Há crime de desobediência no descumprimento de medidas protetivas? Um dos assuntos que mais enseja discussões e posicionamentos díspares entre os intérpretes do Direito, principalmente no que concerne aos crimes em espécie, diz respeito ao delito de desobediência (artigo 330 do Código Penal), tomando como hipótese de enquadramento típico o descumprimento de ordens judiciais. A questão ganhou ainda especial relevância após a edição da Lei nº 11.340 de 2006 e a consectária especificação de medidas protetivas de urgência, impostas em decisões emanadas por varas especializadas. Sobre o tema, decidiu recentemente o STJ, em acórdão ora transcrito: “PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. COMINAÇÃO DE PENA PECUNIÁRIA OU POSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA. INEXISTÊNCIA DE CRIME. 1. A previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de desobediência a ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo a ressalva expressa de cumulação (doutrina e jurisprudência). 2. Tendo sido cominada, com fulcro no art. 22, § 4º, da Lei n. 11.340⁄2006, sanção pecuniária para o caso de inexecução de medida protetiva de urgência, o descumprimento não enseja a prática do crime de desobediência. 3. Há exclusão do crime do art. 330 do Código Penal também em caso de previsão em lei de sanção de natureza processual penal (doutrina e jurisprudência). Dessa forma, se o caso admitir a decretação da prisão preventiva com base no art. 313, III, do Código de Processo Penal, não há falar na prática do referido crime. 4. Recurso especial provido” (REsp nº 1.374.653/MG, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julg. em 11/03/2014). A compreensão do posicionamento esposado pela Corte passa pela compreensão do teor princípio da subsidiariedade – um dos aspectos do princípio da intervenção mínima – e dos casos em que o descumprimento de uma decisão judicial poderá redundar em crime de desobediência, situações das quais passaremos a nos ocupar doravante. 1- A DESOBEDIÊNCIA E A SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL Afirma-se que o crime de desobediência, por natureza, comporta alguns dos mais evidentes exemplos de aplicação do princípio da subsidiariedade. Não se trata aqui da subsidiariedade atinente ao concurso aparente de normas, mas dela como princípio-geral do Direito Penal, colocando-o como a última das formas de controle social. O Direito Penal representa a forma mais drástica de intromissão do Estado na esfera de liberdades de um indivíduo. E, como tal, exige aplicação temperada, para que não represente um mal maior do que aquele que se pretende combater. Justamente por isso, mister uma seleção cuidadosa dos objetos de salvaguarda da norma, para que apenas interesses especialmente relevantes sejam tutelados. Outrossim, apenas as condutas que representem um ataque intenso à objetividade jurídica merecerão que deles se ocupe o Direito Penal. E finalmente, se outras formas de controle social se mostrarem aptas à resolução do evento, devem elas ter primazia, evitando-se a imposição de penas. Pode-se concluir, por conseguinte, que as situações que não demonstrem elevado risco à coesão social são indiferentes penais, donde surge o princípio da intervenção mínima. Cuidando deste princípio, Santiago Mir Puig ensina ser ele integrado pelos postulados da subsidiariedade e da fragmentariedade, este significando que “el Derecho penal no ha de sancionar todas las conductas lesivas de los bienes que protege, sino sólo las modalidades de ataque más peligrosas para ellos”; já em relação àquele, diz o autor que “para proteger los intereses sociales el Estado debe agotar los medios menos lesivos que el Derecho penal antes de acudir a éste, que en este sentido debe constituir un arma subsidiaria, una ultima ratio.” [1] Impõe-se a intervenção mínima ao Direito Penal em virtude daquilo que Mir Puig denomina economia social, ou seja, busca-se o maior bem social, ao menor custo social. [2]. Luiz Regis Prado, ao tratar do tema, esclarece que o princípio da intervenção mínima é uma “orientação de Política Criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado de Direito.” [3] Em lição sobre a fragmentariedade penal, mas cuja autoridade pode ser transportada para a intervenção mínima como um todo, o festejado jurista afirma que o Direto Penal é corretamente mantido como um “arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente”, o
que, antes de significar omissão na salvaguarda de bens e valores e na busca de determinados fins, revela-se como um limite necessário ao “totalitarismo de tutela”. [4] Tem-se, pois, a subsidiariedade como característica inerente a um Direito Penal que se pretenda respeitador dos direitos fundamentais, cumprindo-se uma das missões básicas a que se propõe sua moderna base dogmática, que é a de servir como um instrumento de proteção não apenas da sociedade, mas também como um sistema de garantias do indivíduo contra o arbítrio estatal. Assim, e em compasso com este predicado, vêm os tribunais optando pela solução de casos que aparentemente se subsumam à norma penal na esfera civilista, ou pelas regras que regulamentam as relações trabalhistas, ou, ainda, através de disposições de Direito Administrativo, quando estes meios se mostram eficazes. 2- A DESOBEDIÊNCIA E O DESCUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS Explicitado o conteúdo do princípio da subsidiariedade e visto que o crime de desobediência só resta caracterizado em situações específicas, fica a pergunta: quando o descumprimento a uma decisão judicial poderá ensejar subsunção típica imediata no mencionado dispositivo? Primeiramente deve ser gizado que, assim como nas obrigações em geral estatuídas por lei, caso a ordem comine astreintes, busca e apreensão ou outra forma de sanção em caso de inobservância, restará afastada a possibilidade de caracterização do delito, em virtude da desnecessidade da intervenção penal. Suponhamos, entretanto, que o magistrado, além de fixar meios coercitivos de natureza patrimonial na sentença, faça expressa ressalva ao crime do artigo 330 do Código Penal em caso de descumprimento. Essa dicção será ineficaz, não se prestando ao fim colimado (a cumulação de sanções só seria pertinente mediante expressa previsão legal). Fica fácil perceber, portanto, que o crime de desobediência não se opera automaticamente em caso de descumprimento consciente e voluntário de decisões judiciais. A regra, aliás, é a nãocaracterização. Só teremos conduta criminosa em caso de descumprimento de decisões mandamentais ou se o magistrado expressamente indica essa possibilidade na sentença, mas sem que haja a imposição de medidas coercitivas de natureza diversa (civil, processual administrativa etc.). No que se refere às decisões proferidas em mandado de segurança, consoante o artigo 26 da Lei nº 12.016 de 2009, há previsão expressa de adequação típica do descumprimento ao artigo 330 do CP, mesmo com a imposição cumulativa de outras sanções: “Constitui crime de desobediência, nos termos do art.330 do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, o não cumprimento das decisões judiciais proferidas em mandado de segurança, sem prejuízo das sanções administrativas e da aplicação da Lei nº1.079, de 10 de abril de 1950, quando cabíveis.” Há se observar, ainda, a existência de tipos especiais de desobediência a ordens judiciais na legislação extravagante. É o caso dos artigos 100, IV, e 101 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741 de 2003), por exemplo, que prevalecem sobre a forma genérica em virtude do princípio da especialidade. Relevante ainda uma breve menção ao artigo 359 do Código Penal. Majoritariamente, pugnase pelo reconhecimento do delito contra a administração da Justiça apenas quando desobedecida decisão sobre efeitos secundários extrapenais da sentença condenatória, previstos no artigo 92 do Código Penal. Ou seja, imprescindível seja prolatada uma sentença de natureza penal, não cível, conforme já decidiu o STF: “O crime definido no artigo 359 do CP pressupõe decisão de natureza penal e não cível” (RT 79/401). [5] Ivan Luiz da Silva, contudo, adota orientação oposta: “Não obstante seja entendimento de que o tipo penal do art. 359 se refere à decisão que impunha penas acessórias (revogadas na atualidade) ou aos efeitos penais do art. 92 do Código Penal, impende destacar que a descrição típica não distingue entre decisão criminal e decisão cível para efeitos de configuração do delito." [6] 3- JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA
Em que pese a exposição feita, é certo que a jurisprudência ainda se mostra insegura quanto ao tema. Não se pretende, neste artigo, a veiculação de verdades absolutas. Assim, trazemos à colação alguns julgados, visando a estimular o debate: “APELAÇÃO CRIME. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO DE CONDENAÇÃO DO ACUSADO PELOS CRIMES CAPITULADOS NOS ARTIGOS 147 E 359 DO CÓDIGO PENAL. PARCIAL ACOLHIMENTO. AMEAÇA - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS - PALAVRA DA VÍTIMA AMPARADA NO CONJUNTO PROBATÓRIO CONTIDO NOS AUTOS. ART. 359 DO CÓDIGO PENAL – ADEQUAÇÃO TÍPICA INCORRETA - POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO EM SEGUNDO GRAU, VIA EMENDATIO LIBELLI, NOS TERMOS DO ART. 383, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, PARA O CRIME DE DESOBEDIÊNCIA (ART. 330 DO CÓDIGO PENAL) - DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA FIXADAS EM RAZÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DAS QUAIS TINHA O OFENSOR INEQUÍVOCA CIÊNCIA – CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE PARA O ÉDITO CONDENATÓRIO. PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO ACOLHIDA. RECURSO PROVIDO, PARA CONDENAR O APELADO COMO INCURSO NAS SANÇÕES DO ART. 147 E ART. 330 DO CÓDIGO PENAL” (TJPR, Ap. Crim. nº 890.743-3, rel. Des. Macedo Pacheco, rev. Des. Antônio Loyola Vieira, julg. em 29/11/2012). “APELAÇÃO CRIME. AMEAÇA E DESACATO PROVA TESTEMUNHAL. AUTORIA COMPROVADA. IMPROVIMENTO. DESOBEDIÊNCIA Á MEDIDAS PROTETIVAS. ATIPICIDADE. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO PARCIALMENTE, POR MAIORIA. 1. O depoimento da vítima e da policial que atendeu as ocorrências é suficiente para comprovar a autoria dos crimes por parte do acusado. 2. O descumprimento de medidas protetivas deferidas em favor da vítima, com base na Lei Maria da Penha, não caracteriza os crimes de desobediência ou desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, previstos respectivamente nos artigos 330 e 359, ambos do Código Penal, pois as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/2006 são cautelares e visam proteger as vítimas de abuso por parte de seus agressores. Tais medidas são progressivas, podendo evoluir até a prisão preventiva caso as mais brandas se mostrem insuficientes para proteger a ofendida. Recurso defensivo provido parcialmente para absolver o réu, vencido o relator nesta parte” (TJRS, ACR 70044647188 RS, Quarta Câmara Criminal, rel. Des. Gaspar Marques Batista, julg. em 27/09/2012). “PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ART. 330, DO CP. PRETENDIDA CONDENAÇÃO PELO ARTIGO 359, DO CP. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. O DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL, PROFERIDA EM SEDE DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA (LEI Nº 11.340/06), PROIBINDO O AUTOR DE MANTER QUALQUER CONTATO OU APROXIMAÇÃO COM A VÍTIMA, CARACTERIZA O DELITO DE DESOBEDIÊNCIA PREVISTO NO ARTIGO 330, DO CP. 2. INVIÁVEL A PRETENDIDA CONDENAÇÃO PELO CRIME CAPITULADO NO ARTIGO 359, DO ESTATUTO REPRESSIVO, VEZ QUE A SITUAÇÃO DE MARIDO OU COMPANHEIRO NÃO CONSTITUI FUNÇÃO, ATIVIDADE, DIREITO, AUTORIDADE OU MÚNUS, NO SENTIDO LITERAL DA LEI. 3. RECURSO DA ACUSAÇÃO CONHECIDO E IMPROVIDO” (TJDF, APR 276990520118070003 DF 0027699-05.2011.807.0003, 3ª Turma Criminal, rel. Des. Jesuino Rissato, julg. em 29/03/2012). “APELAÇÃO-CRIME. DESOBEDIÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. TIPICIDADE. INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. Não apenas o aumento da vulnerabilidade da mulher deve ser levado em conta para o reconhecimento da tipicidade das condutas do agente que descumprir as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, nas sanções do artigo 359, do Código Penal, como também a necessidade de atendimento à tutela jurisdicional, garantindo o prestígio à moralidade e probidade administrativa. APELAÇÃO PROVIDA” (TJRS, Ap. Crim. nº 70057013179, Quarta Câmara Criminal, Rel. Des. Rogerio Gesta Leal, julg. em 28/11/2013). “DESOBEDIÊNCIA A DECISÃO JUDICIAL SOBRE PERDA OU SUSPENSÃO DE DIREITO (ARTIGO 359 DO CÓDIGO PENAL). DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/2006. ALEGADA CARACTERIZAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 330 DO ESTATUTO REPRESSIVO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA
ESPECIALIDADE. INCIDÊNCIA DO TIPO ESPECÍFICO DISPOSTO NO ARTIGO 359. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Da leitura do artigo 359 do Código Penal, constata-se que nele incide todo aquele que desobedece decisão judicial que suspende ou priva o agente do exercício de função, atividade, direito ou múnus. 2. A decisão judicial a que se refere o dispositivo em comento não precisa estar acobertada pela coisa julgada, tampouco se exige que tenha cunho criminal, bastando que imponha a suspensão ou a privação de alguma função, atividade, direito ou múnus. Doutrina. 3. A desobediência à ordem de suspensão da posse ou a restrição do porte de armas, de afastamento do lar, da proibição de aproximação ou contato com a ofendida, bem como de frequentar determinados lugares, constantes do artigo 22 da Lei 11.340/2006, se enquadra com perfeição ao tipo penal do artigo 359 do Estatuto Repressivo, uma vez que trata-de de determinação judicial que suspende ou priva o agente do exercício de alguns de seus direitos. 4. O artigo 359 do Código Penal é específico para os casos de desobediência de decisão judicial, motivo pelo qual deve prevalecer sobre a norma contida no artigo 330 da Lei Penal” (STJ, HC 220392 RJ 2011/0235315-0, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, julg. em 25/02/2014). __________ [1] MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: parte general. 7.ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2005. p. 126-127. [2] Idem, ibidem, p. 126-127. [3] PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 69-70 [4] Idem, ibidem, p. 69-70. [5] STF, apud SILVA, Ivan Luiz da. Direito Penal: parte especial. Coord. Paulo Queiroz. Salvador: Jus Podivm, 2013. p. 1163. [6] SILVA, Ivan Luiz da. Op. cit., p. 1163. Postado por Bruno Gilaberte às 12:16