AS OBRAS DE MISERICÓRDIA PARA O SÉCULO XXI As Obras de Misericórdia para o Século XXI © Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Coordenação M.ª Gabriela Barbosa Colen, M.ª Teresa Salema Cordeiro Direção de Coordenação da Ação Social e Equipamentos Autores Alberto Melo, Alfredo Bruto da Costa, A. Laborinho Lúcio, Armando Gomes Leandro, Eduardo Ferro Rodrigues, Ernesto Fernandes, Fernando Micael Pereira, Frei Bento Domingues, Isabel Guerra, João Resina Rodrigues, João Seabra Diniz, Luís Moita, Maria Barroso Soares, Maria de Belém Roseira, Maria José Nogueira Pinto, Pe. Vítor Melícias Fotografia Teresa Gonçalves, Vítor Silva (Painéis de azulejos das Misericórdias de Évora, Évora monte e Santarém) Capa Ana Isabel Miranda 1ª edição (1998) Design: Moinho Velho – Loja de Edição, Lda. 2.ª edição (eBook, dezembro 2016) Edição: Centro Editorial | Direção da Cultura Revisão: J. Leitão Baptista Design: Clássica – Artes Gráficas ISBN
9729731918 www.scml.pt centro.editorial@scml.pt
Prefácio
Em 1998, na véspera da entrada do novo milénio, a Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa lançou o livro As Obras de Misericórdia para o Século XXI. A ocasião era também de celebração, já que nesse ano se assinalava os 500 anos da fundação das Misericórdias. O momento foi, pois, oportuno para olhar simultaneamente para o percurso feito pela instituição até aí mas também para os desafios que o século seguinte trazia à missão da Santa Casa. Nos tempos de mudança que hoje vivemos, e após outro ano de enorme simbolismo – o do Jubileu Extraordinário da Misericórdia –, impunha-se disponibilizar esta obra entretanto esgotada. A publicação que agora se reedita oferece um olhar refletivo e crítico, pela mão de várias personalidades de renome na sociedade portuguesa, sobre as catorze obras de misericórdia – espirituais e corporais – que estão na matriz da Santa Casa e que orientam a sua ação há mais de cinco séculos. Uma ação que foi e continua a ser dedicada aos mais vulneráveis e aos mais frágeis. Essa dedicação tomara forma escrita no Compromisso da Confraria de Misericórdia, cuja primeira versão impressa data de 1516 e fora recentemente celebrada pela Misericórdia de Lisboa, quer através de uma exposição, quer com a reedição da própria obra cinco séculos depois, entre outras iniciativas. Como tal, é mais do que apropriado que se escolha o ano do Jubileu Extraordinário para revisitar os princípios fundadores da instituição e reforçar o dever de humildade e de solidariedade para com aqueles que mais precisam de esperança. Isto porque a missão solidária da Santa Casa – e de cada um de nós – se foi sempre adaptando aos desafios de um mundo moderno. Um mundo que nos deixa menos tempo para olhar em redor e que, muitas vezes, promove a solidão. Por isso, é crucial refletir e não deixar esquecer estes princípios.
Apesar de volvidas quase duas décadas, mantêm-se atuais as palavras escritas em 1998 e é imperativo relembrá-las, olhando as catorze obras do Compromisso da Misericórdia à luz do século XXI. Por essa razão, e porque o mundo mudou ao longo destes anos, trazemos o livro ao encontro de novos públicos em versão eBook. Fazemos assim uso das plataformas digitais disponíveis para o tornar acessível a mais leitores e para que, conciliando o moderno com a experiência multissecular da Santa Casa, reafirmemos os valores basilares da instituição para o dia de hoje. O Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Pedro Santana Lopes
Introdução
As comemorações, em 1998, dos 500 anos de existência da Santa Casa da Mise-
ricórdia de Lisboa justificam que sobre as catorze Obras de Misericórdia que constituíram o fundamento da sua criação, pela rainha D. Leonor, se lance um olhar que, abarcando os horizontes do passado, na sua inelutável evolução, se projecte para o futuro que se abre agora para o milénio que vai começar. Para essa abordagem crítica e enriquecedora foram convidadas destacadas personalidades conhecidas pelo seu pensamento e preocupações sociais, cujo contributo se insere nesta publicação que quisemos fosse editada neste ano em que se completam cinco séculos de história para a Misericórdia de Lisboa e para a prática das Obras de Misericórdia. A todos os autores que tiveram a grande generosidade de aceitar o convite desejamos endereçar o nosso público agradecimento. Pelas particulares responsabilidades em relação à Misericórdia de Lisboa, que acrescem ainda às razões indicadas, é justo referenciar a colaboração da Senhora Ministra da Saúde e do Senhor Ministro do Trabalho e da Solidariedade. As perspectivas de cada um dos autores, a propósito do conteúdo da Obra de Misericórdia sobre que lhes foi solicitado um contributo é de um interesse imenso, reflectindo, de forma actualizada, a perenidade de princípios tão fundamentais como os do respeito pela dignidade da pessoa humana, da fraternidade e amor aos outros, inspiradores próximos das Obras de Misericórdia. 500 anos são, simultaneamente, muito tempo, tempo de várias e profundas mudanças, e um tempo curto, em termos de história da humanidade. Dir-se-á, pois, que muito mudou mas que não se realizaram ainda as transformações que certamente gostaríamos que tivessem acontecido para evitar o sofrimento e as desigualdades
e tornar as pessoas mais felizes: harmonia e paz, desenvolvimento e suficiência de recursos, mais equidade e justiça social. Completam-se, este ano, igualmente, os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que sempre somos compelidos a associar aos marcos incomensuráveis de um longo caminho de luta pelo aperfeiçoamento da Vida, caminho de que fazem, necessariamente, parte as Obras de Misericórdia. Esta outra marcante efeméride reforça o nosso empenhamento e as nossas razões para reflectirmos sobre o alcance e a renovação dessa magnífica herança de bem fazer e solidariedade que comprometeu os Irmãos da Misericórdia de Lisboa, no século XV, e continuou a irradiar através dos tempos e em muitos espaços a mesma vontade de socorrer as pessoas mais carecidas de qualquer tipo de ajuda. Por isso, este é também o momento para deixar expressa uma homenagem aos Provedores, Irmãos e Trabalhadores da Santa Casa que, ao longo de cinco séculos, souberam interpretar os anseios da sua Fundadora, adaptando à realidade de cada momento e de cada necessidade de socorro o pão, a água, a guarida, o conselho, o afecto.
A Provedora Maria do Carmo Romão
Obras de Misericórdia Sete mais sete são as quatorze.... e as outras Pe. Dr. Vítor Melícias Pe. Dr. Vítor José Melícias Lopes, sacerdote franciscano, foi jurista, professor do ensino superior e presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Anteriormente tinha sido Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, presidente da Confederação Internacional das Misericórdias e de vários organismos nacionais e internacionais das áreas da economia social, solidariedade, bombeiros, mutualismo, segurança social e saúde.
As Misericórdias ou Santas Casas, ora em celebração jubilar de cinco séculos
de existência em Portugal e no mundo lusófono, foram fundadas, expandiram-se e continuam a difundir-se pelo mundo, tendo como ideário as chamadas Obras de Misericórdia. Elas foram e são a alma, o rosto e a razão de ser das Santas Casas. Reza assim o primeiro Compromisso da Misericórdia de Lisboa, assumido no acto fundacional de 15 de Agosto de 1498 na Capela da Piedade ou da Terra Solta da Catedral olisiponense, que serviu de modelo a todos os demais compromissos e estatutos das Misericórdias que após aquela se constituíram: “E pois o fundamento desta santa confraria e irmandade he comprir as Obras de Misericórdia he necessário saber as ditas Obras que sam quatorze, a saber, sete sprituaes e sete corporaes.” E prossegue, já em texto de leitura actualizada, “As sete espirituais são estas: A primeira é ensinar os simples; A segunda é dar bom conselho a quem o pede; A terceira é castigar com caridade os que erram; A quarta é consolar os tristes desconsolados;
A quinta é perdoar a quem errou; A sexta é sofrer as injúrias com paciência; A sétima é rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. E as sete corporais são: A primeira é remir os cativos e visitar os presos; A segunda é curar os enfermos; A terceira é cobrir os nus; A quarta é dar de comer aos famintos; A quinta é dar de beber aos que têm sede; A sexta é dar pousada aos peregrinos e pobres; A sétima é enterrar os mortos.” Com pequenas adaptações de linguagem e de ordem adaptada aos tempos, os modernos Catecismos de Doutrina Cristã, designadamente os que em Portugal deram corpo ao catecismo de São Pio X mantêm a mesma clássica distinção e enumeração. De modo semelhante, o actual Catecismo da Igreja Católica publicado através da Constituição Apostólica Fidei Depositum de 11 de Outubro de 1992, no seu n.º 2447, citando São Mateus, 25, 31-46, Tobias, 4,5-11 e Sir. 17, 22, define e elenca as Obras de Misericórdia nestes termos: “As obras de misericórdia são as acções caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar, são as Obras de Misericórdia espirituais, bem como perdoar e suportar com paciência. As obras de misericórdia corporais consistem sobretudo, em dar de comer a quem tem fome, albergar quem não tem tecto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, sepultar os mortos. Entre todos estes gestos, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna e também uma prática de justiça que agrada a Deus.” Tradição antiquíssima, porventura remontando aos primeiros séculos do cristianismo e definitivamente consolidada e transmitida pela recitação catequética, a fórmula acabou por fixar-se em 7+7, número recheado de simbolismo bíblico e de capacidade mnemónica, a que deu ainda maior visibilidade a adopção heráldica de uma estrela de setes pontas e de uma rosa de sete pétalas em representação, respectivamente, das 7 Obras de Misericórdia espirituais e das 7 corporais.
Esta formulação bicentenária não exclui, obviamente, do conceito nem da enumeração outras Obras de Misericórdia. E, aliás, com esse sentido que, por exemplo, os Primeiros Elementos da Doutrina Cristã, que em Portugal divulgaram o Catecismo de São Pio X, referem que “As principais Obras de Misericórdia são catorze, sete corporais e sete espirituais”. Do mesmo modo, o já referido Catecismo da Igreja Católica preferiu uma enumeração de tipo exemplificativo. E que o número foi-se desenhando gradualmente através dos tempos, sendo que as sete corporais correspondem às seis incluídas na narração evangélica do Juízo Final (Mt. 25, 34-40), a que no século XII se acrescentou uma sétima, a de rezar por vivos e defuntos, ao passo que as sete espirituais, não aparecendo sistematicamente ordenadas nalgum texto bíblico, aparecem frequentemente citadas em qualquer dos quatro evangelhos com referência a actos ou palavras de Cristo, paradigma da misericórdia. Tomando por modelo as Obras de Cristo misericordioso para com todos tanto no foro corporal das curas e milagres, desde as bodas de Caná à multiplicação dos pães e às pescarias milagrosas, como no foro espiritual perdoando, consolando, aconselhando, mandando em paz, até perdoar ao bom ladrão que o acompanhava na hora final e aos que o crucificavam “porque não sabem o que fazem”, pregadores e catequistas foram dando forma ao septenário das Obras espirituais que, de há séculos, a catequese consagra como modelo supremo de Caridade e Misericórdia. A representação iconográfica das Obras de Misericórdia foi, através dos tempos, uma das mais eficazes formas de as Misericórdias divulgarem o seu ideário cristão e humanista e de motivarem os fiéis à prática desta superior forma de Caridade. Aliás, a figuração alegórica das Obras de Misericórdia, suporte permanente da pregação e da catequese, assumiu especial vigor após o Concílio de Trento, quando, face às críticas protestantes e às determinações conciliares, se atenuou a multiplicidade de representação do ideário da misericórdia através do simbolismo da Virgem protectora, Senhora da Misericórdia.
De facto, a partir dos finais do século XVI quando na iconografia das Misericórdias conhecia ponto alto o simbolismo da protecção divina através de Maria, Mater Omnium, Senhora do Manto, sub cuius praesidium confugimus, passa a ser mais frequente a representação da acção e do envolvimento directo na prática das Obras de Misericórdia a exemplo e modelo da Virgem, Senhora da Piedade que acolhe nos braços o filho morto ou Senhora da Visitação que, em exemplar Obra de Misericórdia, visita e ajuda sua prima Santa Isabel. Em quadros, estatuária e em amplos painéis de azulejos, particularmente expressivos, as paredes dos templos e salas de consistório, como os das Misericórdias de Faro, Tavira, Peniche, Évora, Viana do Castelo, Abrantes, Santarém e tantíssimas outras, as Obras de Misericórdia passam a desempenhar um papel prioritário no ensino e valorização da missão das Santas Casas e, sobretudo, do valor salvífico da virtude e da prática da misericórdia. Esta orientação catequética põe em destaque, como salienta o Dictionnaire de la Bible, vol. IV, que, ao lado da misericórdia divina, a misericórdia do homem, frequentemente citada nos textos bíblicos (Gén. XXI, 23; Jos. II, 14; IX, 20; II Reg. X, 2, III, 8...), honra o indigente (Prov. XIV, 31), e é mais agradável do que o sacrifício (Ose. VI, 6, Mat. IX, 13; XII, 7), pois que “praticar a misericórdia é oferecer um sacrifício agradável a Deus” (Ecl. XXXV, 4) ao passo que oferecer um sacrifício a Deus pode agradar-Lhe menos por violar o dever de caridade para com o próximo (Mat. XV, 5-6; Marc. VII, 10-13). Proclamando bem-aventurado e prometendo misericórdia a quem for misericordioso (Mc.b. V,7), o próprio Cristo eleva as Obras de Misericórdia à dignidade de virtude e preceito de primeira categoria e ordena “sede misericordiosos como vosso Pai celestial é misericordioso” (Lc. 6,36), enquanto que, por isso mesmo, São Paulo recomenda aos cristãos que tenham “entranhas de misericórdia” (Col, III, 12). Imortalizadas por artistas como Della Robbia nos medalhões do Hospital de Pistoia, por A. Pisano no Campanile de Florença (onde, aliás, nasceu em 1244 a primeira Confraria de Misericórdia), ou nas portas da Catedral de Basileia, no Hospital de Siena por Domenico di Bartolo ou no de Sevilha por Murillo, bem como nas imortais pinturas de Bruegel, Caravaggio e tantos outros, as Obras de Misericórdia foram e são tema inesgotável da mais genuinamente cristã catequese do Amor ao Próximo,
mantendo às portas do novo milénio toda a virtualidade pedagógica e toda a força consagradora dos homens para a prática do bem. De facto, o ideário das Obras de Misericórdia, bem como a visibilidade das práticas e das instituições que lhes dão corpo, funciona como poderoso fermento de uma cultura da vida e da solidariedade cada vez mais urgente e imprescindível frente à mentalidade individualista e à ética de interesses hoje dominante, funcionando igualmente como poderoso agente da pedagogia de humanismo, de solidariedade e de misericórdia que importa opor como antídoto à grave crise de valores e ao egoísmo decorrentes dos próprios fundamentos filosóficos e jurídico-políticos da organização e regulação social vigentes. As Obras de Misericórdia, que hoje como sempre se fundamentam numa opção imediata e preferencial pelos mais pobres, seja qual for o tipo e situação de pobreza, moral, espiritual ou física, em que se encontrem, têm hoje mais do que nunca de ser entendidas e praticadas não como simples atitudes de indivíduos, compassivos e bons, que procuram a própria salvação pela prática caritativa, quando não assistencialista, de actos de bem-fazer. A esmola, a caridade, a Obras de Misericórdia têm de corresponder, antes, a conteúdos e opções de vida que impliquem a partilha, a fraternidade, a solidariedade, a qual, como diz o Papa João Paulo II, ao n.º 38 da encíclica Sollicitudo Rei Socialis, “não é um sentimento de vaga compaixão ou de piedade pelos males de muitas pessoas, próximas ou afastadas, mas a determinação firme e constante de empenhar-se pelo bem comum (...) porque todos somos verdadeiramente responsáveis por todos”. Por outras palavras, as Obras de Misericórdia, sublime expressão do amor que une todos os homens e todas as criaturas em função da sua própria dignidade e da grande fraternidade universal que radica na paternidade divina, implicam sentido de co-responsabilidade e de salvação comum e um empenhamento comunitário que passa por práticas e envolvimentos, até sociais e políticos, que visem a promoção e libertação “do homem todo e de todo o homem”. Isto significa que novas expressões da Obra Santa da Misericórdia passam pela participação, em novas formas de cidadania activa, tanto pessoal como, sobretudo, institucional, em iniciativas de desenvolvimento local e global, de promoção dos direitos humanos, de denúncia de injustiças e de luta contra as novas formas de
pobreza e de exclusão (desde o desemprego, à falta de tecto e à solidão), contra as novas doenças, contra a desmoralização da vida individual e colectiva. Por isso, sem denegar nem secundarizar a sua mística perene nem a validade das suas expressões mais antigas, as Obras de Misericórdia deverão assumir, em permanente dinâmica de renovação modernizadora, as formas que mais correspondam às situações de cada tempo e lugar, pois são Obras de Amor concreto, e, por isso, realizadas em tempo oportuno e do modo mais adequado à situação a que respondem. Tornar estática, formal ou estereotipada qualquer Obra de Misericórdia seria arrancar-lhe a alma, desalmando o próprio conceito. Assim por exemplo, o gesto misericordioso, de tanto valimento social e humano em outras eras, de acompanhar os condenados ao cadafalso e os apoiar em actos de conversão e arrependimento, terá hoje seguramente mais sentido e será bem mais misericordioso se for realizado numa empenhada participação em campanhas e movimentos humanitários, como os da Amnistia Internacional e organizações similares, em favor da libertação de presos políticos, presos de consciência e outros injustiçados a merecer humanidade ou, ainda, pela participação em iniciativas e movimentos de dignificação das prisões, de humanização da justiça, de abolição de penas cruéis, mortais ou aberrantes, numa palavra, de se empenhar na promoção e defesa do sagrado direito à vida em todas as suas formas e de combater todas as práticas e filosofias atentatórias desse tão fundamental direito humano. Do mesmo modo, dar de beber a quem tem sede será certamente e antes de mais empenhar-se na causa humanitária e hoje dramaticamente universal de defesa da natureza, num envolvimento ecológico e técnico que permita uma gestão e partilha desse bem universal que é a água, cada vez mais escassa, poluída e avaramente denegada a certas regiões do mundo. Poupar e manter limpa a água em nossas casas, hotéis, campos e fábricas ou abrir poços e barragens onde ela falta é certamente uma necessária Obra de Misericórdia. E dar de comer a quem tem fome? Não terá de ser antes de mais, obviamente sem esquecer a boca escancarada do irmão de ao pé da porta, envolvermo-nos na luta
contra todas as formas de exclusão de pobreza e de fome de pão, de cultura, de saúde, de direito? Se, como já enfatizava o autorizado Relatório para o Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, para 1997, “a pobreza absoluta não é fatalidade inevitável, podendo ser erradicada de modo a passar à história como passaram já o colonialismo e a guerra nuclear”, então seguramente esta Obra de Misericórdia corporal tem outras dimensões e porventura maior urgência que a do naco de pão, do prato de sopa ou mesmo da cana de pesca para que cada um encontre o seu próprio alimento. Àquela imensa parte da humanidade que, no silêncio desesperado da fome, clama por misericórdia, a outra parte, mais abastada, não pode fechar os ouvidos e o coração, pois então urge aquilo que tão belamente definia Santo Agostinho ao escrever “se a aflição do teu irmão aflige o teu próprio coração, isso é misericórdia”. Há povos inteiros de coração apertado e boca esfomeada. É preciso dar de comer a quem tem fome. A começar por aquele que já bate à tua porta. O mesmo se diria de vestir os nus, curar os enfermos, dar pousada aos peregrinos, enterrar os mortos, tudo urgências a reclamar novas respostas e permanentes disponibilidades. O bom samaritano de hoje, o homem dives in misericordia, terá talvez de tomar um avião e ir em cooperação, quem sabe se em voluntariado benévolo, como professor, médico, enfermeiro, engenheiro ou arquitecto, missionário da grande missão humanitária, levar a Obra de Misericórdia onde o desenvolvimento não tomou ritmo, o hospital e a escola não têm lugar nem as naturais capacidades foram estimuladas. E as Obras todas ditas espirituais, as sete da enumeração clássica da estrela de sete pontas e mais as infindáveis outras exigidas pelo ritmo infrene do mundo que aí está e que aí vem com seus stresses, seus isolamentos e solidões, seus fundamentalismos e xenofobias, seus vazios devastadores da ética, dos valores e do sentido espiritual dos homens? Clamando pela misericórdia da tolerância, do pluralismo, do ecumenismo, do universalismo, não são apenas as sete mais sete mas tantas, e tão inovadoras e tão actuais que também aqui Cristo diria “sete não; setenta vezes sete” (Mt. 18,22).
Tendo assumido nas misericórdias lusófonas formas tão genialmente engenhosas como a de os irmãos da Misericórdia gozarem do privilégio de fornecerem as cordas aos condenados à forca e terem então valorizado o hábito de as manterem previamente em banho de água forte para que, partindo ao peso do executado, lhe salvassem a vida e o deixassem aos cuidados da Santa Casa ou ainda aquela bonita obrigação, consagrada estatutariamente, de os Provedores servirem de avindeiros, ou seja, de promotores de pazes e amizades, entre pessoas desavindas, as Obras de Misericórdia constituíram um dos baluartes da cultura nacional e um dos factores mais decisivos na criação do espírito de tolerância, de pluralismo e pacifismo da alma lusíada. Possam as Santas Casas da Misericórdia, estas ímpares, tão portuguesas, tão lusófonas, instituições de solidariedade e humanismo cristão, fiéis à sua vocação original e originária de se destinarem à prática de todas as Obras de misericórdia em relação a todas as pessoas e em todos os tempos e lugares responder, em criatividade, em dinamismo e em universalismo pluralista, a este repto de entrarmos o século XXI com a garantia de que as Obras de Misericórdia serão as quatorze... e as outras, ou seja, tantas e de tanta misericórdia e quantas e quanto quem quer que seja necessite.
Ensinar Os Simples Alberto Melo Alberto Eduardo da Silva e Melo, licenciado em Direito em 1963. Foi consultor de vários organismos internacionais (OCDE, Conselho da Europa, BIT, BIE, IIE, Comissão Europeia, UNESCO, etc.), professor em Universidades do Reino Unido, França e Portugal, director-geral da Educação Permanente, presidente da Associação de Desenvolvimento Local IN LOCO, etc. Foi também encarregado de Missão, Grupo de Missão para o Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos, dos ministérios da Educação e Formação de Adultos, da Educação e do Trabalho e da Solidariedade.
1. Prévio esclarecimento Cada expressão, cada palavra, terá sempre de ser interpretada dentro do contexto histórico em que se situa. Assim, nos dias de hoje, e por maioria de razão quando se perspectiva para o século XXI, vemo-nos forçados a reler os conceitos propostos à luz de enquadramentos filosóficos e teóricos contemporâneos. Nos últimos tempos, com efeito, a tónica tem sido colocada gradualmente no processo de aprender e não já no de ensinar, embora se reconheça que certos métodos, técnicas e atitudes por parte de quem ensina são fundamentais para provocar, reforçar ou estruturar actos e dinâmicas de aprendizagem. Por outro lado, o conceito de simples apresenta uma manifesta ambiguidade. Pode referir o dito simples de espírito, alguém com um relativo grau de deficiência mental, e certamente com dificuldades acrescidas de aprendizagem. Pode também apontar para um estado pessoal de depuração, de libertação das complicações com que nascemos ou que vamos adquirindo ao longo de toda (ou de grande parte) da existência. E, neste caso, o desejável seria antes aprender a ser simples, e para isso, aprender com os simples. Para efeitos deste texto, vamos entender por simples aqueles que na sociedade portuguesa de hoje não se encontram na posse dos instrumentos metodológicos, cognitivos e técnicos considerados básicos para uma plena integração pessoal, social e profissional. Ou seja, aqueles homens e aquelas mulheres abrangidos nos
documentos oficiais por designações como menos escolarizados ou menos qualificados. Claro que, se falamos de menos, entramos no campo do relativo e do quantitativo. E por isso se definem critérios, medidas, indicadores.
2. O mal português O 1.° Estudo Nacional sobre Literacia, coordenado por Ana Benavente e apresentado publicamente em Outubro de 1995, após testagem rigorosa e na base de uma amostragem significativa de 2500 pessoas, avaliou da seguinte forma a capacidade dos portugueses relativamente às competências de leitura, escrita e cálculo: • 10,3% (o correspondente a 600 000 no total da população) não passam o nível zero; • 37% (ou 2 300 000) só atingem o nível 1; • 32,1% (ou 2 000 000) não ultrapassam o nível 2. Como se admite geralmente que os níveis 3 e 4 de competências em literacia são hoje exigidos para uma participação consciente e construtiva na sociedade moderna – predominantemente centrada no código escrito – serão mais de 80% (porque o estudo não incluiu o milhão e trezentos mil com mais de 64 anos, e com percentagens certamente ainda inferiores) os portugueses excluídos, por esse facto, de um pleno exercício da cidadania em todas as suas componentes. Não entraremos aqui em pormenores, nem quanto aos métodos e instrumentos adoptados, nem quanto aos resultados, tudo isto apresentado com rigor e clareza na respectiva publicação. Ficamos, para já, com este elemento esclarecedor quanto à profunda fractura socioeducativa que existe na sociedade portuguesa, entre os 80% de simples e os 20% de mais bem equipados ou incluídos. Vão no mesmo sentido as estatísticas do INE, segundo as quais, na população activa portuguesa (cerca de 4 800 000 pessoas), um pouco mais de três milhões (62,6%) não tinham, em 1996, certificação equivalente aos nove anos de escolaridade (hoje escolaridade mínima obrigatória).
Neste domínio, o atraso relativo do nosso país é confrangedor. Tanto na comparação com os demais Estados membros da União Europeia, como até com muitos países do chamado Terceiro Mundo.
3. O bloqueio ideológico Vivemos ainda, efectivamente, à sombra de uma pesada herança ideológica que não permitiu até aos dias de hoje construir uma sólida e generalizada cultura da aprendizagem no nosso país. O saber formal e a correspondente certificação, que sempre foram considerados como bens raros, têm sido ao longo de décadas objecto de políticas elitistas ou de condicionamento, de natureza diversificada mas de efeitos equivalentes: o de empurrar para as margens largas camadas da população, sem lhes proporcionar vias e meios adequados para uma ulterior recuperação e, sobretudo, sem lhes permitir desenvolver uma motivação eficaz e uma atitude positiva para aprender até morrer. E sintomático desta posição obscurantista por parte da classe política portuguesa, durante grande parte do corrente século, o discurso de um dos ideólogos do regime de Oliveira Salazar. Escrevia Alfredo Pimenta, em 1932, no jornal A Voz: “Ensinar o povo português a ler e a escrever para tomar conhecimento das doutrinas corrosivas de panfletários sem escrúpulos, ou de facécias malcheirosas que no seu beco escuro vomita todos os dias qualquer garoto da vida airada ou das mentiras criminosas dos foliculários políticos, é inadmissível. Logo, concluo eu, para a péssima educação que possui e para a natureza da instrução que lhe vão dar, o povo português já sabe de mais.” Por certo inspirado por esta forte argumentação, o regime tinha já reduzido por esta altura o período da escolaridade mínima de quatro para três anos... E um deputado do partido único, Pinto da Mota, afirmava em 1938: “Deformar o espírito de quem aprende é a maior das desgraças; é melhor deixá-los analfabetos do que com o espírito deformado... Se nós queremos entregar esses milhão e seiscentos mil analfabetos nas mãos de qualquer professor, esses homens podem vir a transformar-se em inimigos da sociedade.” Ora pecando activamente por convicção ideológica, ora pecando passivamente por omissão, o certo é que a classe política portuguesa foi incapaz até à data de construir um sistema coerente e eficaz que incentive e permita a todos, e particularmente
aos simples, uma aprendizagem ao longo da vida. É sintomático o facto de, apesar das baixíssimas taxas de escolarização e de qualificação por parte da população adulta portuguesa, nunca nenhum governo ter assumido a Educação de Adultos como prioridade número um da sua agenda política. Educação de Adultos que, por exemplo, na Suécia é reconhecida de há muitos anos para cá como a jóia da coroa do respectivo sistema educativo. E a verdade é que a derrapagem elitista só poderá ser controlada após muitos anos de concretização de uma estratégia, coerente e intensiva, de promoção dos níveis de educação e de formação de toda a população adulta.
4. Novas perspectivas de intervenção para o próximo século? Em Julho de 1997, realizou-se em Hamburgo a 5.a Conferência Mundial da UNESCO sobre Educação de Adultos, com a participação de 1500 representantes de 130 Estados membros, de 478 organizações não-governamentais e de 237 fundações. Na Declaração de Hamburgo, pode ler-se: “A Educação de Adultos tornou-se mais que um direito; é hoje a chave para o século XXI. É simultaneamente uma consequência da cidadania activa e uma condição para a plena participação na sociedade. É um conceito dinamizador, capaz de promover o desenvolvimento ecologicamente sustentável, de fomentar a democracia, a justiça, a equidade entre sexos e o desenvolvimento científico, social e económico, e de construir um mundo onde o conflito violento seja substituído pelo diálogo e por uma cultura de paz assente na justiça. A Educação de Adultos pode moldar identidades e dar sentido à vida.” “A Educação básica para todos significa que toda a gente, independentemente da idade, tem uma oportunidade, individual ou colectivamente, para realizar as suas potencialidades. Não se trata apenas de um direito, mas também de um dever e de uma responsabilidade, para com os outros e para com a sociedade no seu todo. É essencial que o reconhecimento do direito à educação ao longo da vida se faça acompanhar por medidas que criem as condições necessárias ao exercício deste direito. Os desafios do século XXI não podem ser encarados apenas por governos, organizações ou instituições; são igualmente indispensáveis a energia,
a imaginação e o génio das pessoas e a sua plena, livre e vigorosa participação em todos os aspectos da vida.” No mesmo sentido se vem orientando a Comissão Europeia, como se depreende do Livro Branco de 1996: “Educação e Formação tornar-se-ão cada vez mais os principais veículos para o conhecimento de si mesmo, o sentimento de pertença, o aperfeiçoamento contínuo e a auto-realização. Educação e Formação são a chave para que todos passem a controlar o seu futuro e o seu próprio desenvolvimento... O futuro da União Europeia depende em grande parte da sua própria capacidade em gerir a evolução no sentido da Sociedade Educativa.” Estamos, na realidade, a viver a quarta grande mudança radical na evolução da humanidade. Após a passagem dramática do regime caça/recolecção para o de agricultura/comércio, e deste para o de indústria/produção, atravessamos neste preciso momento histórico uma nova transformação, profunda e globalizante, no sentido do regime da informação/comunicação. Esta transformação é mais célere, abrangente e universal do que as anteriores e afecta todas as pessoas e sociedades em simultâneo. Dentro de tal contexto, a Educação de Adultos – como promoção do desenvolvimento da pessoa humana em toda a sua integralidade e diversidade – é o veículo apropriado para levar as populações a compreenderem e enfrentarem tal transformação; criando, ao mesmo tempo, um contexto político e sociocultural propício para a gestão consciente e equitativa deste processo civilizacional. Presentemente, as grandes inovações ocorrem duas ou três vezes ao longo de cada geração, o que significa que a educação das crianças e jovens, por mais essencial que seja em todas as sociedades, já não pode – ao educar apenas a geração seguinte – responder aos imensos desafios da actualidade. Promover em permanência um sistema coerente e estruturado de Educação de Adultos, como via de passagem para a sociedade de conhecimento, será a missão de qualquer governo hoje empenhado em orientar a sua sociedade no sentido dos 4 C – Conhecimento, Competência, Coesão e Cidadania.
5. E em Portugal? Uma viragem de orientação política em Portugal parece também vislumbrar-se relativamente à importância a dar à Educação de Adultos. Talvez um primeiro passo tenha sido a participação, a nível governamental, na referida Conferência Internacional da UNESCO, em Julho de 1997. Logo no início de Setembro, por ocasião do Dia Mundial da Alfabetização, o ministro da Educação e a secretária de Estado da Educação e Inovação anunciaram publicamente que o executivo passaria a prestar uma atenção redobrada à situação particularmente desfavorecida da população adulta portuguesa neste domínio. Assim, nesse mesmo mês, foi nomeado um Grupo de Trabalho para elaboração de um Documento Estratégico para o Desenvolvimento da Educação de Adultos. Este documento foi apresentado no final do mesmo ano e ulteriormente aprovado e adoptado, tanto pelo Ministério da Educação como pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Este processo conduziu à criação, por Resolução do Conselho de Ministros de Julho de 1998, de um Grupo de Missão para o Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos, considerado o embrião da instância nacional especializada neste domínio, a constituir no primeiro trimestre de 1999. A grande finalidade é de preparar o país para a sua gradual transformação numa Sociedade de Conhecimento, procurando em simultâneo responder às aspirações de cada cidadão e às exigências e constrangimentos de uma cultura e de uma economia cada vez mais mundializadas. Será necessário, em primeiro lugar, sensibilizar toda a população adulta para a necessidade, e até para a alegria, de se aprender até morrer, incentivando e dando voz a uma procura crescente e exigente de actividades educativas e formativas. Para isso, será igualmente imprescindível que a oferta destas actividades seja cada vez mais ajustada e acessível ao público adulto. Grandes reformas irão impor-se, a breve prazo, tanto pela reestruturação de actividades existentes, como pelo lançamento de novas estruturas, processos, conteúdos e instrumentos verdadeiramente específicos para a população adulta.
Deverão formalizar-se parcerias territoriais para a Educação e Formação de Adultos, com participação de autarquias, escolas, centros de formação, outros serviços públicos, associações, empresas, IPSS, etc., que – de forma descentralizada e articulada – passem a elaborar, negociar e gerir os respectivos planos locais de actividade nestes domínios. Isto porque a responsabilidade pela adesão da população portuguesa a uma cultura do saber mais não é exclusiva de um ministério, ou de um governo, mas tem de recair sobre toda a nossa sociedade. Há que conceber e abrir, por todo o país, espaços adequados, e com pessoal preparado, para a motivação, o acolhimento, a informação, a orientação e o acompanhamento dos vários milhões de pessoas que constituem o público potencial deste sector. Dando certamente forte prioridade aos mais desfavorecidos, e portanto, mais indiferentes, relativamente à concretização das suas capacidades e à aquisição dos necessários conhecimentos e competências. Como será também premente reconhecer devidamente, e até validar oficialmente, as muitas competências e os muitos saberes que, mesmo fora da escola, os adultos têm adquirido, de forma informal, em casa, no trabalho, na intervenção cívica, na criação artística... Necessário será igualmente, e dado que estamos perante um problema que se mede por milhões, desenhar e pôr em prática processos de aprendizagem que combinem, de maneira eficaz e atraente, formas de educação e formação à distância com apoio presencial de proximidade. Através destas iniciativas se espera ver, no nosso país, um Estado e uma sociedade civil a assumirem finalmente a missão de criar e promover em permanência o contexto cultural mais favorável à realização plena e permanente das capacidades cívicas, técnicas e cognitivas de todos os seus cidadãos. Porque é um facto que, perante as mutações sociais e tecnológicas em curso ou iminentes, qualquer que seja a nossa idade, a nossa experiência ou as nossas qualificações, hoje em dia – face aos conhecimentos e competências necessários à compreensão e ao controlo do nosso quotidiano – somos todos... simples.
Dar bom conselho a quem o pede Maria Barroso Soares Maria de Jesus Simões Barroso Soares, natural de Olhão, casada com o Dr. Mário Soares, tem dois filhos e três netos. Licenciada em Histórico-Filosóficas, com o curso de arte dramática do Conservatório Nacional, foi pedagoga, deputada, fundadora do Partido Socialista, Presidente da Pro Dignitate e da Cruz Vermelha Portuguesa.
As Obras de Misericórdia são uma verdadeira síntese das virtudes cristãs expressas no Evangelho.
Através das metáforas e parábolas que ilustram os textos sagrados, as palavras e as acções de Jesus chegam-nos carregadas de um sentido profundo que dá fundamento à nossa fé e que nos indica um caminho de actuação na relação com o nosso semelhante. Em metade delas – são catorze, divididas em dois grupos que têm que ver com o espírito e com o corpo, que são portanto de ordem material e espiritual – se preconizam acções concretas para socorrer os que têm as necessidades mais rudimentares e essenciais; as outras sete, isto é, a outra metade, sugerem-nos atitudes de grande compaixão para com o nosso próximo, disposições de alma que nos inspirem uma actuação permanente em favor da humanidade que sofre. É todo um programa de vida, uma sugestão de comportamentos inspirados na própria acção de Jesus Cristo, na sua breve passagem pela terra.
Estar em sociedade não é apenas estar em contacto, estar próximo um do outro, é muito mais do que isso – é qualquer coisa de muito mais complexo, uma exigência de solidariedade com o nosso semelhante, de interesse pelo que se passa com ele. Daí que seja necessário que haja na sociedade uma entreajuda, uma preocupação com a sorte do nosso irmão que não pode sofrer ao nosso lado sem que sintamos a responsabilidade que nos cabe nesse sofrimento. Toda a filosofia cristã tem a sua tradução, na prática, nestas catorze máximas que explicitam o grande mandamento:
Entre elas temos a que nos diz: dá bom conselho a quem o pede. E é dessa que devo falar. Não há dúvida que o conselho representa sempre um gesto de solidariedade, muitas vezes de afecto, entre quem o pede e quem o dá. Aliás, mesmo sem ser pedido ele pode dar-se, cuidando alguém ajudar o seu próximo em circunstância difícil, em que haja desconhecimento, hesitação ou temor de enfrentar uma nova situação. Muitas vezes é um gesto de amizade, de encorajamento a alguém que hesita em tomar uma decisão. O conselho é sempre um dom e um dom gratuito, isto é, que nada pede em troca: alguém que dá, dando-se. Sem esperar ser retribuído. Dar um conselho a um filho que no-lo pede porque não sabe, porque receia aventurar-se no desconhecido para ele que é o mundo em que vive, porque sente necessidade de ser orientado, porque precisa de distinguir o que é certo do que é errado, o bem do mal – é qualquer coisa de muito importante. Para um educador o conselho é também fundamental. Na sua função de formar, de educar a criança e o jovem, de dotar a pessoa – como dizia Séneca – de uma sólida formação moral, que a faça avançar na aquisição da ciência do bem e do mal, ele terá de dar conselhos.
É uma maneira de dar à criança e aos jovens os meios para com lucidez ver o que deve fazer e força para o querer executar. É evidente que queremos, com o conselho, apenas orientar, ajudar a encontrar um caminho, não limitando, obviamente, a liberdade tão necessária, imprescindível na educação. Orientar sim, mas deixar a liberdade de opção da escolha. Mas a nossa palavra pode e deve ajudar a criar o sentido da responsabilidade também imprescindível nessa escolha e na formação do futuro cidadão. Pedindo-o a criança ou não, o nosso conselho deve dar-se porque tem de a apoiar, de a seguir e orientar. Mas não se trata só dos jovens. Num mundo tão difícil, tão duro, como é este em que se vive hoje, as pessoas sentem grandes inquietações, grandes incertezas e angústias e sobretudo uma insegurança enorme perante os grandes problemas e, portanto, desafios com que esse mundo as confronta. Como participar nas acções que ajudem o próximo? Como demonstrar-lhe a nossa solidariedade? Que palavra ou palavras encontrar para os ajudar a orientar-se? O conselho, a palavra afectuosa, podem ser grande apoio e estímulo, esclarecimento e conforto. Perto, ele chega com o calor e emoção da nossa voz e é talvez mais eficaz. Mais longe, tendo em conta o avanço tecnológico que conseguimos, ele pode lançar-se na distância e chegar, nos lugares mais longínquos, a seres à míngua de apoio e de saberes. Os meios de comunicação do longe fazem perto e podem hoje atingir muitos seres humanos, simultaneamente. Nesse caso, o conselho em forma de mensagem que um programa televisivo veicula pode ter um alcance extraordinário, levando o conhecimento onde ele não existe.
Uma maneira prática também de viver a Obra de Misericórdia de dar bom conselho (quer no-lo peçam, quer não) – neste virar da história da entrada no terceiro milénio – será aconselhar a que todos conheçam os seus direitos, os direitos humanos consagrados na Declaração Universal cujo quinquagésimo aniversário festejamos este ano. Sem esquecer, evidentemente, de aconselhar também a ter sempre acesa e desperta a consciência dos deveres. Contribuiremos com esses conselhos para formar cidadãos generosos, fraternos, tolerantes e solidários. E teremos então um mundo melhor!
Castigar com caridade os que erram Armando Gomes Leandro Armando Acácio Gomes Leandro, natural de Tabuaço, licenciado em Direito pela Faculdade da Universidade de Coimbra, é juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e presidente da Associação Portuguesa para o Direito das Pessoas e da Família.
1. Neste nosso tempo, pela aceleração que o caracteriza, a vivência do presente
implica uma constante perspectiva de futuro, sob pena de sofrer um contínuo défice de actualidade, comprometedor da indispensável ligação ao porvir sem descontinuidades graves. Mas esta vivência do presente, para ser tanto quanto possível segura e criativa, correspondendo a um processo exigente de maturidade pessoal e comunitária, tem de radicar-se no passado. Passado a interpretar e a sentir à luz de uma história serena, objectiva, lúcida, assumida simultaneamente com a humildade e o são orgulho que os aspectos negativos e positivos de uma evolução sempre despertam, podendo uns e outros ser fonte de reflexão crítica, de motivação, de responsabilidade e de estímulo. Por isso nos parece muito feliz a ideia de uma reflexão sobre a actualidade e o futuro das Obras de Misericórdia, que constituíram a razão de ser, a inspiração e a fonte perene de um projecto luminoso que, radicando num passado de prestígio e num presente progressivamente conseguido, tem virtualidades para responder às mutações que lhe exige um futuro simultaneamente desafiante e responsabilizador.
2. No que respeita à Obra de Misericórdia castigar com caridade os que erram abre-se, no presente e no futuro, um mundo de interpelações e dificuldades, mas também de imensas possibilidades e esperanças. Os projectos para o desenvolvimento dinâmico e dialógico do conteúdo espiritual e conceitual desta Obra de Misericórdia e o reflexo efectivo desse conteúdo, assim aprofundado e enriquecido, na vida das pessoas em situação avaliada em função da complexidade e diversidade dos circunstancialismos socioculturais e económicos, podem abrir perspectivas muito ricas de intervenção social e cultural com efeitos pessoais e comunitários bastante benéficos. Efeitos estes em íntima relação de interdependência, complementaridade e potenciação com os de outras Obras de Misericórdia. 3. O tema poderia ser abordado a várias luzes, mas as naturais limitações inerentes a este breve comentário aconselham a escolher um dos aspectos expressivos por que pode ser encarado. Optamos por aquele que permite realçar o evidente relacionamento desta Obra de Misericórdia com a questão, de primordial importância no presente e no futuro, dos Direitos Humanos. Esta opção procura também corresponder simbolicamente à feliz contemporaneidade da celebração dos 500 anos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com a do 50.° aniversário da Declaração dos Direitos Humanos. A Obra de Misericórdia castigar com caridade os que erram, formulada há séculos, envolve na simplicidade da sua afirmação um sentido de humanismo que bem pode ser motivador da busca do correspondente conteúdo na sociedade dos nossos dias, à luz da filosofia, dos princípios e dos preceitos dos Direitos Humanos, na sua contemporânea expressão cultural, social, política e jurídica. Há um elemento que desde logo liga o fundamento dessa Obra de Misericórdia à concepção actual dos Direitos Humanos. É a questão dos valores em causa. Naturalmente que o conteúdo e a expressão desses valores eram, na época da sua formulação, muito diferentes dos de hoje, concebidos estes à luz dos Direitos
Humanos tal como são actualmente compreendidos. Mas há uma raiz comum que importa considerar na linha que atrás defendemos das potencialidades de uma reflexão sobre o presente e o futuro que considere o passado no seu significado e na sua evolução. Analisando muito sumariamente: Na formulação castigar com caridade os que erram há dois elementos: • O reconhecimento de que há erros (ofensas a valores) que importa castigar. • A afirmação explícita de que a acção de castigar tem de ser exercida com caridade, inclinando-nos a interpretar esta expressão como envolvendo o entendimento implícito, mais ou menos consciencializado, de que só a caridade assegura a justiça e a eficácia do castigo da pessoa que erra por outra em representação do sistema societário. Procurando agora, ainda que de forma perfunctória e necessariamente imperfeita, fazer a correspondência com o nosso tempo, constatamos: • Continua a haver valores cuja ofensa implica reacções sancionatórias por parte de sistema específico da sociedade organizada. • A forma de conceber as reacções a essas violações de valores, na sua natureza, espécie e condições de aplicação e de execução, tem em consideração o valor englobante e inspirador da dignidade humana, ínsita na exigência de caridade da Obra de Misericórdia e hoje fundamento essencial da filosofia dos Direitos Humanos. Mas, naturalmente, essa correspondência básica não exclui diferenças muito pronunciadas, a determinar exigências muito diversas das expressões actuais e futuras dessa Obra de Misericórdia. 4.Centrando a nossa atenção – de harmonia com o objectivo e os limites deste comentário – no condicionalismo actual, tendo embora presente a realidade que o precedeu, vamos limitarmo-nos a referir muito sumariamente os traços essenciais da intervenção penal, hoje, em Portugal, na medida em que essa intervenção encerra
os aspectos mais expressivos inerentes à referida Obra de Misericórdia castigar com caridade os que erram. Seguidamente, a partir dessa realidade actual, tentaremos pensar, de forma prospectiva, necessariamente breve, algumas expressões que essa Obra de Misericórdia parece poder assumir no presente e no futuro próximo em resposta às interpelações decorrentes dos novos princípios e realidades. 5. Os fins essenciais da intervenção penal nos nossos dias, reflectidos na afirmação das finalidades das penas e medidas de segurança, são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40.° do Código Penal). Os bens jurídicos a proteger penalmente são os correspondentes a valores pessoais e comunitários essenciais, como tal reconhecidos pela Constituição da República Portuguesa (CRP), estatuto fundamental da vida em sociedade num Estado de Direito democrático, fortemente influenciado pelos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e seus desenvolvimentos. Conforme os princípios decorrentes desde logo da CRP (cf. arts.º 18.° e 27.° a 32.°), a protecção penal desses bens jurídicos deve ser uma última ratio, isto é, só é legítimo optar por essa protecção quando outros meios, designadamente de natureza civil e administrativa, menos restritivos dos direitos, liberdades e garantias do indivíduo, se mostrarem insuficientes. Condiciona-se assim a intervenção penal a estritos requisitos de necessidade e subsidiariedade, para além, naturalmente, do requisito de legalidade. É fundamento essencial da intervenção penal o princípio da culpa, entendido no duplo aspecto de que em caso algum pode haver pena sem culpa e de que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Este princípio decorre da inviolabilidade da dignidade pessoal, que é essencial à ideia de Estado de Direito democrático, e não já, como tradicionalmente sucedia, da concepção retributiva da pena, isto é, da ideia da pena como um castigo, uma expiação, a imposição de um mal em correspondência ao mal do crime, por imperativo de justiça ou por razões lógicas, dialécticas, morais, estéticas, religiosas e outras, de carácter absoluto.
No actual sistema, de harmonia com o paradigma dominante nos Estados democráticos modernos, às penas são atribuídas finalidades já não retributivas, mas antes de prevenção geral positiva ou de integração e de prevenção especial de socialização. As finalidades de prevenção geral, que são prevalentes, consistem em evitar, pela aplicação das penas, a prática de crimes pela generalidade das pessoas, não mediante pura intimidação, mas pelo reforço, resultante da aplicação da pena, da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança na validade da norma jurídica violada. A finalidade de prevenção especial de socialização traduz-se no intento de, respeitadas as exigências de prevenção geral e o limite inultrapassável da culpa, promover a socialização do indivíduo, a sua reinserção na comunidade, proporcionando-lhe, no respeito pela sua liberdade interior, as condições necessárias ao prosseguimento no futuro de uma vida social respeitadora dos valores essenciais traduzidos nos bens jurídicos pretendidos proteger pela tipificação dos crimes. Nisto consiste, no essencial, o princípio da socialidade ou solidariedade (do Estado e da sociedade) para com o condenado1. De entre os demais princípios do sistema penal a ter também em conta na perspectiva do aludido objectivo deste comentário, ressaltam ainda: — o princípio da preferência pelas reacções penais não detentivas face às detentivas, de que resultam, em consequência dos princípios atrás referidos da necessidade e subsidiariedade da intervenção penal: • o carácter de ultima ratio da pena de prisão, só justificada em condições de estrita legalidade, necessidade e proporcionalidade, isto é, a pena de prisão só é admissível quando penas não detentivas – como a multa, a suspensão da execução da pena de prisão, a prestação de trabalho a favor da comunidade – não se mostrarem, no caso concreto, suficientes para realizarem as finalidades da punição atrás referidas; • a obrigação jurídica para o Estado de criar um conjunto o mais alargado possível de medidas alternativas à prisão, postas à disposição do julgador, Cf., DIAS, Figueiredo, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/ Editorial Notícias, 1993, pp. 70 e ss.
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e o dever jurídico para o Estado (e ético-social para a comunidade civil e o cidadão, em cooperação com aquele) de criar as condições concretas necessárias à efectivação positiva dessas medidas não detentivas, emprestando-lhes, quando indicado, o carácter de prestação activa em benefício da comunidade e orientando-as de forma decisiva para a socialização do delinquente. — o princípio vitimológico que, no essencial, se caracteriza pela colocação da vítima, a par do Estado e do delinquente, como um factor fundamental em política criminal. Por força deste princípio, o discurso penal, que antes se baseava exclusiva ou predominantemente no diálogo entre o Estado e o delinquente, passou a assumir um carácter triangular, pela inclusão da vítima. Esta é hoje destinatário directo da política criminal, com o estatuto de sujeito de processo penal, através da possibilidade de se constituir assistente, o que lhe permite uma intervenção com influência conformadora da decisão final. E lhe facilita toda uma actividade tendente a efectivar um importante factor de reparação e de recuperação, que consiste na indemnização pelos danos que para ela resultam do crime2. 6. Esta nova concepção da intervenção penal pressupõe, como resulta implicitamente do que fica exposto, fundamentos de legitimação muito distintos dos correspondentes às concepções dominantes quando dos compromissos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, desde 1500, contêm a explicitação das Obras de Misericórdia3. Essa legitimação já não é hoje perspectivada como provinda de qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, mas somente de critérios de necessidade social, referentes aos valores essenciais consagrados na Constituição da República, numa visão pluralista e democrática, muito influenciada pela filosofia e princípios actuais dos direitos humanos. Esta diferença poderia parecer implicar um fosso axiológico tão pronunciado relativamente às concepções dominantes quando da formulação das Obras de Misericórdia que tornasse impossível pensar estas à luz do nosso tempo. Cf., DIAS, Figueiredo, ob. cit., pp. 75 e ss. Cf., SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Quinhentos Anos de História – A Misericórdia de Lisboa.
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Pensamos porém que assim não é. A nova concepção da intervenção penal não consiste numa mera tecnologia ou engenharia social4. O seu carácter teleológico, funcional e racional não afasta, antes pressupõe, um forte conteúdo axiológico, como resulta desde logo dos princípios atrás enunciados, designadamente o da culpa, na sua dupla vertente, o da prevalência das reacções não detentivas, o da solidariedade e o vitimológico, bem representativos de uma visão equilibradamente atenta não só às exigências comunitárias mas também às pessoas do delinquente e da vítima, numa perspectiva de íntima interacção entre os elementos da referida relação triangular. Na base desta forte componente axiológica encontra-se o respeito pela irrecusável e absoluta dignidade da pessoa, fundamento essencial do Estado de Direito. É este fundamento nuclear da nova concepção que a liga axiologicamente à que inspirou as Obras de Misericórdia, podendo essa relação ser muito enriquecida no desenvolvimento actual e futuro dessas Obras. Na perspectiva da ligação entre as duas concepções, é de salientar que, conforme acentua Veríssimo Serrão, tendo a Misericórdia uma forte componente religiosa e “sendo, por isso, uma forma de emanação e prática do sentimento cristão, encontra-se também na génese da Misericórdia a certeza da unidade do género humano que abrange todas as criaturas, sem ter em conta as diferenças de raça, de língua e de religião”5.
7. Abordaremos agora, para finalizar, algumas expressões que a Obra de Misericórdia castigar com caridade os que erram pode assumir no presente e no futuro. Fá-lo-emos, como atrás dissemos, em referência à concepção do nosso tempo sobre a intervenção penal, que deixámos esquematizada.
Cf., DIAS, Figueiredo, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, Janeiro Março 1991, pp. 18 e ss. 5 Ob. cit., p. 10. 4
— Uma dessas expressões é o empenhamento na prevenção primária da criminalidade. Empenhamento é traduzir-se em diversos aspectos, de que se salientam a título de exemplo: • actividades tendentes à interiorização cultural e ético-jurídica dos valores – cuja ofensa determina a incriminação – e à compreensão dos princípios e sentido da intervenção penal do nosso tempo; • incremento das acções visando superar ou atenuar situações de exclusão ou forte precariedade familiar, socioeconómica e cultural, acentuadamente criminógenas; • colaboração lúcida e generosa na criação e desenvolvimento de intervenções informais, não judiciárias, como, por exemplo, as das Comissões de Protecção de Menores e de Mediação. Esta nova perspectiva corresponde a exigências actuais de descentralização e de uma verdadeira participação dos membros da comunidade nos diversos subsistemas de intervenção, numa realização efectiva de tarefas político-criminais, embora integradas no sistema global de justiça. — Nos domínios da prevenção secundária – resposta aos problemas da criminalidade concretizada em cada caso – e da prevenção terciária – actividades visando a reintegração social do delinquente, a recuperação da vítima e a reconstituição do tecido social afectado pela violação da norma, através da manutenção ou recuperação do sentimento de confiança na validade dessa norma violada – abre-se um leque amplo e matizado de acções em harmonia com o espírito actual da Obra de Misericórdia objecto deste comentário. É alargado o campo das instituições comunitárias com papel significativo nessas intervenções, papel que naturalmente cabe também ao próprio cidadão. Dúvidas porém não ficam da função relevantíssima que neste domínio cabe às prestigiadas e valiosas instituições que estão na origem da explicitação das Obras de Misericórdia e seu desenvolvimento quotidiano, ao nível da concepção e da acção. Salientam-se entre elas a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e as demais Misericórdias do país que foram dando corpo ao ideal de solidariedade simbolizado pela iniciativa da rainha D. Leonor.
De entre as muitas intervenções possíveis, nestes domínios da prevenção secundária e terciária, seleccionámos, de forma necessariamente apenas enunciativa, algumas que nos parecem mais paradigmáticas no desenvolvimento actualizado da Obra de Misericórdia Castigar com caridade os que erram: • Parece importante a colaboração dessas instituições para que culturalmente seja cada vez mais assumido pela comunidade em geral: a) que a intervenção penal, para ser justificada, só pode assumir-se em termos de justiça e não de vingança, impondo-se um corte nítido daquela com esta; b) q ue esse separar a justiça da vingança exige uma estrutura processual harmónica com os valores de um Estado de Direito democrático, em que avultam o princípio do irrenunciável respeito pela eminente dignidade da pessoa humana6; c) q ue há um dever generalizado de cooperação no debate, que o processo essencialmente constitui, para alcançar aquelas finalidades, em ordem a que o juízo – um terceiro independente e imparcial, garante do afastamento entre a violência e a justiça – possa dizer direito de forma que resolva justamente o caso concreto e contribua para a paz social7; d) q ue há naturais limitações à descoberta da verdade, resultantes de direitos fundamentais consagrados constitucionalmente; que é imperioso aceitar e respeitar esses direitos, sem prejuízo do esforço solidário para uma cada vez maior eficácia na prossecução dos objectivos político-criminais, esforço esse Princípio este que é limite e inspiração do esforço de concordância prática das finalidades primárias do processo penal, nem sempre integralmente harmonizáveis: a) a realização da justiça e a descoberta da verdade, como forma necessária de conferir efectividade à função sancionatória do Estado; b) a protecção, designadamente face ao Estado, dos direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente do arguido e da vítima; c) o restabelecimento da paz jurídica comunitária que a prática do crime põe em causa, pelo reforço do sentimento de confiança na validade da norma violada. 7 Debate este que, para assegurar à palavra a sua função essencial, tem de respeitar o contraditório e a igualdade de armas entre os sujeitos processuais, nomeadamente o arguido e a vítima constituída assistente, ambos assumindo-se como verdadeiros actores do processo, o que é expressão altamente significativa da réplica da justiça à violência. Cf. Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, pp. 171 e ss. 6
a desenvolver com a convicção profunda de que só no respeito por aqueles direitos essa eficácia é real.
— Para além desta actuação ao nível pedagógico, a acção daquelas instituições apresenta-se como de enorme valia no complexo das diversas actividades exigidas ao Estado, em colaboração com a comunidade civil, para que se alcancem perante os destinatários essenciais da sanção8 – a ordem jurídica, a vítima, a opinião pública e o condenado – os efeitos com ela pretendidos. Assim: • Relativamente à ordem jurídica, perturbada pelo crime, a sanção visa restabelecer essa ordem, o direito. As referidas Instituições podem contribuir com a sua autoridade ética para um debate crítico equilibrado em que esse efeito reparador seja entendido em harmonia com os valores ético-jurídicos em causa9 e não em função de concepções que explicita ou implicitamente negam aqueles valores ou de factores meramente emotivos, em que avultam os sentimentos de medo e insegurança, quando irracionais. • No que respeita à vítima, a sanção tem um significado importante. O dizer o direito no caso implica o reconhecimento público da vítima como ofendido, elemento fundamental para o indispensável trabalho de luto, catarse necessária à reparação da ferida anímica sofrida, processo facilitador da recuperação de uma auto-estima tocada pela ofensa.
Neste aspecto, a que se liga a reparação pelos danos sofridos, a intervenção das instituições em causa é fundamental para a filosofia e eficácia das actividades de apoio à vítima, designadamente as que podem ser canalizadas através de associações constituídas para o efeito, como acontece com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Cf. RICOEUR, Paul, ob. citada, pp. 170 e ss. Valores esses assumidos para uma vivência democrática, tendente ao exercício efectivo de cidadania ao alcance de todos.
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• No que concerne ao condenado, a sanção também lhe é devida, como reconhecimento da sua natureza de ser racional e responsável, capaz de, pela aceitação da pena ou pelo menos pela sua compreensão, voltar a ser elemento de corpo inteiro da comunidade, cumprida que seja a pena.
Neste campo, as virtualidades da intervenção daquelas instituições são imensas: • desde logo na cooperação para a disponibilidade e execução eficaz das medidas não detentivas, com as enormes potencialidades que encerram de reparação da vítima e da comunidade e da reinserção positiva do arguido, em especial do jovem que delinquiu; • mas também essa cooperação é muito relevante para que se diminuam cada vez mais os efeitos segregadores da prisão, reforçando nesta aquilo que Antoine Garapon10 designou como o conceito de continuidade do espaço público, ou seja, a maior inserção possível do espaço carceral no interior da comunidade; • acresce a importância dessa cooperação para o regresso do condenado a prisão a uma vida em liberdade conforme ao direito e propiciadora de uma realização, ao nível pessoal, familiar, profissional e comunitário, em harmonia com a sua dignidade de pessoa e cidadão. • Relativamente à opinião pública:
A sanção é-lhe também devida, em resposta à indignação causada pela injustiça derivada do mal resultante da prática do crime. Mas, para que os fins legítimos da sanção sejam prosseguidos, é indispensável que essa indignação se afaste decisivamente do sentimento e desejo de vingança. Daí que a publicitação do processo e da sanção, designadamente pelos media, deve ser equilibrada e pedagógica, apontando no sentido de uma educação para a equidade (na fórmula de Paul Ricoeur11), que apelando à consideração de todos os
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Cf. Les Gardiens des Promesses – Justice et Démocratie, p. 220. Cf. RICOEUR, Paul, obra citada, p. 177.
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valores e circunstâncias em causa, depure o desejo vindicativo, incompatível com uma justiça à escala da dignidade humana. Enquadra-se aqui a necessária pedagogia relativa à questão da duração das penas, por forma a levar à interiorização generalizada do que é pressuposto do nosso sistema constitucional-penal, em conformidade com sólidos fundamentos criminológicos: a constatação de que, mais do que a duração das penas, os efeitos preventivos derivam essencialmente da rapidez e eficácia com que o crime é descoberto e punido; e ainda a verificação de que, para além de certa duração, a execução da pena de prisão equivale a um processo de dessocialização acelerada, prejudicial ou mesmo impeditiva de uma reinserção do condenado; reinserção esta que, além de exigida pelo respeito à dignidade da pessoa, é fundamental à prossecução dos aludidos fins de prevenção geral. As instituições que vimos referindo, pelo prestígio dos seus valores e intervenções e sequente capacidade de influenciar a opinião pública, têm neste domínio uma particular responsabilidade e boas possibilidades de actuação para que, também neste ponto, a caridade no castigo aos que erram, manifestação do ideal da Obra de Misericórdia de que são depositários, tenha a expressão que os valores e circunstâncias do tempo de hoje reclamam. O que fica exposto, embora de forma muito sumária, parece confirmar a bondade do pensamento dos autores da iniciativa do comentário às Obras de Misericórdia, neste 500.° aniversário da prestigiada Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A reflexão sobre essas Obras e a sua adaptabilidade ao mundo extremamente mutante e complexo em que vivemos constitui um bom desafio ao exercício de uma cidadania activa, num sentido simultaneamente de responsabilidade e de solidariedade. Aquela é fundamento da dignidade da pessoa; esta é expressão do inelutável destino do Sujeito, que só pode realizar-se no Outro e para o Outro, como poeticamente tão bem exprimiu Drummond de Andrade – Eu sou o Outro que em mim procura o seu destino. A caridade de hoje parece ser assim, afinal, o exercício dessa cidadania activa, só realizável pela capacidade de contribuir efectivamente por vários meios – em que a compaixão humana, traduzida no esforço para mitigar o sofrimento alheio, continua
a ter lugar – para que o Outro, mesmo o que erra, aceda à cidade, responsavelmente e com capacidade de realização pessoal e familiar e de válida cooperação comunitária.
Consolar os tristes desconsolados João Seabra Diniz João Seabra Diniz pertence ao quadro de pessoal da SCML, onde trabalhou no antigo Serviço de Acção Social e no Serviço de Saúde. Foi director de serviços no Serviço de Acção Social. Actualmente representa a Misericórdia de Lisboa Projecto de Apoio à Família e à Criança, de que é coordenador nacional. É psicanalista e membro da Associação Psicanalítica Internacional.
Uma Obra de Misericórdia traduz o movimento do coração que se compadece.
E tratando-se do coração, está implícita uma componente de afecto a que será razoável chamar amor. Falar assim parecerá uma forma demasiadamente emocional de começar um comentário deste género. E se o objectivo é falar da actualidade das Obras de Misericórdia, poderá fazer temer que se irá continuar a falar como antigamente. Usando a mesma velha linguagem. E no entanto, o que acabo de dizer é o que está contido no significado das palavras. Poderá dizer-se que, etimologicamente, misericórdia é a compaixão do coração. São estas as palavras da língua que temos, e é ela que sustenta e transmite a nossa cultura. É bom que tenhamos consciência de que a actualização não pode fazer-se com o sacrifício dos elementos de ordem simbólica e emocional, que continuam a ser decisivos nas relações entre as pessoas. A qualidade do afecto continua a ser indispensável para a saúde mental e para o bem-estar das pessoas. Faz parte essencial do que é humano. As formas de exprimir esse afecto é que mudam com o tempo e com o que em cada época se considera
de bom gosto. E é também verdade que nem todas as épocas lhe deram a mesma importância. Voltando à ideia de coração, com os seus conteúdos emocionais, contida na palavra misericórdia, será oportuno lembrar que a expressão tão frequente saber de cor, significa saber com o coração. Quer dizer que aquilo a que estão ligados afectos, ou seja, aquilo que se sabe com o coração está sempre disponível na memória, não esquece. Em francês e em inglês existem as expressões que o dizem directamente: par coeur e by heart. Será que consolar os tristes desconsolados é uma preocupação desactualizada? Não será, por exemplo, preferível falar em tratar os deprimidos? Sem minimizar a importância da depressão como patologia a tratar, e mesmo sem ignorar as suas possíveis ligações com o assunto que aqui se apresenta, considero que não deve esquecer-se o peso decisivo da presença ou da ausência do outro, ou melhor, de um outro significativo, no sofrimento depressivo e na vivência da tristeza. Consolar é ir ter com alguém que está só. O que está só passa a estar com alguém. O triste desconsolado é o que não tem a companhia de alguém cuja presença o consola. Falar em tratar os deprimidos pode conduzir a pôr à distância a relação com a sua dinâmica própria. Remete-nos, antes de mais, para a ideia de um estado de doença, partindo de uma classificação diagnóstica – a depressão. Ora creio que a grande actualidade desta obra de misericórdia está na revalorização, que com ela pode e deve fazer-se, da dimensão relacional e mental da observação e compreensão do homem e da sociedade. As teorias que a partir daí se podem construir deverão integrar também as consequências dessa revalorização. A compreensão profunda da dinâmica afectiva das relações humanas é um elemento fundamental do problema que nos ocupa e que muitas vezes tende a ser esquecido. Por isso, creio prestar um serviço lembrando aqui o peso decisivo do afecto em tudo quanto os homens constroem e em tudo o que possa considerar-se humano. Dizendo de outro modo, creio que nada de humano poderá compreender-se em profundidade, se não forem tidos em conta os elementos emocionais e afectivos que o originaram e sustentam.
Em termos das relações sociais é limitativo olhar para uma pessoa que está triste e dizer apenas que está deprimida. Isso poderá levar a pensar que basta fornecer o medicamento adequado para termos feito tudo o que era necessário fazer. É um facto que cada vez percebemos melhor as ligações que existem entre os estados mentais e o funcionamento somático. Mas tal não pode ser visto só por um lado, porque, se veio possibilitar um melhor uso do medicamento, também veio sublinhar o aspecto mental do sofrimento e a sua componente interpessoal. Na nossa sociedade organizada e computadorizada, onde tudo se contabiliza e traduz em índices quantificáveis, parece ter-se instalado uma tendência a envergonharmo-nos dos sentimentos, como se se tratasse de uma fraqueza inconfessável, imprópria de pessoas evoluídas. Neste novo contexto, parece muito mais socialmente correcto dizer que se está deprimido do que dizer-se que se está triste. Parece que não é de bom gosto. Mas afinal, isso traduz apenas o embaraço das pessoas, que não sabem o que fazer com os afectos. No entanto, entre considerarmos a depressão e considerarmos a tristeza, as diferenças podem ser grandes, de vários pontos de vista. O deprimido, para receber tratamento, terá de recorrer a um profissional. O triste, poderá ser consolado por quem tenha disponibilidade para isso. A divisão das catorze Obras de Misericórdia em sete espirituais e sete corporais parece partir de um dualismo entre espírito e corpo, que hoje teremos alguma dificuldade em aceitar. Pessoalmente, penso que pode ser vista como uma representação metafórica que traduz a percepção aguda da importância de não esquecer, nem minimizar, o peso da componente mental da pessoa humana. Numa época em que, entusiasmados pelos progressos das ciências neurológicas, alguns poderão pensar que o estudo do cérebro fará perder o interesse ao estudo da mente, esta preocupação integradora dos vários aspectos da experiência mantém toda a sua actualidade. Se se trata de responder às necessidades e aliviar os sofrimentos das pessoas, continua a ter todo o cabimento preocuparmo-nos também com a dor mental. Como alguém que há muitos anos se dedica ao esforço de compreender a dinâmica psicológica de crianças e adultos, não tenho qualquer dúvida em afirmar que a dor
mental causada pelas carências, deficiências e acidentes das relações humanas continua a constituir uma das grandes áreas de sofrimento das pessoas. Para este sofrimento, a par do sofrimento físico, somos também chamados a procurar solução. Mas importa dizer que, mesmo quando o aspecto principal do quadro de que nos ocupamos é de natureza somática, há sempre uma vivência psicológica complexa desse problema, que merece a nossa atenção. E que, eventualmente, precisa dos nossos cuidados. A preocupação contemporânea de definir os Direitos do Homem, os Direitos da Criança, os Direitos das Mulheres, traduz bem como é necessário preocupar-nos com essas áreas fundamentais, que deveriam, antes de consignadas em direitos escritos, estar garantidas pelo movimento espontâneo do afecto. Tratar ou consolar? Ambas as alternativas são importantes. Mas os pontos de vista podem ser muito diferentes. Como já vimos, consolar remete-nos para a solidão de quem está triste e para a importância da presença de um outro que vem junto dele, levado por um movimento do afecto. É óbvio que a presença dos outros nos é necessária para muita coisa. Mas sentirmos o afecto dos outros por nós, sobretudo de alguns outros para nós especialmente significativos, é essencial para nos podermos sentir felizes. Na relação amorosa adulta e feliz, existe o desejo do outro, mas também o desejo do desejo do outro. Trata-se de um dos aspectos essenciais da construção da humanização, que fica a marcar a pessoa até ao fim da sua vida. Creio que a humanização se poderia definir como consistindo na organização progressiva da experiência individual sob a forma de relação com um outro, que se descobre como sendo distinto do próprio mas semelhante a ele, e com o qual se estabelecem contactos e se organiza um sistema de comunicação através da troca de afectos e de fantasias, e dos gestos que as exprimem. Na dinâmica desta relação vai-se organizando uma compreensão estruturada e partilhável de tudo, que inclui as convicções fundamentais quanto à forma como os indivíduos se relacionam entre si, quanto ao valor dos afectos e quanto ao modo de reagir perante a percepção daquilo que se ignora.
Tudo parece começar na sensorialidade, no impacte sensorial que a realidade física provoca na criança. Destas experiências sensoriais fazem parte as sensações de prazer e de desprazer, bons e maus estados, como se costuma dizer. Alguns destes prazeres são proporcionados pela mãe, tal como alguns destes desprazeres são resolvidos, feitos desaparecer, pela mãe. Um dos exemplos mais simples em que podemos pensar é o do bebé que sente fome ou sede. É um mau estado, vivido como desprazer. A criança chora. Vem a mãe e dá-lhe de mamar. Desaparece o mau estado, substituído por uma vivência de prazer e satisfação. Esses estados sensoriais rapidamente se tornam experiências emocionais e relacionais, que integram uma gama muito rica de emoções e fantasias. Com a repetição desta experiência, o bebé acaba por ter um registo mental, uma recordação disso mesmo. Podemos dizer que este registo se constitui, esquematicamente, a partir de três elementos. O primeiro será uma representação de si mesmo, que inclui uma qualquer ideia das próprias necessidades, dos próprios desejos e das eventuais frustrações, vividos como bons e maus estados. O segundo elemento será a representação do seio, e mais tarde da mãe, que inclui a vivência da qualidade que este (esta) tem de satisfazer os desejos e proporcionar os bons estados, com o prazer (e o amor) que lhe está associado. Se pelo contrário frustra os desejos, provoca e mantém os maus estados, com o seu desprazer (ou agressividade/destrutividade) característicos. Deste modo, e conforme a modalidade com que se apresenta, o seio (a mãe) poderá ser vivido, ou sentido, ora como bom, ora como mau. Surge, assim, um terceiro elemento, constituído pela representação da forma como os dois primeiros entram em contacto um com o outro. O facto importante é que, atendendo ao registo que a memória faz de experiências passadas e das expectativas mais ou menos elaboradas que se criam em relação ao futuro, nunca mais um acontecimento sensorial voltará a ser, apenas, um acontecimento sensorial, porque será, necessariamente, acrescentado de todas as fantasias e recordações que lhe estão associadas o que, em geral, constitui uma realidade emocional extremamente complexa, viva e poderosa.
Pensar sobre estas experiências repetidas torna-se, pois, uma necessidade. É indispensável dar-lhes um sentido, encontrar-lhes uma explicação coerente que permita ao indivíduo situar-se no ambiente que o rodeia e fazer antecipações que tornem possível realizar as acções adequadas à obtenção daquilo que deseja, ou capazes de evitar os perigos que receia. Sem este trabalho interior, o indivíduo nunca organiza uma ideia de si mesmo e estaria irremediavelmente perdido no ambiente. Vão assim surgindo as várias narrativas interiores, indispensáveis à constituição do fio das memórias pessoais e à construção da identidade. A ligação positiva com uma pessoa é essencial para garantir o bom estado emocional (no caso da criança pequena, para garantir a homeostase do bebé). Não obstante os aspectos físicos da relação, reconhecermos que isso se consegue sobretudo através de um processo acontecido no mundo interno (mental), tem uma importância decisiva para compreendermos a organização psicológica que a criança virá a fazer. Dessa organização faz parte essencial a consciência que irá tendo das capacidades que reconhece a este seu mundo interno para resolver os estados de desconforto e sofrimento e, mais alargadamente, uma ideia de si e de si em relação com o que está fora de si. Embora possa parecer repetitivo aos mais familiarizados com o assunto, importa destacar duas ideias que considero fundamentais neste contexto. A primeira é a de que a dimensão psicológica do indivíduo e, portanto, a sua humanização se fazem a partir das relações que se estabelecem desde o princípio. Dependem, portanto, da qualidade dessas relações. A segunda é a de que essas relações vão, a pouco e pouco, sendo interiorizadas, constituindo-se aquilo a que poderíamos chamar recursos mentais autónomos, de que o indivíduo em crescimento vai fazendo a experiência, vivendo-os como uma possibilidade pessoal de bom funcionamento. Vão-se, deste modo, constituindo o tom de base do humor individual e as características fundamentais da personalidade. Como é óbvio, estou a simplificar muito. Mas creio não deformar a realidade dizendo que a partir do que sente, e da forma como vai sendo capaz de enfrentar
os problemas que se lhe apresentam, o indivíduo constrói a pouco e pouco uma ideia/sentimento dos seus desejos, possibilidades e capacidades. Neste conjunto, é decisivo o sentimento da capacidade de estabelecer com as outras pessoas, aos vários níveis que a vida nos apresenta, relações afectivas duradouras e de boa qualidade. Fernand Braudel, o famoso historiador francês, membro da Academia Francesa e autor de uma obra reconhecida internacionalmente, concluiu, no final da sua vida, um monumental trabalho, que viria a ser publicado depois da sua morte, em três volumes, sob o título L’Identité de la France. (F. Braudel, L’Identité de la France, Arthaud-Flammarion, Paris, 1996). Sendo a França a terra-mãe, não poderemos deixar de considerar o título extremamente evocativo. Quando o escreveu, passara já os 80 anos. Certamente procurou na memória e no afecto a quem dedicar esse trabalho, porque depois da página de rosto, surge-nos uma outra toda em branco, apenas com esta simples frase: À ma grand-mère Emilie Cornot, lumière de mon enfance. Depois de tantos anos, a luz que ela acendera não se tinha ainda apagado. Poderíamos pensar que iria apagar-se em breve, quando morresse o neto. Mas não, porque ele no-la confiou, na recordação emocionada daquela dedicatória. Foi uma luz para toda a sua vida, que nos parece continuar para além dela, na experiência íntima que nos comunicou e que se ligou também com as nossas recordações. É assim o humano, que constrói uma cultura e nela se exprime. A infância fica viva dentro de nós, com o seu mundo indestrutível de emoções, ligadas às presenças e ausências daqueles cujo afecto nos era indispensável para sobreviver. E felizes são aqueles que aí podem ir buscar boas recordações, dando-lhes uma representação emocionada, que depois transmitem aos outros como uma dádiva, de uma forma poética, que a todos é útil, porque ajuda a representar, viver e compreender melhor as próprias emoções. E é assim que certos materiais simbólicos começam por ser estritamente pessoais mas depois, pela sua riqueza e capacidade expressiva, são assumidos colectivamente e passam a fazer parte do património comum de um grupo humano. O uso dos mesmos símbolos para representar e comunicar emoções semelhantes constrói a
memória colectiva, funda o sentimento de pertença a um grupo e proporciona a vivência de proximidade entre os seus membros. Quando, no início, falava dos elementos de ordem simbólica que são decisivos nas relações entre as pessoas, era a isto que me referia. Ausência e presença, boa ou má qualidade da relação, é à roda destes temas que se constroem todas as memórias dos homens. É por isso que junto de alguém triste a presença de um amigo tem um efeito consolador. Às vezes, tem um efeito reparador dos abandonos sofridos, quando a pessoa mantém a capacidade de estabelecer relações afectivas de boa qualidade. As boas experiências do passado ficam como um capital afectivo que não se perde e vem enriquecer com a sua cor própria e estritamente pessoal as novas experiências que se vão vivendo. Cada nova relação afectiva importante tem sempre, por isso, elementos de novidade e de reencontro. Imaginando ouvir o sino da sua aldeia, Fernando Pessoa sente que logo a primeira pancada tem o som de repetida. Quando as boas relações da infância tiveram as devidas condições de qualidade, coerência e estabilidade, ficam como uma luz que não se apaga e alimenta a vida interior do indivíduo, com a sua criatividade. Estas pessoas, quando têm de enfrentar as inevitáveis perdas que a vida nos traz, são capazes de o fazer através de um normal processo de luto, que não se transforma numa doença. Passado o tempo próprio da tristeza, saberão continuar a vida dentro de uma coerência pessoal. As pessoas morrem, mas a luz que elas acenderam pode não se apagar. Uma vez em que acompanhava algumas pessoas de fora numa visita à que então se chamava Casa Maternal, da Misericórdia de Lisboa, entrei numa sala em que se encontravam várias crianças de baixa idade. Como geralmente acontece, a presença de estranhos despertou grande curiosidade nas crianças, que olharam para nós chamando a atenção da forma que lhes era possível, conforme a idade que tinham. As que já andavam aproximaram-se e puxavam por nós. Reparei que num berço, deitado de barriga para baixo, a cabeça pendente, estava um bebé que se manteve completamente alheio. Talvez não tivesse ainda um ano.
Impressionado por aquela apatia, aproximei-me do berço, decidido a não me ir embora sem ter tentado fazer alguma coisa por ele. Havia uma tristeza funda que fazia doer. Consolar os tristes desconsolados? Sentei-me ao pé do berço e esperei um pouco. Não houve nenhum sinal de que se tivesse apercebido da minha presença. Reparei que tinha a mão direita aberta, descaída sobre a borda do colchão, do lado em que eu me encontrava. Apoiei ali também a minha mão, de modo a que ficasse no seu ângulo de visão, tendo o cuidado de não lhe tocar. Qualquer aproximação brusca iria ser sentida como intrusiva e poderia ser rejeitada. Esperei mais algum tempo sem que nada acontecesse. Comecei então a fazer pequenos movimentos com o meu dedo indicador, batendo ritmadamente com ele no colchão, ao de leve. Não foi preciso esperar muito tempo para ver o dedito da criança agitar-se levemente, como que num movimento de resposta. Sempre sem lhe tocar, aproximei a minha mão da sua, continuando os movimentos do meu dedo, agora de forma mais decidida. Os seus movimentos tornaram-se também mais vivos. Sentindo-me autorizado a isso pela resposta que conseguira obter, encostei o meu dedo ao seu. Parou os movimentos sem se afastar. Sentindo que esse contacto lhe dava prazer, levantei o meu dedo, e afaguei-lhe, ao de leve, as costas da mão. Aí a criança não hesitou. Levantou a mão e agarrou com força o meu dedo. Depois, ergueu decididamente a cabeça e começou a olhar em redor, observando o que ali se passava. Tinha encontrado alguém que preenchera a sua solidão. Em companhia de outra pessoa, o resto já era susceptível de a interessar. Para uma criança, a ausência prolongada de uma relação estável de boa qualidade pode ser uma catástrofe que deixa consequências para o resto da vida. A atenção a isso é um aspecto específico das Obras de Misericórdia, que mereceria ser explicitado no actual Compromisso das Misericórdias. O apoio às crianças e a sua defesa deve ser um empenho colectivo que hoje, felizmente, está já consignado como um
direito. Mas para que esse direito seja devidamente respeitado, é-lhe indispensável uma dinâmica do afecto, que nenhuma lei pode prescrever. D. Leonor estava inserida num contexto cultural que não lhe permitia formular as coisas como nós hoje o fazemos. Mas a qualidade afectiva é uma realidade de todos os tempos. Por isso ela se referiu ao que então era visto como a mais expressiva manifestação de uma preocupação de ordem social. Era também a mais elevada que podia conceber-se, porque estava sancionada pela Igreja, que na Cidade dos Homens apontava os caminhos da Cidade de Deus. O compromisso de cumprir as Obras de Misericórdia foi o programa que justificou a criação das Misericórdias. A actualidade dos seus objectivos torna-se evidente numa sociedade onde aumentam os excluídos, os marginais, os sem-abrigo, os desempregados, as crianças em risco e vítimas de maus tratos, os idosos solitários e desamparados. Numa sociedade tão fortemente marcada pela diferença de classes e pela distância entre elas, o testemunho da grande senhora que se interessava pelos mais pobres, por aqueles que nada contavam, e lhes mostrava que os considerava dignos da sua presença e do seu afecto, era da maior importância para restituir, a esses esquecidos de todos, um novo sentimento do seu valor. Consolar é concebido como vir preencher a solidão e o abandono com a presença e o afecto. Le Livre des Trois Vertus, também chamado nas versões impressas Le Trésor de la Cité des Dames, foi escrito por Christine de Pizan, no início do século XV. A sua tradução foi mandada fazer pela rainha D. Isabel, mulher de D. Afonso V, e a edição terá sido da iniciativa da rainha D. Leonor, em 1518. (Cf. Maria de Lourdes Crispim, Christine de Pizan, O Livro das Três Virtudes ou O Espelho de Cristina, Lisboa 1995. Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em Linguística – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa). Podemos afirmar, com segurança, que esta obra serviu para a formação da futura fundadora das Misericórdias. Permita-se-me uma citação um pouco longa da edição referida, com algumas adaptações da grafia, para facilitar a leitura. “A boa princesa deve ser bem avisada que cumpra as Obras de Misericórdia, guardando seu estado virtuosamente, havendo bons servidores acerca de si, e, isso mesmo bons conselheiros, para bem a aconselharem e darem a execução seus bons
propósitos. (...) E ela, toda boa, haverá servidores a si semelhantes, os quais mandará que saibam, por toda a parte, onde haverá pobres vergonhosos, ou gentis homens doentes, ou viúvas mesteirosas e moças órfãs para casar, e escolares e clérigos e religiosos ciados em pobreza. A estas pessoas, por seu esmoler (...) o seu enviará ela a estes pobres (...)”. “Nem haverá vergonha a boa pessoa de, per si mesma, visitar os pobres, acompanhada segundo seu estado. Falará aos pobres e doentes, e os tocará, e confortará docemente fazendo-lhes grandes e florecidas esmolas, ca o pobre mais confortado é da vestição e conforto de uma grande senhora que doutra somenos. E a causa é que a pessoa desesperada pensa que o mundo a tem esquecida. E quando vê que uma tão grande senhora se contenta de a visitar, entende que há recobrada alguma honra” (pp. 172-173). Para além daquilo a que hoje chamaríamos a qualidade técnica da intervenção, e que é naturalmente indispensável, é bom não esquecermos a dimensão pessoal de qualquer relação. Paternalismo? Será um anacronismo pensarmos nesses termos. Desactualizado? Bastará pensar no impacte enorme que teve a actuação humanitária da princesa Diana de Gales nos últimos anos da sua vida. É uma figura do nosso tempo que, como a rainha D. Leonor, parece ter seguido os ensinamentos de Christine de Pizan. Consolar os tristes desconsolados. Pessoalmente. A figuras são idealizadas quando podem ser sentidas como interpretando as grandes aspirações colectivas.
Perdoar a quem nos errou João Resina Rodrigues João Manuel Resina Rodrigues, licenciado em Engenharia Química pelo Instituto Superior Técnico em 1953, ordenado sacerdote no Patriarcado de Lisboa em 1959, doutorado em Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina em 1962, é actualmente coadjutor na paróquia do Campo Grande e professor associado no Departamento de Física do Instituto Superior Técnico.
1. Vivemos num tempo cada vez mais indiferente à misericórdia e mais avesso ao perdão. Todos os dias a TV nos mostra imagens de atentados perpetrados por grupos que querem fazer triunfar os seus pontos de vista. O inimigo pode ser uma outra comunidade ou um dado tipo de poder político. Frequentemente o atentado, visando determinada personalidade, é realizado de tal maneira (por exemplo, através duma bomba de grande potência) que vai matar ou ferir gravemente dezenas de homens, mulheres e crianças que nesse momento passem perto do local. Outras vezes é lançada uma bomba para uma praça ou para dentro dum mercado, já porque todos os habitantes sejam considerados como inimigos, já para mostrar que o poder
político que se contesta não está em condições de proteger os cidadãos. A pergunta que espontaneamente se faz “mas vocês não têm pena dessas pessoas que matam?” parece simplesmente deslocada aos homens e mulheres que se impregnaram da mentalidade do grupo. Não há que ter misericórdia nem para o inimigo nem para aqueles que não tomaram partido. Por outro lado, as acções correspondentes dos inimigos não podem ter perdão. Quando o diferendo interessa duas comunidades, cada uma delas sente-se no direito e na obrigação de responder à agressão com a agressão. Não importa que membro da outra comunidade é objecto de ódio, sobre ele pode desferir-se a vingança. Quando o inimigo é determinado tipo de poder político, o ódio pode recair sobre não importa que funcionário; e não raro a autoridade legítima procede contra os fora-da-lei ou suspeitos com um ódio mal disfarçado. Enfim, todos nós, os simples espectadores dos noticiários da TV,
começamos a aceitar esta lógica, a desculpar os excessos do grupo que nos é mais simpático e a considerar indesculpáveis os excessos do grupo oposto. Todas estas atitudes prolongam outras, vividas num passado relativamente recente. A guerra de 1939-45 foi uma guerra total, como já se não via desde a Antiguidade. Em ambos os campos se aceitou a doutrina de que não bastava vencer as tropas inimigas em batalhas, era necessário desmoralizar a população civil, através de bombardeamentos sistemáticos. Os campos de concentração foram lugares de terror e de extermínio. Hitler e alguns dos seus colaboradores planearam e em grande parte realizaram o aniquilamento dos judeus. Foi uma imensa sementeira de ódio e de desejo de vingança. É significativo que, após a guerra, alguns intelectuais franceses tenham tentado lançar a responsabilidade do anti-semitismo sobre todo o povo alemão, tenham afirmado que aqueles que projectaram ou colaboraram no extermínio dos judeus não podem nunca ter perdão, tenham encorajado a ideia de que certos crimes de guerra são imprescritíveis em Direito.
2. Certamente que em todas as épocas houve ódios e vinganças, certamente que em todas as culturas houve homens e mulheres que foram capazes de realizar a misericórdia e o perdão. Como quer que seja, o ideal da misericórdia e do perdão que de algum modo enformaram a chamada civilização ocidental dependem profundamente de Jesus Cristo12. Sublinhemos que a moral de Jesus Cristo é profundamente original (originalidade que as comunidades cristãs nem sempre foram capazes de manter) e se distingue, 12
É verdade que na índia apareceram, ao menos desde o século V a.C., ideias que antecipam a misericórdia do Evangelho. Assim, para o jainismo o mandamento supremo é a ahimsa, a não-violência. A ahimsa parece ter nascido do convite a que o homem se alheie do mundo e das suas tensões, mas em breve se articulou com um sentimento de piedade para com todas as criaturas. Buda, que vive pela mesma época, recebe do jainismo a ideia da não-violência, liberta-a de dogmatismos estreitos e fundamenta-a claramente na piedade. “Mas esta ética da piedade é incompleta; está limitada pelo princípio da não-actividade. Buda nunca pede que o homem se esforce, com todas as forças, por levar ajuda e socorro ao seu semelhante ou a todo o ser vivo em geral. Ordena simplesmente que o homem não actue contra a piedade.” (Cf. A. SCHWEITZER, Les grands penseurs de L’Inde, Paris, Payot, 1979, pp. 61-81.) Note-se, ainda, que a Europa só conheceu o pensamento da Índia a partir do princípio do século XIX. Na China, já depois de Cristo, vai igualmente aparecer o tema da piedade.
quer da moral judaica quer da moral que o islamismo proporá, em três pontos fulcrais. Primeiro, o homem não é servo, é filho de Deus, convidado a realizar-se na liberdade13 e na alegria. Segundo, o motivo supremo do agir humano não é a obediência a uma lei promulgada pela autoridade divina, é a imitação da bondade de Deus, esta, sim, colocada como um absoluto: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.”14 Terceiro, o bem moral não fica definido por um articulado de leis e de preceitos, tem de ser uma procura responsável da perfeição que imita Deus. “E por que não discernis por vós mesmos o que é justo?”15 Contra os pessimismos religiosos que só vêem no homem podridão e pecado, Jesus Cristo proclama que o homem é amado por Deus e destinado à vida eterna; contra os optimismos culturais que prometem que o homem resolverá em breve todos os grandes problemas, Jesus Cristo recorda que o homem é espontaneamente egoísta e precisa de conversão. Acontece nomeadamente que o homem, no seu afã de dominar e de fruir, ofende os outros homens e ofende Deus. Quem poderá perdoar-lhe, que sentido tem o perdão? Jesus manda aos seus discípulos que perdoem a todo aquele que os tenha ofendido e fundamenta esta ordem no anúncio de que Deus lhes perdoa também16.
3. No ensinamento de Jesus, o perdão de Deus e a reconstrução do homem estão ligados. Por um lado, Deus perdoa àquele que reconhece que procedeu mal e procura arrepiar caminho. Por outro lado, ao perdoar, Deus restitui a sua plena confiança, promete que “não mais se lembrará daquilo que perdoou”17, ajuda o É sabido que para as filosofias contemporâneas a liberdade não é o mero poder de escolher entre situações objectivas (ir ou não ir ao trabalho); é também a possibilidade de dar sentido a situações densas como o amor, o sofrimento ou a morte, é finalmente o poder de construir a vida em harmonia consigo mesmo, desenvolvendo um projecto que lhe parece bom. Verdade e liberdade aparecem então profundamente imbricadas. Ora, contra aquilo que frequentemente se ouve, Cristo ensinou que a Verdade liberta (cf. Evangelho segundo São João, 8/31), São Paulo escrevia aos seus discípulos “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Carta aos Gálatas, 5/1), Santo Agostinho concluía que a moral cristã pode resumir-se em “Ama, e faz o que quiseres” (Migne, PL, 35, 2033). 14 Evangelho segundo São Mateus, 5/48. 15 Evangelho segundo São Lucas, 12/57. 16 Evangelho segundo São Mateus, 6/12 17 Livro de Jeremias, 31/34. 13
homem a redescobrir os caminhos da liberdade e da alegria18. Num texto breve de 1969, R. Garaudy sublinha que, desta maneira, Jesus Cristo destrói a tradição grega segundo a qual cada homem está sujeito ao seu destino e a substitui pela ideia de que “cada homem pode, a cada instante, começar um futuro novo”19. As filosofias contemporâneas voltam a falar do destino, não já como a sujeição a uma força sobrenatural, mas como o conjunto de dados e situações que, dentro e fora do homem, são obstáculo à liberdade. Neste destino incluem-se certamente o peso acumulado das culpas e dos medos, a teimosia em não querer modificar a própria imagem, a ausência de interlocutores com quem se processe o verdadeiro diálogo. Convidando o homem a acreditar que pode dialogar com Deus e confiar n’Ele, quaisquer que tenham sido os seus erros e pecados, Jesus Cristo abre ao homem um novo espaço de liberdade.
4. Para aquele que se identificou com o pensamento de Jesus, perdoar a alguém que o ofendeu, mas se mostra arrependido, é tentar proceder como Deus. Perdoando, ajuda esse homem a encontrar um futuro novo, contribui para desfatalizar a sua história. É claro que, perante as situações concretas, haverá sempre cristãos que se revoltam contra a ideia de perdoar, como haverá sempre não-cristãos que perdoam. Seria interessante perguntar a esses não-cristãos o que é que os leva ao perdão. Talvez alguns aceitem algo do que ficou dito acima – a generosidade de libertar o outro do peso da sua culpa, um sentimento de piedade por esta condição humana tão difícil.
5. Mas Cristo mandou mais aos seus discípulos. Mandou-lhes que perdoassem ao mau, isto é, àquele que continua a agredir, não mostra arrependimento, não está interessado no perdão, até despreza quem lhe perdoe: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu digo-vos: Não oponhais resistência ao mau; se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. E se alguém quiser 18
Ver Nota 2. R. GARAUDY, in Mon Tour du Siècle en Solitaire, Paris, Robert Laffont, 1989, pp. 228-230 e P.T. FERREIRA, Cristo Desceu à Rua, Lisboa, Moraes, 1972, pp. 85-86.
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pleitear contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pede, e não voltes costas a quem te pedir emprestado. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus, pois Ele faz que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não o fazem já os publicanos? E se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Sede pois perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.”20 Esta palavra de Cristo foi por muitos considerada como inaceitável e por diferentes motivos. A partir do século XVIII, triunfa na Europa a Filosofia das Luzes. Para esta filosofia, não pode haver religião revelada e todos os ensinos das religiões positivas têm de ser passados ao crivo da razão. Disse-se então que o perdão proposto por Jesus Cristo desautoriza o Direito; é irracional porque favorece o triunfo dos maus, é inumano quando pede a uma pessoa que sofreu ou viu os seus serem sujeitos a torturas e sevícias que perdoe; amolece assim a necessária luta pela justiça. No século XIX, Nietzsche proclamará que o perdão é a atitude do escravo, mas não a do homem livre, muito menos a atitude do super-homem que nos propõe. Pode recordar-se que Cristo nunca desautorizou o Direito. Ele, que pensa que a justiça humana não é absoluta, pois está sujeita ao juízo de Deus, não teve receio de aceitar a existência dos tribunais e das sanções. Pode recordar-se, por outro lado, que o próprio Direito admite várias espécies de perdão, desde o facto de nem sempre o ofendido se queixar, até ao indulto, à amnistia e à prescrição. Parece-me, de resto, inútil desenvolver este tema. Notei acima que uma das originalidades da moral de Cristo é não ser um conjunto de leis e preceitos taxativos, mas uma procura responsável e livre daquela perfeição que imita a perfeição de Deus. Cristo manda aos seus discípulos que não resistam às ofensas e perdoem; mas supõe que eles têm a capacidade de discernir quando é que isso é o melhor e quando o melhor é chamar a Polícia ou lutar. Se alguém me der uma bofetada, posso achar conveniente e sinal da imitação de Cristo sofrer a afronta em silêncio; mas se alguém se preparar para lançar uma granada contra uma escola, devo procurar 20
Evangelho segundo São Mateus, 5/38-46
impedi-lo a todo o transe. É óbvio que uma moral não taxativa dá azo a milagres de santidade e a crimes organizados. Pense-se nos cristãos que sofreram o martírio porque não aceitaram renegar o nome de Cristo e pense-se no imenso crime que foi a Inquisição. Julgo que Jesus Cristo aceitou este risco, de preferência a tratar-nos como crianças ou como escravos.
6. Permanece o facto de que Jesus propôs aos seus discípulos (com as reservas que acabei de fazer) que perdoem todas as ofensas e aceitem todas as injúrias, em vez de as repelirem pela força. É este conselho que tem parecido louco a muita gente e devemos examinar. Parece-me conveniente considerar em separado três casos: o da violência exercida por indivíduos ou pequenos grupos marginais, o das tensões entre pessoas muito próximas e o da grande violência organizada. 6.1. A violência exercida por indivíduos ou grupos marginais é hoje uma realidade muito grave. Lembremos, entre mil outros, os casos de mulheres raptadas para que entreguem o cartão multibanco e o respectivo número e que acabam por ser violadas e mortas. Não nos podemos espantar se as suas famílias manifestarem ódio e desejo de vingança. Não nos podemos espantar, não tem grande sentido criticar. E, no entanto, Sócrates perdoava, ponderando que os que faziam mal eram sobretudo ignorantes, Jesus procedeu da mesma maneira quando, na cruz, rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”21 6.2. A dificuldade em perdoar quando alguém a quem amávamos e respeitávamos fez algo que sentimos como uma traição, um desprezo, uma ofensa profunda, tem características muito próprias. É como se os eixos do nosso mundo basculassem. Oscilamos entre o sentimento do vazio, a dor profunda, a fúria e o ódio, a vontade de anular num instante a amizade ou o amor que tínhamos dado e a verificação de que não somos capazes de nos libertar dessa pessoa, a necessidade de descobrirmos o porquê. Negamo-nos a ver que havia desde há tempos indícios dum desencontro, muito menos entendemos que essa nossa cegueira por vezes agravou a crise e lhe 21
Evangelho segundo São Lucas, 23/34.
precipitou o desenlace. Compreender o percurso do outro é difícil (parece-nos um confronto com o absurdo), ainda mais perdoar. Tudo é possível neste mundo. Há quem esqueça e, tendo esquecido, possa reatar sem problemas (começa a ser fácil numa sociedade permissiva como a nossa). Há quem perdoe, no sentido de que conseguiu dominar o ódio e a zanga, não se fala mais nisso, mas não encare como possível o restabelecimento da relação antiga. Há quem descubra que é capaz de perdoar como Deus perdoa, reconhecer, ele, que não é Deus, que também tem algumas culpas, e começar com essa pessoa um caminho novo. Suponho que, nesta matéria, ninguém pode atrever-se a dar conselhos, nenhum moralista pode dizer qual é a solução melhor. Permito-me recordar algumas coisas óbvias: o regresso dum desencontro exige a ambas as pessoas uma espécie de cura, mas nenhuma delas pode assumir em relação à outra o papel de terapeuta (muito menos de moralista). O diferendo não pode ser simplesmente enterrado, há um papel importante para a palavra; mas a palavra importa que seja singela e não se torne nunca em arma de arremesso. 6.3. Neste século, a grande violência foi exercida de forma mais ou menos institucionalizada por certos governos – pense-se em Hitler ou em Estaline – e de forma revolucionária por grupos de dimensão mais reduzida – pense-se no País Basco ou na Irlanda. No início do governo de Hitler a violência caiu sobre os poucos intelectuais que tiveram a coragem de denunciar o totalitarismo em curso e sobre aqueles que se recusaram a cumprir o serviço militar. Foram rapidamente condenados à morte e executados, sem que a imprensa tivesse autorização para relatar estes casos. Mais adiante, a grande violência exerceu-se nos campos de concentração, nomeadamente sobre os judeus. Uma vez mais, a imprensa teve de ignorar esses factos. No caso dos intelectuais e objectores de consciência, tratava-se de homens e mulheres de convicções muito fortes, muitos deles católicos ou protestantes, que assumiam claramente o risco das posições que tomavam. Suponho que não odiavam os homens, queriam, sim, dar testemunho da verdade. A proibição feita à imprensa de contar estas histórias significava que o regime receava a força do exemplo e contava pouco com o poder dissuasor do medo. Realmente a Igreja Confessante protestante, que aliou à força da fé um agudo sentido crítico das situações, tinha como referência o exemplo desses homens e dessas mulheres.
Recordo que, nos últimos anos, a ETA basca assassinou também alguns intelectuais que se manifestaram contra os seus métodos. A questão basca e a questão irlandesa parecem-me dois exemplos de laboratório. Responder à violência com a violência e ao ódio com o ódio tem levado a uma espiral que parece não ter fim. Era preciso experimentar outra coisa. Era preciso que um dos grupos tivesse a coragem de parar, de não mais se vingar, ainda que por algum tempo os atentados crescessem. A primeira coisa seria quebrar a espiral, a segunda seria perdoar. Cada grupo pode reconhecer que a maldade e a desumanidade do outro grupo é semelhante à sua. E só o perdão mútuo permite a verdadeira paz. Volto ao exemplo dos campos de concentração, onde a desumanidade atingiu extremos. No arquivo dum desses campos foi encontrado um texto, que era uma oração escrita por um judeu deportado. Diz assim: “Paz a todos os homens de má vontade! Cesse o nosso apelo à vingança e ao castigo... É verdade que os crimes dos nossos inimigos ultrapassaram toda a medida, tudo o que se pode entender. Houve demasiados mártires... Mas, Senhor, não deixes que todo este sofrimento carregue a Tua justiça. Não apresentes aos nossos carrascos esta terrível factura. Inscreve a favor dos carrascos, dos delatores, dos traidores e de todos os homens de má vontade a coragem e a força espiritual dos outros, a sua humildade, a sua dignidade, a sua luta interior e a sua esperança invencível, o sorriso que estancava as lágrimas, o seu amor, os seus corações que, mesmo partidos, permaneceram firmes e confiantes em frente da própria morte... Que tudo isto seja posto a Teus pés, Senhor, para perdão dos pecados, resgate para o triunfo da justiça. Contabiliza o bem, não contabilizes o mal! Faz que na memória dos nossos inimigos nós não sejamos o pesadelo, mas o apoio, quando tiverem de lutar contra as paixões criminosas. Nós não pedimos mais nada. E quando tudo isto acabar, dá-nos a graça de viver como homens no meio de homens. Que a paz regresse a esta nossa pobre terra – paz aos homens de boa vontade e a todos os outros.”22 Suponho que a moral, sobretudo em questões deste tipo, não permite demonstrações como as das ciências. Há posições que intuitivamente nos atraem, há atitudes que 22
Oração escrita por um judeu deportado, encontrada nos arquivos dum campo de concentração alemão. Publicada pelo Suddeutsche Zeitung. Citada por A. DUPLEIX, La force du pardon, Paris, Nouvelle Cité, p.7.
suscitam a nossa reflexão e eventualmente a admiração e a adesão. Penso que esta oração, por si só, vale infinitamente mais do que tudo o que consegui balbuciar. Perante ela me calo.
Sofrer as injúrias com paciência Luís Moita Doutorado em Ética pela Universidade Lateranense (Itália), em 1967, grau académico reconhecido pela Universidade Católica Portuguesa. Actualmente é vice-reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, onde é professor catedrático de Sociologia das Relações Internacionais. Coordena o Instituto Sócrates para a Formação Contínua na mesma UAL e dirige o Observatório de Relações Exteriores que edita a publicação “JANUS – Anuário de Relações Exteriores”. Entre 1974 e 1989, dirigiu o CIDAC, organização não governamental portuguesa de cooperação para o desenvolvimento. Foi professor associado convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e lecciona a cadeira de Relações Internacionais no Mestrado de Estudos Africanos no ISCTE.
Uma nota prévia acerca da distinção entre Obras de Misericórdia espirituais e corporais. Não é certo que esta repartição seja adequada. Durante séculos, a tradição
cristã foi influenciada pela concepção do ser humano composto por dois elementos, a alma e o corpo. Em boa verdade, esta tradição, mais que bíblica, é helénica, de raiz platónica. Foi dominante no pensamento ocidental e culminou em Descartes, que distinguia no ser humano a coisa pensante e a coisa extensa. A lógica desta visão leva a conceber o homem como entidade composta, algo híbrida, mistura de anjo e de animal. Em contraste, o entendimento da generalidade da Bíblia (à excepção de alguns textos, justamente, de influência helénica) vê o homem como uno, parecendo ignorar a divisão entre espírito e matéria. A visão helénica de tipo dualista é para nós tão familiar que a outra se tornou quase inaceitável. Todavia, para os hebreus o espírito é algo bem material (embora invisível): é o sopro, o suspiro, o vento. Em contrapartida para o Apóstolo Paulo, contra o que espontaneamente afirmaríamos, o orgulho é um pecado da carne (para
ele, o homem carnal é o que tem o coração fechado ao dom de Deus). E tanto no Antigo como no Novo Testamento dificilmente encontramos referências quanto à eventualidade da sobrevivência da alma como elemento separado do corpo. A profunda crença na ressurreição final não pressupõe essa dualidade de componentes. Uma tal advertência é sugerida pelas Obras de Misericórdia e pela possível ausência de fundamento para a distinção entre as corporais e as espirituais, aconselhando a utilizar com precaução os termos em causa. Que essa advertência não é inútil pode verificar-se logo a propósito da primeira palavra daquela Obra de Misericórdia cujo comentário me foi confiado: sofrer as injúrias com paciência. A ideia de sofrimento adquiriu, ao longo da mesma tradição cristã, uma conotação positiva. A dor é em si mesma valorizada. Ao acto de sofrer é atribuído um carácter de expiação, susceptível de purificar as culpas. O sofrimento é não só inevitável como ainda desejável, pois tem um mérito redentor. Mortificar o corpo é desprender-se da matéria e enaltecer o espírito, logo aproximar-se do transcendente. Sacrifício e mística andam de mãos dadas. Esta concepção só é explicável no contexto da oposição entre alma e corpo. De novo a sua origem há-de ser localizada na ideia helénica do corpo como prisão. Que pode desejar a alma senão punir essa amarra, libertar-se dessa servidão e ir ao encontro da realidade verdadeira, essa sim espiritual? Daí resultam alguns desvios demasiado frequentes na mentalidade cristã, como a suspeita acerca do prazer físico ou a excessiva valorização do sofrimento. A reserva quanto ao termo sofrer adensa-se quando nos é proposto que soframos as injúrias. No seu sentido mais original esta palavra injúria remete para a negação do direito ou de um direito (injus). Injuriar alguém será assim exercer violência sobre uma sua qualquer prerrogativa fundamental ou lesar um seu interesse relevante. Logicamente, nesta acepção, sofrer pacientemente as injúrias é inadmissível. Ninguém pode aceitar, por omissão ou passividade, ser objecto de atentado aos seus direitos. É bom recordar que neste mesmo ano de 1998, quando passam os 500 anos da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, também ocorrem os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eles representam aquisições imprescindíveis da consciência da humanidade nos nossos tempos e seria imperdoável interpretar o sofrer as injúrias à maneira de uma condescendência
para com a violação de direitos humanos. Ninguém tem o direito de prescindir destes direitos. Na formulação desta Obra de Misericórdia, à ideia de sofrer as injúrias vem associado o sentimento de paciência. Antes de mais, paciente é o que sofre, o que padece (quase sinónimo de doente...) e, por esta via, reencontramos o tema, já aflorado, do sofrimento. Mas paciente é também o resignado, o que aceita as contrariedades de modo passivo. No seu entendimento mais corrente, a paciência está conotada com a submissão algo fatalista às adversidades, com o subordinar-se ou conformar-se às circunstâncias, quem sabe, por impotência ou até mesmo cobardia. O culto da virtude da paciência (os próprios termos têm sabor arcaico) surge assim como a inaceitável apologia da resignação. Nietzsche tem páginas arrebatadas em que censura esse povo de escravos – o povo judeu – por ter subvertido os valores e transformado a submissão em qualidade, a pobreza em dignidade, o opróbrio em fonte de salvação. Não é preciso partilhar desse ponto de vista limite para se fazer a crítica da resignação. Durante séculos, nos meios cristãos, a mística da submissão neutralizou capacidades de indignação e de protesto, impedindo necessários inconformismos e até justificáveis rebeldias, quando não justas rebeliões. Daí a vantagem de um discurso antipaciência. Não precisamos de súbditos mas de cidadãos. O nosso destino não se traça pela espera passiva mas pela acção interveniente (sem prejuízo do necessário acolhimento do inevitável). Vistos estes tópicos, tudo parece encaminhar-se para a rejeição da fórmula proposta. Nada aconselharia a sofrer as injúrias com paciência. Provavelmente, o enunciado não estaria dotado de validade enquanto Obra de Misericórdia, por três razões principais: encara positivamente o sofrimento, aceita a injúria enquanto violação de direitos, preconiza a paciência como resignação. Três desvios a uma conduta saudável. Um tal ponto de vista é defensável e está apoiado numa argumentação consistente. Isso legitima a leitura crítica que foi esboçada, já que estaríamos a lidar com pressupostos ou subentendidos filosóficos discutíveis e com indicações éticas pouco recomendáveis. Não chocaria, por isso, que alguém rejeitasse liminarmente a suposta Obra de Misericórdia.
Todavia, é de admitir que não seja este o único discurso possível. Sofrer as injúrias com paciência não será porventura uma formulação feliz e no entanto o enunciado esconde uma profundidade digna de ser explicitada. Não é certamente o único caso em que, a respeito de uma afirmação, dela se pode dizer ao mesmo tempo o sim e o não. Dir-se-ia que coexistem dois registos de leitura, dois comprimentos de onda, permitindo defender uma posição e a sua contrária. Não por um concordismo fácil, próprio de quem tenta conciliar o inconciliável, mas por uma atenção que se desdobra ao sabor das contradições da realidade. A linguagem cristã (como talvez qualquer outra linguagem religiosa) tem várias armadilhas deste género. Um fenómeno semelhante ocorre nas célebres bem-aventuranças, onde verdades desconcertantes parecem contradizer o senso comum. Acrescentando-se à lógica discursiva, existe uma compreensão além da compreensão. Nesse mesmo registo, o que se segue não é uma interpretação benévola da fórmula sofrer as injúrias com paciência, nem a tentativa impossível de neutralizar os motivos que justificam a sua rejeição, mas uma releitura cordial em busca dos segundos sentidos nela presentes. A injúria não é apenas – como se viu – o atentado ao direito, é ainda o insulto, a calúnia, a difamação, em suma, a ofensa. Pode mesmo dizer-se que esta última sequência de significados são os que nos ocorrem, em primeira mão, como sinónimos de injúria. Entre todos, talvez a palavra ofensa tenha um particular relevo. Relaciona-se com a ideia de ferir e de fender ou fracturar e é porventura o termo mais apropriado para designar aquilo a que se convencionou chamar pecado. O pecado (usemos então a palavra) pode ser experimentado de vários modos. A sua experiência mais arcaica prende-se com a percepção de mancha – uma mancha algo automática, que torna o pecador impuro; daí a importância tradicional dos ritos de purificação, destinados a eliminar a mancha. O pecado pode também ser apreendido como culpa – mas aí predomina o sentimento de culpabilidade a nível (digamos) psicológico, factor de insegurança que importa sublimar. Mas a melhor pista para a compreensão dessa realidade é a ideia de ofensa – nela o pecado assume a sua verdadeira dimensão relacional e torna claro que consiste em algo que afecta prejudicialmente a relação.
Na relação inter-humana há uma espécie de dupla valência: por ela os indivíduos tanto se podem construir como destruir. De um lado, é possível afirmar positivamente que as pessoas vivem umas por causa das outras, no sentido profundo em que a consistência de cada uma delas depende do nível de relação com os outros. A nossa existência é feita desta radical interdependência, precisamos dos outros para sermos o que somos, a nossa história pessoal é a teia dessa multiforme interacção. A relação é assim construtiva da própria identidade, a autonomia de cada um não se obtém por afastamento mas por socialização. Do outro lado e inversamente, a relação também é destrutiva e aí reside a sua gravidade. Mesmo sem concordarmos com a personagem de Sartre para quem o inferno são os outros, temos de reconhecer o potencial destruidor da relação negativa. Essa é uma terrível prerrogativa dos humanos, a de se poderem estragar entre si, seja pelo desprezo ou pela agressão, seja pela simples falta de atenção (aquele a quem ninguém presta atenção é, literalmente, um ser desfeito). A injúria (voltemos agora ao tema) tem este poder destrutivo. Entendida como ofensa, ela pode identificar-se com o pecado. Em que sentido então esta releitura nos permite acolher o princípio de sofrer as injúrias com paciência? Vejamos. A injúria pode suscitar, naquele que a sofre, várias reacções. Uma delas é o ressentimento, outra é a vingança. O ressentimento é uma forma duradoura de se fazerem sentir os efeitos da ofensa e tem alguma analogia com o envenenamento lento. O ressentimento é particularmente corrosivo, pois o seu desgaste perdura, como o rancor que vai secando a capacidade de amar. A vingança, por sua vez, sendo mais impetuosa, encerra um perigo específico que é o da escalada. Como na vendetta da Mafia, onde a represália apela à represália numa proliferação interminável (a fazer lembrar as células cancerosas), qualquer sentimento de vingança esconde o embrião da espiral de violência. Estas reacções agravam o efeito destrutivo da injúria ou da ofensa, chegando a minar a saúde mental dos envolvidos no processo. Se muitas vezes a ofensa obriga à reparação dos estragos provocados ou se a calúnia obriga à reposição da verdade violada, parece também aconselhável banir o ressentimento e o desejo de vingança. A isso podemos chamar perdão, reabilitando uma palavra desgastada pelo uso. O perdão é o antídoto para o veneno do ressentimento e a prevenção para a escalada
da vingança. Por isso ele é duplamente saudável, saudável para o indivíduo e saudável para a relação (dizemos saudável sem com essa expressão reduzir a ética a uma higiene). O perdão é uma forma elevada de sofrer as injúrias com paciência. Considerado nos termos em que o estamos a analisar, o perdão não é um sentimento piedoso nem uma demonstração de inferioridade, é antes a tentativa para um restabelecimento do nível positivo da relação. A atitude de perdão encerra uma promessa e parte de um acto de confiança. Confia em que o acto de estragar não tem a última palavra na relação inter-humana, mas que os seus efeitos, por mais devastadores que se apresentem, são susceptíveis de superação. O perdão é um inconformismo, não se conforma com as consequências destrutivas da ofensa e procura refazer o caminho acidentado em direcção ao reencontro. Subjacentes a ele estão a convicção de que o positivo é mais forte que o negativo e a promessa de que a relação construtiva possa ser vitoriosa. Nesse sentido o perdão é subversivo, porque contraria a lógica da ofensa e porque opõe, tanto ao ressentimento como à vingança, a frágil expectativa de uma recomposição do relacionamento do ser humano com o seu semelhante. A ideia desta expectativa autoriza que se retome o tema da paciência. O sofrer as injúrias ou o perdoar as ofensas ganha em ser acompanhado pela atitude de paciência. Longe de estar apenas conotada com a passividade e a resignação, a paciência assume neste contexto o sentido de perseverança, é uma paciência diligente, uma paciência de empreendimento. Ela estabelece uma peculiar relação com o tempo: sabe que o tempo é irreversível, não finge ignorar o passado como se o dito fosse dado por não dito ou o feito por não feito, conhece o carácter por vezes irreparável das lesões provocadas pela injúria; mas simultaneamente confia na cicatrização, reconhece que o passar do tempo refaz condições pessoais e permite recuperar tecidos relacionais. É uma sabedoria da espera operante. Por isso ligámos a paciência à perseverança. Sofrer as injúrias com paciência articula-se ainda com o imperativo da tolerância. A tolerância começa por ser uma percepção de realismo em referência à condição humana. Contra a petulância do impecável, enfrenta os limites das pessoas e das situações e cultiva a arte do possível. A pessoa tolerante sabe que a verdade não está já dada nem possuída de uma vez por todas, que caminhamos para ela por
aproximações e, por isso, acautela juízos sumários de condenação. A paciência, opondo-se à presunção, é então uma forma de tolerância. Mas a tolerância adquiriu novas tonalidades nas sociedades contemporâneas, as quais evoluíram aceleradamente para o pluralismo cultural, obrigando a reaprender a colocação de cada um face aos outros e mais especificamente face aos diferentes. Ou melhor: o problema não está apenas na necessidade de convivermos com os diferentes, como ainda na inevitabilidade de convivermos com os opostos, isto é, aqueles com quem temos posições incompatíveis. Tais antagonismos manifestam-se em diversos campos, desde o religioso ao político, mas assumem especial gravidade quando respeitam aos padrões valorativos, designadamente no domínio ético. Os nossos valores não são homogéneos. Não existem acordos consistentes acerca de princípios fundamentais. E todavia temos de aceitar mecanismos que tornem possível a vida em comum. A esta luz, a questão da tolerância ultrapassa a mera dimensão do relacionamento interpessoal para se tornar problema social e mesmo político. As nossas sociedades liberais não impõem modos únicos de pensar e de sentir. A sua composição social tem evoluído crescentemente para formas plurais, desde a multiplicação de minorias étnicas até ao proliferar de confissões religiosas, para já não falar da diversidade das convicções filosóficas ou das disparidades na visão do mundo. Algumas destas diferenças são susceptíveis de negociação com vista a chegar a acordos. Outras, porém, são verdadeiramente inconciliáveis. Nestas circunstâncias, as sociedades só serão viáveis na condição de estabelecerem dispositivos de tolerância colectiva, pelos quais as pessoas ou os grupos sociais aceitem regras de funcionamento comuns, sem que se sintam coagidos ao nível das suas convicções de fundo. Aqui reside o verdadeiro segredo das sociedades democráticas: acordo quanto aos procedimentos, respeito e até valorização das divergências. A tolerância deixa de ser condescendência para com os que supostamente erram, para ser aceitação positiva das diferenças. Em tempos de novos fanatismos, xenofobias e racismos, em tempos de limpezas étnicas e de guerras santas, a proposição de sofrer as injúrias com paciência pode ser reinterpretada como uma exigência desta tolerância colectiva, não já no sentido
de perdoar as ofensas individuais, mas como qualidade cívica e como imperativo dos ordenamentos jurídicos e institucionais democráticos. Há ainda uma outra situação em que o princípio de sofrer as injúrias com paciência pode ser aplicável, talvez já num sentido derivado, quem sabe menos apropriado, mas ainda assim porventura pertinente: referimo-nos ao caso da guerra e da paz. Quando dois grupos humanos entram em conflito sangrento, levam até ao limite a injúria recíproca. A violência armada materializa a forma extrema de ofensa. O acto de guerra gera dinâmicas muitas vezes incontroláveis e a experiência tem ensinado que pode ser fácil iniciar uma guerra mas que é dificílimo terminá-la. O rancor colectivo é, com frequência, um dos maiores obstáculos à paz que, todavia, parece impor-se como saída obrigatória, como se vê nos terríveis exemplos de conflitualidade endémica como a de árabes e judeus na Palestina, católicos e protestantes no Ulster, sikhs e hindus na índia, hutus e tutsis nos Grandes Lagos … É verdade que seria insensato admitir que os bons sentimentos resolvem os conflitos: a correlação de forças é quase sempre determinante para o desfecho das guerras. Mas isso não exclui a função das atitudes mentais, sobretudo quando predispõem para a reconciliação. Com timidez o dizemos: o perdão das ofensas pode ter um papel, não sabemos se secundário se crucial, na construção da paz entre os grupos e as sociedades. Longe de qualquer ingenuidade ou idealismo, é legítimo confiarmos em que o ódio não tenha a última palavra nas relações entre os humanos. Em suma: a fórmula de sofrer as injúrias com paciência é inaceitável se enaltecer o sofrimento, se legitimar o atentado aos direitos ou se preconizar a resignação. Mas é digna de ser escutada se a entendermos como apelo ao perdão das ofensas (contra o ressentimento ou a vingança), como perseverança activa, como tolerância democrática ou como pressuposto para a construção da paz.
Rogar a deus pelos vivos e pelos mortos Frei Bento Domingues Frei Bento Domingues, O.P., natural de Travassos é teólogo dominicano. Estudou em Salamanca, Roma e Toulouse. Ensinou Teologia em Cusco, Santiago do Chile e Luanda. É director do Centro de Teologia e Ciências das Religiões e da Licenciatura de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona. É colunista do “Público”. Publicou: “A Religião dos Portugueses”, “A Humanidade de Deus”, “A Igreja e a Liberdade”.
1. O Cristianismo não pode ser reduzido a uma ética de solidariedade social, esquecendo o espaço interior do mundo, a relação com o sagrado expressa e alimentada sobretudo pela oração, ponte entre o visível e o invisível, laço de comunhão universal com vivos e defuntos, embora a palavra defunto, de origem latina, seja o reflexo de uma antropologia miserável, de uma máquina que deixou de funcionar... A fé cristã não deve ser confundida nem com uma mística de fuga do mundo, nem com uma mística de transformação do mundo, nem com a oscilação entre ambas. E preciso recusar o império da lei do pêndulo. Eu prefiro o modelo do tear. Neste, o movimento entre extremos integra, num tecido, todos os fios da vida. Na apreciação do fenómeno religioso e das suas metamorfoses ainda continuamos a ser vítimas de uma visão pendular. O diagnóstico dos anos 30 dizia que a uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião. Repisou-se depois que o drama do Ocidente era o esquecimento do sagrado. Agora, com o interesse pelo oculto, pelo misterioso, pelo esotérico, pelas manifestações da religiosidade difusa, espalhou-se a convicção de que os deuses estão de volta e as almas do outro mundo também, em novas versões de reincarnação. No actual processo de recomposição da linguagem da fé e do mundo interior, pretende-se fazer crer que a palavra de Deus que interroga a nossa responsabilidade
pela desumanidade do mundo vai deixar de fazer sentido. As técnicas de activação das nossas energias inconscientes vão propiciar o êxtase místico, a comunhão cósmica num perfeito desapego da nossa subjectividade e da alteridade de Deus e dos outros. E o caminho de algumas tendências da Nova Era (New Age).
2. Não disponho de nenhum mirante fora e acima do fluxo contingente da história religiosa para saber o que se vai passar a seguir ou qual vai ser o futuro da situação actual das crenças. É no confronto de pontos de vista diferentes que a Ciência das Religiões deve tecer um diálogo capaz de acolher todos os fenómenos, sem apadrinhar o confucionismo instalado num terreno tão movediço. Nesse sentido, chamo a atenção para um belo livro de fenomenologia da palavra – indissociável do silêncio – arca do acolhimento do mundo e da palavra dos outros, dos vivos e defuntos. É do filósofo Jean-Louis Chrétien (Cf. L’Arche de la Parole, PUF, 1998). Ocupa-se, logo no primeiro capítulo, da pergunta essencial: o que é escutar e dar hospitalidade em nós à palavra do outro? Todo o livro vive da escuta, da hospitalidade a outras vozes de filósofos, poetas e místicos. Não para exibir erudição ou para ampliar e dar suporte à sua própria voz. Mas porque precisa de todas elas para ver melhor os fenómenos espirituais que descreve. A escuta é, aliás, a primeira e a última de todas as formas de hospitalidades. A suprema Obra de Misericórdia espiritual. Pode ser exercida sempre em qualquer lugar. Mesmo quando não há tecto, nem fogo, nem alimento a oferecer, na rua ou na estrada, resta-nos sempre a possibilidade da escuta cordial, abrigo e salvaguarda dos vivos e dos mortos. Passa, num segundo momento, à fenomenologia da oração vocal, fenómeno religioso por excelência, sem esquecer as variadas e profundas formas silenciosas de oração. Novalis, num fragmento da sua Enciclopédia, sustenta que rezar é na religião o que o pensar é na filosofia. Rezar é produzir a religião. O sentido religioso reza, como o órgão mental pensa. Segundo Feuerbach, “aquilo que revela a essência mais profunda da religião é o seu acto mais simples – a oração”. Para Kant rezar é delirar. Ao pretender falar com Deus, o orante está a falar sozinho, a falar a si próprio em voz alta. A oração é um solilóquio, um auto-engano sem alcance para vivos e defuntos.
Não posso seguir o belo e sinuoso percurso de J.-L.Chrétien através do qual mostra que falar a Deus é estar com Ele, elevar-se para Ele, dizendo-Lhe o que sentimos, pedindo-Lhe o que convém e como convém. A oração é obra do desejo. O desejo reza sempre, mesmo quando a língua se cala, dizia Santo Agostinho. O desejo torna a oração permanente. Só o arrefecimento do desejo a debilita. Quando, porém, o desejo é interpretado pelo orante como um dom de Deus, rezar é dialogar com Deus, treva luminosa – como diziam os místicos – dos vivos, luz daqueles que consideramos defuntos, mas de facto, vivos para sempre no coração de Deus.
3. No Novo Testamento, a oração, surge como um dos fenómenos mais ambíguos da religião: “Nas vossas orações – disse Jesus – não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de Lho pedirdes” (Mt. 6,7-8). No entanto, foi no silêncio e na oração que Jesus recebeu a revelação da Sua vocação original (Lc.3, 21-22). Silêncio e oração que acompanharam todas as suas decisões. O Seu último combate interior, a Sua agonia, viveu-a na mais paradoxal das orações humanas, na última tentação (Mc. 14, 32-42; Lc. 22, 40-46). São Paulo e os discípulos de Jesus chegaram à conclusão de que não sabiam rezar. Só o Espírito de Deus e de Jesus Cristo os poderia ensinar (Rm. 8, 26-27; Lc. 11,13). A oração não se destina a modificar a vontade de Deus, mas a alterar o orante, a realizar a conversão do desejo egocêntrico, abrindo-o às dimensões e às tarefas da salvação do mundo. É a brilhante lição do Pai Nosso a oração da misericórdia de Deus e da misericórdia do orante. Quando o desejo aberto ao horizonte de Deus e do mundo descobre a beleza crucificada e ressuscitada de Jesus Cristo, quando na desfiguração da criação escuta o grito pela redenção, o cristão é divinamente provocado a falar e a cantar por vivos e defuntos. Canto do mundo em voz humana, louvação do céu e da terra, acção litúrgica.
O cristianismo não é fuga do mundo nem abandono ao mal do mundo. É uma escola de transfiguração permanente e paciente da vida interior e de participação na renovação da face da terra, segundo os ritmos imprevisíveis da história humana. Rezar por vivos e defuntos é uma Obra de Misericórdia espiritual, porque dá hospedagem no espírito, no coração, no desejo do orante àqueles por quem e com quem reza. Bem vistas as coisas, quem reza pelos outros ou com os outros tem, sem se dar conta, igualmente misericórdia para consigo mesmo: não deixa que os outros permaneçam estranhos ou morram no seu coração. Em algumas zonas da Cristandade desenvolveu-se muito a oração pelas almas do Purgatório numa espécie de troca de favores. Como as almas do Purgatório já não podiam fazer nada por elas – assim se dizia – podiam, no entanto, interceder a Deus por nós. Nós, ao meditar nas inscrições das Alminhas – “vós que ides passando, rezai por nós que estamos penando” – podíamos aliviar e encurtar os seus sofrimentos, orando para que Deus as leve depressa para o Céu. É um astucioso recurso da imaginação para manter um contacto, para não se perder uma comunhão entre vivos e defuntos, acreditando que “a vida não acaba, apenas se transforma”, como se canta no Prefácio da Missa pelos Defuntos. Creio sinceramente que a realidade é muito mais bela. Segundo Jesus Cristo, Deus não é um Deus dos mortos, mas de vivos (Mt. 22, 31-32). Tem inscritos no Seu coração todos os seres humanos, amigos e inimigos (Rm. 12, 14-21; 13, 8-10), os que vemos e os que já esquecemos, presentes nos olhos da Sua ilimitada misericórdia (Lc. 10, 20). Como diz São Tomás de Aquino, em Deus, o primado pertence sempre à misericórdia. O poder omnipotente da misericórdia não é o nome das lágrimas, é uma convocatória para o combate a toda a miséria (Summa Theologiae, I, 21, 3). Debilidade também de uma luta nascida do amor que nada pode impor. Misericórdia que pode brotar de onde menos se espera e que morre quando a religião ritualista seca o coração e gera a indiferença (Lc. 10, 29-37).
Habitamos, vivos ou defuntos, no coração de Deus. Pela oração, recebemos dentro do nosso desejo, dentro do nosso afecto – na verdadeira casa dos pobres – esse mundo de Deus onde ninguém será esquecido. A oração é a memória dos esquecidos da História.
Remir cativos e visitar os presos A. Laborinho Lúcio Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio é magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Autónoma de Lisboa. Foi director do Centro de Estudos Judiciários, ministro da Justiça e deputado à Assembleia da República.
Nesta viragem do tempo, carregada de complexidade e marcada por um ritmo
particularmente acelerado, é vendo para diante que se alimenta a utopia do Homem autor do seu próprio destino, mas é olhando para trás que se abarca a verdadeira amplitude da condição humana. Ali, num plano ideal, é legítimo procurar e descobrir a Cidade do Homem23; aqui, no tempo real, é urgente olhar o Homem na cidade, percebê-lo excluído, sabê-lo dependente, vê-lo cativo, encontrá-lo prisioneiro e procurar, ainda assim, um compromisso que o traga a provar o sabor da utopia. Compromisso outro que não já aquele que, há quinhentos anos, sendo o Primitivo da Misericórdia de Lisboa, “obedecia ao princípio de que a assistência dava as mãos à caridade, no desvelo integral para com a pobreza, a doença e a amargura”24, para o que houvera que estabelecer aquelas que ficariam a ser as Obras de Misericórdia na ideia de que “espalhar essa semente no coração dos homens equivalia à expressão mais funda do sentimento da caridade”25. Mas compromisso este, agora novo, que não buscando, embora, naquele, o seu pressuposto ideológico, nele encontre, todavia, à maneira do mote, inspiração para ligar, uma vez mais, a tradição e o progresso. 23
MANENT, Pierre, Instituto Piaget.
24
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, A Misericórdia de Lisboa – Quinhentos Anos de História, Horizonte, p. 32
25
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, ob. cit., p. 32
Ali, de entre as Obras corporais, destacava-se, logo à frente, o dever de remir cativos e presos, que o Compromisso da Confraria da Misericórdia de Lisboa, em 1516, veio repetir, ao consagrar que “a primeira Obra de Misericórdia corporall he a saber: Remir Catiuos e pressos uisitar”. Desde logo, uma primeira observação importa retirar do facto de não presidir ao espírito das Obras de Misericórdia qualquer intenção crítica que se dirigisse às causas que determinavam tanto a prisão como o cativeiro. Pelo contrário, aceites, uma e outro, como realidades de facto, era um sentimento de caridade religiosa que inspirava a Obra, ainda assim, subordinada a condições que, no que aos presos se referia, se prendiam com “a pobreza e desamparo da pessoa”, “a qualidade da causa” e “o estado da sua prisão e feito”26; enquanto, naquilo que com os cativos se relacionava, era “a conversão ao cristianismo que podia ajudar a libertação”, estando, no entanto, “longe de a implicar necessariamente”27-28. E, todavia, não faltava quem erguesse a sua voz não só em defesa da remissão dos cativos mas contra o próprio comércio de escravos, como foi, entre outros, o caso do Padre Fernando Oliveira que, na Arte da Guerra do Mar, em 1555, criticava, “com palavras acerbas este tráfico”29, indignando-se com o “trato púbrico de comprar e vender homens livres e pacíficos; como quem compra e vende alimárias/boys ou caualos e semelhantes”. Aceite a condição de escravo, enquanto “classe de população a quem se negavam todos os direitos”30, e bem assim a de preso, à época menos em cumprimento de uma sanção criminal, e antes em detenção de garantia aguardando condenação ou execução da pena, normalmente corporal, que haveria de lhe ser ou que lhe havia sido imposta31, não era a condição, em si, que se combatia, mas sim os efeitos negativos dela que tentava minorar-se, sem, todavia, a questionar. O que se pedia aos “homens de boa fama, sã consciência e honesta vida, tementes a Deus e guardadores de seus mandamentos, mansos e humildosos a todo o serviço de Deus e Compromisso da Misericórdia, 1618, cap. XI. MARQUES, A.H. de Oliveira, História de Portugal, Vol. I, p. 261, Palas Editores. 28 HENRIQUES, Isabel Castro, MEDINA, João, A Rota dos Escravos – Angola e a Rede do Comércio Negreiro, Ministério da Cultura , Angola, p. 106. 29 SERRÃO, Joel, Dicionário da História de Portugal, vol. II/E – MA, p. 78. 30 MARQUES, A.H. de Oliveira, ob. cit., p. 261. 31 LEVASSEUR, Georges, IMBERT, Le Pouvoir, les Juges et les Bourreaux, Hachette, pp. 294 e 295. 26 27
da confraria”32, era a prática da caridade, como forma, não de evitar ou de impedir um sofrimento humanamente degradante, mas antes de atenuar um padecimento legitimamente provocado. Outro, porém, há-de ser, por certo, o compromisso a firmar hoje, para a remissão dos novos cativos e para a visitação dos presos. No que a estes diz respeito, vencido o tempo durante o qual a prisão se desconhecia como pena e chegados a “uma época em que a liberdade era considerada como o bem supremo e o valor social mais precioso, a privação desta sacrossanta liberdade apareceu como a pena mais eficaz e, depois da pena de morte, a mais aflitiva”33. É então, já com o advento do Iluminismo, que nasce um novo movimento de contestação ao barbarismo das penas, sobretudo corporais, e, como consequência, se destaca o papel inovador e humanista da pena de prisão. Em 1764, o marquês de Beccaria, escreve a célebre obra Dei deilitti e delle pene que, na expressão de Eduardo Correia, “constitui a mais severa crítica ao direito penal tradicional e o mais completo repositório das ideias que deveriam presidir à reforma total deste ramo do direito”34. Para Beccaria, segundo o mesmo autor, “só a necessidade e a utilidade podem justificar as penas; as desnecessárias, ainda que não prejudiciais, são contra a justiça e a razão... Por outro lado, o fim da pena não é torturar, mas apenas intimidar o criminoso e as outras pessoas”35. Daqui veio a decorrer todo um processo dogmático tendente a definir os fins das penas em direito criminal, e no qual, como é sabido, três tipos de doutrinas vieram a destacar-se. Por um lado, as da retribuição, para as quais a pena constitui um castigo, traduzido na imposição de um mal ao agente do crime, justificado pelo mal que ele próprio provocou e pela possibilidade que tinha de ter agido de modo diferente; por outro lado, as da prevenção geral, moldadas no objectivo de intimidar as outras pessoas, através da pena, desviando-as da prática de crimes; e, finalmente as da prevenção especial, voltando a intenção preferencial da pena para o próprio delinquente e para a defesa da sociedade, de modo a que a sanção se mostre suficiente para que aquele não cometa novos crimes. Compromisso da Misericórdia de Lisboa. LEVASSEUR, Georges, IMBERT, ob. cit, p. 301. 34 Direito Criminal, I, Coimbra, 1963, p. 84. 35 Ibidem. 32 33
Paralelamente, a tendência individualizadora do direito criminal e da própria pena veio a conduzir, mais tarde, à consagração do critério da culpa como limite da pena e, assim, à formulação do princípio de que “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”36. Do mesmo modo, são ainda exigências de defesa social, mas também de solidariedade, que estão na base do pensamento da recuperação social do delinquente. As ideias humanísticas do Iluminismo Penal passam a influenciar decisivamente a concepção e os objectivos da intervenção criminal e, na esteira da Revolução Francesa, os Direitos Humanos vêm a estender-se até ao quadro de valores que havia de inspirar a construção do Estado de Direito. O preso já não é agora objecto de um encarceramento arbitrário, “logo privado da sua liberdade por detenção para investigações” desde que suspeito37, em nome da máxima segundo a qual “carcer ad continendos homines, non ad puniendos haberi debet”38. Ao invés, além de procurar no contrato social o seu próprio fundamento, o direito de punir passa a ter agora, como pressupostos do seu exercício concreto, a ocorrência de um facto anteriormente qualificado pela lei como crime, uma culpa do agente, um julgamento imparcial por um juiz independente e um objectivo teleologicamente definido e moldado no quadro das doutrinas dos fins das penas. E possível, então, afirmar-se com Paul Ricoeur, que “a justiça encontra o seu primeiro contrário na sede de vingança, que é uma paixão forte: a justiça consiste em não se fazer vingança”!39 E aqui se choca, hoje, de novo, a questão do tipo de relação a estabelecer, não apenas no plano abstracto, mas também no da acção humana, entre o cidadão e a criminalidade, como relação de cultura e, por isso, de valor, por forma a dar um sentido, também renovado, ao compromisso de cidadania que nos imponha visitar os presos, na consciência de que outros serão o significado e o objectivo último da visita. Como afirma Jean de Maillard, “num mundo aberto e complexo, o fenómeno criminal, uma vez banalizado, lança-nos um desafio paradoxal: habituarmo-nos a Ver FIGUEIREDO, Dias, Direito Penal – Questões Fundamentais – A doutrina geral. SEELIG, Ernest, Manual de Criminologia, Colecção Studium, II vol., p. 188. 38 Ver VABRES, H. Donnedieu, A Justiça Penal de Hoje, Colecção Studium, 2.ª edição, p. 187. 39 A Crítica e a Convicção – Biblioteca de Filosofia Contemporânea, Edições 70, p. 162. 36 37
viver com uma criminalidade que se tornou inerente ao funcionamento da própria sociedade, e conceber, ainda assim, respostas que a impeçam de nos submergir”40. Paradoxo, aliás, que nos projecta, uma vez mais e sempre, para aquele outro onde se chocam e se desafiam valores como os de liberdade e de segurança, cuja concordância prática se aceita como mais realizável em momentos de tranquilidade e de paz social, mas que se reconhece de difícil sucesso em tempos de maior complexidade, quando não mesmo de incerteza. E sendo estes os tempos de hoje, é neles e para eles que cumpre encontrar o sentido e os limites de um novo compromisso social e humano, na convicção de que este há-de partir de uma base contratual adquirida, por força da qual “os homens... serão sempre um prius, nunca um posterius, compreendidos como estruturas abertas e dialogantes capazes de assumirem a sua própria liberdade”41. A tarefa de visitar os presos, começa, assim, hoje também de novo, por exigir um retracto do visitador que vá além do “homem de boa fama, sã consciência e honesta vida...”, para se fixar na imagem do cidadão informado, capaz, por um lado, de intervir de forma activa no debate sobre a criminalidade e, por outro lado, de actuar com empenhamento crítico na procura de soluções que antes de garantirem apenas a prisão dos delinquentes sejam capazes também de assegurar, a todos, a verdadeira condição de homens livres. A caridade, residual, que se presta ao recluso, visitando-o, há-de anteceder a responsabilidade, essencial, na determinação daquela condição de preso. Logo, que não possa mais hoje desligar-se a Obra de visitar os presos de uma necessária intenção crítica quanto às causas, próximas e remotas, que justificaram a prisão. Há-de ser, pois, fora das grades que começa a visita. O crime, para lá das formas, mais ou menos sofisticadas, de que se vai revestindo, constitui hoje um fenómeno mediático por excelência e, quando violento, tende a despertar, ampliado na sua apresentação, reacções menos filtradas por um qualquer esforço de racionalidade crítica. A uma moral individual e privada que fundamentava o exercício da caridade, sucedeu uma moral-espectáculo, caldeada no bojo, também complexo, da chamada democracia de opinião. Esta, na expressão de Garapon, “reclama três ingredientes: a justiça, os media e a opinião pública, cujo encontro cria um precipitado explosivo. A capacidade de mobilização da opinião depende estreitamente da aptidão para suscitar a indignação”. Daí – continua – “a denúncia é já condenação numa época em que o tempo é instantâneo... as pessoas 40 41
Crimes et Lois, Dominos, Flammarion, p. 8. Preâmbulo do Código Penal Português, 1982.
postas em causa, correm o risco de se verem condenadas... antes mesmo de serem julgadas pela justiça. Assim, a condenação desmaterializa-se. Vive-se uma democracia reactiva, instintiva, que fala mais de que pensa, que se agita mais do que age”, concluindo que “o primeiro dever moral, numa sociedade cuja complexidade nos dá um sentimento de impotência, é o dever da denúncia”42. É neste quadro que questionar a criminalidade deixa de ser apenas uma tarefa de cientistas ou de responsáveis políticos, em busca, uns dos factores que a determinam e outros das soluções que a contêm ou a reduzem, para passar a constituir preocupação de todos os cidadãos. Mas de cidadãos vivendo numa democracia de informação e de conhecimento, na qual o direito legítimo à segurança, se não estruture na contraprestação de um dever de denúncia, mas antes num compromisso de tolerância social assente na ideia de que, no crime, importa distinguir o acto que, praticado com culpa, justifica o exercício do direito de punir; a vítima que exige reparação e a quem importa criar legítimas expectativas de tutela efectiva de direitos; e o delinquente que emerge como pessoa, portadora também de direitos e merecedora de um projecto de recuperação social que respeite a sua autonomia mas que forneça reais condições de integração. Visitá-lo, significa, por isso, olhá-lo nas causas que o determinaram e no contexto humano e social que o moldou, como significa também visita ao interior de nós próprios, à solidez das nossas convicções, à força com que enfrentamos a complexidade, agindo nela, ou à fragilidade com que escondemos os medos, renunciando, com a prisão dos outros, à nossa própria liberdade. Muito para lá de um desejável desígnio de caridade na visita aos presos, o que se deseja é uma verdadeira vocação de solidariedade entre a pessoa livre que, responsavelmente, partilha da decisão democrática de mandar prender, e o preso que, livremente, é capaz de aceitar a prisão que lhe foi imposta. Só assim o primeiro pode, solidariamente visitar o segundo. Só assim este aceitará, com dignidade, a visita daquele. Por isso que, nesse tempo, a Obra de Misericórdia, mantendo absoluta actualidade quando se trata de visitar os presos, prestando-lhes assistência espiritual e, se for caso disso, material também, não pode deixar de ir mais longe fazendo que 42
La Justice el le Mal, Editions Odile Jacob, pp. 188 e 189.
os cidadãos visitadores pugnem por um sistema que garanta de forma efectiva, o cumprimento do comando do art.º 40°, n.° 1 do nosso Código Penal, quando afirma que “a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e quando, no seu n.° 2, acrescenta que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Deste modo, densifica-se o sentido cívico da visita que, mantendo sempre o fundamento de dever moral que lhe esteve na origem, se projecta agora para uma dimensão mais profunda, na qual é possível encontrar, para contrapor à legitimação ética do direito de punir, a exigência, também ética, de então reinserir socialmente quem teve de sofrer a punição. Mas não apenas isso. Num sistema penal moderno a pena de prisão é tão-só uma entre várias outras, menos graves no sofrimento que provocam, mas não menos eficazes nos efeitos que delas pretende retirar-se. Ora, visitar os presos não se esgota, como vimos, agora, na aceitação da sua situação de reclusos, como se entre o cidadão-indivíduo e o poder público se estabelecesse um corte de sentido por força do qual àquele ficaria apenas, como missão, atenuar os efeitos negativos da sempre legítima intervenção prévia deste. Pelo contrário, importa começar por reflectir criticamente sobre a própria condição de preso e pugnar civicamente, por que ela não ocorra em casos injustificados tanto pela gravidade do delito, como pela idade do agente, como pelo efeito nefasto do encarceramento em várias situações. Trata-se aí, de agir num campo marcadamente ideológico, do qual, todavia, não pode excluir-se o conhecimento dos “efeitos perniciosos da prisão em infractores jovens”43, o que, nas últimas décadas tem desencadeado, sobretudo nos países anglo-saxónicos, “movimentos de opinião favoráveis à busca de vias alternativas ao sistema legal, isto é, instâncias não oficiais e mecanismos informais que poderão resolver com eficácia e menor custo os conflitos”44. Com efeito, mercê dos impactes produzidos num espaço social alargado, no qual a um excesso de comunicação não vai correspondendo igual densidade de informação, as reacções criminais fundam-se mais na dimensão virtual ampliada que nos é proposta, do que no significado real que lhes é próprio. Ao aumento de uma insegurança mais subjectivada do que comprovada, correspondem exageradas MOLINA, António Garcia Pablos, Criminologia – Una Introducción a sus Fundamentos Teóricos para Juristas, p. 319. 44 Ibidem. 43
exigências de repressão ao que, numa democracia, como vimos, tendencialmente mais instintiva e reactiva do que reflectida, vem ou pode vir a corresponder um sistema legal que permita satisfazer, na prática, aqueles anseios desmedidos. Tanto basta para fazer aumentar a taxa de marginalidade grave e, com ela, o número de excluídos, criando instrumentos formalmente lícitos, mas socialmente inadequados, para encarcerar cidadãos que, à luz de uma ideologia de integração, bem podiam responder, em liberdade, pelo desajustado dos seus actos. Esses serão enquanto presos, novos cativos para cuja necessidade de remissão importa alertar. Mas não só eles! Numa época na qual, sobretudo entre nós, não é possível falar já de “classes de população a quem se negam todos os direitos”, indispensável se torna observar a distância que separa ainda uma filosofia à luz da qual é possível afirmar, consensualmente, um vasto conjunto de direitos humanos fundamentais, e uma prática que não permite garantir, nos mesmos termos, a sua efectivação. Neste intervalo, instala-se e desenvolve-se o mundo dos excluídos, acentuando-se a distância que deixa de fora da moderna dinâmica de integração social aqueles que não têm condições, pessoais ou materiais, para aceitar e suportar, sem perda, o ritmo imposto. E essa constitui, sem dúvida, uma das grandes questões do nosso tempo. Desde logo, porque se desenham tendências para justificar a própria exclusão e, uma vez justificada, para com ela conviver, tomando-a como resultado de sucessivos insucessos individuais, por isso imputáveis aos próprios excluídos e criando, assim, o mito de uma exclusão justa ou justificada45. O desafio, por isso, é assim e uma vez mais o de remir os excluídos, hoje já não como Obra de caridade, mas como uma obrigação de ordem social. Com efeito, “a existência de grupos de excluídos impõe-nos, em nome da justiça, desenvolver um esforço colectivo a fim de tornar possíveis a reinserção dos seus membros e a sua existência independente em cada esfera de distribuição”46. WALZER, Michael, Exclusion, injustice et État démocratique – Pluralisme et Equité – la Justice Sociale dans les démocraties, Editions Esprit, p. 45. 46 Ibidem, p. 40 45
Para isso importará negar o fim da História e reinventar a sociedade política, na qual os cidadãos sejam “suficientemente dissidentes pata instaurarem novas práticas, suscitarem contrapoderes, reforçarem a sociedade civil e obrigarem o Estado a realizar o seu trabalho”47. As democracias modernas fizeram assentar as suas bases no significado e valor da representação, e confrontam-se agora com a necessidade de garantirem o direito a uma cidadania activa, isto é, o poder efectivo de “cada um exercer concretamente os seus direitos”48, o que passa, sem dúvida, pela disponibilização dos meios indispensáveis, nomeadamente daqueles concebidos para “darem a todos as capacidades intelectuais necessárias para participarem realmente na vida pública”49. Como afirma Philippe Engelhard, os direitos humanos contêm em si uma lógica de reciprocidade. Porém “são as novas práticas que lhes darão um sentido e um conteúdo real. A igualdade das mulheres e dos homens, por exemplo, resulta daquela lógica de reciprocidade. Mas são as relações de força e as relações sociais que farão entrar esta igualdade na esfera dos factos e não apenas na dos direitos”.50 E o mesmo raciocínio é válido para tantos outros domínios onde se jogam questões tão essenciais como, por exemplo, as do racismo, da xenofobia, das dependências, da doença, da fome, etc. São esses os cativos que cumpre, agora, remir, integrando-os num mundo que além de lhes reconhecer os direitos, lhes dê condições para que os exerçam em plano de igualdade. Para que a diferença, a existir, seja resultante do exercício de um direito e, por isso, livremente escolhida, e não a constatação de um estádio de inferioridade exteriormente imposto por ausência de condições para concretizar os próprios direitos. À maneira de Touraine, diríamos, também, que o essencial é que seja possível “permitir a cada um de entre nós viver o máximo possível da experiência humana”51. Será esse o sentido da História? Edgar Morin não esconde que “a experiência deste século induz ao pessimismo... As conquistas sociais das democracias europeias, incluindo o Welfare, estão ENGELHARD, Philippe, L’Homme Mondial – Les sociétés humaines peuvent-elles survivre?, Arléa, p. 561. 48 SCHNAPPER, Dominique, La Communauté des Citoyens, Gallimard, p. 94. 49 Ibidem, p. 95. 50 Ob. cit. p. 564. 51 TOURAINE, Alain, Qu’est-ce que la Démocratie?, Fayard, p. 277. 47
ameaçadas pela mundialização do mercado, pela busca do lucro, pela precarização do trabalho. Longe de estar diluída, a barbárie está em crescendo em numerosos pontos do globo. Um pouco por toda a parte, decompõe-se a ética cívica, o sentido da solidariedade, o sentido da responsabilidade”52. Por isso que valha a pena resistir ao declínio da ideologia, reafirmando “o ser autónomo que se reclama da sua individualidade e dos direitos do homem”53, ainda que, numa fase inicial, este não seja “muito bem visto nos grandes estados, nem pelo poder, nem pela opinião pública”.54 E, porém, e ainda, um apelo de solidariedade a exigir que, nesse sentido, um Novo Compromisso se subscreva e que a Obra se desenvolva, além do mais, no projecto de “criar associações, clubes, movimentos de opinião pública, de lançar debates de ideias”. Na verdade, “há muito que vivemos uma política de oferta, devemos regressar a uma política de procura”55. É verdadeiramente do exercício da cidadania que deve tratar-se, de uma cidadania de direitos, certamente, mas, sobretudo, de uma cidadania que desperte os indivíduos para a autoria da sua própria história, num processo partilhado, assente no reconhecimento do outro e sedimentado na consciência de um dever de participação cívica comprometida e responsável. Tal como há quinhentos anos cumpria traçar o perfil daqueles que tinham por tarefa visitar os presos, também hoje importa reflectir sobre o que urge de mandar aos novos visitadores e aos remidores do nosso tempo para que, em última instância, não sejam estes cativos de si próprios. E que, neste romper de século, ao interrogarmo-nos sobre o futuro, “é a existência daquilo a que chamamos história que vai estar em discussão. Nós explorámos, reconstituímos, antes da história, a pré-história. Não iremos nós entrar numa pós-história, análoga à pré-história, onde nada mais acontecerá? A menos que não aconteça o inverso, e entremos numa era nova, na qual aparecerá enfim um homem verdadeiramente homem”. Esta pós-história pode ter dois sentidos: um de catástrofe; o outro de metástrofe, prelúdio de uma sociedade harmoniosa56. Estará a escolha ainda nas nossas mãos? 52
Com Sami Nair, Uma Política de Civilização, Instituto Piaget – Economia e Política, p. 192.
53
LORENZ, Konrad, L’Homme en Péril, Flammarion, p. 178.
54
Ibidem.
55
TOURAINE, Alain, Carta aos Socialistas, T, p. 100.
56
GUITTON, Jean, Um Século, Uma Vida, Gráfica de Coimbra, pp. 361 e 362.
Muito dependerĂĄ, creio, do sentido Ăşltimo com que cada um quiser assumir, ainda, hoje, o Compromisso de Remir cativos e visitar os presos.
Curar os enfermos Maria de Belém Roseira Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Junho de 1972, exerceu advocacia, na função Pública teve funções como técnica superior e dirigente em vários organismos, assessora jurídica em gabinetes governamentais, foi chefe de gabinete do Ministério da Saúde, administradora da E.P. de Teledifusão de Macau, Vice-Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa., administradora delegada do IPO (Centro Lisboa), ministra da Saúde desde 28 de Outubro de 1995 a 1999 e ministra da Igualdade até 2000.
A ASSISTÊNCIA AOS ENFERMOS O espírito das Misericórdias e os novos desafios
1. O posicionamento da sociedade perante os doentes (sua evolução até ao aparecimento das Misericórdias) As atitudes da sociedade perante os carenciados, nomeadamente os enfermos, seguiram um longo, complexo e contraditório percurso. Se a assistência médica e a presença caridosa da piedade confluem, de facto, na prática institucional das Misericórdias, o que se verifica no entanto, através da investigação histórica, é que nem sempre assim aconteceu. Tempos houve em que se procedia, por vezes, ao puro e simples abandono dos doentes, ou à sua morte deliberada, para prevenir a epidemia. A sociedade manifestava, pois, a sua tendência para rejeitar os pobres e certos enfermos, nomeadamente os incuráveis, “com uma crueldade inaudita”. Por outro lado, os loucos, os doentes incuráveis, principalmente os leprosos, eram considerados como fazendo parte da marginalidade. Havia no entanto algumas e
grandes diferenças, de acordo com o estatuto social. D. Afonso II, por exemplo, era leproso. Havia também um posicionamento distinto entre esta situação e a dos saltimbancos, dos vagabundos, das prostitutas, etc. A lepra, a loucura, a doença incurável, não eram imputáveis aos infelizes que suportavam esses males, cuja causa, nestes casos, não era o pecado voluntário, mas a falha essencial da natureza, a que todo o homem está sujeito. Contra as dolorosas consequências desse pecado original, a única protecção era a misericórdia divina. Uma das formas de a invocar, de a atrair (segundo José Matoso) é justamente a caridade, isto é, tomar os carenciados e os doentes como objectos de benevolência para aliviar um pouco os seus sofrimentos, obtendo assim benefícios espirituais. A hipervalorização desses benefícios conduz a um conceito de caridade centrado quase exclusivamente no emissor da protecção, em detrimento do respectivo receptor. Estamos, pois, perante uma atitude que desvirtua o conteúdo ético-doutrinal cristão, tal como nós hoje o entendemos. É ainda esse conteúdo que determina, por exemplo, nos estatutos duma confraria de Torres Novas, a indicação de que todos os cristãos devem ter a regra de Jesus Cristo. Conclui-se portanto que ao nível do discurso e da fundamentação pública das atitudes assumidas, a caridade, a piedade para com os pobres e os doentes, devia ser praticada, porque Jesus, com o seu exemplo, a isso obrigaria todos os cristãos, enquanto tais. Estamos, como é óbvio, perante uma oratória idealizada, muito diferente da realidade concreta. Seja como for, é este um aspecto fundamental que duma maneira ou de outra, estava presente na sensibilidade da época e que por isso mesmo iria influenciar ou condicionar o conjunto de práticas sociais no domínio da assistência, nomeadamente na prestação de cuidados médicos. Essa influência é por demais evidente, pelo menos ao nível do discurso e das justificações públicas assumidas.
Consequentemente e na medida em que se assiste a uma espécie de refúgio no discurso publicamente assumido, assiste-se também a uma fuga ao imperativo ético na sua concretização ao nível da prática quotidiana. Poderemos pois concluir, que havia uma nítida tensão ou contradição entre a rudeza e insensibilidade dos tempos e o conteúdo doutrinal, apesar de tudo omnipresente. Daí que a solução de compromisso e consequente distanciamento, revestisse a forma de caridade cristã ritualizada, vazia de um calor e solidariedade humanos autênticos. No entanto a solidariedade aflora, persiste e subsiste – desenvolve-se mesmo, através dessa solução de compromisso: o ritualismo e a solenidade litúrgica. Acabará mesmo por evoluir para formas mais autênticas de que o Franciscanismo é um exemplo. Paralelamente, ou numa outra via, verifica-se ainda a sua institucionalização, como acontece com as confrarias que podemos considerar, também, como associações de socorros mútuos; como acontece com os hospitais e a centralização hospitalar, que visava não só a melhoria da assistência médica e doutros tipos de assistência como ainda, na opinião de Mollat e outros autores, um objectivo de controlo social; tal como acontece, finalmente, com as Misericórdias que são instituições privadas de solidariedade social por excelência. É nesta, ou segundo esta linha evolutiva, não esquecendo a tradição medieval das confrarias, que se desenvolve o modelo assistencial da Idade Média, para desembocar na grande reforma protagonizada por D. Leonor e por D. João II, neste aspecto ambos eles em perfeita consonância de objectivos.
2. A Misericórdia de Lisboa e os desafios da época Até aos finais do século XV, a assistência em geral, nomeadamente a assistência aos doentes era essencialmente considerada como uma prática caritativa realizada através de instituições fundadas pelos fiéis cristãos para remissão dos seus pecados. A assistência era pois, em grande parte, entendida como obrigação moral de todo o bom cristão. Verificava-se, por outro lado, no tempo de D. Leonor, uma grande proliferação de pequenos hospitais de fracos recursos e de administração inepta. Eram pequenos,
mal dimensionados, com estatutos ou regimentos completamente desfasados da realidade. Muitos deles pertenciam a corporações e foram instituídos visando uma resposta aos desafios duma época anterior. Podemos portanto afirmar que pressupunham um modelo social que já não existia. A sua acção exercia-se, pois, em função de uma realidade já ultrapassada nos finais do século XV, sobretudo no que se refere à cidade de Lisboa. De facto, Lisboa acaba por adquirir uma importância cada vez maior como centro comercial e marítimo, tanto a nível nacional como internacional. Transformou-se, consequentemente, numa cidade comercial cada vez mais importante e, ainda, na capital de uma nação eminentemente vocacionada para a actividade marítima, o que se traduz no aumento da população urbana em várias cidades do litoral, de que o crescimento de Lisboa é um dos aspectos. Nos finais do século XV acentua-se a movimentação a que já Fernão Lopes se refere, o que pré-anuncia a buliçosa e renascentista Lisboa de quinhentos. Verifica-se pois o crescimento da cidade devido ao fluxo de numerosas pessoas (por mar, ou por terra), não só nacionais como estrangeiras. Aqui procuram trabalho e aqui procuram fixar-se. Mas temos ainda a considerar a população flutuante. De facto, passavam pela capital todos aqueles que aqui pretendiam tratar dos seus negócios ou outros problemas. Assiste-se portanto, em consequência de tudo isto, a um aumento populacional desordenado e heterogéneo a que não era estranha a actividade marítima. Algumas das pessoas que aqui permaneciam, mesmo temporariamente, acabavam por adoecer, com maior ou menor gravidade, e muitas vezes morriam, não raro sem cuidados médicos de espécie alguma, atendendo à notória incapacidade de resposta das instituições hospitalares disponíveis. Por outro lado, o esforço das descobertas esteve na origem não só do abandono dos campos, cuja mão-de-obra passou, em parte, a integrar as tripulações dos navios, mas ainda de uma verdadeira história trágico-marítima com naufrágios, mortes e um elevado número de viúvas e órfãos, que só tinham como horizonte a miséria.
Tudo isto se reflecte no país inteiro, mas sobretudo em Lisboa. É neste enquadramento que temos de situar a iniciativa da rainha D. Leonor, ao fundar a Misericórdia de Lisboa, na sequência do Hospital das Caldas e do Hospital de Todos-os-Santos, surgidos numa altura em que o modelo assistencial da Idade Média já tinha perdido a sua capacidade de resposta perante os desafios da época, nesse domínio. Os finais do século XV caracterizam-se pois, por uma clara tendência para a concentração hospitalar e para uma maior intervenção estatal, na sequência aliás de problemas que já eram visíveis desde o reinado de D. João I. O Hospital das Caldas de Óbidos e o Hospital de Todos-os-Santos constituíram um marco fundamental que assinala o ponto de viragem para uma nova concepção da assistência. A Misericórdia de Lisboa e todas as outras que se seguiram completam esta reforma de acordo com a visão renovadora da rainha D. Leonor, em sintonia, quanto a este aspecto, com as próprias intenções de D. João II. Verifica-se, pois, uma mudança, no sentido de institucionalizar a assistência, dentro dum espírito religioso, mas com uma função pública e prática. Daí que a assistência aos pobres e aos doentes, sem deixar de ser uma expressão do espírito de caridade, se integre, agora, numa nova dimensão de serviço público com uma perspectiva que vai muito além da motivação religiosa. Não é pois, por acaso, que as Misericórdias viriam a administrar, a partir da segunda metade do século XVI, muitos dos hospitais do país. Acabaram, portanto, por espalhar e organizar a assistência, abrangendo uma vasta rede hospitalar, com expressão não só em Portugal e nos nossos domínios coloniais, mas também noutras regiões ultramarinas, como, por exemplo, no Japão. Com raízes históricas na tradição medieval das confrarias, protagonizaram, no entanto, os processos de renovação assistencial. Para isso, foram desde sempre beneficiadas pela protecção régia. A sua expansão apresenta-se-nos como o resultado de uma vontade política claramente manifestada pela Coroa. Há, pois, um evidente e útil aproveitamento por parte do poder central, das potencialidades das Misericórdias.
Este aproveitamento terá de ser enquadrado na resposta da época às necessidades do país, quanto à concessão de cuidados de saúde e, dum modo geral, quanto à assistência a prestar a todo o tipo de carenciados.
3. As Misericórdias de hoje e os desafios do nosso tempo Parece-nos que os desafios com que hoje nos deparamos, implicam, ou impõem, uma chamada de atenção para a responsabilidade da sociedade civil, e não só do Estado, no que se refere aos cuidados globais dirigidos a pessoas em situação de dependência física, mental ou social, às vezes profunda, cujas consequências o isolamento geográfico, ou o desenquadramento urbano, intensificam e agravam. Daí a necessidade de uma maior participação dos cidadãos, das comunidades e das instituições. Estamos, pois, no centro de uma problemática que transcende não só os aspectos meramente políticos (stricto sensu), como os aspectos técnicos, referentes aos cuidados de saúde a prestar nas suas diversas vertentes. Tratar-se-á, pois, de uma reflexão que interessa a sociólogos, a médicos e outros profissionais da saúde e da assistência social, não esquecendo o simples cristão comum na vivência da sua fé. Interessa também e finalmente (last but not least), a todos os cidadãos no livre exercício da sua cidadania e no âmbito dos seus deveres ou responsabilidades sociais. Tratar-se-á pois de uma participação da sociedade global, dada a necessidade crescente de respostas adequadas à complexidade múltipla das mais diversificadas vertentes do problema em questão: as já referidas dependências física, mental e social. Virá agora a propósito o célebre conceito de saúde difundido pela OMS, não certamente como objectivo totalmente atingível, mas, pelo menos, como uma meta para que se tende. Seja como for, a simples equacionação do problema arrastará consigo, como imprescindível pressuposto de aproximação ao objectivo ou à utopia a que se aludiu, o também imprescindível empenhamento da sociedade civil. Daí que se torne necessária a procura de um antídoto contra a insensibilidade e inércia já instaladas na pragmática mesquinhez do quotidiano. Carlos Dinis da Fonseca, ao referir-se à actualidade das Misericórdias apresenta-nos uma citação de Eça de Queirós, que passo a reproduzir:
“O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!… Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus! Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos de um Governo toda a sua iniciativa e cruza os braços, esperando que a civilização lhe caia feita das secretárias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde acção. E como o Governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir.” É evidente que a garantia dos direitos sociais do homem deve pertencer, inquestionavelmente, ao Estado. Mas também é certo que a demissão total dos cidadãos relativamente às suas próprias responsabilidades não é, de modo algum, uma atitude defensável. Daí a necessidade de uma colaboração alargada com os serviços oficiais de saúde, em que as Misericórdias têm um papel importante a desempenhar na promoção e defesa da dignidade daqueles que sofrem, vítimas de doenças crónicas de evolução prolongada, ou vítimas duma perda de autonomia resultante das mais diversas deficiências. Daí, ainda, a necessidade de encarar seriamente a relação do indivíduo com o meio em que vive, visto que a qualidade de vida, o bem-estar, e a própria saúde, dependem também dessa mesma relação, tal como se depreende da observação dos factos e de acordo com o conceito definido pela OMS. Daí finalmente a importância das Misericórdias, pois acreditamos que o desenvolvimento das suas actividades, no contexto da actual evolução da política de saúde, de acordo com a sua vocação e tradição multisseculares, poderão constituir (porque as populações sempre as sentiram como suas), um sector específico de prestação de cuidados de saúde directamente implantado nas comunidades, isto é, nos locais onde vivem e trabalham as pessoas.
Numa altura em que ao conceito de saúde se sobrepõe o de qualidade de vida, cada vez mais se impõe o abandono duma prática médica exclusivamente técnica, e cada vez mais se exige a sua integração num objectivo assistencial. Mas este objectivo só é possível na sua plenitude, através da interacção dos serviços oficiais com outras entidades privadas o que irá potencializar os efeitos desejados através das sinergias daí resultantes. De facto, no contexto do actual desenvolvimento do nosso sistema de saúde, em que se pretende optimizar uma estratégia para o virar do século, faz todo o sentido que se promovam espaços locais de iniciativa e desenvolvimento nessa área, de modo a que seja possível a sustentação de dinâmicas sociais apropriadas, que levem a uma participação activa dos cidadãos. Com efeito, se aliarmos as implicações do novo conceito de saúde com a eficácia das actuais tecnologias neste domínio, o que se traduz no mais elevado nível etário das populações e no consequente aumento de doenças crónicas de evolução prolongada, mais imperioso e urgente se torna o tipo de iniciativas atrás sugerido. Daí que se imponha uma nova atitude, atendendo ao envelhecimento das populações e à inexistência de cura para as doenças crónicas. De facto, à polipatologia que lhes é associada acresce o sofrimento, causado pela dor crónica e pela progressiva perda de autonomia, para os quais são necessárias respostas que implicam, sobretudo, deveres de humanidade e que a ciência médica, quando apoiada apenas na tecnicidade do mundo hospitalar actual, dificilmente consegue cumprir. É este o espaço de actuação e o grande desafio que, em nosso entender, as Santas Casas da Misericórdia vão ter de enfrentar no século que se avizinha, tanto mais que a abordagem destes doentes, utilizando o modelo usado para as doenças agudas, dirigido principalmente para a cura, ignora muitas vezes os aspectos psicossociais e humanos ligados à cronicidade, de tão grande impacte na qualidade de vida. Confrontam-se esses doentes com o triplo problema de serem atingidos por uma diminuição mais ao menos acentuada de funções, pela dor e sofrimento crónicos e, ainda, pela fragilidade económica e social. No contexto da saúde no limiar do século XXI, dar cumprimento à quinta Obra de Misericórdia corporal significa,
principalmente, actuar na luta contra o sofrimento evitável, na luta contra a dependência e na luta contra o isolamento e a estigmatização social. Numa época em que se encontra claramente definido o reconhecimento da dignidade humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz, significa também dar continuidade à mensagem da rainha Dona Leonor, numa conjugação entre as práticas humanitárias e a ciência actual, em que as Misericórdias actuem em complementaridade com os serviços oficiais de saúde. O tema do sofrimento, inserido na história do homem, é, de facto um tema universal que o acompanha em todos os quadrantes da sua vida, que coexiste com ele no mundo e que, por isso, exige ser constantemente retomado. De facto, aquilo que exprimimos com a palavra sofrimento significa algo de intrínseco à natureza humana. Ir ao encontro dele tem sido, para as Misericórdias, um cumprimento de missão, nomeadamente quando esse sofrimento, mais amplo do que a doença curável, diversificado e pluridimensional, atinge irreversível e profundamente as vertentes corporal e espiritual da pessoa. Minorá-lo sob uma forma institucionalizada, organizada, tecnicamente sustentada e integrada na comunidade e na família, parece-nos ser o grande desafio que a transição do século impõe a todos nós. Existe, de facto, uma crescente necessidade de cuidados de saúde e de cuidados sociais globais, dirigidos a pessoas que se encontram em situação de dependência, resultante do envelhecimento, da alteração de valores sociais, da alteração verificada nas estruturas familiares e, também, do fenómeno de desertificação rural. Existe ainda uma necessidade crescente de respostas adequadas, que permitam ao doente em fim de vida viver sem mal-estar, viver sem dor e morrer com dignidade. Estas respostas, de natureza paliativa, requerem serviços não apenas domiciliários, mas também de internamento adequado, visando o apoio global não só ao doente como à sua própria família. Estes cuidados a inserir no circuito do sistema de saúde exigem novos conhecimentos que permitam técnicas inovadoras e mais adaptadas às reais necessidades da
pessoa e da família a quem se destinam, com respeito pelos seus valores culturais, sociais e religiosos. Exigem ainda o estabelecimento de redes locais de apoio onde as Misericórdias, em nosso entender, devem assumir um papel activo, o que permitirá a prestação destes apoios com maior equidade, efectividade e eficiência sociais. Por esta razão, e de acordo com a reorganização e reorientação que se está a imprimir ao sistema de saúde português, uma das linhas estratégicas fundamentais será, sem dúvida, a articulação da política de recursos e dos planos de investimento, com os objectivos que nesta área as Misericórdias venham a assumir. Será assim possível perspectivar o aumento da oferta destes cuidados, através da abordagem organizacional integrada, em articulação com as Santas Casas e outros parceiros sociais, no pressuposto da complementaridade e da responsabilização. Celebrar, pois, os 500 anos de prática de misericórdia significa a transposição do amor ao próximo, tal como era entendido nos séculos XV e XVI, para a realidade sociocultural dos nossos dias. Isso implica, na nossa e actual vivência dos valores, não só o respeito pelos outros. Implica ainda e sobretudo a integração da solidariedade, institucionalizada dentro dum espírito de responsabilidade, na ideia de que os doentes não são, nem podem ser, meros objectos de caridade, mas titulares de direitos, que o Estado e a sociedade global têm o dever de assegurar, no âmbito das respectivas responsabilidades políticas, cívicas, morais ou religiosas.
Cobrir os nus Eduardo Ferro Rodrigues Natural de Lisboa, é licenciado em Economia, docente no ISCTE, deputado e dirigente nacional do PS, colaborador em vários órgãos de informação, ministro desde 28 de Outubro de 1995 com as pastas da Solidariedade e Segurança Social até Novembro de 1997 e do Trabalho e da Solidariedade.
Em 1504, representava-se, na igreja das Caldas, “à mui caridosa e devota senhora
a Rainha dona Lianor”, o Auto de São Martinho. Vendo-se este santo cavaleiro sem dinheiro, ao ser abordado por um pobre que lhe suplica esmola, saca da espada, corta a sua capa ao meio, e ali mesmo oferece metade dela ao pedinte. Gil Vicente dramatizava, deste modo, a Obra de Misericórdia que serve de título ao breve texto que me foi solicitado – e que com agrado acedi a escrever. Esta parábola encerra em si mesma a ideia de solidariedade, vocábulo duplamente substantivo que continua mantendo plena actualidade. Porque vestir aquele que tem frio só pode ser entendido, numa leitura extensiva, como sinónimo de auxílio a quem, despojado de bens essenciais, se vê inesperadamente excluído da família e da sociedade. Se a nudez e o frio têm aqui equivalência metafórica na privação e na exclusão, respectivamente, o acto de cobrir encontra paralelo apenas na vontade firme de combater a pobreza, erradicando-a do tecido social. É esta vontade que nos vem animando nesta Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza, agora com enorme acuidade, é certo, quando, sob a égide do Conselho da Europa, se encontra em desenvolvimento a campanha A Europa no Mundo, o Mundo na Europa: Contra a Pobreza e a Exclusão Social, ou ainda quando se procede à própria institucionalização do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Não esquecendo, obviamente, os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem que este ano se comemoram.
Mas, ainda que outros motivos não houvesse, bastaria a defesa da dignidade humana para justificar esta luta contra a pobreza, uma luta sem tréguas que sabemos, em consciência, não poder ser vencida de um dia para o outro. Uma luta que implica, em simultâneo, um trabalho de prevenção em múltiplas e variadas frentes e em que tomem parte activa todas as instituições de solidariedade social, bem como todos os agentes da sociedade civil. Porque esta é uma peleja de todos, que a todos diz respeito, porque, enquanto cidadãos, não nos podemos furtar às nossas responsabilidades, cientes, porém, de que a responsabilidade primeira terá de caber aos poderes públicos. Combater e prevenir – são estes, pois, os lemas da nossa intervenção social nesta matéria, que não se esgotam, de modo algum, nas políticas de solidariedade e segurança social. As políticas de saúde, de habitação, de emprego e de educação terão de cumprir, também, os seus objectivos, com vista à criação de condições que permitam eliminar de forma persistente os factores que perpetuam a pobreza e a consequente exclusão como, por exemplo, o abandono e o insucesso escolar, a degradação do meio habitacional, a incapacidade de inserção no mercado de trabalho, enfim, o processo cumulativo de desintegração social. A estes, e como já tivemos ocasião de sublinhar noutras ocasiões, poderíamos acrescentar factores de âmbito mais lato que explicam a realidade social do nosso país. Em primeiro lugar, Portugal continua a possuir sinais de uma pobreza tradicional, muito associada ao mundo rural e onde a privação de indicadores mínimos de conforto é clara; por outro lado, possuem alguma expressão, nas famílias de mais baixos recursos, os agregados que, apesar de inseridos no mercado de trabalho, desfrutam de rendimentos insuficientes em virtude de os seus membros activos possuírem muito baixos níveis de qualificação profissional; paralelamente são já visíveis fenómenos de exclusão social associados aos recentes movimentos migratórios e à concentração urbana e suburbana, bem como a novos grupos de risco que crescem especialmente nesse meio citadino; por último, a pobreza no nosso país é claramente influenciada pelas insuficiências marcantes do modelo de protecção social que entretanto se desenvolveu. Por tudo isto se exige que, a par de intervenções globais dirigidas a todos os sectores em situação de pobreza, se desenvolvam e aprofundem instrumentos específicos
dirigidos a grupos particularmente críticos e sujeitos a fenómenos de fragilidade: idosos isolados e/ou com recursos escassos, pessoas afectadas por situações de deficiência ou doença prolongada, crianças e jovens desinseridos de meio familiar satisfatório, jovens toxicodependentes ou, ainda, minorias étnicas. E neste contexto que são postos em prática diversos programas, alguns recentemente criados, que, acompanhados do desenvolvimento de uma rede de equipamentos e serviços sociais, potenciam o trabalho conjunto e empenhado em prol da exterminação da pobreza e da exclusão. Lembrarei, com a humildade que o assunto requer, algumas dessas medidas (que o Programa do XIII Governo Constitucional, em grande parte, já previa), enunciadas na brochura editada pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade com o título Dizer não à pobreza – um combate para ganhar. A primeira delas, pela sua magnitude, é o Rendimento Mínimo Garantido, modelo inspirado no formato que associa uma prestação pecuniária de apoio ao rendimento a um programa de inserção negociado e contratualizado entre as famílias beneficiárias e a comunidade organizada em núcleos de gestão participada do esforço de inserção, as denominadas Comissões Locais de Acompanhamento. Um dos objectivos principais desta medida é apostar num programa de inserção, em vários domínios prioritários, que “contribua para a satisfação das necessidades mínimas e para o favorecimento de uma progressiva inserção social e profissional”, que conduza o indivíduo à integração no meio social, facilitando-lhe o exercício dos direitos sociais para a conquista de uma autonomia social e económica. O desenvolvimento de um Programa Nacional de Luta contra a Pobreza, com projectos que cobrem actualmente todo o país, veio incentivar a eliminação dos mecanismos de pobreza e exclusão social, investindo fortemente na cooperação entre o sector público e o sector privado, na acção intersectorial numa perspectiva integrada, na participação e responsabilização de grupos e comunidades locais para saírem de forma sustentada da situação em que se encontram. Com carácter transitório e com uma duração média entre três e cinco anos, estes projectos localizam-se geralmente em zonas prioritárias e de maior risco social, sendo certo que a intervenção ao nível local permite a adopção de procedimentos mais flexíveis, com resultados, segundo avaliações feitas a projectos em curso nos últimos três anos,
bastante satisfatórios. Por exemplo: prática de uma cultura de intervenção social integrada; redução das situações de isolamento social dos idosos; diminuição de situações de crianças na rua e negligenciadas; redução do absentismo e insucesso escolar; maior autonomia da população face aos serviços sociais; incremento do associativismo local e constituição de grupos culturais e associações; reforço de pequenas iniciativas empresariais; redução da privação económica; criação de postos de trabalho, incremento do voluntariado social. Um instrumento de significativa importância para a estratégia de erradicação da pobreza foi, indubitavelmente, a celebração, em Dezembro de 1996, do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social. Estabeleciam-se com o Governo, desta maneira, parcerias alargadas aos mais importantes agentes e sectores da solidariedade social: União das Instituições de Solidariedade Social, União das Misericórdias, União das Mutualidades, Associação Nacional de Municípios e Associação Nacional de Freguesias. Com áreas de intervenção alargadas, foram fixados no Pacto de Cooperação alguns princípios fundamentais, destacando-se o princípio da subsidiariedade (que implica a intervenção das entidades mais abrangentes sempre que os problemas sociais não possam ser resolvidos pelas entidades mais próximas dos cidadãos) e o princípio do planeamento (que se traduz no estabelecimento de um plano social que vincule as Administrações Central/ Regional/Local e as instituições). No âmbito deste pacto têm sido estudadas e incrementadas várias medidas, nomeadamente o estatuto do voluntariado, a revisão do sistema de cooperação entre o Estado e as instituições do sector social, formas de intervenção da Administração Local e Municipal, estruturas de participação e cooperação entre a Administração Central, Local e as instituições – rede social (entendida esta como “o conjunto das diferentes formas de entreajuda, bem como das entidades particulares sem fins lucrativos e dos organismos públicos que trabalham no domínio da acção social e articulem entre si e com o Governo a respectiva actuação, com vista à erradicação ou atenuação da pobreza e exclusão social e à promoção do desenvolvimento social”), revisão do Estatuto das IPSS e do respectivo regime de benefícios fiscais. Para além dos programas que permitem a manutenção e o desenvolvimento da Rede de Serviços e Equipamentos Sociais, designadamente o PIDDAC, foram surgindo
programas dirigidos a segmentos de população com necessidades específicas e, em alguns casos, em articulação com outros ministérios. Tendo em atenção as situações de risco da população idosa, com especificidades próprias, foram criados os programas PAII (Programa de Apoio Integrado a Idosos) e PILAR (Programa Idosos em Lar). Se o primeiro programa (que decorre de despachos conjuntos dos ministérios da Saúde e do Trabalho e da Solidariedade) pretende responder de forma articulada e integrada a necessidades comuns às áreas da solidariedade e da saúde (privilegiando-se a autonomia do idoso no domicílio e no seu ambiente habitual de vida, a sua mobilidade e acessibilidade a benefícios e serviços e o apoio às famílias que tenham de assegurar cuidados e acompanhamento adequados a familiares que se encontrem em situação de dependência, nomeadamente idosos), o segundo tem em vista, na sua essência, possibilitar a realização eficaz dos projectos de apoio ao desenvolvimento social através da concessão de apoios para a concepção, construção, adaptação e aquisição de infra-estruturas e equipamentos para idosos. Também na área das crianças em risco surgiu a oportunidade de criação do Programa Ser Criança, assente, em termos de referência, na Convenção dos Direitos da Criança e tendo como objectivo geral promover o desenvolvimento global das crianças desfavorecidas, combatendo todas as formas de violência, entendida esta como todos os mecanismos que se opõem ao equilíbrio psicossocial da criança. Para a prossecução deste programa foram estabelecidas algumas orientações, de que destacamos: a valorização e priorização do trabalho com as famílias em termo de suporte social, integrando e dinamizando redes de apoio social de carácter formal e informal, promovendo a melhoria do desempenho das funções parentais; o fomento de espaços de organização e formação de crianças e adolescentes, favorecendo a sua participação na reflexão, discussão e construção de propostas sobre a situação social em que se encontram; incentivo a todas as formas de expressão, como acto de comunicação e manifestação do corpo, dos afectos, da inteligência e da própria história; promoção do direito à palavra, através de um ambiente propício à expressão da criança, fomentando a comunicação entre as crianças e as crianças e os adultos, favorecendo a consciência do EU. Em síntese, um programa destinado a socorrer as crianças, mas também, e sobretudo, a construir um adulto responsável e capaz.
Destacaria, ainda, a rede de equipamentos, serviços e iniciativas de desenvolvimento social, no âmbito da qual têm sido elaborados guiões técnicos na área das crianças e jovens em situação de risco (relativos a creches, lares de crianças e jovens, centros de acolhimento temporário), na área das crianças e jovens com necessidades educativas específicas (relativos a centros de actividades de tempos livres, colónias de férias e lares de apoio) e também na área da população idosa (relativos a centros de dia e apoio domiciliário). Acrescente-se a isto a regulamentação que tem sido criada especificamente para algumas actividades. Poderíamos também fazer menção à expansão da rede pré-escolar e à intervenção precoce, com vista à prestação de apoio a crianças até aos 6 anos de idade, em situação de alto risco ou com deficiência, e suas famílias, ou, na área da toxicodependência, à criação de Apartamentos de Reinserção e Equipas de Apoio Social Directo, ou, ainda, à criação de Unidades Residenciais, ao Apoio Domiciliário e aos Centros de Acompanhamento Psicossocial destinados à prestação de auxílio a pessoas infectadas com o HIV/Sida. Muitas outras respostas têm sido avançadas com o objectivo incontornável de contribuírem para a erradicação da pobreza, e nelas se incluirá, pela taxa de adesão que tem obtido, o subprograma INTEGRAR e as suas cinco medidas explicitamente vocacionadas para a integração económica e social dos grupos mais desfavorecidos da população. Entretanto, e porque cremos que a luta que travamos pela erradicação da pobreza passa necessariamente pelo alargamento dos níveis da protecção social garantida pelo Estado, avançou-se também com a Reforma do Sistema de Segurança Social, actualmente em curso, dando cumprimento à política anunciada no antedito Programa do XIII Governo Constitucional. A reforma do sistema, enquanto processo e obedecendo a uma lógica gradualista e progressiva, levou já à introdução de alterações profundas no domínio do seu alargamento e reorientação, combinando a lógica do reforço da universalidade da protecção social com as lógicas da diferenciação positiva dos mais necessitados, da cidadania e da contratualização no acesso aos direitos sociais. É naturalmente o caso da diferenciação positiva da actualização das pensões de invalidez e de velhice do regime geral, que permite desencadear um processo
sistemático de melhoria do nível quantitativo das pensões de valor muito baixo atribuídas aos pensionistas mais idosos e com carreiras contributivas mais longas; é também o caso da revisão dos critérios de atribuição e dos montantes das prestações familiares, introduzindo técnicas de selectividade na atribuição do subsídio familiar a crianças e jovens, concretizando o princípio da discriminação positiva e, deste modo, permitindo garantir uma protecção mais eficaz às crianças e jovens inseridos em agregados familiares economicamente mais débeis. Sem pretendermos ser exaustivos, embora haja actualmente, no domínio desta reforma, outras alterações em curso igualmente merecedoras de nota, registe-se a reformulação do quadro de articulação entre a segurança social e a saúde, no tocante à certificação da incapacidade temporária para o trabalho por motivo de doença. Tratando-se de uma medida à primeira vista apenas de simplificação burocrática, estamos cientes de que ela proporcionará uma maior eficiência no processo de pagamento das prestações de protecção na doença, para além de aviventar um maior rigor e uma maior justiça social. Chegados a este ponto, penso que o percurso que explicitámos ao longo deste abreviado texto espelha bem o desafio que na prática temos levado a cabo: um desafio que, capaz de atingir os seus fins, está longe, porém, de já ter alcançado todos os seus objectivos; uma prática de governação sensível e dialogante, aberta à colaboração e participação integrada de parceiros que desempenham, na área da solidariedade social, um papel activo e credor da nossa aprovação. Uma prática que cada vez mais se exige conjunta, comprometida e solidária. Porque a pobreza, como o dissemos no início, é uma peleja de todos, que a todos diz respeito. Porque a capa que São Martinho, num gesto expressivo, estendeu ao pobre está ainda longe, infelizmente, de poder cobrir toda a pobreza e exclusão do mundo.
Dar de comer aos famintos Alfredo Bruto da Costa Alfredo Bruto da Costa nasceu em Goa (Índia). Habilitado com o curso de Engenharia Civil, foi doutorado pela Universidade de Bath (Reino Unido), com a tese intitulada “O Paradoxo da Pobreza – Portugal 1980-1989”. Com equivalência ao grau de Doutor em Sociologia, pela Universidade Nova de Lisboa, foi Provedor da Misericórdia de Lisboa, de 1974 a 1979, ministro dos Assuntos Sociais do V Governo Constitucional (Agosto a Dezembro de 1979), professor auxiliar da Universidade Católica Portuguesa (Faculdade de Ciências Humanas), membro do Standing Committee do Comparative Research Programme on Poverty, do International Social Sciences Council, membro eleito do Conselho Económico e Social (português), membro da Comissão de Peritos Independentes da Carta Social Europeia e do Conselho da Europa.
1. Faminto é quem tem fome, quem está em situação de extrema privação. Privado dos alimentos necessários para subsistir. Pressupõe-se que se trata de privação involuntária, quer por falta de recursos quer por incapacidade de os gerir convenientemente. O preceito de dar de comer a quem tem fome tem profundas raízes no pensamento cristão. Bastará recordar a célebre e diversas vezes citada passagem do Evangelho de São Mateus, em que Jesus traça um dos quadros do Juízo Final: Quando o Filho do Homem vier em sua glória, (...) serão reunidas em sua presença todas as nações (...). Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me.” Então os justos lhe responderão:
“Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentámos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos-te ver?” Ao que lhes responderá o rei: “Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.” (Mt. 25,31 - 40)57 Daqui ressalta, designadamente, que um dos critérios pelos quais os homens serão julgados é o da medida em que deram (ou não deram) de comer a quem tem fome. O que é que este preceito evangélico significa no mundo de hoje? Não tenho autoridade para responder a esta questão, tratando-se, para mais, de um texto com profundas implicações, quer no domínio da espiritualidade quer em matéria de intervenção social. Farei apenas alguns breves comentários que me parecem úteis em ambos aqueles aspectos. 2. Nos tempos que correm, aquele preceito quer dizer, antes do mais, aquilo mesmo que literalmente significa: a fome é uma forma tão extrema e grave de carência, que deve ser acudida sob o signo da urgência. Perante a fome, todas as considerações ou cogitações acerca da situação são supérfluas e deslocadas. O sentido da urgência é um elemento fundamental da atitude perante a fome. Independentemente do resto, das causas, dos responsáveis pela situação, ou de qualquer outra indagação de efeitos dilatórios. Neste entendimento, toda a ajuda de emergência que seja dada, quer a título individual quer por instituições públicas ou organizações particulares, deve considerar-se necessária, indispensável. A questão que se pode, e deve, pôr é outra e consiste em se saber se essa forma de ajuda é suficiente. Vejamos. Dar de comer suscita, desde logo, o problema de se saber se se trata de uma situação pontual e esporádica, ou de um estado crónico e permanente. Parece mais importante abordar esta última hipótese, uma vez que o que se disser a seu respeito aplica-se, mutatis mutandis, à primeira. Tratando-se de um estado de fome crónico, estaremos, de modo geral, perante uma situação de pobreza. Também neste caso, é importante dar de comer para matar a 57
A Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, Brasil.
fome. Todavia, é evidente que, dando de comer, o faminto deixa de ter fome, mas não deixa de ser pobre. Deste facto emergem algumas consequências relevantes. 3. Exceptuando um número limitado de tipos de casos, a fome é normalmente resultante de falta de acesso a bens alimentares. Isto é válido tanto em contextos em que a fome é um problema residual, de reduzidas dimensões, quanto em situações de fome massiva, de populações inteiras. Em países de economia de mercado, como é actualmente a quase totalidade dos países do mundo, o acesso aos bens alimentares depende fundamentalmente da disponibilidade de recursos. Em rigor, é quando a privação resulta de falta de recursos que se trata de pobreza. Enquanto durar a dependência do faminto em relação a quem lhe dá de comer, o problema da privação (fome) fica resolvido, mas o da pobreza (falta de recursos) não. Quer isto dizer que o problema da fome só encontra solução definitiva quando vê resolvida a falta de recursos, ou seja, quando o pobre se torna auto-suficiente em matéria de recursos, podendo, assim, ter acesso aos bens alimentares (e a outros bens e serviços essenciais) pela via utilizada pelo comum dos cidadãos e pela forma corrente na sociedade em que vive, isto é, através do mercado. Se bem que a ajuda que se traduz, directamente, em dar de comer, seja, como se disse, da maior importância, tal forma de apoio deverá revestir carácter de ajuda de emergência, que não dispensa a resolução do problema da falta de recursos, do qual resulta. Neste entendimento, dar de comer não poderá significar apenas fornecer alimentos, mas terá de incluir também o necessário para que o pobre readquira a sua auto-suficiência em matéria de recursos. 4. Por outro lado, o texto evangélico acima citado, bem como o das Obras de Misericórdia de que se extraiu o título deste capítulo, podem levar a que se lhes dê uma interpretação meramente individual, de uma relação de tipo interpessoal. O faminto, o que tem fome, é um indivíduo, ou um grupo restrito de indivíduos, aos quais se deve acorrer de modo individualizado. Neste sentido, o texto evangélico se inscreveria no âmbito de relações interpessoais e não teria implicações no domínio das mudanças sociais necessárias à erradicação dos mecanismos geradores de pobreza que existem na sociedade. Não parece poder ser essa a interpretação requerida pelos tempos de hoje. A relação interpessoal é um valor que nunca é
demais salientar, sobretudo numa época como a nossa, em que a impessoalidade e a ausência vêm retirando qualidade humana a algumas actividades de natureza eminentemente interpessoal. Não se trata de subestimar o valor da relação interpessoal, mas de a integrar num contexto mais amplo, que a completa. É esta uma consequência do contributo entretanto trazido pelo progresso da cultura e das ciências, mormente das ciências sociais. 5. O texto das Obras da Misericórdia parece, à primeira vista, dar a entender que cada pessoa em situação de privação padece apenas de um tipo de carência: o faminto careceria apenas de alimentos, ao nu faltaria apenas o vestuário, etc. Ora, a experiência parece mostrar que, na maior parte dos casos, uma carência não ocorre isoladamente. O mais frequente é tratar-se de um conjunto de carências. Por outras palavras, as situações de privação e pobreza são normalmente situações de carência múltipla. Nalguns casos, a interdependência entre os diversos tipos de carência é manifesta e cientificamente demonstrável. Acresce que, numa situação dessas (de carência múltipla), o que se faça com vista a resolver um tipo de carência corre o risco de ter efeitos menores, quando não nulos, se não for acompanhada de acções destinadas a resolver os restantes tipos de carências que atingem a mesma pessoa. Daí que um verdadeiro projecto de luta contra a pobreza deva ser multidimensional, para ser eficaz. 6. Outro tipo de questões diz respeito ao lugar do benfeitor, na sociedade e na economia. Raramente, este pertencerá à classe dos pobres ou dos que têm um estilo de vida frugal. Assim sendo, e se é que, como creio, as causas da pobreza em geral, e da fome em particular, se encontram no sistema económico e social, ou seja, no modo como a sociedade e a economia estão organizadas e funcionam – então, o benfeitor terá, ou poderá ter, alguma parte de responsabilidade no estado de coisas em que a sociedade se encontra. Poderemos, então, estar perante um quadro contraditório, em que o cidadão co-responsável e beneficiário da ordem social e económica vigente, que gera a pobreza, assume o papel de benfeitor, para acudir à fome que, nalguma medida, ele próprio contribui para gerar. Neste entendimento, caso o benfeitor se veja a si próprio apenas como parte da solução do problema da
pobreza, terá de começar por reconhecer que, em termos objectivos, ele também é parte do problema. Esta tomada de consciência virá, naturalmente, alterar profundamente a sua atitude perante a pobreza. Serão, também, diversas as atitudes consoante cada um considere que dá do seu ou apenas restitui ao pobre o que a este pertence. Por mais legais e legítimos que tenham sido, à luz das leis e da cultura vigentes, os meios por que esses bens chegaram à posse de quem os detém. Isto tem que ver com princípios básicos do pensamento cristão, cujas arestas a poeira do tempo parece ter esbatido. Parece imperioso que a cultura, neste virar do século e milénio, restitua a esses princípios o seu recorte original. Um deles é o do destino universal dos bens da terra, segundo o qual os bens da terra existem, foram criados por Deus, para servirem todos os homens. Perante um faminto, parece inevitável a interrogação sobre a relação, ou contradição, entre essa situação e aquele princípio fundamental. Parece urgente uma reflexão séria sobre o assunto. Em primeiro lugar sobre o contraste entre a fome e pobreza e o destino universal dos bens da terra. Seria importante que essa reflexão nos conduzisse a identificar o ponto a partir do qual cada um deveria dizer Basta! à acumulação de riqueza e à corrente consumista que a todos consome. Em segundo lugar, a reflexão ficaria a meio do percurso se não enfrentássemos uma outra interrogação relacionada com a anterior: por força de que factores sou rico ou remediado e o outro é pobre ou mesmo faminto? É preciso evitar respostas superficiais ou maniqueístas (dos bons versus maus), bem como generalizações apressadas e sem base científica (“Eu conheço um caso...”). Não basta olhar para casos individuais. É preciso analisar a sociedade e verificar se esta contém, ou não, dentro de si mecanismos que excluem uma parte dos seus membros do acesso aos bens e serviços necessários à subsistência e ao progresso pessoal. Uma reflexão desse tipo não deverá conduzir a subestimar a importância de dar de comer a quem tem fome. Mas impelirá a que, além disso, cada um se sinta e actue como um agente de mudança social, no sentido de libertar a sociedade dos mecanismos sociais, económicos e culturais que geram e perpetuam a pobreza e a fome. No contexto de uma tarefa complexa e multifacetada como essa, cada um encontrará o papel que melhor corresponda à sua vocação pessoal. Parece, no entanto,
de desconfiar das vocações que se satisfazem com formas de ajuda que mantêm inalterado o estilo de vida de quem se interessa por dar de comer ao faminto. 7. A consciência que temos hoje, de pertencermos a uma única família humana, à escala mundial, leva a realçar um outro aspecto do preceito evangélico que estamos a analisar. Hoje, o preceito de dar de comer ao faminto tem repercussões mundiais. Como se sabe, existem países onde a pobreza, a miséria e a fome atingem um grau e uma extensão intoleráveis. Para apenas referir o aspecto que aqui mais directamente nos ocupa – a fome –, note-se que “cerca de 840 milhões (de pessoas) passam fome ou enfrentam insegurança alimentar”58. Os porquês desta situação serão diversos e complexos. Uns técnicos, outros culturais, outros políticos, outros comportamentais; uns internos, outros externos (relacionados com a (des)ordem económica mundial). Tem sido salientado o contraste, dificilmente explicável, entre, por um lado, as situações de miséria e de fome massivas que hoje se verificam e, por outro, o domínio dos recursos que o progresso científico e tecnológico hoje permite. Sejam quantas e quais forem as causas e as razões que expliquem as gritantes desigualdades entre os países ricos e pobres, a situação também terá de ser avaliada à luz do destino universal dos bens da terra. Também à escala mundial, a situação requer medidas de emergência e acções e políticas que visem a solução das causas profundas do problema. Também aqui se põe a questão de os benfeitores – indivíduos, organizações ou países – procurarem saber se serão apenas parte da solução, ou também, e antes, parte do problema.
58
PNUD (1997), Relatório do Desenvolvimento Humano 1997, Trinova Editora, Lisboa, p. 5.
Dar de beber aos que têm sede Maria José Nogueira Pinto Maria José Pinto da Cunha Avilez Nogueira Pinto, casada, mãe de três filhos, licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra e deputada à Assembleia da República, dirigiu a Maternidade Alfredo da Costa, foi provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e secretária de Estado da Cultura em 1992. Eu estarei diante de ti sobre o rochedo de Horeb. Baterás no rochedo e dele brotará água, então o povo poderá beber. (Exodus 17, 5-6).
As Obras de Misericórdia são de sempre e para sempre. Assentam na essência
da natureza humana que nunca mudou nem mudará. Cada homem, cada mulher, encerra em si, de forma permanente, a dualidade do bem e do mal: força, fraqueza; luz e trevas; alegria e sofrimento. Até à consumação dos séculos, haverá uma voz para gritar a dor e outra voz que responderá ao apelo. E até à consumação dos séculos, haverá sempre dor e compaixão. É certo que vivemos uma época em que uma parte (reduzida...) do globo é marcada por um forte progresso virado, em princípio, para a felicidade do ser humano. Mas também é certo que a Aldeia Global tornou mais inexplicáveis e cruéis as profundas injustiças geográficas. É que uma outra e substancial parte do mundo conhece, ouviu falar, pode mesmo visualizar à distância o progresso, a abundância e o bem-estar a que não tem nem terá tão cedo acesso.
Nasço, vivo e morro de acordo com a minha geografia. Como resolver esta atroz contradição no mundo global emergente, assente na possibilidade cada vez maior de afastar o sofrimento e retardar a morte? Mesmo nos países desenvolvidos onde o progresso científico e tecnológico abriu perspectivas de bem-estar, aumentam as doenças do espírito, originadas em vírus de solidão e ausência de esperança e surgem novas doenças do corpo que renovam a perplexidade dos sábios e marcam um recomeço na ancestral angústia da impotência no combate ao sofrimento e à degradação humana. O próprio desenvolvimento cria modelos económicos e sociais que atiram para as bermas os mais frágeis, os mais vulneráveis. As grandes sociedades mediáticas inventam e recriam quotidianamente extraordinários mundos novos numa sucessão de imagens de glamour para fazer sonhar, pintalgadas com miséria humana, moral e física, para secarem o capital de pena e aflição, património de cada coração humano. É neste mundo, simultaneamente tão vasto e tão pequeno, tão longínquo e tão próximo, tão bom e tão mau, tão alheio e tão próprio, tão poderoso e tão vulnerável, que vale a pena repensar a compaixão e a misericórdia, na sua perenidade e essencialidade. Maquiavel dizia que era preciso cuidar dos pobres para que estes não constituíssem uma ameaça para o Estado. Cuidar dos pobres era assim um acto de lucidez política. Aliás hoje os sistemas sociais são infelizmente vistos sobretudo como amortecedores de crises sociais e políticas. Por um lado arreiga-se a convicção de que os recursos são escassos e a pobreza é um mal incurável, um facto da vida, da realidade. Por outro, acalmam-se as consciências com optimismos infundados como se o progresso, por si só, marcasse uma inexorável rota para a felicidade colectiva. No geral, as instituições que respondem à satisfação de necessidades colectivas balançam entre estes dois estados de espírito. Não é natural (nem talvez desejável) que sucumbam a um sentimento que designaria como de insustentabilidade face às situações de carência extrema. Esse sentimento de insustentabilidade que, tornando o sofrimento alheio intolerável, gera um movimento instintivo e efectivo de busca de respostas traduzidas na materialização da ajuda.
Mas a Santa Casa da Misericórdia, pela sua natureza, pode e deve ser, neste espaço e neste tempo, a excepção. Ou seja, a expressão humana e física, primeiro do sentimento de insustentabilidade, e depois de todos os gestos, palavras e providências do remédio, do paliativo. Num certo sentido, a guardiã da afirmação da insustentabilidade do sofrimento do próximo. Esta exigência singular não é obra do acaso. Assenta em convicções anteriores ao Compromisso e que o enformam. Desde logo a da reciprocidade da misericórdia: quem pede e quem dá, sendo que quem dá também recebe e quem pede também dá. Há um efectivo consolo e gratificação mútuos. Depois a ideia una da pessoa humana, na sua matéria e no seu espírito. Unidade de sentimento, de vida, de sofrimento, de dignidade. A água é fonte de vida. E é também o mais forte de todos os elementos. O homem foi fazendo a terra que recebeu, conquistou ou ocupou. Modificou-a, moldou-a, tornou-a fértil e não poucas vezes a destruiu. Mas teve de fazer-se ao mar, expressão que encerra em si mesma a ideia de um combate de que, com frequência, saiu derrotado. Também é sabido que a água foi não só o mais poderoso como o mais caótico dos elementos. A água contém a confusão, mas também a luz. A água foi sempre caminho, procurado e muitas vezes por achar. Foi passagem e purificação. A água não é apenas fonte de vida física, matéria da nossa própria composição biológica, elemento acondicionador de toda a vida na Terra, presente e essencial desde a fase embrionária. Como diz o Padre L. Manuel Pereira de Silva, “entre o Homem e a Água existe uma compenetração simbólica”. “Em todos os planos, cósmico, antropológico e ritual, as águas fazem morrer e renascer, elas são um abismo onde nos perdemos e uma matriz onde se regenera.” (L. Beirnaert).
Dar de beber a quem tem sede significa pois muito mais do que a satisfação de uma necessidade física. Nunca é um acto isolado, alheio às virtualidades de morte e de vida, de caminhada, de purificação, de redenção. É assim que a Água, elemento, e a sua indissociabilidade com o Homem, esse homem uno de matéria e espírito, representa no conjunto das Obras de Misericórdia talvez aquela que mais consubstancia a plenitude da caridade, numa pluralidade e abrangência tão definitivamente proclamada por São Paulo: “Se não tiveres caridade nada terás.” Porque na Caridade, tal como na Água, está tudo. A capacidade de ver a dor do espírito para além da necessidade circunstancial do corpo. A caminhada que se faz na Água e pela Água do Caos ao Cosmos, do mar Vermelho ao Jordão, de uma ponta à outra do globo na palavra e no testemunho, do nascimento à morte através da vida terrena, da escuridão do pecado original à luz redentora da água baptismal com o seu profundo sentido de verdade e liberdade. É Cristo que diz à samaritana: “Quem bebe desta água voltará a ter sede, mas quem bebe da água que Eu lhe der jamais terá sede...” Agua fonte de vida é uma constante da mensagem cristã, que Tertuliano tão bem exprime nestas palavras: “Cristo nunca aparece sem água! Foi baptizado na água; é a água que inaugura nas bodas de Caná, os sinais do Seu poder; convida os que têm sede a beber a Sua água eterna; reconhece, como obra de amor, o copo de água dado ao próximo; perto de uma fonte, retempera as Suas forças; caminha sobre a água, atravessa-a facilmente; lava com água os pés dos Seus discípulos. No Seu corpo Ele transporta o novo Mar.” O homem triste, abandonado, sofredor, humilhado dos nossos dias, é afinal o homem ressequido, o que perdeu as condições de possibilidade de esperança. A água dada a quem tem sede deve ser a devolução da esperança. “E que o homem ressequido se aproxime... receba gratuitamente a água da vida.” No mundo de hoje este ser humano ressequido, desesperado e só, não é uma figura de retórica. É uma constante do nosso quotidiano. Quem está na primeira linha
da acção social no terreno sabe que as respostas globais e integradas que reclama correspondem à constatação de um sofrimento global mas desintegrador a que se assiste. No imperativo misericordioso de dessedentar estão implícitos todos os outros, de devolução da dignidade e da esperança, pelo que não basta estender o recipiente que contém aquela porção de água, mas ajudar um número crescente de ressequidos a conhecerem o caminho da fonte e a reganharem o seu direito a usá-la. Porque a caridade é bilateral e as Obras de Misericórdia traduzem essa bilateralidade estabelecida entre quem pede e quem dá, quem grita e quem responde. É que o que dá, o que responde, percorre de certa forma o mesmo caminho: sofre, porque percebe o sofrimento do outro, apressa-se porque sente a urgência do outro, encontra remédio porque assume, também como sua, a necessidade do paliativo. O que dá e o que responde não é um ser magnânimo, superior. Ele é o outro, ambos são o próximo, ambos se revêem na imagem e semelhança de Deus. E Cristo Homem revê-se em todos. “Tinha sede e não me deste de beber.” Ou deste. E se deste foi através de outro, cuja sede de certa forma é sempre em nome de Cristo. Logo imperativa. Julgo que é isto mesmo que a célebre pintura Fons vitae da Santa Casa da Misericórdia do Porto transmite: “Num dito com a Fonte da Vida, da Misericórdia, da Piedade”. Que todos os que hoje, neste final de milénio, procuram no âmbito das Misericórdias cumprir o Compromisso possam ver para lá da concreta obra de dar de beber, um horizonte de “águas que simbolizam a totalidade das virtualidades: fons et origo, a matriz de todas as possibilidades da existência”. (M. Eliade).
Dar pousada aos peregrinos e pobres Isabel Guerra Isabel Maria Pimentel de Carvalho Guerra é professora associada na disciplina de Sociologia Urbana no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE) em Lisboa (onde lecciona desde 1981). Com o Curso Superior de Serviço Social, licenciada em Sociologia e doutorada (pela Universidade François Rabelais) em Tours/França, tem uma vasta experiência profissional de trabalhos de terreno, de ensino, de investigação e de formação.
A imagem mais finalizada da exclusão social é transmitida, desde o princípio dos
séculos, pelos sem-abrigo. Sem emprego, sem família, sem casa, sem lar..., sem abrigo. Reconhece-se nesta pobreza a solidão mais absoluta – espiritual e corporal – a que apelam as Obras de Misericórdia. A ausência de abrigo tem essa característica de ser simultaneamente a ausência moral e a privação material de um lugar no mundo: a falta de um local, pequeno que seja, não apenas de uma casa, de um lar, um sítio para dormir mas também um canto onde a segurança permita a livre e descontraída expressão do eu, onde se está à vontade, onde se retemperam as forças de uma vida nem sempre fácil. Como é possível que em pleno final do século XX esse direito básico não esteja assegurado para 1,5 mil milhões de pessoas? Como é possível que em Portugal exista cerca de meio milhão de pessoas mal alojadas?
O direito a uma habitação mínima Poderíamos implementar um direito a uma habitação mínima tal como o direito ao rendimento mínimo? Se o direito ao rendimento mínimo emerge como um substituto do direito ao trabalho, a necessidade de alojamento, ao contrário, é uma necessidade primária que não tem alternativa e é, em última instância, o traço distintivo entre a marginalização e a integração. Nesse sentido, nada mais necessário do que o estabelecimento do direito à habitação como um essencial direito à sobrevivência. De facto, o direito à habitação é antes de mais um direito social e um dos paradoxos das políticas de alojamento tem que ver com esta contradição entre a definição de um direito público e uma prestação assistencial, que deveria permitir aos peregrinos e pobres o acesso a esse direito, aliás definido na Constituição da República. Em Portugal, esse direito não é tributário de uma prática real mas aproxima-se de um direito teórico, proclamativo. Será pois inútil essa definição na Constituição? Seria de grande incapacidade política retirar essa conclusão. Conhecemos bem as contradições entre as definições da lei e as regulamentações que as efectivam. A lei estipula valores sobre os quais é possível estabelecer consensos mas é preciso ir para além dela construindo dispositivos e procedimentos cuja finalidade é permitir aos actores sociais o acordo face aos objectivos da acção pública e a distribuição de recursos em cada momento histórico.
Os direitos que saem tortos Mas o direito ao alojamento não é apenas um direito a uma casa, estrutura-se num processo de redistribuição social em que a dádiva pode ser mais estigmatizante do que a carência, por duas ordens de razões – pelo produto oferecido e pelo processo que o envolve. A oferta estigmatizante de alojamentos em bairros densificados e urbanisticamente desintegrados, de má construção, rapidamente degradados, nem sequer consegue já calar as consciências, mas remete (santa hipocrisia) o mal-estar urbano para os próprios pobres – pobres e mal-agradecidos – que insistem em destruir a natural harmonia ecológica dessas selvas de betão armado.
Mas os processos de realojamento não são mais inocentes, mergulhados nessa ilusão tecnocrata que ignora a complexidade dos contextos em que se insere a efectivação do direito ao alojamento e que ultrapassa largamente a falta de abrigo, olvidam que o acesso ao alojamento como direito é um momento privilegiado de regulação do conjunto das relações sociais e de renegociação do lugar dos pobres na cidade.
A incerteza dos quadros de acção e a necessidade de inovação a partir de um aprofundamento do conhecimento do real Não, não há certezas hoje de como actuar face à evolução da natureza dos problemas, ao aumento da sua complexidade e imbricação e perante as incertezas sobre as melhores respostas. À crítica ao one best way, concepção determinista dos efeitos da acção, e à definição da acção como uma sequência de etapas, segue-se uma acção social, opaca, intermitente e imprevisível, de difícil avaliação dos resultados. As dificuldades da acção social actual devem-se quer às incertezas e inoperâncias de um Estado providência em eterna crise, quer à natureza dos problemas resultantes de constrangimentos endógenos e exógenos que pesam sobre as nossas sociedades, quer ainda devido à insuficiência de conhecimentos que conseguimos accionar para os conhecer e resolver. Estamos no momento actual, repetindo os mesmos paradigmas de entendimento da exclusão social, perpetuando um sem-número de lugares comuns sobre as populações excluídas, sem conseguir atingir um conhecimento mais aprofundado e minucioso das diversas tipologias das populações desfavorecidas e dos seus modos de vida. No entanto, já percebemos que só esse conhecimento, real e concreto, e simultaneamente interpretativo e abstracto, permitirá inovar em cada contexto e não repetir lógicas do passado ineficazes. Peregrinos e pobres, desempregados e toxicodependentes, famílias monoparentais e idosos isolados, etc., etc., são tipologias sem fim que, sob a mesma denominação, representam vivências e necessidades tão diferentes, quaisquer delas não dispensando a pousada. Mas é a mesma pousada? Com o mesmo tipo de processo de acompanhamento? As populações categorizadas como excluídas não são nem claramente identificáveis e nem têm todas a mesma visibilidade. Face ao alojamento é particularmente
significativa essa dificuldade pela ausência de uma linha nítida de divisão entre as populações desfavorecidas e as outras, e pela flutuação das representações que se dão da exclusão. As políticas públicas encontram-se frequentemente perante a incapacidade de estimar a procura, de a traduzir em indicadores estatísticos simples, de a teologizar, e de a hierarquizar. A procura não é visível senão através da abordagem empírica dos intervenientes e estes têm pouca voz pública. Acrescente-se que as políticas comunitárias teimam em ignorar as fragilidades nacionais neste campo de exclusão, não financiando a construção de habitações mesmo em situações extremas, o que reforça o silêncio sobre estas realidades. Os dispositivos de resposta são concebidos como se a apreensão dos públicos desfavorecidos fosse imediata, ligada à experiência empírica dos operadores de terreno. Mas esta simplificação confronta-se com uma realidade muito complexa. As populações excluídas e sem abrigo não podem ser apreendidas como um conjunto estatístico a reabsorver, apresentam-se, sobretudo, como um fluxo com idas e vindas frequentes entre os diferentes estatutos. Cada vez mais o problema da exclusão não pode resumir-se à constatação da existência de um sistema dual estático de ricos e pobres, mas apresenta-se, quando muito, como um sistema de círculos concêntricos que se interpenetram e cujos contornos de mudança são irregulares e permanentes. Mas, e sobretudo, os problemas dos sem-abrigo e da exclusão não podem também ser concebidos como margens sociais, devem ser entendidos no interior de um processo de fragilização, ou de vulnerabilidade contínua, não dos pobres mas de uma sociedade que não encontrou, ainda, a justiça social e o exercício misericordioso e persistente da oferta de condições de igualdade de oportunidades. No entanto, há algumas regras-chave que a experiência foi ilustrando – a habitação é um dos módulos do problema da exclusão social mas a intervenção sobre ela exige um trabalho integrado, territorializado e participado. O ponto de ruptura da acção social contemporânea parece consistir em desenvolver estratégias de cooperação a partir das quais se constroem novos comportamentos
e formas de agir. Nesse sentido, emergem hoje políticas sociais territorializadas, capazes de gerir horizontal e transversalmente os recursos e mobilizando relações entre diferentes pólos de actores. A política da cidade, e muitas acções públicas contratualizadas, suscitam deste ponto de vista inúmeras dificuldades e muitas esperanças – dificuldades de financiamentos, conflitos com a descentralização de competências, politização dos recursos, etc. – esperanças na procura da qualidade de vida e segurança urbana que une intrinsecamente e inevitavelmente os urbanitas.
A recusa da segmentação Só a burocracia tecnocrática conseguiu separar pessoas e famílias às fatias de problemas, numa ilusão de divisão do trabalho social que impediu um olhar integrado, sistémico e dinâmico sobre a génese dos problemas. A gestão segmentada dos problemas mais não é do que a tradução da incapacidade de tratar de forma global os problemas da pobreza e da precariedade na sociedade actual. A forma como temos vindo a tentar resolver os problemas do habitat e da repartição espacial da população mostram à evidência os efeitos perversos desse olhar segmentado. Dar pousada sem pensar em proporcionar segurança, emprego, redes de relações, gera novas exclusões, quiçá mais graves e irremediáveis, socializando as novas gerações em autênticos guetos sociais. Um olhar integrado e sistémico é também o alargamento do campo das intervenções do social para o económico, o cultural, o psicossocial, etc. E, sobretudo, a tentativa de entender os nós geradores dos problemas de exclusão num contexto dinâmico da relação entre o actor e o sistema e onde, abandonando visões maniqueístas da acção social, se pretende que ambos passem de culpados a actores e construtores de novas relações sociais.
O trabalho de projecto Um dos critérios mais prospectivos desta nova política social integrada territorializada é o reforço do trabalho de projecto. Projecto sobre o qual se estabelece um
contrato, quer dizer, se formulam prioridades, correspondendo a compromissos para a acção, prioridades hierarquizadas e organizadas e visando uma coerência do conjunto. Projecto cuja clarificação sucessiva vai gerando uma cultura de comunidade de interesses e solidificando políticas locais integradas e participadas. Mas o essencial aqui é menos o enunciado formal do projecto do que a construção de um processo que exige determinados procedimentos e formas de construção da acção social. A prática de um diálogo entre os necessitados, os técnicos, os eleitos, os notáveis, etc. dá lugar a uma multiplicidade de operadores. São cooperações de interesses e de motivações, nascidas em função de negociações permanentes que pretendem responder a questões concretas (e únicas porque sempre diferentes) e é nesse pragmatismo utópico que se constrói uma visão do futuro.
Só amor não basta É neste contexto de procura de uma sociedade mais justa e mais misericordiosa que as políticas de habitação colocam a questão, inevitável em todas as políticas de inserção – até que ponto é possível desenvolver políticas sociais específicas sem envolver simultaneamente a regulação do conjunto social? Encontrar o justo equilíbrio entre a misericórdia e a justiça social é a tarefa daqueles que neste fim de século sentem que o mundo não está feito à medida dos seus desejos e das necessidades de grande parte da humanidade e que procuram, de todas as formas disponíveis, encontrar outras pousadas... outros abrigos... mais fraternos... mais justos.
Enterrar os finados Fernando Micael Pereira Fernando Jorge Micael Pereira, sociólogo, licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto Católico de Paris, é professor na Universidade Católica Portuguesa e no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa.
Situando-se indiscutivelmente entre as Obras de Misericórdia corporais, enterrar os finados é uma obra mais espiritual do que corporal, embora diga respeito ao corpo e às coisas através das quais o homem se prolonga e exprime.
Enterrar os mortos em sepultura individualizada é, no entender de antropólogos, como por exemplo no de Leroi Gourhan, um dos testemunhos, senão até o primeiro testemunho, da actividade simbólica do homem. Quando alguém deixa de existir fisicamente, o homem é capaz de ultrapassar essa evidente realidade natural construindo uma outra realidade, essa especificamente humana, a de o manter vivo, dir-se-á na memória, talvez ainda mais na interacção, dos próprios homens.
Enterrar os mortos é torná-los presentes É do mesmo modo fácil verificar, de tão frequente que é, o fenómeno de uma aldeia conservar tudo e todos, até os seus próprios mortos como membros da comunidade, presentes e com um lugar seu, de algum modo, cruzado com o dos vivos. Lugar cuidado ao gosto local, visitado; lugar de ritualizações, lugar que permanece, não tanto como monumento, antes como uma das grandes casas da aldeia, onde se convive com quem nos faz falta. O cemitério, mais que um espaço, é uma das grandes casas da aldeia.
Porque não se trata somente de memória, mas de interacção, esta presença não é significada só pela lápide tumular, pelo jazigo ou por qualquer escultura ou símbolo, mas, sempre que possível, pelo próprio corpo, pelas cinzas que mantêm a presença, na esperança, tão marcada na cultura portuguesa, da ressurreição. Esperança de ressurreição e, também, saudade significadas pelas flores, tributo de memória viva e fresca, renovada com dor e cuidados. Enterrar os finados foi e, por vezes, ainda é torná-los vivos em retratos que se expõem e que, hoje, se distribuem em pagelas evocativas, ou se publicitam com o anúncio de quem acaba de falecer; é torná-los vivos na sequência que se monta para os recordar na televisão quando célebres; é torná-los vivos, embora estáticos, no álbum de fotografias que se anima pela palavra ao ser folheado com alguém. Sabemos fazer que os finados permaneçam em objectos queridos, por eles feitos, adquiridos ou usados; objectos que se guardam e que, também, se dão a quem connosco e com eles esteve ligado. As coisas nos ligam, quando cuidadas com carinho, reavivando e fazendo permanecer o amor que em saudade se mantém. Sempre soubemos fazê-los permanecer nas obras que em sua memória construímos, nos textos que escrevemos e editamos, nas canções que, de algum modo, fazem que o seu gesto, a sua vida e o seu contributo perdurem para além da morte, tornando presente mais a vida do que o nome de quem nos deixou.
Como se tornavam presentes Enterrar os finados foi, embora na cidade já quase nunca seja, tocar os sinos para que todos saibam quem acaba de partir e, assim, todos lhe rezem por alma. À portuguesa, tudo quanto de cerimónia ritual se fizesse não era, como agora parece alguns julgarem ser, tributo em honra de quem morrera. Dava-se, sim, em nome do finado, ou contribuía-se em seu nome, para que quem morrera pudesse estar em bom lugar, presente junto de Deus, na paz que não era a paz assegurada do cemitério, mas a paz de quem continuava vivo perante Deus. A comunidade, família e amigos na cidade e, na aldeia ou no bairro, também os vizinhos e os conhecidos, reuniam-se para velar, para estar com o finado e a família, para celebrarem e para acompanharem o morto à sua última morada. Estava presente
com a comunidade, porque não se partia sozinho para a última viagem, sem que todos, quantos connosco viveram, nos acompanhassem. É Obra de Misericórdia estar com a família e com quem faleceu, fazendo que uns e outros não se sintam sós, mas estejam inseridos numa comunidade viva. Mais urgente se tornava esta Obra de Misericórdia, quando a família era escassa ou não existia, quando a família ou a pessoa eram estranhas, mal aceites ou rejeitadas. Ninguém ficava ao deus-dará, reduzido a um corpo que se decompõe, porque todo o homem vivo ou morto, seja qual for a sua aparência ou aceitação, tenha sido qual fosse a sua vida, é sempre muito, mas muito mais que isso. Mas também ninguém se sentia só e abandonado pelos seus conterrâneos, quando acabava de ser abandonado pelo familiar ou amigo que partia.
A comunidade presente junto da família Enterrar os finados não é assim, antes de mais, prover só ao sepultamento do corpo. É cuidar de quem morre e dos que por essa morte são atingidos, garantindo a dignidade e a comunicabilidade de um e outros e conduzindo o luto de modo humano. Hoje, como sempre, enterrar os mortos é garantir a vida. Mas para que deste modo a vida seja garantida, não basta que, um ou outro, como que isolados, manifestem a sua presença, que estejam por ali. No viver tradicional, a Irmandade garantia uma presença no acompanhamento e nos ritos, de tal modo que a família, se a houvesse, sentia que estava acompanhada, e que a comunidade se lembrava de que todos, fossem quem fossem, são sempre alguém. Mais que a dignidade da cerimónia, estava em causa a dignidade e a grandeza das pessoas na vida e na morte, pois é de facto mais pelas pessoas do que só pela cerimónia que a vida se garante.
Afinal tudo começa muito antes – as antecipações da morte Mas enterrar os finados começa bem antes do sepultamento. Pode começar como se fazia em Malpica do Tejo logo ao preparar o enxoval do casamento, que incluía a mortalha com que ele e ela viriam um dia a ser sepultados. Começa também sempre que se distribuem, sobretudo pelos netos e ainda por outras pessoas queridas, os
bens preciosos que de outros se receberam ou que se adquiriram ou construíram em ocasiões especiais e que são símbolos de uma vida e de laços que se querem manter. É uma doce, por vezes alegre e um tanto nostálgica passagem de vida, pela qual nos prolongamos em vidas por nós cuidadas e fecundadas, de algum modo garantindo a presença para além da morte. Porém, não é de hoje uma outra presença antecipada, e bem mais dolorosa, a da luta feroz ainda em vida, por vezes muitos anos antes, pelas partilhas. Enterra-se quem ainda está vivo ou, como se dizia, calçam-se os sapatos do defunto, quando, em vida deste, se está à espera do que ele há-de deixar para se poder melhorar a vida. Hoje, com tantos idosos que têm acesso a centros de dia e a lares, a visibilidade desta luta antecipada, quer pelas partilhas quer pelas migalhas que o idoso tem e que tanta falta lhe fazem, é particularmente notória. Abre-se assim, em termos sociais, um novo espaço para a obra de misericórdia que será não tanto de enterrar os finados mas de os não deixar enterrar antes de tempo, de não acelerar, pelo desgosto e sentimento de perda, a sua morte. É certamente delicado intervir junto das famílias sem ser de forma abusiva, do mesmo modo que não será sempre fácil destrinçar onde acaba a generosidade do idoso e começa a sua exploração ou, até, a sua própria depressão. De qualquer forma, são tão gritantes os casos de assalto aos bens dos idosos que as salvaguardas jurídicas se tornam insuficientes, sendo necessário apoiar quem está tantas vezes indefeso pela sua extrema necessidade e debilidade.
Que não se finem antes de tempo mas na sua hora – antecipações e prolongamentos Poderemos ainda falar de uma outra morte antecipada e de uma outra sepultura, a das idas violentas e compulsivas para o lar de idosos, a do modo como os mais velhos lá são deixados e abandonados, como são alojados em espaços pouco mais largos que sepulturas, ou a do silêncio da falta de comunicação que deprime até à morte. Nenhum destes trágicos sepultamentos é novo, mas apesar de todos os esforços, todos continuam bem presentes em práticas institucionais e familiares.
A sua debilidade faz que muitos outros, nas idades mais diversas, por não terem quem lute ou saiba lutar por si, sejam alvo de muitas incúrias e desleixos. Sozinhos em casa, sós perante tantos atendimentos mal cuidados, são mortos vivos em dores caladas de uma degradação que lhes retira a dignidade do viver. Acompanhados ou não, estão sós, feridos, conspurcados, por vezes, com apoios de faz de conta. Enterrem-se os finados, não se enterrem os vivos em sepulturas abertas mas igualmente podres, fruto da nossa indiferença. Há sepulturas que se abrem na rua e em casa de quem está só. Há sepulturas que se abrem em entidades que acolhem os abandonados e os mal-amados, ora porque não têm assistência condigna, ora porque alojados em casas que nunca sentirão como suas, ora porque não têm quem lhes fale e os considere, ora porque morrem do trauma do abandono de familiares e de quem os devia cuidar. Parece que hoje seria necessário acrescentar à formulação da Obra de Misericórdia uma nova dimensão: enterrar só os finados. E que dizer de quantos vêem a sua vida prolongada através do encarniçamento terapêutico, através de meios particularmente dolorosos, e ainda de muito duvidoso alcance, ou prolongada a pedido de familiares que, por diversas razões, não aceitam que a morte se verifique ou seja verificada? A boa morte, a pedida ao Senhor Jesus da Boa Morte, tão sentida pela cultura popular portuguesa, ajuda a entender porque é Obra de Misericórdia não só enterrar os finados, mas deixar que morra em paz quem já chegou ao momento final da sua vida.
O processo de agonia como antecipação da morte Enterrar os finados não é assim exclusivamente o acto de dar sepultura a quem morreu, mas um processo que, de algum modo, começa mais directamente com o anúncio da morte, ou seja, com o que actualmente se entende como o período de agonia. Este processo de agonia tornou-se hoje por vezes particularmente longo, dadas as possibilidades de prognóstico clínico. No passado, no início da agonia, chamado o sacerdote para a extrema-unção, acorriam família e amigos ao leito do moribundo, presentes na agonia, para com ele
fazerem a passagem para a outra vida, recolhendo as suas palavras, dando-lhe de alguma forma a voz que lhe ia faltando, a luz que se lhe escapava, sentindo com ele, com ele rezando e tendo a mesma dor e a mesma esperança. Morria-se em família, e habitualmente, tinha-se família. Se não se tivesse, aí estava também a ocasião desta Obra de Misericórdia.
É Obra de Misericórdia saber cuidar dos vivos e dos mortos Já então, enterrar os finados era saber cuidar dos vivos e dos mortos e não só sepultar os corpos como semente de uma nova vida. É Obra de Misericórdia assim entendida, fazê-lo com quem não tem família e amigos e fazê-lo, ajudar a fazê-lo, a quem os tem, para que familiares, amigos e sobretudo quem se está a finar seja capaz de viver de frente e com doçura (com paz, como se dizia) a passagem/transe que por mais que hoje se pretenda ignorar, calar, disfarçar, é como sempre decisiva. Enterrar os finados é acompanhar os que já têm o anúncio da sua morte até que eles e a família fiquem em paz. O enterro é um processo ritual que, inserido num processo pessoal e social muito mais vasto, começa muito antes e acaba bem depois do funeral. Vistos nesta perspectiva, são tantos os problemas e desafios que hoje se põem, que pouco mais se poderá fazer neste momento do que enumerá-los. Começam desde logo pelo saber e cuidados a ter com o diagnóstico e prognóstico da fase terminal. É urgente que haja mais saber e maior preparação psicológica e humana dos terapeutas para poderem adaptar a transmissão desta notícia aos doentes e a seus familiares. É difícil saber dizer a verdade da situação, sem matar a esperança e o projecto de quem afinal vai continuar a viver, por vezes, um tempo ainda bem prolongado. Vem, depois, tudo quanto se pode fazer para cuidar da viabilidade económica e social do doente e da família durante o processo terminal, quer este processo se desenvolva em internamento quer em casa. É que com o encarecimento dos custos hospitalares, torna-se hoje particularmente difícil para muitas famílias terem recursos económicos, culturais e de saber, para se poderem manter a si e aos seus doentes de uma maneira condigna durante esta fase. Faltam recursos e falta apoio
técnico de medicina, de enfermagem e de outros serviços de apoio. Faltam para as clientelas solventes e, com maioria de razão, para todas as outras. Os doentes estão a regressar a casa mais depressa do que a terapêutica regressa, o que de algum modo se torna mais angustiante na fase terminal. É urgente criar soluções para os novos problemas Com o progressivo aumento do número de pessoas a viverem sós, teremos de encontrar para essas e para tantas outras, respostas mais humanas do que as de só vir a dispor de estabelecimentos destinados exclusivamente a quem vai morrer brevemente, estabelecimentos esses que, seja qual for a sua aparência e conforto, serão como sepulturas à espera que a morte as vá fechando. Será misericordiosamente humana esta estratégia? Em muitos serviços hospitalares será necessário repensar os protocolos de isolamento do doente terminal. Serão os isolamentos só para doentes na fase terminal? Quem pode e deve acompanhar estes doentes? Qual o papel da família e de outros acompanhantes, papel culturalmente aceite e desejável, dotado de que apoios? Será sempre desejável suprimir o problema através de altas terminais? Qual a natureza das instituições de retaguarda que em alguns casos acolherão estes doentes na fase terminal? A eficácia da medicina transformou, e irá transformar cada vez mais, o decurso da fase terminal e até o decurso da fase mais dependente da nossa vida, criando desafios que precisam de ter uma resposta que permita uma vida com sentido e dignidade até ao fim dos nossos dias. Mais ainda, quem cuida destes doentes, quando, como, com que apoios? Onde estão, em número suficiente, as pessoas preparadas para ajudar os moribundos e para ajudar as famílias, quando as há, em todo este processo, de algum modo novo, pela sua visibilidade, pela sua duração, pelo volume de pessoas que atinge, pela consciência que vamos tomando de todas estas dimensões? Vão-se desenvolvendo as terapêuticas de conforto, ou de compaixão, dir-se-ia de misericórdia. Porém, a sua generalização e aceitação estão ainda muito longe de ter a difusão e o alcance que é cada vez mais urgente que possam alcançar. Quem
incentivar e realizar estas intervenções e cuidados estará certamente a praticar esta Obra de Misericórdia.
É Obra de Misericórdia libertar a palavra sobre a morte Culturalmente um dos problemas mais agudos com que nos defrontamos é certamente o de hoje termos muito poucas palavras para dizer face a esta dimensão fundamental da vida. A morte está presente de modo mediático, de algum modo distante, virtual, anónimo. Dia a dia e à luz do dia, temos a vida, vista e sentida de modo palpável. Não enterramos, mas escondemos a doença, a debilidade, a dependência e a morte. Desgostamo-nos com o luto, expulsamos o expressionismo das manifestações ora só rituais, ora sentidas, da dor e da morte, divergimos no sentido que lhes atribuímos e ficamos mudos, sós com o que cada um sente, sem palavras para dizermos a nós próprios, porque as não dizemos uns aos outros. A vida não está a dizer nada sobre a morte e esta torna-se, se possível, cada vez mais dolorosa e desumana, tremenda, porque cheia de toda a força do não dito. Vimos que um dos gestos primeiros da humanidade fora o de dar vida à própria morte, e que esse era o sentido fundamental de enterrar os finados. Precisamos hoje de reinventar de algum modo esse gesto fundador, escutando o sentido nosso e o dos outros, cuidando uns dos outros sem fugir nem escamotear, encontrando símbolos e gestos a que consigamos dar sentido, vencendo a morte, ressuscitando de algum modo pela palavra e pela relação. Não nos podemos calar. É Obra de Misericórdia reunir com os que sentem a falta de alguém, para que tenham um espaço de palavra não oca, já que todos vivemos num contexto que proíbe a palavra sobre a morte. Para além da ajuda técnica de psicologia de que alguns precisarão, sobretudo porque outros lhes esconderam ou sufocaram lutos que precisavam de fazer, para além desta ajuda, será bom que todos facilitemos esta palavra livre, sempre que a ocasião se prestar. Só se, no dia-a-dia, na vida corrente, fluir uma palavra não obsessiva, a vida poderá de novo tomar conta da morte. O sentido cristão da Obra de Misericórdia não poderá de modo algum esquecer a morte e ressurreição de Cristo e a nossa. Foi olhando para Cristo morto e
ressuscitado que as nossas culturas reencontraram palavras que permitiram que ao falar sobre a morte se dissesse algo que para uns e outros tivesse sentido. Hoje há que ir reencontrando um sentido em que nem queremos acreditar. Temos de o fazer com mansidão. Dar palavra à vida e à morte, encontrar formas de luto comunicáveis e compartilháveis, é fundamental para que o luto não fique sufocado. O luto não aceite e compartilhado perdura dentro de nós; é como se os finados não fossem enterrados. Que perdure a saudade, mas não o morto por enterrar.
A solidariedade mútua perante a morte Enterrar os finados nunca foi fácil, nem acessível a todos. A dificuldade é também de nível económico. No passado as mutualidades constituíram-se, por vezes, como na Idade Média, a partir desta necessidade de acorrer à necessidade de custear não só o funeral, mas os outros encargos decorrentes da morte, bem como a de assegurar o bem-estar de órfãos e viúvas. Estas mutualidades, com o tempo, transformaram-se, como é sabido, nas corporações. Entre nós criaram-se também as Misericórdias, estas com a mutualidade da dádiva. Em tempos mais recentes as lutuosas, também numa base de mutualismo, foram uma outra forma, mais laica, de obviar aos mesmos encargos, embora mais directamente centradas no próprio funeral. Não se vê que por enquanto as formas de mutualismo centradas no funeral sejam culturalmente desejadas, se bem que comecem a ressurgir fenómenos de preparação em vida, da última morada, com a aquisição prévia de jazigos, com a encomenda de esculturas que ornamentem a campa. Há países em que este interesse está a despertar uma nova indústria cultural dotada do correspondente marketing. Chegou mais ao nosso tempo o costume de, em comunidades mais carenciadas, se fazerem peditórios para o funeral, desencadeando solidariedades que em si próprias têm sentido, pesem embora as situações de pobreza que hoje as originam. Mas para além dos preceitos propostos como Obras de Misericórdia, o gesto que associou no mutualismo o funeral e as preces por alma, ao cuidado com os órfãos e
as viúvas, tem uma longa tradição religiosa e cultural. Desde o século primeiro, para não falar das raízes hebraicas do cristianismo, as nossas culturas foram marcadas pelo cuidado com os órfãos e as viúvas, quer em termos materiais quer nas suas outras dimensões. Parte destes cuidados são hoje assumidos pela segurança social e sistemas complementares. Mas neste como em todos os domínios, a solidariedade instituída pelo Estado, e recentemente pelo mercado, é muitas vezes insuficiente. A solidariedade indirecta não se destina a suprimir o gesto bem humano da solidariedade directa ou informal, que responde ao vivo das pessoas e das situações que não puderam caber em critérios necessariamente mais universais. Alguns, muitos, ensinaram que a família na sociedade moderna teria deixado de ser o suporte económico da população, uma vez que o trabalho e a vida económica já não se organizavam fundamentalmente em termos familiares. As transformações constantes da vida contemporânea vão demonstrando não só a permanência da função económica da família, como o carácter imprescindível de muitas outras suas funções. A sua importância torna-se mais visível quando a família se quebra ou desequilibra, também, pela morte de alguns dos seus membros. Responder, para além do funeral, à orfandade e à viuvez adquire num contexto social, em que a quebra de redes informais e a solidão não desejada constituem risco social grave, uma renovada oportunidade. Não admira assim que se estejam a criar associações e movimentos que ensaiam respostas para a solidão da viuvez e se multipliquem as estratégias de resposta às muitas formas de orfandade, hoje com a delicadeza de não evidenciarem situações que se tornariam estigmatizantes, sinais de uma identidade de algum modo deprimida. Porém, nestes domínios, as respostas formais, instituídas, por melhores que sejam, serão sempre incompletas e insuficientes se a solidariedade espontânea não acrescentar ao que é feito institucionalmente uma outra rede de suporte com uma dinâmica gratuita de amizade e de interacção, livre, espontânea, amiga. Rede constituída por quem, quer profissionalmente quer em termos mais simples e desprendidos, está perto de quem precisa ou quer ser apoiado.
Símbolo, memória e dignidade humana até ao fim Cabe, por Carta, às Misericórdias, mas não só a elas, intervirem, custeando, no caso dos muito desprovidos e abandonados, o funeral e a respectiva dimensão litúrgica, que na actualidade será a da religião professada pelo finado. Talvez fosse também oportuno que Misericórdias e outras entidades similares estudassem o modo de estimular o mercado e o ambiente em que esse mercado opera, para que ninguém, ainda menos se for pobre, seja forçado a pagar um nível de pompa em que não esteja verdadeiramente interessado. Com a recente introdução de grandes operadores comerciais nas pompas fúnebres, corremos o risco de ver incentivar ainda mais a aquisição de pacotes de serviços, impostos de modo impulsivo, criando novas necessidades e explorando momentos de particular fragilidade dos familiares. As populações emigradas, sobretudo quando não encontram na terra de acolhimento uma terra sua, querem que quem morre regresse à terra. Tratar-se-á de uma despesa sumptuária cujo pagamento não caberá nesta Obra de Misericórdia? É difícil generalizar, em absoluto, a resposta, mas provavelmente, na maioria dos casos, esta despesa será objectivamente excessiva. Bastará, porém dizer que não? Quem o dirá e como, que outros regressos se podem estimular ou que outros despojos se podem entregar a quem, com que gesto? E que este regresso à terra parece ser subjectiva e culturalmente significativo para muitos familiares. Um outro domínio é o dos cuidados que se possam ter com o assinalar a sepultura. Não é o mesmo ficar numa campa só marcada com a matrícula do cemitério ou, pelo contrário, marcada com um símbolo que diga estar ali um corpo humano. Mesmo quando já não há familiares e amigos, e hoje é sempre possível que eles venham a aparecer, é a comunidade quem precisa de saber que está ali um corpo que não é um despojo banal. Quem estará disposto a tomar a iniciativa de assinalar esta presença? Quem vela pela dignidade do enterro dos que nada têm ou ninguém que deles se lembre? Bastará que uma agência se encarregue do funeral ou convirá que alguém o acompanhe com capacidade para garantir que todos actuam sabendo que estão
a enterrar o corpo de uma pessoa? Poderão as Misericórdias assumir algum papel também neste domínio, garantindo o valor simbólico dos actos que são realizados? Poder-se-á, por outro lado, conseguir que as capelas ou casas mortuárias dos hospitais isolem o espaço de cada essa, de modo que não se torne promíscuo velar aqueles que nela foram depositados? Precisamos de hospitais cada vez mais humanos para além da vida, também na morte. Cabe hoje às autarquias organizar os cemitérios, criando-os e mantendo-os. Como órgãos de uma comunidade, recebem uma delegação para criarem condições não só de eficácia, de tecnicidade, para que o sepultamento e a jazida sejam eficazes, mas também para que o cemitério seja o lugar e o monumento em que se possa rever a expressão cultural e cultual da comunidade a que correspondem. Lugar e monumento em que se exprimam e mantenham as diversas identidades pessoais e grupais e a que todos tenham igual acesso, sendo em todos reconhecida a mesma dignidade humana. Mesmo anos depois de todos os processos rituais e dinâmicos terminados, é importante garantir, porque a memória de qualquer ser humano não se deve descuidar, o acesso fácil aos dados do sepultamento e da jazida, bem como a comunicação oportuna das informações relativas a levantamentos de despojos e à sua trasladação. Esta será uma derradeira dimensão do enterrar dos finados que pode e deve pacificar a saudade.
Se bem enterrado dará muito fruto Como Obra de Misericórdia, os finados enterram-se na esperança da vida. Os despojos mais não são que restos de alguém vivo com uma vida ligada a muitos outros, mesmo quando aparentemente esteve mais sozinho que nunca. É esta uma das nossas grandezas, a de criarmos vida onde ela não está ou onde ela parece não estar. Enterrar os finados deve portanto ser mais uma maneira, e das mais profundamente humanas, de criar uma vida que só pode ser nossa. Para que ela se crie é necessário que saibamos manter-nos presentes, tão mais presentes quanto a ausência nos desafia, sabendo lidar com a materialidade dos factos e estar
para além dessa materialidade. Somos mais do que memória, somos criadores na vida e na morte, porque imagens de Deus. A complexidade do mundo contemporâneo abre novos horizontes, estabelece novos desafios à misericórdia que mais não é que revelar o amor de pai. As Obras de Misericórdia assumem assim novas dimensões, complexificam-se elas próprias, para afinal acabarem por se simplificar na atitude de quem sabe continuar a estar presente. Tudo acaba por se jogar em saber vencer a morte em cada dia; tudo se joga no mistério do grão de trigo, que se for bem enterrado, dará muito fruto.
Os valores e a cidadania A urgência de garantir pousada Ernesto Fernandes Professor, na categoria de regente, do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, professor convidado da Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espectáculo – CHAPITÔ, Membro da Associação de Alfabetização e Cultura Popular – Semear para Unir, Almada, formador certificado segundo o SNCP-IEFP.
1. Em tempo de celebração, refundar a consciência e a cidadania Os 500 anos da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os 50 anos da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem convocam-nos para uma reflexão-compromisso com os valores que, sendo fonte inspiradora dos direitos humanos, são horizonte e energia para sua protecção e aprofundamento. As Obras de Misericórdia, como guião do cristianismo no campo da acção social, são uma referência valorativa da cultura ocidental. Uma tradição de humanismo cristão que a modernidade cruzou com o humanismo laico. Todo o conhecimento é contextual. Todo o saber – filosófico, religioso, científico, artístico ou popular – se reporta a contextos sociais determinados e, por isso, traduz uma consciência possível segundo uma linguagem própria que lhe dá expressão. Sem uma compreensão sócio-histórica das relações que modelam as práticas sociais e estruturam a organização da cidade, não apreendemos os sinais de futuro nos tempos, enunciados-anunciados sob formas e linguagens inevitavelmente situadas e datadas. Recusar ou menosprezar a historicidade do homem e das suas práticas tem-se imposto como habitus, desde o século passado, dificultando ou ignorando a protecção e a educação para a cidadania, referenciados ao valor primeiro da dignidade humana.
Deslumbrados e ingenuamente crentes nos efeitos automáticos da ciência e da tecnologia para a ordem e progresso (o implacável processo económico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo), somos confrontados com a paradoxalidade de “graves problemas sociais, especialmente a pobreza, o desemprego e a exclusão social que afectam todos os países”59. Relembrar a Declaração Universal dos Direitos do Homem como síntese de lutas e sofrimentos e de resistência à barbárie, a par de múltiplos pactos, convenções e declarações internacionais, é reconhecer que “se há algo que possa ser considerado primordial na construção daquilo que chamamos civilização, esse algo é o edifício da dignidade de cada ser humano e de suas comunidades. Não há obra mais bela do que a consciência ética. Podemos dar vários nomes a esse património. Cidadania e Direitos Humanos são duas expressões significativas da contemporaneidade para emblematizar essa sim verdadeiramente magnífica caminhada.”60 A violação dos direitos humanos (políticos, civis, económicos, sociais e culturais), realidade escancarada na maioria dos países, fere a esperança e bloqueia a determinação de muitos, mas tem, igualmente, despertado novas lutas e novos movimentos sociais por um projecto sociocultural alternativo, dados os excessos e os défices do projecto da modernidade, que constituiu a ciência como seu eixo central. Um novo projecto a requerer um saber novo que se funda na relação do conhecimento científico com os outros saberes e se reconcilia com a ética: “Este saber novo, sendo uma racionalidade cognitivo-instrumental, será também uma nova racionalidade moral-prática e uma nova racionalidade estético-expressiva. O saber novo só será novo se for simultaneamente uma nova inteligibilidade, uma nova ética e uma nova estética. Para isso tem de se exercitar no recurso criativo aos elementos constitutivos do princípio da comunidade, à solidariedade, à participação e ao prazer.”61 Só uma leitura sócio-histórica das condições de emergência e consagração dos direitos humanos nas sociedades ocidentais nos abre possibilidades de um olhar ONU, “Declaração e Programa de Acção da Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Social”, Copenhaga, Março de 1995, in Veloso, Maria Joana e Gomes, Teresa Santa Clara, Desenvolvimento: Dúvidas e Esperanças, Lisboa, Plataforma Portuguesa das ONGD, 1995, p.109. 60 BALESTRERI, Ricardo Brisola, “Prefácio”, in Pactos da Humanidade, V ed., Amnistia Internacional, Passo Fundo, RS – Brasil, 1997, p. 7. 61 SANTOS, Boaventura de Sousa, Ciência, in Carrilho, Manuel Maria (dir.), Dicionário do Pensamento Contemporâneo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1991, p. 39. 59
crítico (não etnocêntrico, não individualista, não antropocêntrico) e de uma participação cívica socialmente útil e pessoalmente gratificante. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 10.12.1948) constituiu um marco do processo de construção dos direitos humanos. Marco de uma história recente marcada pela pulsação de um tempo antigo. Marco de referência de uma história entre vencedores e vencidos: na luta contra o absolutismo pelo direito à vida, contra a escravidão e trabalhos forçados, pela liberdade de pensamento, de consciência e de religião, de reunião e associação, de participação nos actos eleitorais (direitos de 1.a Geração – direitos cívicos e políticos); pelo direito ao trabalho, pelo direito à habitação, saúde, educação e aos serviços sociais e culturais (direitos de 2.a Geração – direitos económicos e sociais); pela defesa e protecção da natureza, contra a discriminação da mulher, o anti-racismo e o respeito pelas minorias étnicas, sexuais ou religiosas, pelo direito dos povos à autodeterminação e independência, pela multiculturalidade contra o etnocentrismo ocidental e outras formas de hegemonia cultural (direitos de 3.a Geração – direitos culturais)62. São direitos históricos que, reportando-se a valores inventados pelo homo sapiens no seu percurso religioso e filosófico, expressam a construção paulatina e paradoxal da democratização da polis. Para esta trajectória, o cristianismo foi um pilar de boa nova, pese embora o papel contraditório e até persecutório das igrejas, nomeadamente o da católica dos países do Sul da Europa. “Por isso, os direitos humanos não são lineares nem irreversíveis... nunca estão garantidos... são também direitos que se estendem ao futuro e à natureza”, como questiona Viriato Soromenho Marques63. São direitos situados e datados, no entanto a sua indivisibilidade é, hoje, uma evidência para o senso comum emancipatório em oposição às teses liberais, que privilegiam os direitos civis e políticos em detrimento dos direitos sociais64. Cf. FERNANDES, Ernesto, “Direitos Humanos e Práticas Sociais: Uma Leitura Sócio-Histórica”, in Revista do Serviço Social n.° especial, Direitos Humanos e Acção Social, Lisboa, APSS, 1992, pp. 17-23. 63 MARQUES, Viriato Soromenho, “Direitos Humanos – Três Questões para uma Batalha pelo Futuro”, in Rev. Intervenção Social n.º 13/14, Lisboa, Instituto Superior de Serviço Social, Dezembro de 1996, pp. 13–17. 64 Cf. PEREIRINHA, José, “A (Re)Definição dos Direitos Sociais Face à Crise do Estado-Providência e ao Fenómeno da Exclusão Social”, in Rev. Intervenção Social, n.° 15/16, Lisboa, ISSS, Dezembro 1996, pp. 131-142. 62
Violados os direitos humanos, quer os de liberdade quer os de igualdade, a paz não é possível porque ela é fruto da justiça: “As populações excluídas da repartição equitativa dos bens, destinados originariamente a todos, poderiam perguntar: porque não responder com a violência a quantos são os primeiros a tratar-nos com violência?”65 A intervenção sistemática da Igreja, desde Leão XIII (Rerum Novarum, 1891), advertindo para a distinção entre a ordem da justiça e a ordem da caridade, tem uma expressão forte em João XXIII (Pacem in Terris, 1963), no Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, 1965) e em Paulo VI (Populorum Progressio, 1967). São as Obras de Misericórdia reinterpretadas por força dos dilemas do nosso tempo, quando se mundializa a questão social – “povos da fome e povos da opulência”, na expressão de Paulo VI, quando se agravam e emergem novas desigualdades nos países da riqueza. A busca e a experimentação de um projecto alternativo de desenvolvimento exige uma nova ordem económica internacional, como reconhece a ONU na Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, em Dezembro de 1974. Para esta estratégia, que assenta na interdependência como um facto (família e outros grupos primários, localidades, regiões, país, planeta), surge-nos a solidariedade como um valor, se essa for a nossa escolha, se tivermos a liberdade e a ousadia de a querer, como aconteceu em outros momentos decisivos da história, como refere Agostinho da Silva: (...) apesar de todas as pressões de economias, estados e igrejas, sempre houve dentro delas quem defendesse acima de tudo o direito à pesquisa e à publicação e aproveitamento de seus resultados, e quase sempre foi possível levar por diante o trabalho de construção científica, que, pela sua aplicação técnica, é a grande força que permitirá à humanidade ser realmente fraterna se esse for o seu desejo, exactamente como na Idade Média a invenção de um novo arreio de cavalo deixou que se libertassem os servos da gleba, porque havia o ideal cristão de os ver livres.66 A reflexão que proponho entra em ruptura com os esquemas e modalidades tradicionais de conceber e praticar a solidariedade, porque ocultam a violação 65 66
João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, Lisboa, Secretariado Geral do Episcopado, 1988, n.° 10. SILVA, Agostinho, Educação de Portugal, Lisboa, Ulmeiro, 1989, p. 48.
dos direitos humanos, manipulam mediaticamente os sentimentos dos cidadãos e reproduzem a subeducação cívico-cultural67. Trata-se de pensar a solidariedade como valor, investimento e princípio estruturador do desenvolvimento pessoal e colectivo. Daí, concebê-la numa perspectiva relacional e policêntrica, tendo por base as necessidades humanas, as de subsistência e as de existência, igualmente fundamentais para um desenvolvimento alternativo. Uma perspectiva relacional. Etimologicamente, solidariedade remete-nos para solidário e sólido (do lat. solidu) e significa: partilha, reciprocidade, ajuda mútua, cooperação, responsabilidade mútua; qualidade que torna sólido/consistente, que confirma os elementos de um todo que são interdependentes. Conceptualmente, a solidariedade (da escala microssocial à escala macrossocial) implica a imbricação/ dialectização de dois processos: — por um lado, os actores sociais integram-se em conjuntos mais vastos, de pertença ou de referência, e com eles se identificam, se solidarizam e se responsabilizam: processo de participação/cidadania. — por outro, os intervenientes tendem a diferenciar-se, autonomizar-se, a aprender/ construir o seu lugar e a sua responsabilidade singulares: processo de participação/ subjectividade. Colocar em termos relacionais a solidariedade é conferir-lhe uma dimensão não apenas ética, mas sobretudo cultural, porque se pretende facilitar e instituir novas práticas de socialização e novos estilos de vida, apostados na qualidade do viver e não no nível de vida, como tem sido a pauta das nossas sociedades e do modelo, social e internacional, instituído pelo projecto da modernidade. Uma perspectiva policêntrica. Considerar a solidariedade nas suas diferentes e articuladas ordens, mas tendo por condição pedagógica e política cada homem enquanto cidadão do mundo, ou seja, a solidariedade de cada um com o mais próximo para apreender os outros locais, o nacional, a Europa e o Mundo. Assim, distinguimos: a. a ordem das solidariedades públicas ou da solidariedade descendente: reconhecimento e protecção dos direitos cívico-políticos, socioecónomicos e 67
Cf. GANDON, Odile (dir.), La Charité – l’amour au risque de sa perversion, Paris, Autrement, 1993.
culturais pelos poderes públicos (autarquias, governos regionais e central, União Europeia, instâncias internacionais); b. a ordem das solidariedades próximas, horizontais e cívicas ou da solidariedade ascendente: interindividual, familiar e colectiva. A colectiva compreende: — movimentos sociais de opinião, pressão, resistência e reivindicação, quer pela denúncia para a reposição dos direitos violados, quer pela diversificação/especificação dos direitos (criança, idoso, deficientes, minorias) e ainda pelo reconhecimento de novos direitos; — associações voluntárias dos cidadãos, formais ou informais, constituídas em função de aspirações e interesses comuns (económico-sociais, lúdico-conviviais, artísticos, científicos); c) a ordem das solidariedades particulares de carácter lucrativo ou da solidariedade segundo a lógica do mercado: trabalho, serviços sociais (educação, saúde, habitação, reinserção), indústrias do lazer; d. a ordem das solidariedades profético-religiosas e da caridade evangélica68, entendidas como fermento e sal, antecipação e denúncia, referência de desprendimento e generosidade em sociedades de complexidade crescente e multiculturais. Reconceber a solidariedade nos termos propostos (produção social de natureza relacional e policêntrica, tendo por base e finalidade os direitos humanos) é repensar o papel social da ciência como saber na sua articulação com os outros saberes (religioso, artístico, literário, mítico, poético, político), em ordem à construção de 68
Cf. São João, Primeira Epístola: “Deus é amor; quem permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele... Se alguém disser: amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão, que vê, não pode amar a Deus, que não vê. É este o mandamento que recebemos d’Ele: quem ama a Deus, ame igualmente a seu irmão.” São Paulo, I Epístola aos Coríntios: “Vou mostrar-vos, além disto, um caminho que ultrapassa tudo. Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos Anjos, se não tiver caridade, não sou senão bronze que ressoa e címbalo que tange... E ainda que reparta por inteiro os meus haveres e entregar o meu corpo a fim de ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita. A caridade é paciente, a caridade é amável (...) não procura o seu interesse (...), não se alegra com a injustiça, congratula-se, ao invés, com a verdade.” (Cónego José Falcão, O Novo Testamento, tradução do texto grego).
um “senso comum esclarecido e uma ciência prudente, um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem”69. Uma solidariedade entendida como referência cultural e prática dos direitos humanos, como exercício da liberdade e seiva da democracia, nos diversos contextos da vida (família, escola, trabalho, cidadania, mundialidade).
2. Em tempo de novas desigualdades, resgatar o capital simbólico das Obras de Misericórdia A presente antologia, tecida de análises sócio-históricas e de reflexões propositivas sobre o sentido das Obras de Misericórdia, propicia-nos um espaço de reinterpretação de discursos e práticas no campo da protecção social. Igualmente nos interpela para a recolocação dos valores, elegendo o valor da solidariedade como referência e energia para sustentar a defesa dos direitos humanos. Porque os direitos humanos não são nem naturais nem irreversíveis, antes são construção, produto de lutas, sofrimentos e utopias, tornadas possíveis em tempos por chegar, importa desenvolver uma cultura de reconhecimento da tradição para com paciente persistência (Paulo Freire) reimaginar e reconstruir a polis. Na organização da cidade, o valor da dignidade do homem deverá ser o seu princípio estruturador, fonte de todos os valores e exigência-imperativo de todas as responsabilidades, pessoais e sociais. Valores que o processo de democratização e humanização da cidade tem vindo a instituir como direitos e deveres. Das pessoas e dos Estados para guiar as múltiplas e complexas relações que estabelecem entre si, mas também com a natureza e o planeta. Resgatando o capital simbólico das Obras de Misericórdia, pelo recurso à Bíblia e ao pensamento contemporâneo, os autores apresentam perspectivas para a mudança de atitudes e renovação das práticas sociais (materiais e espirituais) em seus diversos contextos: da intersubjectividade à família e a outros grupos de pertença, da profissão à comunidade local e a outros espaços mais alargados. Mudança e renovação inspiradas pelo valor da caridade evangélica e pelo valor da justiça. 69
SANTOS, Boaventura de Sousa, Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, Porto, Afrontamento, 1989, p. 45
Pretendo evidenciar, de forma tópica, os comentários e perspectivas formulados pelos autores desta antologia sobre As Obras de Misericórdia para o Século XXI. A versão das Obras é a do primeiro Compromisso, que data de 1520, da Confraria da Misericórdia de Lisboa, criada em 1498. 2.1. Sobre o futuro enraizado numa tradição de misericórdia Há tempos escancaradamente de viragem. Para o nosso, carregado de complexidade e marcado por um ritmo acelerado de mudança que gera insegurança, “é olhando para trás que se abarca a verdadeira amplitude da condição humana”, entre o plano ideal (a promessa) e o tempo real da cidade que exclui, aprisiona ou bloqueia o homem em relação ao sabor da utopia (Laborinho Lúcio). Neste nosso tempo, o da modernidade ou do progresso, a imagem mais finalizada da exclusão social é transmitida, desde o princípio dos séculos, pelos “sem-abrigo”. Sem emprego, sem família, sem casa, sem lar..., sem abrigo. Reconhece-se nesta pobreza, a solidão mais absoluta – espiritual e corporal – a que apelam as Obras de Misericórdia (Isabel Guerra). Para além desta precariedade absoluta de o homem ser/estar sem-abrigo, outras violências minam a qualidade e o sentido de viver: vivemos num tempo cada vez mais indiferente à misericórdia e mais avesso ao perdão. Todos os dias a TV nos mostra imagens de atentados perpetrados por grupos que querem fazer triunfar os seus pontos de vista. O inimigo pode ser uma outra comunidade ou dado tipo de poder político. Frequentemente o atentado, visando determinada personalidade, é realizado de tal maneira que vai matar ou ferir gravemente dezenas de homens, mulheres e crianças que nesse momento passem perto do local (João Resina Rodrigues). Violências outras não esperadas, mas que constituem o nosso património comum de sofrimento: as duas guerras mundiais, as ditaduras a ocidente (Alemanha, Itália, Espanha, Portugal) e o sonho feito ditadura nos países de Leste. Os tempos são desiguais para as pessoas e para os povos. Os tempos têm a sua geografia: Nasço, vivo e morro de acordo com a minha geografia. Como resolver esta atroz contradição no mundo global emergente, assente na possibilidade cada vez maior
de afastar o sofrimento e retardar a morte?, pergunta Maria José Nogueira Pinto. Ciente, responde: Cada homem, cada mulher, encerra em si, de forma permanente, a dualidade do bem e do mal: força, fraqueza; luz e trevas; alegria e sofrimento. Até à consumação dos séculos, haverá uma voz para gritar a dor e outra voz que responderá ao apelo. E até à consumação dos séculos, haverá dor e compaixão. E reforça, explicitando a nossa condição radical de sermos em sociedade: É neste mundo, simultaneamente tão vasto e tão pequeno, tão longínquo e tão próximo, tão bom e tão mau, tão alheio e tão próprio, tão poderoso e tão vulnerável que vale a pena repensar a compaixão e a misericórdia, na sua perenidade e essencialidade. As Obras de Misericórdia foram um código de conduta, num tempo de viragem: a decomposição do feudalismo e a emergência do capitalismo mercantil; a primeira forma da questão social – os válidos desempregados; as descobertas, a escravatura e a pilhagem; a retoma da cultura greco-romana; a questionação do poder imperial da Igreja católica; a filosofia e a ciência da natureza libertando-se do fideísmo. Tempo forte de mudança a requerer compaixão-misericórdia-piedade. Um tempo duro que elege a misericórdia: Uma Obra de Misericórdia traduz o movimento do coração que se compadece. E tratando-se do coração, está implícita uma componente de afecto a que será razoável chamar amor (João Seabra Diniz). As Obras de Misericórdia afirmam-se como guião normativo da prática cristã, visando o espírito, em primeiro lugar, cuidando do corpo em segundo lugar. Comenta Luís Moita: Não é certo que esta repartição seja adequada. Durante séculos, a tradição cristã foi influenciada pela concepção do ser humano composto por dois elementos, a alma e o corpo. Em boa verdade, esta tradição, mais que bíblica, é helénica, de raiz platónica. Foi dominante no pensamento ocidental e culminou em Descartes, que distinguia no ser humano a coisa pensante e a coisa extensa. A lógica desta divisão leva a conceber o homem como entidade composta, algo híbrido, mistura de anjo e de animal. Em contraste, o entendimento da generalidade da Bíblia (à excepção de alguns textos
justamente de influência helénica), vê o homem como uno, parecendo ignorar a divisão entre espírito e matéria. A cultura ocidental, na sua fase moderna, fundou e orientou o progresso na base de múltiplos dualismos: espírito-matéria, corpo-alma, homem-mulher, homem-natureza, cidade-campo, ciência-senso comum, ciência-artes, ciência-religião, primeiro mundo-terceiro mundo. Tais dualismos, na sua materialização sociopolítica, produziram historicamente e reproduzem um cenário social de incerteza-insegurança-sofrimento-medo. Se a memória não for pobre (José Saramago), a cultura ocidental forjou-se entre o pensamento cristão e o pensamento racional, numa luta de quem vence a quem. Foram séculos de procura da condição ser homem. Terminado o tempo das guerras santas, vale retomar – em tempo de multiculturalidade – uma tradição que tem contornos de vida, para além do bem-estar material ou da fuga escatológica: O cristianismo não pode ser reduzido a uma ética de solidariedade social, esquecendo o espaço interior do mundo, a relação com o sagrado expressa e alimentada, sobretudo pela oração, ponte entre o visível e o invisível, laço de comunhão universal com vivos e defuntos... (Frei Bento Domingues). Sublinhemos que a moral de Jesus Cristo é profundamente original (originalidade que as comunidades cristãs nem sempre foram capazes de manter) e se distingue, quer da moral judaica quer da moral que o islamismo proporá, em três pontos fulcrais. Primeiro, o homem não é servo, é filho de Deus, convidado a realizar-se na liberdade e na alegria. Segundo, o motivo supremo do agir humano não é a obediência a uma lei promulgada pela autoridade divina, é a imitação da bondade de Deus, esta sim, colocada como um absoluto: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” Terceiro, o bem moral não fica definido por um articulado de leis e de preceitos, tem de ser uma procura responsável da perfeição que imita Deus. “E porque não discernis por vós mesmos o que é justo?” (João Resina Rodrigues). Os códigos são sempre redutores, quer sejam os das Obras de Misericórdia quer sejam os da lei, definindo direitos e deveres. Neste sentido, afirma o Senhor Padre João Resina:
É sabido que para as filosofias contemporâneas a liberdade não é o mero poder de escolher entre situações objectivas (ir ou não ir ao trabalho), é também a possibilidade de dar sentido a situações densas como o amor, o sofrimento ou a morte, é finalmente o poder de construir a vida em harmonia consigo mesmo, desenvolvendo um projecto que lhe parece bom. Verdade e liberdade aparecem então profundamente imbricadas. Ora, contra aquilo que frequentemente se ouve, Cristo ensinou que a Verdade liberta (cf. Evangelho segundo São João, 8/31), São Paulo escrevia aos seus discípulos “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Carta aos Gálatas, 5/1), Santo Agostinho concluía que a moral cristã pode resumir-se em “ama, e faz o que quiseres” (Migne, PL, 35, 2033). Neste balanço, entre a justiça como primeira luta do amor e o amor de Jesus Cristo como experiência de generosidade e de perdão, faz-se a cidade no seu processo de liberdade e democracia. Se o Estado moderno é garante do processo de democratização através do reconhecimento e protecção dos direitos humanos, dos cívico-políticos aos sociais, hoje, quando a viragem gera perplexidade e escândalo, parece impor-se a revitalização da sociedade civil através dos seus movimentos sociais e das suas organizações para cuidar dos negócios públicos, colaborando – pressionando – opondo-se ao Estado. Neste sentido se pronuncia Maria de Belém Roseira: É evidente que a garantia dos direitos sociais do homem deve pertencer, inquestionavelmente, ao Estado. Mas também é certo que a demissão total dos cidadãos relativamente às suas próprias responsabilidades não é, de modo algum, uma atitude defensável. Esta evidência torna-se dramática quando o capitalismo financeiro globaliza a pobreza, o desemprego e as exclusões sociais. A reemergência da sociedade civil não pode ser encarada como substitutiva dos poderes públicos. A luta pela protecção dos direitos das pessoas é o indicador da qualidade do processo de democratização e humanização das sociedades, como afirma Eduardo Ferro Rodrigues: Uma luta que implica, em simultâneo, um trabalho de prevenção em múltiplas e variadas frentes e em que tomem parte activa todas as instituições de solidariedade social, bem como todos os agentes da sociedade civil. Porque esta é uma peleja de todos, que a todos diz respeito, porque, enquanto cidadãos, não nos podemos furtar às nossas responsabilidades, cientes, porém, de que a responsabilidade primeira terá de caber aos poderes públicos.
Para esta interacção sociedade civil-Estado, centrada no exercício e educação para a cidadania, diz Alberto Melo: Deverão formalizar-se parcerias territoriais para a Educação e Formação de Adultos, com participação de autarquias, escolas, centros de formação, outros serviços públicos, associações, empresas, IPSS, etc., que – de forma descentralizada e articulada – passem a elaborar, negociar e gerir os respectivos planos locais de actividade nestes domínios. Isto porque a responsabilidade pela adesão da população portuguesa a uma cultura do “saber mais” não é exclusiva de um ministério ou de um governo, mas tem de recair sobre toda a nossa sociedade. 2.2. Sobre o desenvolvimento sustentado nas riquezas humanas. As Obras de Misericórdia espirituais As Obras de Misericórdia na sua bipartição, fundada numa concepção dualista de espírito e matéria, mais por razões filosóficas do que bíblicas, enuncia em primeiro lugar as sete espirituais, privilegia no homem o não material. No circuito da civilização ocidental, instalada a sociedade urbano-industrial, a espiritualidade cedeu lugar à materialidade, ou seja, a realização individual seria o reflexo automático do progresso económico-social (trabalho, habitação, educação, saúde, segurança social, cultura). Acesso e consumo de bens propiciados pelo crescimento económico, identificado com desenvolvimento. A partir dos anos sessenta (novos valores e novos movimentos sociais), este modelo de desenvolvimento é questionado e lentamente emerge a consciência, confrontada com velhas e novas desigualdades, que a finalidade e o motor do desenvolvimento são o capital humano, nas suas riquezas afectivas, mentais e físicas. O império da razão (ciência e tecnologia), traduzido numa geopolítica de países ricos e países pobres (Josué de Castro) e em novas desigualdades no interior dos países ricos, tem vindo a manifestar a subalternidade da emoção (criação estético-expressiva) e a perversidade de uma ética individualista, para cada pessoa, dentro de cada sociedade e para a cooperação internacional. Na perspectiva das Obras de Misericórdia espirituais, são formuladas orientações/ respostas para necessidades humanas existenciais: construir, na e pela relação, a
diferença/vocação de cada um. Uma ética relacional que requer a participação – envolvimento – responsabilidade para uma diferenciação solidária, para a realização individual na liberdade e no respeito solidário dos direitos humanos. Destes direitos, há um que é crucial – a liberdade religiosa, reconhecida na Inglaterra na Acta da Tolerância, em 1689. No campo do espírito, se for atenta a nossa capacidade de compreender a tradição cristã e de a traduzir em ideia e ideal para hoje, a educação afirma-se como valor e investimento primeiro no homem, que se forma e se eleva em perfeição como sugere a primeira Obra de Misericórdia: ensinar os simples. Neste sentido, a educação não se identifica com a instrução dos menos escolarizados ou menos qualificados. A educação seria, como analisa Alberto Melo, aprender a ser simples, e, para isso, aprender com os simples, porque (...) perante as mutações sociais e tecnológicas em curso ou iminentes, qualquer que seja a nossa idade, a nossa experiência ou as nossas qualificações, hoje em dia – face aos conhecimentos e competências necessários à compreensão e ao controlo do nosso quotidiano – somos todos... “simples”. Contudo, no seu depoimento, Alberto Melo não opta por um tratamento de ensinar os simples do ponto de vista evangélico. Refere os simples de espírito como os menos escolarizados ou menos qualificados. Neste sentido, o Estudo Nacional sobre Literacia, que cita, desenha um mapa da sociedade portuguesa que se traduz numa profunda fractura socioeducativa entre os 80% de simples e os 20% de mais bem equipados ou incluídos. Situação presente (Outubro de 1995) que reflecte uma herança pesada – a da ditadura, quando tais dados são comparados com os de mais Estados membros da União Europeia. E esclarece, evitando que o recurso ao passado seja entendido como factor mítico ou des-responsabilizante do presente: Vivemos ainda, efectivamente, à sombra de uma pesada herança ideológica que não permitiu até aos dias de hoje construir uma sólida e generalizada cultura da aprendizagem no nosso país. O saber formal e a correspondente certificação, que sempre foram considerados como bens raros, têm sido ao longo de décadas objecto de políticas elitistas ou de condicionamento, de natureza diversificada mas de efeitos equivalentes: o de empurrar para as margens largas camadas da população, sem lhes proporcionar vias e meios adequados para uma ulterior recuperação, e sobretudo sem lhes permitir desenvolver uma motivação eficaz e uma atitude positiva para “aprender até morrer”.
Para uma cultura da aprendizagem, cita a 5.a Conferência Mundial da UNESCO sobre Educação de Adultos, realizada em Hamburgo, em Julho de 1997: A educação básica para todos significa que toda a gente, independentemente da idade, tem uma oportunidade, individual ou colectivamente, para realizar as suas potencialidades. Não se trata apenas de um direito, mas também de um dever e de uma responsabilidade, para com os outros e para com a sociedade no seu todo. É essencial que o reconhecimento do direito à educação ao longo da vida se faça acompanhar por medidas que criem as condições necessárias ao exercício deste direito. Os desafios do século XXI não podem ser encarados apenas por governos, organizações ou instituições; são igualmente indispensáveis a energia, a imaginação e o génio das pessoas e a sua plena, livre e vigorosa participação em todos os aspectos da vida. Anuncia, também, como sinal de esperança, a criação, por Resolução do Conselho de Ministros, de Julho de 1998, de um Grupo de Missão para o Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos, sob a dupla tutela do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Sobre a segunda Obra de Misericórdia, dar bom conselho a quem o pede, reflecte Maria Barroso Soares: Não há dúvida que o conselho representa um gesto de solidariedade, muitas vezes de afecto, entre quem o pede e quem o dá. Aliás, mesmo sem ser pedido ele pode dar-se, cuidando alguém ajudar o seu próximo em circunstância difícil, em que haja desconhecimento, hesitação ou temor de enfrentar uma nova situação. Muitas vezes é um gesto de amizade, de encorajamento a alguém que hesita em tomar uma decisão. O conselho é sempre um dom e um dom gratuito, isto é, que nada pede em troca: alguém que dá, dando-se. Sem esperar ser retribuído. Parece mais perfeito, do ponto de vista da dialogicidade cristã, assentar no dom e na troca. Maria Barroso, ao reconhecer as Obras de Misericórdia como uma verdadeira síntese das virtudes cristãs expressas no Evangelho, aconselha: Uma maneira prática também de viver a Obra de Misericórdia do “dar bom conselho” (quer no-lo peçam quer não) – neste virar da história da entrada no terceiro milénio – será aconselhar a que todos conheçam os seus direitos, os direitos humanos consagrados na
Declaração Universal, cujo quinquagésimo aniversário festejamos este ano. Sem esquecer, evidentemente, de aconselhar também a ter sempre acesa e desperta a consciência dos deveres. Nesta pedagogia de fraternidade cristocêntrica, a obra de castigar com caridade os que erram merece a reflexão de Armando Gomes Leandro: Há um elemento que desde logo liga o fundamento dessa Obra de Misericórdia à concepção actual dos Direitos Humanos. É a questão dos valores em causa. Naturalmente que o conteúdo e expressão desses valores eram, na época da sua formulação, muito diferentes dos de hoje, concebidos estes à luz dos Direitos Humanos tal como são actualmente compreendidos. Mas há uma raiz comum que importa considerar (...) as potencialidades de uma reflexão sobre o presente e o futuro que considere o passado no seu significado e na sua evolução. Centrando a nossa atenção (...) no condicionalismo actual (…), vamos limitarmo-nos a referir muito sumariamente os traços essenciais da intervenção penal, hoje, em Portugal, na medida em que essa intervenção encerra os aspectos mais expressivos inerentes à referida Obra de Misericórdia “castigar com caridade os que erram”. A nova concepção da intervenção penal não consiste numa mera “tecnologia” ou “engenharia social”. O seu carácter teleológico, funcional e racional não afasta, antes pressupõe, um forte conteúdo axiológico (...), designadamente o da culpa, na sua dupla vertente, o da prevalência das reacções não detentivas, o da solidariedade e o vitimológico, bem representativos de uma visão equilibradamente atenta não só às exigências comunitárias mas também às pessoas do delinquente e da vítima, numa perspectiva de íntima interacção entre os elementos da referida relação triangular. Na base desta forte componente axiológica encontra-se o respeito pela irrecusável e absoluta dignidade da pessoa, fundamento essencial do Estado de Direito. No que respeita à formação do homem como irmão do homem pela co-responsabilidade, a quarta Obra de Misericórdia convoca-nos para consolar os tristes desconsolados. No comentário de João Seabra Diniz, a pergunta: Será que consolar os tristes desconsolados é uma preocupação desactualizada? Não será, por exemplo, preferível falar em tratar os deprimidos?
Eis a sua resposta: Na nossa sociedade organizada e computadorizada, onde tudo se contabiliza e traduz em índices quantificáveis, parece ter-se instalado uma tendência a envergonharmo-nos dos sentimentos, como se se tratasse de uma fraqueza inconfessável, imprópria de pessoas evoluídas. Neste novo contexto, parece muito mais “socialmente correcto” dizer que se está deprimido do que dizer-se que se está triste. Parece que não é de bom gosto. Mas afinal, isso traduz apenas o embaraço das pessoas, que não sabem o que fazer com os afectos. A compreensão profunda da dinâmica afectiva das relações humanas é um elemento fundamental do problema que nos ocupa e que muitas vezes tende a ser esquecido. Por isso, creio prestar um serviço lembrando aqui o peso decisivo do afecto em tudo quanto os homens constroem e em tudo o que possa considerar-se humano. Dizendo de outro modo, creio que nada de humano poderá compreender-se em profundidade, se não forem tidos em conta os elementos emocionais e afectivos que o originaram e sustentam. Se a questão for a ofensa ou a injúria, como perdoar a quem nos errou e como sofrer as injúrias com paciência? Sendo a construção da liberdade-justiça-paz um processo carregado de sobressaltos e de regressões, importa saber compreender para fazer/continuar o caminho da fraternidade: As filosofias contemporâneas voltam a falar do “destino”, não já como a sujeição a uma força sobrenatural, mas como o conjunto de dados e situações que, dentro e fora do homem, são obstáculo à liberdade. Neste “destino” incluem-se certamente o peso acumulado das culpas e dos medos, a teimosia em não querer modificar a própria imagem, a ausência de interlocutores com quem se processe o verdadeiro diálogo. Convidando o homem a acreditar que pode dialogar com Deus e confiar n’Ele, quaisquer que tenham sido os seus erros e pecados, Jesus Cristo abre ao homem um novo espaço de liberdade (João Resina Rodrigues). A fórmula de “sofrer as injúrias com paciência” é inaceitável se enaltecer o sofrimento, se legitimar o atentado aos direitos ou se preconizar a resignação. Mas é digna de ser escutada se a entendermos como apelo ao perdão das ofensas (contra o ressentimento ou
a vingança), como perseverança activa, como tolerância democrática ou como pressuposto para a construção da paz (Luís Moita). A construção da paz processa-se entre tumultos e utopia, entre a vida e a morte, numa comunidade que sujeita a catástrofes naturais sofre as perdas sem aprender, tantas vezes, pela experiência e sem apreender os sinais dos tempos (João XXIII) conducentes a novas práticas sociais de sentido alargado, também por respeito aos seus sofrimentos de perda. Sobretudo as perdas sem qualquer possibilidade de encontro, como é a morte. Quando a consciência com a morte se depara pode nascer a oração, como auto-encontro, como tempo de silêncio e de escuta, de fazer memória existencial da vida, em comunidade de vivos e de mortos, como nos diz Frei Bento Domingues em rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos: A escuta é, aliás, a primeira e a última de todas as formas de hospitalidade. A suprema Obra de Misericórdia espiritual. Pode ser exercida sempre em qualquer lugar. Mesmo quando não há tecto, nem fogo, nem alimento a oferecer, na rua ou na estrada, resta-nos sempre a possibilidade da escuta cordial, abrigo e salvaguarda dos vivos e dos mortos. O cristianismo não é fuga do mundo nem abandono ao mal do mundo. É uma escola de transfiguração permanente e paciente da vida interior e de participação na renovação da face da terra, segundo os ritmos imprevisíveis da história humana. Rezar por vivos e defuntos é uma Obra de Misericórdia espiritual, porque dá hospedagem no espírito, no coração, no desejo do orante àqueles por quem e com quem reza. Bem vistas as coisas, quem reza pelos outros ou com os outros tem, sem se dar conta, igualmente misericórdia para consigo mesmo: não deixa que os outros permaneçam estranhos ou morram no seu coração. 2.3. Sobre o bem-estar equitativo no consumo dos bens materiais. As Obras de Misericórdia corporais Sendo a questão do desenvolvimento-subdesenvolvimento um problema político, como afirmou a ONU na Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, em Dezembro de 1974, postulando uma nova ordem económica internacional, a satisfação das necessidades humanas de subsistência remete-nos para as Obras de Misericórdia corporais.
A desigual e injusta repartição dos bens materiais, mesmo no interior dos países ricos, chamados de sociedades de consumo, demonstra o horror da competição em detrimento do valor da cooperação. Para democratizar o acesso aos bens e serviços sociais é urgente disciplinar o consumo através de uma cultura de parcimónia e de solidariedade. Ideia-chave dos depoimentos produzidos sobre as Obras de Misericórdia corporais. Uma ética de solidariedade como alternativa a uma ética individualista que se materializa na reemergência da esmola, ferindo o sentido e a ordem da justiça. Do ponto de vista do Novo Testamento, a primeira dimensão do Amor é a protecção e a luta pela justiça. Para além da justiça e para a fecundar, o compromisso generoso até ao sacrifício à semelhança de Jesus Cristo. Neste sentido, a primeira obra corporal: remir cativos e visitar os presos. O elogio da liberdade pela reintegração, pela retoma dos laços e aceitação da comunidade. Uma comunidade que não condena e ao fazer justiça não deve fazer vingança, segundo a misericórdia excludente do passado, como analisa Laborinho Lúcio: Aceite a condição de escravo, enquanto “classe de população a quem se negavam todos os direitos”, e bem assim a de preso, à época menos em cumprimento de uma sanção criminal, e antes em detenção de garantia aguardando condenação ou execução da pena, normalmente corporal, que haveria de lhe ser ou que lhe havia sido imposta, não era a condição, em si, que se combatia, mas sim os efeitos negativos dela que tentava minorarse, sem, todavia, a questionar. O que se pedia aos “homens de boa fama, sã consciência e honesta vida, tementes a Deus e guardadores de seus mandamentos, mansos e humildosos a todo o serviço de Deus e da confraria”, era a prática da caridade, como forma, não de evitar ou de impedir um sofrimento humanamente degradante, mas antes de atenuar um padecimento legitimamente provocado. Para que a justiça não seja vingança, o novo compromisso é um apelo à solidariedade: É verdadeiramente do exercício da cidadania que deve tratar-se, de uma cidadania de direitos, certamente, mas, sobretudo, de uma cidadania que desperte os indivíduos para a autoria da sua própria história, num processo partilhado, assente no reconhecimento do outro e sedimentado na consciência de um dever de participação cívica comprometida e responsável. Tal como há 500 anos cumpria traçar o perfil daqueles que tinham por
tarefa visitar os presos, também hoje importa reflectir sobre o que urge de mandar aos novos “visitadores” e aos “remidores” do nosso tempo para que, em última instância, não sejam estes cativos de si próprios. Nesta mesma lógica de inclusão, o dever de curar os enfermos para contrariar práticas de exclusão dos afectados pela lepra, loucura ou doença incurável, como aconteceu no passado. De facto, face a uma cultura que tem vindo a acentuar o descartável, importa que a doença e o sofrimento sejam retomados como dimensão da condição humana e dever de resposta humana por parte da comunidade: (...) Significa a transposição do amor ao próximo, tal como era entendido nos séculos XV e XVI, para a realidade sociocultural dos nossos dias. Isso implica, na nossa e actual vivência dos valores, não só o respeito pelos outros. Implica ainda e sobretudo, a integração da solidariedade, institucionalizada dentro do espírito de responsabilidade, na ideia de que os doentes não são, nem podem ser, meros objectos de caridade, mas titulares de direitos, que o Estado e a sociedade global têm o dever de assegurar, no âmbito das respectivas responsabilidades políticas, cívicas, morais ou religiosas (Maria de Belém Roseira). Sendo múltiplas as situações e eventualidades de marginalização, acrescidas em sociedades complexas que dizem garantir igualdade de oportunidades, o dever de cobrir os nus significa, segundo Ferro Rodrigues: (...) Vestir aquele que tem frio só pode ser entendido, numa leitura extensiva, como sinónimo de auxílio a quem, despojado de bens essenciais, se vê inesperadamente excluído da família e da sociedade. Se a “nudez e o frio” têm aqui equivalência metafórica na “privação” e na “exclusão”, respectivamente, o acto de “cobrir” encontra paralelo apenas na vontade firme de combater a pobreza, erradicando-a do tecido social. Combater e prevenir – são estes, pois, os lemas da nossa intervenção social nesta matéria, que não se esgotam, de modo algum, nas políticas de solidariedade e segurança social. As políticas de saúde, de habitação, de emprego e de educação terão de cumprir, também, os seus objectivos, com vista à criação de condições que permitam eliminar de forma persistente os factores que perpetuam a pobreza e a consequente exclusão como, por exemplo, o abandono e o insucesso escolar, a degradação
do meio habitacional, a incapacidade de inserção no mercado de trabalho, enfim, o processo cumulativo de desintegração social. Nesta perspectiva coloca-se Alfredo Bruto da Costa ao analisar a quarta Obra de Misericórdia, dar de comer aos famintos. A experiência e as ciências sociais confirmam que uma carência não ocorre isoladamente, o mais frequente é tratar-se de um “conjunto de carências”, cuja interdependência define a pobreza como privação múltipla e involuntária, quer por falta de recursos quer por incapacidade de os gerir convenientemente. Do ponto de vista bíblico, este preceito constitui um dos critérios pelos quais, no Juízo Final, as pessoas serão julgadas, como se proclama no Evangelho de São Mateus: Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes. Pese embora o carácter individualizado que a obra sugere, não parece poder ser essa a interpretação requerida pelos tempos de hoje. Sem menosprezar o valor da relação interpessoal, cuja revitalização se torna necessária, importa integrá-la no complexo de relações/contextos do mundo actual: Exceptuando um número limitado de tipos de casos, a fome é normalmente resultante de falta de acesso a bens alimentares. Isto é válido tanto em contextos em que a fome é um problema “residual”, de reduzidas dimensões, quanto em situações de fome massiva, de populações inteiras. Em países de economia de mercado, como é actualmente a quase totalidade dos países do mundo, o acesso aos bens alimentares depende fundamentalmente da disponibilidade de recursos. Em rigor, é quando a privação resulta de falta de recursos que se trata de pobreza. Enquanto durar a “dependência” do faminto em relação a quem lhe dá de comer, o problema da privação (fome) fica resolvido, mas o da pobreza (falta de recursos) não. Quer isto dizer que o problema da fome só encontra solução definitiva quando vê resolvida a falta de recursos, quando o pobre se torna auto-suficiente em matéria de recursos, podendo, assim, ter acesso aos bens alimentares (e a outros bens e serviços essenciais) pela via utilizada pelo comum dos cidadãos e pela forma corrente na sociedade em que vive, isto é, através do mercado. Qual o lugar do benfeitor, na sociedade e na economia? – interroga Alfredo Bruto da Costa. Alguém que colabora apenas como parte da solução do problema da
pobreza ou alguém que reconhece também ser parte do problema? Na base do princípio do destino universal dos bens da terra, o benfeitor dá do seu ou apenas restitui ao pobre o que a este pertence? Uma reflexão desse tipo não deverá conduzir a subestimar a importância de “dar de comer” a quem tem fome. Mas impelirá a que, além disso, cada um se sinta e actue como um agente de mudança social, no sentido de libertar a sociedade dos mecanismos sociais, económicos e culturais que geram e perpetuam a pobreza e a fome. Da reflexão-resposta dependem cerca de 840 milhões de pessoas afectadas pela fome ou pela insegurança alimentar, como refere. A desintegração social é, em primeiro lugar, para quem a vive, uma dor de alma, uma secura pela perda ou desqualificação dos laços. Fica ferido ou destruído o sentimento de pertença, esta água que lava e enlaça, que purifica, identifica e cria gosto para a partilha. O dom de dar de beber aos que têm sede é, como comenta Maria José Nogueira Pinto, fonte de vida, caminhada e redenção, no horizonte do novo mar: “Dar de beber a quem tem sede” significa pois muito mais do que a satisfação de uma necessidade física. Nunca é um acto isolado, alheio às virtualidades de morte e de vida, de caminhada, de purificação, de redenção. É assim que a Água, elemento, e a sua indissociabilidade com o Homem, esse homem uno de matéria e espírito, representa no conjunto das Obras de Misericórdia talvez aquela que mais consubstancia a plenitude da caridade, numa pluralidade e abrangência tão definitivamente proclamada por São Paulo: se não tiveres caridade nada terás. Neste dever de ser solidário, as Obras de Misericórdia identificam um outro compromisso: dar pousada aos peregrinos e pobres. Isabel Guerra questiona, rendida ao princípio da realidade: Como é possível que em pleno final do século XX esse direito básico não esteja assegurado para 1,5 milhões de pessoas? Como é possível que em Portugal exista cerca de meio milhão de pessoas mal alojadas? A ausência de abrigo tem essa característica de ser simultaneamente a ausência moral e a privação material de um lugar no mundo: a falta de um local, pequeno que seja, não
apenas de uma casa, de um lar, um sítio para dormir mas também um canto onde a segurança permita a livre e descontraída expressão do eu, onde se está à vontade, onde se retemperam as forças de uma vida nem sempre fácil. Mas o direito ao alojamento não é apenas o direito a uma casa, estrutura-se num processo de redistribuição social em que a dádiva pode ser mais estigmatizante do que a carência, por duas ordens de razões – pelo produto oferecido e pelo processo que o envolve. A oferta estigmatizante de alojamentos em bairros densificados e urbanisticamente desintegrados, de má construção, rapidamente degradados, nem sequer consegue já calar as consciências, mas remete (santa hipocrisia) o mal-estar urbano para os próprios pobres – pobres e mal-agradecidos – que insistem em destruir a natural harmonia ecológica dessas selvas de betão armado. Encontrar o justo equilíbrio entre a misericórdia e a justiça social é a tarefa daqueles que neste fim de século sentem que o mundo não está feito à medida dos seus desejos e das necessidades de grande parte da humanidade e que procuram, de todas as formas disponíveis, encontrar outras pousadas... outros abrigos... mais fraternos... mais justos. No quadro das Obras de Misericórdia corporais, por fim, enterrar os finados. Fernando Micael Pereira amplia o significado: é uma obra mais espiritual do que corporal, embora diga respeito ao corpo e às coisas através das quais o homem se prolonga e exprime, porque: Enterrar os mortos em sepultura individualizada é, no entender dos antropólogos, como por exemplo no de Leroi Gourhan, um dos testemunhos, senão até o primeiro testemunho da actividade simbólica do homem. Quando alguém deixa de existir fisicamente, o homem é capaz de ultrapassar essa evidente realidade natural “construindo” uma outra realidade, essa especificamente humana, a de o manter vivo, dir-se-á na memória, talvez ainda mais na interacção, dos próprios homens.” Continuando a enterrar os mortos, a modernidade como que pretendeu enterrar a morte para deixar mais patente a ordem e o progresso, fruto da ciência e da tecnologia, numa lógica breve de economia do bem-estar. Expulsa ou encoberta a dimensão da morte, a vida empobrece-se porque se recalca o sofrimento da perda e se evita a dor do luto, condição de memória e comunhão alargada. É a comunidade dos vivos
e dos finados, na esperança da ressurreição, como reflecte Frei Bento Domingues em rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. A pragmaticidade do nosso tempo age duramente sobre os idosos, empobrecendo a todos pelo consentimento com perda de sentido, como salienta Fernando Micael Pereira: Hoje, com tantos idosos que têm acesso a centros de dia e a lares, a visibilidade desta luta antecipada, quer pelas partilhas quer pelas migalhas que o idoso tem e que tanta falta lhe fazem, é particularmente notória. Abre-se, assim, em termos sociais, um novo espaço para a obra de misericórdia que será não tanto o de enterrar os finados mas o de os não deixar enterrar antes do tempo, o de não acelerar, pelo desgosto e sentimento de perda, a sua morte. Vivendo num contexto que proíbe a palavra sobre a morte, para além dos idosos e finados, fica esta busca de dar sentido à vida, também pelas perdas irreversíveis, sofridas em comunidade: Dar palavra à vida e à morte, encontrar formas de luto comunicáveis e compartilháveis, é fundamental para que o luto não fique sufocado. O luto não aceite e compartilhado perdura dentro de nós; é como se os finados não fossem enterrados. Que perdure a saudade, mas não o morto por enterrar.
3. Em tempo de incerteza e desencanto, apostar na educação para o desenvolvimento humano e social A Declaração da Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Social reconhece no n.º 1: “Pela primeira vez na história, a convite das Nações Unidas, reunimo-nos na qualidade de Chefes de Estado e de Governo para reconhecer a importância do desenvolvimento social e do bem-estar da humanidade e dar a máxima prioridade a esses objectivos agora e no século XXI.” E, prossegue, escancarando a consciência e reconhecendo a urgência do empenhamento solidário, nascido da indignação ou da revolta, por vezes, traduzido em violência, para defender os valores da dignidade e da liberdade em solidariedade, no presente com sentido de futuro. Assim, declara no n.º 2: “Reconhecemos que
a população mundial manifesta de diversas maneiras a necessidade urgente de resolver graves problemas sociais, especialmente a pobreza, o desemprego e a exclusão social que afectam todos os países. A nossa tarefa consiste em atacar quer as causas subjacentes e estruturais quer as suas temíveis consequências, a fim de reduzir a incerteza e a insegurança na vida das pessoas.” A ignorância, com a força agónica que lhe dá Camus, no romance A Peste (1947), e a inércia, por anestesia intelectual (o pedantismo intelectual, como expressa António Sérgio), são obstáculos a uma cultura dos direitos humanos, crítica e multicultural, numa lógica de guião emancipatório para uma política progressista70, em tempo de desencanto e de promessa também (como são todos os tempos, de forma manifesta, espectacular ou subterrânea). Ninguém está de fora da ignorância e da inércia (melhor, das ignorâncias e das inércias), daí a palavra-mãe da poesia e dela somos sempre, eternamente, filhos: Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar. Com Sophia de Mello Breyner rendemo-nos a esta evidência, também do coração, que a vida, pessoal e colectiva, é coisa sempre por achar, em aposta do homem, como espanto – infinitamente grande e como escândalo – infinitamente miserável, segundo a expressão de Pascal. A modernidade fundou-se numa consciência/lucidez em gestação multissecular e afirma-se segundo práticas e lutas sociais de temível conflito (Leão XIII, 1891), entre a bandeira da dignidade humana e o chão da geografia da fome (Josué de Castro, 1946). Daí, não podermos ignorar: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico mas político.”71 Temos um desígnio de futuro e por isso uma razão para resistir e persistir. Diz o art.º 28.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa tem o direito ao estabelecimento de uma ordem social e internacional em que os direitos Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa, “Por Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”, in Revista Crítica de Ciências Sociais n.° 48, Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Junho de 1997, pp. 11–32. 71 BOBBIO, Norberte, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 24. 70
e liberdades proclamados nesta Declaração alcancem plena eficácia.” Mas diz, igualmente, no n.º 1 do art.° 29.°: “Toda a pessoa tem deveres para com a comunidade, pois só nela é que pode desenvolver livre e plenamente a sua personalidade.” Nas condições actuais, a desordem é bastante, a consciência desta complexidade é insuficiente e a perplexidade/confusão é mais que muita. O desenvolvimento de poucos países e o subdesenvolvimento da maioria é, segundo Josué de Castro, um problema de subeducação, não apenas do Terceiro Mundo mas do mundo inteiro. Está em causa um modelo de desenvolvimento que gerou dialecticamente o crescimento económico de uns tantos e a pobreza da maioria. Daí a necessidade de “construir uma estratégia global de desenvolvimento que não separe a economia do humano, mas que, pelo contrário, considere o homem, os grupos humanos, toda a humanidade, como o objectivo final do desenvolvimento”. Ou como referiram os ministros europeus responsáveis pelos Assuntos Culturais, na Declaração Europeia sobre os Objectivos Culturais: “A finalidade das nossas sociedades é permitir a cada um a realização individual na liberdade e no respeito solidário dos direitos do homem; tal realização passa pela cultura que constitui o factor essencial dum desenvolvimento harmonioso das sociedades, juntamente com os factores sociais, económicos e tecnológicos; as riquezas humanas – afectivas, mentais, físicas – constituem a finalidade e o motor do desenvolvimento.”72 O futuro é possível porque na base de todos os direitos está o direito de resistência à opressão (familiar, escolar, profissional, política local, nacional ou da globalização, intersubjectividades), ou seja, o direito à indignação como a outra face da mesma viagem pelo direito à dignidade. Em pacto de coragem, como disse o Senhor Presidente da República, nas comemorações do 5 de Outubro, preocupado com a participação cívica, condição para o exercício e aprofundamento da democracia. Ou seja, a necessidade de revitalizar a democracia representativa pela democracia participativa. Pacto de coragem para todos os portugueses: de cada pessoa à família, do campo escolar e profissional à polis – bairro, freguesia, concelho, região... Pacto de coragem em demarcação pessoal e sociopolítica contra o labirinto da saudade (Eduardo Lourenço) e a cegueira (José Saramago). Demarcação contra a banalização (Vergílio Ferreira) que mina e imbeciliza a Aparição. IV Conf. dos Ministros Europeus Responsáveis pelos Assuntos Culturais, “Declaração sobre os Objectivos Culturais”, Berlim, 1984, in boletim n.º 3, CEDI, 1986, p. 7.
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Sem memória sócio-histórica das comunidades cristãs primitivas, da fundação das Misericórdias, da Revolução Francesa ou do 5 de Outubro ou da queda do Muro de Berlim, tudo se torna cegueira... Daí a urgência de ousar pensar, de ousar reflectir e de ousar agir como, já há anos, nos advertia Josué de Castro. O problema, o nosso problema, é de subeducação, isto é, de subdesenvolvimento humano. A educação não é instrução, é processo de aprendizagem, ao longo da vida, assente em quatro pilares: “Aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros; aprender a ser.”73 Uma educação que, desde o pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos do Homem definiu, no n.° 2, art.º 26.°, como: “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.” Uma educação que se experimenta na consciência e no exercício das responsabilidades/deveres, condição para proteger os direitos humanos e abrir caminhos de aprofundamento e expansão das solidariedades. Uma educação em comunidade17 que abrigue o sonho e garanta pousada (direito de pertença-integração-participação) “a todos os membros da família humana, que dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (art.º 1.o). Uma educação que, não separando o material do imaterial, nos envolve em esperança, segundo a palavra-chamamento de Sophia de Mello Breyner: Abre a porta e caminha Cf. UNESCO, Educação: um tesouro a descobrir, Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, Lisboa, Asa, 1996. 17 Sobre o desenvolvimento local, o novo localismo e a educação para o desenvolvimento, consultar: FREIRE, Paulo, A Educação da Cidade, São Paulo, Cortês Editora, 1991; SILVA, Augusto Santos, Educação de Adultos – Educação para o Desenvolvimento, Porto, ASA, 1990; BRANCO, Francisco, Municípios e Políticas Sociais em Portugal, Lisboa, ISSS – Departamento Editorial, 1998; RIBEIRO, Mário, O Potencial das Organizações Não-Governamentais Portuguesas de Desenvolvimento (ONGD), Lisboa, CIDAC, 1995; FERNANDES, Ernesto e DAVID, Elena (org.), Quem Educa Quem? Educar Para Quê?, II Jornadas Almada e a Educação – Associação Semear para Unir, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1997. 73
Cรก fora Na nitidez salina do real.