, fazer nada... difícil enumerar. Daí percebi sem muito esforço que os fluxos se modificam conforme horas do dia ou da noite, conforme dias da semana, datas festivas, faça chuva ou faça sol, em razão de uma obra, uma passeata ou uma greve. Mas os acontecimentos e eventualidades são inerentes à rua ao Largo: um lugar onde as coisas acontecem. Num sábado pela manhã encontrei o Largo agitadíssimo: montagem de barracas para um a feira de artesanato, montagem de um palco para show, feira livre, obra, exposição de filhotes de cães e gatos, guarda municipal em profusão... no sábado seguinte, a esplanada central desimpedida não dava sinais do que ocorreu uma semana antes. Cadastro, SIG, entrevistas, mapeamento não necessariamente indicavam o caminho para concluir minha reflexão. O cotidiano segue... plus ça change, plus c'est la même chose.

Foi quando dei conta que o Largo do Machado para mim, estaria plenamente “ordenado”.

E isso se deu justamente no momento de concluir uma pesquisa sobre a tensão ordem/desordem no lugar. Depois de meses de observação, tendo presenciado conflitos entre a Guarda Municipal e os camelôs, furtos, brigas, extorsões, indiferença, coerção, corrupção, atropelamento, batida de carros, infestação de ratos, revoadas de pombos, gente urinando na rua, restaurante fazendo “puxadinho” sobre a calçada e o bloco “Imprensa que Eu Gamo” imprensando bem em frente à igreja!

Claro que não estou relacionando “desordem” a conflitos, confusões ou mazelas da cidade. Nem poderia, afinal, como mostrou Conche, não há evidência que ordens são boas e as desordens más (2000, p.307). Porém, onde busco tensão entre ordem/desordem só encontro o lugar. A tensão que existe - e realmente existe - eu já assimilei na vivência do Largo e me é conhecida, algumas vezes aceitável até. Inerente ao lugar. Os conflitos percebidos, como as disputas territoriais entre ambulantes, flanelinhas ou pedintes, entre o uso irregular e as posturas, entre


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excluídos e integrados, entre o individualismo e os valores coletivos podem ser entendidos como um choque entre ordens divergentes que incidem no mesmo lugar.

O conflito não é algo que acontece a um espaço urbano, potencial ou originalmente harmonioso. O espaço urbano é um produto do conflito. (DEUSCHE apud MASSEY,2005, p.219) E quando o espaço torna-se lugar através do “conhecimento espacial”138 a tendência daquele que o experimenta e analisa é de achar que está, de certa forma, ordenado, pois “a desordem é uma ordem que exige uma leitura mais atenta”139. Esta frase, dita no âmbito da questão da moradia dos pobres nas grandes cidades, pode ser aplicada ao próprio objeto de investigação do pesquisador que inevitavelmente desenvolverá um sentimento de familiaridade e de conhecimento em relação ao seu tema de estudo.

Onde está a desordem?

“A desordem trabalha escondida” dizia Barandier (p.93). A familiaridade para com o objeto de investigação - espacialmente quando se trata do espaço - pode trair o pesquisador que, no afã de decifrar o real (ou encontrar nexo e lógica), reserva à desordem um papel secundário quando não insignificante. O espectro da ordem

A multidão em movimento é ordem e é desordem. É ordem porque é possível identificar trechos e horários de maior concentração, fluxos predominantes, pontos de retenção e dispersão. É desordenado na medida que origens e destinos se cruzam, esbarram, dispersam e chocam em diferentes ritmos, velocidades e rumos. Um sinal com o tempo de travessia mal calculado - como aquele situado em frente à saída do Metrô na rua do Catete - impõe instantes perturbadores pois a travessia do idoso e da gestante, por exemplo, se dá mais vagarosamente. O sinal abre durante a travessia e a negociação quase sempre se faz entre pedestres e motoristas. Impossível prever o momento seguinte da multidão - desordem, mas uma vez realizado é possível enquadrá-lo num cenário conhecido - ordem.

138 139

(Cf. Tuan, op.cit., p.83) (Cf. dos Santos, op.cit., p.6)


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A irregularidade do ganha-pão daquele que trabalha nas ruas, sem salário fixo e vivendo do que consegue vender. Um dia pode ser tão produtivo quanto outro, ou não. Com ou sem alvará! O trabalho nas ruas está mais sujeito às intempéries, aos tapumes de obras ou a um evento qualquer que altere o movimento do Largo, que o comércio estabelecido. Por três dias acompanhei uma barraca de camelô na rua do Catete que vendia acessórios de celulares e vi uma única venda. Algumas pessoas examinavam mercadorias e iam embora. A concorrência é forte e a clientela errática. Mas todos os dias o camelô tira sua marmita da bolsa e almoça, desloca-se do Morro da Providência para o Largo do Machado. E isso tem um custo... “por sua conta e risco”, como na definição de camelô na Consolidação de Posturas.

São vários os exemplos de imprevisibilidade, aleatoriedade, irregularidade que juntos formam o todo cotidiano e o espaço-lugar. Se o espectro da ordem ronda a geografia, como alertou Lima (op.cit., p.14), a desordem trabalha escondida nas dobras do dia-a-dia, transformando e, ao mesmo tempo, caracterizando o lugar. Algumas mudanças trazem bruscas rupturas, como as obras do metrô no Largo do Machado, nos anos setenta, que alteraram profundamente o lugar através de demolições, reconstruções, interdições, reestruturações. Alteração profunda no ambiente, nos negócios, na vida do Largo que perderia radicalmente sua vocação bucólica de jardim para um centro de comércio e serviços devidamente articulado pela nova rede de transportes. Alguns que vivenciaram o antigo Largo do Machado, como o barbeiro da rua das Laranjeiras no 7, afirmam que o lugar “jamais voltou a ser o que era”. Dito isso, reclamam dos pivetes, dos flanelinhas, da ausência dos jardins, dos camelôs e dos guardas!

Nem sempre reformas urbanas e mesmo as pequenas obras que alteram o Largo são bruscas o suficiente, mas são processos lentos de reconfiguração do lugar. Ocorrências que podem ser tão frequentes ao ponto de compor o cotidiano do lugar, assim como todo o engarrafamento, agitação, ruído, colisões e mesmo conflitos produzidos. Integram a ordem do lugar. Tanto desordem e ordem podem transformar o lugar em não-lugar. Para Jacobs, esse processo se dá no esvaziamento das ruas e na perda de “controle” do lugar pelo habitante. Aquilo que ameaça a “ordem pública”:


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“a paz nas calçadas e nas ruas - não é mantida basicamente pela polícia, sem com isso negar sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados.” (JACOBS, op.cit. p.32) Já Ana Carlos traz outra noção de não-lugar, onde o estranhamento resulta da industrialização dos destinos turísticos, montados como cenários estratégicos. Quando o simulacro passa a ser mais “real” que o próprio lugar, ou quando este se transforma em simulacro:

“o espaço produzido pela indústria do turismo perde o sentido, é o presente sem espessura, quer dizer, sem história, sem identidade; neste sentido é o espaço do vazio. Ausência. Não-lugares.” CARLOS, op.cit. p.69) Mas a ordem e desordem podem também modificar o lugar num outro lugar ou resgatar um lugar de outro140. Obras de infra-estrutura, de expansão de serviços públicos e de geração de renda em favelas, por exemplo, podem trazer mudança de uma ordem para outra bem melhor. Já o planejamento urbano - incluindo alterações na legislação urbanística e medidas indutoras e inibidoras - pode transformar o lugar lentamente e não ser percebido como desordem. Porém, a diferença entre os estados inicial e final do processo pode ser enorme, transformando-o num não-lugar ou noutro lugar. E esse processo de transformação - desordem - é constante e irreversível, coabita com as ordens do lugar.

Por isso é importante retornar ao conceito de Moreira em relação ao ordenamento territorial, que não seria a estrutura espacial em si, outrossim, “a forma como esta estrutura espacial territorialmente se auto-regula no todo das contradições da sociedade” (2006, p.78). Esta auto-regulação tanto pode absorver ou não as tensões da coabitação. Quando não absorve, surge a interferência do Estado através da “ordem pública”, definida por Bobbio conforme dois conceitos:

140

Entendo o desenvolvimento do lugar como um processo irreversível, logo o resgate de um lugar não significa um retorno ao passado mas a recuperação de valores sócio-espaciais que o caracterizam e identificam enquanto tal.


180

O primeiro seria uma circunstância de fato, resultante do ordenamento político e estatal (posturas, leis, princípios, projetos) visando a convivência e a coabitação, segura, pacífica, equilibrada e, principalmente, “conveniente aos princípios gerais de ordem desejados”. No segundo conceito, ordem pública seria o limite ao exercício de direitos individuais (especialmente os direitos de liberdade) com base numa “hipotética realidade ideal, ou seja, um conjunto de finalidades que deveriam caracterizar idealmente as relações sociais” (BOBBIO, 1998, p.851). Em ambos conceitos, trabalha-se com a noção de normalidade, que remete à norma.

A discussão sobre norma e normalidade é bastante extensa e profunda. Me aterei à questão levantada por Foucault a cerca da segurança da cidade, uma vez que tal argumento vem sendo utilizado com frequência para ações normativas e repressivas de polícia. Para ele, também existiriam duas situações que deflagram mecanismos de segurança: uma que estabelece a norma segundo princípios disciplinares e daí define conceitos de normal e anormal; outra que parte da percepção do normal e fixa a norma que desempenha seu papel operatório. No primeiro caso, o adestramento e a tutela visando redução da diferença. No segundo, a normalização e o enquadramento da diferença. Porém, um e noutro caso remeterão a uma regulação e um ordenamento externo, obediência à uma vontade superior, a do soberano, do estado e do governo (FOUCAULT, 2008, p.83 e 86).

As Posturas, como são elaboradas, instituídas e operacionalizadas no Rio de Janeiro, unem o primeiro conceito de Bobbio - estado de fato - com a primeira situação descrita por Foucault - adestramento e tutela. Daí o entendimento de ordem/desordem pelas autoridades competentes, por setores da classe média e por grande parte da mídia, ser feito em relação à lei. Ordenado é o legal, o regular estabelecido e fixado ordinariamente. Daí a desordem ser o oposto: o ilegal.

Porém, como saber se algumas situações vivenciadas no Largo do Machado são ilegais, a luz dos regulamentos estabelecidos? A lei obriga ao ambulante portar ou afixar, em local visível, o alvará de autorização. Nesse caso, a ordem é apenas burocracia. Aliás, alvará é uma palavra de origem árabe (como tantas outras adotadas pelo direito administrativo português) e significa al barat, ou seja: o papel!


181

É certo que para obtê-lo o camelô submete-se às pré-condições regulamentares em relação à mercadoria, localização, horário, etc. Mas o que se vê não indica exatamente ordem ou desordem, exceto pelo desejo de quem observa. Daí a contradição entre as duas situações estudadas por Foucault poder ser vista como complementaridade: a norma - estado de fato tutelado - ser cobrada segundo um estado ideal ou desejável de normalidade.

Outro caso curioso é o impacto da lei que restringe o fumo em ambientes fechados. O Largo do Machado é repleto de lojas e galerias, espaços onde o fumo é proibido. Os fumantes migraram para as calçadas nas entradas das galerias e lojas, provocando, em alguns momentos, certa aglomeração que quando resultantes da ação de camelôs é reprimida por questões de ordem. No caso dos fumantes, decorre da ordem estabelecida. Seus impactos e efeitos, à luz do que se observa nos logradouros, são similares. O olhar seletivo que rejeita a diferença (sobre o principal argumento da segurança - física, higiênica, etc.) em breve despertará para os “males” que o fumo provoca em relação às calçadas. Não demorarão Posturas Municipais para regular o uso das calçadas pelos fumantes, em favor da função circular e respirar livremente. O discurso de ordem atenderá ao desejo de ordem. De resto é burocracia141.

Em maio de 2012, alguns camelôs que eu acompanhava regularmente nas minhas observações foram expulsos do Largo, como o vendedor de milho cozido, a baiana do acarajé e tapioca, o vendedor de passagens do Metrô (“Metrô sem fila!”)... Outros como a vendedora de acessórios de celular e headfones foram regularizados e remanejados para outras áreas do Largo. Também sinto falta das carrocinhas de churros e das estátuas vivas. Desde 2010 a Prefeitura começou a demarcar as áreas adequadas para a instalação de barracas e iniciou o cadastramento e regularização de camelôs, que gerou situação assaz curiosa. Os que foram regularizados usam para os não regularizados, o mesmo discurso de “concorrência desleal” antes utilizados pelos lojistas em relação aos camelôs. Portanto, uma vez dentro da ordem, a desordem é o outro.

141

Morin vê na burocracia “um conjunto parasitário no seio da sociedade” favorecido pela dificuldade de se questionar a rigidez dos modelos de racionalidade e de funcionalidade na vida social (2004, p.132)


182

E aqui surge o discurso da isonomia142, enquanto princípio de ordenamento das relações sociais sob a tutela do Estado ou não. Mas, importa destacar, que essa isonomia se submete ao lugar e, no caso, à praça de comércio, não sendo aplicável ao todo da cidade ou no papel que as pessoas vivem em outro lugar.

Figura 56: Vendedor de frutas regularizado: “se vale pra mim, vale pra todos!” Fonte: Arquivo do Autor

A questão da isonomia é referente ao sujeito, não ao lugar. Contudo, as Posturas Municipais, na forma como foram concebidas no Rio de Janeiro, incidem, indistintamente, em todo o território municipal, sem diferenciações, criando uma isonomia legal espacial. Exigências para autorização do comércio ambulante, distâncias regulamentares entre barracas, mercadorias permitidas e proibidas, horário de comercialização, entre outras, se valem dos mesmos parâmetros na cidade como um todo.

Porém, se existe uma isonomia espacial da lei, nem sempre essa isonomia se dá na prática. No caso do Choque de Ordem, as ações do Estado mostram-se bastante diferenciadas espacialmente, segundo bairros, zonas e lugares, especialmente em relação ao valor econômico da área para o turismo ou mercado imobiliário. Uma

142

Bobbio resgata de Heródoto o conceito de isonomia, que é “a igualdade de todos os cidadãos diante da Lei” (Op.cit. p.57)


183

avaliação das notícias sobre o choque de ordem registradas no portal da Prefeitura do Rio de Janeiro nos últimos anos, mostrou uma forte concentração das ações nas Áreas de Planejamento 1 - AP1, Centro e especialmente a Lapa e AP2 que inclui bairros mais valorizados como Copacabana, Ipanema, Leblon, Flamengo e Tijuca, incluindo o Largo do Machado. Em seguida, mas bem abaixo, vem as APs 3 (bairros da Central do Brasil, Leopoldina, Ilha e Linha 2 do Metrô) e 4 (Baixada de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio) e por fim a AP 5 (ramal de Santa Cruz, incluindo Bangu e Campo Grande) com pouquíssimas ocorrências noticiadas143. A rigor tal resultado era esperado, ou melhor, percebido através dos noticiários jornalísticos.

Nesta desigual distribuição das ações do choque de ordem poderia investigar mais profundamente diferenças de distribuição de investimentos e serviços públicos, além da arrecadação de impostos pelo território municipal que de fato existe e seguem uma lógica semelhante à do choque de ordem. Prefiro, contudo, chamar atenção para a orientação espacial das posturas - e da ordem. De certo modo, tal diferenciação faria sentido porque reconhece a multiplicidade de situações na cidade conforme características espaciais que envolvem ordem e práticas cotidianas em logradouros. O Largo do Machado é diferente do Largo da Pavuna, do calçadão da 143

Para chegar a tal dimensionamento, optei por não utilizar estatísticas oficiais e sim as notícias que a própria prefeitura veicula sobre o choque de ordem em seu portal de informações. Tarefa complicada, já que uma mesma ação pode resultar em duas, três notícias diferentes, além de uma mesma notícia ser postada mais de uma vez, conforme a chamada - ordem, fiscalização, etc. Ao todo a prefeitura publicou 2.686 notícias sobre o Choque de Ordem, desde 2009. Desse total retirei, aleatoriamente 760, descartadas as repetições. Dessas, 612 referiam-se nominalmente a bairros da cidade. Os resultados encontrados foram os seguintes, segundo Área de Planejamento: NOTÍCIAS AP BAIRROS MAIS CITADOS ABSOLUTO RELATIVO 1 Centro (Lapa), Caju e Mangueira 243 39,7% 2 Copacabana, Tijuca, Ipanema, Flamengo, Maracanã e Leme 236 38,6% 3 Engenho de Dentro e Méier 57 9,5% 4 Barra e Recreio 64 10,5% 5 Campo Grande e Bangu 13 2,1% Total 612 100 Fonte: Portal de Informações da Prefeitura do Rio de Janeiro (2009-2012) As demais notícias usaram as expressões Zona Sul, Zona Norte e Zona Oeste. Por mais imprecisas que tais denominações sejam, mantém certa coerência com o quadro acima. Zona Sul foi citada 44 vezes. Zona Norte 13 e Zona Oeste apenas 8. Dos bairros, o Centro foi o mais citado, com 224 notícias (só a Lapa teve 177 registros). Em seguida vem Copacabana (51), Tijuca (45), Recreio (33) e Barra (31). O Largo do Machado teve 6 citações e o Catete 5.


184

Cônego Vasconcelos em Bangu, do passeio da Edgar Romero em Madureira, do Largo da Carioca ou de São Francisco no Centro da cidade. Contudo, as notícias são orientadas e apontam para um discurso de ordem que pretende construir uma imagem, um cenário. Sabe-se desde o projeto Rio-Cidade que as intervenções urbanísticas são acompanhadas por medidas de ordem urbana especialmente a repressão contra camelôs. Tais ações também ocorreram em Bangu, Campo Grande, Madureira e ainda poderão ser realizadas, mesmo em menor escala, na Pavuna, Irajá ou Parque União144.

A atual Consolidação das Posturas cita, nominalmente, as praças Saenz Pena (Tijuca), Lido (Copacabana), General Osório (Ipanema), Praça XV de Novembro (Centro), além do calçadão de Copacabana por conta das feiras de artesanato145; os logradouros onde é possível a exposição de mercadorias nas ombreiras e nas calçadas fronteiriças aos estabelecimentos - SAARA - Rua da Alfândega e arredores, algumas ruas em centro de bairros como Madureira, Campo Grande e Jacarepaguá146; a regulação de carga e descarga147 e as praias. O Largo do Machado não é citado. Tais medidas de diferenciação são utilizadas no caso do comércio de rua.

A ordem é isonômica-hegemônica, ainda que na aplicação de fato não seja. Sobre essa particularidade da legislação e planejamento urbano no Brasil, Maricato foi muito feliz em sua análise:

“O urbanismo brasileiro (entendido aqui como planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas. Podemos dizer que se trata de idéias fora do lugar porque, pretensamente, a ordem se refere a todos os indivíduos, de acordo com os princípios do modernismo ou da racionalidade burguesa. Mas também podemos dizer que as idéias estão no lugar por isso mesmo: porque elas se aplicam a uma parcela da sociedade reafirmando e reproduzindo desigualdades e privilégios. Para a cidade ilegal não há planos, nem ordem. Aliás ela não é conhecida em suas dimensões e características. Trata-se de um lugar fora das idéias.” (MARICATO, p.122) 144

Áreas não citadas na amostra de notícias sobre o choque de ordem. o Art. 97, Regulamento n 2. 146 o Art. 33, Regulamento n 2. 147 o Art. 1 , Regulamento no 9. 145


185

A ordem que se pretende impor através das Posturas, na maioria das vezes, voltase para lugares específicos, definidos estrategicamente segundo critérios do mercado (imobiliário, turístico, comercial) e que são objeto de planos específicos ou foco de projetos re: requalificação, revitalização, renovação, etc., como os Projetos de Estruturação Urbana - PEUs, previstos no Plano Urbanístico Básico - PUB-Rio, Decreto (mais um!) 1.269 de 27 de outubro de 1977 e cuja finalidade era de adequar a legislação às características dos bairros. Seria este o caso de regionalizar (ou “lugarizar”) as Posturas Municipais, porém tal iniciativa não ocorreu148. As Posturas se mantiveram descontextualizadas em relação ao planejamento urbano, que por sua vez, não tinha uma diretriz geral, conforme descreve a ex-Secretária de Urbanismo, Helia Nacif Xavier:

“justamente por não haver uma visão geral norteadora das políticas de desenvolvimento urbano, ou pelo menos de planejamento físico-territorial, os Projetos de Estruturação Urbana não se baseavam em diretrizes gerais de ocupação; cada coordenação de área de planejamento adotava o que melhor lhe convinha. Articulava-se minimamente, e de forma aleatória, com os setores responsáveis pela aplicação das leis e consultava setores ditos "representativos" da população através de reuniões sem preparação adequada”. (Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca, 2002, p.174) Tais

dificuldades

não

deveriam

inviabilizar

o

planejamento

e

a

gestão

descentralizada, participativa e democrática. Porém, o mecanismos de participação popular exigidos formalmente para a política urbana - especialmente em relação ao Plano Diretor - raramente são exigidos para a legislação urbanística decorrente, entre as quais as Posturas (incluído aí o Código de Obras) e as medidas de controle e polícia decorrentes. O atual Plano Diretor do Rio de Janeiro, Lei Complementar no 111 de 1o de fevereiro de 2011, no artigo 4 incluiu o “Código de Posturas”149 nas “leis específicas” que “estabelecerão normas gerais e de detalhamento do planejamento urbano”. Resta 148

Uma iniciativa deve ser exaltada: a Lei no 2.960 de 30 de dezembro de 1999 do Rio de Janeiro que flexibilizou o licenciamento e as autorizações para comércio em favelas da cidade. 149 Foi a única citação às Posturas Municipais. Nas outras duas ocorrências a palavra é usada apenas como sinônimo de comportamento e atitude. Aliás, em relação ao assunto posturas o PD de 2011 não trouxe absolutamente nada de novo em comparação ao PD de 1992.


186

decifrar o que seriam tais “leis específicas”, pois o que se vê em relação aos Códigos de Posturas, de Obras, ao “licenciamento e fiscalização de obras e edificações”; ao “licenciamento e fiscalização de atividades econômicas”; ao parcelamento e uso do solo são apenas decretos. Qualquer chance de uma discussão mais profunda sobre o uso do logradouro público à luz da política urbana acabou justamente aí.

Nesse aspecto, há que se considerar uma cultura administrativa da Prefeitura que interfere sobremaneira nas relações entre os temas Posturas e política urbana. Helia Nacif150 lembrou que as atribuições da Secretaria de Urbanismo, no que concerne aos logradouros, limita-se aos projetos e não às atividades transitórias e reconheceu a existência de uma “institucionalidade engessada e que engessa” a abordagem de questões multi e intradisciplinares do espaço urbano, principalmente nos aspectos legais.

Ao mesmo tempo em que o planejamento urbano não reconheceu nas Posturas (no uso das calçadas, praças e jardins para fins de comércio e de serviços) um tema que deveria ser discutido no processo de planejamento da cidade, as Posturas também não remeteram ao Plano Diretor e aos regulamentos de zoneamento e de uso do solo, exceto quando se trata de comércio estabelecido151, as questões relacionadas à ordem pública. Não tenho dúvidas que a redução da distância entre Posturas e política urbana seria um passo interessante para temperar o debate sobre o uso dos espaços públicos e, mais especificamente ao conceito de ordenamento evocado pelo poder público.

Contudo, tal condição dependerá dos modelos de planejamento e gestão adotados. Hoje entendo as medidas de ordenamento aplicadas no Rio de Janeiro como autocráticas, pautadas na dogmatização dos instrumentos normativos e do papel própria autoridade do Estado, onde a ordem se justifica pela lei e vice-versa, confinando a relação entre conceito e ação. Primeiramente é preciso que as Posturas expressem decisões tomadas democraticamente e seus objetivos sejam

150

Entrevista concedida em 12/09/2011. Além desta referência as Posturas abrem a possibilidade de consulta à Secretaria de Urbanismo para os casos de mesas e cadeiras nas calçadas, bancas de jornais e engenhos publicitários. 151


187

pactuados entre aqueles diretamente ou indiretamente afetados. Tarefa árdua, sem dúvida, porque pressupõe o enfrentamento da complexidade da questão.

Depois é necessário reconhecer que a lei tem limites de aplicação assim como a fiscalização não será onipresente: os conflitos não desaparecerão, porque são inerentes ao espaço. Mas precisam ser reconhecidos tal. Algo que a fiscalização clássica fazia, ainda que de modo velado, ao flexibilizar a aplicação da lei conforme o caso. A mesma discricionariedade usada pelo Poder de Polícia para justificar medidas coercitivas também pode facilitar a mediação entre o racional exigido pela ordem e o real divisado nas situações cotidianas. Conche, tomando Kant como ponto de partida, chamou essa solução de “razoável” (CONCHE, op.cit. 307). O Poder de Polícia precisa ser razoável, antes de ser racional e se dispersar no real.

Por outro lado, o reconhecimento da importância do lugar - e da diferenciação espacial decorrente - tanto na política urbana quanto e especialmente nas Posturas carece de cuidados para evitar o que Massey chamou de “fechamento” (2005, p.235) ao que está (ou vem de) fora do lugar. Seriam as exclusões e fragmentações regressivas identificadas por Harvey quando a comunidade é entendida “para si” ao invés de “em si” (2004, p.315). Priorizar o alvará do camelô segundo critério de antiguidade na praça de comércio pode ser uma medida justa. Será injusta se com isso o Largo se “fechar”, como um cluster ou gueto, para a chegada de novos comerciantes, igualmente em busca de espaço. Como conciliar? Talvez criando pontos fixos e outros rotativos... não creio ser questão difícil de ser resolvida. O fechamento do lugar pode significar sua transformação em não lugar, porque tenta estabilizá-lo como uma experiência nas “condições normais de temperatura e pressão” e negando a possibilidade de renovação e reduzindo, ainda de acordo com o pensamento de Massey (2004, p.8), a “possibilidade da existência da multiplicidade”.

Posturas são regras essencialmente espaciais. Surgiram da necessidade de regulação do espaço no tocante às práticas e comportamentos cotidianos visando salvaguardar a própria coletividade, embora na maioria das vezes tenham sido impostas conforme a visão e interesse daqueles que detinham (e detém) o poder


188

político152. Não se pode esperar que no contexto atual das grandes cidades brasileiras

as

Posturas

desempenhassem

o

mesmo

papel

que

outrora

desempenharam na organização das relações sociedade-espaço. Por isso outros instrumentos de regulação ganharam importância em nível local, como os Planos Diretores e toda a legislação urbanística decorrente, os instrumentos de controle ambiental, sanitário, etc. ajustados a um complexo arcabouço legal em escala nacional, como a própria Constituição, os Códigos Civil e Penal, entre outros. A introdução da categoria lugar na discussão das Posturas - e aqui incluo a legislação urbanística - permite um ajuste de escala na discussão, definição e aplicação dos instrumentos

normativos

conforme

a

diferenciação

das

relações

políticas,

econômicas, culturais no espaço. Um ajuste (pontual certamente) que precisa ser desenvolvido dentro da relação Estado-Sociedade Civil. É esta, conforme a reflexão de Moreira (2006, p.94), que dá a diretriz do arranjo e define o modo de regulação do espaço, suas regras e normas, a ordem do espaço. A reação a esta regulação produz o contra-espaço, que por sua vez é reprimido nas Posturas que tentam instituir o espaço da ordem.

A questão dos camelôs vai muito além do lugar. Outras práticas e situações reguladas (e reprimidas) através das Posturas em ações pontuais e instantâneas153 no nível do lugar têm sua gênese na escala da produção capitalista do espaço e suas contradições. E, voltando ao pensamento de Morin, “a complexidade está lá onde não se pode vencer uma contradição” (2004, p.93). Por isso a abordagem desta tensão entre ordem e desordem, conforme as Posturas, exigir mudanças profundas no “pacto” realizado no bojo na Sociedade Civil e manifesto no Estado, ou seja, no que se evoca como ordem, em favor de um outro cenário onde ordem e desordem são vistas como complementares, contribuintes e fundadoras da organização. Os conflitos entre espaço e contra-espaço são dinâmicos e ocorrerão, de uma forma ou de outra, e precisam ser vistos como pontos de controle e revisão do ordenamento territorial exigindo mudanças na própria constituição da Sociedade Civil. No jogo das Posturas, os conflitos são oportunidades de mudanças que se

152

Tratei do assunto no Capítulo III e IV. Carlos Alberto Almeida, em artigo publicado em O Globo, 10/09/2009, para chamou a atenção a precariedade do termo “Choque de Ordem”, uma vez que “choque por definição, não pode ser algo contínuo senão mata a vítima”. 153


189

fazem necessárias para reatar, na medida do possível, polícia à pólis através da política:

porque o espaço é o produto de relações-entre, relações que são práticas materiais necessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ele está sempre num processo de devir, está sempre sendo feito - nunca está finalizado, nunca se encontra fechado. (MASSEY, 2004, p.8)

Figura 57: Uma brincadeira de gato e rato Fonte: O Globo, 28/11/2009.


190

VII. CONCLUSÕES

Em meados de 2010, uma empresa de consultoria, “com contatos na Câmara de Vereadores”, pediu-me proposta de trabalho para elaboração de um novo Código de Posturas do Rio de Janeiro que substituísse “a simples compilação de 2008”. Confesso que meu demônio ordenador quase não se conteve com a possibilidade de tal empreitada154. Naquele momento ainda não tinha avançado em minhas observações e poderia ser ótima oportunidade para ver-me dentro do próprio processo de concepção das Posturas. Porém, ao tentar delinear a proposta, não conseguia compatibilizar atividades e os prazos exíguos que, na minha visão, impediam o tratamento das questões de forma pertinente e justa. A necessidade de identificar os sujeitos envolvidos nas diferentes situações e contextos que se pretendia regular era, para mim, mais importante que a própria minuta de lei. O papel de um consultor jamais será de legislador e muito menos de ordenador, quiçá apenas de um mediador que fomenta o debate. Se o debate de fato se realizar.

Tal episódio ilustra como muitas vezes as Posturas foram e são elaboradas. Muitas vezes busca-se apenas um documento técnico, assepticamente elaborado a partir de uma “visão externa” e “isenta” do problema. Outras vezes tende apenas a obedecer e otimizar práticas administrativas já consolidados ou metas definidas previamente. A “visão externa” é usada aqui apenas como uma espécie de lastro que confere certa cientificidade ao processo e ao resultado final. Mais um conflito entre o concebido e o vivido, dessa vez porém numa esfera menos arejada que a das ruas. Hoje relembro este momento como parte da conclusão deste trabalho.

Raramente as Posturas no Rio de Janeiro (assim como em muitas outras cidades, certamente) resultaram de um amplo debate sobre a cidade que buscasse a solução de conflitos a partir do atendimento mínimo das reivindicações, lutas e interesses de diferentes sujeitos e grupos sociais. Nesse prisma, pouco importa o meio - se lei ou decreto - de sua instauração, se o processo de elaboração das Posturas é fechado ou, por outra, quando sugere um processo aberto apenas para validar decisões

154

Minuta encaminhada em 9 de maio de 2011. Por razões profissionais omitirei o nome da

consultoria.


191

previamente tomadas, como registrado por Vainer na discussão do Plano Estratégico da Cidade.

No cenário atual das Posturas, a tensão ordem/desordem talvez só exista no olhar deste pesquisador. Ordem e desordem nem mesmo são evocadas enquanto contradição. Trata-se apenas de “vigoroso clichê legitimador”155 das ações que tentam demonstrar a presença “efetiva”, “eficaz” e “eficiente” da autoridade. A mesma autoridade que realiza profundas transformações no espaço urbano em projetos que, tal qual as Posturas, pouco ou nada foram discutidos com os habitantes dos lugares afetados e seus impactos negativos considerados.

Contudo, sinto necessidade de ser propositivo, até mesmo para responder àquela provocação de Harvey em relação ao arquiteto rebelde: é preciso transformar o mundo. Um trabalho de revisão de antigas ou elaboração de novas Posturas Municipais precisa ser construído a partir da possibilidade do convívio e esse convívio pode trazer sensação de segurança e bem estar, preservando o lugar enquanto singularidade sem, no entanto, isolá-lo das inevitáveis e necessárias trocas com o todo da cidade. Isso força a uma variação escalar das Posturas e coloca em questão o tratamento isonômico dos lugares, como foi proposto com os PEUs - mesmo com uma estratégia questionável de participação156.

No

caso

da

camelotagem,

por

exemplo,

é

preciso

reconhecer

que

o

problema/solução está longe de ser abordado apenas sob a lógica do lugar. Limitar e fixar um número determinado de vagas no logradouro, reservando-as aos “comerciantes locais”, seja por critério de antiguidade ou de residência próxima, não preserva o lugar, não desafoga a demanda por postos de trabalho e tampouco atende ao interesse do consumidor. É preciso que algumas vagas funcionem na base do rodízio entre comerciantes, como nas feiras-livres, de modo a se ajustar à procura por pontos comerciais “na pista”, sempre em menor número que a demanda. Tal orientação pode ser dada de modo a garantir a vida nas calçadas e as faixas aceitáveis de passeio livre. É preciso ainda que Prefeitura e Câmara apostem na

155

Cf. Barbosa, op.cit,p.126, citado na seção 3 do Capítulo IV.

156

Cf. Nacif, op.cit. 2002, p.174, citada na seção 2 do Capítulo V.


192

auto-organização da atividade, variando igualmente da escala do município a do lugar. O associativismo deve ser incentivado, facilitando a interlocução e a própria regulação.

Existe ainda o papel do fiscal. O fiscal é o servidor público a quem se atribui a função de controlar, vigiar e zelar pelo cumprimento ou execução de certas leis, preceitos ou regulamentos jurídicos e disciplinares, visando manter a regularidade na prática de certos atos e negócios. Trata-se do sujeito do Poder de Polícia, nascido do próprio conceito de pólis que, no Município moderno, se concentra essencialmente em ações de ordem administrativa. A ponta do processo de ordenamento está justamente na ação do fiscal. Curiosamente, nem sempre é chamado a discutir, avaliar ou mesmo cooperar na elaboração das leis e normas que zela, exceto, conforme apurei, “numa ou noutra sugestão”. Quando ocorre uma situação identificada como “desordem”, imediatamente vem a cobrança por parte da mídia, de setores econômicos afetados e mesmo de parte da população, de uma fiscalização mais ativa e mais eficiente. Porém, aos poucos o que deveria ser uma fiscalização de posturas passou a ser, de fato, uma fiscalização tributária (não a toa o cargo hoje chama-se Fiscais de Atividades Econômicas), com mudança sensível de foco: a cobrança de taxas de autorização ou licença.

Essas taxas que tomam fato gerador nas Posturas Municipais também precisam ser revistas. Sua contribuição para a saúde financeira de um Município como o Rio de Janeiro é irrisória, insuficiente para manter os serviços de fiscalização e de licenciamento como defende a lei tributária local. Trata-se, na verdade, de subterfúgio burocrático que desvinculou as Posturas da política urbana desde os tempos de Pereira Passos.

Na ótica da política urbana é que estão as principais medidas para revisão das posturas. Se o Plano Diretor exige audiências públicas devidamente registradas, conselho autônomo e independente, e atenta para a diferenciação dos lugares, tais exigências também devem ser respeitadas pelas Posturas - incluindo Código de Obras, Lei de Uso e Ocupação do Solo, Parcelamento, etc. Também o Poder de Polícia daí decorrente. A idéia de criar uma secretaria de fiscalização ou de ordem pública, desvinculada da política urbana, não favorece a revisão dos instrumentos


193

normativos, pois quem os aplica não os faz e quem os faz não os aplica. Daí correse o risco de criar normas que desrespeitam o princípio da razoabilidade legal. Tal razoabilidade é aferida na mediação entre ideal e possível, entre o racional e o real157.

Contudo, a mudança na aplicação das Posturas, com a redução da importância dos fiscais e o novo papel desempenhado pela Guarda Municipal, alinhando medidas de controle de logradouros e de segurança pública, reforça uma ordem diversa daquela de caráter local. A segurança tem respaldo na legislação federal e nas competências definidas no Pronasci. E se não reflete uma norma de caráter local, não é Postura! Assim, qualquer margem para a necessária negociação entre o fato e o direito decorrente de particularidades do lugar praticamente inexiste. Esta negociação costumava ocorrer nos antigos moldes da fiscalização, dentro do cenário cotidiano, com base no exame de oportunidade que a discricionariedade admitida. Hoje, a discricionariedade é evocada apenas para medidas mais ostensivas de coerção.

Deve-se ainda reconhecer que a ordem que se tenta instaurar e manter através das Posturas sempre será relativa e criará desordem, de um jeito ou de outro: definido o que é legal também se define o ilegal. E a (i)legalidade aqui não é uma condição facilmente perceptível, pois depende de documentação que a comprove. Não à toa exigem as Posturas que o camelô exiba, em local bem visível, o alvará de autorização. Logo, o que se percebe nas ruas, seja como ordem ou desordem, nem sempre indica a uma situação de legalidade ou ilegalidade. Eu jurava que o “puxadinho”158 feito pela Pizzaria Gambino era ilegal, até o gerente me mostrar a autorização. Apesar de legal conforme as Posturas, continuo achando o “puxadinho” inadequado e invasivo. Muito mais que a maioria dos tabuleiros de camelôs.

E assim, vale ressaltar que o lugar pode ser ordenado e desordenado pelas Posturas e à revelia delas. Isso não quer dizer que se deva prescindir das normas legais, que para serem legais é preciso que resultem de um esforço de negociação e construção coletiva - por isso leis são votadas, seja na Câmara ou na Ágora. Mesmo

157

Cf. Conche, op.cit., p.307, citado na seção 2 do Cap. V.

158

Vide figura 35.


194

que devidamente votadas e em pleno vigor, as Posturas, com suas sanções, suas interdições, suas exigências, seus mecanismos de ordenamento, devem ser acionadas na medida exata em que forem solicitadas na convivência e na cotidianidade do lugar. Conflitos sempre existirão e para uma parte deles não existem sanções previstas nas Posturas. Para outra, quanto menos se precisar delas melhor.

Acredito ser possível a construção de um novo papel para a fiscalização municipal para as Posturas, cuja atuação tem se pautado na velha e batida estratégia de “vigiar e punir”: notificação, auto de infração e sanção. Por que não a premiação? Por que não a criação de padrões de qualidade negociados com a população e setores da sociedade? Por que não “sanções” de caráter orientador, como o comparecimento a palestras e reuniões? Não apenas agentes do poder de polícia, mas e principalmente negociadores do desenvolvimento sustentável.

Na perspectiva do planejamento e gestão participativos, a estratégia poderia ser a pactuação entre órgãos reguladores, executivo, legislativo e sociedade civil de níveis básicos de tolerância e de exigência, com o comprometimento efetivo de todos no cumprimento de tais níveis básicos. A confrontação entre Poder Público e Sociedade Civil para o cumprimento das normas reguladoras esgotou-se e insistir na nessa polaridade demonstra visíveis retrocessos técnicos e políticos. Num momento em que boa parte dos Municípios encerra um ciclo de revisão ou elaboração de Planos Diretores participativos, o processo de discussão das cidades deveria prosseguir, da mesma forma, para os Códigos de Obras, de Posturas, normas de licenciamento e controle do uso e parcelamento do solo. Ouvir a população e exercitar um novo olhar.

Paralelamente à revisão (e flexibilização) das normas, o Poder Executivo deve reestruturar-se para essa nova política urbana, onde a informação assume papel diferenciador e vital. Em geral a população não participou e ainda pouco participa da definição das normas e conhece a “regra do jogo” com a partida em andamento: seja através de um processo de licenciamento, seja com a notificação do fiscal ou com a ação mais agressiva da repressão e apreensão.


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A discussão das normas em nível local poderia substituir a tipificação das infrações pela definição de padrões de qualidade para o comércio, serviços e espaços públicos. O fiscal (de obras, de posturas) passaria assim a ser o agente de urbanismo. Aquele servidor que contribuiria efetivamente para o desenvolvimento sustentável das cidades, atuando junto à população para a preservação da ambiência urbana. Sem estar submetido à embolorada definição de ordem que advém do velho Estado de Polícia.

Figura 4: Escher - Order & Chaos (1950) - revisitada

Para concluir, retorno mais uma vez ao quadro de Escher. Onde antes apenas via a lógica organizadora do artista, agora percebo que o poliedro de cristal e os objetos descartáveis, incompletos ou amassados que o rodeiam compõem um todo intregrado, portador de uma mensagem e de um sentido. Cada objeto, se observado isoladamente não sugere nem ordem, nem desordem: o poliedro de cristal, a casca de ovo, o cachimbo ou a lata de sardinha, são apenas objetos. Porém, dentro do arranjo e contexto do quadro, a tensão entre a regularidade e a solidez do cristal e a incompletude e disformidade dos demais objetos é reforçada pelo reflexo destes na superfície lisa e transparente do cristal. A ordem só existe em relação à desordem, e vice versa. O reflexo não existe isoladamente.


196

Order & Chaos pode ser visto assim como uma alegoria da complexidade, onde a parte está no todo e o todo na parte, onde a dualidade coexiste à unidade se autoorganizando a partir da complementaridade, da oposição e da convergência. A lógica de funcionamento do sistema emerge das próprias contradições do sistema. Quando essa condição é ignorada e a ordem imposta, como no caso das Posturas no Rio de Janeiro, tem-se tão somente a lógica do vigiar e punir, do controle e da regulação segundo os interesses estratégicos do capital (imobiliário, turístico, comercial) e o urbanismo seguirá a serviço desse circuito. Romper com esse processo exige um retorno ao lugar, ao cotidiano e à democracia: despertar o arquiteto rebelde!

Trazer

as

Posturas

de

volta

às

reflexões

do

urbanismo

obrigará

ao

arquiteto/urbanista revisar seus preceitos de ordem e desordem, para além da commande social das forças políticas e econômicas que produzem o espaço urbano. As Posturas não precisam ser construídas pelo governo: podem ser organizadas “de baixo para cima”, como a urbanização proposta por Carlos Nelson. Afinal, a commande social não existe apenas em função do capital.


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213 Anexo I - Largo do Machado: Localização


214 Anexo II - Decreto 29.881 de 2/09/08: Sumário do Regulamento no 2

Da Autorização e Exercício das Atividades Econômicas Exercidas em Área Pública.

Título I - Disposições Gerais Título II - Do Comércio Ambulante Capítulo I - Disposições Gerais Capítulo II - Dos Meios e Condições para o Exercício do Comércio Ambulante Capítulo III - Das Restrições e Proibições Capítulo IV - Das Pessoas Habilitadas ao Exercício do Comércio Ambulante Capítulo V - Do Comércio Ambulante nas Praias Capítulo VI - Do Comércio de Aves, Ovos e Derivados Capítulo VII - Do Comércio em Quiosques Padronizados Capítulo VIII - Dos Procedimentos de Autorização para o Exercício do Comércio Ambulante Título III - Da Atividade Comercial em Mobiliário Urbano Instalado em Área Pública Título IV - Da Realização de Eventos Título V - Da Prestação de Serviços em Áreas Públicas Capítulo I - Da Exploração de Atividades Recreativas no Mar, nas Praias, nos Rios, Lagoas e Lagos Capítulo II - Da Locação de Equipamentos para Passeio e Lazer Capítulo III - Das Escolinhas de Esporte Capítulo IV - Da Prestação de Serviços de Massagem e Terapia Corporal Título VI - Das Bancas de Jornais e Revistas Capítulo I - Disposições Gerais Capítulo II - Dos Produtos Comercializados Capítulo III - Das Condições de Instalação Capítulo IV - Das Transferências e Alterações


215 Título VII - Das Feiras Capítulo I - Das Feiras de Arte Capítulo II - Das Feiras Livres Capítulo III - Das Feiras de Antiquários Capítulo IV - Da Feira Noturna Turística de Copacabana Título VIII - Do Uso da Área Pública em Situações Especiais Capítulo I - Da Ocupação de Área da Praia pelos Hotéis da Orla Marítima Capítulo II - Da Ocupação das Calçadas no Entorno do Estádio João Havelange Capítulo III - Da Exibição de Cantores, Músicos e Pequenos Conjuntos Musicais Título IX - Do Uso de Mesas e Cadeiras Título X - Da Taxação Título XI - Das Isenções – artigo 177 Título XII - Das Infrações e Penalidades Capítulo I - Disposições Gerais Capítulo II - Referentes ao Comércio Ambulante Capítulo III - Referentes às Bancas de Jornais e Revistas Capítulo IV - Referentes às Feiras Livres Capítulo V - Referentes ao Uso de Mesas e Cadeiras Título XIII - Dos Procedimentos para a Apreensão e para a Liberação de Bens, Equipamentos e Mercadorias do Comércio Ambulante – Título XIV - Disposições Finais


216 Anexo III - Decreto 29.881 de 2/09/08: Taxas do Regulamento no 2 159

I - ATIVIDADES NÃO LOCALIZADAS: 1. mercadores ambulantes de metais nobres, jóias e pedras preciosas, artigos e confecções de luxo e perfumes estrangeiros - taxa anual 2. mercadores ambulantes de gêneros alimentícios; artífices e profissionais ambulantes, ainda que vendam produtos de sua própria fabricação, de indústria exclusivamente caseira: a) sem uso de veículo - taxa anual b) uso de veículo não motorizado - taxa anual c) uso de veículo motorizado ou “trailer”, com ponto determinado 3. mercadores e profissionais ambulantes não especificados 4. mercadores ambulantes no exercício de atividades provisórias em épocas ou eventos especiais - taxa diária

UNIF 5,0/ano

0,7 1,3 12,0 2,0 0,03

II - ATIVIDADES LOCALIZADAS: A

Regiões B C

1. bancas de jornais e revistas, em passeios - taxa anual a) em passeios de 3 a 5 metros 1,0 1,0 1,0 b) em passeios de mais de 5 metros e até 7 metros 1,5 1,5 1,5 c) em passeios de mais de 7 metros 2,0 2,0 2,0 2. barracas, em épocas ou eventos especiais para venda de: a) cerveja ou chopp - taxa diária por m2 0,04 0,04 0,04 b) gêneros alimentícios, refrigerantes sem álcool ou artigos 0,02 0,02 0,02 relativos ao evento - taxa diária por m2 3. estacionamento de veículos em épocas ou eventos especiais, para venda de gêneros alimentícios ou artigos relativos ao evento: a) não motorizados - taxa diária 0,06 0,06 0,06 b) motorizados ou “trailers” - taxa diária 0,2 0,2 0,2 4. exploração de estacionamento de veículos em local 0,2 0,2 0,2 permitido - taxa trimestral por m2

159

Na lei original os valores foram expressos em UNIF, extinta em 2000. Desde então a Prefeitura passou atualizar os valores praticados em 2000 pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E). Em 2012


217

5. feiras-livres - taxa trimestral a) comércio de pescado, em barracas 3,0 3,0 3,0 b) outros, exceto cabeceira-de-feira 0,3 0,3 0,3 c) feirantes que vendam, exclusivamente, gêneros 0,01 0,01 0,01 alimentícios por local e por m2 d) feirantes cabeceira de feira e outros - por m2 0,03 0,03 0,03 f) feirantes em veículos 1,5 1,5 1,5 6. mesas e cadeiras: a) área ocupada - taxa trimestral por m2, 0,1 0,3 0,6 b) em épocas ou eventos especiais - área ocupada - taxa 0,01 0,02 0,03 diária por m2 c) quando a área ocupada for limitada por muretas, grades, 1 3 6 toldos, guarda-sóis, bambinelas fixas ou qualquer outra construção - taxa trimestral por m2 Obs: As regiões A, B e C foram definidas para efeitos de IPTU, conforme valores imobiliários.


218 Anexo IV - Largo do Machado: Logradouros e EdifĂ­cios


219 Anexo V - Largo do Machado: Mobiliรกrio e Equipamentos Urbanos


220

Anexo VI - SIG de Apoio: Atividades e Estabelecimentos


221


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