Cidade Solidária n.º 29/30

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SUMÁRIO

CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO: SER CIDADÃO NO MUNDO DE HOJE

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DESTAQUE 2013 Ano Europeu dos Cidadãos. Balanço e desafios Entrevista a João Ascenso Ser português, hoje, no mundo Maria do Carmo Marques Pinto Reparar. Ação de voluntariado de reparações solidárias Teresa Grácio, Sónia Silva, Ana Natário e Patrícia Ferreira BA500. Cinco séculos de Bairro Alto (1513-2013) Helena Gonçalves Pinto Participação cívica e inovação social Ana Carvalho Polido e Gustavo Freitas Culturas de intervenção social e de participação: os desafios do desenvolvimento comunitário Ana Maria Viana, Maria Natália Nunes, Nuno Serra e Rogério Roque Amaro Mediação sociocultural cigana. A cebola e as suas camadas Cristina Simões

SOCIAL 52 56 68 76 84 92 4

Intergerações: uma forma diferente de diagnosticar, partilhar e sentir a cidade e os seus idosos João Marrana Em busca dos idosos isolados de Lisboa Paulo Ferreira

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Na minha vida mando eu! Participação da pessoa idosa: uma abordagem multidisciplinar Ana Catarina Tavares, Luís Farto e Vânia Prates Afonso A participação social na perspetiva de oito vidas… Estudo de caso na comunidade do Bairro dos Loios Sara Armanda Mora Teiga Da escola para o trabalho – práticas numa interface urgente Fernando Gabriel Carreira Presépio da Aldeia de Santa Isabel. A construção da aprendizagem Ana Gomes

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SOCIAL 100 106 100

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Alfabetização de adultos. Rumo à cidadania Mário Palma e Patrícia Rodrigues A literacia como uma acessibilidade no domínio da prevenção da deficiência Cristina Vaz de Almeida O Plano de desenvolvimento Lisboa 2013-2015 Ana Bandeira Vamos ajudar a manter a rua limpa Mafalda Pacheco

SAÚDE 122 130 138

Saúde mais próxima. Um programa da Santa Casa concebido a pensar nos cidadãos Luís Gardete Correia e Joana Pinto Ribeiro Demências. Um problema social e de saúde pública Rita Paiva Chaves

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Integração social: a experiência com amputados Ana Fernandes e Liliana Sousa

Solidariedade 146

Vencer obstáculos Maria João Matos

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História e cultura 150 162

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e o Bairro Alto em meados do século xix. Problemas sociais e políticas de contenção João Miguel Simões Os Mártires da Legião de Tebas na Igreja de São Roque António Meira Marques Henriques

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DIÁRIO DE CAMPO 172

Prostituição em Lisboa: uma experiência de rua Joana Lindim Pereira

178 LEGISLAÇÃO

180 LIVROS

181 AGENDA

> FICHA TÉCNICA

DIRETOR: Pedro Santana Lopes. CONSELHO EDITORIAL: Ana Salgueiro, Francisco D’Orey Manoel, Margarida Montenegro, Maria do Carmo Marques Pinto, Maria João Matos, Maria Teresa Grácio, Mário Rui André, Ricardo Amantes e Samuel Esteves PROJETO GRÁFICO: Catarina França. PAGINAÇÃO: Ana Lopes e Catarina França. REVISÃO: J. P. Baptista PROPRIEDADE E EDIÇÃO: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA. Largo Trindade Coelho – Apartado 2059 – 1102-803 Lisboa. Tel.: 213 235 000 / 213 235 575. Fax: 213 235 166

ASSINATURAS: SCML – Revista Cidade Solidária/Remessa Livre n.º 25013 – 1144-961 Lisboa (não necessita de selo) ASSINATURA ANUAL (2 NÚMEROS): Portugal: €6 Europa: €9,96 Resto do Mundo: €10,92 Regime Especial*: €8,16 Preço de cada revista: €3,60 *Macau, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Tiragem: 5000 exemplares. Depósito Legal n.º 126 149/98. Registo no ICS: 121.663. ISSN: 0874-2952

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2013

Ano Europeu dos Cidadãos BALANÇO E DESAFIOS Em entrevista à CIDADE SOLIDÁRIA, João Ascenso, cocoordenador nacional do Ano Europeu dos Cidadãos, afirma que 2013 foi um “momento de viragem na consciencialização dos cidadãos europeus para a importância da sua participação ativa na construção do futuro da Europa”. Por defender que a divulgação e reflexão sobre cidadania europeia e os direitos que lhe estão associados é “um trabalho que nunca termina”, João Ascenso explica conceitos e esclarece a dimensão quotidiana do lema adotado para o Ano Europeu dos Cidadãos: “Tem a ver com a Europa, tem a ver consigo”. Entrevista a João Ascenso [CoCoordenador do Ano Europeu dos Cidadãos]

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Ano Europeu dos Cidadãos, que se assinalou em 2013, está a aproximar-se do fim. Qual o balanço que faz do trabalho desenvolvido? O eurobarómetro 78 revela que uma das principais dificuldades que se registam por toda a Europa, com particular incidência em Portugal, é o desconhecimento que os cidadãos europeus têm dos direitos que o estatuto de cidadania lhes confere; verifica-se também que, mesmo nos casos em que os cidadãos conhecem os seus direitos, muitas vezes não sabem como os deverão exercer. Perante estas dificuldades a Coordenação do Ano Europeu dos Cidadãos (AEC) procurou agir em duas frentes: i) por um lado, procurámos promover campanhas de informação e de sensibilização das pessoas, no sentido de os cidadãos com-


| cidadania europeia |

preenderem todas as possibilidades que a cidadania europeia oferece; ii) por outro lado, revelou-se essencial organizar fóruns de discussão com especialistas, nos quais se fomentava o debate sobre a extensão e os limites dos direitos de cidadania, ao mesmo tempo que se tentava compreender em que medida deverá a cidadania europeia evoluir. Exemplos paradigmáticos destas iniciativas são a Volta do Ano Europeu dos Cidadãos, na qual os Centros Europe Direct realizaram ou estão a realizar por todo o país sessões de informação e debate de temáticas relacionadas com o AEC, permitindo um contacto mais próximo com os cidadãos europeus; e a Conferência realizada na Torre do Tombo que reuniu o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schultz, e os eurodeputados portugueses. Neste sentido, parece-me que este Ano Europeu dos Cidadãos, que, olhando para as atividades que temos pela frente ainda está longe de acabar, produziu resultados bastante positivos, na medida em que colocou cidadãos e organizações a repensarem o seu papel na sociedade europeia, em que hoje se inserem, ao mesmo tempo que permitiu uma ampla divulgação dos direitos europeus.

europeia no Tratado de Maastricht. Neste contexto, a passagem de uma lógica de Comunidades Europeias para União Europeia foi um processo paulatino de integração dos Estados membros e das suas populações, numa comunidade europeia que passou de nova para familiar. A cidadania europeia não é autónoma, ou seja, ninguém pode ser apenas cidadão europeu. Para se ser cidadão europeu é necessário que, em primeiro lugar, o sujeito obtenha a nacionalidade de um dos Estados membros. Contudo, a partir desse momento a obtenção da cidadania europeia é automática, não sendo necessário despoletar mais nenhum procedimento. Daqui resulta que a cidadania europeia está intimamente ligada à cidadania nacional. A cidadania nacional confere-nos um conjunto de direitos que nos permitem participar ativamente na vida da comunidade onde nos inserimos, seja a nível local, seja a nível nacional.

Ora, basicamente a cidadania europeia confere-nos os direitos essenciais para agirmos, reagirmos e nos movermos numa nova comunidade que se foi formando com a aproximação dos povos, que é a União Europeia. Não é por acaso que a maioria dos direitos que constituem o núcleo duro da cidadania europeia são todos direitos conferidos para resolver problemas que tenham uma dimensão europeia ou intercomunitária. Exemplos como a livre circulação, o direito de voto nas eleições europeias, a possibilidade de nos dirigirmos às instituições europeias numa qualquer língua oficial, são paradigmáticos desta dimensão europeia que é, hoje, uma dimensão do quotidiano das populações. É curioso, no entanto, verificar que estas necessidades de integração europeia têm consequências na forma como a cidadania é exercida a nível local. Veja-se o exemplo do direito eleitoral que a cidadania europeia confere aos

Em que consiste o conceito de Cidadania da União Europeia e de que forma se inter-relaciona com o exercício da cidadania a nível nacional ou local? O Ano Europeu dos Cidadãos pretende celebrar os vinte anos da implementação da cidadania 7


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cidadãos e que permite que, para além de poderem votar para as eleições do Parlamento Europeu, possam, também, votar e ser eleitos para as eleições autárquicas de qualquer Estado membro, desde que lá residam. Este direito é a consagração da importância que os europeus têm na vida de um Estado membro que não seja o da sua origem e que revela até

Direito de acesso aos documentos do Parlamento, Conselho e Comissão; Outros. Além destes direitos existem outros que nos são conferidos pelo facto de sermos cidadãos europeus e que assumem especial relevo no nosso quotidiano. É o caso de termos a possibilidade de circular, residir, estudar

da perceção dos cidadãos da importância que as decisões europeias têm no seu quotidiano, pode ter sido determinante para contrariar a tendência que se desenhava de desconhecimento destas temáticas. De facto, este ano a Comissão, o Parlamento e os Estados membros fizeram esforços sérios, provavelmente os esfor-

a cidadania europeia confere-nos os direitos essenciais para agirmos, reagirmos e nos movermos numa nova comunidade que se foi formando com a aproximação dos povos, que é a União Europeia que ponto os laços que foram sendo desenvolvidos entre os povos europeus importam para as comunidades nacionais e locais de todos os Estados. Quais os direitos associados ao conceito de cidadania europeia e como avalia quer o grau de conhecimento quer o nível de exercício ativo desses mesmos direitos em Portugal? Os direitos associados à cidadania europeia são vários. Temos os direitos políticos, que constituem o núcleo duro deste estatuto e que são basicamente os seguintes: Direito de eleger e ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu; Direito de petição ao Parlamento Europeu; Direito à proteção consular e diplomática; Direito de recorrer ao provedor de Justiça europeu; 8

e trabalhar livremente por toda a Europa, de beneficiarmos de uma tutela particularmente forte no âmbito dos direitos dos consumidores, da proibição de discriminação em razão da nacionalidade, que obriga a que os cidadãos europeus tenham o mesmo tratamento que os cidadãos de um Estado membro, da possibilidade de requerer o cartão de saúde europeu, entre muitos outros. Infelizmente, como referi, os níveis de conhecimento e de exercício destes direitos estão aquém do que seria uma situação ótima. A título de exemplo, os dados do eurobarómetro 78 revelam-nos que apenas 35% dos inquiridos em Portugal afirmam conhecer os seus direitos enquanto cidadãos europeus, sendo que a média da UE é de 45%. Estes dados são do outono de 2012 e estou em crer que o Ano Europeu, aliado a um aumento

ços mais importantes dos últimos vinte anos de cidadania europeia, que contribuíram determinantemente para uma melhor sensibilização dos cidadãos para as temáticas relacionadas com os direitos de cidadania europeia. Neste sentido, estou em crer que o ano de 2013 se assume como um momento de viragem na consciencialização dos cidadãos europeus para a importância da sua participação ativa na construção do futuro da Europa, para que a União Europeia passe a ser um espaço dos cidadãos e para os cidadãos. Contudo, é importante salientar que este é um trabalho que nunca termina. É essencial que os efeitos multiplicadores deste ano se façam sentir no futuro e que nos anos seguintes as novas gerações de cidadãos conheçam mais e melhor os seus direitos, e exerçam mais e melhor esses


| cidadania europeia |

mesmos direitos. É um trabalho que depende de toda a sociedade, em particular dos agentes educativos, desde as instituições europeias, às escolas, aos pais e aos professores. De que forma o exercício e a reclamação desses direitos podem ter impacte no quotidiano de um cidadão europeu? A comunicação franca e transparente entre cidadãos e órgãos de decisão é essencial em todas as democracias. A cidadania nacional e europeia possibilitam, precisamente, que os cidadãos participem ativamente nos processos decisórios e isso pode fazer-se das mais variadas maneiras, desde o recurso individual ao provedor de Justiça europeu, à ação coletiva de petição junto do Parlamento. Essencial é que as decisões políticas deixem de incidir no binómio nós e eles, para se centrarem apenas no nós como ilustrador de opções e decisões comuns. Ora, daqui resulta que os cidadãos têm o direito, mas também o dever, de se comprometerem com as comunidades onde se inserem, dando o seu contributo para a construção de uma sociedade mais sólida e coesa. Os exemplos que temos são reveladores de que quando os cidadãos mostram vontade de participar ativamente nas decisões políticas que são tomadas têm quase sempre sucesso. Temos recentemente as primeiras iniciativas populares a aparecerem, como é o caso da plataforma Fraternité 2020, e que são

resultado dessa vontade genuína de melhorar as condições das populações. Numa dimensão europeia o exercício da cidadania parece, à primeira vista, mais complicado. No entanto, trata-se de uma mera ilusão, já que com as redes de comunicação que são facilmente acionadas nos dias de hoje, aliado a um correto conhecimento dos direitos e da forma como esses direitos podem ser exercidos, rapidamente percebemos que nos podemos comprometer a esse nível europeu que parece tão distante, mas que é tão presente. Este exercício ativo da cidadania europeia revela-se fundamental para as instituições europeias, os agentes políticos e os cidadãos comunicarem. Só através desta comunicação constante fortalecemos a relação entre representantes e re-

presentados e podemos proporcionar decisões mais corretas que aumentem o bem-estar das populações e contribuam para a felicidade das pessoas. Onde podem os cidadãos portugueses obter mais informação sobre os seus direitos de cidadania europeia? A informação sobre estas matérias é tremendamente vasta. Um bom canal de síntese dos direitos dos cidadãos é o nosso site www.anoeuropeudoscidadaos.gov.pt, no qual se pode encontrar a informação sintetizada, com a devida remissão para outros sites, para aqueles que pretendem aprofundar conhecimentos numa ou noutra área. Para quem não tem internet a melhor sugestão é a de recorrer a um Centro Europe Direct ou a um Centro de Documentação Europeia. 9


| DESTAQUE |

Ser Português hoje, no mundo

Ser português no mundo de hoje é um fator decisivo para a definição e exercício do ser Portugal no mundo. E se é certo que a presença de Portugal no mundo deve ser vista e analisada, hoje, também à luz da pertença na União Europeia, não é menos certo que a comunidade portuguesa no mundo, formada por pessoas que estão ou se sentem vinculadas ao país – uma determinada forma de ser português – dá um significado transcendente ao que é hoje Portugal. Texto de Maria do Carmo Marques Pinto [Diretora do Departamento de Empreendedorismo e Economial Social e do Banco de Inovação Social]

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er português no mundo de hoje é um fator decisivo para a definição e exercício do ser Portugal no mundo. E se é certo que a presença de Portugal no mundo deve ser vista e analisada, hoje, também à luz da pertença na União Europeia, não é menos certo que a comunidade portuguesa no mundo, formada por pessoas que estão ou se sentem vinculadas ao país – uma determinada forma de ser

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português –, dá um significado transcendente ao que é hoje Portugal. O mundo está em mudança acelerada. A economia globalizou-se, as notícias percorrem o globo à velocidade da luz e com elas a vida, o pensar, o agir e o sentir das pessoas: cada vez mais, a partir do local onde vivem as nossas raízes, temos uma consciência planetária. Com estas mudanças cresce também a sensação de que caminhamos para


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um novo mundo deixando atrás um passado diferente, tão diferente do futuro que aí vem. Abramos o mapa-múndi e estendamo-lo à nossa frente. A pujança das economias denominadas emergentes alterou o centro de gravidade do mundo. Até há pouco mais de uma década, o epicentro do mundo estava localizado na Europa, mas o que é certo é que são demais as vezes em que damos por nós a girar o globo para nos centrarmos em países aos quais estávamos habituados a localizar numa região longínqua chamada “Extremo Oriente”. Impercetível mas inexoravelmente, o novo mapa-múndi vai impondo, no mundo global, uma nova centralidade situada algures no cruzamento entre a China, o Japão e os Estados Unidos. Embora desagrade aos europeus, esta emergente “realgeographie” acabará por impor-se de forma irremediável. E é neste cenário global que possui novas coordenadas geopolíticas e geoeconómicas, que há que pensar Portugal e pensar o que significa ser português. Rosto da Europa que fita o mar com um olhar melancólico e sonhador, o Portugal de hoje não deve porém ser sentido nem praticado por todos nós como aquele pequeno território de cerca de cem mil quilómetros quadrados onde teve origem a nossa nacionalidade e onde está localizada a sede do Estado que nos identifica como comunidade política e sujeito de direito internacional. Se é certo que a noção de Estado se reconduz à ideia e conceito de um território geograficamente determinado, há duas realidades que nos convidam a refletir sobre o que significa hoje, por um lado, ser Portugal e, por outro, ser português no mundo global. A primeira realidade que nos convida a desafiar a noção do Portugal político, Portugal-Estado ou Portugal sujeito de direito internacional e ator do mundo global que tínhamos é a adesão às que em 1986 se denominavam “Comunidades Europeias” e hoje constituem a União Europeia. Com efeito, a decisão de tomar parte no processo de progressiva e imparável integração económica e política dos países europeus teve, tem e terá consequências irreversíveis sobre o conteúdo e alcance da nossa soberania política. O conjun-

to de decisões de caráter económico e político que definiam o poder do Estado português foram transferidas, ao longo dos últimos trinta anos, para os centros de decisão comuns que foram sendo criados e desenvolvidos no quadro do processo de integração europeia. Quotas muito significativas de soberania – na área da agricultura, dos transportes, do ambiente, da política comercial externa, das pescas, da política social e económica, da defesa, da política monetária e até no âmbito da política internacional – foram sendo progressiva mas paulatinamente transferidas para as Instituições da União e são hoje exercidas e geridas em comum com os paceiros europeus e de acordo com regras na elaboração

Rosto da Europa que fita o mar com um olhar melancólico e sonhador, o Portugal de hoje não deve porém ser sentido nem praticado por todos nós como aquele pequeno território de cerca de cem mil quilómetros quadrados onde teve origem a nossa nacionalidade” das quais o Estado português detém uma quota de responsabilidade proporcional à sua dimensão geográfica e peso demográfico. Esta circunstância – queiramos ou não, gostemos ou não – obriga-nos, por assim dizer, a equacionar a nossa presença no mundo integrados num conceito de sujeito de direito internacional cujo conteúdo, alcance e contornos são substancialmente diferentes da realidade política que constitui o Portugal geográfico onde habitamos. Portugal está presente no mundo também através da realidade económica e política que é a União Europeia. Ou seja, paralelamente à presença internacional que é assegurada pelo 11


| DESTAQUE |

estes ‘pedaços’ de Portugal espalhados pelo mundo não se limitam aos objetos, à prática de umas tradições, ao evocar de uma Cultura. Estes ‘pedaços’ possuem um inegável e por vezes surpreendente alcance e grau de compromisso pessoal, económico e até mesmo político com o nosso país” Estado português, estamos económica e politicamente presentes no mundo através da presença económica e política da União Europeia. Um exemplo concreto desta realidade é-nos dado, entre muitos outros, pela representação diplomática que é garantida pela União Europeia em países onde não a possuímos. Embora a irreversibilidade desta circunstância possa levar-nos a lamentar a perda de soberania, e, em consequência, a redução da margem e capacidade de manobra enquanto sujeitos de direito internacional, a verdade é que há que tirar partido do facto de pertencer a uma comunidade alargada de países cujo valor acrescentado, ao invés do que poderíamos pensar, pode multiplicar a capacidade da ação de Portugal no mundo. Em inúmeras frentes, em diferentes questões e face a realidades diversas que compõem a ação externa do nosso país. A presença de Portugal no mundo não se confina apenas à que deriva e nos é outorgada pela comunidade e leis internacionais à nossa realidade política e geográfica mas alarga-se ao peso e dimensão da União Europeia no mundo. E note-se que esta constatação não resulta apenas de uma análise que possamos fazer enquanto membros da União Europeia mas também e 12

sobretudo pelos países que não formam parte da União e com os quais mantemos relações políticas, económicas e culturais. São os países terceiros e sobretudo eles que, ao relacionarem-se com o nosso país, integram na sua agenda de negociações bilaterais o facto e a circunstância de Portugal pertencer à União Europeia. E esta circunstância constitui, aos seus olhos, um valor acrescentado que não deve ser desprezado. Antes pelo contrário. É precisamente na concretização e reforço deste valor acrescentado, que é dado pelos nossos interlocutores e parceiros bilaterais no mundo ao facto de Portugal ser membro da União Europeia, que deve residir o trabalho a ser feito no que diz respeito ao desenvolvimento da nossa presença internacional. A forma como deveria ser levado a cabo este reforço levar-nos-ia, porém, a desenvolver considerações que escapam ao âmbito desta reflexão. Porque existe outra circunstância que influencia e modifica a forma como devemos olhar para a nossa presença internacional como portugueses. E essa circunstância prende-se com as pessoas, com a forma como pode e deve, em meu entender, ser entendido e praticado, o ser português, hoje, no mundo. Se é certo que ser-se no mundo, enquanto comunidade política, está diretamente relacionado com a conexão a um território geográfico e a um poder político constituído – mais ou menos alargado, como acabámos de ver –, não é menos certo que são as pessoas – o seu número, as suas circunstâncias particulares e, em última análise, a sua vontade de pertença a uma determinada comunidade – que determinam o conteúdo e alcance dessa comunidade. Dizia o poeta, esse grande poeta que foi Fernando Pessoa, que a nossa pátria é a língua portuguesa. A esta exortação da nossa nacionalidade, que extravasa as nossas fronteiras geográficas e políticas, há porém que acrescentar hoje uma nova conceção da realidade do “ser português” que poderá, ou poderia vir a ter uma expressão política a não negligenciar caso fosse tratada e desenvolvida de forma inteligente. A comunidade portuguesa no mundo, o conjunto de cidadãos de nacionalidade portuguesa ou luso-


| PORTUGUESES NO MUNDO |

descendentes, é uma das comunidades internacionais que maior identidade cultural possui. É um facto que, embora perfeitamente integrada nos diversos países de acolhimento onde está presente, a comunidade portuguesa guarda com o seu país de origem ou da origem da sua ascendência, laços afetivos e culturais expressivos e vivos. Quem já teve a oportunidade de relacionar-se com essa comunidade – em qualquer um dos continentes e países onde ela existe – sabe perfeitamente e sente na pele que onde há um português há um pouco do nosso país. E estes “pedaços” de Portugal espalhados pelo mundo não se limitam aos objetos, à prática de umas tradições, ao evocar de uma cultura. Estes “pedaços” possuem um inegável e por vezes surpreendente alcance e grau de compromisso pessoal, económico e até mesmo político com o nosso país. Se a pertença de Portugal à União Europeia pode ampliar e multiplicar o alcance e significado da nossa presença institucional no mundo, a existência desta comunidade portuguesa não territorial é a verdadeira força de Portugal no mundo. Dada a natureza do vínculo que une esta comunidade ao país de origem, a sua consideração como fator a ter em conta na definição e exercício da ação externa de Portugal deve, porém, ser feita com delicadeza e inteligência. Mas deve ou deveria ser um dos fatores importantes a ter em conta à hora de pensar Portugal no mundo, à hora de exercer o nosso país no mundo. Foram feitas várias experiências e tentativas de abordagem e desenvolvimento da realidade que é a comunidade portuguesa no mundo. Mas nenhuma delas tem sido consequente ou possui uma expressão prática na forma como é exercida a nossa ação externa. E no entanto, o significado que as próprias pessoas que vivem fora das nossas fronteiras e que se sentem vinculadas ao nosso país, seja por nacionalidade ou por afeto, atribuem ao ser-se português convidam a refletir sobre o alcance que pode ser dado a este vínculo. Ao olhar para o mapa-múndi, estendido à nossa frente, podemos olhar para o nosso país como o pequeno retângulo ancorado na ponta mais ocidental de um continente europeu que, apesar do peso que possui na história da humanidade, já não constitui hoje o epicentro do globo. Mas

Se a pertença de Portugal à União Europeia pode ampliar e multiplicar o alcance e significado da nossa presença institucional no mundo, a existência desta Comunidade Portuguesa não territorial é a verdadeira força de Portugal no mundo” também podemos olhar para o nosso país como uma comunidade alargada de pessoas, dispersa pelos cinco continentes desse globo, tentar ver em cada português, ou lusodescendente, uma pequena estrela de luz e ligá-las com um traço imaginário. A constelação que daí resulta abraça o mundo e a nossa presença nele adquire um significado quase transcendente. Porque a nossa verdadeira pátria está onde está quem se sente identificado com ela, dar corpo e forma a esta forma de ser português no mundo é um desafio coletivo. Uma obrigação inadiável. 13


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reparar Ação de Voluntariado de Reparações Solidárias Ação de solidariedade social promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem como objetivo beneficiar habitações de pessoas idosas carenciadas através de voluntariado corporativo. Texto de Teresa Grácio, Sónia Silva, Ana Natário e Patrícia Ferreira [Departamento da Qualidade e Inovação_SCML]

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aria Eduarda, de 78 anos, é utente do Serviço de Apoio Domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde que teve um acidente vascular cerebral, há mais de dez anos. As sequelas da doença foram muito graves, causando que desde essa altura se desloque apenas em cadeira de rodas e esteja totalmente dependente da ajuda de outros para as atividades quotidianas básicas, como sejam levantar-se, deitar-se, tratar da sua higiene pessoal, ou vestir-se e calçar-se. O seu marido, Américo, mecânico reformado, é o seu grande apoio. Vivem ambos numa pequena casa arrendada em Alcântara, Lisboa, a mesma onde o Sr. Américo nasceu e habitou com os seus pais durante toda a sua vida, e que acusa nas paredes, nos tetos e no mobiliário, as marcas de muito tempo passado e a falta de uma manutenção adequada. Nenhuma das divisões tem porta e há um buraco no teto da cozinha – resultado de uma intervenção realizada há uns anos pelo proprietário e que ficou inacabada. A cor das paredes, que um dia foi branca, está

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agora amarelada, deixando o interior da casa numa permanente penumbra, e faltam azulejos na parede da cozinha. Os dois idosos subsistem com o valor da sua pensão de reforma e invalidez, muito baixo, que lhes permite apenas pagarem a renda e a alimentação. Nada sobra para que possam fazer alguma reparação na sua casa. Foi uma caraterização similar a esta a que, em janeiro passado, chegou ao Departamento da Qualidade e Inovação da parte da coordenadora do Serviço de Apoio Domiciliário Frei Miguel Contreiras que acompanha a D. Maria Eduarda, sobre o casal e a casa em que habitam. Com ela, chegaram outras cerca de quarenta histórias de vida e de caraterização de más condições habitacionais de pessoas idosas utentes de centro de dia e de serviço de apoio domiciliário, provindas de todas as Direções de Ação Social Locais da Santa Casa. Esta foi uma identificação que aconteceu no âmbito da preparação da segunda edição da REPARAR – Ação de Reparações Solidárias, uma ini-


| VOLUNTARIADO |

ciativa de voluntariado corporativo criada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 2011, ano em que foi realizada pela primeira vez, e que tem como objetivo beneficiar casas degradadas de pessoas idosas carenciadas e isoladas da cidade de Lisboa, suas utentes, através da realização de pequenas reparações, custeadas por empresas, no âmbito das suas políticas de responsabilidade social. Uma resposta que alia o conhecimento e o trabalho da Misericórdia de Lisboa à responsabilidade social das organizações. O impulso para a estruturação de uma iniciativa com os objetivos da REPARAR emergiu do diagnóstico efetuado pelo Serviço de Apoio Domiciliário da instituição, resposta social que apoia na cidade cerca de 3500 pessoas idosas carenciadas, isoladas e dependentes da ajuda de terceiros para as atividades da vida diária: o de que uma grande parte destes seniores habita em casas muito envelhecidas, degradadas e não adaptadas às suas necessidades atuais, nomeadamente no que se refere a questões de acessibilidade, e não possui capacidade física ou financeira para realizar as reparações de manutenção essenciais. O quadro traçado é consonante com o diagnóstico que serviu de base à elaboração do Plano Gerontológico Municipal de Lisboa para 2009-2013, estudo em que a SCML participou, sobre a avaliação das condições habitacionais da população idosa da cidade. As suas conclusões mostraram claramente que as condições em que muitos dos nossos idosos habitam são uma das principais razões da sua exclusão social. Entre os principais pontos críticos identificados, estão as «assimetrias em termos de qualidade do habitat, com repercussões na qualidade de vida e na manutenção/promoção da autonomia das pessoas que avançam em idade», a «situação de vulnerabilidade dos indivíduos que vivem sós e em condições precárias de conforto na habitação» e o «envelhecimento do edificado». Foi também constatado nesta avaliação que a maioria das pessoas idosas vive na mesma casa há mais de trinta anos, que 65% dos inquiridos gostariam de poder fazer obras na sua residência, que 29% consideram o estado geral de conservação da Voluntários de uma das empresas apadrinhadoras, em ação numa das habitações intervencionadas

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| DESTAQUE |

A reparação do teto e a pintura da instalação sanitária trouxeram maior segurança e mais conforto à D. Ema

Uma resposta que alia o conhecimento e o trabalho da Misericórdia de Lisboa à responsabilidade social das organizações” casa como a principal razão para insatisfação com a sua situação de vida, e que 26%, quando questionados sobre os seus projetos de futuro em relação à habitação, referem que gostariam de ficar a viver na sua casa desde que fossem efetuadas reparações. Outro dado preocupante é que 59% dos idosos que residem sozinhos vivem uma realidade de total isolamento diário, seja porque as barreiras arquitetónicas ou as suas condições de saúde obstaculizam a sua mobilidade, seja porque não possuem qualquer rede estável de suporte familiar ou social. A REPARAR foi, assim, estruturada em reação a esta problemática, no sentido de a minimizar e de chamar a atenção da sociedade para a mesma, como uma resposta inovadora, de caráter pontual, que alia o conhecimento que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem da realidade habitacional das pessoas ido16

sas carenciadas e isoladas da cidade e o apoio social que lhes presta no terreno à responsabilidade social das empresas, o instrumento que permite a sua materialização. As empresas aderentes a esta iniciativa são, assim, um vetor estratégico e determinante da REPARAR, na medida que são elas que custeiam as intervenções a realizar nas habitações e as concluem, com equipas de colaboradores seus, em regime de voluntariado, durante um dia, após terem sido realizados três dias de trabalhos preparatórios por uma empresa de construção civil. Previamente, partindo das sinalizações realizadas pela Direção de Ação Social, todas as habitações identificadas são alvo de visitas técnicas, para verificação da viabilidade de integrarem o projeto e para realização da caraterização das principais carências e das reparações que são passíveis de serem realizadas no seu âmbito. Deste modo, cumprem-se os três objetivos traçados para a REPARAR: melhorar as condições de habitabilidade e de conforto de pessoas idosas carenciadas de Lisboa apoiadas pela SCML; promover o voluntariado corporativo como peça fundamental da política de responsabilidade social da empresa e da sua intervenção na comunidade envolvente, e alertar e sensibilizar a sociedade portuguesa para as consequências do envelhecimento demográfico, e motivá-la para a ação e para a participação cívica. Na primeira edição, realizada entre junho e julho de 2011, e abrangendo apenas os utentes dos serviços de apoio domiciliário de duas das quatro Direções de Ação Social Local da Misericórdia, as que intervêm na zona histórica e central de Lisboa (DIASL Sul e Centro-Ocidental), os resultados foram surpreendentes, com a beneficiação de 26 habitações por dez empresas, assim como foi extremamente positiva a avaliação realizada pelas empresas participantes, pelos utentes e pelas entidades parceiras. Juntando a este sucesso o programa Intergerações conduzido pela Misericórdia de Lisboa em 2012 com o objetivo de identificar os idosos isolados da cidade, que consistiu em calcorrear todos os bairros de Lisboa e bater porta a porta, cujos resultados reforçaram os dados do relatório acima referido e os do Censos 2011, não fazia sentido que a instituição não retomasse a REPARAR no futuro.


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Em seis das habitações intervencionadas, as banheiras foram substituídas por bases de duche, aumentando a autonomia dos utentes

A REPARAR em ação A segunda edição da REPARAR decorreu no terreno entre o início de maio e o final de junho de 2013, depois de um extenso trabalho de preparação, que começou em janeiro, com a sinalização dos utentes cujas casas poderiam integrar a iniciativa, e que prosseguiu, nomeadamente, com o diagnóstico técnico dos problemas das habitações e com a divulgação do projeto junto de empresas e a recolha de manifestações de interesse de adesão das mesmas. Para estas duas últimas etapas, à semelhança do acontecido em 2011, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contou com a parceria da associação Arquitetos sem Fronteiras – Portugal, cujos cerca de trinta dos seus arquitetos voluntários visitaram e caraterizaram todas as habitações, do GRACE – Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial e da empresa de consultoria em responsabilidade social Sair da Casca, que divulgaram a REPARAR junto dos seus associados e parceiros, respetivamente. No final, conseguiu-se a adesão de um total de 17 empresas e entidades: Accenture, Banco Espírito Santo, Charon – Soluções de Segurança, EDP, Eurest, Fujitsu, Fundação Manuel António da Mota, Fundação Portugal Telecom, Gertal, Gru-

Foram 17 as empresas aderentes à Ação REPARAR

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No fim deste dia, a diferença entre o ‘antes’ e o ‘depois’ da intervenção era abismal e via-se tanto nos rostos agora felizes da D. Eduarda e do Sr. Américo, que ‘ganharam’ um novo lar e um novo ânimo, como no de cada um dos voluntários, que receberam a melhor e mais abnegada das recompensas, a de fazerem o bem”

Depois da intervenção da REPARAR, que incluiu a substituição do pavimento, a D. Mariana passou a poder usar a sua sala

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po Brodheim, Hewlett-Packard Portugal, Iberlim, Montepio, Odebrecht, Repsol, a própria Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e Strong. Entre elas, apadrinharam a beneficiação de 26 habitações, ajudando diretamente as 33 pessoas idosas que nelas habitam. Estes apadrinhamentos significaram um investimento global na ordem dos 107 mil euros, correspondendo a cada intervenção realizada um valor médio de 4100 euros. A ação, no total, envolveu 265 colaboradores voluntários destas organizações, em 2120 horas de voluntariado. Entre os muitos trabalhos de beneficiação realizados, destacam-se a reparação de fissuras e de humidades em paredes e tetos, pinturas, limpezas e arrumações. Em seis das habitações foram substituídas as banheiras por bases de duche, para permitir melhor acessibilidade dos utentes e facilitar a sua higiene pessoal. Noutras duas, foram instalados termoacumuladores, porque os utentes não tinham algo tão básico como água quente na instalação sanitária. A idade média dos utentes beneficiados, na sua esmagadora maioria mulheres, é 81 anos. A utente mais idosa tem 94 anos e é uma dos apenas seis utentes apoiados que ainda é autónoma, possuindo uma vitalidade e energia invejáveis. Todos os restantes, em maior ou menor grau, são dependentes de terceiros para a realização das atividades básicas da vida diária. “Pareciam bichinhos-da-seda – muito sedosos e amigos de trabalhar”: Pequenas obras que também reparam a solidão e o isolamento dos mais idosos Retomando a narração do caso da D. Maria Eduarda para concluir a crónica desta segunda edição da REPARAR, por ser exemplificativa do que se passou nas outras 25 intervenções realizadas, deixamos uma breve descrição da transformação operada. Para esta utente e para o seu marido, a REPARAR chegou no final de maio. Depois de três dias prévios de trabalhos preparatórios, em que uma das duas empresas de construção civil associadas ao projeto reparou fissuras, preparou paredes e madeiras para pinturas e colocou novas portas nas divisões, no dia 24 de maio, logo pelas


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09h00 da manhã, este casal tinha à porta de sua casa uma equipa de mais de uma dezena de colaboradores da Odebrecht, a empresa que selecionou esta casa para apadrinhar. Num trabalho a muitas mãos, e com o espírito de solidariedade e entreajuda sempre presente, durante cerca de oito horas estes voluntários pintaram incessantemente paredes e tetos e limparam e lavaram móveis, azulejos e pavimentos. No final, arrumaram cuidadosamente móveis e bibelots e tiveram atenções especiais com a decoração, oferecendo diversos “mimos” que tinham recolhido ou comprado previamente entre todos, para alegrar a casa. Em suma, esta empresa e os seus colaboradores deram uma nova cara a esta habitação, e uma nova vida doméstica a este casal. No fim deste dia, a diferença entre o «antes» e o «depois» da intervenção era abismal e via-se tanto nos rostos agora felizes da D. Eduarda e do Sr. Américo, que «ganharam» um novo lar e um novo ânimo, como no de cada um dos voluntários, que receberam a melhor e mais abnegada das recompensas, a de fazerem o bem. Um ânimo que foi igualmente partilhado por outros beneficiários, para quem a REPARAR acabou por representar também uma oportunidade de sociabilização diferente, quebrando a rotina do seu quotidiano e oferecendo-lhes algumas «novidades» para partilharem nas suas redes de proximidade, desde um quintal arranjado e cheio de flores que arrancou os elogios dos vizinhos, ou uma transformação na casa onde agora o utente já considera que pode receber visitas. Esta vertente de sociabilização tem uma especial importância para os utentes que acompanham as intervenções nas suas casas e podem usufruir da oportunidade do convívio com os voluntários, que chega mesmo a dar direito a «almoçaradas magníficas», usando-se a expressão de uma das beneficiárias da edição de 2013. A REPARAR é, por tudo isto, uma iniciativa com múltiplas dimensões. Além de reparar casas, também repara vidas solitárias. Em 2014, é um compromisso já assumido pela Administração da Santa Casa, a REPARAR regressará para uma terceira edição.

A REPARAR 2013 em números

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BA500

Cinco Séculos de Bairro Alto (1513-2013) Comemoraram-se, este ano, os 500 anos de um dos bairros mais notáveis de Lisboa, na história e atualidade. Desde que foi autorizado o primeiro plano geométrico de Lisboa, em 1513, quando Lopo de Athouguia acordou com os aforadores, Bartolomeu de Andrade e sua mulher, Francisca Cordovil, a divisão do mesmo em lotes, que este bairro – inicialmente designado como Vila Nova de Andrade – passou a ser residência de artesãos, homens do mar, comerciantes, estrangeiros e, também, lugar de intriga política, tertúlias e cultura nas suas manifestações diversas. Em 2013, foi programado um conjunto de iniciativas comemorativas, no Bairro Alto e, também, na sua envolvente próxima. Texto de Helena Gonçalves Pinto [Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa_Comissão Executiva do BA500]

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B

A500 é o acrónimo que suporta a imagem das comemorações oficiais dos 500 anos do Bairro Alto, em Lisboa, que decorreram durante o corrente ano, de abril a dezembro, num programa composto pela realização de mercados, passeios, visitas, conferências, teatro, cinema, música e dança. Foi uma aposta inicial da Associação de Moradores do Bairro Alto, Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa, Lisboa Club Rio de Janeiro, Associação Portuguesa de Livreiros Alfarrabistas e Museu da Farmácia, que se constituíram como comissão executiva, e contou ainda com um conjunto vasto de parceiros.

Fotos: Luís Paisana

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1 e 2. Ruas do Bairro Alto

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A identidade visual das comemorações tem assinatura do ateliê Silvadesigners e é baseada nos aspetos morfológicos do Bairro Alto – matriz urbana e elementos arquitetónicos diversos –, bem como nas memórias

grafitadas espontâneas, que são recorrentes no local. As primeiras iniciativas pretenderam impulsionar uma programação alargada, na qual se previu também a permanente abertura a propostas de inte21


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3. Logótipo do BA500 4. Rua do Bairro Alto

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5. São Roque e o Cão (Festas de São Roque no Mundo)

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Luís Paisana

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Jorge Mangorrinha

6 e 7. “Baile... no Bairro” e público assistente

ressados, designadamente por parte dos moradores e outros agentes económicos e culturais do Bairro Alto. Pelo Teatro do Bairro Alto passaram as Pequenas Comédias, início bem-disposto para uma programação que se quis alegre e dinâmica. O teatro estaria de novo presente com As Mãos de Eurídice (Junta de Freguesia de Santa Catarina). (Re) conhecer o Bairro foi outro dos objetivos. Por dentro dele, desde o “Bairro Alto de Outras Eras”, através de uma leitura toponímica, ao “Passeio pela História do Bairro”, num olhar sobre as arquiteturas, despertou-se para a azulejaria e os espaços públicos, por exemplo, interagindo com os moradores e agentes comerciais. Entrámos na história de coleções – a cerâmica farmacêutica dos séculos xv e xvi e um olhar sobre os 7000 anos da História da Saúde (Museu da Farmácia) –, bem como na de edifícios emblemáticos, pela mão do Fórum Cidadania LX – o Conservatório Nacional, o Liceu Passos Manuel, o Palácio Ratton, a Igreja dos Paulistas (Igreja de Santa Catarina), a antiga sede de O Século, a Academia das Ciências –, também o Reservatório da Patriarcal (Museu da Água), a Igreja de São Roque (nas invocações de Santa Maria del Popolo, em Portugal, e nos percursos de São Roque, em Lis-


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As Festas de São Roque no Mundo trouxeram a Lisboa visões sobre o culto de São Roque em diferentes partes do mundo, numa iniciativa da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa que, no ano passado, se candidatou, em França, a esta iniciativa periódica”

6 Luís Paisana

boa) e, como não podia deixar de acontecer, o “Bairro à Noite”. Visitas e passeios que ficaram na memória de todos aqueles que se nos juntaram. “Dançámos” no “Baile… no Bairro”, do Largo Camões ao espaço polivalente da Junta de Freguesia de Santa Catarina. Escutámos músicas, dos recitais do salão nobre do Conservatório Nacional e da Igreja de Santa Catarina à Marcha do Bairro Alto ou ao “Cortejo de Maracatu” dos ritmos tradicionais da cultura afro-brasileira, numa aposta abrangente. Ideias nascidas no Bairro, tal como “Nascidos na Hemeroteca”, são tantos e tantos livros – alguns expostos numa mostra –, que beberam na investigação de uma casa que marcou o Bairro e que, agora, parte e deixa saudade. Afinal, tal como quase todos os jornais feitos aqui, também a guardiã de uma coleção inestimável de periódicos se deslocaliza. As comemorações reconheceram o seu papel importante e, no dia do aniversário, cantaram-se os parabéns em pleno Largo Trindade Coelho, com um grande bolo de aniversário, oferecido pela Junta de Freguesia da Encarnação, e dançou-se ao som da Marcha do Bairro Alto. Diferentes áreas do conhecimento deram origem a palestras neste contexto: “Bairro Alto, Capital do Jornalismo Lisboeta” (Livraria Artes & Letras); “Cuidar – uma atitude na vida e na morte (São Paulo, São Camilo, São João de Deus e São Roque)” (Convento dos Cardaes)

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Foto: João Gomes

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e “Rafael Bordalo Pinheiro – mobiliário e decoração” (Pavilhão Chinês). As Festas de São Roque no Mundo trouxeram a Lisboa visões sobre o culto de São Roque em diferentes partes do mundo, numa iniciativa da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa que, no ano passado, se candidatou, em França, a esta iniciativa periódica. O programa cultural contou, designadamente, com a grande marioneta “Cão de São Roque” (construída no Museu do Oriente, que se apresentou como atividade performativa singular, promovida pelos utentes e funcionários da Santa Casa da Misericórdia de


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Fechámos o aniversário com um mercado de livreiros, confeiteiros e hortos, uma lotaria popular sob o signo do BA500 e das comemorações (Jogos Santa Casa) e um imenso bolo pelos 500 anos” O Bairro passa agora a ser gerido por uma nova entidade administrativa. Houve um debate (auditório do Museu da Farmácia) com os candidatos autárquicos, para se saber o futuro administrativo e a relação com os cidadãos na vida do Bairro. O futuro passará, designadamente, pelo Cartão do Morador e pelo Curador do Bairro, bem como por outras iniciativas articuladas em rede de parceiros.

Fechámos o aniversário com um mercado de livreiros, confeiteiros e hortos, uma lotaria popular sob o signo do BA500 e das comemorações (Jogos Santa Casa) e um imenso bolo pelos 500 anos, que aproximaram ainda mais as pessoas das celebrações e foram o fechar dum ciclo comemorativo. Abrem-se novos desafios. O filme do futuro deste Bairro pode inspirar-se, quem sabe,

8, 9. Visitas guiadas (noturna e diurna) ao Bairro Alto 10. Conferência no Bar Pavilhão Chinês

Luís Paisana

Lisboa) e o concerto “Novena de São Roque”, executado 181 anos após a sua criação. A rua recebeu um desfile inovador, com a apresentação das próximas tendências, a partir da reciclagem de roupa (Rua da Atalaia). E, por falar em criatividade, o “Farrabodó”, no Palácio Quintela (IADE), propôs documentários, palestras, conferências, aulas-abertas, visitas guiadas e concertos. A rádio veio ao Bairro (a Rádio Renascença, no Atelier-Museu Júlio Pomar, e a TSF congregou em estúdio alguns especialistas). Falou-se de arte, de fado, dos patrimónios que estão bem vivos no Bairro Alto. Também neste ano de comemorações nasceu a nova freguesia da Misericórdia.

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José Carlos Igreja

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Todos estamos conscientes dos atributos e dos problemas existentes no Bairro Alto. Mas, igualmente, convictos da força única que aqui se mantém, um poder atrativo muito singular nesta cidade e que torna este Bairro histórico exemplar à escala mundial”

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num “Primeiro Olhar”, no “Abrir os Cofres” e em “Filmar”, propostas de formação dirigidas a crianças/adolescentes ou adultos, tal como as que foram desenvolvidas pela associação Os Filhos de Lumière ou a Cinemateca Portuguesa, sob aqueles títulos, levando os participantes a olhar e a ouvir a cidade, a luz, a cor, o movimento e o som, elementos essenciais de uma realidade urbana, sobre a qual estas comemorações promoveram o conhecimento, a divulgação, o debate, a animação, a interação, o respeito. Todos estamos conscientes dos atributos e dos problemas existentes no Bairro Alto. Mas, igualmente, convictos da força única que aqui se mantém, um poder atrativo muito singular nesta cidade e que torna este bairro histórico exemplar à escala mundial. As comemorações animaram esta zona de Lisboa. Celebrámos em parceria a essência deste bairro criativo, onde a contemporaneidade Abraça a História e Ama o Bairro!


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11. Interior da antiga sede de O Século 12. Espetáculo no Teatro do Bairro 13, 14, 15, 16 e 17. Cartazes de concertos no Conservatório Nacional e de visita noturna

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Comissão Executiva (por ordem alfabética das entidades): Luís Paisana (Associação de Moradores do Bairro Alto), Luís Gomes (Associação Portuguesa de Livreiros Alfarrabistas), Helena Gonçalves Pinto (Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa), Vítor Silva (Lisboa Clube Rio de Janeiro), João Neto (Museu da Farmácia). Parceiros (por ordem de adesão): Câmara Municipal de Lisboa | EGEAC | Junta de Freguesia da Encarnação | Junta de Freguesia de Santa Catarina | Junta de Freguesia do Sacramento | Junta de Freguesia das Mercês | Associação dos Comerciantes do Bairro Alto | Teatro do Bairro | Instituto de Cinema e do Audiovisual | Agrobio | Galeria Zé dos Bois | Silvadesigners | Hemeroteca Municipal de

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Lisboa | Casa do Brasil | Centro de Estudos Africanos ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa | Convento dos Cardaes – Associação Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos | Fundação Oriente - Museu do Oriente | Rádio Renascença | TSF | Direcção-Geral do Património Cultural | Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema | Câmara Municipal de Idanha-a-Nova | IADE – Creative University | Fórum Cidadania LX | Academia de Amadores de Música | Santa Casa da Misericórdia de Lisboa | Jogos Santa Casa | Es-

cola de Música do Conservatório Nacional | A Bola | Bairro Alto Hotel | Museu Bordalo Pinheiro | Pavilhão Chinês | Livraria Olisipo | Livraria Artes & Letras | Real Ficção | Paróquia de Santa Catarina | Tribunal Constitucional | Atelier-Museu Júlio Pomar | Liceu Passos Manuel | Museu da Água da EPAL | Supremo Tribunal Administrativo | Adivinha Quem Vem Jantar | Museu da Cidade. ba500anos@gmail.com | www.facebook.com/ ba500anos 27


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PARTICIPAÇÃO CÍVICA

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E INOVAÇÃO SOCIAL Em 2009, o presidente Obama criou o Gabinete de Inovação Social e Participação Cívica (Office of Social Innovation and Civic Participation) na Casa Branca para incentivar o desenvolvimento de soluções inovadoras na comunidade. Em abril de 2013, a SCML criou o Banco de Inovação Social para estimular e apoiar os cidadãos na criação, experimentação e implementação de soluções inovadoras para os problemas e necessidades da sociedade portuguesa. Texto de Ana Carvalho Polido e Gustavo Freitas [Técnicos Superiores de Psicologia da SCML, DEES, Banco de Inovação Social]

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O

atual contexto social e económico revelou a desadequação das estruturas, processos e respostas tradicionais e exige soluções que permitam ganhos de qualidade de vida e bem-estar, redução de custos e instrumentos mais eficazes de intervenção social. Os atuais desafios implicam uma inovação no modo de pensar e agir dos agentes dos vários setores da sociedade, em particular dos cidadãos. Inovação social e o papel dos cidadãos O processo de inovação social diz respeito ao desenvolvimento de novas soluções para as necessidades sociais que são mais eficazes, eficientes e sustentáveis do que as respostas tradicionais, estabelecendo ligações entre os vários setores da sociedade e envolvendo a participação ativa dos cidadãos. Estas soluções podem ser novos produtos, serviços, atividades, tecnologias, processos, valores e competências que permitem transformar as relações sociais e mudar a vida das pessoas e das comunidades. Começam com uma ideia nova ou um método diferente do habitual mas também podem ter origem na reaplicação de soluções já existentes ou na sua transferência para um novo contexto, como aconteceu com o ensino à distância, um modelo inicialmente desenvolvido no sistema educativo que foi inovador nas empresas. Podem ser implementadas pelo governo ou por organismos públicos (como o e-government ou o orçamento participativo), por empresas privadas (como a teleassistência para os idosos ou o comércio justo) ou pelas organizações e movimentos da sociedade civil (como as universidades seniores ou as hortas comunitárias). As inovações sociais acontecem quando existe um desajustamento entre a procura e a oferta, isto é, quando as soluções disponíveis não respondem às necessidades existentes ou emergentes num determinado momento histórico. No século xix, os sindicatos e as cooperativas emergiram da sociedade civil para responder aos desafios e problemas colocados pela industrialização. Em 2012, a Comissão Europeia lançou os 30

Prémios Europeus de Inovação Social (em memória de Diogo Vasconcelos) que convidam os cidadãos europeus a propor soluções para criar novas oportunidades de trabalho e para melhorar o próprio processo de trabalho. Hoje, a participação cívica é um exercício legitimador das instituições democráticas, seja ao nível genérico da participação politica, através dos meios tradicionais ou de outras formas de intervenção pública (como as petições), seja ao nível social ou comunitário através das múltiplas


| cidadania e inovação |

O processo de inovação social diz respeito ao desenvolvimento de novas soluções para as necessidades sociais que são mais eficazes, eficientes e sustentáveis do que as respostas tradicionais, estabelecendo ligações entre os vários setores da sociedade e envolvendo a participação ativa dos cidadãos 31


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dimensões do voluntariado ou do associativismo (em si mesmas, uma «escola da democracia»). A definição de inovação social leva mais longe a participação cívica, pois inclui ativamente os cidadãos no processo de criação e desenvolvimento de novas soluções para as necessidades e desafios sociais. Não podemos falar em inovação social sem uma dimensão de cidadania participativa. Por isso, falamos de um processo de cocriação e colaboração entre os vários setores da sociedade, nos quais se inclui o Estado e os organismos públicos, o mercado e as empresas, as instituições sociais ou do 3º setor e as pessoas que, tradicionalmente, constituem o corpo anónimo de beneficiários, utilizadores ou consumidores dos produtos ou serviços prestados por esses diferentes setores. É também este o significado da dimensão «social» da inovação que implica uma mudança nas relações sociais e na interação entre os diferentes agentes, pois é dessa mudança e não de uma mudança tecnológica que emergem as novas soluções. Os diferentes stakeholders ou partes interessadas partilham os seus conhecimentos, experiências e recursos no desenvolvimento de novas soluções. Os cidadãos são os melhores especialistas em problemas sociais e podem contribuir com informação e ideias para o desenvolvimento de melhores serviços e produtos pelos governos, empresas e instituições sociais mas podem também assumir a iniciativa e a responsabilidade de agir sobre os próprios problemas e necessidades. Movimentos de participação cívica na inovação social O Orçamento Participativo (OP) assume-se como um exemplo de participação cívica e inovação social na medida em que implica o exercício de uma cidadania ativa e responsável e o envolvimento dos cidadãos no processo de tomada de decisão sobre os investimentos públicos. Este processo aberto e sem discriminação positiva atribuída às organizações sociais estabelece uma articulação entre democracia representativa e direta e permite a definição das prioridades de investimento público tendo em atenção as necessidades sentidas pelas pessoas. Os cidadãos participam na identificação dos problemas e necessidades locais, na definição das prioridades 32

de investimento do orçamento público de um dado território e na implementação, monitorização e avaliação de projetos. Implica também a construção de consensos e a cooperação entre os cidadãos e as instituições políticas. A participação cívica, elemento central deste instrumento é incentivada através de mecanismos diversificados quer no âmbito das novas tecnologias quer no âmbito da promoção de debates e fóruns de discussão. Nasceu na América Latina, mais concretamente no Brasil, durante a década de 1980 mas rapidamente se transformou num acontecimento em todo o mundo, encontrando-se experiências de OP em qualquer zona do globo independentemente do tipo de sociedade, cultura ou sistema politico. Em pouco tempo despertou a atenção das organizações como o Banco Mundial ou as Nações Unidas, da classe política, do meio académico e das organizações da sociedade. Embora seja na América Latina que se encontra o maior número de experiências de OP, também na Europa se assiste a um crescente dinamismo na implementação deste instrumento de participação dos cidadãos. O sucesso destas experiências aponta para a existência de espaços para a cidadania no âmbito da governação local e da afetação de recursos às políticas municipais, tão relevante como os habituais mecanismos formais da democracia, e para a possibilidade de criar novas relações entre os setores da sociedade. A participação dos cidadãos pode ocorrer em diferentes momentos do processo de inovação social: na identificação das necessidades sociais, no momento criativo em que se geram novas possibilidades de solução e no momento de implementação em que se incentivam e apoiam as pessoas (individual ou coletivamente) a pôr em prática as novas soluções. A inovação social faz-se para as pessoas: as novas soluções começam a ser promovidas com a identificação das necessidades sociais que não são satisfeitas pelas respostas existentes através do diagnóstico, monitorização e reconhecimento da realidade social pelos cidadãos. A inovação social faz-se com as pessoas: o desenvolvimento de novas soluções implica a mobilização e o envolvimento dos cidadãos na criação, design e execução de novos produtos e serviços.


| cidadania e inovação |

A inovação social é feita pelas pessoas: as novas soluções podem ser implementadas pelos próprios cidadãos, nomeadamente por via do empreendedorismo social enquanto instrumento e um meio para garantir a sua sustentabilidade. O processo de inovação social é colaborativo e interativo, preconiza o cidadão como especialista nas temáticas sociais e como agente promotor de mudança. O Banco de Inovação Social (BIS)

do BIS. O tutor participa, construindo e formando equipa com o BIS. Esta relação da cidadania com uma organização social, neste caso a SCML através do BIS, é inovadora na medida em que confere ao cidadão a possibilidade de partilhar os seus ativos contribuindo desde a identificação das necessidades sociais até à concretização das soluções inovadoras. O cidadão é assim envolvido numa abordagem com tónica no fazer com.

A participação dos cidadãos pode ocorrer em diferentes momentos do processo de inovação social: na identificação das necessidades sociais, no momento criativo em que se geram novas possibilidades de solução e no momento de implementação promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não é alheio a este aspeto e, por esta razão, inclui no conjunto dos seus ativos o capital humano da cidadania, através do seu programa de Tutores BIS. O BIS é uma plataforma, sem personalidade jurídica, agregadora de instituições e entidades, públicas, privadas e do terceiro setor, cujos ativos são disponibilizados para o cumprimento da sua missão. Especificamente o programa de Tutores BIS surge com a finalidade de promover novas dinâmicas de relação e de participação social dos cidadãos, sendo transversal a todas as iniciativas e programas do BIS designadamente: Programa de Inovação Social, Programa de Empreendedorismo Social, Programa de Promoção de uma Cultura de Inovação Social e Fundo de Investimento Social. O programa de Tutores BIS configura-se como um novo modelo de relação entre os cidadãos e entre os cidadãos e as organizações, preconizando novas formas de interação e de participação social, assente nos princípios da colaboração, da cocriação e da coconstrução. Os tutores BIS são cidadãos que acreditando na missão e programas do BIS participam, de forma voluntária, disponibilizando o seu tempo, conhecimento, competências e experiência às iniciativas e programas

Ao mesmo tempo os tutores são cidadãos que apoiam outros cidadãos. Em concreto no BIS, apoiam empreendedores que apresentaram uma ideia e pretendem que esta se torne um projeto/ negócio sustentável. Esta transformação decorre de forma mais coerente e sólida quando se proporcionam espaços de cocriação, coconstrução, partilha, debate e participação por oposição a atitudes individualistas e de isolamento ou ocultação. No BIS, a multiplicidade e a diversidade de olhares é garantida e facilitada com a intervenção do tutor que, mais uma vez de acordo com uma abordagem fazer com, põe em comum competências e conhecimento e, se relaciona e interage com via à produção de novas soluções. Esta forma de participação social e de relação entre os cidadãos tem apenas como retorno a atribuição de um novo significado ao conhecimento acumulado ao longo da experiência de vida e profissional e a possibilidade de participação e envolvimento no desenvolvimento de uma solução inovadora. No processo de Inovação Social existem múltiplas formas de participação cívica, sempre centradas na resolução de problemas e nas necessidades das pessoas e das comunidades e na cocriação e colaboração entre os cidadãos e os diferentes setores da sociedade. 33


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Culturas de intervenção social e de participação:

os desafios do Desenvolvimento Comunitário Num tempo em que diferentes paradigmas e culturas de intervenção social se entrecruzam de forma complexa, o Desenvolvimento Comunitário surge – e deve ser encarado – como uma estratégia de atuação portadora de interessantes desafios e potencialidades. Texto de Ana Maria Viana, Maria Natália Nunes, Nuno Serra e Rogério Roque Amaro1 [SCML, Centro de Investigação Científica e Aplicada]

A

s intervenções, públicas ou privadas, no domínio da proteção e ação social, refletem sistemas de princípios, fundamentos, estratégias e objetivos que podem revelar-se muito diferenciados entre si. Na prática, as organizações que operam na esfera da intervenção social desenvolvem e consolidam, ao longo do tempo, culturas de inter-

venção e paradigmas de resposta que marcam e estruturam, em grande medida, a sua identidade institucional. Em abstrato, podemos considerar a existência de três grandes paradigmas de intervenção social, que refletem a presença de distintos quadros axiológicos e instrumentais e que resultam, por um lado, de interpretações diferenciadas acerca dos fenó-

menos da pobreza, da exclusão e da necessidade social e, por outro, da própria especificidade dos problemas a que se pretende dar resposta. Assistencialismo, providencialismo e emancipação É nestes termos que se pode considerar, num primeiro plano, um paradigma de intervenção

1. (*) O presente artigo remonta ao estudo que foi recentemente produzido pelos autores, intitulado «Conhecimentos e Práticas de Intervenção Comunitária na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: A caminho do futuro», no âmbito do CICA (Centro de Investigação Científica e Aplicada), e que será em breve editado pela SCML.

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Ângela Maria Albuquerque

| Desenvolvimento Comunitário |

mais elementar, de natureza assistencialista, que constitui uma forma de intervenção social orientada para ações que visam, no essencial, garantir as condições de sobrevivência dos indivíduos.2 Trata-se de um paradigma centrado nos limiares mínimos de apoio e proteção social, isto é, na resposta a condições básicas de existência. Pela própria natureza deste tipo de intervenções, bem como pela natureza das situações que as suscitam, não se trata propriamente – em termos concetuais – de responder a partir de um quadro avançado de cidadania económica e social, nem tão-pouco de ativar meca-

nismos de transformação e alteração substancial das condições de vida de indivíduos, grupos ou comunidades. Um segundo paradigma diz respeito às intervenções que visam garantir o cumprimento de um conjunto de direitos, socialmente consagrados enquanto tal, e que corresponde, por conseguinte, a um paradigma providencialista. Trata-se, fundamentalmente, de assegurar o acesso universal a um conjunto de bens materiais e imateriais (educação, saúde, habitação, cultura ou, por exemplo, a existência de uma base económica mínima de subsistência), que correspondem,

em ampla medida, ao quadro de direitos inerente à construção do Estado-Providência, tal como este foi concebido, no pós-guerra, na generalidade das sociedades ocidentais. No âmbito deste paradigma, já não se trata apenas, portanto, de assegurar as condições mais imediatas de sobrevivência, mas antes de proporcionar respostas suscetíveis de efetivar o reconhecimento da condição de cidadania e de dignidade humana, que um determinado quadro de direitos estabelece. O que significa que as intervenções visam sobretudo dar resposta a direitos e, desse modo, impedir o

2. As intervenções humanitárias, levadas a cabo na sequência de catástrofes provocadas por causas naturais ou humanas (terramotos, inundações, guerras, etc.) ilustram, no limite, o assistencialismo. Tal como, num sentido menos extremo, o são as respostas a necessidades imediatas de carência, mesmo quando estas assumem traços de permanência e continuidade (como é o caso da resposta de instituições que se dedicam ao apoio continuado a cidadãos sem-abrigo, através da distribuição de roupas e alimentos).

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agravamento dos níveis de exclusão, assegurando simultaneamente um determinado quadro de vida e de bem-estar aos beneficiários. Um terceiro paradigma de intervenção social, que designamos aqui por emancipatório, tem em vista a plena inclusão

des são chamados a envolver-se diretamente nos processos de integração, desde a sua fase inicial. Não se trata, portanto, e apenas, de garantir o acesso a direitos sociais, mas antes de construir e definir, com os cidadãos, formas de capacitação e trajetórias de autonomização e emancipação social.

a estratégia de atuação pode incorporar, nas suas diferentes fases, paradigmas distintos de resposta (como seja, prosseguindo no mesmo exemplo, a atribuição de um subsídio de rendimento mensal em paralelo com a ativação de respostas formativas ou de emprego, tendo em vista

Um terceiro paradigma de intervenção social, que designamos aqui por emancipatório, tem em vista a plena inclusão e integração social, centrando-se em processos que assumem como objetivo a progressiva capacitação, empoderamento e autonomização de indivíduos, grupos e comunidades e integração social, centrando-se em processos que assumem como objetivo a progressiva capacitação, empoderamento e autonomização de indivíduos, grupos e comunidades. O que distingue este paradigma de respostas do anterior (o paradigma providencialista) é, por um lado, a necessidade de superar os limites deste último em termos de plena integração social (uma vez que o quadro de respostas, no âmbito do Estado-Providência, pode não assegurar, por si só, essa mesma integração)3 e, por outro lado, o papel participante e ativo que se atribui aos beneficiários no decurso da intervenção. Isto é, indivíduos, grupos e comunida-

Importa sublinhar que estes três paradigmas não configuram, como é óbvio, formas puras e mutuamente excludentes de intervenção social. Numa mesma instituição podem de facto coexistir práticas que se associam a respostas assistencialistas, providencialistas e emancipatórias. E não será demasiado lembrar, em segundo lugar, que o tipo de respostas adotado é, em muitos casos, condicionado de modo muito significativo pela própria natureza dos problemas a que se pretende dar resposta. Tal como importa referir, em terceiro lugar, que num dado domínio de intervenção (apoio a cidadãos desempregados, por exemplo),

superar uma dada situação de dependência económica). Por último, refira-se ainda que o perfil de resposta de uma instituição depende do perfil de atuação dos técnicos ou das equipas técnicas responsáveis pela intervenção. Nuns casos, encontram-se mais focalizados em respostas de natureza assistencialista e, noutros casos, em lógicas de atuação que se enquadram predominantemente num paradigma de intervenção de recorte emancipatório. Assim, sendo certo que numa mesma organização podem coexistir diferentes perspetivas de intervenção, a sua identidade institucional tende contudo a revelar a prevalência de um determinado

3. Se é verdade que o acesso a uma habitação, a cuidados de saúde, a um equipamento de ação social, a um rendimento mensal de subsistência ou à frequência de um estabelecimento de ensino potencia o afastamento da situação de exclusão sobre a qual se pretende intervir, tal não garante, todavia (nas situações em que isso é possível e desejável), a plena autonomização e a plena integração social dos beneficiários. Razão pela qual as respostas associadas à inserção no mercado de trabalho constituem, em regra, um vetor central nas intervenções de natureza emancipatória.

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tipo de práticas em detrimento de outras, num processo de evolução cumulativa que consolida, de forma tendencial, o quadro de opções e estratégias de resposta em termos de paradigma de intervenção. Uma identidade singular: as culturas de intervenção social da SCML Como caraterizar, então, em termos de paradigmas de resposta social, o perfil da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa? Quais são os traços dominantes, se existirem como tal, que caraterizam as suas intervenções? Que grau de coexistência se verifica entre diferentes filosofias de atuação? E como tem, nesta matéria, evoluído a instituição? Para compreender, caraterizar e situar a SCML no quadro dos paradigmas de intervenção social anteriormente descritos, deve antes de mais assinalarse a sua missão matricial, ou seja, a configuração originária que o «Compromisso» estabelece, através das «Obras de Misericórdia». Dividindo-se em «corporais» e «espirituais», elas revelam, na sua essência, uma

Sete espirituais

Sete corporais

(orientadas para questões morais e religiosas)

(orientadas para questões materiais)

• Ensinar os simples • Dar bom conselho • Corrigir com caridade os que erram • Consolar os que sofrem • Perdoar os que nos ofendem • Sofrer as injúrias com paciência • Rezar a Deus pelos vivos e pelos mortos

• Remir os cativos e visitar os presos • Curar e assistir os doentes • Vestir os nus • Dar de comer a quem tem fome • Dar de beber a quem tem sede • Dar pousada aos peregrinos • Sepultar os mortos

missão social cujos objetivos refletem, com particular clareza, um paradigma assistencialista de resposta (Figura 1). De facto, no conjunto de «obras» que configuram a missão matricial da Santa Casa, é não só patente a delimitação do âmbito de respostas às necessidades elementares (em muitos casos de literal sobrevivência), como essas respostas assumem o indivíduo como destinatário central. Neste quadro matricial, o apoio familiar não é, pelo menos formalmente, considerado e muito menos o é a dimensão de contexto, territorial, enquanto quadro e objeto de intervenção.

É claro que, com o decorrer do tempo (e falamos aqui, como se sabe, de um tempo secular), as respostas da Misericórdia foram sendo crescentemente ampliadas e diversificadas, traduzindo de forma progressiva o esbatimento do seu sentido assistencialista mais puro.4 Nesse processo de «metamorfose» do alcance teleológico e da natureza das respostas da SCML, foram sem dúvida decisivos os impactes, na instituição, do processo de constituição do Estado social e a respetiva definição de uma matriz de direitos sociais que influenciaria, significativamente, a reconfiguração da própria Ação Social da Misericórdia).

As Catorze Obras de Misericórdia

Numa mesma instituição podem de facto coexistir práticas que se associam a respostas assistencialistas, providencialistas e emancipatórias

4. A ajuda alimentar, por exemplo, começou a dada altura a incorporar objetivos de intervenção social mais amplos do que o «simples» saciar da sede e da fome. Tal como a intervenção ao nível da infância deixou de se limitar, a partir de certo momento, à atuação perante as situações de abandono e de mortalidade infantil, para integrar uma perspetiva cada vez mais próxima do «desenvolvimento integral» da criança. Aliás, desse ponto de vista, vale a pena recordar as orientações inscritas num documento programático de 1978 que procurava abolir «a prática de “assistência” (entendida como ação supletiva, insuficiente, aleatória, marginal, paliativa)» e substituí-la por «esquemas baseados em direitos sociais» (Cf. Colen, Gabriela (2009), 50 Anos de Ação Social da Misericórdia de Lisboa: Contributo para a sua História, Col. Estudos Ação Social. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia, p. 82).

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neficiários são, na generalidade dos casos, pessoas singulares: crianças (creche, jardim de infância e serviço de adoção, por exemplo); jovens (lares de infância e juventude, acolhimento familiar, etc.); adultos (formação e certificação de competências); e idosos (centros de dia, apoio domiciliário, lares, etc.).5 b) O princípio do «ciclo de vida», que decorre, em certa medida, do princípio da individualização das respostas, não deixando contudo de revelar o modo como se estruturam as valências e os serviços, a partir de uma noção de etapas de existência. Isto

essência, pessoas individualmente consideradas.6 Parece pois poder dizer-se que, ao conciliar a matriz originária de ação social, marcada por um paradigma de resposta dominantemente assistencialista, com a matriz de proteção social própria de um Estado de bem-estar, cuja natureza providencial (fundada em direitos) se reproduz, em larga medida, na própria organização interna das respostas, o perfil institucional da SCML tem sido marcado, na sua essência, pelo entrecruzar crescente destes dois paradigmas. Ou seja, tratase de uma intervenção focalizada em dois universos fundamentais:

a organização dos serviços e das respostas, sobretudo no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, começou a refletir crescentemente as lógicas inerentes ao modelo de organização da proteção social pública Com efeito, a organização dos serviços e das respostas, sobretudo no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, começou a refletir crescentemente as lógicas inerentes ao modelo de organização da proteção social pública, entre as quais devem destacar-se as seguintes: a) A tendencial individualização das respostas, num modelo de organização em que os be-

é, uma delimitação das respostas que reflete, em grande medida, essa lógica organizativa (Infância e Juventude, Crianças e jovens em Risco, Adopção, Família e Comunidade e Pessoas Idosas, por exemplo). c) A noção de «individualização da exclusão», ou, por outras palavras, a ideia latente de que a pobreza e a exclusão social são problemas que afetam, na sua

o da resposta a necessidades «imediatas», por um lado, e – nas últimas décadas, com um significado expressivamente mais amplo – o da garantia de acesso a direitos económicos e sociais. O que permite considerar, em qualquer caso, que a lógica de individualização das respostas prevalece na definição do paradigma dominante de actuação. De facto, apenas no domínio

5. Mais tarde, esta lógica individual prevalecente seria complementada com o apoio às famílias (como sucede, por exemplo, no Acolhimento Social, em que se atribui o Rendimento Social de Inserção), sendo que mesmo assim as respostas continuam em muitos casos a ser dadas individualmente. 6. Sublinhe-se, aliás, que para além da lógica inerente ao ciclo de vida, referida na alínea anterior, o quadro recente da missão da SCML integra, igualmente numa lógica individualizante, respostas a carências mais específicas (como nos domínios de intervenção relativos a: Pessoas portadoras de deficiência, Pessoas com HIV/sida, Pessoas sem abrigo e domicílio instável, ou Educação, Formação e Certificação de Competências).

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NESTE DOMÍNIO, A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA PODE DESEMPENHAR UM PAPEL MUITO RELEVANTE, DADO O CAPITAL DE EXPERIÊNCIA QUE ACUMULOU, AO LONGO DE DÉCADAS, E QUE NEM SEMPRE FOI RECONHECIDO PELA PRÓPRIA INSTITUIÇÃO de intervenção relativo à «Família e Comunidade» esta lógica de individualização parece esbater-se, apesar de esta esfera aglutinado-

ra de respostas ser constituída por ações cuja lógica continua a ser, em muitas situações, a da individualização.7 E sendo certo

que domínios como o Acolhimento Social ou as residências de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, por exemplo, são

7. Como sucede no Apoio ao cidadão, Banco de ajudas técnicas e Casa de transição para ex-reclusos.

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domínios que indiciam estar-se já a trabalhar à escala da família, essa é – tendencialmente – a fronteira. O que suscita a questão de saber que lugar e que papel podem ocupar, na missão e na estrutura de organização da Ação Social, vertentes de intervenção que enfatizam a abordagem territorial, de contexto, aos problemas. Como é o caso, em particular, do Desenvolvimento Comunitário.

Relativamente à crise política e financeira do Estado-Providência, importa sobretudo reter os seus impactes na retração das políticas sociais públicas e nos rearranjos institucionais e organizacionais, tanto ao nível dos sistemas e redes de serviços públicos como ao nível das formas de articulação entre o Estado, o setor privado e as organizações do Terceiro Setor. Mudanças indissociáveis

dos modelos teóricos e práticas de intervenção. De facto, como vimos anteriormente, em resultado da influência do modelo de organização do Estado-Providência, acabariam por recriarse – na esfera da intervenção e ação social – lógicas próximas de organização, marcadas pela tendência para a compartimentação setorial dos problemas (educação, saúde, desemprego, pobreza, proteção social, etc.), para a

à escala local, intensificou-se o surgimento de novos atores, redes de cooperação e dinâmicas de parceria, em paralelo com a adoção crescente de práticas e metodologias participativas no âmbito dos processos de intervenção social Os novos desafios sociais e os processos de Desenvolvimento Comunitário Ao longo das últimas décadas, os referenciais, estruturas e dinâmicas de intervenção e ação social sofreram transformações assinaláveis, suscitando a emergência de novos desafios e de novos enquadramentos das questões da pobreza e da exclusão social. O que está em causa são transformações que podem ser encaradas como o resultado essencial de três processos que se entrecruzam: por um lado, a crise do Estado-Providência; por outro, a valorização crescente dos contextos locais; e por último o surgimento de novas aproximações metodológicas às questões da pobreza e da exclusão social. 40

do segundo processo, o da revalorização crescente dos contextos locais enquanto escalas privilegiadas de intervenção social, numa dinâmica que foi portanto, em parte, estimulada pelo reforço dos processos de descentralização, decorrentes da designada «crise do Estado», sobretudo ao nível da administração central. Ao mesmo tempo que, à escala local, se intensificou o surgimento de novos atores, redes de cooperação e dinâmicas de parceria, em paralelo com a adoção crescente de práticas e metodologias participativas no âmbito dos processos de intervenção social. Por último, estas transformações expressam também os sinais claros de uma mudança de paradigma, ao nível da filosofia e

individualização (matriz de direitos humanos) e para a lógica dos ciclos de vida (crianças, jovens, idosos, etc.). Ora, este paradigma de teorias e práticas tem vindo a esbater-se e a dar lugar a novas aproximações, mais transversais, aos problemas da pobreza e da exclusão social, sendo também neste sentido que se assiste a uma valorização dos contextos locais, que passam a ser crescentemente encarados como expressão tangível da própria complexidade e multidimensionalidade das problemáticas sociais. É por essa razão, aliás, que o pendor individualizante e tecnocrata dos mecanismos «convencionais» de intervenção e ação social tem vindo a perder relevância, abrindo assim espa-


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o pendor individualizante e tecnocrata dos mecanismos “convencionais” de intervenção e ação social tem vindo a perder relevância, abrindo assim espaço para intervenções mais centradas em grupos, comunidades e no próprio território, que valorizam as dinâmicas de participação e parceria ço para intervenções mais centradas em grupos, comunidades e no próprio território, que valorizam as dinâmicas de participação e parceria. O que significa o surgimento e a consolidação de perspetivas que partem de uma visão mais integrada (e por isso menos «disciplinada») dos problemas e das respostas sociais, e que encontra no território a base essencial de interpretação e ação social. É perante este quadro de transformações que o Desenvolvimento Comunitário, no seu duplo significado – isto é, enquanto referencial axiológico e metodológico, por um lado, e enquanto estratégia concreta de intervenção, por outro – adquire, nos tempos que correm, particular sentido e acuidade, como bem evidenciam muitos dos princípios que lhe dão substância. Entre eles, destacamos neste contexto os seguintes: o princípio da integração (que assume a complexidade e a interdependência como dimensões intrínsecas da

vida em sociedade, implicando uma perspetiva holística dos diagnósticos e das intervenções); o princípio da participação (que assume as intervenções como processos abertos, implicando o envolvimento ativo das comunidades e dos tecidos institucionais locais); o princípio da territorialização (que assume o território como unidade de ação, o que implica a adoção de mecanismos de solidariedade, ação coletiva e autonomia relativa); e o princípio da capacitação (que implica o empoderamento crescente da comunidade, nas suas várias expressões – individuais e coletivas, formais e informais – conduzindo à emergência de novas formas de poder e de cidadania).8 No caso concreto da cidade de Lisboa, a recente reorganização administrativa (que confere às novas freguesias uma densidade socioespacial e institucional suscetível de ampliar a sua capacidade de intervenção social), favorece indubitavel-

mente o reforço das práticas e processos de Desenvolvimento Comunitário. E, neste domínio, a Santa Casa da Misericórdia pode desempenhar um papel muito relevante, dado o capital de experiência e conhecimento que acumulou ao longo de décadas neste âmbito, nem sempre reconhecido pela própria instituição. Mas também pela oportunidade (e pelo desafio) de formular e explorar caminhos inovadores de intervenção e ação social.

8. A «endogeneização», a «flexibilidade», a «eficácia» e a «sustentabilidade» constituem igualmente princípios relevantes do Desenvolvimento Comunitário (Cf. Viana, Ana; Nunes, Natália; Serra, Nuno; Amaro, Rogério (2013), Conhecimentos e Práticas de Intervenção Comunitária na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: A caminho do futuro. Centro de Investigação Científica e Aplicada (CICA). Lisboa: Santa Casa da Misericórdia, p. 77-78).

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Mediação Sociocultural Cigana A cebola e as suas camadas

Em 2008, em Ostravany, uma pequena vila na Eslováquia, iniciou-se a construção de um muro, de 150 metros de comprimento e dois metros de altura, para lidar com a tensão existente entre os seus residentes. De um lado ficaram cerca de 1200 ciganos e do outro ficaram os restantes moradores. A construção deste muro peca até pela falta de criatividade, parece existir uma certa tendência para os muros sempre que, pela diferença, a tensão aumenta: Berlim 1961, Tijuana 1994, Cisjordânia 2002, Rio de Janeiro 2009… Aos muros, mesmo se imateriais, preferimos as pontes… ainda que esta opção se revista de difícil e sinuosa concretização. Coordenação de textos de Cristina Simões [Coordenadora Comunitária – SCML, Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira / K’CIDADE]

O

que aqui trazemos são pontos de vista sobre uma ponte em construção. São contributos, para os seus alicerces, vindos de pessoas que, sendo tão diferentes em idade, ocupação, pertença, per42

curso, interesses e responsabilidades, têm em comum alguma ligação à Mediação Sociocultural Cigana. Sublinhamos a generosidade com que acederam ao nosso desafio emprestando-nos as suas palavras. Ditas ou escritas

de forma mais institucional ou mais vivencial, mais apaixonada ou mais dececionada, mais contida ou mais expansiva, é no seu conjunto que ganham sentido e dão volume ao que queremos mostrar. Falam por si dispensando análises.


“alavancar processos de transformação” > Diogo Mateus, técnico de desenvolvimento comunitário, scml “A mediação tem sido uma das principais estratégias para alavancar processos de transformação dentro de comunidades onde há uma forte presença da etnia cigana. Historicamente, as sociedades ciganas tradicionais tinham na mediação e negociação de conflitos uma forma de trabalhar questões de incompatibilidade entre famílias e de diminuir o impacte negativo de conflitos graves. Na emergência de um conflito, eram chamados os homens das leis, normalmente idosos, patriarcas, com uma certa posição social e reconhecidos pela sua justeza e imparcialidade. Estes mediadores eram respeitados e as suas leis cumpridas exemplarmente. Pode-se considerar esta mediação um capital de experiência, um saber fazer desenvolvido e valorizado endogenamente, sem influência (ou na ausência) de agentes externos. Nas últimas décadas, com a sedentarização dos grupos e o afastamento face à sua matriz mais tradicional, assiste-se à desagregação das lideranças e à perda de importância dos velhos das leis na resolução dos problemas. As comunidades continuam a valorizar o papel do mediador cigano e criam novos mediadores, destacando-se nessa função os pastores evangélicos. Procurando usar os mecanismos tradicionais, a mediação realizada por ciganos começou a ser prescrita por variados serviços

Ricardo Vieira

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públicos como forma de resolver conflitos recorrentes, e por projetos de intervenção social para facilitar a interação com os seus destinatários e a sua participação. Regra geral, é realizada em hospitais, autarquias e escolas, e em bairros com forte presença deste grupo étnico. Noutros contextos, surgiram mediadores que nem são da etnia cigana nem são colocados para lidar especificamente com este grupo étnico, mas profissionais formados para conhecerem as especificidades das comunidades locais: centra-se a intervenção na metodologia, nas mais-valias que a mediação traz a todos os clientes ou utilizadores de um espaço/serviço ou projeto,

e não na crença de que a interação só pode ser bem sucedida se for realizada entre pares. Quer se baseie na metodologia, ou no capital-experiência e na partilha de códigos de comunicação, importa que não contribua para reforçar estereótipos negativos. Já nos processos de desenvolvimento local, a falta de envolvimento de interlocutores ciganos em processos de decisão tem remetido a defesa dos seus interesses para agentes externos simpáticos às suas necessidades. Chamados a contribuir para a resolução de conflitos ou para aumentar o entendimento dos decisores e apoiar a decisão das redes locais, estes peritos têm, 43


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por vezes, um papel limitado, resumindo-se à facilitação de processos de validação ou à transmissão de decisões. Outras vezes, substituem os interlocutores ciganos, um papel contrário ao reforço da participação destes. Seja em Comissões na Assembleia da República, seja em reuniões com autarquias ou em sessões de trabalho com serviços públicos, a falta de representantes das comunidades ciganas nos momentos de planeamento e decisão espelha a sua falta de poder e a necessidade de reforçar os mecanismos de representação junto a terceiros, revelando que um maior esforço deve ser feito para a inclusão desta etnia na sociedade portuguesa.” “viver em cima da muralha” > Tânia Sanchez, dinamizadora comunitária projeto multivivências e5g “Como cigana e dinamizadora desenvolvo o trabalho de mediação entre as instituições e a minha comunidade, criando entre ambas essa ponte de comunicação que muitas vezes é imprescindível construir. No entanto, a mediação é um desafio constante para o próprio mediador porque, quando requerem a nossa intervenção, ambas as partes sentem que têm a plena razão. Contornar a situação de modo a fazê-las sentir que nenhuma das duas tem a plena razão torna-se um desafio, mas não é impossível. Quando o mediador expõe a situação de ambas, para ambas, descodificando as necessidades e entraves, numa lingua44

gem simples e direta consegue-se chegar a um acordo. Para o mediador, o facto de ter de viver em ‘cima da muralha’ e não num dos lados na totalidade é, deveras, um desafio. Quem se dispõe para a mediação sabe à partida que tem de optar por uma postura neutra, o que muitas vezes é difícil. Eu entendo perfeitamente as dificuldades que as instituições sentem quando tentam aproximar-se do meu povo, mas também entendo as dificuldades do meu povo na hora dessa aproximação. O desafio consiste em intervir e facilitar a comunicação entre as margens, sem me sentir um cavalo de Troia por um dos lados, ou até, quiçá, por ambos. As instituições poderão acusar-me de ser uma ativista dos direitos da minha comunidade e não dos seus deveres também. Posso também ser acusada, pelo meu povo, de não me interessar pelos seus direitos, tomando apenas partido das instituições em troca de um salário. Diria que esse é o verdadeiro e principal constrangimento para o mediador. Poder ser aceite não como uma varinha mágica, mas sim como uma ferramenta útil e facilitadora, e ainda, amado por todos. O mediador, para além de saber ser neutro, deve ter a extraordinária capacidade de manter a frustração de lado. Não vivendo de deceções passadas, nem viver com uma ambição frenética de querer mudanças já, hoje. Há que ter paciência para saber lidar com

ambos os lados, planeando um dia de cada vez. Deve ser íntegro a fim de ser profissional e sigiloso.” “um processo muito complexo” > Diana West, antropóloga ex-coordenadora de projeto escolhas “A mediação sociocultural cigana, em termos genéricos, deveria ter começado há trinta anos. Olhando melhor, percebe-se que tanto do lado da comunidade maioritária como do lado das comunidades ciganas a coisa não funciona bem. Na prática existem tantas contrariedades que se torna um processo muito complexo. As diferenças são enormes: a forma de ver o mundo, a forma de estar, os valores… e os mediadores ciganos são também eles ciganos. Há muita coisa para descodificar. O conceito de mediação não é operacional. A palavra mediar transmite a ideia de criar uma ponte entre duas partes, mas de resto cabe lá tudo e o seu contrário. Não é claro o papel dos mediadores. Nem para eles, nem para as equipas, nem para os parceiros. Faz que se tornem bombeiros ou moços de recados. Acaba por não se conseguir distinguir o essencial. Para trabalhar com comunidades ciganas é importante que o mediador seja cigano e pertença à comunidade local. É sempre mais interessante utilizar os recursos da comunidade. Tem de ser alguém com história de vida, com vivência, senão não percebe nada.


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As equipas esperam que alguém, que muitas vezes não teve outra experiência de emprego, consiga corresponder bem à exigência de cumprir um horário, saber estar numa reunião... Não percebem que é alguém que não teve oportunidade de adquirir e treinar estas competências e não está preparado.”

e valorização das diferenças. Surgindo num momento de separação, abre espaço à reconstrução. Tendo como palavras-chave ‘o reconhecimento do outro’, ‘a aproximação’, ‘o diálogo intercultural como objetivo’, a ‘procura de áreas convergentes entre os envolvidos’, a ‘criação de

Gabinete de Apoio às Comunidades Ciganas, lançou, no ano 2009, o Projeto Mediadores Municipais que visa colocar mediadores ciganos nos serviços das câmaras municipais, no âmbito de um programa de formação em contexto de trabalho, sendo residentes na área de intervenção.

“a falta de representantes das comunidades ciganas nos momentos de planeamento e decisão espelha a sua falta de poder e a necessidade de reforçar os mecanismos de representação junto a terceiros” “criar sinergias sustentadas na mediação” > Helena Torres, coordenadora do gaci acidi “A mediação sociocultural tem vindo a impor-se como um recurso organizado, com o qual se pretende fortalecer a coesão e os laços sociais. Certas realidades sociais exigem respostas que suscitam a criação de figuras que promovam e facilitem a comunicação quando esta se encontra dificultada, especialmente quando uma das partes apresenta vulnerabilidades acentuadas. A ação do mediador, baseada na interculturalidade, tem uma função transformadora na relação entre as partes, reforçando o que as aproxima. Com uma visão dinâmica das relações humanas, passou da gestão de conflitos pura e simples para o diálogo intercultural

laços de confiança’, ‘a coesão social’, a mediação é a forma de abordagem que melhor tem vindo a resultar junto das comunidades ciganas. O debate sobre a pertença cultural dos mediadores demonstrou que, ainda que com alguns inconvenientes, o conhecimento dos códigos, as abordagens só possíveis pelos próprios, seriam então fatores mobilizadores e facilitadores do diálogo intercultural e da participação, bem como promotores de maior eficácia na intervenção social. Importa ainda considerar que os mediadores são modelos em que as comunidades ciganas se reveem, sendo por isso promotores da sua autoestima. Ciente da análise positiva feita nos últimos anos à atuação dos mediadores em contextos multiculturais diversos, o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, através do

Ainda que seja necessário ir melhorando e ajustando toda a intervenção, o balanço final foi considerado bastante positivo, passados que foram quatro anos desde o início do projeto. Pode pois constatar-se a existência de mais espaços de interculturalidade entre ciganos e não ciganos, e melhoria do acesso das comunidades ciganas aos serviços, algumas respostas locais mais participadas e ajustadas, diagnóstico local mais aprofundado, níveis de escolaridade melhorados, maior investimento na saúde, especialmente materno-infantil e técnicos com conhecimento aprofundado sobre cultura cigana. Estes resultados positivos foram, seguramente, obtidos pela criação de sinergias entre todos os atores, sustentadas na mediação, enquanto fator de aproximação e combate à discriminação.” 45


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“indispensável no processo de inclusão” > António Nunes, mediador gebalis “A Mediação Sociocultural Cigana é um assunto muito complexo e que, muitas vezes, pelos fracos resultados nos deixa entristecidos. O trabalho principal do mediador é estabelecer uma relação de confiança entre a comunidade por este representada, à qual deverá pertencer, e a sociedade maioritária. Existem, muitas vezes, grandes fracassos porque

é muito importante para a etnia, ou seja, o seu bom nome, a sua ascendência, a sua seriedade entre os ciganos é fundamental para uma etnia que ainda gira em volta da palavra dada. O mediador deverá ser uma pessoa de postura equilibrada, bem relacionada com a sua etnia, aceite com confiança e que seja igualmente reconhecido e amparado pelas entidades que representa. Deveria ter um papel atuante e decisivo na habitação social, educação, saúde e

Muitas vezes parece que uma não existe sem a outra. No entanto, quando observamos atentamente, existem muitas pessoas ciganas e não ciganas que funcionam como verdadeiros mediadores entre comunidades, contribuindo para o estabelecimento de pontes e aproximação. Nos processos em que o mediador é cigano temos assistido a um desenvolvimento notável das suas competências. Isto tem permitido maior consciencialização do seu papel e resultados mais

“existem mediadores que são controlados pelas instituições que lhes pagam e, neste caso, tentam mudar a maneira de pensar e agir da comunidade de acordo com a instituição que servem e não defendem os direitos das pessoas” existem mediadores que são controlados pelas instituições que lhes pagam e, neste caso, tentam mudar a maneira de pensar e agir da comunidade de acordo com a instituição que servem e não defendem os direitos das pessoas; outros não têm caraterísticas de mediadores porque são ativistas envolvidos com pequenos partidos políticos, barulhentos e revolucionários que só geram confusão e não apresentam soluções. O mediador sociocultural deverá ser uma pessoa naturalmente aceite pelas pessoas que representa, os ciganos, e não aquele que algumas pessoas de boa vontade, não ciganas, se lembraram de eleger. O testemunho comportamental do cigano 46

acesso ao emprego da comunidade cigana, mas para isso teria que contar, sempre, com a boa vontade da sociedade maioritária e ser reconhecido como um elemento indispensável no processo de inclusão. Os anciãos deviam ser consultados na escolha dos mediadores.” “capacitação das comunidades ciganas” > Cláudia Guerra, técnica do Projeto Encontros adc Moura “Falar de mediação sociocultural cigana é falar de processos de mediação com comunidades ciganas ou processos em que o mediador é cigano?

positivos das intervenções por eles lideradas. A formação e integração profissional de mediadores ciganos tem tido o efeito demonstrativo da heterogeneidade dentro das comunidades ciganas. Contudo, exige-se que esta pessoa seja um exemplo positivo, da perspetiva da comunidade maioritária, em todos os aspetos da sua vida. Isto, a par da necessidade de se manter como uma pessoa respeitável e com crédito na comunidade cigana, implica uma flexibilidade e dedicação a que só podem corresponder pessoas excecionais. Deste ponto de vista ser mediador cigano não é só um percurso profissional e não se pode deixar de destacar a posição delicada em que se encontram.


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Por outro lado, a abordagem adotada nas equipas em que estão enquadrados, nalguns casos continua a ser pautada pelos princípios assistencialista e moralista, facilmente integrados na matriz conservadora presente nalgumas comunidades ciganas. Paralelamente os mediadores são solicitados para múltiplas situações o que os aproxima mais dos ‘bombeiros’ das instituições onde trabalham, envolvidos em tudo o que diz respeito aos ciganos, independentemente da natureza dos assuntos, o que os impede de desenvolver intervenções sistemáticas mais ambiciosas. O grande desafio da mediação sociocultural cigana continua a ser a capacitação das comunidades ciganas, para que não só sejam apoiadas na resolução dos seus problemas mas que desenvolvam competências para a sua autonomia. Para isto, a aborda-

gem preventiva da mediação é determinante, atuando antes do conflito para que não se chegue a manifestar. O desenvolvimento de competências, a criação de oportunidades de contacto entre comunidades e de fomento de experiências positivas comuns são caminhos de intervenção a aprofundar. Mas é um trabalho que exige tempo e estabilidade das equipas e infelizmente nem sempre os mediadores ciganos têm tido estas duas condições essenciais para apostar nestes objetivos de médio/ longo-prazo.” “uma parte deve fazer parte” > Martinho Belo, mediador desempregado “Das várias experiências de trabalho que tive, a que mais gostei foi a de mediador, porque trabalhei com o meu povo. É no-

tório um desconhecimento sobre as origens dos ciganos, pela população em geral mas também pela própria comunidade cigana. Falta formação, na comunidade cigana, para lidar com outros povos. Mesmo os mediadores só conseguem ultrapassar isso aos poucos. A mediação cigana não é fácil mas foi um dos melhores investimentos. Há muito desconhecimento sobre a nossa profissão mas a comunidade não cigana vê com bons olhos os mediadores. É onde se pode apoiar. O mediador sabe descodificar a conversa para que se entendam. É quem faz a ligação. Nos momentos de conflito e tensão quem dá a cara é o mediador. Se for um mediador mais velho consegue com maior facilidade contrariar a entidade patronal, porque muitas vezes tentam usar o mediador como instrumento, 47


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que faça tudo em prol da escola. Embora o mediador não tenha poder de decisão, é uma parte e deve fazer parte de uma equipa. Deve estar integrado e não ter medo de dar a opinião. Até acho que se dermos a nossa opinião nos valorizam mais. Os ciganos devem estar mais atentos, mais informados sobre a forma como se concretizam as políticas e se gastam os dinheiros públicos relativamente à comunidade cigana. Deveria haver sempre um líder cigano envolvido em qualquer processo que envolva a comunidade cigana e união nos mediadores para serem mais ouvidos e para mais facilmente lutarem pelos seus direitos.” “deve deixar de ser necessário” > Ana Cruz, socióloga. sos racismo “A figura de mediador existe há já alguns anos em Portugal, mas existe sobretudo como uma figura mítica, sem que se perceba bem qual o seu verdadeiro papel e qual a sua importância.

ciganos nos locais em que trabalha. O mediador é sobretudo uma ‘ferramenta’ de aproximação cuja existência deveríamos trabalhar para que deixe de ser necessária. É absolutamente necessário discutir e refletir sobre a questão do racismo e dos preconceitos. Temos de questionar a preparação e os instrumentos que nós, os profissionais, possuímos, mas que não funcionam. A nossa ambição deverá ser a de que deixe de ser necessário haver intermediários e/ou substitutos do nosso trabalho quando falamos de ciganos.” “uma carreira por criar” > Sandra Bento, técnica serviço social. obra nacional da pastoral dos ciganos “O Secretariado Diocesano de Lisboa da ONPC tem experiência na formação de mediadores socioculturais desde 1996. Estivemos desde o início empenhados em que fosse legalmente criada a figura de mediador sociocultural, até que

definido o tipo de entidades em que os mesmos poderiam exercer funções. Infelizmente nunca foi criada a carreira profissional de mediador sociocultural, o que constituiu, não direi, um constrangimento, mas um entrave a que cada mediador pudesse fazer parte da equipa de profissionais das instituições em que colaborava. As soluções encontradas foram sempre temporárias, como o recurso a POC. O mediador sociocultural assume um papel de relevo na promoção da integração escolar, no mundo do trabalho e de uma maneira geral na comunidade, uma vez que as suas competências profissionais lhe deverão conferir a capacidade de prevenir e resolver conflitos culturais e criar novas estratégias de intervenção, promover a comunicação entre profissionais e utentes de origem cultural diferente e em diferentes áreas assim como apoiar as diferentes comunidades na igualdade de condições, promovendo a regulação e a integração social.

“Alguns desafios dos mediadores, ditos ciganos ou que lidam com a comunidade cigana, advêm de eles estarem muito sozinhos” O mediador pode ser um contributo essencial em determinadas áreas de intervenção, mas este não pode ser o representante da instituição para quem trabalha junto da comunidade cigana, nem o representante dos 48

em 2001 foi promulgada a lei n.º 105/2001 que estabelecia o estatuto legal do mediador sociocultural, tendo sido criada a figura do mediador e estabelecidas as suas funções, competências e deveres. Ficou também

O papel do mediador assume especial importância na resolução de conflitos, mas também se assume como importante estratégia de intervenção em problemáticas de integração na, mas também da, sociedade.”


| comunidade |

“Acelerou-se de tal maneira o processo que as mudanças são apenas técnicas e superficiais e não refletem mudanças profundas na cultura” “a trabalhar num grande isolamento” > Ana Cardoso, socióloga cesis “Eu diria que a mediação sociocultural cigana é um instrumento para o diálogo intercultural nas comunidades, normalmente naquelas onde exista uma maior presença de famílias ciganas, mas ela é útil em qualquer comunidade. Ela é, essencialmente, uma ferramenta de desenvolvimento local. A aceitação das comunidades ciganas pela comunidade maioritária é bem mais difícil do que a aceitação de outras comunidades. Faz sentido que existam mediadores, mas a mediação deveria ser entendida no sentido multidisciplinar ou multidimensional. As comunidades são complexas e multidimensionais e os mediadores estão a trabalhar num grande isolamento. Alguns desafios dos mediadores, ditos ciganos ou que lidam com a comunidade cigana, advêm de eles estarem muito sozinhos. As equipas têm de saber integrá-los, não podem ver no mediador alguém que lhes vai resolver todos os problemas com a comunidade. A forma como as instituições olham o mediador cigano, também depende de mediador para mediador. Eles não são todos iguais e têm competências pessoais muito distintas.

Muitos abandonaram a escola precocemente e mesmo tendo competências pessoais e relacionais excelentes têm lacunas, ao nível das competências escolares, que os fragilizam em equipa. No contexto da equipa, o mediador tem de ser encarado como um par entre iguais. Existe uma distância que tem de ser atenuada e os processos de comunicação têm de ser adaptados. Por vezes aos mediadores étnicos não lhes é fácil atuar com a suposta isenção, sob pena de serem mal entendidos pela comunidade de pertença. E há também alguma dificuldade em entender o funcionamento das instituições porque estas são altamente contraditórias. Não existem respostas simples, há nuances de interpretação e de contexto e isso é muito difícil de explicar. É necessário um grande esforço de comunicação de todos, mediador e equipa. Deve haver espaço para o questionamento. Temos de aceitar que questionem coisas que são altamente questionáveis e nós só não questionamos porque estamos metidos no sistema.” “sem tempo para pensar nem planear a ação” > Joselito Granjo, mediador desempregado “No Centro de Emprego nem sequer conhecem esta profissão.

Para que a entendessem diria que sou uma ferramenta ao serviço da escola, mas a ideia que tenho do papel do mediador é totalmente diferente da ideia que tinha quando entrei como mediador na escola. Tive de aprender sozinho. O mediador cigano é uma ferramenta e é um cigano. Se trabalha com a comunidade cigana é importante ser cigano. Se não for, a comunidade não confia; se for, a comunidade acredita. Tem de ser cigano para entender as famílias, entender os costumes, ser conhecido. O mediador que está na escola tem de ter tempo para ir à comunidade. A conversa e a interação são importantes. Tem de ser sério, neutro, rijo, pontual, trabalhador, disponível, talvez com o 12.º ano para entender melhor a comunicação. Quando há uma discordância entre a escola e a comunidade ficamos numa situação difícil porque temos de defender a posição da escola. Sendo cigano eu sinto-me mais da escola. Mesmo que concorde com a comunidade, tenho de entender a posição da escola porque sou mediador. No dia a dia o mediador é confrontado com necessidades inesperadas e não tem tempo para pensar nem para planificar a sua ação. Muitas vezes 49


Ricardo Vieira

| DESTAQUE |

sentia-me como um bombeiro. Em três anos e meio só fui chamado para participar numa reunião. Acabava por não ser considerado como mediador mas sim como um funcionário.” “lidar com a perda de pertença” > Mirna Montenegro, educadora de infância ice “Recuámos vinte anos. Começámos mal e acabámos mal. Passou-se muita coisa em muito pouco tempo. Queimaram-se etapas. As mudanças precisam de tempo para se sedimentarem. Acelerou-se de tal maneira o processo que as mudanças são apenas técnicas e superficiais e não refletem mudanças profundas na cultura. O mediador cigano é uma mais-valia se houver determinadas condições preenchidas. Tem de estar, suficientemente, dentro da comunidade para ser útil para os não ciganos. Aliás, se só é útil para os não 50

ciganos, não tem utilidade para a comunidade cigana. O facto de fazerem parte de equipas e integrarem cursos concebidos pelos não ciganos, torna-os não ciganos aos olhos dos ciganos e faz que se quebre o laço de confiança que os une à sua comunidade de pertença. Era muito importante que os mediadores tivessem, ao seu alcance, apoio psicossocial para os ajudar a conseguir lidar com a perda de pertença: eu não sou não cigano mas corro o risco de me tornar menos cigano. Os ciganos mais novos, mais escolarizados, começam a competir com os mais velhos, com menos habilitações. Esta situação está a abalar uma estrutura que assentava, justamente, na hierarquia pela idade, sinónima de experiência de vida. Neste contexto, cada vez menos os homens de respeito são chamados para apartar contrários.

Eram estes os mediadores naturais, estando a perder terreno. A aposta na mediação, ao nível das políticas públicas, pode ser uma oportunidade. Mas acredito mais no processo (transformativo) do que no resultado (empregabilidade). Quando a gente aprende, muda. Nasce uma pessoa diferente. A mudança vai acontecendo. Para o processo valer a pena, tem de ser rico em emoções e vivências verdadeiramente interculturais. É isso que desmonta estereótipos e preconceitos mútuos. Se o processo for bem construído e dinamizado, saem de lá homens e mulheres livres/ emancipados. O dispositivo tem de ser não segregador, não de ciganos para ciganos mas de ciganos com e para outros, e o processo de formação tem de contemplar uma dimensão política (mas não partidária) de preparação para a participação e para a cidadania. As equipas de intervenção comunitária devem ser pluridisciplinares e o mediador cigano deve lá estar não enquanto mediador mas enquanto cigano.” “testemunho de um gadjó” > Roque Amaro, professor associado iscte-iul “Não hesito sobre a importância e grande relevância da mediação cigana. Os cerca de quinhentos anos de intolerâncias, incompreensões, preconceitos, medos e inseguranças, são demasiado pesados e penosos para desa-


| comunidade |

parecerem facilmente. Constituem antes um fator de distanciamento e desconfiança e, não raro, de exclusão social dos ciganos. É fundamental estabelecer pontes e começar uma sementeira de interações, que, provavelmente, só poderá dar frutos daqui a duas ou três gerações.

geral, pacificando-os para poderem ‘frequentar’ esses locais de vida em sociedade. A mediação não pode ter primordialmente esse objetivo e essa essência, nem pode ser perspetivada unidirecionalmente, ou seja, como ‘instrumento’ dos não ciganos para trabalhar e agir junto dos ciganos.

Por outro lado, a mediação ainda não está conquistada como estratégia permanente de diálogo intercultural, antes aparecendo como tática esporádica de projetos e, portanto, sem continuidade. Esta descontinuidade de ação e de reconhecimento dificulta enormemente os efeitos e o

“o papel primordial da mediação cigana: pôr-nos, ciganos (calós) e não-ciganos (gadjós), à escuta do ‘outro lado’, disponibilizarmo-nos para compreender o ‘Outro’ antes de o julgar Esse é o papel primordial da mediação cigana: pôr-nos, ciganos (calós) e não ciganos (gadjós), à escuta do ‘outro lado’, disponibilizarmo-nos para compreender o ‘outro’, antes de o julgar. Contudo, há alguns cuidados a ter com a mediação cigana. Ela não pode ser um instrumento de assimilação, aculturação e dominação dos ciganos pelos não ciganos, ou seja, o mediador não pode ser entendido como o pacificador, ou, pior ainda, como o domesticador ou o capataz do grupo ‘perigoso’ dos ciganos, servindo para os acalmar e para os conformar às regras de civilização do grupo dominante. É frequente ver o mediador como o que evita ou acalma os conflitos ou as ameaças que os ciganos podem assumir nas escolas, nos estabelecimentos de saúde ou na sociedade em

Ela é a ponte, a possibilidade e a viabilidade do diálogo entre as duas partes e, por isso, tem de ser vista e assumida como bidirecional. É precisamente este posicionamento de ‘ponte’ que provoca uma das principais dificuldades da mediação: ela está, de certo modo, com um pé em cada lado, embora a origem cultural (cigana ou não cigana) do mediador aproxime mais do ‘seu lado’. Mas este investimento na interação obriga-o a uma leitura e postura diatópica (contemplando ‘dois lugares culturais’), sem se deixar aprisionar pelo seu lado, mas também sem o trair, sem se aculturar. O que não é fácil! Resistir à já referida instrumentalização para a assimilação, ‘traindo’ quem o contratou é outra das dificuldades frequentes.

sucesso da mediação e é reforçada, além do mais, pela falta de enquadramento e segurança profissional do mediador. Para terminar, cinco ideias fundamentais a reter: A mediação, é mais do que uma profissão, uma atitude e uma estratégia. Pode ser adotada e operacionalizada por ciganos e não ciganos. Implica uma disponibilidade para o diálogo e para a interação, e, portanto, tentar estar dos dois lados. É fundamental para preparamos um futuro diferente do dos últimos cerca de quinhentos anos. Para lhe dar continuidade seria importante conferir-lhe um estatuto profissional no quadro dos serviços públicos, das autarquias locais e instituições sociais.”

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| SOCIAL |

intergerações

Uma forma diferente de Diagnosticar, Partilhar e Sentir a cidade e os seus idosos Com a experiência do programa Intergerações, podemos concluir com mais convicção que “cada indivíduo tem uma história, uma personalidade que é condicionada por um conjunto de fatores que tornam a sua existência única”. Texto de João Marrana [Coordenador do Programa Intergerações_ SCML]

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| INTERGERAÇÕES |

N

a cidade de Lisboa, e só em janeiro do ano de 2012, registaram-se quase duas dezenas de óbitos de pessoas idosas que morreram sós em suas casas, sem a companhia de alguém que lhes prestasse assistência e auxílio. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ciente das suas responsabilidades de apoiar quem mais necessita, não poderia ficar indiferente a estes acontecimentos. Por iniciativa do Senhor Provedor, foi lançada a ideia de criar equipas de jovens, recém-licenciados, que procurassem por toda a cidade onde se encontram os idosos que vivem sós, em situação de isolamento. Sabíamos que para agir com maior grau de eficácia teríamos de conhecer com a maior profundidade possível a realidade em que vivem os nossos idosos, numa cidade tão díspar e feita de contrastes como é Lisboa. Procurámos saber: Quem são? Quantos são aqueles que vivem isolados e em solidão? Em que condições vivem? Quais as suas redes de apoio? Que atividades realizam? Quais as suas principais dificuldades? E também: quais os seus anseios e expetativas face ao futuro?

parceria com a Câmara Municipal, as juntas de freguesia, a PSP – Policia de Proximidade e outras instituições de Lisboa, se predispuseram a percorrer toda a cidade, entrevistando, sinalizando e identificando todos quantos se encontram em situação de isolamento e solidão ou a necessitar de intervenção social urgente. Estas equipas, constituídas por seis entrevistadores e um coordenador, todos jovens recém-licenciados e provenientes de diferentes áreas de formação – serviço social, sociologia, psicologia, enfermagem, entre outras – poderiam assim ter uma primeira experiência profissional enriquecedora e um trabalho de atenção e dedicação a um extrato da população tão especial e vulnerável. O Trabalho desenvolvido pelo InterGerações Este programa permitiu-nos efetuar um diagnóstico da população idosa de Lisboa, de uma forma que, talvez, nunca antes tenha sido efetuada em Portugal. No âmbito deste programa foram contactadas dezenas de milhares de habitantes da cidade, maiores de 65 anos, sendo que o número total de inquéritos

Atividades do dia a dia do Programa Intergerações

Um Programa de Intervenção, Prevenção, Participação e Proatividade Tendo por base a necessidade de atuar de forma a prevenir situações de isolamento e exclusão e a estimular a participação ativa das pessoas que se encontram nesta situação, a opção foi assumir uma postura de proatividade, indo ao encontro de todos, nos seus locais de residência, casa a casa, rua a rua… Nasce assim este Programa Intergerações que, com as suas oito equipas multidisciplinares e em

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| SOCIAL |

Atividades do dia a dia do Programa Intergerações

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(23 990) representa apenas uma pequena parte das pessoas abordadas. Ao longo destes meses de “terreno”, foram encontradas muitas situações de isolamento, solidão, dificuldades socioeconómicas explícitas mas também muitas situações de pobreza envergonhada. Verificámos que muitos dos idosos de Lisboa vivem em habitações em elevado estado de degradação, com deficientes condições higiénico-sanitárias que limitam a sua mobilidade e a vontade de uma participação ativa na sociedade, remetendo-os para o interior de suas casas, fechando as portas ao mundo que os rodeia. Toda a pessoa que envelhece, envelhece de forma diferente do outro e a forma como se encara esse processo difere de cultura para cultura. A experiência de envelhecer é um processo que não depende só dos inevitáveis sistemas biológicos e psicológicos, ou da história de vida particular do indivíduo, mas também do resultado das atitudes, expetativas e ideais da sociedade e cultura onde o indivíduo se desenvolve e posteriormente envelhece. Não é o envelhecimento por si só que conduz a incapacidades e a doenças. Há que compatibilizar o envelhecimento com uma qualidade de vida que permita envelhecer bem, com sucesso. Daí que, embora o envelhecimento possa estar associado a certas limitações, não é de todo uma doença. E é esta qualidade de vida que verificámos que muitos idosos da nossa cidade não possuem. Ou porque vivem em condições de habitação inadequadas e degradadas, ou porque possuem reformas muito baixas que apenas lhes permitem sobreviver (com sopa, bola-

chas e pouco mais), não tendo uma variedade alimentar que lhes permita efetuar uma alimentação saudável. Deparámo-nos com um crescente número de pessoas idosas que sofrem de maus-tratos físicos, psicológicos e negligência grave, por parte dos cuidadores e familiares, que estando “dentro de casa” estão a passar despercebidos a muitos dos interventores sociais. Estes são alguns dos factores que não permitem ao idoso envelhecer de forma saudável e feliz. Com a experiência do programa Intergerações, podemos concluir com mais convicção que “cada indivíduo tem uma história, uma personalidade que é condicionada por um conjunto de fatores que tornam a sua existência única”. Um outro aspeto que também merece reflexão é o facto de terem sido encontrados idosos dos quais ninguém tinha conhecimento. Nunca antes haviam sido sinalizados ou referenciados. Nunca foram a lado nenhum, nunca pediram nada a ninguém. Alguns são os “novos pobres velhos” que aparecem à janela como sempre, com a postura de outros tempos, sem que se perceba que, dentro de portas, tudo se alterou. Para pior. Geralmente, vivem em casa própria, com uma grande miséria lá dentro. Isto acontece muito em zonas onde as pessoas têm vergonha de assumir a perda do seu “estatuto social”, e por isso deixar de ser aceites na vizinhança e na sociedade. Procuramos sempre privilegiar uma abordagem humanista que não se limitasse à aplicação mecânica do inquérito, mas também uma expressão de atenção e interesse pela situação dos milhares de seres humanos contactados. Muitas


| INTERGERAÇÕES |

vezes foi referido pelos idosos contactados “…vocês foram a primeira pessoa com quem falo em meses…”. Aos idosos que nos receberam, procuramos dar-lhes algum ”protagonismo”, de forma a sentirem-se importantes e alvo de uma procura preocupada e atenta, que os motive a sair e a procurar respostas para os seus problemas. Este trabalho intergeracional foi ainda importante para consciencializar os parceiros locais da importância do trabalho no terreno e para o terreno. No terreno, porque foi crucial sair da nossa zona de conforto e ir “importunar” quem já havia assumido a solidão e a miséria enquanto consequência da sua velhice, mas também para apreender com aqueles que servem de exemplo de uma velhice feliz e realizada, onde o “deixarem de ser precisos” passou a significar um maior desenvolvimento individual e conjugal e um desfrute de novas experiências. E para o terreno, na medida em que aprendemos a conhecer “as gentes” que nele habitam, as suas tristezas, a forma como se relacionam com o seu habitat, as suas alegrias, as suas conquistas, as suas individualidades e as suas especificidades, tornando-se urgente a resposta personalizada a cada situação, bem como a consciência social local relativamente à responsabilidade que têm para com a sua população mais vulnerável. Acreditamos que este programa possibilitou melhorar alguns aspetos significativos na vida de algumas das pessoas que foram visitadas, sinalizadas e encaminhadas pelo Intergerações. O programa Intergerações partilhou e contagiou, com a sua vontade de intervir, aproximadamente quatrocentas parcerias (Câmara Municipal, juntas

de freguesia, PSP, IPSS, universidades, paróquias, coletividades, clubes e associações, comércio local…), que foram fundamentais para os resultados obtidos. Aproximámos a necessidade da resposta social, por vezes tão próxima e acessível, mas tão distante e inatingível, para um grande número de idosos que, sem informação e conhecimento, não sabe como obter a ajuda e o apoio necessários. Mas, se este programa permitiu aferir as necessidades da população idosa, também acabou por criar muitas expectativas de respostas a essas mesmas necessidades e aos muitos problemas e carências encontrados. E, ainda que todas as situações mais delicadas tenham encontrado a resposta adequada dos serviços da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, acreditamos que existem ainda muitas outras situações, também elas preocupantes, que carecem da mesma atenção e preocupação. Muitos estão em situação de risco, a necessitar de apoio urgente ou então somente de encontrar alguém com quem conversar, que lhes dê a visibilidade, a importância e o reconhecimento que merecem. O Intergerações continua a tentar encontrar formas de atenuar as carências e a ajudar a ultrapassar as necessidades dos mais velhos dos nossos concidadãos. Desta vontade nasceu o programa “Viver Melhor” e muitos outros irão surgir. Como dizia Olof Palme, “os idosos são o fundamento da cultura de uma sociedade; é sob os alicerces do seu trabalho que usufruímos o presente e construímos o futuro”. 55


| SOCIAL |

análise de resultados do inquérito do Programa Intergerações

Em busca dos idosos isolados de Lisboa

Este artigo pretende fazer uma síntese dos resultados do inquérito realizado pelo programa Intergerações aos idosos que viviam sozinhos ou em companhia de outros idosos. O artigo centra-se na questão do isolamento, revelando que existem diferentes situações face ao isolamento entre a população idosa de Lisboa, e que a essas diferenças correspondem perfis sociodemográficos distintos e graus de necessidade de intervenção igualmente distintos. Texto de Paulo Antunes Ferreira [Sociólogo, Gabinete de Monitorização e Apoio à Gestão Departamento de Acção Social e Saúde_SCML]

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| PROGRAMA INTERGERAÇÕES |

A

Santa Casa lançou em Março de 2012 o programa Intergerações, integrado na aposta na prevenção das situações de isolamento e solidão em que se encontram muitos idosos residentes na cidade de Lisboa, bem como no apoio à satisfação de necessidades e resolução de problemas. O objectivo da primeira fase do programa foi realizar o levantamento e identificação das situações de pessoas idosas que vivem isoladas e necessitam de algum tipo de apoio social. Através de equipas preparadas para o efeito, a cidade foi percorrida, freguesia a freguesia, rua a rua, prédio a prédio, tendo sido identificados, até 30 de Junho de 2012, 22 823 idosos, 542 dos quais foram sinalizados às Direcções de Acção Social Local para uma avaliação e acompanhamento social com carácter prioritário, dado as equipas terem identificado alguns factores de vulnerabilidade que indiciavam necessidade de apoio imediato (ver caixa neste artigo). No que respeita ao inquérito aplicado, após um tratamento preliminar da informação, fixou-se a base de dados do inquérito com um total de 22 679 inquiridos. De um modo geral, em termos de caracterização sociodemográfica, trata-se de uma população: > Essencialmente feminina, em que mais de 2/3 dos inquiridos são do sexo feminino. > Residente, na sua esma-

gadora maioria, em andares (86%). > Vivendo, na sua maioria (66%), em companhia de outro idoso (sendo cerca de 1/3 os que vivem sozinhos), e em que o estado civil mais frequente (48%) é o da condição de casado, seguido pelos viúvos (37%). > Em que a grande maioria (80%) possui filhos vivos. > Em que mais de 60% possuem mais de 75 anos de idade. > Com habilitações literárias pouco elevadas, dado que 1/4 da população inquirida não completou qualquer nível de ensino (com saliência para os cerca de 12% que afirmam não saber ler nem escrever) e a habilitação mais frequente é o 1º ciclo do ensino básico (a antiga instrução primária), possuído por 42% dos idosos inquiridos. No pólo oposto, cerca de 9% afirmam possuir um curso superior. > Com rendimentos provenientes, para a grande maioria (87%), da pensão de reforma. A utilização do índice de isolamento (ver caixa neste artigo) permitiu encontrar dois subconjuntos de inquiridos mais marcados pelo isolamento: os “muito isolados” (410 inquiridos) e os “isolados” (4256 inquiridos). A distribuição da população inquirida através do índice de isolamento é muito diferente da distribuição pela variável coabitação e a análise efectuada revelou que o índice de isolamento introduzia sistematicamente (em quase todas as situações, opiniões e com-

Gráfico 1. Distribuição da população inquirida pela variável coabitação

7791

14888

Vive com outras pessoas

Vive só

Gráfico 2. Distribuição da população inquirida pela variável índice de isolamento

4256 18013

410

Isolados

Pouco ou nada isolados

Muito isolados

portamentos) maior variação do que o mero facto de se viver sozinho ou em companhia de outras pessoas. Assim, o perfil sociodemográfico dos inquiridos “muito isolados” é bastante distinto do perfil da população em geral: 57


| SOCIAL |

> Os maiores níveis de isolamento estão associados a idades mais elevadas. > O índice de isolamento revela associação com o número de filhos ainda vivos que se possui, sendo que 41% dos mais isolados não têm filhos vivos. > O índice de isolamento revela associação com o nível de instrução, com 42% dos mais isolados a não terem completado qualquer grau de ensino. > O grupo dos inquiridos mais isolados é composto so-

bretudo por viúvos (66%) e por solteiros (21%). No que respeita aos comportamentos, opiniões e necessidades manifestadas, o inquérito revelou a existência de situações muito diferentes entre a maioria da população inquirida, nomeadamente entre os distintos grupos de idosos face ao isolamento. Assim, começando pela situação de maior ou menor dependência dos idosos inquiridos, algumas das perguntas do inquérito permitiam um retrato

45%

85 e mais anos

40%

Nenhum filho vivo

35% 30%

Não obteve nível de instrução

25% 20%

Tem apoio de alguma instituição

15% 10% 5% 0%

Pouco ou nada isolados

Isolados

Muito isolados

Gráfico 3 Perfis de isolamento

70.00%

Lida da casa

60.00%

Fazer telefonemas

50.00%

Toma da medicação

40.00%

Fazer as compras

30.00%

Ida ao médico

20.00% 10.00% 0.00%

Pouco ou nada isolados

Isolados

Muito isolados

Gráfico 4 Dependência em tarefas quotidianas, segundo o isolamento

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do grau de dependência quotidiana, sendo possível dividi-las, para efeito de análise, em tarefas quotidianas que fazem apelo a capacidades cognitivas ou de ocupação do tempo, e actividades diárias indispensáveis que fazem apelo a capacidades físicas. A maioria dos inquiridos diz não necessitar da ajuda de outras pessoas para qualquer uma das tarefas apresentadas no inquérito, salientando-se os quase 90% que dizem ser independentes para fazer telefonemas ou tomar a sua medicação. As tarefas que apresentam maior percentagem de inquiridos a dizer que precisam de ajuda para as realizar são a lida da casa (32%), o pagamento de despesas ou as diligências necessárias para tratar de documentos (31%), a realização das compras (29%) e as idas ao médico (28%). No entanto, quando utilizamos o índice de isolamento, o retrato global separa-se em componentes substancialmente distintas, aumentando o grau de dependência à medida que aumenta o índice de isolamento. Assim, mais de metade dos inquiridos “muito isolados” diz necessitar de ajuda de outras pessoas para fazer as compras (61%), para a lida da casa (58%) e para as idas ao médico ou para tratar de documentos/pagamentos (56%), verificando-se ainda que 1 em cada 5 dizem necessitar de ajuda para a toma da sua medicação. Por seu turno, entre os inquiridos isolados, as percentagens dos que necessitam de ajuda de ou-


| PROGRAMA INTERGERAÇÕES |

tras pessoas para fazer as compras, para a lida da casa e para as idas ao médico ou para tratar de documentos/pagamentos, continuam a ser elevadas, andando entre os 40% e os 45%. Olhando agora para as actividades que se aproximam das integrantes do índice de Katz, índice que mede a dependência entre os idosos para as actividades da vida diária, verificamos que, entre a população inquirida, a esmagadora maioria diz não necessitar de ajuda para qualquer uma delas. As únicas actividades que aparecem com expressão superior a 10% são a deslocação para o exterior (19%) e a higiene pessoal (13%). Este panorama não se

O inquérito revelou a existência de situações muito diferentes entre a população inquirida, nomeadamente entre os distintos grupos de idosos face ao isolamento” altera substancialmente quando comparamos os inquiridos que vivem sozinhos com aqueles que vivem acompanhados, embora uma vez mais se possa constatar que existem mais idosos dependentes entre os que vivem com outras pessoas. As maiores diferenças surgem ao utilizarmos o índice de isolamento, verificando-se que a maioria (52%) dos inquiridos com maior grau de isolamento

diz necessitar de ajuda para se deslocar ao exterior e mais de 1/3 dizem precisar de ajuda para a higiene pessoal (38%). Verificamos ainda que quase 25% destes inquiridos precisam de ajuda para a sua alimentação, e que cerca de 1 em cada 5 necessita de auxílio para deslocar-se em casa ou para vestir-se e despir-se. Este cenário, de um modo geral, é semelhante ao que encontramos

A sinalização e acompanhamento de situações prioritárias As equipas de rua que aplicaram o inquérito fizeram ao mesmo tempo a sinalização, para as Direcções de Acção Social Local ou para as entidades competentes, das situações que consideravam necessitar de avaliação e acompanhamento social com carácter prioritário, dado terem identificado alguns factores de vulnerabilidade que indiciavam necessidade de apoio imediato. Este facto permitiu à Santa Casa intervir de imediato junto de um conjunto de idosos que necessitavam de apoio urgente. As sinalizações eram recebidas em cada Direcção de Acção Social Local e todos os idosos referenciados foram alvo de uma avaliação técnica para definir a intervenção necessária, na sua grande maioria realizada através de visitas domiciliárias efectuadas pelas Equipas de Apoio a Idosos. Da caracterização do universo sinalizado com origem no programa Intergerações (542 casos) foi possível verificar tratar-se de uma população que: • é sobretudo idosa, com idades acima dos 74 anos; • maioritariamente não tinha recorrido anteriormente aos serviços da SCML; • maioritariamente não vive uma situação de isolamento

total, mas dispõe de apoios informais ou formais; • reside sobretudo no território da DIASL Sul (44% dos casos sinalizados contra 25% na DIASL Oriental, 21% na DIASL Centro-Ocidental e 10% na DIASL Norte). Foram sinalizados 5,5% de casos não considerados “idosos” pelo critério da idade (menos de 65 anos), indiciando que as equipas do programa procuraram dar prioridade ao cumprimento do objectivo de prevenção, sinalizando indivíduos que consideravam ter necessidade de intervenção urgente, mesmo que não fossem “idosos”. Quanto às problemáticas identificadas, a grande maioria estava relacionada com questões de saúde/dependência e de perda de autonomia para as actividades de vida diária, tendo ainda um peso significativo os problemas relacionados com o isolamento e a habitação. De acordo com as necessidades diagnosticadas, os encaminhamentos efectuados pelas Equipas de Apoio a Idosos passaram, sobretudo, pela resposta de Serviço de Apoio Domiciliário da SCML, seguida pela resposta dos Serviços de Atendimento Social da SCML e pelo encaminhamento para serviços da Câmara Municipal, Juntas de Freguesia ou Serviço de Protecção Civil. 59


| SOCIAL |

Vestir-se/despir-se

60.00%

Alimentação 50.00%

Eliminação (ir à casa de banho)

40.00%

Higiene pessoal 30.00%

Deitar-se/levantar-se Deslocar-se em casa

20.00%

Deslocar-se no exterior 10.00% 0.00%

Pouco ou nada isolados

Isolados

Muito isolados

Gráfico 5 Dependência em actividades de vida diária, segundo o isolamento. 80.00%

Ver televisão/ouvir rádio

70.00%

Trabalhos domésticos

60.00%

Passear

50.00% 40.00%

Leitura

30.00%

Auxiliar a família

20.00%

Costura/Bricolage /Jardinagem

10.00%

Convívio e jogos

0.00%

Pouco ou nada

Isolados

Muito isolados

isolados

Gráfico 6 Formas de ocupação do tempo, segundo o isolamento

entre os inquiridos moderadamente isolados, embora estes se revelem um pouco menos dependentes quanto às deslocações ou à alimentação. O inquérito questionava ainda as três formas de ocupação do dia-a-dia, verificando-se que as actividades que recolhem maior adesão entre os inquiridos são o “ver televisão/ ouvir rádio” (68%), os “trabalhos domésticos” (57%) e os passeios (39%). Outras formas 60

de ocupar o tempo diário que recolhem menos adesão (entre 18% e 9%) vão desde a leitura ao convívio e jogos, passando por actividades de ajuda à família ou pela costura/bricolage/ jardinagem. Como actividades menos referidas, recolhendo qualquer uma delas menos de 5% de adesão por parte dos inquiridos, aparecem ocupações como as actividades religiosas, a frequência do Centro de Dia, a prática de desporto, os laze-

res culturais como o cinema, o apoio voluntário ou as visitas a colectividades. O facto de se viver sozinho ou com outras pessoas parece influenciar a forma como se passa o dia-a-dia. Assim, os inquiridos que vivem sozinhos envolvem-se mais do que os outros em trabalhos domésticos e, num menor grau, em actividades religiosas ou no Centro de Dia. Referem também, como é natural, passar muito mais vezes o seu dia-a-dia sempre sozinhos. Por seu turno, os inquiridos que vivem com outras pessoas ocupam o seu dia-a-dia, muito mais frequentemente do que quem vive só, com tarefas de auxílio à família. A adesão a quase todas as actividades de ocupação do dia-a-dia diminui regularmente com o índice de isolamento: os mais isolados aderem muito menos a qualquer actividade do que os isolados, e estes por sua vez aderem muito menos do que os pouco isolados. A única excepção é a televisão, que parece ser uma forma transversal aos diferentes grupos de ocupar o quotidiano. Assim, enquanto os inquiridos menos marcados pelo isolamento revelam maior diversidade de formas de ocupar o seu dia-a-dia, os inquiridos mais isolados parecem ocupar os seus dias em companhia da televisão ou a realizar trabalhos domésticos. Uma outra questão do inquérito procurava saber que serviços os inquiridos costumam usar habitualmente, com o objectivo de tentar saber a que tipo de serviços os idosos mais recorrem. O único serviço que


| PROGRAMA INTERGERAÇÕES |

a grande maioria (82%) dos inquiridos diz utilizar é o centro de saúde, aparecendo a grande distância os serviços da Igreja ou de associações religiosas (27%) e os serviços das juntas de freguesia (21%). Como serviços menos utilizados surgem os centros de dia (8%) e o apoio domiciliário (6%). O facto de se viver sozinho contribui para aumentar a frequência dos centros de dia e para se utilizar um pouco mais os serviços da Igreja, enquanto o nível de isolamento faz diminuir a frequência do centro de saúde e aumentar a utilização dos serviços de apoio domiciliário: cerca de 1/4 dos inquiridos mais isolados utiliza o apoio domiciliário, contra menos de 4% dos pouco isolados. Quando se pergunta aos inquiridos qual a necessidade mais importante que sentem verifica-se que a grande maioria (62%) diz não necessitar de nada. A necessidade mais referida é a ajuda para as tarefas básicas do dia-a-dia (lida da casa, refeições, etc.), manifestada por cerca de 9% dos inquiridos. Os inquiridos que vivem sozinhos referem bastante mais (10%) do que os outros que sentem necessidade de companhia/conversa, sendo esta a necessidade mais referida, a par da ajuda para as tarefas básicas do dia-a-dia. O índice de isolamento revela um perfil dos inquiridos mais isolados bastante diferente dos restantes: por um lado, apenas 1/3 afirma não ter qualquer necessidade, enquanto entre os

pouco isolados esta percentagem é de 66%; por outro lado, mais de 1 em cada 5 diz necessitar de ajuda para as tarefas básicas quotidianas e cerca de 15% dizem que a sua necessidade principal é companhia e conversa. Finalmente, as distintas situações de isolamento não parecem distribuir-se homogeneamente, em termos geográficos, por toda a cidade de Lisboa, existindo zonas mais marcadas pelo isolamento, ou seja, zonas da cidade em que a percentagem de idosos muito isolados ou isolados é muito superior a outras zonas. O grupo dos idosos muito isolados encontra-se sobre-representado na zona que, grosseiramente, podería-

mos equivaler ao “casco velho” da cidade, ou seja, na zona ribeirinha entre as freguesias de São João a oriente e Santos-o-Velho a ocidente. A zona das freguesias de S. João, Penha de França, Santa Engrácia, Anjos, Socorro e Castelo apresenta-se como a zona da cidade em que se encontrou maior percentagem quer de idosos isolados quer de idosos marcados por um grande isolamento. Em termos globais, e no que respeita aos comportamentos, opiniões e necessidades manifestadas, a maioria da população inquirida parece bastante autónoma: > Maioritariamente não beneficia de apoio institucional.

as distintas situações de isolamento não parecem distribuir-se homogeneamente, em termos geográficos, por toda a cidade de Lisboa, existindo zonas mais marcadas pelo isolamento” 90.00%

Centro de saúde

80.00%

Apoio domiciliário

70.00% 60.00%

Centro de dia/Convívio

50.00%

Junta de Freguesia

40.00%

Serviços de associação religiosa

30.00% 20.00% 10.00% 0.00%

Pouco ou nada isolados

Isolados

Muito isolados

Gráfico 7 Utilização de serviços, segundo o isolamento.

61


| SOCIAL |

70.00%

Companhia/Conversa

60.00%

Formas de ocupar 50.00%

o tempo fora de casa Melhores condições de

40.00%

habitação 30.00%

Ajuda para deslocar-se ao exterior

20.00%

Ajuda para tarefas

10.00%

básicas (lida da casa,

0.00%

refeições, etc.) Pouco ou nada isolados

Isolados

Muito isolados

Nenhuma

Gráfico 8 Necessidades mais importantes, segundo o isolamento

> A razão para não beneficiar é o facto de, segundo afirmam, não precisar, pois dizem não ter qualquer necessidade especial, não usar os serviços porque não precisam, não necessitar de ajuda para as tarefas diárias, revelam um fraco grau de dependência física ou cognitiva para as tarefas básicas quotidianas. > Uma população que sai diariamente de casa e ocupa o seu dia-a-dia a ver televisão, a ajudar a família ou a fazer trabalhos domésticos.

Gráfico 9 Distribuição dos idosos “muito isolados” por freguesias

DASS/GMAG – Setembro de 2012 Fonte(s): Base de Dados do Programa Intergerações; Censos de 2011 – Resultados provisórios – dezembro de 2011. Fonte Cartográfica: IGP, CAOP, 2012.

62


| PROGRAMA INTERGERAÇÕES |

Gráfico 10 Distribuição dos idosos “isolados” por Freguesias.

DASS/GMAG – Setembro de 2012 Fonte(s): Base de Dados do Programa Intergerações; Censos de 2011 – Resultados provisórios – dezembro de 2011. Fonte Cartográfica: IGP, CAOP, 2012.

> Uma população que diz ter algum problema de saúde, e que procura ajuda médica especializada para resolver os problemas de saúde graves. No entanto, se estes são os traços principais, de forma sintética, para a população inquirida, ao utilizarmos o índice de isolamento construído encontramos um perfil bastante distinto para os inquiridos mais isolados: > A maior parte deste grupo não tem qualquer pessoa que ajude habitualmente e também talvez por isso beneficie mais

de apoio institucional do que a população total. > Trata-se de um grupo que na sua maioria parece revelar uma situação de dependência nas actividades quotidianas, dizendo que necessita de ajuda de outras pessoas para a maior parte das actividades básicas diárias, quer de cariz mais físico quer de natureza mais cognitiva. > Trata-se de um grupo que precisaria de utilizar os centros de dia, não o fazendo por dificuldades de locomoção. > Trata-se de um grupo que

manifesta como necessidade principal, sobretudo, a ajuda para as tarefas básicas diárias e ter alguém para fazer companhia e com quem conversar. > Trata-se de um grupo que procura menos do que a população em geral a ajuda médica especializada quando tem um problema grave de saúde e que apresenta como principal razão para esse facto as dificuldades de locomoção. > Trata-se de um grupo que ocupa o seu dia-a-dia a ver televisão. 63


| SOCIAL |

O isolamento é uma situação multidimensional que ultrapassa em muito o número de pessoas com que se vive, e é marcado por diferentes variáveis, como por exemplo os contactos com a realidade exterior à casa, a disponibilidade de ajuda em caso de necessidade e a forma como se ocupa a vida quotidianamente” Conclusão O inquérito realizado constitui um diagnóstico da população residente no município de Lisboa com 65 e mais anos, vivendo sozinha ou em companhia de outros idosos. A regularidade e a dimensão (entre 24 e 29%) da taxa de cobertura do inquérito face à população de referência das diferentes zonas de Lisboa (delimitadas pelos territórios das DIASL) proporcionam credibilidade ao processo de inquirição e permitem com alguma segurança a extrapolação dos resultados obtidos para a população de referência. Os dados do inquérito permitem a delimitação de subconjuntos da população inquirida: Por um lado, verifica-se a existência de grupos populacionais muito distintos em termos de problemas e necessidades, bem como em termos de grau de necessidade de apoio e intervenção; Por outro lado, verifica-se a existência de uma heterogenei64

dade de perfis sociodemográficos na população inquirida; Finalmente, ao analisar-se a associação entre os diferentes subconjuntos referidos nos dois pontos anteriores, o inquérito parece revelar que, apesar de algumas variáveis tradicionais (como a idade, o nível de instrução ou o facto de se viver sozinho) serem importantes na delimitação de problemas e necessidades diferentes, a variável que induz maiores diferenças é o índice de isolamento. Isto parece confirmar que não é pelo facto de se viver sozinho ou com outras pessoas que se é mais ou menos isolado, mas que o isolamento é uma situação multidimensional que ultrapassa em muito o número de pessoas com que se vive, e que é marcado por variáveis, como por exemplo os contactos com a realidade exterior à casa, a disponibilidade de ajuda em caso de necessidade e a forma como se ocupa a vida quotidianamente.

Por outro lado, os dados parecem confirmar que aqueles idosos com maior grau de necessidade de intervenção, devido aos problemas específicos que manifestaram, são os idosos mais marcados pelo isolamento, constituindo assim um grupo prioritário em termos de intervenção. Finalmente, a georreferenciação da informação permite saber onde residem, na realidade, os inquiridos que compõem os distintos subconjuntos. Combinando estas duas informações, poder-se-ão delinear estratégias distintas direccionadas a cada um dos diferentes grupos, que poderão ser aplicadas com diferentes graus de prioridade.

NOTAS 1. Este artigo baseou-se numa análise dos dados que não teria sido possível sem a colaboração preciosa dos meus colegas do GMAG: o Dr. Luís Conceição e o Dr. Gelson Pinto, responsáveis pelos mapas e pela georreferenciação; o Dr. José Manuel Leitão Cunha, responsável pela construção da base de dados em Access; e o Dr. João Fernandes que ajudou na análise de consistência de algumas variáveis. 2. Este texto não segue as normas do Acordo Ortográfico de 1990.


| PROGRAMA INTERGERAÇÕES |

Notas metodológicas > Sobre a população-alvo O inquérito foi aplicado a uma população-alvo constituída por indivíduos com mais de 65 anos, residentes no município de Lisboa, vivendo sozinhos ou com outro idoso, fosse ele cônjuge, familiar ou amigo. De acordo com os dados do Censos 2011, no município de Lisboa existem 132 054 pessoas com mais de 65 anos a residir em alojamentos familiares (ou seja, este número não tem em conta os idosos que vivem em alojamentos institucionais, como sejam os lares ou as pensões). Deste conjunto, 85 508 vivem sozinhos ou com outros idosos, dividindo-se entre 35 470 que vivem sozinhos e 50 038 que vivem com outros idosos. Estes últimos vivem, na sua grande maioria, com apenas outro idoso, pois a média de idosos por alojamento é de 2,03. > Sobre o processo de inquirição As equipas de inquiridores percorreram todas as freguesias da cidade, rua a rua, prédio a prédio, porta a porta. Foram realizadas reuniões preparatórias em todas as juntas de freguesia, mas não foi efectuada qualquer pré-selecção dos alojamentos nem construída qualquer amostra. Em cada rua percorrida, as equipas batiam a todas as portas e utilizavam todas as informações, obtidas através de fontes locais, que lhes permitissem saber em que moradas residiam pessoas idosas a viver sozinhas ou em companhia de outros idosos. Em quase todas as freguesias foram efectuadas repetições, ou seja, novas tentativas de contacto quando a primeira tentativa não tinha sido bem sucedida. > Sobre o questionário A construção do questionário respondeu a dois objectivos genéricos: Identificação e caracterização do idoso a nível demográfico; identificação e caracterização do idoso em termos de problemas e necessidades. Tendo em consideração as características do público-alvo do inquérito e o tempo total para o trabalho de campo, foi definido um tempo máximo de aplicação de cada questionário (dez minutos), que condicionou a sua dimensão e a correspondente escolha de perguntas. O questionário recolheu o parecer da Direcção de Acção Social e foi testado num único momento, em que todos os entrevistadores aplicaram questionários a idosos encontrados na rua, durante uma tarde.

> Sobre o tratamento dos dados Os dados foram submetidos a uma análise de consistência, que procurou incongruências no sentido de resposta dos inquiridos, tendo sido corrigidas as inconsistências detectadas. Tendo em conta os objectivos do programa, deu-se particular atenção às variáveis de situação relacionadas com a questão do isolamento, ou seja, a variável “vive só ou acompanhado” foi confrontada com as variáveis “dimensão do agregado”, “número de idosos no agregado”, “situação conjugal”. > Sobre a construção do índice de isolamento Tendo em conta que um dos objectivos do programa era identificar e sinalizar idosos isolados que necessitassem de ajuda e que foram inquiridos muito mais idosos do que apenas aqueles que vivem sozinhos, procurou construir-se uma variável que de algum modo pudesse medir a condição de isolamento, de forma a perceber se existiriam perfis de necessidades e problemas diferentes consoante o diferente grau de isolamento. Após uma análise exaustiva dos dados, decidiu-se construir um índice de isolamento, que agrega informação de quatro variáveis: > Composição do Índice de Isolamento Variáveis seleccionadas

Valores atribuídos

Dimensão do agregado: 1

1

2

0,5

3 ou mais

0

Frequência de saída de casa: Nunca ou quase nunca

1

1 vez por mês

0,66

1 vez por semana

0,33

diariamente

0

65


| SOCIAL |

Notas metodológicas Pessoas a que se recorre em caso de necessidade: Ninguém

1

Alguém

0

Ocupação do dia-a-dia: Referir “sempre sozinho” como uma das 3 ocupações referidas

1

Nunca referir “sempre sozinho”

0

O índice pode variar entre 1 e 0, sendo 1 o valor mais alto de isolamento e 0 o valor mais baixo. Os níveis de isolamento resultam da agregação dos valores do índice: a categoria “muito isolado” agrupa os inquiridos com valor do índice entre 1 e 0,66; a categoria “isolado” agrupa os inquiridos com valor de índice entre 0,67 e 0,33; e a categoria “pouco ou nada isolado” agrupa os inquiridos com valor de índice entre 0,34 e 0.

A razão da escolha destas 4 variáveis para a construção do índice prende-se com a procura do isolamento, enquanto conceito definido por se passar a maior parte do tempo sozinho e por não se ter ninguém a quem recorrer em caso de necessidade, procurando assim ir de encontro a um dos objectivos do programa. É evidente que estas variáveis não traduzem a qualidade nem a intensidade das relações sociais que o idoso estabelecerá no seu quadro de vida, e por essa razão é importante realçar que este índice não pretende medir o isolamento social nem a solidão, tal como são definidos na literatura especializada. O inquérito não incluía perguntas que permitissem construir um índice para medir essas realidades. Assim, o índice construído resultou da informação disponível e tem uma natureza exploratória, tendo como objectivo analisar os dados para, de um modo aproximativo e exploratório, procurar relações que a utilização de variáveis simples não faziam aparecer. Este índice deverá ainda ser afinado e melhorado em futuros desenvolvimentos.

Sobre a taxa de cobertura do Inquérito: comparação com dados do Censos 2011 e 29% nos diferentes territórios das DIASL, podendo Tendo em consideração que não se seguiu qualquer concluir-se que não houve zonas da cidade que tenham procedimento amostral para selecção da população a ficado prejudicadas na inquirição. inquirir, procurou-se perceber como se situa a população inquirida face aos dados mais recentes para a população Taxa de cobertura do Inquérito face à população resido município de Lisboa, os dados do Censos de 2011 readente com 65 e mais anos, que vive sozinha ou com lizado pelo INE. outros idosos, segundo a DIASL Assim, a taxa de cobertura do inquérito, quer para a população masculina quer para a população fePopulação minina, confrontando o número de inquiridos Inquiridos residente com 65 e com mais Taxa de com a população residente, permitiu constatar mais anos, que vive de 65 cobertura sozinha ou com anos** uma apreciável regularidade na taxa de coberoutros idosos * tura das populações das diferentes zonas de DIASL Lisboa, com uma ligeira sobre-representação Centro28450 6837 24,03% das mulheres face aos homens. -Ocidental Ao usar-se como referência a população reNorte 20845 5906 28,33% sidente com 65 e mais anos que vive sozinha Oriental 13448 3927 29,20% ou na companhia de outros idosos, distribuída Sul 22765 5813 25,53% pelos territórios das quatro DIASL, uma vez Total 85508 22483 26,29% mais se constata a grande regularidade da taxa de cobertura do inquérito, variando entre 24% *Fonte: Censos 2011, INE ** Inquérito Intergerações, 2012, SCML 66


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| participação SOCIAL | |

Na minha vida

mando eu! Participação da pessoa idosa: uma abordagem multidisciplinar

O paradigma do envelhecimento ativo traduz-se no processo de otimização de oportunidades para a saúde, participação e segurança, no sentido de aumentar a qualidade de vida durante o envelhecimento. A participação é um elemento central na vida da pessoa idosa e o objetivo dos autores com este artigo é refletir sobre este conceito aplicado às principais respostas sociais para a pessoa idosa e propor um modelo de intervenção multidisciplinar concertado e eficaz, fomentando as boas práticas. A pessoa idosa é vista como o centro desta abordagem e desempenha o papel principal na sua própria vida para a toma e concretização de decisões, numa perspetiva baseada na mudança, em detrimento de uma visão paternalista de técnicos, instituições, comunidade e sociedade em geral. Texto de Ana Catarina Tavares, Luís Farto e Vânia Prates Afonso [Psicóloga, Animador Sociocultural e Terapeuta Ocupacional]

68


| PARTICIPAÇÃO |

O

envelhecimento da população é um fenómeno global que exige uma ação concertada a nível internacional, nacional, regional e local. A Organização Mundial de Saúde propõe um quadro de referência ao delinear o modelo concetual do paradigma do envelhecimento ativo (ver quadro de referência). Este baseia-se essencialmente em três pilares: saúde, participação e segurança (WHO, 2002). A participação é quando o mercado de trabalho, emprego, educação, políticas de saúde e sociais apoiam a sua plena integração nas atividades socioeconómicas, culturais e espirituais, de acordo com seus direitos humanos básicos, capacidades, necessidades e preferências/interesses, em que as pessoas vão continuando a fazer uma contribuição produtiva para a sociedade em ambas as atividades pagas e não pagas à medida que envelhecem. A suportar este paradigma estão os Princípios da Organização das Nações Unidas para as Pessoas Idosas (UN, 2000), definidos e votados na Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento de 1991, sendo eles:

rais, espirituais e de lazer e serem capazes de desenvolver todo o seu potencial. 5. Dignidade: pessoas mais velhas devem serem capazes de viver com dignidade e segurança, serem livres da exploração física ou mental e serem tratadas com justiça, independentemente da idade, sexo e origem racial ou étnica. A segunda Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento foi realizada em Madrid em 2002 e inclui os seguintes aspetos: 6. a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas mais velhas; 7. o empowerment das pessoas mais velhas através da plena e efetiva participação na vida económica, política e social da sociedade; 8. garantir o exercício dos direitos económicos, sociais e culturais, e dos direitos cívicos e políticos das pessoas; 9. a eliminação de todas as

1. Independência: as pessoas mais velhas devem ter acesso a alimentos, água, abrigo, vestuário, saúde, trabalho e outras oportunidades geradoras de renda, educação, formação, e uma vida em ambientes seguros. 2. Participação: as pessoas idosas devem permanecer integradas na vida da comunidade e participar ativamente na formulação de políticas que afetam seu bem-estar. 3. Cuidados: incluindo acesso a serviços sociais e jurídicos e aos cuidados de saúde para que possam manter um nível ótimo de saúde física, mental e bem-estar emocional; a capacidade de exercício de direitos e liberdades fundamentais, quando residentes em qualquer unidade de cuidados, abrigo ou tratamento, o que deve incluir o pleno respeito da dignidade, crenças, necessidades e privacidade. 4. Autorealização: pessoas mais velhas devem ter acesso a recursos educacionais, cultu-

Pr De as inc ivo term os ípi o At d t inante n I e m os s s do Envelheci da soa Org Pes s aniza a a par ção das N ações Unidas

formas de violência e discriminação contra as pessoas idosas; 10. a prestação de cuidados de saúde, apoio e proteção social para pessoas idosas, incluindo cuidados preventivos de saúde e de reabilitação. A soma destes conceitos traduz-se na cidadania ativa, sendo essencial que quem trabalhe diretamente com as pessoas idosas integradas nas respostas sociais fomente a continuidade deste exercício já que, desta forma é estimulado o bem-estar emocional e físico, a autonomia, a

Fig. 1. Quadro de referência para o envelhecimento ativo (WHO, 2002)

69


| SOCIAL |

independência, a integração social, as relações pessoais e o envelhecimento ativo (ISS, 2010) devendo colocar-se de lado uma perspetiva centrada no défice privilegiando-se as forças, as virtudes e os valores coletivos (Marujo e Neto, 2010). Com o aumento da esperança média de vida colocam-se novos desafios no âmbito do envelhecimento, passando não só por uma abordagem de prevenção através de práticas para o envelhecimento ativo e bem-sucedido, bem como a melhoria da qualidade das respostas sociais existentes, sendo essencial a criação de espaços onde as reais necessidades da pessoa idosa sejam asseguradas e trabalhadas, tendo em conta as dimensões biológicas, psicológicas, sociais e económicas. Apesar da necessidade da existência destas respostas, inúmeros estudos apontam para os efeitos negativos da institucionalização. Vários têm confirmado que os problemas de saúde e a consequente perda de autonomia não surgem como os principais fatores apontados pelos idosos para a decisão do internamento em instituições. O motivo mais frequente é o isolamento, a inexistência de uma rede de interações que

A avaliação das pessoas idosas em qualquer resposta social deverá ter em conta as dimensões biopsicosociais, por forma a aferir-se o grau de dependência versus independência de cada indivÍduo e, de acordo com a sua vontade e interesses manifestados, ajudá-lo a encontrar na resposta mais adequada um sentimento de segurança e bem-estar” 70

facilitem a integração social e familiar e que garantam um apoio efetivo em caso de maior necessidade. A falta de recursos, quer económicos quer habitacionais, também é frequentemente apontada como motivo para a institucionalização (Martins, 2006). As conclusões resultantes da análise de 12 estudos realizados nos Estados Unidos (Kane, 1997, citado por Martins, 2006) sobre os fatores que influenciaram a institucionalização foram as seguintes: idade, diagnóstico, limitação nas Atividades da Vida Diária (AVD), morar só, estado civil, situação da saúde mental, etnia, ausência de suportes sociais e pobreza. Valente (2001), da sua prática clínica com pessoas idosas, verificou que o idoso é, habitualmente, avesso à mudança, menos flexível na sua forma de estar e muito apegado às suas rotinas. O internamento definitivo em instituições afasta a pessoa idosa dos indíviduos com quem convive e coloca-a em contacto com desconhecidos que, frequentemente, lhe proporcionam um relacionamento pouco personalizado, agravado pela frequência de mudança de turnos dos vários profissionais. Para além disto, também a doença – situação de stress por excelência, onde se evidencia a perda de capacidade de adaptação do organismo – coloca-o numa situação de inferioridade física e psicológica, contribuindo para a instabilidade emocional, depressão, alterações do comportamento e confusão. Além disto, Borges (2000, citado por Martins, 2006), acrescenta que a institucionalização e respetivo desenraizamento leva mais rapidamente à deterioração e a uma maior incapacidade física e mental. Uma outra conclusão é que as perturbações psiquiátricas são mais frequentes em idosos institucionalizados. Em Portugal, considera-se que as respostas sociais se constituem como um conjunto de recursos que visam promover a autonomia e independência, a integração social e a saúde da pessoa idosa, em que um dos principais eixos inerente e comum a estas respostas incide na prevenção da dependência (ISS). A avaliação das pessoas idosas em qualquer resposta social deverá ter em conta as dimensões biopsicosociais, por forma a aferir-se o


| PARTICIPAÇÃO |

grau de dependência versus independência1 de cada indivíduo e, de acordo com a sua vontade e interesses2 manifestados, ajudá-lo a encontrar na resposta mais adequada um sentimento de segurança e bem-estar. Há também que ter em conta a especificidade de cada resposta social, sendo que a população-alvo de cada uma delas apresenta caraterísticas específicas no que concerne não só ao grau de autonomia e independência como também à dualidade existência/inexistência de redes de apoio formais ou informais. As respostas sociais mais comuns e utilizadas pelas pessoas idosas são o centro de dia, o serviço de apoio domiciliário e o lar de idosos. O centro de dia é uma estrutura aberta à comunidade, que integra um conjunto de serviços e atividades de caráter sociorrecreativo e cultural, que de uma forma articulada visam dar resposta e permitir à população adulta e/ou adulta idosa a sua manutenção e permanência no meio sociofamiliar e social, de uma forma equilibrada e promotora da sua qualidade de vida. O serviço de apoio domiciliário é uma resposta social que consiste na prestação de cuidados individualizados e personalizados no domicílio dos utentes, quando estes, por motivo de doença, deficiência ou outro impedimento, não possam assegurar, temporária ou permanentemente, a satisfação das suas necessidades básicas e/ou as atividades da sua vida diária (SCML, 2012). O lar de idosos é uma resposta social, desenvolvida em estabelecimento, destinada a alojamento coletivo, de utilização temporária ou permanente, de pessoas idosas ou outras situações de maior risco de perda de independência e/ou de autonomia, na qual se presta um conjunto de serviços necessários ao bem-estar dos mesmos (SCML, 2011).

uma intervenção pautada por critérios de qualidade, de que se destacam os seguintes: Garantir o exercício da cidadania e o acesso aos direitos humanos dos clientes, por exemplo, autonomia, privacidade, participação, confidencialidade, individualidade, dignidade, oportunidades de igualdade e não discriminação” O manual de processos-chave para Estruturas Residenciais para Idosos (ISS, 2010), afirma que para que haja um aproveitamento das sinergias que se desenvolvem neste contexto, tendo em consideração os clientes, os colaboradores, a estrutura e o funcionamento, torna-se necessário que resulte deste conjunto uma intervenção pautada por critérios de qualidade, de que se destacam os seguintes: • Garantir o exercício da cidadania e o acesso aos direitos humanos dos clientes, por exemplo, autonomia, privacidade, participação, confidencialidade, individualidade, dignidade, oportunidades de igualdade e não discriminação; • Respeitar as diferenças de género, socioeconómicas, religiosas, culturais, sexuais, dos clientes e/ou pessoas próximas; • Respeitar o projeto de vida definido por cada

1. Distinção entre os conceitos autonomia e independência de acordo com a Organização Mundial de Saúde: Autonomia: capacidade percebida pela pessoa de controlar, lidar com as situações e tomar decisões sobre a vida quotidiana, de acordo com as suas regras e preferências. Entende-se por autonomia a capacidade de cada um em cuidar de si, a capacidade de adaptação ao meio e ser responsável pelas suas ações (OMS, 2002). Independência: capacidade percebida pela pessoa de desempenhar as atividades de vida diária e autocuidado. É geralmente definida como a capacidade de executar tarefas quotidianas, ou seja, de viver de forma independente no seu ambiente habitual, sem necessitar de ajuda externa, ou com uma ajuda externa mínima (OMS, 2002). 2. Sugestão de Instrumento de avaliação – Checklist de Interesses Modificada. A Checklist de Interesse Modificada reúne informações sobre os interesses e envolvimento em 68 atividades, tendo em conta três períodos da vida, o passado, o presente e o futuro. O foco principal é sobre interesses de lazer que influenciam escolhas de atividades (Kielhofner, 2007).

71


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A pessoa idosa é assim o ator principal, influindo diretamente sobre a sua participação em cada um dos domínios, tendo liberdade para decidir como, quando e onde poderá participar de forma ativa” cliente, bem como os seus hábitos de vida, interesses, necessidades e expectativas; • Transmitir e garantir aos clientes um clima de segurança afetiva, física e psíquica durante a sua permanência na estrutura residencial; • Promover o envolvimento e o estabelecimento de uma parceria e articulação estreita com o cliente e/ou significativos, a fim de recolher a informação necessária sobre as necessidades, expectativas, capacidades e competências, coresponsabilizando-os no desenvolvimento de atividades/ações no âmbito dos serviços prestados; • Mobilizar a participação dos clientes na gestão da estrutura residencial, envolvendo-os no planeamento, monitorização e avaliação das respetivas atividades; • Desenvolver todas as relações entre o cliente e os restantes intervenientes (colaboradores internos e externos, voluntários, entre outros) com ética, respeito pelos direitos e deveres, profissionalismo, rigor e qualidade; • Compreender a individualidade e personalidade de cada cliente, para criar um ambiente que facilite a interação, a criatividade e a resolução de problemas por parte destes. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIFIS) (OMS/ DGS, 2003) foi desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde e está dividida em duas partes. A primeira designa-se funcionalidade e incapacidade, composta por (1) funções do corpo e estruturas do corpo e (2) actividades e participação; a segunda são os fatores contextuais, constituídos pelos (3) fatores ambientais e (4) fatores 72

pessoais. A participação é o envolvimento de uma pessoa numa situação real da vida. Tendo por base a definição de animação sociocultural, definida por TRILLA (2005:22) de entre múltiplas definições já existentes, é um “conjunto de ações realizadas por indivíduos, grupos ou instituições numa comunidade (ou setor da mesma) no âmbito de um território concreto, com o propósito principal de promover, nos seus membros, uma atitude de participação ativa no processo do seu próprio desenvolvimento, tanto social como cultural”. Neste sentido é necessária uma nova abordagem na forma como encaramos a pessoa idosa institucionalizada, ao invés de paternalizar e proteger a sua integração, dando a ideia da caridade social, oferecendo o que aos técnicos e à instituição parece melhor para eles. É frequente ouvir-se dizer que os problemas da comunicação com os idosos surgem por causa da diminuição da audição e de outras perdas físicas. No entanto, uma parte considerável dos conflitos surgem porque não se ouve a opinião da pessoa idosa. Tomam-se decisões em relação à sua vida sem se perguntar se ela próprio acha que é o melhor e, mesmo que este insista em se manifestar, a sua vontade não é ouvida. A velhice não se pode traduzir em atos estranhos ao indivíduo, nos quais ele não participa. É necessário criar formas de comunicação entre a pessoa idosa, os familiares, os técnicos e não técnicos, que facilitem e sejam promotoras da participação plena da pessoa idosa na sua vida. ELIZASU (2002:82) refere que “as instituições, pela configuração das suas normas, tendem a estandardizar os comportamentos dos residentes e por consequência a neutralizar a personalidade de cada um deles. Por outro lado, a falta de comunicação entre a pessoa e o seu meio e a ausência de estímulos para que isto se produza não favorecem a emergência da verdadeira personalidade do indivíduo”. “They do what they think is the best for me.” (Ekdhal, A., Adersson, L. & Friedrichsen, M. (2009)) (Eles fazem o que pensam ser o melhor para mim). Adoptando uma perspetiva que possibilite a participação ativa dos idosos, refletiu-se sobre um mode-


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lo que permita a intervenção baseada na comunicação, no sentido de valorizar as narrativas e experiências pessoais, potenciar a interação entre os vários atores por forma a fazer convites mútuos à mudança e potenciar uma intervenção mais participada e colaborativa. Assim, importa dar voz às pessoas idosas, permitindo que elas participem no seu desenvolvimento pessoal e que atuem a vários níveis. No desenho deste modelo (Fig. 2) considerou-se uma abordagem multidisciplinar que privilegie a pessoa idosa inserida num determinado contexto que também exerce influência sobre a mesma. Assim, a pessoa idosa insere-se no centro do modelo de intervenção que, através da comunicação, do diálogo com os pares e com os restantes intervenientes com quem interage e que se constituam como significativos na sua vida, permita a construção de um plano que contribua para o seu desenvolvimento através da participação ativa no contexto em que está inserida. No sentido de facilitar a organização do modelo, é utilizada a matriz que define os nove domínios de atividades e participação construída no âmbito da CIFIS: • Aprendizagem e aplicação dos conhecimentos; • Tarefas e exigências gerais; • Comunicação; • Mobilidade; • Autocuidados; • Vida doméstica; • Interações e relacionamentos interpessoais; • Principais áreas da vida; • Vida comunitária, social e cívica. A pessoa idosa é assim o ator principal, influindo diretamente sobre a sua participação em cada um dos domínios, tendo liberdade para decidir como, quando e onde poderá participar de forma ativa. Os restantes atores exercem influência indireta sobre os domínios referidos e também sobre a pessoa idosa, tendo como principal objetivo possibilitar que a participação e a forma como esta é feita vá ao encontro dos seus interesses e objetivos. Assim, é de extrema importância que as redes de apoio formais e informais que se constituam como um suporte efetivo e eficaz para cada pessoa idosa, possam também iniciar uma linguagem com esta que possibilite uma comunicação baseada nos aspetos positivos, nos

interesses, nos planos de vida, valorizando-se a esfera onde cabem potencialidades, expectativas e desejos. Na análise da literatura relativamente à definição de participação social da pessoa idosa, os autores Levasseur, et. al. (2010) encontraram seis níveis de envolvimento possíveis que a pessoa pode assumir, categorizando de distal para proximal, estando identificados no esquema (Fig. 3). Estes níveis existem ao longo de um continuum e distinguem a participação social (níveis 3 a 6) da participação (níveis 1 a 6) e do envolvimento social. A pessoa idosa poderá escolher em que níveis se envolver, tendo em conta as suas capacidades e limitações, os seus desejos e as suas necessidades. A importância da participação ativa na vida comunitária encontra-se documentada em inúmeros estudos, sendo que os principais benefícios são o envolvimento social, a satisfação com a vida e o bem-estar. Estes benefícios ganham particular relevo quando a pessoa idosa se confronta com desafios pessoais ao nível da perda de papéis, sobrevivência seletiva face aos pares, declínio do estado de saúde e outros problemas relacionados com o processo de envelhecer (Shipee, 2012). Apesar deste potencial declínio físico e social, é essencial que quer a comunidade quer as respostas sociais promovam o sentido de self, o empowerment e a autonomia, e possam

Fig. 2. Esquema de um modelo de participação da pessoa idosa

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1. Fazer uma atividade em preparação para interagir com o outro.

Fig. 3 Esquema dos níveis de envolvimento para a concretização da participação

2. Estar com o outro.

3. Interagir com o outro (contacto social) sem fazer uma atividade específica com este. 4. F azer uma atividade com outros (colaborar para atingir o mesmo objetivo). 5. Ajudar os outros.

6. Contribuir para a comunidade.

evitar situações de isolamento, estagnação e disrupção no funcionamento social e pessoal, à medida que os anos passam (Yamasaki & Sharf, 2011, citado por Shipee, 2012). No contexto dos cuidados de saúde, os autores Ekdhal, Adersson & Friedrichsen (2009) afirmam que a participação da pessoa idosa nas tomadas de decisão está associada a um grau de satisfação superior e à melhoria no envolvimento para atingir objetivos de tratamento definidos em conjunto. A participação social – constitui-se desta forma como um determinante-chave do envelhecimento saudável e bem sucedido e assim um ponto fulcral de intervenção emergente para todos os profissionais envolvidos. Este conceito é visto como um importante determinante de saúde que é modificável e um indicador de avaliação e monitorização que deverá ser sempre considerado na abordagem. A participação social tem demonstrado ter influência direta na mortalidade, morbilidade e qualidade de vida global da pessoa idosa (Levasseur, et. al., 2010). A terapia ocupacional é uma profissão preocupada com a promoção da saúde e do bem-estar através da ocupação. O principal objetivo do terapeuta ocupacional é capacitar a pessoa para participar nas atividades da vida diária que sejam escolhidas por si, sendo por vezes necessário recorrer a alterações ambientais que possam suportar de forma satisfa74

tória esta participação ocupacional. Este profissional de saúde acredita que a participação pode ser suportada ou restringida pelo ambiente físico, social, atitudinal e legislativo. As principais intervenções para a promoção da participação ocupacional são a manutenção e melhoria da independência nas atividades da vida diária, avaliar e analisar a capacidade funcional, implementar a utilização de produtos de apoio, planear e implementar um plano personalizado de remoção de barreiras arquitetónicas e informar e formar familiares e cuidadores (COTEC, 2010). Na tentativa da compreensão da pessoa idosa como um todo, utilizando um olhar que privilegie não só o intraindividual mas as interações estabelecidas com o ambiente em que a pessoa idosa está inserida, é necessário avaliar a forma como essas interações influenciam os comportamentos. Assim, a psicologia assume neste contexto um papel na intervenção que vai para além do individual, transpondo barreiras por forma a estudar e a intervir junto das comunidades, caminhando no sentido da resolução de problemas e da identificação de carências das pessoas e grupos, sentindo necessidade de observar os indivíduos nos seus contextos naturais. Mais do que centrar-se no problema, o psicólogo deverá utilizar uma abordagem que se debruce sobre as experiências positivas e caraterísticas individuais


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positivas (Marujo, Neto, Caetano e Rivero, 2007). Esta abordagem deverá ser feita não apenas com a pessoa idosa, como também privilegiar todos os atores que com ela interagem, dotando-os de uma visão colaborativa e apreciativa implementada através de escolhas comunicacionais e comportamen-

tais que valorizem e reconheçam as forças e virtudes associadas de quem vive em situação de fragilidade (Marujo e Neto, 2010), contribuindo-se desta forma para a mudança social e, em última instância, para a mudança individual, promovendo desta forma a participação.

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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA PERSPETIVA

DE OITO VIDAS…

Estudo de caso na comunidade do Bairro dos Loios O Bairro dos Loios, da freguesia de Marvila, há 31 anos que é palco de metodologias participativas e pedagogias intergeracionais. O Centro de Desenvolvimento Comunitário do Bairro dos Loios da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é um espaço de ativação de capacidades individuais, de solidariedades e de promoção de formas de organização facilitadoras de participação ativa. Nesta partilha de poder e de tomadas de decisão com a comunidade, destaca-se um grupo de oito atores sociais, do género feminino, com 65 e mais anos. O presente artigo exalta apenas os resultados da investigação das relações intergeracionais nas sociedades envelhecidas1, referentes ao envelhecimento social e à participação social destas mulheres ao longo da vida. Texto de Sara Armanda Mora Teiga [Coordenadora do Espaço GerAcções_Centro de Desenvolvimento Comunitário do Bº dos LOios, SCML]

1. Teiga,S.(2012) As relações intergeracionais e as sociedades envelhecidas: Envelhecer numa sociedade não Stop – O território multigeracional de Lisboa Oriental. Dissertação apresentada à Escola Superior de Educação de Lisboa para a obtenção do grau de mestre em Educação Social e Intervenção Comunitário, sob a orientação da Professora Doutora Helena Sant´ana; IPL – ESELx.

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A

s sociedades contemporâneas estão envelhecidas. Se na pré-história a velhice era rara, 1% vivia mais de 65 anos, atualmente 70% da população viverá mais de 65 anos e 40% mais de 80 anos (Hamilton, 2002). Segundo dados do EUROSTAT (2011), Portugal é o 5º país mais velho da Europa e o 6º país mais velho do mundo. Na sociedade portuguesa vive-se mais anos e esses anos traduzem-se em vidas, em histórias de gerações, compostas de eus individuais, competitivos, tecnocratas, mecanizados e virtuais. Este homem que, desde a revolução industrial, criou espaços para cada idade, tornou-se um perdedor de oportunidades de desenvolver competências sociais e emocionais. Em contrapartida, os parceiros sociais e o Centro de Desenvolvimento Comunitário do Bairro dos Loios promovem há 32 anos iniciativas e dinâmicas de desenvolvimento local, centradas na autonomia, na cooperação, na solidariedade, na participação ativa e na capacitação de pessoas, comunidades e organizações. Na comunidade destacam-se oito atores sociais com 65 e mais anos, do género feminino, com um grau elevado de interesse, envolvimento, motivação e assiduidade. Neste âmbito, a investigação sobre as relações intergeracionais nas sociedades envelhecidas teve como ponto de partida saber se a participação em atividades intergeracionais promove o envelhecimento ativo destas mulheres. O estudo pretendia conhecer o processo de envelhecimento social ao longo da vida de cada uma delas, analisar os papéis sociais que sempre tiveram na comunidade dos Loios e identificar o seu nível de participação nas atividades intergeracionais. Desta forma, a dimensão social dos conceitos de envelhecimento e de participação foi analisada qualitativamente através da aplicação de dois instrumentos: entrevistas de histórias de vida e de focus group. A história de vida é a narrativa do conjunto de experiências individuais, compostas de proposições, verdades e versão de factos perspetivados de forma autêntica, por parte do sujeito,

considerado essencial e livre para dissertar sobre a sua experiência (Meihy, 2005). A construção do guião de entrevistas de história de vida teve por base as questões de identificação configuradas na caraterização da amostra, e partiram dos seguintes indicadores: progressiva diminuição dos contactos sociais; distanciamento social; progressiva perda de decisão; possível perda de autonomia e independência; qualidade de vida; expectativas de uma vida saudável. O focus group é uma técnica qualitativa que visa colocar um grupo de pessoas a discutir um determinado tema proposto. A interação entre cada elemento do grupo proporciona múltiplas visões e reações emocionais que manifestam uma visão coletiva e não individual (Morgan, 1997). As questões colocadas na entrevista focus group tiveram em consideração os seguintes indicadores: conceção de envelhecimento; autoimagem e heteroimagem da velhice; idade social; atitude durante o processo de envelhecimento e na fase da velhice; papel social. De uma forma intencional, os seguintes indicadores nortearam, simultaneamente as entrevistas de história de vida e focus group: papel social dos avós e dos pais destas mulheres, na comunidade em que estavam inseridos; desde a infância à velhice, implicação e contributos próprios para

os parceiros sociais e o Centro de Desenvolvimento Comunitário do Bairro dos Loios promovem há 32 anos iniciativas e dinâmicas de desenvolvimento local, centradas na autonomia, na cooperação, na solidariedade, na participação ativa e na capacitação de pessoas, comunidades e organizações” 77


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Associação Intergeracional Amigos dos Loios – Órgãos Sociais

Grupo de Expressão e Movimento – interpretação da canção O Mar, de Dulce Pontes

dos dados empíricos, que dão resposta aos objetivos exaltados, são explanadas em subtítulos: envelhecimento social ao longo da vida; participação social; papel social; nível de participação nas atividades intergeracionais; motivação, expectativas e aprendizagens que surgem na participação.

a coesão social ou mudança social da comunidade onde estavam inseridas; tipo de organização social que impulsionaram na comunidade; natureza ou grau de incorporação nas dinâmicas intergeracionais, nesta fase da velhice. Discussão dos resultados A interseção destes instrumentos admitiu uma avaliação qualitativa mais ampla do objeto em análise. Todavia, realça-se que as oito mulheres selecionadas, que aqui se apresentam com nomes fictícios, não são uma amostra suficientemente representativa. Um alargamento da amostra a nível nacional permitiria, pois, confirmar ou infirmar estes resultados e tirar conclusões mais aprofundadas e generalizadas. A abordagem concetual do envelhecimento social implica analisar as relações sociais na velhice e, por sua vez, a atitude perante o envelhecimento que se quer ativo. A participação na velhice destaca as atividades produtivas como voluntariado intergeracional e associativismo. Neste sentido, as conclusões obtidas por via 78

“(…) envelhecer é ver o tempo a passar. O corpo envelhece mas o espírito não envelhece. Vai envelhecendo consoante nós queremos. Se formos uma pessoa muito ativa, o espírito não envelhece, mas se não formos, deixamo-nos descair.” (Íris, 66 anos) Envelhecimento social ao longo da vida O conceito de envelhecimento na dimensão social traduz-se num processo de envelhecimento secundário (Palácios, 2004) que ocorre desde a nascença até à morte, e deriva da relação e interação social da pessoa com o meio (Bronfrenbenner, 2004) e das expectativas e papéis sociais associados a cada idade (Birren e Renner, citado em Palácios, 2004). Os dados empíricos resultantes da entrevista focus group corroboram o estudo sobre a autoperceção da idade de Westerhof (2003), pois a idade cronológica não corresponde à idade social, por terem precisamente uma autoestima elevada e uma participação social ativa ao longo do processo de envelhecimento.


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O Centro de Desenvolvimento Comunitário ajudou-as na adaptação a esta nova etapa da vida, arranjando formas participativas de ocupar o tempo livre”

Jeitosas do Loios – Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa

Estas mulheres em entrevista individual conotaram a idade social como a idade do espírito. Expressões como “sinto que tenho um espírito de jovem” são constantes e intensificam a importância da idade social em detrimento da idade cronológica. Em média, afirmam ter menos 34 anos do que a idade cronológica, revelando que o espírito se mantém jovem por terem adotado uma postura ativa ao longo da vida. Não existe correlação entre o ser mais velha e sentir-se mais nova. Duas entrevistadas, de 70 e 71 anos de idade cronológica, sentem que têm respetivamente um espírito jovem de 50 anos e 30 anos. Estas mulheres conseguiram orquestrar a balança entre as perdas e os ganhos próprios do envelhecimento. Não revelam ter uma progressiva diminuição dos contactos sociais, uma vez que sempre alimentaram as amizades do passado e conseguiram sempre estabelecer novas amizades ao longo da vida. A manutenção das relações de amizade do passado é feita através de visitas domiciliárias e contactos telefónicos. Os amigos do presente inserem-se nos grupos de interesse das atividades nas quais participam, referindo que foram, e são, as intuições os locais, privilegiados para estabelecer as amizades. Na entrevista de histórias de vida percebemos que estas mulheres não têm distanciamento social e apenas uma referiu ter mais amigos no passado, apesar de ter alguém para conversar e desabafar nesta fase da velhice.

Os contactos sociais conduzem a um sentido de pertença. Porém, são os elementos mais próximos da família os eleitos de confiança para desabafar: o marido, a irmã e as filhas. A relação destas mulheres com a família foi autopercecionada como muito boa e bastante unida. O progressivo esvaziamento dos papéis sociais é revelado a partir do momento em que estas mulheres viveram em contextos familiares compostos por mais de três elementos, terminando agora na velhice, duas a viverem sós, uma a viver em casal e com descendentes, e as restantes apenas em casal. A reforma foi enfrentada com algum choque, choro, desgosto, sensação de inutilidade e de mal-estar. O Centro de Desenvolvimento Comunitário ajudou-as na adaptação a esta nova etapa da vida, arranjando formas participativas de ocupar o tempo livre. Para as mulheres que foram domésticas, foi vivenciada positivamente, uma vez que a autonomia financeira deu-lhes uma sensação de poder nunca antes experienciada. Por outro lado, a reforma por invalidez foi vista como a salvação económica para quem a saúde já não permitia produzir meios económicos de subsistência. Relativamente à possível perda de decisão e autonomia financeira, esta não se verificou, visto mencionarem ter poder de decisão hoje e no passado. Quatro mulheres referiram ter sido a dona da carteira, no que diz respeito à gestão doméstica, e duas nunca tiveram poder de decisão, devido às caraterísticas pessoais e à dependência financeira do marido. Os dados revelam que estas mulheres nunca pensaram na velhice, afirmando que viveram e 79


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A Participação social é construída a partir das mudanças sociais que ocorrem nas sociedades (Ammann, 1981) e significa o exercício de poder de cada pessoa, na comunidade ou grupo em que está inserida (Guerra, 2006)” aceitaram o dia a dia, ao longo da vida. No entanto, manifestam que daqui a 15 anos não estarão vivas e se estiverem veem-se com uma patologia ou demência que as impedirá de serem autónomas. Receiam depender de terceiros e fazer sofrer os familiares. Ao idealizarem o desejado, todas referenciam gostar de ser amanhã o que são hoje, isto é, independentes e ativas. Na entrevista focus group, todas as participantes exteriorizaram não estar arrependidas de não ter pensado na velhice. Contudo, explicam que nos deveremos preparar desde a infância. Para tal, através da participação ativa concorrem para os benefícios que advêm da melhoria da qualidade de vida, da independência e do bem-estar individual e coletivo. Os resultados revelam que duas mulheres ganharam a independência após o falecimento do marido. De igual forma, o papel que cada mulher desempenhou no seio da família contribui para a sua aquisição da independência. O facto de o marido trabalhar fora permitiu que assumissem autonomia nas tomadas de decisão. As oito mulheres entrevistadas referiram sentir-se livres nesta fase da velhice e uma realça que alcançou a liberdade após o falecimento do marido. Os dados referem que a perda de autonomia está relacionada com o processo de envelhecimento biológico. Num determinado momento da vida, quase todas as mulheres se sentiram ameaçadas pela deterioração física. Ao nível das doenças, surgem problemas de depressão, de câncer, 80

Preparação da salada de fruta da Sardinhada Sénior

de diabetes, mas também reumáticos, urinários, coronários e asmáticos. Em contrapartida, não se obteve respostas negativas face às impossibilidades financeiras para cuidar da saúde. Contudo, algumas revelaram não ter recursos financeiros para viajar, por terem de pensar em apoiar os filhos. Todas revelaram ter cuidado na alimentação no que diz respeito a evitar as gorduras e os fritos, preferindo estufados, cozidos e grelhados. Metade das entrevistadas mencionou já ter vivenciado um momento que as fizesse ver que estavam a envelhecer. É sobretudo a idade biológica que se manifesta e o medo da velhice associada à dependência. A outra metade refere não ter pensado que estava a envelhecer e revela ter uma autoestima elevada nesta fase da velhice. Neste sentido, conclui-se que o processo de envelhecimento social destas mulheres ao longo da vida passou pela ocupação dos tempos livres através da participação ativa em todas as atividades em que se envolviam. Atualmente, ocupam o tempo em atividades da vida diária (higiene pessoal e limpeza da casa) e em atividades de tempos livres (conviver com outros, Facebook), exercícios físicos (Tai Chi, Yoga, dança, hidroginástica, ginástica e caminhadas) e voluntariado (atividades intergeracionais). Participação Social A participação social é construída a partir das mudanças sociais que ocorrem nas sociedades


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(Ammann, 1981) e significa o exercício de poder de cada pessoa, na comunidade ou grupo em que está inserida (Guerra, 2006). Pode ser coletiva (Mass e Lampert, 2002) e/ou orientada para a união (Haak et al. 2008) quando cada elemento se envolve ativamente com vista a alcançar objetivos comuns. Trata-se de práticas de sociabilidade e convivialidade (Duarte, 2001) que ocorrem no seio de um grupo com um interesse comum, em que cada elemento intervém nas tomadas de decisão (Palácios, 1994), na execução, na organização, na avaliação. Pode ser produtiva ou orientada para a performance quando as pessoas se envolvem socialmente, oferecendo prestação de bens e serviços com vista ao bem comum. A referência familiar que contribuiu para a aceção do conceito de participação social ao longo da vida é do género masculino. Como se verifica, para metade das entrevistadas o pai foi a figura de referência para o exercício da cidadania. Foi com ele que aprenderam a adotar uma atitude participativa na comunidade onde se inserem hoje. Estas mulheres têm em comum o modelo positivo e participativo da figura masculina. Surge um avô e um tio presidentes da junta e um pai músico da Banda de Mateus; um pai que pertencia aos bombeiros e ao sindicato dos tipógrafos; e um pai encenador, ensaiador e poeta das Marchas do Beato. Duas mulheres referem que aprenderam com elas mesmas e com a vida, tendo instituições como a Casa de Santa Zita e o Centro de Desenvolvimento Comunitário servido de catalisadores para a sua emancipação. Uma traz um apontamento curioso quando refere que deve ter adquirido esta atitude por herança genética, uma vez que referencia que talvez venha do pai a rabiteza perante a vida, apesar de nunca ter vivido com ele. Na vida adulta, seis mulheres manifestam ter sido reivindicativas face ao que lhes era proposto pelos chefes em contexto de trabalho. Apenas duas mulheres referiram ser sócias do sindicato, mas não dirigentes. As outras, apesar de não serem sindicalizadas, sempre defenderam os seus direitos e os dos restantes colegas. Estas mulheres destacam a frontalidade e a determinação como caraterística de personalidade necessária para a participação efetiva.

Análise do papel social destas mulheres Os oito atores sociais do género feminino são sócias da Associação Intergeracional do Bairro e três deles constituem os órgãos sociais: vice-presidente da Direção, 66 anos; presidente da Assembleia Geral, 65 anos; vogal do Conselho Fiscal, 67 anos, e uma de 85 anos é sócia voluntária. Apenas duas mulheres (de 66 e 85 anos) referiram ter sido responsáveis pela organização de um grupo social que contribuiu para o desenvolvimento local ou comunitário no Bairro (Associação de Moradores e Associação Entreajuda Eco-Estilistas). Nesta fase da velhice, estas mulheres continuam a ter um papel activo na comunidade onde

Projecto A Beleza não Tem Idade – Sessão de cabeleireiro e maquilhagem

todas as participantes exteriorizaram não estar arrependidas de não ter pensado na velhice. Contudo, explicam que nos deveremos preparar desde a infância” 81


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vivem. Estão atentas às necessidades e explicam que estão disponíveis para a mobilização dos moradores, acreditando nos princípios do desenvolvimento comunitário. Porém, os dados referem que existe a figura do mobilizador proativo e do mobilizador que espera a iniciativa de outros para se juntar na luta. Apenas duas referem não ter iniciativa para a mobilização, mas contribuem para alcançar o bem comum. As restantes mulheres envolvem-se em diferentes tipos de mobilização, associados ao papel de voluntárias da Associação Intergeracional, de que são fundadoras; à organização da gestão dos condomínios (aumento das rendas e limpezas dos prédios) e à recolha de assinaturas para o orçamento participativo). Uma, de 85 anos, sugere a criação da resposta de centro de noite no bairro, por ver na sua necessidade uma necessidade colectiva dos mais velhos. Nível de participação destas mulheres nas atividades intergeracionais Todas as mulheres assumem uma “participação coletiva” (Mass e Lampert, 2002) e/ou “orientada para a união” (Haak et al. 2008) quando se envolvem ativamente com vista a alcançarem objetivos comuns. As atividades intergeracionais são do interesse comum a todas as entrevistas. O grau de envolvimento social, a que Golden (2009) chamou de motivação natural

Nesta fase da velhice, estas mulheres continuam a ter um papel ativo na comunidade onde vivem. Estão atentas às necessidades e explicam que estão disponíveis para a mobilização dos moradores, acreditando nos princípios do desenvolvimento comunitário “ 82

de pertencer a um grupo e ser aprovado socialmente, através do desempenho de determinadas atividades, é inquestionável. Todas elas estão no processo de tomadas de decisão, organização, execução e avaliação, evidenciando que não se limitam ao que outros decidem, respeitando a decisão tomada pela maioria. Uma das mulheres (de 69 anos) foi nomeada pelo grupo de dança como representante em reuniões do Grupo de Gestão das atividades do Espaço GerAções, do Centro de Desenvolvimento Comunitário. Motivações, aprendizagens e expectativas da participação social Robbins e Metzner (1982) defendem que o nível de participação social elevada produz efeitos ao nível da saúde física e mental e retarda o risco da mortalidade. Na entrevista focus group, as sensações de bem-estar, de sentido de utilidade e força para caminhar, associadas a sensações de juventude, levam estas mulheres a envolver-se, no mínimo há sete anos, em atividades intergeracionais que ocorrem no Bairro, através de projetos em parceria ou iniciativas espontâneas informais. Por sua vez, este envolvimento em atividades intergeracionais atribui-lhes um novo estatuto na comunidade, alcançando prestígio social na velhice. Aquando da colocação da pergunta, todas em simultâneo confessaram que lhes dá reconhecimento social e confiança por poderem caminhar sem medo por prédios e por ruas até então não frequentadas. Conclusão Nas histórias de vida relatadas por estas oito mulheres, constata-se que elas são um exemplo da nova imagem da velhice, não associada apenas a demências e patologias. No decorrer das entrevistas manifestam que sempre foram e são reivindicativas, proativas, frontais e determinadas. Nesta fase da velhice são atores sociais que assumem um papel ativo, envolvendo-se socialmente em todas as atividades produtivas ou orientadas para a performance e em atividades coletivas e/ou orientadas para a união, com vista a alcançarem objetivos comuns.


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Pormenor da sessão de cabeleireiro e maquilhagem

A idade cronológica varia entre os 65 e os 85, todavia em média dizem sentir que têm menos 34 anos. Estas visionárias ancestrais de espírito jovem abrem novas portas para a construção social da velhice nas sociedades neoliberais e desafiam os humanistas quando afirmam que as atividades produtivas na velhice dão sentido à própria existência. Entretanto, defendem que o ser humano nunca deveria deixar de ter um papel ativo na comunidade onde está inserido, desde que a saúde e a força de vontade o permitam. Enfim, trata-se apenas de um estudo de caso de oito mulheres que definem o envelhecimento como um processo natural de viver ativamente a passagem do tempo, alimentado por uma vontade intrínseca de gostar de viver cada momento!

Estas visionárias ancestrais de espírito jovem abrem novas portas para a construção social da velhice nas sociedades neoliberais e desafiam os humanistas quando afirmam que as atividades produtivas na velhice dão sentido à própria existência. entretanto, defendem que o ser humano nunca deveria deixar de ter um papel ativo na comunidade onde está inserido, desde que a saúde e a força de vontade o permitam”

BIBLIOGRAFIA Ammann, S.B. (1981). Considerações críticas sobre o conceito de participação in Serviço Social e Sociedade, nº 5 ano 2. S. Paulo Cortez, p. 147-156. Bronfenbrenner, U.&Evans, G.W. (2004). Developmental Science in the 21th Century–Emerging Questions, Theoretical Models,Research Designs and Empirical Findings.Social Development, 9,1, p. 115-125. Coll, C., Palácios, J. & Marchesi (2004). p. 373 – 437. Desenvolvimento Psicológico e Educação (Vol. I) - Psicologia Evolutiva. São Paulo: Artes Médicas. Gorjão, S. (2011). O papel da participação social no envelhecimento ativo. Construção e validação de um instrumento. Tese de Mestrado em Psicologia Social e das Organizações. Lisboa. ISCTE. Guerra, I. (2006). Fundamentos e processos de uma sociologia de ação. O planeamento em ciências sociais. Cascais. Editora PRINCIPIA. Hamilton, I. (2002) A Psicologia do Envelhecimento: uma introdução. Lisboa: Artemed Editora. Meihy, JCSB (2005) Manual de História Oral. 3. ed.São Paulo: Loyola. Morgan, D. (1997) Focus Groups in Qualitative Research (2nd edn) (Qualitative Research Methods, Vol. 16). London: Sage. http://europa.eu/abouteuropa/index.en.htm, 7 de setembro de 2012.

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“Da Escola para o Trabalho – Práticas numa interface urgente” A Gebalis, EM participa em vários projetos com o objetivo de aprender com entidades congéneres, partilhar experiências e práticas, procurar soluções económicas e sustentáveis para obras de reabilitação e, também, partilhar e apoiar medidas e projetos que contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos moradores de habitação social, em Lisboa. São disso exemplo o projeto internacional SCHOOL-to-WORK EU de intercâmbio de boas práticas na transição da escola para o trabalho, cofinanciado pela Comissão Europeia e, noutra linha de atuação, o recente estudo de aferição junto dos moradores da Gebalis, do qual se apresentam os primeiros resultados. Texto de Fernando Gabriel Carreira [GEP (Gabinete de Estudos e Projetos)_GEBALIS, EM – Gestão do Arrendamento Social em Bairros Municipais de Lisboa]

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E

stá a decorrer (fev. 2013 a fev. 2014) o projeto europeu School-to-Work EU, troca de boas práticas e experiências no processo de transição da escola para o trabalho, que tem como objetivos analisar e elaborar um conjunto de recomendações sobre as dificuldades e possíveis soluções, para melhor integração de jovens no mercado de trabalho. Estão envolvidos sete países (Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha, Polónia e Bélgica) e dez entidades de diferentes setores de atividade. A Gebalis, EM (Gestão do Arrendamento Social em Bairros Municipais de Lisboa), e a ANJAF (Associação Nacional de Jovens para a Ação Familiar), são as duas entidades nacionais envolvidas que organizaram nos passados dias 24, 25 e 26 de junho um workshop de três dias em Lisboa. A transição dos jovens da escola para o mercado de trabalho não é um processo linear e no contexto atual assume novas complexidades.


| Transição da escola para o trabalho |

Esta transição representa a entrada dos jovens na vida adulta e coincide na maioria dos casos com o abandono da família de origem para a constituição de uma nova família, coincidindo também com a consolidação da identidade pessoal e social do indivíduo. São enormes os custos pessoais, sociais e económicos gerados pelo desemprego. Existe o risco de estes jovens, principalmente os que permanecem no desemprego de longa duração, se tornarem apáticos em relação à vida política, social e cívica, ou mesmo de poderem vir a ter comportamentos de risco, causados por fatores psicológicos, resultado do isolamento social. Várias têm sido as políticas ativas e passivas para apoiar o emprego e a formação de modo a dar resposta a este fenómeno. Para além dos subsídios de desemprego e subsídio social de desemprego (medidas passivas), têm vindo a desenvolver-se medidas ativas como: apoios à contratação, apoio ao empreendedorismo e à criação do próprio emprego, estágios medidas ocupacionais e formação para os jovens. Apesar destas medidas, o desemprego e o desemprego jovem em particular têm vindo a aumentar. Em função desta realidade, a Comissão Europeia e países como Portugal têm de tomar mais e melhores medidas para inverter esta tendência, sabendo que um dos fatores que contribui para esta situação é o

Durante os trabalhos no Palácio Foz em LIsboa

Durante o workshop no Palácio Foz

tempo de espera que os jovens passam entre o momento em que terminam a sua formação académica e a entrada para o primeiro emprego. O prolongamento deste tempo de espera e a ausência de experimentação do trabalho diminui a autoconfiança e a autonomia e, em consequência, as possibilidades de encontrar um emprego seguro, estável e compatível com a sua formação. É fundamental

aumentar a interação entre as escolas e o mercado de trabalho, de forma a poder formar alunos com qualificações mais adequadas à oferta do mercado de trabalho e, por sua vez, as empresas poderem criar mais e melhores empregos e oportunidades de carreira mais atrativas para os jovens. Constata-se que, face à crise atual, os jovens são o grupo etário mais afetado na obtenção de 85


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visita à Aldeia de Santa Isabel

emprego, pela falta de oportunidades e de garantias de continuidade de futuro. Mesmo os que conseguem emprego muitos deles ocupam funções abaixo das suas qualificações, com remunerações mais baixas do que os mais velhos e estão mais sujeitos a trabalho informal, contratos de emprego precários e, por isso, mais vulneráveis em caso de despedimento ou reestruturação nas empresas. A imprevisibilidade face ao emprego tem consequências negativas para a confiança no futuro e para a realização profissional e pessoal. Esta imprevisibilidade, faz que os jovens permaneçam mais tempo em casa dos pais, tenham receio de constituir família e de assumir compromissos que impliquem pagamentos prolon-

gados no tempo com consequências negativas de ordem económica, demográfica e no sistema de proteção social. Para a sociedade no seu conjunto, a forma e a rapidez com que se faz a transição da escola para o mercado de trabalho tem implicações sociais e económicas muito fortes, pelos impactes que produz a curto, médio e longo prazo. Segundo dados do Eurofound1 (European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions), a taxa de desemprego entre os jovens na Europa tem vindo a aumentar significativamente, após a crise de 2008. Em agosto de 2012 atingiu 22,7% da população jovem (5, 5 milhões), mais 7% do que em agosto de 2007, o que

1. Eurofound: Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho.

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corresponde a mais 1200 milhões de desempregados. Dos que têm trabalho 42% têm contratos a termo e 32% têm contratos de trabalho a tempo parcial. O desemprego jovem na Europa é mais do dobro do desemprego geral. Sabemos hoje que nalguns países como a Grécia e Espanha já ultrapassa os 50%. Porque nem todos os jovens estão no mercado de trabalho, a taxa de desemprego dos jovens não reflete a proporção de todos os adultos jovens que estão desempregados e/ou sem ocupação. Se os números de desempregados são elevados, a quantidade de jovens desocupados – os designados NEET (not in employment, education or training)2 – é ainda maior.


| Transição da escola para o trabalho |

De acordo com o Eurostat3, são cerca de 15,4%, ou seja, cerca de 7,5 milhões de jovens na Europa, com idades entre os 15 e os 24 anos, que estão nestas condições e que custam mais de 153 biliões de euros/ ano (1,2% do produto interno bruto). Num cálculo efetuado para os 14% de NEET em Portugal, em 2011, existiam cerca de 260 392 jovens sem emprego e sem ocupação, compreendidos nessa faixa etária. O custo destes jovens representa 2,680 mil milhões de euros/ano, cerca de 1,55% do produto interno bruto, o que fica um pouco acima da média da União Europeia. Estes números só não são piores porque do país têm emigrado uma

Segundo dados do Eurofound (European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions), a taxa de desemprego entre os jovens na Europa tem vindo a aumentar significativamente, após a crise de 2008. Em agosto de 2012 atingiu 22,7% da população jovem (5, 5 milhões)” média de cem mil portugueses ao ano, muitos deles jovens qualificados. Portugal, dada a fragilidade da sua estrutura económica, é também um dos países onde a crise económica e financeira

tem tido mais impacte, principalmente nos jovens. Apesar das políticas ativas de emprego que têm vindo a ser tomadas e que envolvem medidas de estímulo ao emprego e à formação, a taxa de desem-

2. Expressão inglesa utilizada pela primeira vez no Reino Unido para categorizar os jovens que estão sem emprego e que não estão inseridos em algum sistema de formação. 3. Eurostat: Sediado no Luxemburgo, é o gabinete da União Europeia, que produz dados estatísticos para a União e promove a harmonização dos métodos estatísticos entre os Estados membros.

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| SOCIAL |

visita à Aldeia de Santa Isabel

boas práticas para a promoção do emprego jovem e da transição da escola para o mercado de trabalho”

NEET nos sete países parceiros no projeto School-to-Work (dados do Eurostat)

prego e emprego precário jovem tem vindo a aumentar. Em agosto de 2012 o desemprego juvenil era de 35,9% e, entre os que trabalhavam, 55% tinham contratos a termo. O mesmo tem acontecido também com os NEET que, segundo dados do Eurostat, no ano 2000 correspondiam a 10,1%, em 2004 eram 11,9%, no ano

2008 foram 11,9%, em 2009 passou para 12,5% e têm vindo a aumentar sucessivamente, com 13,7% em 2010, 14% em 2011 e 15,9% em 2012. Apesar destes números, em Portugal a percentagem dos NEET – tem sido ligeiramente inferior à média europeia, que em 2000 era de 15,6% e, em 2004 era de 15,2%, depois teve uma leve

baixa, em 2008 para 13,1% mas, a partir deste ano, começou a subir de novo, passando para uma média de 14,8% em 2009, 15,2% em 2010, 15,4% em 2011 e 15,9% em 2012, igualando assim a percentagem verificada na Europa. Dos sete países que participam no projeto School-to-Work EU, em 2011 Portugal era o terceiro país com menos NEET. Países como Itália, Espanha, Polónia e França apresentaram médias superiores. São fundamentalmente estes jovens que deveremos localizar, pois muitos deles não estão

Geotime

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

Bélgica

17,2

16,5

16,4

18,0

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14,0

12,9

13,0

12,0

12,8

13,0

13,8

alemanha

10,3

17,2

10,9

12,6

12,9

13,8

12,7

11,6

11,0

11,4

10,8

9,7

espanha

15,4

14,9

15,4

15,0

14,6

14,3

13,2

13,1

15,7

20,4

20,4

21,1

frança

13,4

12,9

13,2

12,5

12,9

13,0

13,0

12,6

12,4

14,5

14,7

14,5

itália

21,9

20,8

19,8

19,5

19,5

20,0

19,2

18,9

19,3

20,5

22,1

22,7

20,7

21,7

20,8

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18,4

16,6

14,4

12,7

14,0

15,0

15,5

10,1

11,4

12,3

11,9

12,4

12,0

12,7

11,9

12,5

13,7

14,0

polónia portugal

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10,0


| Transição da escola para o trabalho |

sequer inscritos nos centros de emprego, devendo ser feito um esforço adicional. Trata-se de jovens em muitos casos desmotivados, sem projetos de vida e perspetivas de um emprego estável e que arriscam ter um nível de vida bastante inferior ao dos seus pais. Para estes jovens, a transição da escola para o mercado de trabalho falhou, talvez pela falta de oportunidades, quer de emprego, de formação e/ou também devido ao tempo de espera até encontrar o primeiro emprego. Anteriormente estas situações aconteciam essencialmente a pessoas com escolaridade muito baixa, mas hoje em dia o que é um facto é que também cerca de 20% tem o ensino secundário e cerca de 10% tem formação universitária, terminando alguns o ensino superior. No workshop realizado em junho passado no Palácio Foz, em Lisboa, a Gebalis4, e a ANJAF5, assim como os restantes paceiros, apresentaram os primeiros relatórios relacionados com a situação dos jovens face ao emprego e à formação, assim como algumas boas práticas para a promoção do emprego jovem e da transição da escola para o mercado de trabalho. As boas práticas portuguesas apresentadas, que mostram um

têm sido realizadas no nosso país para minimizar os efeitos da falta de empregos e a desadequação das competências adquiridas pelos jovens e a oferta no mercado de trabalho, foram: o Inov Contact – promovido pela AICEP; o Gabinete de Inserção Profissional da Escola Digital da Rumos; os projectos de empreendedorismo: “Young Audax“ do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, “Academia dos Empreendedores“ da ANJE e, ainda, o Centro de Formação da Aldeia de Santa Isabel em Albarraque” pouco das iniciativas que têm sido realizadas no nosso país para minimizar os efeitos da falta de empregos e a desadequação das competências adquiridas pelos jovens e a oferta no mercado de trabalho foram: o Inov Contact – promovido pela AICEP6; o Gabinete de Inserção Profissional da Escola Digital da Rumos; os projetos de empreendedorismo: “Young Audax“ do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa7, “Academia dos Empreendedores“ da ANJE8 e, ainda, o Centro de Formação da Aldeia de Santa Isabel, em Albarraque9.

O Inov Contact – é um programa criado pela AICEP em 1997, apoiado pela União Europeia e pelo QREN/POPH10 e destina-se a proporcionar estágios profissionais no estrangeiro a jovens licenciados. Para além da formação, criou uma rede informal – a “NetworkContacto“ – que permite a troca de informações entre os participantes do programa. Vai na 17ª edição, tendo já proporcionado estágios internacionais a mais de 3800 estagiários, envolvendo cerca de novecentas entidades. No final dos estágios é realizado um inquérito aos jovens e

4. Gebalis – Gestão do Arrendamento Social em Bairros Municipais de Lisboa. 5. ANJAF – Associação Nacional de Jovens para a Ação Familiar. 6. AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. 7. O AUDAX é o centro de investigação do ISCTE no domínio do empreendedorismo. Tem desenvolvido parcerias com autarquias, associações empresariais, COTEC e MIT (Massachusetts Institute of Technology). 8. ANJE – Associação Nacional de Jovens Empresários. 9. A Aldeia de Santa Isabel é um equipamento polivalente, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que, para além de Centro de Formação Profissional, tem um lar para crianças e jovens, lar e chalet para idosos e uma empresa de inserção social. 10. QREN – Quadro de Referência Estratégica Nacional; POPH – Programa Operacional do Potencial Humano – Programas de apoio à política comunitária de coesão económica e social em Portugal (2007-2013).

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| SOCIAL |

visita à Aldeia de Santa Isabel

60% refere estar a trabalhar de acordo com as expectativas criadas e 97% valoriza a experiência cultural referindo a importância da mesma no impulso da sua carreira internacional. No final dos estágios, aproximadamente 40% são convidados a ficar a colaborar nas entidades que os acolheram, e cerca de 60% destes 40% aceita. O Gabinete de Inserção Profissional da Escola Digital da Rumos faz formação integral para as questões do desenvolvimento de competências técnicas e profissionais para jovens, acompanhando-os individualmente e em pequenos grupos, proporcionando apoio psicopedagógico a alunos, professores, pais e encarregados de educação no contexto das atividades educativas. Realiza atividades dirigidas a alunos que 90

apresentem problemas no âmbito do desenvolvimento pessoal, relacionamento interpessoal e dificuldades de aprendizagem, tendo em vista o sucesso escolar e a integração no mercado de trabalho. Os projetos de empreendedorismo “Young Audax”, do ISCTE, promovem o empreendedorismo, com enfoque no envolvimento dos próprios jovens, utilizando metodologias dinamizadas para a construção participada de soluções, de forma experiencial junto de jovens de várias idades. Assenta em duas categorias de projetos: o “YA First Step”, uma experiência de cinco dias, que visa colocar os jovens dos 13 aos 18 anos de idade em contacto não só com o universo académico no ISCTE-IUL como, através de uma atividade dinâmico-pedagógica,

ativar o espírito empreendedor desses jovens e, o “YA Summer Camp“, que visa proporcionar aos jovens férias divertidas, educativas e vivenciais de forma a desenvolver competências pessoais e sociais como a disciplina, o companheirismo e o trabalho em equipa. A Academia dos empreendedores da ANJE tem várias atividades na área do empreendedorismo, tais como: o Prémio Jovem Empreendedor, que desde 1998 tem vindo a premiar empresas inovadoras, viáveis e com boas referências académicas dos seus promotores, mesmo em fase de criação ou expansão dos seus negócios; a Feira do Empreendedor, onde junta num mesmo espaço empreendedores por conta própria, por conta de outrem, PME, autarquias franchisadores, uni-


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versidades, consultores e público em geral, para a promoção de negócios; o Road Show Empreendedorismo Integrado que é um roteiro de promoção do empreendedorismo que percorre os estabelecimentos de ensino secundário, profissional e superior, de norte a sul do país, incluindo seminários, exposições e sessões de apoio informativo. O workshop de Lisboa terminou com uma visita de estudo à Aldeia de Santa Isabel, em Albarraque, um equipamento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, entre outras valências, tem um centro de formação profissional, a funcionar desde 1986 e que proporciona formação escolar e profissional a jovens oriundos de meios desfavorecidos da cidade de Lisboa ou áreas urbanas e rurais próximas da Aldeia de Santa Isabel. O Centro de Formação Profissional tem capacidade para admitir 240 jovens distribuídos por nove cursos, abrangendo as seguintes áreas: área automóvel (reparador de carroçarias e pintura automóvel), construção civil (carpinteiro/marceneiro, pintor da construção civil e eletricista; área de serviços), cabeleireiro, confeção de atelier, restauração coletiva e operador de jardinagem e espaços verdes. O que mais se destaca neste centro de formação é o ambiente natural de uma aldeia e a sua dinâmica comunitária integradora que se estabelece entre as diferentes gerações e a aprendizagem em ambiente de trabalho. A participação dos formandos na conservação e manutenção

Centro de Formação Profissional da Aldeia de Santa Isabel: O workshop de Lisboa terminou com uma visita de estudo à Aldeia de Santa Isabel, em Albarraque, um equipamento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, entre outras valências, tem um centro de formação profissional, a funcionar desde 1986 e que proporciona formação escolar e profissional” da Aldeia e dos lares de crianças e idosos possibilita a desmistificação das tradicionais aulas teóricas tornando possível aos formandos compreender a utilidade das teorias na resolução de problemas práticos, o que gera maior motivação para a aprendizagem. Estes exemplos de boas práticas mostram-nos o que funciona bem no terreno e o(s) tipo(s) de atividades necessárias para desenvolver projetos de sucesso no apoio e integração dos jovens no mercado de trabalho, pela adequação das metodologias e planos curriculares que favoreçam a aprendizagem de competências pessoais, técnicas e profissionais adequadas ao mercado de trabalho. Este projeto tem como objetivo produzir um documento final, para ser disseminado pelos decisores políticos e partes envolvidas, que reflita a realidade vivida em cada país e contenha um conjunto de recomenda-

ções, no sentido de fomentar as melhores políticas para a promoção do emprego jovem. No catálogo de boas práticas irá ser mostrado o que está a funcionar bem e que poderá ser replicado, adaptado a cada realidade. As entidades parceiras são: Inforcoop – Instituto Nazionale de Formazione della Lega Cooperative (Itália/Coordenador); Marche Region (Itália); MIREC (Bélgica); Workopp (Itália); MEF du Cotentin (França); VHS – Municipality of Hannover (Alemanha); Krakow the Malopolska School of Public Administration Cracow University of Economics (Polónia); Esfera – Federação de Asociaciones de Mujeres en la Economia Social (Espanha) e, por Portugal, Gebalis e ANJAF. O projecto é cofinanciado pela Comissão Europeia (Employment Social Affairs and Inclusion DG). 91


| SOCIAL |

Presépio da Aldeia de Santa Isabel

A construção da aprendizagem Texto de Ana Gomes [jornalista_SCML, Centro Editorial]

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| formação |

O Natal chega sempre mais cedo à Aldeia de Santa Isabel (ASI), equipamento polivalente de ação social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa situado em Albarraque. Desde 2000, pela mão dos formandos do curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes do Centro de Formação Profissional da ASI, começa a ser construído em outubro um presépio que já se tornou uma tradição deste equipamento. Nos moldes em que é concebido e executado, integrado no modelo de educação e formação adotado, o presépio da ASI é uma celebração do Natal, um ritual de aprendizagem de um ofício e uma ferramenta motivacional dos formandos.

E

m outubro arranca a azáfama do início do ano letivo na Aldeia de Santa Isabel (ASI), equipamento polivalente de ação social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em Albarraque, a escassas dezenas de quilómetros da capital. Durante esse mês, o Centro de Formação Profissional da ASI acolhe os novos formandos dos cursos que constituem a oferta educativa do equipamento da Santa Casa. Os formandos estreantes,

jovens a partir dos 15 anos, irão distribuir-se pelos nove cursos de formação escolar e profissional disponíveis, podendo optar pela área automóvel – pintura de automóveis e reparação de carroçarias –, da construção civil – pintura de construção, carpintaria/marcenaria e eletricidade de reparações – ou dos serviços – jardinagem e espaços verdes, confeção de atelier, cabeleireiro e restauração coletiva. Na Aldeia de Santa Isabel, o início das aulas cheira a outo-

no, mas o verão teima em fazer umas visitas de despedida, fazendo parecer ainda longínquo o inverno e as festividades que este guarda. Mera ilusão porque ali, em breve, começa a ser preparada a celebração do Natal. Uma antecipação que pode surgir como estranha aos olhos dos que ainda não conhecem o já tradicional presépio da Aldeia de Santa Isabel, cenário simbólico de recriação do nascimento de Jesus Cristo, todos os anos construído pelos formandos do 93


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O lado lúdico da atividade, somado ao caráter simbólico e afetivo do presépio, contribui para o êxito desta iniciativa que conquistou lugar cativo nas ações levadas a cabo todos os anos no curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes” curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes (OJEV). É debaixo da supervisão atenta do mestre António Orlando que os jovens alunos dão os primeiros passos neste ofício da jardinagem, uma aprendizagem que arranca com um desafio: a conceção e montagem do presépio da Aldeia de Santa Isabel. O que começou por uma brincadeira, há pouco mais de uma década, passou a ser uma atividade integrada na formação. O coordenador do curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes, mestre António Orlando, explica os antecedentes de uma história que começou no ano letivo de 20002001, data em que foi inaugurada a atual oficina que alberga o curso de OJEV, construída de raiz para o efeito. “Quando chegava a altura do Natal, todas as pessoas da ASI vinham ter connosco para pedir árvores de Natal, musgo, etc. para fazerem os seus presépios. E nós também fazíamos o nosso”, relata. Certo dia, com uma turma que António Orlando classifica de “mais espevitada”, o mestre ouviu da boca dos formandos um reparo em forma de desafio. Os alunos 94

reclamavam que o presépio do curso devia ser o mais bonito da Aldeia de Santa Isabel. O mestre concordou e devolveu o repto aos jovens interlocutores. Era preciso lançar mãos à obra e fazer um presépio dedicado ao Natal, claro, mas também à profissão que ali juntava cada turma: a jardinagem. “Esse desafio, de fazer um presépio de jardineiro, tem-se renovado todos os anos no curso de OJEV. Como ponto de partida, decidimos que o presépio tinha obrigatoriamente de integrar os três elementos essenciais à nossa profissão: as plantas, a água e a terra. Desde o início, essa é a nossa base de trabalho, embora todos os anos seja introduzida uma novidade. Penso que esta iniciativa, que começou há mais de dez anos, vai continuar a ser feita ad aeternum…”, especula, face ao sucesso com que a actividade tem vindo a ser acolhida desde então pelas sucessivas turmas do curso. “Fazendo, eles aprendem” O lado lúdico da atividade, somado ao caráter simbólico e afetivo do presépio, contribui para o êxito desta iniciativa que

conquistou lugar cativo nas ações levadas a cabo todos os anos no curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes. Na conceção e construção do presépio, o mestre António Orlando trabalha principalmente com os formandos acabados de chegar. “A turma que entra, que está mais ‘crua’ e precisa de estar em espaços mais controlados, é envolvida na atividade desde o princípio ao fim. Todos participam. É uma forma de os cativar para o ofício. De ‘apanhá-los’ através de um trabalho que eles gostam de fazer. Desta maneira muito prática, conseguimos incutir alguns ensina-


| formação |

mentos que, numa sala de aula tradicional, com um modelo mais teórico, seria mais complicado transmitir”, assegura. António Antunes, diretor da Aldeia de Santa Isabel, confirma não só o sucesso da iniciativa entre os jovens formandos, mas também a sua eficácia enquanto ferramenta colocada ao serviço do modelo de educação e formação adotado pelo Centro de Formação Profissional da ASI. “Importa recordar que os jovens que vêm para a Aldeia são, em muitos casos, problemáticos, com dificuldades de aprendizagem e de inserção no ensino regular. Na sua maioria, abando-

naram a escola por não conseguirem acompanhar o percurso educativo, devido a inúmeras situações, desde a desmotivação à incapacidade de permanecer várias horas fechado numa sala de aula. Para além disso, têm outras competências que não são trabalhadas no contexto da escola. Na Aldeia de Santa Isabel preconizamos uma aprendizagem mais orientada para a prática, diferente da enquadrada no sistema de ensino escolarizado, que é mais teórica. Aqui, é através do exercício oficinal que os formandos abordam as questões teóricas, mas de uma forma ad hoc”, esclarece.

A construção do presépio é um projeto que encaixa na perfeição neste modelo de aprendizagem. O mestre António Orlando traduz em exemplos concretos esta filosofia de compreensão de conceitos teóricos através de exercícios práticos. “No fundo, o presépio é um jardim em ponto pequeno. E o jardineiro tem de perceber de desníveis, infraestruturas, circuitos de água, etc. Fazendo, eles aprendem. Para além disso, para compreenderem todas essas questões decorrentes do ofício, os formandos acabam por ter necessariamente de exercitar o português e a matemática”, refere. Por exemplo, ainda antes do lançamento da primeira pedra do presépio, é necessário estabelecer a sua dimensão. “Eles sabem que têm um espaço de cerca de quatro por quatro metros para o presépio. A partir daí, têm de calcular a área, definir o perímetro e por aí fora. E lá está a Matemática…”, clarifica o mestre António Orlando. Quanto ao Português, um mero olhar pela lista das designações vulgares das plantas utilizadas no presépio de 2012, esclarece de que forma os formandos necessitam de treinar as suas competências ao nível do vocabulário. Numa folha de papel sucedem-se os nomes indecifráveis para os leigos em matéria de plantas: juníperos, cíclames, iresine, etc. “Até para nós, que já andamos nisto há uma série de anos, nem sempre é fácil designar corretamente os nomes das plantas. E estamos a falar dos nomes vulgares, porque se

Presépio construído no âmbito do curso de Operador da Jardinagem e Espaços Verdes da Aldeia de Santa Isabel em 2012

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| SOCIAL |

Inventário e exemplares das plantas e materiais utilizados no presépio de 2012

O que começou por uma brincadeira, há pouco mais de uma década, passou a ser uma atividade integrada na formação” fôssemos aos nomes científicos, em latim, era impossível fazer que eles conseguissem identificar as plantas…”, salvaguarda. O facto de o presépio da Aldeia de Santa Isabel ser também um exercício de escola, confere-lhe algumas particularidades. Nomeadamente, a vizinhança física de uma zona expositiva na qual estão dispostos todos os materiais e plantas utilizados na sua execução. Essa “montra” de objetos permanece lado a lado com o presépio, desde os primeiros passos até ao resultado final. Funciona como uma cábula, uma orientação sempre disponível para os formandos esclarecerem dúvidas ao longo do processo de construção do presépio. Cada elemento utilizado é classificado com um número ou uma letra que remete para uma listagem impressa que identifica todas as espécies de plantas e 96

tipos de materiais existentes no presépio. Quando o mestre pede que seja colocado um ficus junto ao lago, em caso de dúvida, basta dar uma espreitadela nesta montra viva para esclarecer de que planta ao certo está a falar António Orlando. “Os jovens fazem um levantamento de tudo o que é utilizado no presépio. Esse apanhado é feito por eles: uns vão escrevendo sozinhos, outros pedem ajuda, mas conseguem catalogar todas as plantas e materiais. No presépio não são colocadas etiquetas, mas com o exemplar identificado mesmo ali ao lado, eles acabam por se habituar às designações”, acrescenta António Orlando. Neste simples mecanismo de aprendizagem, mais uma vez, a teoria é colocada ao serviço da prática, comprovando junto dos formandos de que modo estes dois mundos se interligam.

“Experiência mágica” Apesar de o entusiasmo ser a regra no acolhimento da ideia de construção de um presépio pelas novas turmas de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes, o mestre António Orlando admite que o ânimo inicial sofre uma quebra generalizada quando são dados os primeiros passos na construção. Sacos de areia, tijolos, cimento, tubos plásticos, entre outros materiais, são elementos que parecem não casar com a ideia de presépio, nem tão-pouco com a imagem de um presépio de jardineiro. “Quando olhamos para um espaço relvado vemos verde, mas enterrado


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Superada a desilusão provocada pela inestética estrutura de tubos, tijolo e areia, os formandos recuperam o ânimo inicial à medida que veem o presépio tomar forma, com rio a serpentear o casario, a relva a brotar entre as pedras, as figuras dispersas por um cenário de encantar. “Quando chegam ao fim, muitos ficam maravilhados. Às vezes, pela hora de almoço, ficam na oficina, sentados a olhar fixamente para o presépio, a dizer: nunca pensei que isto ia ficar assim…”, revela o mestre. O caminho rumo ao resultado final demora pouco mais de um mês a ser percorrido. Depois de delimitadas as fronteiras do presépio, é estabelecido o local do ponto de água, porque, como refere António Orlando, “o coração do presépio é o lago”. É a partir dele que são desenhados os desníveis no terreno e o curso do riacho que o vai atravessar. Segue-

Inventário e exemplares das plantas e materiais utilizados no presépio de 2012

por baixo desse verde é que está 90% do trabalho do jardineiro. O mesmo acontece com o presépio. Os formandos começam a ficar desiludidos quando atravessam as primeiras etapas da construção, porque não conseguem ainda ver nada do que vai ser o resultado final”, esclarece. A tomada de consciência desse esforço que permanece invisível ao olhar, mas que é o sustentáculo indispensável ao sucesso do trabalho para o operador de jardinagem e espaços verdes é um mandamento basilar do ofício que os jovens também compreendem através da experiência do presépio. 97


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É muito gratificante perceber que os idosos e as crianças que aqui residem também vão acompanhando a realização do presépio. E verificar depois as viagens que todos fazem à oficina do curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes para ver o resultado final. Trazem amigos e familiares para admirarem o nosso presépio. Porque, embora seja construído pelos formandos de OJEV, é um presépio de todos, é o presépio da Aldeia” -se o revestimento com pedra, a modelação das telas e a escolha das plantas a utilizar, segundo o material disponível. “Quando não temos muita variedade, é preciso puxar pela imaginação para trabalhar as plantas. Com duas plantas iguais, se as trabalhar de início quando ainda estão pequenas, consigo fazer delas o que quiser: dar-lhes a forma de bolas, castelos, etc.”, exemplifica. Distribuídas as plantas, por fim, são feitos os acabamentos, a colocação das casas, igreja, moinho, fontes, candeeiros e figuras. Ao longo das diferentes etapas de conceção e execução, os jovens não se limitam a cumprir as orientações do mestre, contribuindo a passo a passo com as suas sugestões e ideias. “Cada um dá a sua opinião. Essa participação também é uma oportunidade para lhes incutirmos algumas das normas básicas do nosso ofício. Por exem98

plo, quando pensamos em conjunto a distribuição das plantas no presépio, eles percebem que não podem colocar uma planta alta à frente de uma mais pequena, porque a segunda não tem visibilidade. Este tipo de regras básicas que, no futuro, lhes vão ser muito úteis” enquanto operadores de jardinagem e espaços verdes, concretiza António Orlando. O envolvimento ativo e a participação coletiva de todos os elementos da turma confere a cada um dos formandos um profundo orgulho pelo trabalho feito. “No final, nem sempre os jovens guardam uma compreensão total das tarefas que executaram, nem sempre se lembram do nome da planta que está ali ou acolá, mas nenhum se esquece que foi ele que a plantou, ou que colocou aquelas pedras, ou que pintou aqueles banquinhos…”, assegura o mestre do curso de OJEV.

O facto de sentirem o presépio da Aldeia de Santa Isabel como uma obra sua confere aos formandos um orgulho que serve de adubo ao processo de aprendizagem. Satisfeitos com o resultado final, não só reforçam a consciência das suas competências como se sentem motivados a fazer mais e melhor. “Noto um orgulho enorme da parte deles quando olham para o presépio. Importa não esquecer que, depois de finalizado, o presépio tem de ser mantido durante mais de um mês. E eles têm imensa atenção nessa manutenção, nunca se esquecem de ir regando, cortando, enfim, tendo todos os cuidados de conservação de um jardim”, relata o mestre. Um desvelo de que faz eco Patrick Simão, de 18 anos, formando do curso de OJEV que participou na construção do presépio de 2012. “Senti-me muito orgulhoso e feliz por as pessoas virem aqui à oficina visitar o presépio e gostarem. Aprendi a trabalhar com diversos materiais e fiz um pouco de tudo. Foi uma experiência mágica”, classifica. O jovem confidencia que a formação em Operador de Jardinagem e Espaços Verdes não foi uma primeira escolha. A desmotivação e desinteresse com que ingressou no curso transformou-se em surpresa e motivação. “Nunca pensei que fosse assim. Antes, achava que a jardinagem era um trabalho vulgar, que qualquer pessoa podia fazer. Agora sei que não é assim. Estou a gostar muito. Trabalhar com plantas é mexer com um ser vivo!”, explica, com entusiamo.


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Aspeto do lago e pormenor do curso de água do presépio de 2012

O presépio da “aldeia” Também o diretor da Aldeia de Santa Isabel, António Antunes, fala de orgulho, motivação e responsabilidade quando descreve a já tradicional iniciativa do presépio elaborado pelos formandos do curso de OJEV. “Este é um projeto extremamente motivador para os formandos. Por um lado, porque, de uma forma extremamente lúdica, eles desenvolvem um trabalho cujo resultado final deixa-os muito orgulhosos. Por outro, porque essa mesma obra feita por eles tem uma duração que se prolonga para lá da mera construção. O presépio fica disponível ao olhar de todos durante algum tempo. Essa visibilidade incute-lhes também um sentido da responsabilidade de fazer algo de que as pessoas gostem. Isso não só os motiva para a actividade como para a aprendizagem”, afiança. Pela época do Natal, cada visita ao presépio reforça o orgulho sentido pelos jovens autores. E são muitos os que por ali passam para conhecer o já famoso

presépio da Aldeia de Santa Isabel. “O ano passado, veio cá a televisão, a rádio e vários jornalistas que entrevistaram os formandos. Esse reconhecimento público é muito importante para estes jovens”, acrescenta o diretor do equipamento polivalente de ação social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Mas nem só da visibilidade mediática se alimenta o orgulho pela obra feita. A propósito, António Antunes refere o ambiente de “aldeia” e a filosofia intergeracional que orienta o quotidiano deste equipamento situado em Albarraque. “Na ASI, para além do Centro de Formação Profissional, funciona o Lar Padre Agostinho da Motta, espaço de acolhimento de crianças e jovens, e o Lar São João de Deus, valência residencial para pessoas idosas”, elenca. Desta forma, no cenário familiar que em muito se assemelha ao de uma pequena aldeia de Portugal, cruzam-se diariamente crianças, jovens e idosos, dando vida ao lema que carateriza a ASI como “casa do

homem de todas as idades”. Em vésperas das festividades natalícias, todos estes utentes e residentes da Aldeia de Santa Isabel, a par dos funcionários que ali trabalham, fazem o que António Antunes descreve como “verdadeiras romarias ao presépio”. “É muito gratificante perceber que os idosos e as crianças que aqui residem também vão acompanhando a realização do presépio. E verificar depois as viagens que todos fazem à oficina do curso de Operador de Jardinagem e Espaços Verdes para ver o resultado final. Trazem amigos e familiares para admirarem o nosso presépio. Porque, embora seja construído pelos formandos de OJEV, é um presépio de todos, é o presépio da Aldeia”, acrescenta o diretor do equipamento. Passada mais de uma década sobre o arranque desta iniciativa, o encanto e afetividade com que funcionários, utentes e visitantes encaram o presépio da “aldeia” não esmoreceu. Todos os anos se atualiza a motivação e carinho com que se mobilizam para a atividade, desde a génese da conceção à fase da contemplação final. Em 2013, novo presépio se erguerá no espaço da oficina, construído por novas mãos, movidas por renovado empenho. 99


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Alfabetização de adultos

rumo à cidadania

Texto de Mário Palma e Patrícia Rodrigues [Mobilizador Comunitário, Técnica de Desenvolvimento Comunitário_ SCML Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira, k’CIDADE]

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Desde finais do século xix que os sucessivos governos – e decretos aprovados e abolidos, uns visionários e outros discricionários de difícil aplicação imediata – não conseguiram eliminar a taxa de analfabetismo nacional, a mais elevada da Europa. Mas as estatísticas nem sempre espelham a complexa realidade daquilo que os números podem revelar. Num território de grande fragilidade social, como é a Ameixoeira, temos procurado promover uma dinâmica de desenvolvimento local que também se alicerce numa aparente contradição: a alfabetização não pode deixar de ser considerada fator promotor de cidadania na mesma medida que não pode ser considerada obstáculo ao seu exercício.

Ricardo Vieira

E

n q uadramento local – a floresta e a árvore Em 2001 a taxa de analfabetismo1 nacional rondava os 9% e na cidade de Lisboa os 6%. Na Ameixoeira, em 20042, no território de intervenção do Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira existiam 15% de analfabetos e a maioria da população não estudante (cerca de 37%), nascida entre 1980 e 19943, só tinha o 1.º ciclo do ensino básico. Constatou-se assim que esta área apresentava uma situação muito mais preocupante do que a expressada nas estatísticas nacionais. Desde 1979, data de entrada em vigor do Plano Nacional de Alfabetização e Educação de

Adultos, que os resultados obtidos na aplicação de políticas com vista à redução do analfabetismo ficaram muito aquém das expectativas, tendo um impacte pouco significativo na formação do indivíduo/cidadão adulto no seu todo, não possibilitando alternativas ao modelo educativo tradicional formal. Ainda assim, em 1986 é destacada a educação extraescolar e o ensino recorrente e em 2006, com o lançamento da Iniciativa Novas Oportunidades, faz-se um esforço em colocar na agenda a promoção da inclusão social de grupos sociais desfavorecidos, assim como o reconhecimento e a validação de conhecimentos e de competências desenvolvidas pelos adultos ao longo da vida.

Primeiras iniciativas: os rebentos Em 2007, já instalados no Centro de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira (CDCA), fomos abordados por alguns homens da comunidade cigana que pretendiam “ter escola no bairro”. Iniciou-se um processo de capacitação deste grupo, facilitando a sua articulação com parceiros locais com vista ao desenho de uma resposta de combate ao analfabetismo e de reforço de competências sociais, adaptada às necessidades da população. Surge, assim, o Projeto Local de Alfabetização (PLA) que, além do reforço ou a aquisição de competências na leitura e na escrita, visava capacitar os

1. Percentagem da população residente com 10 e mais anos que não sabe ler nem escrever (Censos, 2001). 2. Análise da Situação de Partida (bairro PER), Centro de Estudos Geográficos da UL, Programa K’CIDADE. Os dados apresentados são estimativas que resultam do apuramento do inquérito em painel efetuado a 25% dos agregados familiares (253) correspondendo a um total de 825 indivíduos. 3. De acordo com a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro para quem nasceu depois de 1 de Janeiro de 1981 a escolaridade mínima obrigatória são 9 anos.

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formandos para a promoção e desenvolvimento de iniciativas locais que beneficiassem toda a comunidade. Estiveram envolvidos, nesta primeira iniciativa, 18 homens ciganos, com idades entre os 22 e os 40 anos. Este “fechamento étnico e de género” foi uma condição inicial colocada pelo grupo, que foi possível ultrapassar algum tempo depois, primeiro com a entrada de uma mulher cigana e mais tarde com entrada de não ciganos. Houve, assim, espaço para abordar a questão da igualdade de género e da diversidade abrindo caminho à convivência intercultural, imprescindível num território de grande diversidade como é a Ameixoeira. Para além da leitura, escrita e um primeiro contacto com as Tecnologias de Informação e Comunicação, as temáticas de trabalho incidiram na cidadania, com enfoque na participação comunitária. Neste projeto foi possível contar com um professor, do primeiro ciclo do ensino básico, com experiência em contextos etnicamente heterogéneos1, aspeto que se considerou fundamental para o sucesso da iniciativa.

Na sequência desta iniciativa, um conjunto de jovens ciganas também se organizou e mostrou interesse em aprender a ler e a escrever, tendo sido apoiadas na promoção do PIC Sonho de Aprender que pretendia criar um espaço de aprendizagem e educação não formal que permitisse reforçar saberes e competências (escolares, pessoais e sociais). Neste grupo, constituído por 18 mulheres entre os 16 e os 40 anos, abordaram-se temáticas relacionadas com o papel da mulher cigana na comunidade, utilizando o diálogo e reflexão coletiva. Um resultado importante desta experiência foi a passagem de algumas das participantes deste grupo para as turmas de alfabetização de adultos dinamizadas localmente, que iniciariam nos anos letivos seguintes, já com mistura étnica e de género. Observando as idades dos participantes destes dois exemplos, comprova-se que os baixos níveis de escolaridade da comunidade cigana atingem inclusive os mais jovens. Num estudo realizado por Casa Nova (2006), foi referenciado que o afastamento da comunida-

Ricardo Vieira

A procura destas respostas por imigrantes de origem africana foi muito significativa e crescente. São pessoas que continuam a chegar a Portugal em condições de grande fragilidade”

de cigana relativamente à escola era devido, em parte, ao seu historial nómada, sempre marcado pela atividade mercantil e que não implicava um nível elevado de escolaridade. Na sequência do PLA, foi possível nos anos seguintes e em parceria com a população, parceiros locais e com o Agrupamento de Escolas local, apresentar candidaturas à DRELVT para a realização de ações de alfabetização de adultos. Num contexto de difícil convivência entre grupos, o papel da equipa foi o de promover turmas heterogéneas, estimulando o respeito pela diversidade e a responsabilização da comunidade para a identificação de necessidades e de possíveis soluções para as mesmas.

4. Professor contratado ao abrigo do Projeto de Inovação Comunitária (PIC) – Projeto Local de Alfabetização. Os PIC materializam ideias e iniciativas de grupos da comunidade e resultam da identificação de interesses e/ou necessidades comuns e podem ter um apoio financeiro até 60% do custo total do projeto.

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a equipamentos (CEG, 2004). Devido às suas baixas qualificações, constituíram mão-de-obra barata e desqualificada, dificultando a quebra de um já complexo ciclo de pobreza e exclusão social.

A procura destas respostas por imigrantes de origem africana foi muito significativa e crescente. São pessoas que continuam a chegar a Portugal em condições de grande fragilidade: muitas vezes em situação irregular, sem frequência escolar e com muito pouco contacto com a língua portuguesa. A sua condição de analfabetos reforça ainda mais a sua situação de isolamento e dificulta, ou mesmo impede, a supressão das necessidades mais básicas. Face a esta realidade e orientados pelo princípio de uma educação para todos, verificou-se ser importante abrir a estes moradores a possibilidade de se inscreverem nas turmas de alfabetização, mesmo que o objetivo primeiro fosse a aquisição de competências em língua portuguesa.

Grupo que também mereceu atenção e cuidado foram os seniores. Alguns com quase 80 anos de idade tiveram a sua primeira experiência escolar no CDCA. Muitos destes idosos migraram para a Ameixoeira, nos anos 50, vindos das zonas rurais do interior e norte de Portugal, à procura de melhores empregos. Nas zonas de origem, nunca tiveram hipótese de estudar, devido à situação sociopolítica nacional da época, não chegando a aprender a ler quando crianças ou muitos só concluindo a 4.ª classe em adultos (Aníbal, 2000). Quando finalmente chegaram a Lisboa, viram-se obrigados a instalarem-se em zonas mais periféricas, iniciando a construção de núcleos de barracas e construções clandestinas, habitações com baixas condições de higiene e fracas acessibilidades

Continuação de um caminho formativo: o crescimento das raízes Entre 2008 e 2012 frequentaram a alfabetização de adultos cerca de 120 pessoas com idades entre os 18 e os 80 anos. As turmas foram organizadas consoante o nível de aprendizagem dos alunos e horários disponíveis, o que possibilitou a constituição de grupos muito heterogéneos. Um dos objetivos alcançados foi o de promover espaços de encontro e de convivência solidária entre culturas e gerações. Devido ao trabalho desenvolvido em parceria e à articulação próxima com os professores, foi possível trabalhar ao longo do ano questões de cidadania, como a igualdade de oportunidades, respeito pelo outro, educação cívica, alimentação saudável e inclusive a importância da atividade física regular. As regras foram sendo definidas e discutidas em conjunto, permitindo reforçar a ideia de direitos e deveres. Se por um lado é patente a vontade de saber ler e escrever, por outro estes adultos deparam-se com dificuldades várias que dificultam a realização desse desejo (apesar de se considerar, a nível nacional e internacional, que a comuni103


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Ler, saber ler, é algo que parece simples e evidente aos olhos de todos os que dominam esta competência. Todavia, esta facilidade aparente esconde um processo que implica operações cognitivas complexas e sofisticadas, das quais resulta um fenómeno verdadeiramente extraordinário. Este fenómeno é tanto mais extraordinário se tivermos em conta que a leitura é um acontecimento recente na evolução da nossa espécie. Aquilo que lhe permite a si, leitor deste artigo, extrair sentido do conjunto de sinais gráficos pelos quais está neste momento a passar os olhos é o resultado de uma aprendizagem que o cérebro humano só começou a desenvolver há cerca de cinco mil anos. A aprendizagem da leitura, seja ela iniciada na infância ou na idade adulta, implica aprender como funciona o sistema de escrita da língua que falamos. Nos estádios iniciais de aprendizagem da leitura, o aprendiz tem, portanto, de aprender quais os sinais visuais (as letras, conjuntos de letras, diacríticos) que constituem o sistema de escrita da sua língua. E de aprender a que sons da fala correspondem esses sinais. À medida que aumenta a exposição do aprendiz a palavras escritas, este vai adquirindo maior familiaridade com as formas visuais das palavras da língua. Quanto mais palavras, e segmentos de palavras, o aprendiz for capaz de ler via reconhecimento direto, mais rápida se torna a leitura. Quando a leitura se torna mais rápida, o aprendiz liberta recursos cognitivos que, no início, eram canalizados para a tarefa de descodificação grafema-a-grafema. Isso permitir-lhe-á, agora, atender ao sentido das palavras que está a ler, ao sentido da frase ou do texto que tem diante de si, e compreender o que as palavras escritas que está a ler comunicam. Pelo facto de a leitura ser uma atividade recente, o cérebro humano não possui mecanismos que lhe sejam especificamente dedicados. Sabemos, contudo, que o cérebro humano é um órgão com uma prodigiosa capacidade adaptativa. A plasticidade do nosso cérebro é tal que o cérebro de um indivíduo adulto, ou seja, cujo organismo já se encontra formado, continua a ter capacidade para se reorganizar, de modo a poder realizar tarefas cognitivas complexas que, até então, nunca havia efetuado. É nesta circunstância que se encontra o cérebro de um indivíduo que, não tendo aprendido a ler na infância, decide aprender a ler já na idade adulta. Os avanços tecnológicos das últimas décadas têm vindo a permitir que possamos observar que áreas cerebrais são ativadas quando se desempenham tarefas cognitivas. Estudos experimentais recentes, com uso de ressonância magnética funcional, sugerem que existem diferenças entre adultos que aprenderam a ler na infância, adultos que aprenderam a ler em adultos, e adultos que nunca aprenderam a ler. Tais estudos indicam que aprendizagem da leitura imprime alterações no nosso dispositivo cerebral, tanto a nível funcional como a nível da própria anatomia do cérebro: há áreas que só se ativam e especializam se, e quando, aprendermos a ler; o modo como processamos informação visual é diferente consoante saibamos ou não ler. Cristina Carvalho, investigadora em Psicologia Cognitiva

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O que acontece quando aprendemos a ler?

cação na língua materna, tanto oral como escrita, é uma das competências-base na aprendizagem ao longo da vida, sendo importante para o desenvolvimento pessoal, a inclusão social, a cidadania ativa e o emprego). O compromisso no acesso à educação para todos colide com a dificuldade de um (re) ingresso tardio à escola, com a qual possivelmente tiveram uma relação curta e desagradável, ou com a simples dificuldade do acesso à informação ou preenchimento de uma ficha de inscrição. A atividade do CDCA, em termos de reforço de competências e aprendizagens e acesso à educação, não se limita à alfabetização de adultos. Outras respostas de suporte ao cidadão têm vindo a surgir partindo da identificação participada das necessidades e principalmente das soluções.


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A nossa intervenção não se limita ao trabalho de reforço de competências escolares, mas também incide na capacidade do indivíduo em melhorar o acesso à empregabilidade e empreendedorismo, reconhecimento e exercício dos direitos e deveres, capacidade dos indivíduos de se relacionarem com os outros, competências para pensar e exercer de forma crítica, competências necessárias à formação e desenvolvimento da pessoa e competências do domínio ético, que passam pela construção de valores. A participação das pessoas nas ações de formação dinamizadas no CDCA possibilitou a identificação de pessoas-chave para outros projetos também implementados pela equipa, no sentido de se valorizar o conhecimento e experiência anterior dos mesmos, não sendo de todo impeditiva a sua participação pelo facto de não serem alfabetizados.

Ponto de situação atual: a queda das folhas Dados mais recentes indicam que na Ameixoeira se verifica um incremento da taxa de analfabetismo, passando dos 15% para os 16%, apesar de esta ser uma das freguesias com uma população muito jovem na cidade de Lisboa. No contexto atual de crise que o país vem atravessando, os meios mais desfavorecidos têm tendência a tornarem-se ainda mais excluídos e isolados do restante tecido da cidade de Lisboa, pelas razões que facilmente conseguimos identificar. A alfabetização não é condição indispensável ao exercício ativo da cidadania, mas este conceito não deve ser dissociado da existência de direitos e deveres, direitos que são muitas vezes oprimidos e violados por quem detém o poder. Do mesmo modo, a alfabetização não poderá ser encarada como um simples ato de aprender a ler e a escrever, mas também como uma postura que permite a interpretação da nossa realidade. A aquisição das competências de leitura e escrita, numa sociedade moderna, é uma ferramenta fundamental para colocar em prática os nossos direitos, contra o excesso de poder. Se por um lado estas competências ajudam a combater as desigualdades numa sociedade do conhecimento interligada globalmente (em que muita da informação e serviços só é possível de aceder em formato digital), estas por si só não são o ga-

rante da sua utilização por todos e de todos, de modo igualitário. No CDCA, para além de promovermos o reforço de competências, apoiamos as pessoas a aceder a estas ferramentas e a saber utilizá-las de modo consciente e informado, num espaço de utilização coletiva onde sugestões e críticas ao modo de funcionamento, são sempre bem-vindas e estimuladas.

BIBLIOGRAFIA ANÍBAL, Alexandra Cabeçadas Arsénio Nunes (2000), A expansão da rede escolar do Ensino Primário durante o Estado Novo - uma política de voluntarismo minimalista, IV Congresso Português de Sociologia, Coimbra, [Consult. 13 de outubro 2013], disponível em http://www. aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR462dd61024aca_1.PDF CASANOVA, Maria José, “A Relação dos Ciganos com a Escola Pública: contributos para a compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional” in Revista Interacções (2006) N.º 2, p. 155-182. CEDRU (2009), Avaliação Socioeconómica Intercalar – Relatório Final Preliminar, K’CIDADE, Lisboa; CEG – Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa, (2006), Ameixoeira – Análise da Situação de Partida, K’CIDADE, Lisboa. SOARES, Magda, Universidade, Cidadania e Alfabetização, [Consult. 27 de setembro 2013], disponível em http://w3.ufsm.br/regina/Artigo1.htm

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A Literacia como uma acessibilidade no domínio da

prevenção da deficiência Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, as pessoas com deficiência são todas aquelas com incapacidades prolongadas de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, as quais, em conjugação com diversas barreiras, podem obstar à sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com os demais cidadãos. Texto de Cristina Vaz de Almeida [Coordenadora Serviço de Gestão de Produtos de Apoio]

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ese embora o artigo 26.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE afirmar que “A União reconhece e respeita o direito das pessoas com deficiência a beneficiarem de medidas destinadas a assegurar a sua autonomia, a sua integração social e profissional e a sua participação na vida da comunidade”, é certo que um em seis cidadãos da União Europeia (UE) é portador de uma deficiência mais ou menos profunda, representando cerca de oitenta milhões de pessoas que, com frequência, se veem impedidas de participar plenamente na sociedade e na economia devido a barreiras físicas e comportamentais. De acordo com o Centro Regional de Informação das Nações


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Unidas (UNRIC) cerca de 10% da população, ou seja, 650 milhões de pessoas, vivem com uma deficiência. “São consideradas a maior minoria do mundo1”. As principais causas das deficiências físicas estão relacionadas com acidentes de trânsito, acidentes de trabalho, devido principalmente à falta de condições de trabalho ou pela negligência dos trabalhadores quanto ao uso de equipamentos de proteção; podem ainda ser causadas por erros médicos, pela violência urbana, pela fome, desnutrição, entre outras. O caso da paralisia infantil deve-se frequentemente à falta de vacinação. Será que estas causas e consequências seriam evitáveis se as pessoas compreendessem melhor as consequências das suas ações, entendessem as mensagens e a extensão dos seus atos? Será que essa compreensão da envolvência tem na base um nível de literacia baixa, que as impediu de evitar ou de associar aos riscos? Pela análise realizada ao longo dos anos sobre as questões da literacia em saúde, e por teorias que se vêm reforçando na União Europeia, a problemática da deficiência está também relacionada com a baixa literacia e consequentemente com o incremento de problemas relacionados com a prevenção e com maior incidência de acidentes, tendo como efeito o aumento do número das pessoas com deficiência.

Nos casos de deficiência congénita, a literacia não terá um campo de atuação tão preciso, mas será certamente uma ferramenta útil de enquadramento e de compreensão para todos os envolvidos, sejam o próprio, a família, os profissionais de saúde e a própria comunidade. A questão da abrangência do sentido de «Acessibilidade» Definida pela Comissão Europeia, “Acessibilidade” significa que as pessoas com deficiência têm acesso, em condições de igualdade com os demais cidadãos, ao ambiente físico, aos transportes, aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação (TIC) e a outras instalações e serviços. A estratégia da União Europeia aponta para a intervenção na eliminação das barreiras às pessoas com deficiência. Neste sentido, a Comissão identificou oito grandes áreas de acção: acessibilidade, participação, igualdade, emprego, educação e formação, proteção social, saúde e ação externa. Apesar de a estratégia da CE apontar para o desenvolvimento das áreas da educação e formação e a literacia abranger este domínio, a UE fala das acessibilidades “ajuzante, isto é, a posteriori à deficiência”, quando ela já existe e não como forma de evitá-la. Talvez fosse útil acrescentar a esta definição, as questões de “implementação e desen-

volvimento de uma melhor literacia nas áreas da saúde e segurança” e da importância da educação e comunicação, com uma melhor adaptação dos processos e dos suportes de comunicação para melhorar a compreensão das pessoas sobre a sua envolvente, a fim de evitarem muitas vezes os acidentes que as conduzem a situações de deficiência. A “acessibilidade” é assim um conceito, pela sua natureza, posterior ao “estado de deficiência”, mas acreditamos que a literacia é de facto uma acessibilidade anterior, para uma maior compreensão do mundo em que vivemos e, por isso, compreendendo e prevenindo melhor o acidente e a deficiência adquirida. Sabemos, no entanto, que muitas destas acessibilidades estão apenas cumpridas num documento impresso e sem aplicabilidade real. Veja-se o caso dos sítios Web públicos na Europa dos 28, onde, em média, apenas 5% cumprem totalmente as normas de acessibilidade definidas para a internet, ou dos passeios, junto de ruas ou estradas que não possuem rampas de acesso, ou os automóveis que estacionam em cima dos passeios, ou a falta de acessos aos transportes públicos, ou aos multibancos, ou, segundo o Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC), no Reino Unido, um total de 75% das empresas (do índice FTSE) que estão cotadas na Bolsa de Londres e que “não

1. in 52010DC0636 – Comunicação da Comissão. Estratégia Europeia para a Deficiência 2010-2020: Compromisso renovado a favor de uma Europa sem barreiras.

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A Organização Mundial de Saúde (OMS) vem reforçar o conceito e definir a literacia em saúde como o conjunto de “competências cognitivas e sociais e a capacidade dos indivíduos para acederem, compreenderem e usarem informação de forma a que promovam e mantenham boa saúde” satisfazem os níveis mínimos de acesso à Internet, o que lhes causa prejuízos superiores a 147 milhões de dólares”. Pobreza, Baixa Literacia, Desemprego e Deficiência A Organização Mundial de Saúde (OMS) vem reforçar o conceito e definir a literacia em saúde como o conjunto de “competências cognitivas e sociais e a capacidade dos indivíduos para acederem, compreenderem e usarem informação de forma a que promovam e mantenham boa saúde. Compreender adequadamente o ambiente envolvente para se viver melhor em sociedade parece ser de facto a chave, conduzindo a uma reflexão em que as variáveis pobreza, baixa literacia, desemprego e deficiência poderão estar de facto inter-relacionadas e ter uma interligação numa relação de causa-efeito. Um documento redigido pelo Parlamento Europeu (PE Interligação entre a baixa literacia e outras áreas

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305.708 A5-0009/2002) sob a orientação da eurodeputada Marie-Thérèse Hermange, sobre a iliteracia na Europa e a exclusão social, relata que “A iliteracia provoca uma clivagem crescente entre os privilegiados e em relativa segurança e os desfavorecidos e marginalizados, que não têm acesso ao emprego e são afetados por uma insegurança financeira, um isolamento e uma não participação na vida social.” Ainda de acordo com este documento, de um ponto de vista económico, a iliteracia traduz-se em custos para as empresas e para a sua modernização: sobrecargas ligadas às taxas de acidentes graves, sobrecarga horária devido à necessidade de um enquadramento pessoal suplementar, com os efeitos da não produção de riqueza, ligada à ausência de um nível de qualificação adequado. Os adultos com literacia limitada gerem pior as suas doenças crónicas e são mais hospitalizados do que as pessoas com competências fortes de literacia em saúde. São algumas das conclusões do Institute of Medicine (IOM), Comité para a Literacia em Saúde, EUA, em 2006.

Segundo o Banco Mundial, 20% das pessoas mais pobres têm uma deficiência e, em geral, são consideradas como as mais desfavorecidas pelos membros da sua própria comunidade. Nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), de acordo com o seu Secretariado, a proporção das pessoas com deficiência é nitidamente mais elevada nos grupos com menos instrução. Voltamos a tirar algumas ilações sobre este quádruplo constante que se repete e associa: baixa literacia – pobreza – desemprego – deficiência. Um estudo muito completo realizado em 2009 sobre “A Dimensão Económica da Literacia em Portugal: Uma Análise”, refere que o défice de literacia gera níveis indesejáveis de desigualdade com consequências importantes, nomeadamente, na educação e na saúde. Também as mulheres são mais sujeitas a um índice maior de deficiência. A OCDE revela que a incidência da deficiência é mais elevada entre as mulheres do que entre os homens. “As mulheres com deficiência sofrem múltiplas desvantagens, incluindo a exclusão devido ao seu sexo e deficiência. As mulheres e raparigas com deficiência estão particularmente expostas a maus tratos. Um estudo realizado em Orissa (Índia), em 2004, mostra que quase todas as mulheres e raparigas com deficiência eram agredidas fisicamente em casa, 25% das mulheres com uma deficiência mental tinham sido violadas e


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6% das mulheres com deficiência haviam sido esterilizadas à força.” Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 1998, refere que a taxa de alfabetização mundial dos adultos com deficiência não excede os 3% e é de apenas 1% no caso das mulheres com deficiência. Também nos dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o número das pessoas com deficiência está a aumentar. Tudo isto porque se verifica um constante crescimento demográfico, além de haver uma forte influência dos avanços da medicina e o envelhecimento ser cada vez mais significativo, conduzindo a uma inversão da pirâmide etária, em particular nos países mais velhos, como os da Europa. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), nos países onde a esperança de vida é superior a 70 anos, cada indivíduo viverá com uma deficiência em média oito anos, correspondendo a 11,5% da sua existência. A Comissão Europeia refere também que “mais de um terço das pessoas com mais de 75 anos tem deficiências mais ou menos limitativas, com mais de 20% a serem consideravelmente afetadas, e que estes números deverão aumentar, à medida que a população da União Europeia envelhece.” Um estudo, publicado em março 2012, no British Medical Journal, descreve e evidencia que as pessoas que têm dificuldades em ler e compreender informação básica em saúde estão em grande

risco de morrer prematuramente. A pesquisa incidiu nos comportamentos de 7857 adultos mais velhos (mais de 52 anos) num estudo entre 2004 e 2005. As mortes foram registadas até 2009. Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, as pessoas com deficiência são todas aquelas com incapacidades prolongadas de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, as quais, em conjugação com diversas barreiras, podem obstar à sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com os demais cidadãos. Clareza e simplicidade na informação e assertividade • Como gerar um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo numa Europa de crescente problemática do envelhecimento, da pobreza, do desemprego e da deficiência? • Como ultrapassar as enormes barreiras em termos de acessibilidades para este conjunto de cidadãos? • Estarão os cidadãos conscientes do seu papel em termos de responsabilidade social e individual? • Estão os organismos da saúde e da segurança no trabalho concientes dos efeitos da problemática de uma baixa literacia? A economia dos Estados tem permitido soluções de apoio a posteriori às pessoas com deficiência, nomeadamente através dos sistemas de financiamento

pobreza

DEFICIÊNCIA baixa literacia

baixa instrução

da Segurança Social, colmatando de alguma forma a necessidade imediata de um produto de apoio para o indivíduo, mas deixando para trás algumas pertinentes questões relacionadas com a integração desse mesmo indivíduo na sociedade e com a sua maior aprendizagem e compreensão da vida em sociedade, a priori. A mudança deve passar pelo esforço conjunto das instituições da sociedade para criarem, desenvolverem e implementarem sistemas de incremento da literacia como forma de aumentarem não apenas a maior compreensão do indivíduo sobre a sociedade onde se enquadra, mas também do seu papel como cidadão responsável. A clareza na informação veiculada, a simplicidade na linguagem escrita e oral, a linguagem assertiva, a melhoria dos níveis de comunicação entre profissionais e entre estes e os seus públicos-alvo são alguns dos caminhos que têm demonstrado ter algum sucesso na melhoria dos níveis de literacia da população. Está provado que mesmo as pessoas com elevada literacia preferem textos mais simples (Doak).

Fonte: OCDE «A proporção das pessoas com deficiência é nitidamente mais elevada nos grupos com menos instrução»

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Fonte: Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC)

NÚMEROS

FATOS

80%

A maior percentagem de pessoas com deficiência vive nos países em desenvolvimento,

19%

Percentagem das pessoas menos instruídas que têm uma deficiência, em comparação com 11% das mais instruídas.

20%

Percentagem das pessoas mais pobres que têm uma deficiência e são consideradas como as mais desfavorecidas pelos membros da sua própria comunidade.

Legibilidade e Lecturabilidade para uma maior acessibilidade Quando por exemplo as pessoas não compreendem um texto tendem a saltar as palavras, colocando em risco a compreensão do mesmo. Assim, imagine-se que uma pessoa está a ler um rótulo sobre determinado produto tóxico e que não compreende nem o texto nem o seu risco. A sua falta de compreensão poderá colocá-la em risco e o acidente que poderá resultar pode transformá-la num cidadão com deficiência, engrossando a fileira dos mais de 650 milhões que já existem no mundo. Está provado que a capacidade que um indivíduo tem para ler ou analisar qualquer tipo de rótulo nutricional requer as mesmas competências analíticas e concetuais que são necessárias para compreender e cumprir instruções médicas. Estas competências constituem a literacia em saúde e incluem a compreensão e aplicação de palavras (prosa), números (numeracia) e formulários (documentação), revela o Newest Vital Sign, um teste que usa um rótulo de gelado para medir a literacia. Este teste foi 110

traduzido para português por Vítor Jesus, Docente da Faculdade Medicina Dentária de Lisboa. Apesar de conseguirem descodificar palavras, frases e até textos, muitas pessoas não conseguem compreender a informação escrita contida em livros, jornais, folhetos, etc. Além disto, apesar de conhecerem os números, grande parte das pessoas não consegue fazer cálculos simples. Dois aspetos centrais em literacia são os conceitos de: legibilidade (ou legibility) e de lecturabilidade (readability). A legibilidade relaciona-se com a perceção visual e a lecturabilidade com a compreensão intelectual do texto. Autores como Gerrit Ovink definiram a legibilidade como “a facilidade e precisão com a qual o leitor percebe os textos impressos”. A leitura eficiente de uma página impressa requer que o leitor converta, o mais rápido possível, símbolos tipográficos ou carateres, em palavras. A legibilidade corresponde à facilidade em realizar esta descodificação e a capacidade de identificar as letras, distinguindo umas das outras. É uma propriedade intrínseca da letra, que lhe permite ser percebida como a

letra que é. No entanto não basta somente descodificar, sendo necessário que o leitor a contextualize na sua leitura. Quando se fala de lecturabilidade (ou apreensibilidade) esta muitas vezes é definida como a capacidade que um texto tem de suscitar apetência para ser lido, de atrair o leitor, mas acima de tudo de facilitar a compreensão do seu conteúdo. Os números têm crescido e em 2006 o Institute of Medicine (IOM) e o Comité para a Literacia em Saúde referiram que mais de noventa milhões de adultos não tinham competências em literacia para aceder aos sistemas de saúde. Destacavam ainda que apenas 12% de adultos tinham proficiência em literacia em saúde e, de acordo com o National Assessment of Adult Literacy (NALS), “nove em dez adultos poderão ter falta de competências para gerir a sua saúde e prevenir a doença”. O relatório destacou ainda o facto de haver um desnível entre o nível de informação em saúde e os níveis de competência de leitura do público, assim como um desnível entre as competências de comunicação deste público com o dos profissionais de saúde. Capacitar as pessoas A capacitação torna o indivíduo mais autónomo, mais zeloso e capaz de autocuidados, assim como a prestação dos profissionais ganha credibilidade e eficiência e o próprio sistema de saúde diminui os seus custos. Capacitar significa empoderar, atribuir também a responsabili-


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dade de decisão ao cidadão, depois de o dotar de competências que lhe permitirão, mediante o livre arbítrio e uma racionalidade coerente, decidir qual é o melhor passo a seguir, qual o caminho a percorrer. Neste processo, a literacia e o aumento da capacidade do indivíduo se integrar melhor na sociedade, e especialmente, compreendê-la, é de facto uma consistente acessibilidade para uma vida mais saudável e segura. Ter uma maior literacia permite uma melhor compreensão das questões de saúde e segurança no trabalho, da vida em sociedade, onde é possível, pela compreensão do enquadramento, diminuir-se o nível dos erros e da falta de entendimento que, em tantos casos, levam ao acidente e a situações de deficiência. Literacia também se coloca ao nível dos profissionais de saúde. Não apenas para se seguirem mais adequadamente as regras de segurança na gestão da saúde dos doentes, mas para compreenderem essas regras de forma clara e inequívoca. Muitas vezes os documentos técnicos que têm de passar pela leitura de vários profissionais não estão adaptados em termos de linguagem. Nestes casos, está provado que quem não compreende tende a saltar as palavras, acabando por não entender de forma global o significado e a importância do conteúdo de documentos, em particular os que estão associados à segurança do doente.(Doak). O Plano Nacional de Saúde de Portugal de 2011-2016 vem realçar que (…) «não basta haver po-

Apesar de conseguirem descodificar palavras, frases e até textos, muitas pessoas não conseguem compreender a informação escrita contida em livros, jornais, folhetos, etc.” líticas articuladas para promoção dos cuidados de saúde. É igualmente necessário promover a literacia em saúde, ou seja, criar as condições para que os cidadãos percebam integralmente as indicações que lhes são dadas pelos profissionais e que, por esse meio, se tornem cada vez mais conscientes das suas obrigações e dos seus deveres e dando, assim, consistência a uma cidadania em saúde. Nesta referência, talvez tivesse valido a pena introduzir que também existe responsabilidade por parte dos próprios profissionais que “dão as indicações”, pois também a forma como estes comunicam e tornam mais ou menos acessível os conteúdos da informação podem contribuir para uma grande parte do sucesso da diminuição dos riscos em saúde, da melhor saúde da população e da menor probabilidade de um cidadão se tornar uma pessoa com deficiência. Veja-se, por exemplo, a incompreensão sobre a toma de medicamentos, ou os erros que acontecem nas mudanças de turno nos hospitais. Este último problema foi abordado no documento “Nine life saving patient safety solutions” da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2005, pela Joint Commission

International Center for Patient Safety, em que um destes nove desafios e soluções diz respeito à comunicação, no caso particular de transferência de turno. A importância da comunicação é realçada nas dez áreas de intervenção identificadas pelo “Desafio global para a segurança do paciente” (The Global Patient Safety Challenge) pela OMS. As questões de literacia colocam-se também ao nível dos determinantes da saúde. Sabemos que existem comportamentos e estilos de vida que aumentam a probabilidade do aparecimento de determinadas doenças ou acidentes. É o conjunto de fatores pessoais, sociais, económicos e ambientais que influenciam o estado de saúde do indivíduo. O que torna umas pessoas saudáveis e outras não? Como podemos criar uma sociedade onde todas as pessoas têm a oportunidade de viver mais tempo de forma saudável e onde o risco de acidentes que podem conduzir à deficiência pode ser mais controlado? Para o desenvolvimento da saúde da população é importante trabalhar os determinantes no tradicional cuidado em saúde, mas também em setores 111


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Capacitar significa empoderar, atribuir também a responsabilidade de decisão ao cidadão, depois de o dotar de competências que lhe permitirão, mediante o livre arbítrio e uma racionalidade coerente, decidir qual é o melhor passo a seguir, qual o caminho a percorrer” como a educação, transportes, agricultura, ambiente, urbanismo, entre outros. Algumas políticas implicam a população na sua globalidade durante um grande período, e ajudam a mudar comportamentos. É importante compreender para agir preventivamente. E quanto mais cedo, melhor, quando no papel da educação para a saúde a literacia tem um destaque importante. Deficiência e Eficiência O Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC) informa que milhares de pessoas com deficiência são bem-sucedidas como pequenos empresários, nos dados do Ministério do Trabalho dos Estados Unidos. O censo de 1990 revelou que a percentagem de pessoas com deficiência que trabalham como independentes ou têm experiência na gestão de uma pequena empresa (12,2%) é superior à das pessoas sem deficiência na mesma situação (7,8%). A Associação Salvador organizou em 2012 um workshop 112

intitulado “Aumente o Seu Potencial” onde descreveu sucintamente as caraterísticas para uma melhor integração social e no domínio do trabalho. Estas sessões demonstraram que embora as qualificações sejam importantes, as atitudes são, de facto, determinantes. Além desta, as outras assentam em ser proativo, tomar a iniciativa, ter pensamento positivo, valorizar-se e apostar na formação. Estas são as palavras-chave sempre que a meta é conseguir emprego. E é esta convicção que está embebida nesta associação cuja missão é promover a integração de pessoas com deficiência motora e promover a sua qualidade de vida. Rogério Roberto, um cego que fez o curso de Direito no Brasil, afirmou em junho de 2013: “Há pessoas que têm deficiência e acham que não têm capacidade. Eu queria dizer a cada uma delas: todos nós podemos, só tem de acreditar em si. Não tem de precisar sempre das outras pessoas. Tem de pensar: “Eu sou capaz, vou lá e vou fazer”. A edi-

ção digital onde a sua entrevista é publicada sublinha que “para Rogério, aquilo que os olhos não veem, o coração acredita. A inteligência realiza. A julgar pela força de vontade, o horizonte de Rogério vai mesmo muito além do que qualquer vista pode alcançar”. (www.jsconcursos. net/2013/ 06/casos-de-sucesso-diante-da-deficiencia.html) A “deficiência” pode então gerar “eficiência”? Ou serão as caraterísticas genéticas e sociais onde a pessoa se insere que a estimulam a uma melhor adaptação e superação dos obstáculos? Será que a deficiência confere maior resiliência, motivação e necessidade de ultrapassar e de fazer frente aos desafios e obstáculos? Parece-nos que para além das caraterísticas pessoais, o ambiente externo tem de ser minimamente propício, assim como as estruturas políticas, económicas e sociais. Mas a capacidade de compreender e viver em sociedade é uma ferramenta importante nessa superação, e aí o trabalho e empenho para a melhoria dos modelos comunicacionais têm de se tornar uma preocupação das entidades decisoras, pois este processo poderá melhorar o nível de compreensão da população em termos gerais e aumentar o seu nível de literacia diminuindo o risco de acidentes e, consequentemente, da pessoa com deficiência. A literacia é uma verdadeira acessibilidade a priori. Associado a este investimento, a preparação dos profissio-


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nais, em particular os das áreas da saúde, para a utilização de linguagem mais acessível e das técnicas da assertividade e de outras que fazem parte do incremento da literacia da população, conduz a uma significativa melhoria no entendimento das questões relacionadas com a saúde da população. Com a promoção da literacia em saúde pretende-se que a informação e educação em saúde possam conduzir a uma maior capacitação (empoderamento) dos cidadãos para a gestão e promoção da sua própria saúde, sendo este fator promotor de uma menor taxa de acidentes e consequentemente de um controlo da deficiência adquirida, refere Anders Olauson, presidente do Fórum Europeu dos Doentes. Anders Olauson reflete ainda que através da melhor compreensão e assimilação da informação em saúde, obtém-se resultados: no plano social (mais equidade no acesso à informação e maior qualidade de vida); na saúde (redução das causas evitáveis de morbilidade) e em estilos de vida saudáveis quanto a determinantes da saúde. No relatório sobre a Cidadania da União Europeia de 2013, onde são anunciadas as 12 novas ações destinadas a reforçar os direitos dos cidadãos, o ponto 3 está diretamente relacionado com as pessoas com deficiência, referindo o seguinte: «Proteger as pessoas mais vulneráveis na UE: Conceber um cartão de pessoa com deficiência da UE que deverá ser reconhecido mutua-

mente em toda a UE, de forma a garantir que os oitenta milhões de pessoas deficientes também possam tirar partido das vantagens inerentes aos cartões de pessoas com deficiência nacionais (por exemplo, acesso aos transportes, turismo, cultura e lazer) ao exercerem o seu direito à livre circulação. Há um longo caminho a percorrer. A acessibilidade também assumida como um desenvolvimento de uma maior literacia e de uma abertura ao conhecimento e à compreensão da vivência em sociedade, pode ser uma ferramenta importante para não se engrossarem os números da deficiência, que provavelmente nesta altura já terão ultrapassado os 650 milhões de pessoas, neste planeta ainda pouco ajustado de uma forma global.

DEFICIÊNCIA

EFICIÊNCIA

Literacia capacitação saúde da equidade população

estilos de vida saudáveis

BIBLIOGRAFIA British Medical Journal, Estudo publicado em março de 2012 Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC) http://www.unric.org/pt/ actualidade/5456 Comunicação em saúde e a segurança do doente: problemas e desafios – Margarida Custódio dos Santos*, Ana Grilo, Graça Andrade, Teresa Guimarães, Ana Gomes, Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, Lisboa, Portugal Doak. Cecilia, Doak. Leonard, Root.Jane, Teaching People with low literacy skills, 1996 Harvard School of Public Health, Department of Society, Human Development, & Health Rima E. Rudd, Sc.D. Health Literacy Studies Institute of Medicine. 2004. Health Literacy: A Prescription to End Confusion. National Academies Press: Washington, DC. Improving Patient Safety Through Informed Consent for Patients With Limited Health Literacy http://www.qualityforum.org/pdf/reports/informed_consent.pdf Plain Language Action and Information Network. What Is Plain Language? www.plainlanguage.gov Public Law 102-73. The National Literacy Act of 1991 Reducing health inequalities - Fair Society http://www.instituteofhealthequity.org/Content/ FileManager/pdf/key-messages-fshl.pdf The Global Patient Safety Challenge U.S. Department of Health and Human Services. 2000. Healthy People 2010. Washington, DC: U.S. Government Printing Office. Youtube - http://www.youtube.com/watch?v=b8rdofYXHQo

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O PLANO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL DE LISBOA (2013- 2015) Uma oportunidade de ação coletiva, concertada e integrada na cidade A Rede Social de Lisboa, estrutura de parceria que procura articular a intervenção social dos diferentes agentes na cidade de Lisboa, definiu o Plano de Desenvolvimento Social para a cidade, para o período de 2013 a 2015, fruto dum processo de planeamento participado, potenciando sinergias, competências e recursos. Texto de Ana Bandeira [Representante da SCML na Comissão Executiva da Rede Social de Lisboa]

E

m Portugal, as experiências de desenvolvimento local como metodologia de intervenção territorial participada, desenvolveram-se desde a década de sessenta do séc. xx, assumindo caraterísticas muito diversas mas sempre ancoradas no trabalho em parceria.

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Nas décadas de oitenta e noventa, no contexto de Programas Europeus e Nacionais, foram sendo criadas, por todo o território nacional, redes de parceria, maioritariamente de caráter informal. Em simultâneo, foram-se multiplicando medidas de política de caráter territorial, nomea-

damente Rendimento Mínimo Garantido, Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, etc., dando lugar a uma multiplicidade de redes de parceria, Decorrente destas experiências, foram-se ensaiando novos modelos de relação entre o Estado central, o poder local e as instituições de solidariedade


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social, abrindo caminho para a concertação na ação social. De forma a reconhecer publicamente estas redes de solidariedade informais, a fortalecer a sua capacidade de intervenção, alicerçada nos princípios da participação e da subsidiariedade, e numa tentativa de organizar as múltiplas redes de parceria local, de forma a dar coerência estratégica ao conjunto de iniciativas dos parceiros, incluindo o Estado central e local, surgiu em 1997 (RCM Nº 197/97 de 18 de novembro) o programa Rede Social que assumiu inicialmente um caráter experimental. Em 2006, a Rede Social passa a ser uma estrutura orgânica com estatuto definido, tornando-se um dispositivo de planeamento e execução de políticas públicas participadas, com a ambição de se tornar a “parceria das parcerias”, procurando conciliar uma estrutura top-down de planeamento de políticas sociais (social policy) com uma perspetiva bottom-up, de valorização de uma diversidade de práticas (social delivery).

Para a concretização destes objetivos, foram explicitados os seguintes princípios de ação: • Subsidiariedade • Integração • Articulação • Participação • Inovação • Igualdade de género A Rede Social de Lisboa, materializada desde abril de 2006, na constituição do Conselho Local de Ação Social da Cidade de Lisboa (CLAS-Lx), surgiu da iniciativa e concertação de três entidades – a Câmara Municipal de Lisboa, a Santa Casa da

Para o efeito, foram definidos como objetivos do programa Rede Social: • Desenvolver uma parceria efetiva e dinâmica que articule a intervenção social dos diferentes agentes locais • Promover o planeamento integrado e sistemático, potenciando sinergias, competências e recursos a nível local • Garantir uma maior eficácia do conjunto de respostas sociais nos concelhos e freguesias

Misericórdia e o Centro Distrital de Lisboa do ISS, IP, instituindo uma colaboração de caráter regular e permanente para implementação da Rede Social em Lisboa. Para o seu funcionamento, a Comissão Tripartida, constituída pelas três entidades referidas, assumiu a coordenação, presidindo ao Plenário, órgão deliberativo ao nível da cidade, do qual fazem parte 341 entidades parceiras, entre juntas de

freguesia, organismos públicos, IPSS, ONG e outras entidades que atuam no território e foram ainda constituídas Comissões Sociais de Freguesia, redes locais integradas na Rede Social que assumem de forma operativa a intervenção no território. O Plano de Desenvolvimento Social é o instrumento de planeamento da Rede Social que formaliza o conjunto de opções e prioridades de intervenção para o universo de interventores e atores sociais, procurando articular todos os patamares de planeamento, decisão e opera-

O Plano de Desenvolvimento Social é o instrumento de planeamento da rede social que formaliza o conjunto de opções e prioridades de intervenção para o universo de interventores e atores sociais, procurando articular todos os patamares de planeamento, decisão e operacionalização, conciliando metodologias bottom-up e top-down” cionalização, conciliando metodologias bottom-up e top-down. O Plano de Desenvolvimento de Lisboa (adiante designado por PDS) foi aprovado pelo Conselho Local de Ação Social de Lisboa em 28 de junho de 2012 e entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2013 e terá a sua vigência até 2015. Na sua visão de cidade LISBOA CIDADE DA COESÃO SOCIAL, o PDS procura formular desafios globais de evolução115


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PLANO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL 2013_2015 D E SA F I O S E ST R AT ÉG I CO S

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VISÃO

LISBOA TERRITÓRIO DA CIDADANIA ORGANIZACIONAL

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LISBOA CIDADE INCLUSIVA

“Lisboa Cidade da Coesão Social”

LISBOA CIDADE SAUDÁVEL LISBOA CIDADE DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL LISBOA CIDADE DAS REDES DE INOVAÇÃO SOCIAL

produzida numa perspetiva de desenvolvimento social prospetivo e baseado em desafios de inovação, transformação e qualificação. Para a concretização desta visão foram formulados cinco desafios estratégicos, explicitando as opções para o desenvolvimento social no planeamento de políticas de cidade e simultaneamente linhas orientadoras para a ação, associando a cada desafio um conjunto de ações suscetíveis de produzir impacte na concretização da visão. Explicita-se o que se pretende com cada um dos desafios Desafio 1: LISBOA TERRITÓRIO DA CIDADANIAORGANIZACIONAL,pre-

tende-se consensualizar princípios, normas e procedimentos coerentes para a intervenção social na cidade, que funcione como matriz comum a todas as entidades que intervêm numa mesma área de atividade. Desafio 2: LISBOA CIDADE INCLUSIVA pretende-se contribuir para uma política territorial integrada de equipamentos e respostas sociais. Desafio 3: LISBOA CIDADE SAUDÁVEL, pretende-se contribuir para melhorar o acesso à saúde, enfatizando a abordagem intersetorial na saúde, otimizando o trabalho em rede, identificar intervenções mais efetivas para a promoção de saúde, reforçando

a apropriação de responsabilidades a nível local. Desafio 4: LISBOA CIDADE DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL, pretende-se orientar a intervenção social da cidade de Lisboa para modelos inovadores de inserção pela criação de oportunidades de rendimento e autonomização social Desafio 5: CIDADE DAS REDES DE INOVAÇÃO SOCIAL, pretende-se desenvolver a cooperação institucional entre as universidades, os centros de investigação e a Rede Social de Lisboa, potenciando um sistema integrado de divulgação, investigação e inovação na área social.

1. LISBOA TERRITÓRIO DA CIDADANIA ORGANIZACIONAL Carta de Princípios para a Intervenção Social de Lisboa

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> > < < <

Definição do modelo de intervenção integrada para a área da violência Construção de um modelo de articulação do voluntariado na cidade Desenvolvimento do modelo de intervenção integrada para a PSA Elaboração de Carta Estratégica para as Crianças Definição de modelos simplex para idosos


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2. LISBOA CIDADE INCLUSIVA

Política territorial integrada de equipamentos e respostas sociais

> > > > > < < <

Garantir a existência da Carta Social para Lisboa georreferenciada e atualizada enquanto instrumento de gestão política e de concertação Elaboração da proposta de reorganização progressiva dos diferentes serviços, de acordo com o novo mapa administrativo da cidade – coincidência de áreas de intervenção Organização de um dossier técnico com propostas e recomendações sobre tipologias standard Ações de formação através da Bolsa de Formadores do ACIDI, IP sobre a temática do diálogo intercultural aos membros do CLAS para disseminação junto das populações imigrantes e das populações envolventes Elaboração de uma Carta de Acessibilidade Universal aos equipamentos sociais da cidade Desenvolvimento da proposta de reorganização de respostas para PSA Avaliação e disseminação do Projeto “Transporte Solidário” – transporte gratuito para os idosos Avaliação e disseminação do Projeto “Acolhimento/Apoio a Alunos Estrangeiros”

3. LISBOA CIDADE SAUDÁVEL Plano de acesso à Saúde em Lisboa Política integrada de intervenção para os comportamentos aditivos

A metodologia de implementação das ações, associadas aos desafios, concretiza-se pela constituição de grupos de missão com mandatos claros de elaboração de propostas e

> > > > > > >

Definição do modelo de atendimento, acompanhamento e encaminhamento das situações de saúde mental Criação de Modelo Descentralizado para rendibilização da Rede de infraestruturas de equipamentos sociais, saúde, desporto e outros Avaliar a componente de saúde nos projetos de intervenção comunitária Implementar a rede de cuidados continuados Elaboração de uma Carta de Acessibilidade Universal aos equipamentos sociais da cidade Promover e divulgar medidas conducentes à prevenção de hábitos alimentares de risco, incentivando estilos de vida saudáveis Plano de ação articulado para os comportamentos aditivos

recomendações. Cada grupo de missão é coordenado por uma entidade que, com um conjunto de instituições parceiras e não parceiras do CLAS-Lx, identificará práticas de re-

ferência que, após um período de maturação, desenvolvimento e demonstração, poderão ser objeto de incorporação nas políticas de cidade.

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4. LISBOA CIDADE DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL Constituição de um cluster de empreendedorismo social

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Articular as respostas sociais com a rede de apoios institucionais e financeiros – programas específicos – microcrédito, instituições financeiras e mutualidades

> <

Lançar um projeto âncora de empreendedorismo social à escala da cidade, com dimensão e visibilidade associado à marca Lisboa. “Incubadora Social de Lisboa”

Fomentar o “marketing” social

5. LISBOA CIDADE DAS REDES DE INOVAÇÃO SOCIAL Plataforma que integre as necessidades de investigação em áreas de inovação social, divulgando o conhecimento

> > < < <

Elaboração do referencial estratégico para monitorização do desenvolvimento social de Lisboa de suporte à visão do PDS Formalização de redes interinstitucionais de investigação e intervenção para desenvolvimento de soluções de inovação social para a área do PSA Elaboração de planos de formação para diferentes agentes: PSA; envelhecimento e crianças Avaliação e disseminação do Projeto “Dê pra Troca” – livros escolares Avaliação e disseminação do Projeto “Desafios Inclusivos” – iniciativas intergeracionais numa lógica de cidadania ativa

A metodologia de implementação das ações, associadas aos desafios, concretiza-se pela constituição de Grupos de Missão com mandatos claros de elaboração de propostas e recomendações” Em paralelo, também de caráter transversal à cidade, a Rede Social implementou estruturas de parceria setoriais que procuram responder às questões da Pessoa Sem Abrigo, Envelhecimento e Crianças, que se focalizam ao nível da capacitação, qualificação e au118

mento da eficiência da rede de respostas e serviços existentes para que estes produzam impactes mais significativos para a problemática identificada, planeando e criando sinergias entre as instituições. Para o efeito, estas estruturas de parceria construíram planos

de cidade, nos quais se definiram eixos de atuação, procurando integrar a capacidade institucional existente criando oportunidades de eficiência e inovação coletivas. A Plataforma Pessoa Sem Abrigo (Plataforma PSA) para a cidade de Lisboa, integrou um conjunto de entidades públicas e privadas, com intervenção direta ou indireta junto da pessoa sem abrigo (PSA), trabalhando em estreita articulação com o CLAS de Lisboa. Tendo em conta o objetivo estratégico de implementar um novo modelo de interven-


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ção que centre a sua ação na pessoa sem abrigo, uma parceria interinstitucional tem vindo a desenvolver a sua atividade em torno dos três eixos de intervenção: • Reorganizar e otimizar a rede de equipamentos e serviços • Implementar um modelo de intervenção integrada na cidade de Lisboa • Qualificar a intervenção A Proposta de Plano de Intervenção para a Área do Envelhecimento para a cidade de Lisboa visa a prossecução de uma ação territorializada que envolva e mobilize os parceiros locais para que de uma forma sustentada unam esforços e acertem iniciativas que acrescentem valor nesta área. Para levar a bom porto a implementação deste plano foi constituída uma plataforma interinstitucional – Plataforma para a Área do Envelhecimento (PAE). A intervenção proposta organiza-se em três eixos: • Conhecimento, sensibilização e educação • (Re)Qualificação das respostas/serviços • Inovação da intervenção Ao nível das Comissões Sociais de Freguesia, que desenvolvem os seus planos de ação, respondendo aos problemas sentidos pela comunidade, procura-se estimular a identificação de boas práticas, práticas de excelência desenvolvidas nas suas interven-

A abordagem integrada de base territorial introduz um inegável valor acrescentado, pelas dinâmicas que se estimulam de conhecimento, cooperação e coordenação, contribuindo para uma maior coesão territorial” ções suscetíveis de replicação e com potencial de contribuir para a formulação de propostas de política para a cidade. A proximidade do terreno permite também a identificação das necessidades sociais, diagnosticando a sua prevalência ou relevância, sinalizando igualmente as necessidades emergentes, por via de novas configurações dos problemas sociais ou da sua prioridade. O PDS, que formaliza a progressiva contratualização das diferentes intervenções e respostas, é um instrumento flexível assente num processo contínuo de avaliação, que permite um ajustamento contínuo entre novas necessidades identificadas, oportunidades entretanto disponíveis, criando ligações e interseções entre as práticas no terreno e as políticas de cidade, numa lógica de replaneamento contínuo. De forma a atingir este propósito, é fundamental a participação ativa dos parceiros, em todos os níveis de decisão e participação, de forma a integrar a intencionalidade estratégica explicitada no PDS, nas suas intervenções.

Para que a rede possa cumprir o seu desígnio de uma intervenção multiescala na cidade é fundamental aproximar os parceiros nos diferentes níveis territoriais, para uma cultura comum orientada para a ação. A abordagem integrada de base territorial introduz um inegável valor acrescentado, pelas dinâmicas que se estimulam de conhecimento, cooperação e coordenação, contribuindo para uma maior coesão territorial: o reforço da inteligência geográfica de políticas públicas, novos processos de dinamização de atores e mecanismos de decisão.

BIBLIOGRAFIA Plano de Desenvolvimento Social de Lisboa 2013 – 2015 (junho de 2012) Projecto Rede em Prática – Relatório Final de Avaliação (setembro 2012), Coordenação científica: Rui Godinho e José Manuel Henriques, IESE – Instituto de Estudos Sociais e Económicos

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Vamos O ajudar a manter a rua limpa O Centro de Promoção Social (CPS) da Alta de Lisboa é um Estabelecimento de Infância, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, situado na Alta de Lisboa, freguesia de Santa Clara. Apesar de implantado numa zona muito atrativa, do ponto de vista arquitetónico e paisagístico, este estabelecimento debatia-se, diariamente, com uma realidade desagradável, considerada como uma questão de saúde pública. Texto de Mafalda Pacheco [Diretora do Centro de Promoção Social da Alta de Lisboa]

1 e 2. Fachada do Centro de Promoção Social da Alta de Lisboa

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Centro de Promoção Social (CPS) da Alta de Lisboa é um Estabelecimento de Infância, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, situado na Alta de Lisboa, freguesia de Santa Clara. Apesar de implantado numa zona muito atrativa, do ponto de vista arquitetónico e paisagístico, este estabelecimento debatia-se, diariamente, com uma realidade desagradável, considerada como uma questão de saúde pública. A população via-se confrontada com uma prática incómoda, mas recorrente: muitas pessoas passeavam os seus cães, deixando os seus dejetos espalhados pelos passeios, demonstrando um completo desrespeito pelo ambiente e pela qualidade de vida desta comunidade. No decurso de algumas conversas mantidas com as crianças das duas salas de Jardim de Infância, facilmente se constatou que, mesmo para aquelas que têm animais, a convivência com esta situação é desagradável, tendo uma delas verbalizado que gosta de passear o seu cão, “mas há muito cocó no chão”. No dia 4 de outubro comemora-se o Dia Mundial do Animal. Considerando que as crianças, através das suas ações, conseguem contribuir para que os

Cidadania (do latim, civitas, “cidade”) é o conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive. (in Wikipedia)


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adultos reflitam e corrijam determinadas atitudes consideradas desadequadas para a vivência em sociedade, este ano, no CPS, decidiu-se aproveitar esta efeméride e realizar uma ação de sensibilização que ajudasse a erradicar este tipo de comportamentos. Estava encontrado o mote para esta ação: Ajudar a manter limpos os passeios junto à nossa escola. Planearam construir alguns cartazes que alertassem para esta situação, identificando, igualmente, algumas estratégias que ajudassem a combatê-la. Nesse sentido, foram realizados vários cartazes nos quais se incluíram frases, fotos e desenhos alusivos a esta temática, assim como sugestões para ultrapassar este problema, nomeadamente o recurso ao saco de plástico que cada um dos donos dos animais deveria transportar consigo para evitar que os dejetos do seu cão permanecessem no passeio. De forma a ajudar a pôr em prática estas propostas, alguns cartazes continham um reci-

piente onde se disponibilizaram sacos de plástico, próprios para este efeito. Quando finalmente chegou o “Dia do Animal”, uma das atividades realizadas foi a montagem dos cartazes no gradeamento do estabelecimento. Enquanto se procedia à sua distribuição, tentando dar a máxima visibilidade aos desejos manifestados por esta comunidade escolar, as crianças iam oferecendo sacos de plástico aos transeuntes que por ali passavam acompanhados dos seus cães. Inicialmente, à medida que iam passando, as pessoas demonstravam um misto de surpresa e de satisfação por se estarem a desenvolver alguns esforços no sentido de se acabar com um problema com esta gravidade. Recebiam os sacos de plástico das mãos das crianças com um sorriso tímido, deixando transparecer alguma incerteza quanto ao sucesso desta operação. A equipa do CPS, envolvida nesta acção por lhe reconhecer o mérito, considerava que neste dia seria dado o primeiro de muitos passos necessários para conseguir sensibilizar esta comunidade para a adoção de comportamentos cívicos. Pensava-se que, após a surpresa inicial de quem obser-

va as crianças a transmitir aos adultos as suas preocupações e a dar-lhes sugestões de boas práticas, estes comportamentos desadequados se perpetuassem no tempo, conduzindo a novas ações de sensibilização na semana seguinte. Todavia, foi com alegria que se constatou que, após o fim de semana, o passeio continuava limpo. Passada uma semana sobre a comemoração deste evento, o respeito pelo espaço público mantém-se: os cartazes continuam afixados sem que alguém os tenha vandalizado e os passeios continuam limpos. Conseguiu-se, através de uma ação dinamizada com um grupo de crianças, fazer que os adultos refletissem sobre os seus comportamentos e os alterassem. As crianças foram, afinal, o motor de uma mudança que se previa difícil de se verificar mas que, porque elas nos conseguem mostrar que, mesmo com pequenos gestos podemos construir algo grandioso, a nossa rua está, desde a passada semana com outra imagem, reflexo de uma atitude mais atenta e, seguramente, mais cívica. E todos ficaram a ganhar com esta mudança.

3. Distribuição de sacos na rua 4 e 5. Cartazes da ação afixados no CPS

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SAÚDE PRÓXIMA

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Um programa da Santa Casa concebido a pensar nos cidadãos Abordar a cidadania é fundamental para todos, pois é essencial para a vida em comunidade. Cidadania é um conceito que tem evoluído ao longo da História da Humanidade e torna-se imperativo entender o seu significado e o que representa. Atenta à importância deste conceito, ao longo da sua história a SCML tem trabalhado e participado ativamente, envolvendo-se com a comunidade. Foi neste sentido que em 2012 foi criado o Programa Saúde Mais Próxima. Texto de Luís Gardete Correia e Joana Pinto Ribeiro

[Presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, Enfermeira do Programa Saúde Mais Próxima_SCML, Direção Saúde]

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ste programa, surgiu da necessidade de sensibilizar as pessoas para a importância da vigilância periódica do seu estado de saúde, promovendo a adoção de hábitos de vida saudáveis. Deste modo, a SCML investe na prevenção e na deteção precoce de alterações de saúde.

As equipas de profissionais de saúde envolvidos neste projeto têm por objetivo o aumento da informação e conhecimento da população sobre patologias crónicas frequentes na população, através da promoção da saúde, sensibilização para hábitos de vida saudáveis e prevenção de comportamentos de risco.

municipais, jardins da cidade, entre outros. Durante as ações de sensibilização tem-se verificado uma crescente preocupação da população pelo seu estado de saúde, dirigindo-se com regularidade a esta equipa para o controlo de alguns parâmetros, tais como peso, tensão arterial, glicemia, entre outros.

A vertente Saúde com Qualidade tem como objetivo principal o seguimento/acompanhamento dos casos de alteração de saúde detetados”

Este percurso tem permitido o crescimento constante do PSMP e o seu desenvolvimento de acordo com as necessidades detetadas pela equipa, apresentando-se neste momento, as seguintes vertentes: > Unidades Temáticas; > Saúde Juvenil; > Saber Saúde (Infantil, Adulto e Formação); > Saúde Eventos; > Saúde com Qualidade; > Saúde em Parceria. Na vertente Unidades Temáticas realizam-se ações de rastreio e de sensibilização sobre as patologias crónicas que afetam uma maior percentagem da população portuguesa. Os seus objetivos passam pela promoção de hábitos de vida saudáveis, promoção da saúde e prevenção da doença. Assim, ao detetar-se alguma alteração de saúde

Este programa enquadra-se nos princípios presentes no Plano Nacional de Saúde 2012-2016 que defende que Cidadania em Saúde engloba: > Promoção, desenvolvimento e partilha de conhecimento, no sentido do desenvolvimento da literacia em saúde; > Proatividade e controlo para capacitar o cidadão para escolhas mais informadas; > Responsabilizar e promover a autonomia no intuito da participação ativa e empowerment do cidadão. 124

Ao longo do seu desenvolvimento, o Programa Saúde Mais Próxima (PSMP) tem detetado alterações de saúde, encaminhado para o médico assistente e realizado o seguimento destas situações. Por outro lado, a equipa tem-se focado nos ensinos direcionados e individualizados que contribuem para a literacia, capacitação individual e empowerment da população. Em todas as vertentes do PSMP pretende-se ir ao encontro da população de Lisboa, percorrendo os bairros históricos e


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é objetivo desta equipa o encaminhamento para o médico assistente e fazer o seguimento da mesma. As campanhas de sensibilização já realizadas foram no âmbito das doenças respiratórias, obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes, osteoporose e, mais recentemente, cancro da pele. Estas

os parceiros da comunidade constituem um forte elemento para motivar as pessoas a procurarem a informação do seu estado de saúde, devolvendo às forças vivas locais o seu papel ativo junto da sua população”

foram sempre realizadas com o apoio de sociedades científicas especializadas. Por outro lado, verificou-se a necessidade de criar uma vertente especial, direcionada para a população vulnerável (por exemplo, sem abrigo), que se encontra em fase experimental. Esta última pretende realizar o levantamento de necessidades para poder desenvolver uma resposta eficaz para esta população. Lançada em setembro de 2013, a vertente Saúde Juvenil pretende realizar rastreios gratuitos de saúde (oral, visual, auditivo, nutricional, entre outros) a todas as crianças e jovens, até aos 18 anos, que se dirijam a esta equipa, sempre com a autorização do seu encarregado de educação. Tem também por objetivos a sensibilização para um crescimento saudável atra-

vés de intervenções educativas junto de escolas e nas diferentes freguesias da cidade. Por fim, e tal como a vertente Unidades Temáticas, detetando-se alterações de saúde as crianças são encaminhadas para os parceiros de cuidados de saúde (centros de saúde, unidades de saúde, etc.), existindo uma articulação entre estes e a equipa do PSMP. O Saber Saúde foi criado devido a uma necessidade crescente detetada na vertente formativa e informativa. Assim, através de intervenções educativas devidamente preparadas e planeadas, a equipa vai ao encontro, quer quando solicitada quer quando proposto, a fim de informar as pessoas para hábitos de vida saudáveis e da importância da prevenção. Por outro lado, a equipa preocupa-se também com a sua própria formação bem

como a de futuros profissionais, através da realização de formação contínua e da disponibilidade para receber estudantes das diversas profissões que compõem uma equipa multidisciplinar de saúde. É também esta vertente que se responsabiliza pelo material informativo e de divulgação de todo o programa, encontrando-se subdividida em Saber Saúde – Juvenil e Saber Saúde – Adulto e Idoso. A vertente Saúde Eventos surgiu devido aos diversos convites para diferentes eventos a que o PSMP tem vindo a marcar presença. Assim, uma equipa é destacada para a realização de diversas atividades, tendo sempre na sua base a promoção e prevenção. Exemplo disso foi a presença em festivais de verão (Rock in Rio 2012, Meo Marés Vivas 2012 e 2013, Meo Sudoeste 2013), Final

A Saúde Juvenil, uma das vertentes do Programa Saúde Mais Próxima – é dirigida às crianças e jovens de Lisboa, que são sensibilizadas para a adoção de hábitos de vida saudável

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| SAÚDE |

fundamental para a promoção da saúde. Integrar a comunidade neste programa é fundamental. Com efeito, os parceiros da comunidade constituem um forte elemento para motivar as pessoas a procurarem a informação do seu estado de saúde, devolvendo às forças vivas locais o seu papel ati-

> Sociedades Científicas – realizam formação para a equipa, direcionada para as problemáticas trabalhadas, validam o material informativo de cada ação de prevenção; > Instituições Particulares de Solidariedade Social – como a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal;

trabalho em parceria com as entidades da comunidade tendo como objetivo final o cidadão, na sua vertente de saúde e promoção de estilos de vida saudáveis”

> Associações de doentes – Associação Nacional de Luta Contra a Osteoporose; > Organizações Não Governamentais – Dentistas do Bem; > Juntas de Freguesia – apoiam as diferentes ações realizadas e participam na divulgação, quer através da exposição de cartazes informativos quer por eventual sensibilização individual aos moradores do bairro; > Paróquias – apoiam a divulgação das ações, quer através da exposição de cartazes informativos quer anunciando durante a eucaristia; > Associações de Moradores – fundamentais para divulgar e promover a atividade, mostrando aos seus pares a importância de participar no rastreio de saúde e da vigilância da mesma através das pessoas de referência;

da Taça de Portugal de 2012, Festival Imigrarte, Semana da Saúde do Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, Jornadas da Saúde da Assembleia da República, Semana da Saúde da AE ISCSP, entre outros. A vertente Saúde com Qualidade tem como objetivo principal

o seguimento/acompanhamento dos casos de alteração de saúde detetados. Por outro lado, em cada follow up realizado por um elemento da equipa, insiste-se na importância da mudança de hábitos de vida e vigilância de saúde. Preocupa-se com a manutenção e melhoria da qualidade dos serviços prestados pelo programa. Na vertente Saúde em Parceria pretende-se a aproximação do programa com a comunidade, de modo a melhor divulgar e a atingir os objetivos propostos pelo PSMP. Assim, a comunidade mostra-se um elemento 126

vo junto da sua população. É esta articulação entre instituições e o desenvolvimento de um trabalho forte e coeso em parceria que permite uma resposta mais completa e direcionada para as necessidades reais das populações, tendo como resultado ganhos em saúde a médio e longo prazo. O PSMP ao longo do seu percurso tem trabalhado lado a lado com parceiros fundamentais, como foi anteriormente descrito. De destacar: > Câmara Municipal de Lisboa – fundamental para o desenvolvimento da atividade diária;


| Saúde Mais Próxima |

> Outros parceiros locais, como por exemplo, o comércio local; É também esta vertente do PSMP que contacta com Escolas de Saúde para estabelecimento de parceria/protocolo entre entidades. O PSMP é um programa em crescimento constante e desper-

mundo. Segundo os números da International Diabetes Federation – IDF, existem cerca de 371 milhões de pessoas com diabetes, correspondendo a 8,3% da população mundial (das quais cerca de 50% ainda não foi diagnosticada), prevendo-se que este número atinja, em 2030, mais de 551 milhões, o que representará

betes diagnosticada apontavam para os 5,1% do total da população residente em 1998/1999 e os 6,5% em 2005/2006. Em 2012 a prevalência total da diabetes (diagnosticada e não diagnosticada) atingia 12,7% da população entre os 20 e os 79 anos (correspondendo a cerca de um milhão de pessoas). A este

to para as necessidades da população que são detetadas quer pela equipa ao longo do tempo quer pelas solicitações recebidas por diferentes parceiros. É neste sentido que a equipa desenvolve o seu trabalho em parceria com as entidades da comunidade, tendo como objetivo final o cidadão, na sua vertente de saúde e promoção de estilos de vida saudáveis. O desenvolvimento de programas similares é fundamental para a promoção da saúde e prevenção da doença e incapacidade, contribuindo assim para a melhoria da saúde individual e coletiva da população.

um aumento superior a 51%. Na Europa a prevalência de diabetes deverá aumentar 22% até 2030, mais de 83% no Médio Oriente e Norte de África e 90% em África. De acordo com a mesma fonte, perto de cinco milhões de pessoas morreram em 2012 por diabetes, metade das quais tinham menos de 60 anos. Este aumento acentuado da prevalência de diabetes é atribuído às mudanças sociais e culturais rápidas das últimas décadas com a adoção de estilos de vida de risco (obesidade e sedentarismo). O acentuado aumento do número de pessoas idosas, acompanhando o aumento da esperança de vida nas sociedades desenvolvidas, tem também contribuído para este aumento de prevalência. Em Portugal os números estimados para a prevalência da dia-

número acresce mais de dois milhões de pessoas dentro da mesma faixa etária (correspondendo a 26,5% desta população) que tem pré-diabetes. Isto significa que 39,2% da população adulta portuguesa, ou seja, mais de três milhões de pessoas, já têm diabetes ou estão em risco de a desenvolver. A diabetes engloba um conjunto de doenças metabólicas, a que se associam complicações crónicas graves, tais como oftalmológicas, nefrológicas, cardiovasculares, urológicas, entre outras. Portugal posiciona-se entre os países europeus que registam uma mais elevada taxa de prevalência da diabetes (OND 2012). Os dados referentes a 2012 do Observatório Nacional da Diabetes (OND), órgão da Sociedade Portuguesa de Diabetologia, mostram que a diabetes assume

DUAS ENTIDADES UNIDAS NUM OBJETIVO COMUM Uma das campanhas de prevenção realizadas foi a da diabetes. A diabetes é uma doença crónica em larga expansão em todo o

Medição da tensão arterial, elaboração do historial clínico e registo do peso são alguns “passos obrigatórios” para quem recorre ao Programa Saúde Mais Próxima

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| SAÚDE |

A Diabetes afecta uma elevada percentagem da população portuguesa e foi uma das patologias abordadas em 2013 pelo Programa Saúde Mais Próxima

um papel significativo nas causas de morte (4,4% do total de óbitos) e, contrariamente às outras patologias, não tem vindo a reduzir o seu impacte. O número de amputações major e minor por diabetes tem-se mantido elevado e estável ao longo da última década, com ligeiro decréscimo nos últimos três anos.

respeita ao tratamento com hemodiálise, 27,5% das pessoas que o fazem em Portugal têm diabetes, mas este número é mais elevado se considerarmos os novos doentes (31,7%). Finalmente e ainda segundo os dados do OND, Portugal despendeu com a diabetes entre 900 e 1100 milhões de euros no

Em relação aos Acidentes Vasculares Cerebrais, a diabetes corresponde a 27,7% dos internamentos por aquela causa, tendo a sua importância relativa aumentado mais de 30% na última década” Em relação aos acidentes vasculares cerebrais, a diabetes corresponde a 27,7% dos internamentos por aquela causa, tendo a sua importância relativa aumentado mais de 30% na última década. Quanto aos enfartes agudos do miocárdio, a diabetes participa com 30,5% dos internamentos por aquela causa, tendo também a sua importância relativa aumentado mais de 30% no mesmo período. No que 128

ano de 2011, o que corresponde a 1% do PIB português e a 10% da despesa em saúde. Esta é a face do panorama epidemiológico atual da diabetes em Portugal, que constitui uma base de trabalho para se definirem estratégias capazes de minorar o seu impacte em termos de morbilidade e mortalidade entre a população portuguesa. A diabetes é uma doença em rápida expansão e só o desenvol-

vimento de políticas integradas e transversais a todos os setores da sociedade pode mudar este cenário e reduzir os terríveis impactes desta doença, em termos humanos, sociais e económicos. Estas políticas transversais exigem a intervenção de todos os níveis de governação – central, regional e local e deverão ser

complementadas com campanhas de informação e educação das populações, no sentido de alterar comportamentos obesogénicos. Estas campanhas são particularmente importantes junto das camadas mais jovens, onde se formam os comportamentos de risco para a diabetes – tabaco, álcool, fast food e sedentarismo. A intervenção na diabetes tem de ser feita no âmbito da prevenção primária, tentando prevenir o aparecimento da doença, prevenção secundária, efetuando o diagnóstico precocemente e promovendo um correto tra-


| Saúde Mais Próxima |

tamento, e prevenção terciária tratando as complicações tardias da diabetes e evitando a sua progressão. Neste sentido, a SCML tem desenvolvido programas de prevenção primária através de áreas de intervenção, como de promoção de estilos de vida saudáveis e de atividade física, constituindo as bases de uma eficaz prevenção. Verifica-se uma íntima relação entre o excesso de peso/ obesidade e diabetes/doença cardiovascular. Estudos internacionais de referência demonstram a eficácia do aumento da atividade física e da modificação da alimentação, bem como da redução do excesso de peso, na prevenção e controlo da diabetes. Mas a alteração de estilos de vida não é tarefa fácil num contexto que não favorece, antes dificulta, a adoção de estilos de vida saudáveis. Na sequência destas ações têm também sido desenvolvidos programas de prevenção secundária e terciária. Sendo a diabetes uma doença “silenciosa”, no sentido em que pode desenvolver-se durante muitos anos de forma assintomática, o seu diagnóstico precoce é essencial para prevenir ou retardar o aparecimento das suas complicações tardias – retinopatia, nefropatia, neuropatia, macroangiopatia (doença coronária, cerebral e dos membros inferiores), hipertensão arterial. O diagnóstico precoce, o controlo metabólico e a vigilân-

a SCML tem desenvolvido programas de Prevenção Primária através de áreas de intervenção, como de promoção de estilos de vida saudáveis e de actividade física, constituindo as bases de uma eficaz prevenção” cia periódica são as principais armas para prevenir ou atrasar o início e a evolução das complicações. Os rastreios entre as pessoas em risco são altamente efetivos na deteção precoce da doença. Por outro lado, a alimentação e o exercício físico continuam a ser a intervenção de primeira linha no controlo da diabetes, sendo que o envolvimento de todas as estruturas da sociedade, extravasando o sistema de saúde, e envolvendo entidades como as escolas e as autarquias, por exemplo, é essencial para a promoção de estilos de vida saudáveis. A manutenção dos níveis de glicemia tão próximos quanto possível do normal tem provado possuir um impacte positivo nas complicações microvasculares da diabetes, o que exige um autocontrolo adequado, que implica a educação terapêutica das pessoas com diabetes. Também a avaliação regular dos parâmetros e dos órgãos afetados pela diabetes é essencial para a prevenção das complicações referidas, o que implica o cumprimento sistemático e regular de procedimentos que se encontram consignados em

normas pela Direcção-Geral da Saúde. A acessibilidade aos cuidados de saúde não é uma realidade em todo o território nacional nem em todos os estratos populacionais, verificando-se a existência de bolsas populacionais que têm dificuldade no acesso a estes cuidados – idosos, pessoas isoladas, pessoas em situação de grande vulnerabilidade social, etc. Neste sentido, uma colaboração com uma história de muitas décadas entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal tem permitido de uma forma eficaz dar uma resposta, que necessita de ser continuada, a este desafio crescente, em particular nas zonas mais carenciadas de Lisboa.

BIBLIOGRAFIA Plano Nacional de Saúde 2012-2016. Eixo estratégico – Cidadania em Saúde. Disponível em: http:// pns.dgs.pt/2012/06/26/o-plano-nacional-de-saude-2012-16-entra-em-fase-de-implementacao/ Consultado a 19 de setembro de 2013.

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| SAÚDE |

Demências Um Problema Social e de Saúde Pública Texto de Rita Paiva Chaves [Diretora do Gabinete dos Prémios Santa Casa Neurociências]

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| DEMÊNCIAS |

As demências, entre as quais a doença de Alzheimer, são doenças do cérebro, normalmente de natureza crónica ou progressiva, irreversíveis, que afetam funções corticais superiores como a memória, o raciocínio, a orientação, a compreensão, a capacidade de aprendizagem e a linguagem. Como consequência da deterioração cognitiva, perde-se também o controlo emocional, os comportamentos sociais tendem, progressivamente, a desadequar-se e a capacidade de realização de tarefas simples e rotineiras é comprometida. As demências acabam, quase invariavelmente, por levar à perda total de autonomia dos indivíduos afetados.

A

estimativa de tempo de vida para os pacientes diagnosticados com demência situa-se entre 2 e 15 anos. Não existe, atualmente, nenhuma forma de diagnóstico definitivo, pois a única forma de o fazer é examinando o tecido cerebral obtido por biopsia ou necropsia. Assim, este diagnóstico é estimado por exclusão de outras causas de demência, pela análise do historial do paciente, por análises sanguíneas, tomografia ou ressonância, entre outros exames. Os Sintomas Os sintomas iniciais da doença, que incluem pequenas falhas de memória e esquecimentos, são, normalmente, aceites pelos familiares como aspetos associados ao normal envelhecimento. No entanto, o seu agravamento persiste. Começam as dificuldades em realizar tarefas básicas e de orientação espacial e temporal. O doente sente-se confuso, podendo apresentar alterações de personalidade e distúrbios de conduta, nomeadamente agressividade, e acaba por deixar de conseguir reconhecer os seus familiares. A dependência total surge quando o doente deixa de ser capaz de realizar as atividades elementares do seu quotidiano, tais como alimentação, higiene, vestuário, etc.

Uma Prioridade em Saúde Pública Em 2011, o número de pessoas com demência estimou-se na ordem dos 35,6 milhões. Vários estudos epidemiológicos mostram agora que este número está a aumentar a uma taxa alarmante, estimando-se que duplique a cada vinte anos, para cerca de 65,7 milhões em 2030 e 115,4 milhões em 2050. Os quadros demenciais são uma das maiores causas de invalidez depois da meia-idade. Lidera a causa de dependência de terceiros e necessidade de apoio entre os idosos. Nos Estados Unidos, as demências têm um custo anual superior ao do cancro ou das doenças cardiovasculares, atingindo valores anuais que vão de 157 mil milhões a 215 mil milhões de dólares (EUA). Grande parte destes custos deriva dos cuidados de longo prazo de que os doentes com demência necessitam. Se contabilizarmos os custos indiretos, tais como a baixa produtividade associada, não só pelo aparecimento cada vez mais precoce da doença, mas como também pela forma como ela afeta todo o agregado familiar do doente, quando este existe, então facilmente chegamos ao porquê de esta doença ser já considerada uma pandemia emergente. 131


| SAÚDE |

Não se conhece nenhum fármaco que cure ou que altere a progressão normal da doença, apesar de existirem milhares de estudos e novas terapias sob análise em inúmeros ensaios clínicos. No entanto, há muito ainda que pode ser feito para que consigamos lidar com os dados que temos em mãos e para criarmos melhores condições para quem vive com demência, para os seus familiares, amigos e prestadores de cuidados

de saúde. Segundo a World Health Organization, as linhas gerais de ação passam por: • Diagnóstico precoce; • Otimização das condições de saúde, cognitivas, atividade física e mental e bem-estar; • Acompanhamento precoce dos sintomas comportamentais e psicológicos; • Acompanhamento dos familiares e cuidadores (psicológico, informativo).

A Associação Alzheimer Portugal elaborou uma lista de dez sinais de alerta ou sintomas comuns da doença.

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Perda de memória É normal esquecer ocasionalmente reuniões, nomes de colegas de trabalho, números de telefone de amigos e lembrar-se deles mais tarde. Uma pessoa com a doença de Alzheimer esquece-se das coisas com mais frequência, mas não se lembra delas mais tarde, em especial dos acontecimentos mais recentes.

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Dificuldade em executar as tarefas domésticas As pessoas muito ocupadas podem temporariamente ficar tão distraídas que chegam a deixar as batatas no forno e só se lembram de as servir no final da refeição. O doente de Alzheimer pode ser incapaz de preparar qualquer parte de uma refeição ou esquecer-se de que já comeu.

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Problemas de linguagem Toda a gente tem, por vezes, dificuldade em encontrar a palavra certa. Porém, um doente de Alzheimer pode esquecer mesmo as palavras mais simples ou substituí-las por palavras desajustadas, tornando as suas frases de difícil compreensão.

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Perda da noção do tempo e desorientação É normal perdermos – por um breve instante – a noção do dia da semana ou esquecermos o sítio para onde vamos.

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Porém, uma pessoa com a doença de Alzheimer pode perder-se na sua própria rua, ignorando como foi dar ali ou como voltar para casa.

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Discernimento fraco ou diminuído As pessoas podem, por vezes, não ir logo ao médico quando têm uma infeção, embora acabem por procurar cuidados médicos. Um doente de Alzheimer poderá não reconhecer uma infeção como algo problemático e não ir mesmo ao médico ou, então, vestir-se inadequadamente, usando roupa quente num dia de verão.

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Problemas relacionados com o pensamento abstrato Por vezes, as pessoas podem achar que é difícil fazer as contas dos gastos. Mas, alguém com a doença de Alzheimer pode esquecer completamente o que são os números e o que tem de ser feito com eles. Festejar um aniversário é algo que muitas pessoas fazem, mas o doente de Alzheimer pode não compreender sequer o que é um aniversário.

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Trocar o lugar das coisas Qualquer pessoa pode não arrumar corretamente a carteira ou as chaves. Um doente de Alzheimer pode pôr as coisas num lugar desajustado: um ferro de engomar no frigorífico ou um relógio de pulso no açucareiro.


| DEMÊNCIAS |

As respostas da SCML A população idosa representa o setor etário predominante nas respostas sociais e de saúde da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Temos, atualmente, cerca de 12 mil utentes idosos inscritos nas Unidades de Saúde da SCML. Face a este número, estamos certos de que as recentes iniciativas desta administração demonstram um forte alinhamento com a realidade dos tempos que correm, sobretudo se tivermos em conta a tendência de envelhecimento demográfico, quer pela diminuição da taxa de natalidade quer pelo aumento da esperança de vida.

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Alterações de humor ou comportamento Toda a gente fica triste ou mal-humorada de vez em quando. Alguém com a doença de Alzheimer pode apresentar súbitas alterações de humor – da serenidade ao choro ou à angústia – sem que haja qualquer razão para tal facto.

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Alterações na personalidade A personalidade das pessoas pode variar um pouco com a idade. Porém, um doente com Alzheimer pode mudar totalmente, tornando-se extremamente confuso, desconfiado ou calado. As alterações podem incluir também apatia, medo ou um comportamento inadequado.

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Perda de iniciativa É normal ficar cansado com o trabalho doméstico, as atividades profissionais do dia a dia ou as obrigações sociais; porém, a maioria das pessoas recupera a capacidade de iniciativa. Um doente de Alzheimer pode tornar-se muito passivo e necessitar de estímulos e incitamento para participar. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência. Representa, atualmente, cerca de 60% a 70% dos casos de demência. Existem outras formas de demência, como a demência vascular ou a de corpos de Lewy.

Em 2011, o número de pessoas com demência estimou-se na ordem dos 35,6 milhões” Estes factos foram já motivo de alguma preocupação em 2003 pela SCML, quando num documento intitulado “Os Caminhos do Património – Uma estratégia para o Património da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, é referido que “cabe à Misericórdia a sua adequação às novas realidades sociais” e sugere mesmo a “construção de raiz ou adaptação de imóveis a novos lares, unidades de grandes dependentes, unidades de Alzheimer e de outras doenças neuro-degenerativas”. É em 2004 que a SCML assume, como perspetiva futura, o reposicionamento da Obra do Pousal, como instituição de saúde de acolhimento e acompanhamento, vocacionada e especializada para situações de grande dependência prolongada, nomeadamente doentes com Alzheimer, bem como de outros quadros demenciais. Em 2005, a Mesa da SCML aprova uma nova proposta, onde é sugerido que “a título experimental, a SCML desenvolva uma experiência centrada na linha do envelhecimento…”, “tendo como ponto de partida a interação entre a Ação Social e os Centros de Saúde”, e recorrendo “… à capacidade instalada ou a instalar no HOSA, no CMRA ou em outras unidades/equipamentos a criar (Unidades de Grandes Dependentes, Unidade de Cuidados Paliativos ou Unidades do Foro Neurodegenerativo, como é o caso da Doença de Alzheimer ou da Saúde Mental em geral, etc.)”. Relembro que, no âmbito dos cuidados paliativos, foi inaugurada pelo Provedor Dr. Pedro Santana Lopes, em outubro de 2012, na Aldeia do Juso, em Cascais, a Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos Dr.ª Maria José Nogueira Pinto. Uma outra contribuição da SCML para a área das demências associadas ao idoso tem sido, pontualmente, os prémios Nunes Correa Verdades Faria. Estes Prémios galardoam, anualmente, individualidades que, em Portugal, mais tenham contribuído para a medicina aplicada aos idosos. 133


| SAÚDE |

Os Prémios Santa Casa Neurociências, anunciados em março de 2013, surgem assim como uma forma arrojada e promissora de continuidade para com os compromissos da instituição, apostando no mérito e no valor da comunidade médica e científica nacional” A temática da doença de Alzheimer, bem como de outras situações demenciais, é frequentemente abordada. Relembro o prémio atribuído em 2008, na categoria da medicina aplicada ao idoso, onde Alexandre Castro Caldas, médico neurologista e atual diretor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, foi distinguido pela sua contribuição no estudo e investigação sobre a doença de Parkinson e a doença de Alzheimer. Não querendo deixar de mencionar também Catarina Resende de Oliveira, médica neurologista, diretora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e membro do Júri da 1.ª Edição dos Prémios Santa Casa Neurociências, que, em 2007, recebe também o mesmo galardão, pelo estudo dos mecanismos de neurodegenerescência associada ao idoso. A grande problemática da associação do envelhecimento da população ao aumento da taxa de quadros demenciais, em que a doença de Alzheimer predomina, foi fortemente evidente na resolução do Parlamento Europeu, em 19 de janeiro de 2011. Neste documento, as demências foram consideradas uma prioridade na Saúde da União Europeia, que fortemente recomendou os Estados membros a desenvolver planos e estratégias nacionais para a doença de Alzheimer, por forma a lidar com os consequentes problemas sociais e de saúde. Já em 2009, numa comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, tinha sido prevista uma iniciativa europeia sobre a doença de Alzheimer e outros tipos de demência. 134

O Prémio Melo e Castro galardoa, anualmente, o projeto de investigação científica que evidencie uma aproximação promissora na recuperação das funções motoras e fisiológicas perdidas devido a lesões vertebromedulares de origem traumática, congénita ou adquirida. O Prémio Mantero Belard premeia, todos os anos, o trabalho de investigação mais perto de permitir avanços significativos na compreensão das causas associadas a processos neurodegenerativos no idoso, nomeadamente a doença de Alzheimer, Parkinson, entre outras, potenciando novas estratégias no tratamento e restabelecimento de funções cognitivas e/ou motoras. Estes prémios pretendem incentivar as colaborações científicas e promover novos trabalhos de investigação que permitam novas abordagens à concretização dos objetivos a que se destinam. Os projetos poderão ter uma duração até três anos, sendo acompanhados pela SCML através de relatórios de atividades científicas e financeiras.

É neste contexto que, em 2012, surge, por iniciativa do Provedor Dr. Pedro Santana Lopes, a ideia de conceber uma forma ativa de contribuir para esta causa, lado a lado, com a não menos louvável vontade de apoiar os doentes que sofrem de graves limitações motoras devido a lesões vertebromedulares. Os Prémios Santa Casa Neurociências, anunciados em março de 2013, surgem assim como uma forma arrojada e promissora de continuidade para com os compromissos da instituição, apostando no mérito e no valor da comunidade médica e científica nacional, numa atual conjuntura pouco facilitadora da investigação e desenvolvimento. Paralelamente, a Santa Casa também pretende implementar um projeto de Estudo de Demências que visa detetar, na população apoiada pela SCML, pessoas que apresentem declínio das capacidades mentais. A população será, de forma sistemática, rastreada por testes neuropsicológicos, nos casos


| DEMÊNCIAS |

indicados, e subsequentemente serão observados e investigados por um clínico geral e por um neurologista, com o objetivo de identificar a(s) causa(s) e planear intervenções terapêuticas e outras que ajudem a controlar os défices cognitivos (mais ou menos graves). Outros projetos estão ainda a ser desenvolvidos, no âmbito da doença de Alzheimer e outras demências, no âmbito de uma colaboração entre o Gabinete dos Prémios Santa Casa Neurociências e o Grupo de Demências do IMM (Instituto de Medicina Molecular). A Associação Alzheimer Portugal iniciou, este ano, uma estreita colaboração com a SCML, quer com a realização de seminários temáticos quer através de ações de formação específicas. Atualmente estão a ser estudadas novas sinergias para 2014, nomeadamente em dois projetos de grande mérito e contributo para a sociedade, com o objetivo de minimizar os problemas vividos pelos portadores desta patologia, bem como dos seus familiares e amigos, principais atores no cuidado desta doença no dia a dia dos pacientes. A investigação científica torna-se, assim, numa ferramenta poderosa que pode potenciar respostas precisas e concretas na solução dos atuais problemas. Acredito que estas são formas de intervenção direta, em várias frentes, para um futuro mais promissor para os doentes de Alzheimer, familiares e prestadores de cuidados de saúde. Acredito que é também neste sentido que a SCML tem de apostar cada vez mais. Não fazer é negar soluções, instrumentos e ferramentas dos tempos atuais. É nossa obrigação adequar as estratégias aos novos desafios e às novas realidades. Projeto Cuidar Melhor O Projeto Cuidar Melhor resulta de uma parceria entre a Associação Alzheimer Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Montepio e Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica. Tem o apoio da Sonae Sierra e dos municípios de Cascais, Oeiras e Sintra. O projeto é financiado, em partes iguais, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação Montepio. Catarina Alvarez, coordenadora do projeto, explica que “o Cuidar Melhor ganhou forma com a assinatura de um protocolo de parceria em 20 de

dezembro de 2011 e começou a ser implementado em março de 2012. Os municípios de Cascais, Oeiras e Sintra aderiram ao projeto no primeiro semestre de 2012 e a Sonae Sierra, mais recentemente, em março deste ano”. Refere ainda que os objetivos prioritários deste projeto são “a inclusão e promoção dos direitos das pessoas com demência, bem como o apoio e valorização dos familiares e profissionais que lhes prestam cuidados, através de uma intervenção pluridisciplinar, assente nos valores da parceria, do respeito pela dignidade humana e da personalização da intervenção.” Para tal, o projeto Cuidar Melhor apostou na criação de gabinetes técnicos, pluridisciplinares e de âmbito concelhio, de apoio a cuidadores e familiares de pessoas com demência. Os Gabinetes Cuidar Melhor são uma resposta personalizada e de proximidade vocacionada para prestar informações e apoio técnico, de modo a melhorar, desdramatizar e valorizar o ato de cuidar. Destinam-se às pessoas com demência e a todos aqueles que direta ou indiretamente convivem com elas, isto é, aos seus cuidadores, familiares e amigos e ainda aos profissionais que lhes prestam cuidados. Encontra-se igualmente ao dispor das instituições sediadas no município e da população em geral. Nos gabinetes, a atividade é desenvolvida por técnicos de diversas áreas e com formação específica, disponíveis para atender o público, através do telefone, por e-mail ou presencialmente. Catarina Alvarez adianta que é “nos gabinetes que 135


| SAÚDE |

Atendimento presencial dos Gabinetes Cuidar Melhor Cascais: segundas-feiras, das 09h00 às 12h30, no Centro de Convívio da Junta de Freguesia, situada na Rua do Poço Novo. Sintra: quartas-feiras, das 09h00 às 13h00, na Divisão de Higiene, Segurança e Saúde Ocupacional da Câmara Municipal. Oeiras: sextas-feiras, das 09h30 às 13h00, no Centro de Juventude.

prestamos informações sobre as diversas questões relacionadas com a demência, tais como causas, sinais de alerta, diagnóstico e intervenção e encaminhamos as pessoas para as respostas sociais e outras existentes na comunidade.” Além deste acompanhamento, é também prestado apoio jurídico gratuito por juristas voluntários, especificamente formados para o efeito, com vista a informar as pessoas sobre os seus direitos e procedimentos legais a adotar após o diagnóstico e no decurso da doença. Sempre que possível, são realizadas iniciativas formativas para cuidadores e familiares, com conteúdos específicos e diversificados, asseguradas por técnicos com diferentes valências, para dotar os formandos com ferramentas que possibilitem a prestação de melhores cuidados. Projeto Café Memória O Projeto Café Memória é adaptação de um conceito internacional, o Memory Cafe, e destina-se a criar espaços para pessoas com problemas de memória ou demência, bem como aos respetivos familiares e cuidadores, para partilha de experiências e suporte mútuo, onde se facilita a interação entre todos, se oferece apoio emocional, informação útil e promove a participação das pessoas em atividades lúdicas e estimulantes, com o apoio de profissionais de saúde ou de ação social, num contexto 136

informal. Os encontros Café Memória decorrem em sessões estruturadas, não clínicas, numa dinâmica informal e acolhedora. O conceito Memory Cafe está implementado em diversos países, tais como França, EUA e Reino Unido. Neste país, o conceito tem vindo a ser desenvolvido de forma sistemática desde o ano 2000, onde funcionam atualmente mais de sessenta Memory Cafe. Além dos CAFÉS MEMÓRIA, existem ainda os “ALZHEIMER CAFÉS” que desenvolvem a sua atividade de forma semelhante e encontram-se em vários países, como Holanda, Bélgica, Reino Unido ou Canadá. Em Portugal, a iniciativa surgiu em março de 2013, pela colaboração entre a Associação Alzheimer Portugal e a Sonae Sierra e conta com o apoio da Fundação Montepio, da Fundação Calouste Gulbenkian e do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa. Possui ainda uma rede alargada de parceiros empresariais: Portugália Restauração, Optimus, Delta Cafés, Sumol+Compal, Celeiro, Bial e CPP. Realizam-se, atualmente, dois Café Memória por mês, em Lisboa (Centro Comercial Colombo) e em Cascais (Cascaishoping), no primeiro e terceiro sábado de cada mês, respetivamente. As sessões, gratuitas e sem necessidade de marcação prévia, decorrem nos restaurantes Portugália dos referidos centros. Estas sessões iniciam-se com o acolhimento individual de cada um dos


| DEMÊNCIAS |

Um testemunho “cá dentro”: Lurdes Leandro, uma cara conhecida de muitos, é funcionária da SCML desde 1974 e conta, na primeira pessoa, os tempos difíceis de quando viveu, lado a lado, com a doença. “Foram tempos muito difíceis. Lembro-me de sair aflita do serviço para casa e perceber que o meu pai não estava lá. O meu pai perdia-se constantemente e isso causava-me um enorme desespero. Como não o podia colocar num lar, por falta de possibilidades, levei-o ao centro de saúde, onde, por ser idoso, não lhe podiam fazer nada. Nem apoio na alimentação, nem apoio na higiene. Chegava a deixar sair o meu pai e seguia-o durante horas para não o perder novamente. Quando podia. Chegou um dia que não tive outra opção e fechei-o em casa. Tinha de trabalhar e não podia deixar que nada lhe acontecesse. Sofremos muito. Eu, o meu pai e o meu filho, que, pela minha indisponibilidade e cansaço constantes nem sempre teve a mãe ao seu lado. Durante três anos deixei de ser mãe para voltar a ser filha. Entretanto ganhei uma enorme depressão. Não tinha vontade de viver. Queria desaparecer. Pedi ajuda na SCML, mas foi-me negada por ser funcionária. Tive o apoio da minha chefe de serviço na altura, a Drª Irene Valente, que me facilitava o horário do almoço para poder ir a casa tratar do meu pai. Estou-lhe muito agradecida pela ajuda que, na altura, me deu. Mas, apesar de tudo, eu estava esgotada. Tenho plena consciência de que, pelos danos psicológicos que eu estava a sofrer, lhe faltou carinho. É uma doença muito complicada. É um sofrimento muito grande. Tudo isto passou-se em 1996, mas está, ainda hoje, muito vivo nas minhas memórias. Gostava de ver esta instituição fazer mais por estas pessoas. O carinho e a atenção para estes doentes são muito importantes. Ensinar as pessoas a lidar com os doentes é fundamental. Perturba-me pensar que poderia ter feito muito mais pelo meu pai, e que, por ignorância, não o fiz.”

participantes, prosseguindo posteriormente com a apresentação de um tema por um orador ou com a realização de atividades lúdicas. O momento de convívio e distração entre todos os participantes é depois proporcionado por uma pausa para café. Uma das maiores dificuldades que os familiares relatam é sem dúvida a quebra do funcionamento normal de uma relação préexistente – mãe-filho, marido-mulher, irmãos. Os dias desta “nova” relação são cheios de dificuldades e incompreensão e conseguem ser psicologicamente devastadores. Assim este espaço consegue ser uma quebra na rotina negativa destas pessoas, conseguindo colocar familiares e pessoas portadoras de demência num convívio positivo com atividades diversas, como jogos educativos, palestras, partilhas de experiências, etc.

BIBLIOGRAFIA 1. Deliberações de Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa 2. “Monetary Costs of Dementia in the United States” Publicado na edição de 4 de abril do New England Journal of Medicine. Michael D. Hurd, Ph.D., Paco Martorell, Ph.D., Adeline Delavande, Ph.D., Kathleen J. Mullen, Ph.D., and Kenneth M. Langa, M.D., Ph.D. N Engl J Med 2013; 368:1326-1334April 4, 2013DOI: 10.1056/NEJMsa1204629 3. “Dementia: a public health priority” World Health Organization. ISBN 978 92 4 156445 8 (NLM classification: WM 200) © World Health Organization 2012 4. Dementia A NICE-SCIE Guideline on Supporting People with Dementia and Their Carers in Health and Social Care NICE Clinical Guidelines, No. 42 National Collaborating Centre for Mental Health (UK). Leicester (UK): British Psychological Society; 2007. 5. http://www.portaldasaude.pt/portal/conteudos/ enciclopedia+da+saude/ministeriosaude/doencas/ doencas+degenerativas/oqueeadoencadealzheimer. htm 6. http://www.cafememoria.pt/ 7. http://cuidarmelhor.org/

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| SAÚDE |

Integração Social: a experiência com amputados O utente amputado quando acede a uma consulta no CMRA apresenta expectativas elevadas quanto à hipótese de lhe ser prescrita uma prótese que vai contribuir para a melhoria da sua condição motora e quase sempre acalenta o sonho de restabelecer o percurso de vida interrompido de forma trágica (amputação de um ou mais membros). A entrevista da consulta é um momento privilegiado para percecionarmos as potencialidades e constrangimentos de cada situação. Texto de Ana Fernandes e Liliana Sousa [Técnicas Superiores de Serviço Social_SCML, CMRA, Reabilitação Geral de Adultos]

O

CMRA – Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão tem como missão a reabilitação de pessoas portadoras de deficiência de predomínio físico ou multideficiência congénita e adquirida, provenientes de todo o país e de países estrangeiros. Ao CMRA acorre um número elevado de utentes vítimas de amputação, devido a problemas 138

vasculares ou outras doenças, mas também causas traumáticas como acidentes de trabalho e viação. O acompanhamento destes utentes amputados é realizado através de uma equipa multidisciplinar, constituída por profissionais das áreas de fisiatria, enfermagem de reabilitação, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, ortoprotesia e serviço social. A intervenção do Serviço Social tem início na

consulta de amputados, onde é realizada a primeira entrevista ao utente amputado. Trata-se de um momento privilegiado para a recolha de dados e promoção de uma relação empática entre o técnico e utente/ família. É no momento da entrevista em consulta que se indaga o contexto do utente e a rede de suporte (recursos familiares e de vizinhança, relações sociais e outros elementos) que será


| Integração de amputados |

posteriormente a plataforma da nossa intervenção. O utente amputado quando acede a uma consulta no CMRA apresenta expectativas elevadas quanto à hipótese de lhe ser prescrita uma prótese que vai contribuir para a melhoria da sua condição motora e quase sempre acalenta o sonho de restabelecer o percurso de vida interrompido de forma trágica (amputação de um ou

mais membros). A entrevista da consulta é um momento privilegiado para percecionarmos as potencialidades e constrangimentos de cada situação. É essencial que a equipa desenvolva um trabalho coerente para elucidar o utente e a família dos objetivos do uso da prótese e o empenho e colaboração que se exige por parte do utente para a concretização desses objetivos. A assistente social deve

esclarecer os direitos do utente e como pode aceder aos produtos de apoio prescritos pelo médico. O Serviço Social acompanha cerca de cem casos anualmente em consulta de amputados, numa média de 150 consultas por ano realizadas no CMRA. O acompanhamento de utentes amputados exige uma intervenção diferente de outro tipo de patologias. A ação que o Servi139


| SAÚDE |

ço Social desenvolve com vista à integração destes utentes é muita diversificada, pois a caraterização do grupo é heterogénea, assim como os problemas apresentados na reintegração social. Estudo da Integração social de utentes amputados O trabalho de equipa desenvolvido junto da população amputada deste centro é consistente e motivo de orgulho para os técnicos que partilham essa experiência. O Serviço Social valoriza a reflexão e análise da intervenção junto da população de amputados utentes do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão com vista à melhoria contínua e a uma maior

O Serviço Social acompanha cerca de cem casos anualmente em consulta de amputados, numa média de 150 consultas por ano realizadas no CMRA

10 7

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1

1. FAIXA ETÁRIA

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satisfação dos utentes. Neste artigo optamos por observar a patologia – realçando os constrangimentos e potencialidades – através de uma amostra de utentes assistidos entre 2011 e 2012 no CMRA.

A amostra do estudo Para efeitos do estudo foi recolhida uma amostra aleatória de trinta utentes amputados, 15 utentes estiveram internados no Serviço RGA 3E e 15 utentes acompanhados em regime de

consulta/tratamento ambulatório. A amostra é constituída por 19 utentes do sexo masculino e 11 do sexo feminino. A faixa etária com o número mais significativo é a 46-55 (oito utentes); no entanto a amostra apresenta em idade ativa 21 utentes, o que tem impacte na reintegração destes utentes. A proveniência dos utentes da amostra: 25 utentes são da área da Grande Lisboa, três utentes da zona Sul, um utente da zona Centro e um utente dos Açores. No que concerne ao tipo de amputação mais frequente sur-


| Integração de amputados |

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ge a amputação de um membro inferior, sendo as biamputações e as amputações dos membros superiores menos frequentes, e uma situação de um utente quadriamputado. Dos trinta utentes estudados 12 tinham sido amputados recentemente (menos de dois anos), sete utentes sofreram as amputações entre dois e dez anos e 11 utentes foram amputados há mais de dez anos. A amostra é constituída por 17 utentes que recorreram ao CMRA para a elaboração da primeira prótese e 13 utentes vieram para segundas próteses ou avaliação/revisão das próteses prescritas anteriormente Em relação aos motivos para a amputação, encontramos como

4 MEMBROS

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2 MEMBROS SUPERIORES

principais causas os acidentes de viação, os problemas vasculares e as situações de doença/ infeções. O motivo da amputação pode influenciar o regresso à atividade profissional, pois segundo os estudos realizados por Pineda et al. (Pineda M.A, Fernandez A, Medina M, Bull R. Resultados funcionales en amputados con prótesis de miembro inferior: autonomia versus autonomia física. Rehabilitación. 1991; 25: 325-32) observaram que, após a reabilitação, os jovens amputados por causa traumática apresentaram melhores condições física e psíquica e maior retorno às atividades profissionais. E afirmaram que quanto melhor for a independência físi-

ca e psíquica tanto maior será a hipótese de alcançarem a autonomia profissional. Na amostra os problemas vasculares são a segunda causa mais predominante para as amputações. Nestas situações, pelos constrangimentos da própria patologia, há pessoas que têm condições de receber a prótese, mas somente para andar no domicílio. Já outras pessoas têm condições físicas de andar longas distâncias, mas ainda existem aquelas que não recebem adaptação protésica e são reabilitadas apenas para serem independentes nas mudanças de decúbito e nas transferências. A situação familiar dos utentes da amostra é diversa, sendo que

2. TIPO DE AMPUTAÇÃO 3. motivo DE AMPUTAÇÃO

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| SAÚDE |

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outras (Therezinha Rosane Chamilian, 2007, Regresso ao trabalho em amputados dos membros inferiores). No que concerne à habitação verificamos que 14 utentes vivem em apartamentos, 14 utentes em moradias, sendo que 19 utentes habitam em casas próprias, nove utentes em casas alugadas e dois utentes não têm domicílio certo. A assistente social e restante equipa na sua intervenção procura ajudar o utente a encontrar soluções relativas às barreiras

5

4. SITUAÇÃO FAMILIAR 5. SITUAÇÃO PROFISSIONAL

Na amostra estudada verifica-se que vinte utentes obtiveram apoio por parte do CMRA para a aquisição da prótese predominantemente a maioria dos utentes pertence a famílias nucleares com filhos, como se demonstra graficamente. Esta informação está relacionada com a prevalência na faixa etária (dos 26 aos 55 anos). Dos trinta utentes observados na amostra, a maioria tem uma rede familiar consistente, assim como percecionamos o apoio de amigos e vizinhos na maioria deles. Este facto facilita o processo de reabilitação e adaptação a uma nova realidade após a amputação. Em contrapartida, dois utentes encontram-se numa situação de debilidade económica e social, em que o abandono da família é muito penoso para os utentes e influencia a forma como estes lidam com a incapacidade.

142

Relativamente à situação profissional e económica dos utentes em estudo, verifica-se que 17 utentes estão empregados, sendo que oito destes utentes conseguiram retomar a atividade profissional após a amputação e nove utentes encontram-se de baixa por doença. Este aspeto está relacionado com os utentes internados, cuja situação obriga a períodos de baixa por doença mais prolongados para a adaptação e treino com a prótese. Em relação aos indivíduos incapacitados, em geral, os amputados são os que têm melhor taxa de retorno ao trabalho, se comparados com os portadores de doença neuromuscular, sequela de acidente vascular cerebral e esclerose múltipla, entre

arquitetónicas existentes no domicílio. É comum encontrarmos utentes a residirem em habitações sem acessibilidade (existência de degraus no exterior e interior das habitações) assim como outros problemas que impedem a autonomia nas atividades diárias. Para além do aconselhamento técnico da equipa, o Serviço Social pode mediar os contactos com as entidades da área de residência no sentido de agilizar as obras de adaptação no domicílio do utente. (Re) Integração Social do utente amputado O processo de reabilitação e a integração destes utentes amputados enfrenta alguns obstáculos, que o dificultam.


| Integração de amputados |

“A maioria das pessoas que vivem em unidades de reabilitação encaram, descobrem e enfrentam perdas físicas, cognitivas e sociais permanentes. Esta descoberta é acompanhada de níveis significativos de raiva, ansiedade, euforia, pesar e medo”(DELISA, 1992). Frequentemente é este cenário de sentimentos negativos que o utente e sua família apresentam nas consultas e internamento. A equipa multidisciplinar terá de lidar com estes aspetos e conseguir através da informação, orientação e experiência motivar o utente para a protetização. Assim, numa fase inicial pode considerar-se um obstáculo o estado psicológico do utente. As dificuldades de financiamento e aquisição das próteses e material protésico constituem outro obstáculo. Este tipo de produtos de apoio normalmente tem um custo elevado, o que dificulta a sua aquisição por parte dos utentes e famílias. O Serviço Social estuda as possibilidades existentes para o acesso do utente à prótese prescrita. Esta pode ser adquirida pelo próprio, pelo subsistema caso seja beneficiário, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (de acordo com critérios pré-definidos) ou pela companhia de seguros (situações de acidente de viação ou de acidentes de trabalho quando há lugar à responsabilização da companhia de seguros). Quando verificamos uma situação de carência ou debilidade económica, exis-

Caso António Monteiro, de 42 anos, casado e pai três filhos, sofreu uma amputação no membro inferior direito na sequência de um acidente de viação. Foi acompanhado no CMRA para confeção e treino de prótese. O objetivo geral da equipa de reabilitação foi a reintegração social e profissional do utente. Tendo em conta que exerce a profissão de motorista numa empresa, a adaptação à prótese foi um fator determinante para o regresso ao trabalho. Presentemente, o utente exerce as mesmas funções que desempenhava antes da amputação. Ao nível familiar, o utente mantém a sua capacidade para participar normalmente nas atividades domésticas/lazer e educacionais com a mulher e filhos. Salvaguardamos que a idade jovem, nível de amputação e o contexto profissional e bom suporte familiar são fatores facilitadores da concretização do objetivo traçado com este utente.

tem mecanismos internos para o Serviço Social apresentar a situação superiormente e solicitar o apoio do CMRA ao amputado na aquisição da prótese e outros produtos de apoio. Na amostra estudada verifica-

-se que vinte utentes obtiveram apoio por parte do CMRA para a aquisição da prótese, sendo que em dez destas situações a prótese foi financiada na totalidade e nos outros dez casos o CMRA financiou uma parte do valor da 143


| SAÚDE |

prótese, sendo o restante assegurado pelo utente. Dos restantes utentes representados na amostra, cinco utentes tiveram apoio de companhias de seguros, tendo estas comparticipado na totalidade a prótese e outros materiais protésicos; quatro utentes são beneficiários da ADSE, pelo que contaram com a comparticipação do respetivo subsistema e um utente bene144

ficiou do apoio dos serviços de saúde dos Açores, que financiaram a prótese na totalidade. A reintegração profissional do utente amputado é uma questão importante e inquietante, pois depende de algumas variáveis que estão interligadas: Nível da amputação Idade do amputado Contexto social

A reintegração profissional é possível quando os utentes conseguem recuperar mais autonomia e segurança com o uso da prótese, o que geralmente significa a realização das atividades diárias no domicílio e a deslocação de casa para o trabalho e vice-versa. Por outro lado, observamos a importância do vínculo com a entidade patronal na reintegração profissional, como são as situações dos contratados, em contraste com indivíduos com vínculos precários ou ausência dos mesmos. O facto de algumas profissões exigirem esforço e desgaste físico também pode ser um obstáculo à reintegração do utente amputado, pois o uso de uma prótese não é compatível com alguns movimentos/exercícios e condiciona, por vezes, a função do utente amputado no seu local de trabalho. Normalmente, as atividades profissionais de indivíduos mais qualificados, como quadros técnicos e superiores, permitem o regresso do amputado de forma mais facilitada, devido ao tipo de trabalho desenvolvido. Contudo, mesmo quando a integração profissional se realiza com sucesso, um estudo de Priscila Guarino (2007) revela que a maior parte dos amputados que regressaram ao trabalho relataram uma má repercussão após a amputação, com menor hipótese de promoção na carreira e de aumento salarial. Existe uma percentagem elevada de amputados que não conseguem retomar a ativi-


| Integração de amputados |

dade profissional em virtude de dificuldades de inserção no mercado de trabalho, pela circunstância económica atual em Portugal e no mundo. O contexto de crise económica agrava as dificuldades de reintegração do utente amputado. As entidades empregadoras manifestam receio em empregar os amputados, como sucede em relação aos outros tipos de deficiência. As reconversões profissionais exigem alguma flexibilidade do empregador, quer ao nível dos acessos quer das funções a atribuir ao trabalhador que sofreu uma amputação. A existência de redes de apoio anteriores à amputação é preponderante, pois a maioria mantêm-se após o surgimento da deficiência, o que constitui uma mais-valia para os utentes vítimas de amputação. Contudo, independentemente do apoio familiar e das redes de apoio, é de realçar que nas situações dos utentes amputados existe uma grande responsabilização do utente, sendo ele o principal motivador e impulsionador da própria reabilitação. A equipa multidisciplinar investe no ensino ao utente e à família relativamente ao uso da prótese e aos principais cuidados a ter com ela. Esta aprendizagem é fulcral para que o utente possa utilizar e preservar a prótese.

sas questões que surgem, trabalhando desde o início com a família e o utente para que a integração social se promova com sucesso, tendo sempre como preocupação o bem-estar e a qualidade de vida do utente e da sua família. A intervenção do serviço social baseia-se nos valores ou princípios gerais da profissão: Respeito pelas pessoas – o reconhecimentos do valor e dignidade de todos os seres humanos Autodeterminação dos utentes Promoção do bem-estar humano Integridade profissional e competência Justiça social O Serviço Social, juntamente com os restantes elementos da equipa, constitui-se como parceiro do utente e da família na construção de um projeto

de vida que possibilite a recuperação e integração social do utente. Em resumo, o Serviço Social desenvolve ações diferenciadas para cada utente/família de acordo com o diagnóstico social: A poio psicossocial à família e utente O rientação/ estudo socioeconómico para o financiamento de produtos de apoio A rticulação com as estruturas da comunidade I nformação sobre direitos e deveres A abordagem à população utente amputada é complexa devido ao trauma inerente à patologia. Acreditamos assim que o modelo de atuação da equipa técnica do CMRA contribui positivamente para a reintegração social e para uma reabilitação com sucesso.

BIBLIOGRAFIA CARVALHO, J.A. Amputações de Membros Inferiores: em busca da plena reabilitação. 2ª edição, Barueri, SP: Manole, 2003 DE LISA, J.A. Medicina de Reabiltação. São Paulo: Manole, 1992. GUARINO, Priscila; CAMILIAN, Therezinha; MASIERO, Daniel, Retorno ao trabalho em amputados dos membros inferiores, 2007 KOTTKE, F.J.; LEHMANN, J.F. Tratado de Medicina Física e Reabilitação de Krusen. 4ª edição, São Paulo: Manole, 1994. LILIANDE, Fátima Dornelas, Uso da prótese e retorno ao trabalho em amputa-

Intervenção do Serviço Social O acompanhamento do assistente social decorre de forma sistemática com o objetivo de procurar dar resposta às diver-

dos poracidentes por transporte, 2010 NUNES, Marco António Prado, Apoio social e qualidade de vida em indivíduos submetidos à amputação de membros inferiores, São Paulo, 2006 SANTOS, Renata Tavares, Pessoa com deficiência e inserção no mercado de trabalho: necessidades e possibilidades dos amputados atendidos no Centro Municipal de Reabilitação Oscar Clark, Rio de Janeiro, 2009

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| SOLIDARIEDADE |

Vencer

Obstáculos A O apelo prontamente respondido pelos Jogos Santa Casa permitiu que as cavaleiras Sara Duarte e Ana Mota Veiga se qualificassem para o Mundial de 2014. Mas os desafios continuam até 2016, onde esperam representar Portugal nos Jogos Paraolímpicos. Texto de Maria João Matos [SUBDIRETORA_GESTÃO DA COMUNICAÇÃO E CANAIS NA DIREÇÃO OPERACIONAL, Departamento de Jogos da SCML]

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os 29 anos, Sara Duarte é farmacêutica de profissão, portadora de paralisia cerebral, com 72% de incapacidade física e cavaleira paraolímpica. Pela sua história pessoal e profissional, força de vontade e empenho, é um exemplo de inspiração para os jovens portadores de deficiência e para todos os portugueses em geral. A Sara é campeã de Portugal de paradressage1 (classe 1B) há vários anos consecutivos. Começando a praticar equitação aos 7 anos por indicação médica, neste momento destaca-se no seu palmarés desportivo uma medalha de ouro em Madrid, uma de bronze no Campeonato da Europa, 5º lugar nos Jogos Paraolímpicos em Pequim 2008 e o 9º lugar em Londres 2012. Apesar dos visíveis sucessos no campo desportivo, a cavaleira destaca o que a equitação lhe trouxe ao nível do seu desenvolvimento pessoal: “Ao crescer com os cavalos, aprendi a superar receios, a cair e a levantar-me, a ser igual aos outros”, revela a atleta. A competição ensinou-a a orgulhar-se da sua “diferença”, reconhecendo-a e aceitando-a, o que faz que Sara tenha hoje uma imagem mais positiva de si mesma: “Aprendi a responsabilidade de representar o meu clube e o meu país, o que contribuiu bastante para a melhoria da minha autoconfiança e autoestima”. Sara Duarte tem construído o seu percurso desportivo na Academia Equestre João Cardiga, desde 1998, apoiada no seu companheiro Neapolitano


| Jogos Paraolímpicos |

1. Sara Duarte nos Jogos Paraolímpicos Londres 2012 2. Sara Duarte – Apresentação na Golegã 3. Sara Duarte nos Jogos Paraolímpicos de Pequim 2008

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A paradressage é uma atividade desportiva para deficientes regulamentada pela Federação Equestre Internacional (FEI). Em Portugal a paradressage está integrada na Federação Equestre Portuguesa (FEP) e na Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD). A modalidade de paradressage está dividida em cinco classes, desde “deficiência acentuada” (classe 1-A) até “deficiência ligeira” (classe 4), conforme o grau de deficiência motora da pessoa que deseja praticar este desporto.

Morella, um cavalo de raça lipizanner, com 10 anos de idade. Com a sua equipa técnica, Sara acalenta o sonho de “fazer história” no hipismo nacional, ao estar presente, pela terceira vez consecutiva, nos Jogos Paraolímpicos no Rio de Janeiro em 2016. O plano de preparação para esta competição exige que a Sara e o seu cavalo marquem presença em diversas provas internacionais. Foi o caso do

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Campeonato da Europa que se realizou em Agosto de 2013, na Dinamarca, onde a Sara conseguiu a 8ª posição na geral, assegurando assim a sua presença nos Jogos Equestres Mundiais em 2014. Licenciada em Audiologia, a Ana Mota Veiga, 39 anos, é portadora de paralisia cerebral como resultado de um parto prematuro e detém o título de vice-campeã de Portugal de paradressage de 2009. “Desde muito cedo o médico recomendou que eu fizesse hipoterapia. Na altura vivíamos numa quinta na serra da Estrela. Porque na época não existia nas proximidades nenhum centro hípico, a minha mãe comprou um cavalo e comecei a fazer uma espécie de hipoterapia caseira. Quando terminei os estudos vim trabalhar para Lisboa e, nessa altura, comecei a ter aulas de equitação. Com esforço e empenho consegui evoluir. Em 2009 comecei a competir primeiro a nível nacional, depois internacional”. 147


| SOLIDARIEDADE |

Em 2010 inicia-se nas competições internacionais. E desde então, nunca mais abrandou o ritmo do seu percurso desportivo, qualificando-se em 2013 para o Campeonato da Europa, da Dinamarca, onde se classificou na 10ª posição na geral individual (classe 1A). Montando o seu cavalo Vento da Devesa, a Ana também marcará presença nos Jogos Equestres Mundiais de 2014.

4. Sara Duarte – Apresentação na Golegã 5, 6. Ana Mota Veiga no Campeonato da Europa 2013

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O apoio dos Jogos Santa Casa a este projeto Ambas as cavaleiras paraolímpicas corriam o risco de não participar no Campeonato da Europa de Paradressage da Dinamarca por falta de verbas. É nesta sequência que a Academia Equestre João Cardiga decide empenhar-se na busca de apoios que possibilitassem que as duas atletas pudessem superar mais este obstáculo. Para Maria de Lurdes Cardiga, presidente da Academia Equestre João Cardiga, “faz todo o sentido ‘construir’ uma equipa que possa representar Portugal nas diversas competições internacionais. Num cenário de imensas dificuldades como é o panorama equestre nacional e, após anos de persistência para manter viva a disciplina de paradressage, a Academia João Cardiga sentiu o dever de cumprir a sua missão, chamando a si a tarefa de conseguir as verbas para as duas atletas.”

Ambas as cavaleiras paraolímpicas corriam o risco de não participar no Campeonato da Europa de Paradressage da Dinamarca por falta de verbas

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Este apelo foi prontamente respondido pelos Jogos Santa Casa, que em boa hora se juntaram a nós. Todos os objetivos puderam assim ser superados e o apoio concedido pelos Jogos Santa Casa permitiu que ambas as cavaleiras se qualificassem para o Mundial de 2014. Mas os desafios continuam até 2016, onde esperamos representar Portugal nos Jogos Paraolímpicos.” “Porque acreditamos sobretudo no apoio aos talentos nacionais, em especial daqueles que não possuem os meios necessários à prossecução dos seus objetivos, considerámos ser uma ex-


| Jogos Paraolímpicos |

celente e notável oportunidade associar a nossa marca a mais uma boa causa. Este apoio às cavaleiras Sara Duarte e Ana Mota Veiga, através da Academia Equestre João Cardiga, representou, logo à partida, uma aposta claramente ganha dos Jogos Santa Casa”, considerou Fernando Paes Afonso, administrador executivo do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

7. Ana Mota Veiga no Campeonato da Europa 2013

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A Academia Equestre João Cardiga A Academia Equestre João Cardiga (AEJC) foi fundada em 1992, com sede em Leceia-Oeiras. Em 2007 torna-se uma Instituição Particular de Solidariedade Social – IPSS, registada e reconhecida pelo Instituto do Desporto de Portugal, Federação Equestre Portuguesa e Escola Nacional de Equitação. Ao completar vinte anos de atividade em 2012, a instituição foi agraciada com a medalha de mérito municipal pela Câmara Municipal de Oeiras, e a medalha de mérito da Junta de Freguesia de Porto Salvo. Promover a equitação para todos, no respeito pela diferença. A AEJC tem como principais fins o apoio a crianças e jovens especialmente carenciados, o apoio à integração social e comunitária de grupos mais vulneráveis, nomeadamente pessoas idosas e/ou com deficiência, a promoção e o fomento da criação e utilização do cavalo nas suas diversas vertentes, tais como a Hipoterapia, a Equitação Terapêutica e a Equitação Adaptada. Tem atualmente 275 associados praticantes, dos quais 75 são portadores de deficiência e 20 são idosos com mais de 65 anos, que praticam a atividade de forma totalmente gratuita. Foi com estes praticantes mais seniores que, em janeiro de 2011, iniciou um projeto pioneiro, proporcionando sessões de equitação terapêutica a esta população com o objetivo de valorizar a prática da atividade física, com ênfase na saúde e prevenção, melhorar o equilíbrio e prevenir quedas, tão frequentes nesta população. A AEJC baseia a sua atividade nos valores do rigor, da cooperação, da confiança, da inclusão e da responsabilidade social e ambiental. Pretendendo vir a ser reconhecida como “uma entidade de excelência, na prestação de serviços ligados às atividades equestres”, a instituição desenvolve múltiplas atividades, das quais se destacam “Trabalhos científicos”, relatórios e monografias de estágios, e os títulos desportivos alcançados. Para tal, desenvolveu variadíssimas parcerias, desde as escolas técnico-profissionais, faculdades, universidades, centros de jovens e idosos, até às coudelarias, instituições oficiais e empresas privadas. (fonte: www.academiaequestrecardiga.com)

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| HISTÓRIA E CULTURA |

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e o Bairro Alto em meados do século XIX.

Problemas sociais e políticas de contenção Texto de João Miguel Simões [Historiador_Museu de SÃO Roque]

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Foto: Paulo Cintra e Laura Castro Caldas.

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m 1768, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi instalada na antiga Casa Professa de São Roque, edifício-sede da Província Portuguesa da Companhia de Jesus, expulsa anos antes, em 1759. A razão para esta instalação tem sido sumariamente explicada pelo facto de a Misericórdia ter ficado com as suas instalações destruídas pelo terramoto de 1755, aproveitando-se então o edifício deixado vago pelos Jesuítas. Esta tese necessita de revisão. A instalação da Misericórdia em São Roque aconteceu 13 anos depois da perda da sua sede na Ribeira e nove anos depois da expulsão dos Jesuítas; a Misericórdia manteve a propriedade dos terrenos da sua anti-

Na cidade pós-terramoto, a Baixa Pombalina atraiu a burguesia com os seus novos edifícios, largas ruas e amplas lojas. O Bairro Alto ficou livre para os desalojados que viviam nas barracas da periferia da cidade. Tornou-se assim, desde finais do século xviii até finais do século xx, num dos mais problemáticos bairros da capital. A Misericórdia de Lisboa, ao ser instalada nas suas imediações, na antiga Casa Professa de São Roque, vocacionou a sua atividade na prevenção dos problemas sociais existentes neste núcleo urbano e na contenção dos seus efeitos sobre os mais desprotegidos.

ga sede e do Hospital Real de Todos-os-Santos no Rossio, tendo optado antes por construir aí prédios de habitação para rendimento; e dentro do espólio imobiliário dos Jesuítas havia outros edifícios que permitiriam à Misericórdia instalar-se com melhores condições, destacando-se o Colégio de Santo Antão-o-Novo, o Noviciado de Monte Olivete à Cotovia ou o Colégio de São Francisco Xavier no Campo de Santa Clara. A escolha pela instalação da sede da Misericórdia em São Roque, junto ao Bairro Alto, foi, em nosso entender, uma opção estratégica, que revela um profundo conhecimento da realidade urbana e social da capital em 1768, com o propósito de responder às 151


| HISTÓRIA E CULTURA |

suas necessidades, e não tanto um aproveitamento imobiliário prático. A Misericórdia de Lisboa terá sido assim instalada na Casa Professa de São Roque em 1768 para mais facilmente atuar sobre os problemas sociais da cidade, localizando-se no Bairro Alto um dos seus principais focos (Fig. 1 e 2).

O terramoto modificou profundamente a estrutura urbana e social da cidade. Muitas pessoas ficaram desalojadas, com a família desestruturada pela morte de familiares e sem grande parte dos seus haveres. A procura da habitação disparou e, naturalmente, ocorreu a lei do mercado: as rendas subiram e muitos foram pressionados a

sair para dar lugar aos mais ricos enquanto as suas casas não se construíam ou reparavam. Os mais pobres não tiveram outro remédio senão habitar em barracas construídas no perímetro da cidade, na atual Praça da Alegria. Com o passar dos anos, a burguesia ocupou a nova Baixa Pombalina e as casas do Bairro Alto, mais ou menos poupadas

A escolha pela instalação da sede da Misericórdia em São Roque, junto ao Bairro Alto, foi, em nosso entender, uma opção estratégica, que revela um profundo conhecimento da realidade urbana e social da capital em 1768, com o propósito de responder às suas necessidades, e não tanto um aproveitamento imobiliário prático pelo terramoto, ficaram livres para os desalojados das barracas. Esta população muitas vezes problemática e desestruturada provocou grande parte dos problemas sociais da cidade nos finais do século xviii e no século xix, chegando os seus ecos ao século xx. Os problemas eram vários, mas destacava-se, entre todos, a prostituição1 atividade legal em Portugal até 19632.

1. e 2. William Hogarth (1697-1764), Beer Street e Gin Lane, 1751, gravura sobre papel. Segundo o ideal iluminista, o homem nasce bom, tornando-se mau pela envolvência social, cultural, económica, etc. Assim, foi uma preocupação das administrações iluministas identificar estas causas e suprimi-las para que a sociedade crescesse feliz. Nesta série de gravuras impressas em Londres atribuiu-se os problemas da população ao consumo excessivo do álcool 1

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1. Cf. CRUZ, Francisco Inácio dos Santos, Da Prostituição na Cidade de Lisboa (1841), 2.ª Ed., Lisboa, D. Quixote, 1984, p. 124 e 125. CASTILHO, Júlio de, Lisboa Antiga: Bairro Alto, Vol. 1, 2.ª Ed., 1902, p. 259. Sobre a história da prostituição em Lisboa consulte-se também GIÃO, Armando Augusto, Contribuição para o Estudo da Prostituição em Lisboa, 1891. PAIS, José Machado, A Prostituição e a Lisboa Boémia do século XIX aos inícios do século XX, 1985. 2. A Lei n.º 44579 de 19 de setembro de 1962 tornou a prostituição ilegal a partir do dia 1 de janeiro de 1963.


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Na capital, não havia muitas vezes mais opções para uma mulher sem família, trabalho, rendimentos ou património. O Bairro Alto de São Roque ficará com este estigma, verificável em numerosos testemunhos. O Pátio do Patriarca e o Teatro do Bairro Alto, convertidos na sede da Companhia de Carruagens Lisbonense e, depois, no século xx,

no Instituto Médico Central pela Misericórdia, era particularmente conhecido por essa atividade que se exercia nas ruas estreitas e sinuosas que ainda hoje se preservam (Fig. 3 e 4). A associação entre a zona de São Roque e a prostituição é clara na fina ironia de Eça de Queirós. N’Os Maias (1888), a “grande ‘topada sentimental de Carlos’ (…) uma

soberba rapariga espanhola (…) muito conservadora como todas as prostitutas (…) foi recambiada a Lisboa e à Rua de S. Roque, seu elemento natural.” N’A Relíquia (1887), Raposão afirma: “De manhã (…) fui saber se a minha Titi tinha algum pio recado para São Roque” ao que a devota senhora respondeu “Obrigado, não quero nada para o senhor São 153


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3. Planta dos arruamentos do Pátio do Patriarca preservados ainda nas instalações da antiga sede da Companhia de Carruagens Lisbonenses. SCML, Arquivo da Direção de Gestão de Instalações e Equipamentos

Roque; já me entendi com ele.” O “horrendo” Negrão tomou por sua a amante de Raposão, Adélia, e, mais gordo, dizia que “saía de São Roque esfalfado de dizer amabilidades a um diabo de um santo!”. N’A Capital, quando a espanhola Concha revela a Artur, “na intimidade da alcova”, o seu passado, descreve: “Mas os ciúmes ferozes do diretor (…) obrigaram-na um dia a vir refugiar-se em Lisboa, com o «vestidinho que trazia no corpo», numa casa

amigável e hospitaleira na Rua de São Roque… Mui desgraciada!” A prevenção das causas e efeitos da prostituição foi a atividade que mais absorveu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em meados do século xix, verificando-se isso em numerosos testemunhos do seu arquivo e na orgânica dos seus equipamentos. O Recolhimento das Órfãs tem a sua génese no final do século xvi, por volta de 15873.

O equipamento foi instalado na Casa Professa de São Roque em dezembro de 1768 sob projeto de Remígio António4. No final de 1833, com Lisboa já sob administração liberal, D. Pedro IV extinguiu o vizinho convento de São Pedro de Alcântara, e entregou-o à Misericórdia para instalar aí o Recolhimento das Órfãs5. No século xix, este equipamento tinha por função selecionar as mais belas raparigas ou aquelas

3. O Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem um fundo ainda não tratado inteiramente dedicado a este equipamento que remonta a, pelo menos, 1587. Cf. PT-SCMLSB/RO/CR/02/Lv 001. 4. Cf. SCML, Arquivo Histórico, Gestão Financeira, Diários de Receita, Livros do Cofre Geral, Livro SCML\GF\DR\01\Lv 003, fl. 71, 8 de dezembro de 1768, n.º 90. 5. Decreto de 31 de dezembro de 1833 in Collecção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por Sua Magestade Imperial o Regente do Reino desde a sua entrada em Lisboa até à instalação das Câmaras Legislativas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1840, p. 70.

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vão classificadas na mesma relação por bonitas e por conseguinte em perigo de se prostituírem, quando emancipadas repentinamente, se dê uma relação delas ao visitador para que, depois de as consultar, se têm propensão para o estado de casadas, haja de promover o seu casamento.”8

com maior “leviandade de caráter” entre as expostas e, por isso, mais facilmente sujeitas à prostituição, e educá-las, ensinando-lhes uma profissão que lhes conferisse independência na vida adulta. Além do alojamento, alimentação, vestuário e educação, a Misericórdia con-

As restantes expostas eram dadas a servir como criadas em casas de “famílias honestas”, donde se tiravam informações prévias9, e estavam sob forte vigilância para não serem maltratadas nem caírem na prostituição, sendo de imediato retiradas logo que

Com o passar dos anos, a burguesia ocupou a nova Baixa Pombalina e as casas do Bairro Alto, mais ou menos poupadas pelo terramoto, ficaram livres para os desalojados das barracas feria-lhes também um pequeno vencimento mensal6, o que lhes proporcionava alguma autonomia. Porém, o destino preferencial destas raparigas era o casamento, entendido como meio mais eficaz para prevenir a prostituição: “e sendo um dever de toda a mãe aperceber-se de todos os meios conducentes ao futuro destino e estabilidade da fortuna de seus filhos, sendo certo que para as do sexo feminino é o estado do matrimónio o que mais pode contribuir para a sua felicidade, visto que ao mesmo tempo previne a sua prostituição (…)”7. “Que quanto aquelas que

4. Fachada falsa construída pela Câmara Municipal de Lisboa para a antiga sede da Companhia de Carruagens Lisbonenses sob projecto de Pierre Joseph Pezerat para impedir o acesso aos arruamentos do Pátio do Patriarca

Foto: Paulo Cintra e Laura Castro Caldas

6. Cf. SCML, Arquivo Histórico, Órgãos de Administração, Mesa, Livros de atas das deliberações da Mesa, Livro SCML\ OA\MS\04\Lv 001, fl. 108v. 7. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\ Lv 002, fl. 78. 8. Cf. Ibidem, Lv 003, fl. 99v. 9. Cf. Ibidem, Lv 002, fls. 11 e 108. 10. Cf. Ibidem, Lv 001, fl. 22. 11. Cf. Ibidem, fl. 57v. 12. Cf. Ibidem, Lv 002, fl. 22v.

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5, 6 e 7 – Projeto das novas fachadas construídas nas casas da Calçada da Glória sob projeto de Pierre Joseph Pezerat e encomenda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1856-1862

se verificasse o perigo10. Eram acompanhadas por pessoas devidamente identificadas11 e o poder local colaborava com a Misericórdia12. Por vezes, havia divergência entre a Mesa e a direcção do Hospital dos Expostos. A primeira pretendia que “sejam quanto antes dadas para fora do estabelecimento todas as expostas que estiverem em circunstâncias de sair, em ordem a diminuir-se a população da casa e desaparecer o abuso, que há constado à Mesa, de se fazerem preferências e seleções a tal respeito, retendo-se no mesmo estabelecimento algumas que poderiam convenientemente estar fora”13. A segunda, consciente da recorrência dos maus-tratos, tentava por todos os meios atrasar este afastamento da instituição. Por vezes acontecia as próprias expostas fugirem das casas selecionadas pela Miseri13. Cf. Ibidem, fl. 2. 14. Cf. Ibidem, fls. 24v e 29.

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Fotos: Arquivo Municipal de Lisboa, CML.

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córdia para se dedicarem voluntariamente à prostituição, como aconteceu com “a exposta Engrácia, que tendo fugido da casa dos amos a quem havia sido dada a servir, fora depois encontrada em casa de umas meretrizes na Rua de São Marçal”14. Na verdade, a Mesa verificou que existia um grande número de “expostas menores de 20 anos que infelizmente se prostituem nas casas onde se acham a servir, posto que mandadas para aí depois das mais escrupulosas


Foto: SCML, Arquivo Histórico.

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informações sobre a honestidade das mesmas casas”15. Apesar de o casamento ser a via preferencial de emancipação, a Misericórdia reservava-se o direito de analisar o pretendente, a sua vida e costumes, mais uma vez com o objectivo de prevenir o ingresso na prostituição. Assim aconteceu com o pedido de casamento de Guilherme Faustino Cardoso Pereira, que pretendia casar-se com a exposta Emília de Jesus. O interessado fez-se representar por um amigo que, “pelas suas respostas aos quesitos que lhe foram propostos pelo Exm.º Sr. Provedor, se confirmaram as suspeitas já formadas sobre a pouca sinceridade de semelhante pretensão”16.

As recolhidas eram alvo de vários pretendentes que lhes enviavam presentes, levando a Mesa a deliberar que a rodeira do Recolhimento de São Pedro de Alcântara “não entregue às pessoas a quem forem dirigidos os presentes ou quaisquer outros objetos que receber, sem que primeiro os vá apresentar à Regente”17. Temia-se que a troco de presentes e de promessas de casamento, muitas das expostas cedessem aos “sedutores” originando fugas, raptos consentidos, e gravidezes indesejadas, prejudicando o futuro da rapariga como esposa ou mesmo como criada de servir e, consequentemente, lançá-la na prostituição. Quando isso acontecia, a Mise-

ricórdia perseguia judicialmente os homens, como no caso da queixa ao procurador régio, “pedindo que instaurasse o conveniente processo contra José Duarte, filho de Quintino Duarte, do lugar de Lamas, concelho do Cadaval, de quem consta achar-se grávida a exposta Margarida Mariana”18. Noutra ocasião, o enfermeiro-mor do Hospital de São José denunciou “a fuga da exposta Maria Henriqueta, que se achava no mesmo hospital como ajudante das enfermarias de mulheres” tendo a Mesa “pedindo-lhe que indague se na fuga interveio a sedução de algum empregado do hospital, para que não fique impune, como convém à moralidade pública.” 19

8. Projeto (nunca concretizado) da nova fachada do edifício-sede da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa da autoria de Pierre Joseph Pezerat, 1858

15. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 004, fl. 26v. 16. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fls. 4 e 4v. 17. Cf. Ibidem, fl. 6v. 18. Cf. Ibidem, fl. 14v. 19. Cf. Ibidem, Lv 002, fl. 24.

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9. Gravura do Largo de São Roque após a remodelação urbana de meados do século XIX. Pub. Revista Municipal, 1953.

Noutro episódio, o Governo Civil informou a Misericórdia “do rapto da exposta Veríssima dos Anjos e das diversas circunstâncias deste facto”, tendo esta última instituição respondido “que a exposta já se acha recolhida à casa, e manifestando que a Mesa folgará muito de que pelo Ministério Público se proceda contra o raptor”20. Mais tarde percebeu-se que o “rapto” fora afinal uma “fuga da casa para onde havia sido dada a servir”21. Uma vez consumada a gravidez, à rapariga era dada a emancipação compulsiva depois do parto “segundo a lei”22, ou seja, a Misericórdia desvinculava-se da responsabilidade de assegurar o seu futuro.

Acima de tudo tentava-se na prevenção, advertindo, “paternalmente e muito em segredo”, as órfãs mais ousadas “sobre as ocasiões que o seu procedimento há dado a várias suspeitas (…) acerca da sua moralidade e mau exemplo às outras órfãs”23. A arquitetura e a orgânica do Recolhimento de São Pedro de Alcântara também foram adaptadas “a fim de evitar a entrada de homens no estabelecimento”24; bem como a aplicação de “umas rótulas ou tabuinhas fixas para as janelas do Recolhimento, as quais serão colocadas de maneira que não tolham o ar nem a luz mas somente a vista para as casas vizinhas”25. A saída das raparigas foi restri-

20. Cf. Ibidem, fl. 38. 21. Cf. Ibidem, fl. 45. 22. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 100v. 23. Cf. Ibidem, fl. 72. 24. Cf. Ibidem, fl. 43v. 25. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fl. 11v. 26. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 59. 27. Cf. Ibidem, fl. 61v. 28. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fl. 2v. 29. Cf. Ibidem, fl. 5. 30. Cf. Ibidem, fl. 19. 31. Cf. Ibidem, fls. 34 e 41v.

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ta: “os passeios higiénicos das expostas se façam unicamente na cerca e de nenhum modo fora do estabelecimento sem expressa licença da Mesa.”26 E os banhos de mar eram permitidos mas apenas com prescrição médica e “com todas as cautelas para evitar abusos”27. Por vezes, as próprias recolhidas possuíam uma personalidade incompatível com a norma moral da época, como “o caráter e procedimento moral da exposta Carolina Gomes” marcado pelos “desatinos que provêm da sua incorrigibilidade”28. A punição foi severa: “que continue a ser retida no cárcere a pão e água em dias alternados, até que ela, reconhecendo o seu desvario, se preste a pedir perdão ao diretor em presença da comunidade.”29 Outro caso, o de uma exposta que servia como criada na enfermaria do Amparo, a qual recebeu uma denúncia por um “repreensível comportamento”, tendo a Mesa resolvido a que se “proceda secretamente a mui escrupulosas indagações para depois se proceder como for justo”30. Uma vez atingida a maioridade, aos 25 anos de idade31,


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Temia-se que a troco de presentes e de promessas de casamento, muitas das expostas cedessem aos “sedutores” originando fugas, raptos consentidos, e gravidezes indesejadas, prejudicando o futuro da rapariga como esposa ou mesmo como criada de servir e, consequentemente, lançá-la na prostituição a órfã era emancipada saindo do recolhimento sob a tutela de um fiador, o qual era também previamente analisado: “antes da saída das órfãs do recolhimento, se proceda ao mais escrupuloso exame sobre a probidade e bons costumes dos fiadores respetivos, para se deliberar se convém ou não serem-lhes entregues as mesmas órfãs.”32 A 28 de novembro de 1853, com o objetivo de reduzir custos, antecipou-se a idade de emancipação para os 20 anos desde que a órfã já trabalhasse num equipamento da Misericórdia. Porém, houve uma exceção: “daquelas que, em razão da sua beleza ou leviandade de caráter, correm o risco de se entregarem à prostituição quando emancipadas. (…) Que a respeito das expostas menores de 20 anos ou das maiores que estiverem nas mencionadas hipóteses de se perderem por formosura, ou qualquer outra circunstância, se empreguem todos os meios

possíveis de promover seus casamentos com artistas bem morigerados”33. A Mesa mandou que se entrasse em contacto “com os donos das principais fábricas da capital, propondo-lhes que aqueles dos seus artistas que tiverem propensão para o estado do matrimónio e quiserem ajudar esta Santa Casa na obra de caridade que neste intento se propõe, amparando e estabelecendo honestamente as expostas” se casassem com estas raparigas em troca de um dote de 20 mil réis34. As amas de leite dos expostos deviam ser também “constante e impreterivelmente vigiadas” não só porque desviavam a alimentação destinada aos órfãos35, mas porque muitas delas tinham comportamentos que representavam um perigo acrescido para a criança36, nomeadamente pelos maus tratos, levando a Mesa a deliberar “que o facultativo declare sempre que

lhe seja possível se o mau estado em que entra alguma criança se pode provavelmente atribuir a mau tratamento ou incúria da ama”37. Em caso de denúncia, o diretor dos expostos devia tirar informações junto dos órgãos de poder local e nunca junto dos funcionários da casa38. Outro perigo presente era que as amas forçassem as expostas a prostituírem-se: “em consequência das informações que foram presentes à Mesa resolveu-se que a exposta Clementina, que se acha em casa da ama Rosa Maria, moradora na Rua dos Remédios, n.º 9, fosse imediatamente recolhida à Casa, e que o diretor requisitasse o auxílio dos cabos de polícia por constar que da parte da ama se há-de opor alguma resistência na entrega da exposta”39. Outro aspeto vigiado nas amas era se obrigavam os expostos a mendigarem, o que, no caso das raparigas, era conside-

32. Cf. Ibidem, fl. 18. 33. Cf. Ibidem, fls. 95 e 95v. 34. Cf. Ibidem, fl. 95v. 35. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 116v. 36. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fls. 17v, 50v e 60 a 60v. 37. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 48v. 38. Cf. Ibidem, fls. 64v e 65. 39. Cf. Ibidem, fl. 15v.

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rado como suscetível de provocar a prostituição: “Foi presente a informação do visitador geral dos expostos dando parte de haver tirado à ama Maria da Conceição a exposta Angélica, de 10 anos, por andar de noite pedindo esmola e em risco de entrar no caminho da perdição.”40 A vigilância dos costumes era partilhada entre instituições para que mais facilmente surtisse efeito, envolvendo Governo Civil e Regedores de Paróquias41. Muitas amas tentavam iludir a Misericórdia com “nomes supostos e outros artifícios para obterem expostos indevidamente”42. O Asilo do Amparo funcionou em edifício anexo ao Hospital de São José, sendo transferido para São Roque em outubro de 1853. As mulheres, denominadas de “entrevadas” ou “inválidas” foram instaladas no Hospital dos Expostos43. Na documentação refere-se frequentemente os “motins” perante a impotência da regente que tinha “melindre em usar da autoridade que a Mesa lhe conferia”44, as “desordens” “pela irregularida-

de do procedimento de alguns dos seus asilados”45, as “notícias desagradáveis” que urgia averiguar com o “costumado zelo”46, as cartas anónimas “delatando diversas ocorrências que se dizia terem tido lugar”47 e os conflitos entre “inválidas” e “órfãs” num breve período em que se pretendeu juntar ambos os equipamentos no Convento de São Pedro de Alcântara48. Ainda no Hospital de São José, muitas das “asiladas” entravam na área dos homens levando a Mesa a emitir a “ordem ao porteiro e enfermeiro para que não consinta que qualquer mulher de fora ou das do estabelecimento entre na parte do edifício que está destinada para habitação dos homens”49. Outras passavam fora a noite, levando a Mesa a determinar “que se ordene à regente do Amparo que não consinta que asilada alguma fique fora do estabelecimento sem licença da Mesa”50. Para ocupar as asiladas, a Mesa pediu informações “sobre as práticas ali estabelecidas tanto em ocupações e trabalhos como na distribuição das horas do dia”51. Por fim, obrigou-se as

40. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fl. 101. 41. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fls. 51 e 115. 42. Cf. Ibidem, fl. 63v. 43. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fls. 63v a 64v. 44. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 13. 45. Cf. Ibidem, fl. 105v. 46. Cf. Ibidem, fls. 61 e 61v. 47. Cf. Ibidem, fls. 71v, 98v e 103. 48. Cf. Ibidem, fls. 53, 84v e 94. 49. Cf. Ibidem, fl. 14. 50. Cf. Ibidem, fl. 85. 51. Cf. Ibidem, fl. 8v. 52. Cf. Ibidem, fl. 98v. 53. Cf. Ibidem, fls. 84v e 85v; Livro SCML\OA\MS\04\Lv 004, fl. 35v. 54. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 002, fl. 13v. 55. Cf. Ibidem, fl. 29v.

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asiladas “a assistir à reza e a todos os mais atos religiosos sob pena de serem despedidas do asilo”52. As casas da Calçada da Glória eram arrendadas por quartos53, muitos foram ocupados por “meretrizes” para que a prostituição decorresse dentro de portas e não em plena rua, a coberto das ruínas da antiga Torre de Álvaro Pais, onde aconteciam “os abusos que de contínuo se estão cometendo contra a moral pública e contra todas as regras de decência ao abrigo dos pardieiros que existem no Largo de São Roque”54. Nas casas da Calçada do Duque e da Rua da Betesga, também propriedade da Misericórdia, mas onde era “proibida a morada de meretrizes”, foram “as intrusas” convidadas a sair e o inquilino repreendido55. A roda dos expostos foi entendida, nesta época, como um instrumento de tolerância dos males sociais, pois permitia a desresponsabilização dos progenitores dos deveres da paternidade, provocando problemas gravíssimos de saúde pública como a morte de grande parte


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das crianças e o colapso financeiro da instituição. Em janeiro de 1852 proibiram-se as exposições anónimas56 e em março, numa tentativa de contenção de custos, a Misericórdia proibiu “o outro abuso que também consta de serem enjeitados muitos filhos

costumes, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em colaboração com a Câmara Municipal, apostou no reordenamento urbano como forma de dificultar a prostituição: os arruamentos do Pátio do Patriarca foram fechados com a fachada falsa da Companhia de Carruagens

rodeado com fachadas neoclássicas, onde se incluía a da Misericórdia, nunca concretizada, também da autoria de Pezerat62 (Fig. 9). Ao centro, ergueu-se um monumento evocativo do casamento régio, composto por uma coluna, símbolo do rigor,

A prevenção das causas e efeitos da prostituição foi a actividade que mais absorveu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em meados do século XIX de pais legítimos”57. Em 30 de junho desse ano discutiu-se em sessão de Mesa um projeto de lei a apresentar ao Governo com o objetivo “de abster a que as pessoas casadas ou abundantes de meios enjeitem os filhos”58, ou seja, a roda passou a ser destinada somente a receber crianças fruto de ligações ilegítimas, e os depositantes tinham de ser identificados. Para além da vigilância dos

Lisbonenses, projeto de Pierre Joseph Pezerat59 (Fig. 5); as ruínas da Torre de Álvaro Pais foram demolidas60; as fachadas das casas da Calçada da Glória foram reformadas, assumindo uma fisionomia mais austera e institucional61 (Fig. 6, 7 e 8); o Largo de São Roque foi reorganizado, suprimindo-se a planta irregular dada pela linha da muralha fernandina e adotando-se o modelo da praça quadrada,

mas lembrando uma palmatória, instrumento de punição escolar, e que deu o nome popular ao largo. Evoca, precisamente, o casamento enquanto instituição social e sacramento religioso, pilar da sociedade e da religião. Numa gravura oitocentista63 do largo após o reordenamento aparece em primeiro plano um casal, passeando em São Roque, tal como faziam as famílias respeitáveis no Passeio Público.

56. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 001, fl. 8. 57. Cf. Ibidem, fl. 21v. 58. Cf. Ibidem, fl. 52. 59. Cf. SIMÕES, João Miguel, “O complexo de São Roque, a colina secreta de Lisboa” in MANTAS, Helena Alexandra (Coord.), Património Arquitectónico. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, vol. 2, t. 2, Lisboa, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa / Museu de São Roque, 2010, p. 26 a 28. 60. Cf. SCML, Arquivo Histórico, Órgãos de Administração, Mesa, Livros de atas das deliberações da Mesa, Livro SCML\OA\ MS\04\Lv 002, fl. 13v. 61. Cf. Ibidem, Livro SCML\OA\MS\04\Lv 006, fl. 52. CML, Arquivo do Arco Cego, Prospeto do prédio que a SCML pretende construir em substituição do que vai demolir na Calçada da Glória, 1856, PT/AMLSB/CMLSB/ADMG-E/08/0422; Prospeto dos prédios que a SCML pretende reconstruir na Calçada da Glória fazendo cunhal para a Rua de São Pedro de Alcântara, 1861, PT-AMLSB/CMLSB/ADMG-E/08/0749; Prospeto da casa que a SCML pretende edificar na Calçada da Glória, 1862, PT-AMLSB/ CMLSB/ADMG-E/08/0783. 62. Cf. SCML, Arquivo Histórico, Obras, Projetos e Orçamentos de Obras, Diversos, PT-SCMLSB/SCML/Div/Cx 035, “Alterações feitas ao prospeto da reedificação que a Santa Casa da Misericórdia pretende fazer no seu edifício no Largo de São Roque” pub. PEREIRA, Sílvia Linhares de Freitas, O Edifício do Museu de São Roque. Mais de um século de remodelações. História, projectos e intervenções, Dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Fevereiro de 2011, p. IX, fig. 15. 63. A fonte original da gravura é-nos desconhecida. Encontra-se publicada em Revista Municipal, Câmara Municipal de Lisboa, ano 14, n.º 58, 3.º Trimestre de 1953, p. 5.

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OS MÁRTIRES DA LEGIÃO DE TEBAS na Igreja de São Roque A tradição de conservar e venerar relíquias dos santos remonta às origens do cristianismo, e estava inicialmente ligada ao culto dos mártires. Podemos afirmar que os primeiros relicários foram os seus túmulos e, posteriormente, os edifícios e altares construídos sobre esses túmulos. Texto de António Meira Marques Henriques [Técnico Superior do Museu de São Roque]

A

tradição de conservar e venerar relíquias dos santos remonta às origens do cristianismo, e estava inicialmente ligada ao culto dos mártires. Podemos afirmar que os primeiros relicários foram os seus túmulos e, posteriormente, os edifícios e altares cons-

truídos sobre esses túmulos. O culto público dos mártires teve, assim, origem no século ii, estando ligado ao lugar onde ocorreram os respetivos martírios. Esta tradição perdurou na Igreja Católica, durante séculos, sendo parte intrínseca do seu devocionário e espiritualidade. Assim se compreende que o Código

do Direito Canónico determine: “Conserve-se a antiga tradição de guardar sob o altar fixo relíquias dos mártires ou de outros santos, segundo as normas estabelecidas nos livros litúrgicos”1. No período da Contra-Reforma Católica, o culto das relíquias conheceu um forte incremento, sobretudo a partir do Concílio de

Bustos-relicários

dos Mártires de Tebas, Altar dos Santos Mártires, Igreja de São Roque

1. C.D.C., c.1237, #2. No Código do Direito Canônico de 1917 aparecem vários cânones relativos à veneração de relíquias: 1276, quanto à importância do culto; 1255, ao tipo de culto; 1281, quanto às relíquias insignes; 1282, quanto à conservação de relíquias em oratórios privados; 1283 e 1284, quanto ao culto público e a autenticidade; 1285, quanto às relíquias antigas; 1287, quanto à maneira de expor; 1288, quanto às relíquias da Santa Cruz; 1289 quanto ao cuidado e à venda de relíquias. Portanto, eram dadas normas expressas acerca da autenticidade das relíquias.

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uma legião romana composta por cerca de três a seis mil homens que se teriam convertido em massa ao cristianismo, tendo sido martirizados por volta de 285 AD ou 292 AD” Trento (1545-1563) que, na sua última sessão, se dedicou a regulamentar o culto das relíquias, em ordem a corrigir superstições e, sobretudo, evitar a falsificação das mesmas2. As recomendações tridentinas deram origem a uma nova forma de piedade, uma vez que legitimava a devoção aos santos através da contemplação dos vestígios materiais dos seus corpos, na sequência da qual a Companhia de Jesus deu um contributo assinalável para a sua divulgação. Em Portugal, não existia igreja ou colégio jesuíta que não exibisse a sua coleção de relíquias, tendo sido sobretudo a Igreja de São Roque e a Casa Professa de Lisboa que contou com maior número destes preciosos objetos, revestindo-se de uma importância histórica sem paralelo. Trata-se de peças de grande carga simbólica e devocional, testemunhas marcantes da espiritualidade contra-reformista.

1. Na Igreja de São Roque, além das relíquias das famosas Onze Mil Virgens, que se encontram bem identificadas no altar-vitrine das Santas Mártires (ver também estudo em Cidade Solidária, nº 26, 2011), outro conjunto de relíquias com seus respetivos relicários merece um estudo aprofundado, nomeadamente as dos Mártires da Legião de Tebas (ou Legião Tebana), cuja história consideramos igualmente fascinante. Antes, porém, um breve apontamento acerca da origem da Legião Tebana, segundo a historiografia tradicional. De acordo com a hagiografia de São Maurício, o principal entre os santos da Legião, e segundo a narrativa medieval relatada na Legenda Áurea3, aquela seria uma legião romana composta por cerca de três a seis mil homens que se teriam convertido em massa ao cristianismo, tendo sido mar-

tirizados por volta de 285 AD ou 292 AD (ou em 302 AD, segundo outras versões). A Legião estaria inicialmente sediada na região de Tebas, no Alto Egito. O imperador Diocleciano, que governou Roma entre 284 e 305 AD., dera ordens através de Marco Aurélio Maximiano para que os soldados desta Legião partissem para a Gália, a fim de combaterem os rebeldes da Borgonha. A Legião Tebana pôs-se então a caminho, sendo comandada na sua marcha por Maurício4, Cândido e Exupério, todos estes venerados como santos. Porém, ao chegarem à cidade suíça de Saint-Maurice-en-Valais (que na época romana se apelidava Agaunum), receberam ordens do imperador para oferecer sacrifícios aos deuses romanos, em agradecimento pelo sucesso da campanha. Porém, os soldados cristãos teriam recusado oferecer tais sacrifícios, pelo que foram dizimados, ou seja, um morto em cada dez homens. O processo foi repetido até que ninguém terá sobrevivido. No entanto, segundo outra tradição, alguns soldados da companhia de São Maurício teriam escapado à matança de Agaunum, nomeadamente o mártir São Urso, que, segundo a tradição foi decapitado em So-

2. XXV Sessão do Concílio de Trento, 1563. 3. Legenda Áurea ou Lenda Dourada, na expressão popular, obra escrita por Jacques de Voragine, em 1260. Publicada há quase 750 anos, permanece um livro de surpreendente atualidade. O frade dominicano Jacques de Voragine, em plena Idade Média, compôs uma obra sem precedentes, narrando a vida dos 180 santos mais conhecidos na época. Escrita em latim popular, o seu objetivo era compor uma narrativa simples para auxiliar o clero, que servisse de inspiração para as suas pregações, apresentando exemplos que corriam de boca em boca, através de tradições populares. O resultado de tal iniciativa foi impressionante: em alguns anos a obra tornou-se, juntamente com a Bíblia, o livro mais copiado, lido, escutado, comentado e parafraseado nos países da Cristandade ocidental. Em 1265, Jacques de Voragine foi eleito provincial de sua ordem na Lombardia. Em 1292, foi nomeado arcebispo de Génova, cargo que ocupou até a morte, aos 70 anos, em 1298. 4. São Maurício distinguiu-se como capitão da Legião Tebana, uma unidade do exército romano que fora recrutada no Alto Egito, na região de Tebas, e que seria composta inteiramente por cristãos. Foi o primeiro santo negro do cristianismo. O nome Maurício quer dizer “mouro negro” em grego. Um dos seus atributos é um cetro de comandante na mão direita.

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leure (Suíça), tendo ficado como patrono desta cidade; também São Gereão teria escapado para Colónia (Alemanha) e aí ficara sepultado; por sua vez, São Vítor teria alcançado a cidade alemã de Xanten, onde também ficou sepultado. A história do martírio destes objetores de consciência romanos foi muito propagada na primeira metade do século v, por Santo Euquério (o célebre bispo Eucherius de Lyon), na sua obra latina Passio Agaunensium martyrum (Paixão dos Mártires de Augaune)5. O relato deste santo encorajou uma vaga de peregrinações ao local. Muitos fiéis vinham de diversas províncias do império para honrar estes santos e oferecer ouro, prata e outras dádivas para a construção da abadia de Agaunum (situada na atual diocese de Sion, Suíça) onde a legião romana teria sido martirizada6. Esta versão tradicional, que foi transmitida durante séculos de forma acrítica, encontrou forte contestação por parte de investigadores modernos, para quem a narrativa ingénua da Legião Tebana não tem qualquer base de sustentação, por duas razões: primeira, o castigo da decimatio, por exemplo, já tinha sido abolido há séculos [a última referência remonta à época do imperador Galba (3 a.C.

Altar dos Santos Mártires, Igreja de São Roque

– 69 d.C.), mais de duzentos anos antes]. Em segundo lugar, anteriormente à época do imperador Constantino, os cristãos evitavam servir no exército romano, e entre a maioria dos

legionários estavam difundidos outros cultos, pelo que se torna muito difícil acreditar que alguma vez tivesse existido uma legião exclusivamente composta de soldados romanos cristãos7.

5. Santo Euquério, bispo de Lyon, França (370 – Lyon, 450). Casou-se com Gália, com quem teve dois filhos, que se tornaram santos, Verano e Salonio. Por volta de 422 retirou-se para Lérins com a família e, posteriormente, para a ilha Santa Margarida, para se dedicar à oração e ao estudo. Eleito bispo de Lyon, entre 431 e 441, teve grande influência no pensamento e realizou uma profunda atividade pastoral. Em 441 participou no 1º concílio do Orange. Deixou homilias, diversos comentários às Sagradas Escrituras e tratados sobre a vida eremítica. 6. RÉAU, Louis, Iconografia del Arte Cristiano, volume 7, Ed. del Serbal, Barcelona, 1997, p. 381. 7. WOODS, David, “The Origin of the Legend of Maurice and the Theban Legion,” in Journal of Ecclesiastical History, Cambridge, vol. 45 (1994), p. 385-95.

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O martírio de São Maurício, Rómulo Cincinnato, 1583, óleo sobre tela, Mosteiro de São Lourenço, Escorial

O culto e a devoção a estes mártires intensificou-se, porém, a partir do momento em que os seus corpos supostamente foram descobertos e identificados por São Teodoro, bispo de Octodrum, enquanto exercia o seu cargo em 350 AD. Na sequência, foi erigida uma basílica em sua honra em Agaunum, onde os mártires passaram então a ser venerados. Esta basílica tornou-se rapidamente o centro de um mosteiro construído por volta do ano 515, em terras cedidas pelo rei Segismundo, da

Borgonha8, que se transformou no principal santuário de culto a estes mártires. Com o estabelecimento da Companhia de Jesus na Suíça, a partir de 1577, o jesuíta Pe. Pedro Canísio (1521–1597) torna-se um dos mais ativos empreendedores da contrarreforma católica neste país. A partir de Friburgo, onde estava sediado, edita catecismos, livros de orações e biografias de santos, inclusivamente um tratado volumoso sobre os Mártires de Tebas – São Maurício e seus companheiros – aos quais ainda acrescentou São Urso, por ser muito venerado em Soleure. Deste modo, acabaria por despertar nos católicos suíços o reconhecimento e a devoção aos mártires do passado medieval9. Atitude semelhante tivera outro confrade seu, o Pe. Pierre Fabvre, quando ao passar por Colónia (Alemanha), na década de 1540, se converteu de imediato num fervoroso devoto das relíquias das Onze Mil Virgens, mártires de Colónia. 2. Culto e iconografia. O centro de culto mais importante aos mártires da Legião de Tebas era, como dissemos, a Abadia de Agaune (antiga Agaunum), na região suíça de Valais, que adotou por isso o nome de Saint Maurice (St. Moritz). Desde a Suíça o culto de São Maurício irradiou seguidamente para França, Alemanha e Itália. Em França, era venerado sobretudo

8. RÉAU, Louis, op. cit., p. 382. 9. La Compagnie de Jésus, Jesuites, ed, Le Sarment, Fayard, Paris 1983, p. 16. 10. RÉAU, Ibidem. 11. Ibidem.

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na região do Ródano. No vale do Loire, a catedral de Angers era dedicada à sua invocação. A catedral de Tours tinha também a sua invocação antes de ser dedicada a São Graciano. Na Alemanha, era venerado em Magdeburgo e, sobretudo, em Halle, Saxónia. Esta cidade tinha aliás o título original de Moritzburg e o tesouro mais precioso da colegiada era uma estátua e um precioso relicário de prata. Em Colónia havia também uma igreja dedicada ao seu nome. Na Itália, tornou-se o patrono do Piemonte, território mais próximo da região suíça de Valais e também da Casa de Saboia que, em maio de 1430, criou a Ordem Militar de São Maurício. O culto a este santo estendeu-se por todo o Norte de Itália, até às cidades de Milão e Mântua, cada uma das quais dedicou uma igreja ao seu nome10. Na sua qualidade de chefe militar da Legião Tebana, São Maurício é representado normalmente a cavalo, em armadura militar, com pendão e escudo; por vezes, é representado de pé, como soldado de infantaria romano. Por isso, desde cedo foi considerado patrono dos cavaleiros cruzados, dos soldados de infantaria e, posteriormente, da Guarda Suíça do Vaticano. São Maurício tornou-se, assim, um dos santos mais populares da Europa Ocidental11. Na Idade Média, este santo foi o protetor de várias dinastias


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europeias, e, em particular, dos sacros imperadores romanos, muitos dos quais foram ungidos diante da sua imagem na antiga Catedral de São Pedro, em Roma. A sua espada foi usada pela última vez na coroação do imperador Carlos de Áustria, como rei da Hungria, em 191612. A sua festa litúrgica celebra-se no dia 22 de setembro, conforme referem o Martirológio Romano e a Acta Sanctorum13. 3. Lista dos Mártires de Tebas, conforme consta n’A Legenda Dourada e noutras obras que lhes estão associadas14: São Maurício Santo Inocente São Cândido Cássio e Florêncio São Teofredo São Constâncio Santo Exupério Félix e Regula, patronos de Zurique São Fidélio de Cuomo São Fortunato de Casei São Gandolfo da Borgonha São Gereão de Colónia São Magno de Cuneo São Segundo de Asti Solutor, Octaviano e Adventor, patronos de Turim

O culto e a devoção a estes mártires intensificou-se, porém, a partir do momento em que os seus corpos supostamente foram descobertos e identificados por S. Teodoro, bispo de Octodrum, enquanto exercia o seu cargo em 350 AD.” São Tégulo São Urso de Soleure, patrono da cidade de Soleure, Suíça São Vítor de Xanten, patrono da cidade de Xanten, Alemanha 5. Na Igreja de São Roque existem numerosas relíquias dos Mártires de Tebas (Tebeus ou Tebanos, conforme as versões), identificadas como sendo as de São Cândido, São Constâncio, São Fortunato, São Gereão de Colónia, São Magno, São Urso de Soleure e São Maurício, as quais se encontram inseridas em diversos bustos-relicários, de madeira policromada e dourada, datados dos séculos xvi/xvii, atualmente situados com destaque no Altar dos Santos Mártires,

junto à Capela-mor. No total, contam-se sete bustos de madeira, conforme vem descrito na obra Memoria do Descobrimento e Achado das Sagradas Relíquias do Antigo Santuário da Igreja de São Roque, p. 22. Igualmente, encontramos diversas relíquias de

São Maurício com estandarte da Legião Tebana. Vitral da Basílica de Saint-Denis, Paris

12. Carlos I da Áustria e IV da Hungria ou Carlos I de Habsburgo-Lorena foi o último imperador da Áustria, Rei da Hungria e da Boémia, entre 1916 e 1918. Morreu exilado no Funchal no dia 1 de abril de 1922. O seu corpo encontra-se sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Monte. 13. O Martirológio Romano (do latim: Martyrologium Romanum) é o catálogo dos santos e beatos venerados pela Igreja Católica Romana. Inclui todos os santos conhecidos e não apenas os mártires. A primeira versão foi escrita no século xvi e aprovada pelo papa Gregório XIII em 1584, tendo sido revista muitas vezes. As sucessivas reedições que se fizeram apresentam graves lacunas históricas apontadas pelos Bolandistas, por volta de 1640. A atual edição do Martirológio Romano (2001), que atualizou a edição de 1956, inclui 6538 santos e beatos, mas o seu número total é maior, já que, em muitos casos, um nome aparece seguido de “companheiros mártires”. O documento está ordenado pelos dias do calendário, nele constando o local e a data da morte, o título canónico (apóstolo, mártir, confessor, virgem, ou outro), o tipo de memória litúrgica, notas sobre a sua espiritualidade e factos mais relevantes da sua vida e obra. Cf. Acta Sanctorum, VI, sept., 308, 895. 14. Cf. VORAGINE, J., La Legende Dorée, Éditions Rombaldi, Paris, 1942, vol. II, p. 231-236. Também La Legione Tebea, disponível em http://www.cartantica.it/pages/LegioneTebea.asp

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quatro bustos-relicários dos mártires da Legião Tebana chegaram a São Roque, pela mão de Fernão de Mattos, secretário de estado em Madrid, quando este acompanhou as ossadas de Dom João de Borja, enviadas de Madrid pela viúva, Dona Francisca de Aragão” Santos Tebeus em dois relicários Ad Tabula, dos finais do século xvi, (Inv. RL 1001 e Inv. RL 1003), referenciados já no inventário de 1614, fl. 63, bem como no inventário de 1698, fl. 9v. Relíquias diversificadas de São Maurício, mártir, encontram-se dispersas por três relicários de formatos diferentes, nomeadamente num braço-relicário de madeira estofada e dourada (inv. RL 1101), num relicário de prata e madeira (inv. RL/MT 0292) (atualmente em exposição permanente no Museu), e num pequeno busto-relicário integrado no conjunto de pequenos relicários expostos na Capela de Nossa Senhora da Doutrina (inv. RL 1199). Durante o grandioso cortejo processional que transportou a coleção de relicários de D. João de Borja para a Igreja de São Roque, em 25 de janeiro de 1588,

no oitavo andor seguia “um braço de prata, parcialmente dourado, com a mão segurando um bastão de comandante militar. Através de três orifícios envidraçados na peça podiam ver-se relíquias de São Gereão, “capitão da companhia de São Maurício”, conforme a descrição feita pelo Padre Manoel de Campos, na sua obra histórica15. Idêntica referência é feita no oitavo andor do “Recebimento” onde seguia um relicário em forma de urna octogonal, que continha no interior uma relíquia de São Cândido, membro da companhia de São Maurício16. Como é que as relíquias dos célebres mártires da Legião Tebana chegaram à Igreja de São Roque? Além das relíquias de São Gereão, de São Cândido e de São Maurício, que integravam a grande doação de D. João de Borja,

em 1588, outras terão vindo no ano de 1594, conforme a informação de William Telfer na sua obra de 1932, as quais teriam viajado de Itália pela mão do delegado jesuíta à Congregação Geral de 1593, o Pe. João Correia, membro da Casa Professa de São Roque17. A referência a estas relíquias vem explícita no documento nº 69 das Autênticas, cujo texto diz o seguinte: Certifico eu, Joam Correa, Sacerdote professo da Companhia de Jesu, que eu dei á Casa de S. Roque da mesma Companhia seis Reliquias; Parte de hum braço e hua costa, e quatro outras reliquias, todas seis dos santos martires de Treveris, que troxe de Florença; e m’as deu hum Padre da Nossa Companhia, e ouve (tem) o estromento autentico dellas; com a qual confirmação, o senhor Arcebispo de Lisboa, Dom Miguel de Castro, as ouve por aprouvadas e autenticas para se porem em nossa Igreja, aos 15 de Outobro de 1594, sendo Preposito desta casa o Padre Manoel de Siqueira. E por verdade, asinei aqui. IHS MANOEL DE SIQUEIRA João Correa18. Talvez por desconhecimento, Telfer tenha afirmado que os “mártires de Treveris” aqui mencionados são os mesmos

15. Relaçam do solenne recebimento que se fez em Lisboa às santas relíquias que se levaram á igreja de S. Roque da Companhia de Jesu, aos 25 de Janeiro de 1588, Lisboa, 1589, Biblioteca da Ajuda, Mon. 50-VII-3, p. 18 e 18v. O autor deste livro, descrito como licenciado em Cânones, tornou-se cónego em Faro, e era natural de Lisboa. (Bibliographia Portuguesa, s.n.). Também no Inventário de 1587, Rol dos Relicários e Relíquias que Dom Joham de Borja mandou a esta Casa de São Roque, fl. 14v., AHSCML. 16. Ibidem. 17. João Correia era natural do Porto e entrou na Companhia de Jesus em 1560. Foi nomeado reitor do colégio de Coimbra em 1581, cargo que desempenhou até à sua eleição como provincial em 1588. Exerceu o cargo de provincial durante quatro anos, após o que foi eleito para representar a Província Portuguesa na quinta Congregação Geral em Roma em 1593. Em 1599 deslocou-se a Madrid como procurador e, no seu regresso em 1601, foi reeleito provincial, mas faleceu a 19 de maio desse ano na Casa Professa de São Roque. Era um dos membros da província portuguesa mais amados e de maior prestígio. Cf. TELFER, op. cit., p. 190. 18. Documento original manuscrito existente no AHSCML.

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da Legião Tebana19. É estranho confundir estes dois grupos de mártires, dado que existe em São Roque uma série distinta de relíquias dos mártires de Treveris, conforme consta no inventário dos Reliquayros q. se fizera pª esta Casa de S. Roque, 1600, fl. 58. Também a obra histórica Memoria do Descobrimento e Achado…, de 1843, na p. 29, ao descrever o relicário nº 13, de madeira em forma de caixilho, contendo 24 pequenas relíquias, distingue claramente “duas, dos Santos Martyres de Treveris” e outras duas “dos Santos Martyres da Legiam Thebaida”. A ser verdade a vinda de relíquias em 1594, só podem ser as dos mártires de Treveris, obtidas pelo Pe. Paul Leusler, então reitor do Colégio jesuíta de Trier (Alemanha), em março de 1592, que Leusler certifica que as tinha obtido do famoso mosteiro beneditino de Himelrode, situado a seis horas de viagem de Trier20, tendo-as entregue pessoalmente ao Pe. João Correia, em Roma, que, por sua vez, terminada a Congregação Geral de 1593, as trouxe consigo para São Roque. Por outro lado, consultando o Martirológio Romano, os mártires de Treveris são celebrados em data distinta dos mártires da Legião Tebana, pelo que os dois conjuntos não se podem confundir21. [Braços-relicários 19. Treveris (atual Trier, Alemanha) foi fundada no século I a.C. com o nome de Augusta Treverorum, supostamente pelo próprio imperador Augusto. Nos séculos iii e iv, foi capital da província de Bélgica Prima. No século v, então com setenta mil habitantes, a cidade foi destruída por tribos germânicas. Treveris nunca recuperou a sua antiga importância. Treveris situava-se na fronteira norte do império, tornando-se, por isso, local de passagem de viajantes, soldados e peregrinos. Esta cidade era um centro notável de culto de relíquias, como podemos ver na Geschichte der Trierer Kirchen, do jesuíta S. Beissel, datado de 1887. 20. TELFER, ibidem. 21. Os “Mártires de Treveris” aparecem referidos no Martirológio Romano, no dia 5 de Outubro, mas sem quaisquer nomes. Trata-se de um colectivo anónimo, anterior à época dos rigorosos Bolandistas e que terá ficado designado como tal para sempre.

Busto -relicário de um dos Mártires de Tebas. Altar dos Santos Mártires

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| HISTÓRIA E CULTURA |

Conjunto de relicários da Capela de Nossa Senhora da Doutrina – Igreja de São Roque

dos mártires de Treveris existem, de facto, na Igreja de São Roque, estando identificados cinco: Inv. RL 1079, Inv. RL 1081,

Inv. RL 1086, inv. RL. 1098, inv. RL 1099]. Anos mais tarde, quatro bustos-relicários dos mártires da

Legião Tebana chegaram a São Roque, pela mão de Fernão de Mattos, secretário de Estado em Madrid, quando este acompanhou as ossadas de Dom João de Borja, enviadas de Madrid pela viúva, Dona Francisca de Aragão, conforme descreve o manuscrito designado “As Relliquias seguintes entregou nesta Casa Fernão de Mattos quando trouxe a ella os Ossos de Dom Joam de Borja mãdadas a ella por sua molher Dona Frãcisca de Aragam e tem todas a mesma aprovação do Sor Arcebispo de Lxª Do. Miguel de Castro q. tem as mais que já estavam…”, datado de 1614, AHSCML, fl. 61, no qual estão elencados quatro bustos contendo cabeças dos Mártires Tebeus. Assim, estas relíquias embora não integrassem o “Recebimento” original de D. João de Borja, de 1587, foram contudo entregues pela sua viúva, D. Francisca de Aragão, que as enviou de Madrid por achar que faziam parte integrante da sua doação22. O documento original que autentica a entrega destas relíquias por Dona Francisca de Aragão à Casa Professa de São Roque, encontra-se no AHSCML e tem a data de 1615. Temos assim explicada a proveniência deste conjunto de relicários, a qual teve a sua ligação à coleção de D. João de Borja, embora só tivessem chegado a São Roque seis anos após a sua morte. Também no recém-

22. RIBEIRO, Victor, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Subsídios para a sua história), reedição fac-similada da edição de 1902, Lisboa, Academia das Ciências, 1998, pp.195-196.

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-encontrado manuscrito “O Cerimonial da Igreja de São Roque de 1691”, Códice 7194 da BNP, fls. 42 a 138v,23 na secção relativa a Relíquias e pesas que estam no altar dos Santos Marteres, se faz referência a “7 meyos corpos de madeira estofados com cabeças dentro” – “tem cada hum sua cabesa dos santos martires thebeus” (sic). Igualmente o “Inventário da Igreja e Sacristia de S. Roque, feito no ano de 1698”, no fl. 7, enumera explicitamente sete meios corpos de madeira estofada com relíquias dos Santos Martires Thebeus24 (Inv. RL 1069, Inv. RL 1070, Inv. RL 1071, Inv. RL 1073, Inv. RL 1074, Inv. RL 1075, Inv. RL 1076).

Trata-se muito provavelmente do maior conjunto de relíquias dos mártires tebanos reunido numa igreja portuguesa” Descobrimento e Achado das Sagradas Relíquias, ocorrido em 1843. Ambos os altares foram então remodelados e envidraçados no contexto das comemorações do IV Centenário da

Fundação da Misericórdia de Lisboa, em 189825, na intenção de proporcionar aos visitantes a plena fruição da excecional coleção de relíquias antigas deste templo.

BIBLIOGRAFIA GERAL “Augunum”, in The Catholic Encyclopedia: disponível em http://www.newadvent.org/cathen/01205a.htm. CAMPOS, Manoel de, Relaçam do Solenne Recebimento que se fez em Lisboa ás santas relíquias q se levaram á igreja de S. Roque da Companhia de IESU aos. 25. de. Janeiro de 1588. Impresso em Lisboa por Antonio Ribeiro. 1588. Bi-

conclusão Temos assim traçada a origem e o percurso histórico deste conjunto singular de relíquias, até chegarem ao seu destino final na igreja jesuítica de São Roque, no século xvi/xvii. Trata-se muito provavelmente do maior conjunto de relíquias dos Mártires Tebanos reunido numa igreja portuguesa. Atualmente, podem ser apreciadas no respetivo altar-vitrine, cuja montagem, em forma de oratório, foi concebida no final do século xix, na sequência do surpreendente

blioteca da Ajuda, Mon. 50-VII-3. Esta obra foi traduzida em castelhano por Álvaro de Veancos, e impressa em Alcalá, em 1858. Inventario do que vai desta vila de Madrid para a cidade de Lisboa em 2 de Outubro de 1587 a cargo do Pe. Francisco António, da Companhia de Jesus para entregar na Casa de S. Roque da dita Companhia, 1587, AHSCML, Roq. Inv. 2. INVENTARIO dos Reliquarios & Relíquias q. deu Dom Ioam de Borja a esta casa, e dos Relicairos q. antes tinha e depoys fez esta casa cõ outras relíquias q. por via da Compª. se fizera. Feito e Janeyro de 1603. Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (AHSCML), fl. 48-552. Memoria do Descobrimento e Achado das Sagradas Relíquias do Antigo Santuário da Igreja de S. Roque, Lisboa, Na Imprensa Nacional, 1843. PARRA MARTINEZ, J., e VASSALLO E SILVA, Nuno, Esplendor e Devoção – Os Relicários de S. Roque, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa/Museu de São Roque, 1997. RÉAU, Louis, Iconografia del Arte Cristiano, volume 7, Ediciones del Serbal, Barcelona, 1997. RIBEIRO, Victor, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Contributos para a sua História, reprodução fac-similada da edição de 1902, Lisboa, Academia

23. Devo a transcrição paleográfica deste documento ao colega Dr. João Miguel Simões, a quem muito agradeço. 24. Cf. PARRA MARTINEZ, J., e VASSALLO E SILVA, Nuno, Esplendor e Devoção – Os Relicários de S. Roque, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa/ Museu de São Roque, 1997, p. 80. 25. Cf. RIBEIRO, Victor, op. cit. p. 198.

das Ciências, 1998. TELFER, W., The Treasure of São Roque – A Sidelight on the Counter-Reformation, Church Historical Society, Londres, 1932. VORAGINE, Jacques de, La Legende Dorée, ed. Rombaldi, 3 vols., Paris, 1942. Woods, David, “The Origin of the Legend of Maurice and the Theban Legion,” Journal of Ecclesiastical History, 45 (1994), 385-95.

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PROSTITUIÇÃO EM LISBOA: UMA EXPERIÊNCIA DE RUA

Este artigo tem por base uma experiência vivida no estágio realizado no âmbito do Curso de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem Comunitária, desenvolvido entre Abril e Dezembro de 2008, com as mulheres que se prostituem numa rua de Lisboa, enquadrado na atividade noturna da Unidade Móvel da Saúde de Proximidade da SCML. Texto de Joana Lindim Pereira [Enfermeira especialista em saúde comunitária]

A

prostituição de rua é um fenómeno de enorme complexidade social, lato sensu, que requer uma intervenção de proximidade, multidisciplinar e multissetorial. Pretende-se, com esta reflexão, dar um contributo à compreensão 172

desta realidade, realçando a importância do papel do enfermeiro de saúde comunitária como agente promotor de Saúde e, ainda, incentivar investigações e intervenções no âmbito da Saúde e das Ciências Sociais. A prostituição, na maioria dos países, é uma atividade estig-

matizada, quase sempre contra a lei, em todas ou algumas das suas componentes. Em Portugal, a prostituição foi descriminalizada em 1982 mas o seu fomento, facilitação ou exploração (lenocínio, coação e tráfico de pessoas) são criminalizados pelo Código Penal Português1.


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se prostituem, geralmente, provêm de famílias disfuncionais, com carências económicas, baixa escolaridade e muitas delas vítimas de abusos e agressões. Os principais motivos que as levam a iniciar esta atividade prendem-se com questões económicas, toxicodependência e lenocínio. Sendo o sexo a matéria-prima desta atividade, as mulheres que se prostituem inserem-se num grupo vulnerável que merece especial atenção nas prioridades da Saúde Pública3. Em Portugal, os estudos acerca da prostituição de rua são escassos, não dispomos de um Observatório Nacional que caraterize este grupo populacional, nem de uma rede social e de saúde que garanta o ótimo acompanhamento aos três níveis de prevenção. As ONG de apoio às mulheres que se prostituem vão exibindo uma realidade do problema, no mínimo, preocupante.

A temática da prostituição tem suscitado, ao longo do tempo, diversas questões a nível da Saúde Pública, pela sua associação a comportamentos de risco, degradação social, toxicodependência, exploração, tráfico de mulheres e crianças e, mais recentemente, as po-

tenciais consequências da sua legalização. A prostituição é uma atividade comercial de aluguer do corpo. “É a efetivação de práticas sexuais, hetero ou homossexuais, com diversos indivíduos e remuneradas, num sistema organizado”2. As mulheres que

PROSTITUIÇÃO E INFEÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS (IST) Atualmente, as IST são um problema de Saúde Pública de primeiro plano. Apesar de, na maioria dos casos, existir cura, a sua incidência tem aumentado de ano para ano4. Dada a inexistência de cura para o VIH/sida, as IST passaram a ser alvo de maior atenção, por estas constituírem um fator de risco de contração e transmissão do VIH. Na situação atual em Portugal, descrita no Plano Nacional 173


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Em Portugal, os estudos acerca da prostituição de rua são escassos, não dispomos de um Observatório Nacional que caraterize este grupo populacional, nem de uma rede social e de saúde que garanta o ótimo acompanhamento aos três níveis de prevenção” de Saúde (PNS)5, o número de casos de IST não é conhecido, pois não existe nenhum centro de vigilância epidemiológica. Os mais vulneráveis são os adolescentes, adultos jovens e todos aqueles que têm dificuldade no acesso aos cuidados de saúde. É também referido o pouco conhecimento que a população tem acerca das IST e a falta de articulação entre instituições com interesse nesta matéria. As razões que levam as mulheres a iniciarem-se na prostituição de rua assentam sobretudo nas dificuldades económicas, na coação por parte dos proxenetas e na toxicodependência. A maior parte inicia esta atividade na adolescência, associada a um ambiente familiar disfuncional, com grande carência socioeconómica e, muitas vezes, com experiências de natureza sexual traumáticas6. Estas fragilidades, no seu conjunto, fazem das mulheres que se prostituem um grupo vulnerável à contração e transmissão de IST. Apesar de não existirem dados objetivos acerca do número de mulheres que se prostituem, 174

nem quantas destas contraíram o VIH ou outras IST, há alguns estudos que comprovam a existência de uma forte associação entre a prostituição e as IST, com especial destaque para o VIH/sida. Dos vários estudos analisados, verifica-se que a maioria das prostitutas de rua procura ajuda em projetos de apoio social e tem conhecimento acerca das vias de transmissão das IST. A utilização do preservativo depende fortemente da vontade do cliente ou do facto de este estar disposto a pagar mais. Outro aspeto importante é o facto de, na relação que mantêm com um parceiro fixo, não usarem o preservativo, na tentativa de, emocionalmente, distinguirem este tipo de relação das que têm com os clientes. Este procedimento aumenta as probabilidades de contrair IST, uma vez que muitos destes companheiros mantêm relações sexuais com outras mulheres. Há muito tempo que a ideia de “grupo de risco” se diluiu. As IST não podem ser analisadas ao nível de grupos. É um problema a nível global que não escolhe raça, idade, sexo, orien-

tação sexual ou classe social. O único modo de prevenção está na adoção de comportamentos que diminuam o risco de contração das IST. De acordo com Vidigueira, as IST merecem especial atenção por atenderem aos principais critérios de periodização de agravos em Saúde Pública. São eles magnitude, transcendência, vulnerabilidade e factualidade. A ONUSIDA7 destaca a grande vulnerabilidade ao VIH por todo o mundo, devido ao desconhecimento dos seus conceitos básicos e do modo de transmissão. Refere, também, que quanto menor o nível de escolaridade, menores são os conhecimentos acerca do VIH, levando, inevitavelmente, à adoção de comportamentos de risco. A PREVENÇÃO: Um Desafio para a Enfermagem Estando a prevenção das IST nas prioridades da Saúde Pública, é imperioso o conhecimento profundo da população-alvo para o planeamento de estratégias eficazes. Cada país, região ou localidade tem um caráter epidemiológico muito próprio em que a inexistência de um sistema de recolha de dados dificulta o trabalho dos profissionais, favorecendo a disseminação destas infeções. Conhecer o nível de informação que a sociedade tem acerca das IST/sida é fundamental numa correta escolha de estratégias a implementar para diminuir a propagação das infeções e a aceitação social dos doentes8. As estratégias educacio-


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nais que promovam a alteração de comportamentos de risco são determinantes na prevenção das IST/sida9. O Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infeção VIH/sida10 destaca as elevadas percentagens de conhecimentos incorretos, na população em geral, em relação ao VIH/sida e aos modos de transmissão e prevenção. De realçar que, aliado a este facto, coexistem atitudes discriminatórias face a pessoas portadoras de VIH. O processo de prevenção envolve sempre o comportamento humano. O enfermeiro de saúde comunitária tem a capacidade de identificar necessidades específicas, tendo como objetivos principais a preservação e melhoria da saúde da comunidade11. Compete-lhe criar e gerir projetos de intervenção, de acordo com as necessidades identificadas, com o objetivo da melhoria da qualidade de vida, a nível global e individual. Na prostituição de rua, o trabalho de proximidade é o único meio de captação e incentivo à vigilância da saúde. A estratégia deve incidir numa ação centrípeta que promova hábitos de autocuidado e ofereça respostas adequadas às necessidades numa perspetiva de participação e empowerment. A EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO A Unidade Móvel da Saúde de Proximidade da SCML, foi inaugurada em abril de 2007, com o objetivo de promover maior acessibilidade aos cuidados de saúde, dispondo de consultas

de Enfermagem e Psicologia e realizando encaminhamentos na área da ação social e da saúde. Lisboa, à semelhança das grandes cidades mundiais, tem uma grande atividade noturna, em que a heterogeneidade da população (jovens, sem-abrigo, imigrantes ilegais, prostitutas(os), etc.) e a exposição a comportamentos de risco, a vários níveis, acentuam a necessidade de intervenção no terreno. A filosofia de que os cuidados de saúde primários devem

a ação para a promoção de uma sexualidade segura, apoiada em sessões de educação para a saúde e encaminhamentos para serviços de apoio da SCML. A rua, onde a Unidade Móvel estacionava, funciona como uma fronteira entre a prostituição feminina e a masculina, praticada nesta zona da cidade. À noite, estes locais são dominados por diferentes grupos de mulheres que há muito conquistaram aquele espaço. A rua é povoada por mulheres

As IST não podem ser analisadas ao nível de grupos. É um problema a nível global que não escolhe raça, idade, sexo, orientação sexual ou classe social” apostar na intervenção no terreno, como estratégia de promoção da saúde individual e coletiva, tem vindo a impor-se cada vez mais no atual cenário cultural, político e socioeconómico. A intervenção deve centrar-se numa visão integrada do contexto e consequentemente dos problemas e necessidades, numa metodologia de investigação-ação, em constante monitorização e avaliação. Neste sentido, a intervenção com as mulheres que se prostituem na rua teve como objetivo a realização de um diagnóstico de situação de saúde, através de recolha de dados (observação e entrevista), a qual permitiu o levantamento das necessidades (reais e expressas), orientando

de todas as idades e várias nacionalidades. No terreno, contactou-se, aproximadamente com quarenta mulheres, com maior predominância da faixa etária acima dos 35 anos. A divisão é notória; existe um grupo de mulheres mais velhas, outro grupo das mais novas (com idades compreendidas entre os 19 e os 25 anos) e o das imigrantes que, por sua vez, se dividem em três subgrupos (as “africanas”, as mulheres provenientes dos “países de leste” e as brasileiras). Em todos os grupos foram identificadas líderes. Este reconhecimento relaciona-se com diversos fatores, tais como poder de argumentação, idade, tempo mais longo na prostituição, entre outros. Também fo175


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ram identificadas mulheres toxicodependentes, que apareciam na zona menos regularmente, sendo alvo de grande crítica por parte dos outros grupos, por comercializarem o corpo a preços mais baixos e atenderem a qua-

sentava grande carência económica e recorria a esta prática como único meio de subsistência, mas também foram conhecidos casos de mulheres com algum poder de consumo, possuindo carro próprio e/ou filhos

O objetivo é, numa ação conjunta, fornecer instrumentos que permitam à pessoa (re)conhecer os seus recursos e capacidades na prevenção/ resolução do seu problema. Esta intervenção resultou na vontade que algumas mulheres manifestaram em obter uma maior vigilância a nível da saúde sexual e reprodutiva” se todos os pedidos dos clientes. O perfil distinguia-se pela magreza, postura debilitada e ar descuidado. Ao longo deste período, a familiarização com o contexto permitiu traçar um esboço da realidade. Progressivamente, foi sendo possível entender os gestos, os códigos e a linguagem utilizada neste meio e as diferentes motivações para a comercialização do corpo. As razões são, sobretudo, de ordem económica mas as situações eram distintas: umas referiram como sendo uma prática casual, com o objetivo de naquele momento aumentar o rendimento familiar, outras como prática habitual, sendo a prostituição a única fonte de rendimento. A maioria das mulheres apre176

matriculados em colégios privados. Os preços dos serviços sexuais eram semelhantes em todos os grupos (com exceção das mulheres toxicodependentes) sendo as mulheres mais velhas as que tinham mais clientes fixos, em que o serviço era combinado por telemóvel. Após várias noites de observação e aproximação à dinâmica de todo o contexto, foi sentida a necessidade de avançar e estreitar a relação da equipa com as mulheres, com o objetivo de entender as necessidades de saúde sentidas pelo grupo. As necessidades identificadas pelos profissionais de saúde são sempre condicionadas por certas limitações acerca do conhecimento da realidade. Estas necessidades complementam-

-se com as necessidades sentidas e expressas pela população. Assim, tornou-se fundamental a realização de uma entrevista com o objetivo de obter informação acerca de alguns dados demográficos, comportamento sexual, vigilância da saúde, nível de conhecimento e grau de satisfação com as informações que se possuem acerca das IST. Os resultados indicam que o nível de conhecimento acerca das IST é razoável mas relativamente ao Vírus do Papiloma Humano (VPH) é escasso. Em relação à vigilância de saúde, 44% das entrevistadas nunca fez, ou fez há dois ou mais anos uma colpocitologia. No que respeita ao desejo de obter mais informação acerca das IST, 72% das mulheres entrevistadas responderam afirmativamente. Desvendadas as necessidades sentidas e expressas pelo grupo, concomitantemente com as necessidades reais de promoção de um maior conhecimento em relação às IST e de incentivo ao autocuidado numa perspetiva de empowerment, foram realizadas duas sessões de educação para a saúde sexual e reprodutiva. A educação para a saúde tem vindo a ser cada vez mais utilizada nas estratégias de promoção da saúde; “… é uma parte vital da enfermagem comunitária. A promoção, manutenção e restabelecimento da saúde requer que os utentes comunitários recebam um conhecimento periódico de informação…”12. O objetivo é, numa ação conjunta,


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fornecer instrumentos que permitam à pessoa (re)conhecer os seus recursos e capacidades na prevenção/resolução do seu problema. Esta intervenção resultou na vontade que algumas mulheres manifestaram em obter uma maior vigilância a nível da saúde sexual e reprodutiva. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Saúde de Proximidade Santa Casa integra uma rede de sete Unidades de Saúde que dispõe de consultas de Planeamento Familiar e, à data, algumas delas têm em curso o programa de rastreio do cancro do colo do útero. No planeamento da intervenção, o ideal é a concordância entre a procura e a oferta dos serviços. As necessidades expressas e a procura não são apenas influenciadas pelas atitudes da população face aos problemas, mas também pelas caraterísticas dos serviços, em termos de aceitabilidade e acessibilidade. Estando as mulheres que se prostituem submetidas, desde sempre, à estigmatização e marginalização social, o facto de atualmente ainda existir uma tímida proteção jurídica (sendo os crimes de fomento, lenocínio e abuso difíceis de se comprovar) leva a um aumento cada vez maior da vulnerabilidade. A intervenção em parceria, numa perspetiva multissetorial, é fundamental na construção de um diagnóstico completo e próximo da realidade, proporcionando um planeamento das intervenções virado para as verdadeiras necessidades.

Os objetivos devem-se focar na prevenção e controlo das IST, promoção da saúde sexual, disponibilização de serviços sociais e de saúde, prevenção da violência/exploração, promoção e reforço da autoestima,

aconselhamento e serviços de apoio/informação (apoio jurídico), garantindo o cumprimento das orientações estratégicas do Plano Nacional de Saúde e, consequentemente, ganhos em saúde.

BIBLIOGRAFIA [1] CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS: Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de março, última atualização pela Lei n.º 61/2008, de 31/10 nos seus Artigos 163º, 164º e 169º [2] FONTINHA, Inês — Prostituição, Sexualidade e Sida. In CONGRESSO VIRTUAL HIV/AIDS, 2, — Ontem, Hoje e Amanhã. [Em linha], 2001 [3] Cf. ONUSIDA — Género e HIV/SIDA: Actualização Técnica. Coleção Boas Práticas da ONUSIDA. (setembro 1998) [4] 7 Cf. VIDIGUEIRA, Paula M. — Os Estudantes de Enfermagem e as Doenças Sexualmente Transmissíveis e SIDA In CONGRESSO VIRTUAL HIV/ SIDA, 8, 2007 [5] Cf. PORTUGAL. Ministério da Saúde — Plano Nacional de Saúde 2004/2010: Orientações Estratégicas. Lisboa: Direção-Geral da Saúde, 2004, v.2 p. 38. [6] Cf. MANITA, C.; OLIVEIRA, A. — Estudo de caraterização da prostituição de rua no Porto e Matosinhos. Porto: CIDM, 2002. 116 p. [7] ONUSIDA — “What makes people vulnerable?”, Report on the global HIV/AIDS Epidemic, 2000. Apud VIEIRA, Cristina Lopes [et al.] — Comportamentos de Risco em Mulheres Portuguesas, 2003 [8] Cf. OLIVEIRA, Alexandra — As vendedoras de ilusões, 230 p. ; MANITA, C.; OLIVEIRA, A. — Estudo de caraterização da prostituição, 116 p.; SANTOS, Joana Correia dos — Pelas ruas da cidade, 33 p. [9], [11], [12] Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE — Programa Nacional de Prevenção e Controlo da Infeção VIH/SIDA 2007/2010: Um Compromisso com Futuro. Lisboa. 2007, p. 33 [10] Cf. LANCASTER, J.; LOIS, W. L.; MARTIN, H. S. — Organização de Estruturas Aplicadas à Enfermagem Comunitária. In STANHOPE, M.; LANCASTER J. — Enfermagem Comunitária, p. 196 [11] LANCASTER, J.; ONEGA, L.; FORNESS, D. — Teorias, Modelos e Princípios Educacionais Aplicados à Enfermagem Comunitária. In STANHOPE, M.; LANCASTER J. — Enfermagem Comunitária: Promoção da Saúde de Grupos, Famílias e Indivíduos. 4ª Ed. Lisboa: Lusociência, 1999. 1225 p. ISBN: 972-8383-05-3. [12] Cf. IMPERATORI, E.; GIRALDES, M. — Metodologias do Planeamento da Saúde. 3ª ed. Lisboa: Obras Avulsas, 1993. 200 p.

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LEGISLAÇÃO Janeiro DE 2013 A dezembro DE 2013 | N.OS 29/30 |

PORTARIA 3-A/2013, de 04-01 IN: Diário da República, série I, nº 3, supl./2013, de 04-01, p. 36-(2) - 36-(5) Resumo: Cria a medida de apoio à contratação de desempregados com idade igual ou superior a 45 anos, via Reembolso da Taxa Social Única (TSU). DECRETO-LEI 13/2013, de 25-01 IN: Diário da República, série I, nº 18/2013, de 25-01, p. 515-518 Resumo: Altera os regimes jurídicos de proteção social no desemprego, morte, dependência, rendimento social de inserção, complemento solidário para idosos e complemento por cônjuge a cargo, do sistema de segurança social. RESOLUÇÃO 7/2013, de 29-01 IN: Diário da República, série I, nº 20/2013, de 29-01, p. 555-557 Resumo: Aprova o “Programa Valorizar”, que visa o estímulo à atividade económica produtiva de base regional e local para promover um desenvolvimento regional que favoreça o crescimento económico sustentável, a competitividade, o emprego e o investimento empresarial, numa lógica de coesão territorial. PORTARIA 41/2013, de 01-02 IN : Diário da República, série I, nº 23/2013, de 01-02, p. 638-639 Resumo: Fixa os preços dos cuidados de saúde e de apoio social prestado nas unidades de internamento e de ambulatório da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), a praticar no ano de 2012 e revoga a Portaria n.º 220/2011, de 1 de junho. PORTARIA 68/2013, de 15-02 IN: Diário da República, série I, nº 33/2013, de 15-02, p. 925-932 Resumo: Aprova o Regulamento do Sistema de Incentivos de Apoio Local a Microempresas. RESOLUÇÃO 18/2013, de 07-03 IN: Diário da República, série I, nº 47/2013, de 07-03, p. 1276 Resumo: Recomenda ao Governo o alargamento da rede de cuidados continuados integrados, bem como o investimento público em unidades públicas desta rede.

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RESOLUÇÃO 13/2013, de 08-03 IN: Diário da República, série I, nº 48/2013, de 08-03, p. 1280-1281 Resumo: Aprova um conjunto de medidas que visam garantir e promover a igualdade de oportunidades e de resultados entre mulheres e homens no mercado de trabalho. PORTARIA 106/2013, de 14-03 IN: Diário da República, série I, nº 52/2013, de 14-03, p. 1623-1626 Resumo: Procede à criação da medida de apoio ao emprego “Estímulo 2013”, que promove a contratação e a formação profissional de desempregados e revoga a Portaria n.º 45/2012, de 13 de fevereiro. RESOLUÇÃO 32/2013, de 15-03 IN: Diário da República, série I, nº 53/2013, de 15-03, p. 1630 Resumo: Recomenda ao Governo a valorização e o reconhecimento das competências de educação não formal adquiridas pelos jovens através do associativismo juvenil e do voluntariado. PORTARIA 135-C/2013, de 28-03 IN: Diário da República, série I, nº 62, 4.º supl./2013, de 28-03, p. 1914-(42) - 1914-(55) Resumo: Alarga o Programa de Contratos Locais de Desenvolvimento Social. PORTARIA 139/2013, de 02-04 IN: Diário da República, série I, nº 64/2013, de 02-04, p. 1942-1946 Resumo: Estabelece a forma de intervenção, organização e funcionamento dos Centros de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental. DESPACHO 5128/2013, de 16-04 IN: Diário da República, série II, nº 74/2013, de 16-04, p. 12438-12440 Resumo: Produtos de apoio para pessoas com deficiência. RESOLUÇÃO 25/2013, de 17-04 IN: Diário da República, série I, nº 75/2013, de 17-04, p. 2211-2239 Resumo: Aprova a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas.


Janeiro DE 2013 A dezembro DE 2013 | seleção |

DESPACHO 5482/2013, de 24-04 IN: Diário da República, série II, nº 80/2013, de 24-04, p. 13355-13357 Resumo: Aprova, em anexo ao presente Despacho e do qual faz parte integrante, o regulamento específico que define o regime de acesso aos apoios concedidos no âmbito da tipologia de intervenção n.º 6.15 “Educação para a cidadania – projetos inovadores” do eixo n.º 6 “Cidadania, inclusão e desenvolvimento social” do Programa Operacional Potencial Humano. LEI 30/2013, de 08-05 IN: Diário da República, série I, nº 88/2013, de 08-05, p. 2727-2728 Resumo: Lei de Bases da Economia Social. RESOLUÇÃO 29/2013, de 08-05 IN: Diário da República, série I, nº 88/2013, de 08-05, p. 2729-2733 Resumo: Aprova o Plano Nacional de Voluntariado 2013-2015. DECRETO-LEI 72/2013, de 31-05 IN: Diário da República, série I, nº 105/2013, de 31-05, p. 3190-3199 Resumo: Procede à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 134/2006, de 25 de julho, que cria o Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro. RESOLUÇÃO 36/2013, de 04-06 IN: Diário da República, série I, nº 107/2013, de 04-06, p. 3216-3217 Resumo: Procede à primeira alteração à Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2012, de 14 de junho, que aprova o Plano Estratégico de Iniciativas de Promoção de Empregabilidade Jovem – “Impulso Jovem”. RESOLUÇÃO 37/2013, de 11-06 IN: Diário da República, série I, nº 111/2013, de 11-06, p. 3239-3241 Resumo: Determina a abertura do debate tendente à revisão do sistema de proteção de crianças e jovens em perigo e do regime jurídico da adoção. PORTARIA 203/2013, de 17-06 IN: Diário da República, série I, nº 114/2013, de 17-06, p. 3350-3355 Resumo: Cria a medida Vida Ativa – Emprego Qualificado.

PORTARIA 204-B/2013, de 18-06 IN: Diário da República, série I, nº 115, 2.º supl./2013, de 18-06, p. 3376-(1287) – 3376-(1293) Resumo: Cria a medida Estágios Emprego. PORTARIA 220/2013, de 04-07 IN: Diário da República, série I, nº 127/2013, de 04-07, p. 3924-3925 Resumo: Primeira alteração à Portaria n.º 337/2004, de 31 de março, que estabelece o novo regime jurídico de proteção social na eventualidade doença, no âmbito do subsistema previdencial de segurança social. PORTARIA 242/2013, de 02-08 IN: Diário da República, série I, nº 148/2013, de 0208, p. 4537-4542 Resumo: Cria o Programa Agora Nós, com os objetivos de promover e estimular a prática de voluntariado, como meio de aquisição de competências e aprova o respetivo Regulamento. LEI 75/2013, de 12-09 IN: Diário da República, série I, nº 176/2013, de 12-09, p. 5688-5724 Resumo: Estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico. DESPACHO 11861/2013, de 12-09 IN: Diário da República, série II, nº 176/2013, de 12-09, p. 28580-28582 Resumo: Medidas de ação social escolar a aplicar no ano escolar 2013-2014. DESPACHO 11909/2013, de 13-09 IN: Diário da República, série II, nº 177/2013, de 13-09, p. 28713 Resumo: Determina o conjunto do segundo grupo de territórios abrangidos pelo Programa Contratos Locais de Desenvolvimento Social+. PORTARIA 286-A/2013, de 16-09 IN: Diário da República, série I, nº 178, supl./2013, de 16-09, p. 5862-(3) - 5862-(5) Resumo: Cria a medida Incentivo Emprego.

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AGENDA

Janeiro DE 2013 A dezembro DE 2013

DESTAQUE Conferência Uso das Tecnologias da Comunicação no Ensino Superior Português Local: Universidade de Aveiro Data: 7 de fevereiro Esta conferência, organizada no âmbito do projeto TRACER, tem por objetivo promover o debate sobre a utilização

das TC no Ensino Superior Português e destina-se a docentes, investigadores, estudantes de pós-graduação, gestores e responsáveis de Instituições do Ensino Superior. http://cms.ua.pt/TRACER/node/115

JANEIRO XXI Colóquio da AFIRSE 3 Lançamento/Debate 30 – Secção Portuguesa Sociologia do(s) Espaço(s)

31 Lançamento/Debate Os Lugares (Im)possíveis da

da Justiça: diálogos interdisciplinares Org.: Patrícia Branco Local: Almedina, Estádio Cidade de Coimbra Hora: 18h30 Comentário de Paulo Guerra (Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra)

Educação, Economia e Território: O Lugar da Educação no Desenvolvimento Local: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (IEUL) Data: 30 de janeiro a 1 de fevereiro

Cidadania: Estado e Risco num Mundo Globalizado de Pedro Araújo e José Manuel Mendes Local: Almedina, Estádio Cidade de Coimbra Hora: 18h30 Comentário de Ricardo Garcia (Jornalista do Público)

http://afirse.ie.ul.pt/coloquios/

www.ces.uc.pt/eventos/

www.ces.uc.pt/eventos/

xxi-coloquio/

fevereiro Encontro Nacional de 6 31.º Medicina Geral e Familiar: Na Rota da Inovação com Qualidade, em Proximidade Org.: Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Local: Centro de Congressos do Algarve, Vilamoura Data: 6 e 8 de fevereiro http://www.enmgf.com/pt

de Sociologia 7 Seminário Households in transition: the role of consumption in processes of eco-innovation David Evans - University of Manchester Local: Instituto de Ciências Sociais, Sala Polivalente, Lisboa Hora: 15h30 www.ics.ul.pt/instituto/

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AGENDA Janeiro DE 2013 A dezembro DE 2013

fevereiro

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Internacional 21 Conferência Food, Children and Youth:

http://www.fpda.pt/ autism-pink-internationalconference-2014

What’s Eating? Local: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) Data: 21 a 22 de fevereiro Children and youth food practices are becoming increasingly perceived as problematic, reflecting concerns on childhood overweight and obesity

MARÇO

ABRIL

Conferência Internacional Autism in Pink International Conference 2014 Local: Fundação Calouste Gulbenkian Auditório 2, Lisboa

de Sociologia 14 Seminário Género e Tomada de Decisão na Esfera Económica Sara Falcão Casaca - ISEG /SOCIUS Universidade de Lisboa Local: Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), Sala Polivalente Hora: 15h00

Psychological 4 International Applications Conference and Trends’ (InPACT 2014) Local: Hotel HF Ipanema, Porto Data: 4 a 6 de abril Este evento tem como objetivo a promoção do desenvolvimento e crescimento da investigação,

www.ics.ul.pt/instituto/

ABRIL Congresso Português 14 VIII de Sociologia 40 anos de democracia(s): progressos, contradições e prospetivas Local: Universidade de Évora

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Data: 14 a 16 de abril www.aps.pt/viii_congresso/

rates in several countries… http://foodchildrenandyouth. wordpress.com/

ensino, aplicações e novas formas de pensar a psicologia e serão abordadas as áreas da psicologia clínica, educacional, criminal, social, cognitiva e experimental. http://inpactpsychologyconference.org/ index.html



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