Brennan Manning - Confiança Cega

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AGRADECIMENTOS

O

entusiasmo estimulante de Kathy Helmers da Alive Communications em Colorado Springs e Stephen Hanselman da HarperSanFrancisco proporcionaram-me a motivação para terminar este livro. Kathy também me ajudou a escrever o capítulo três, "A enorme dificuldade", e exerceu grande influência na parte dos "Excluídos", no último capítulo. Os ensinamentos, escritos e testemunho pessoal do teólogo moral Charles E. Curran, da Southern Methodist University, exerceram um importante papel em minha vida e ministério. Minha libertação do legalismo e casuísmo tem suas raízes no professor Curran durante os anos do meu curso de graduação na Catholic University. Quando me perguntam o nome das cinco pessoas mais semelhantes a Cristo que já conheci, Richard Foster está sempre na lista. Agradeço a John Eames e James Bryan Smith, que dedicaram horas à leitura do manuscrito e fizeram importantes sugestões. Minha sincera gratidão às muitas pessoas que me escrevem e, de fato, dizem: "Não pare de escrever". E a Philip Yancey, cujo coração é maior e melhor que o melhor de seus livros.


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E por último, mas não menos importante, agradeço a Ka-thy Reigstad, cujo trabalho de revisão realizado com competência e sensibilidade transformou Confiança cega num livro mais coerente e agradável em comparação com o que eu havia escrito.


SUMÁRIO

Prefácio

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Prólogo

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1. O caminho da confiança

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2. O caminho da gratidão

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3. A enorme dificuldade

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4. Pensamentos grandiosos

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5. Artistas, místicos e palhaços

77

6. Infinito e íntimo

87

7. Confiar em Jesus

97

8. A confiança contaminada

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9. Confiança humilde

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10. O jarro trincado

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11. A geografia do aqui e agora

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12. Confiança cega

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Bibliografia

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PREFÁCIO

S

empre e em todos os lugares, a suprema questão para a ralé maltrapilha é a pessoa de Jesus Cristo. O que são maltrapilhos? Quem são eles? A obscura assembleia de pecadores salvos, que sabem que são inexpressivos, têm consciência de seu quebrantamento e da sua incapacidade diante de Deus, pecadores que se fiam na misericórdia divina. Atónitos diante do extravagante amor de Deus, não dependem de sucesso, fama, riqueza nem poder para autenticar o valor que eles têm. Seu espírito transcende todas as distinções entre fracos e poderosos, instruídos e analfabetos, bilionários e pedintes, génios high-tech e nerds low-tech, homens e mulheres, circo e santuário. "Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal" (ITm 1:15). Aturdido e confuso pela experiência pessoal com o Messias dos pecadores, percorrendo as ruas barulhentas das grandes cidades e as estradas de terra dos vilarejos, o maltrapilho segue pela vereda da confiança cega no perdão irreversível do Mestre. As defesas que ele construiu contra sua verdade como pecador salvo são destruídas no redemoinho da misericórdia que brilha como relâmpagos em sua vida.


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se tornou artigo raro. É por isso que recebo com alegria os pensamentos perspicazes de Brennan Manning sobre um assunto vital, mas tantas vezes negligenciado. Manning vincula o adjetivo "cega" ao substantivo "confiança" — Confiança cega. E uma combinação que pode nos surpreender à primeira vista, mas "cega" é uma palavra que pode se referir a algo "absoluto", "irrestrito", "sem medida". Mas é bem nesse ponto que vemos pela primeira vez a competente abordagem que Manning faz do assunto, pois, ao nos chamar a uma "confiança cega", ele está realmente se posicionando contra toda a "autopiedade" que contamina a cultura moderna. Ele nos chama a uma confiança que se recusa terminantemente a fazer da autopiedade o maior bem da vida. Este livro é de fato um ataque frontal a todos os pecados egocêntricos de nossos dias: autoindulgência, vontade própria, serviço em causa própria, louvor dirigido a si mesmo, autogratificação, justiça própria, autossuficiência e outros do mesmo género. Manning chama de "segunda conversão" esse movimento decisivo na direção de uma confiança radical em Deus. E é isso mesmo. Conversão implica tanto afastamento quanto aproximação. Ao nos aproximarmos de Deus estamos aprendendo a nos afastar do "mundo, da carne e do Diabo". Também estamos nos afastando de nós mesmos como centro e razão do nosso viver, pois vamos percebendo que Deus é verdadeiramente a essência e o centro de todas as coisas. É com muita satisfação que vejo que, em seu desejo de nos chamar a uma vida de confiança em Deus, Manning não passa simplesmente por cima das tragédias da existência humana. Ele está disposto a encarar a angustiante questão que todos carregamos dentro de nós: "Como é que alguém se atreve a propor o caminho da confiança, se o que temos diante de nossos


CAPITULO

UM

O CAMINHO DA CONFIANÇA

E

ste livro teve início numa observação feita por meu diretor espiritual: "Brennan, você não precisa de mais conhecimento sobre a fé. Você já tem conhecimento para os próximos trezentos anos. A coisa mais urgente na sua vida é confiar no que você já recebeu". Aquilo me pareceu bem simples. Mas sua observação disparou um processo de reavaliação da minha vida, do meu ministério e da autenticidade do meu relacionamento com Deus — uma reavaliação que durou dois anos. O desafio de realmente confiar em Deus forçou-me a desconstruir o que eu havia construído durante a vida toda, a deixar de me agarrar ao que eu tinha tanto medo de perder, a questionar meu investimento pessoal em cada palavra que eu já havia falado ou escrito sobre Jesus Cristo e a me perguntar sem medo se eu confiava nele. Depois de horas incontáveis de silêncio, solitude, autoexa-me e oração, aprendi que o ato de confiar deve ser eminentemente inabalável. O filme Carruagens de fogo recebeu o Oscar em 1981 como melhor filme do ano. Ele retrata a história de dois corredores


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reduzido, as quais confiam invariavelmente em seu amor paternal na adversidade e na alegria, na tribulação e na consolação. Essas almas de fato agradam e dão imenso prazer ao coração do seu Pai celestial. Não há nada que ele não esteja preparado para lhes conceder. "Peça-me metade do meu Reino", exclama ele à alma que confia, e "eu o darei a você".1 Confiança inabalável é uma coisa rara e preciosa, pois quase sempre exige um grau de coragem que beira o heroísmo. Quando a sombra da cruz de Jesus se projeta sobre nós na forma de fracasso, rejeição, abandono, traição, desemprego, solidão, depressão, perda de um ente querido, quando estamos surdos para todas as coisas, exceto para o grito da nossa dor, quando o mundo que nos rodeia de repente se torna um lugar hostil e ameaçador — nesses momentos podemos clamar angustiados: "Como um Deus de amor pode permitir que isso aconteça?". É nessas horas que são lançadas as sementes da desconfiança. É preciso coragem de herói para confiar no amor de Deus não importa o que nos aconteça. O aluno mais inteligente que já tive no seminário foi um jovem chamado Augustus Gordon. Hoje ele passa seis meses por ano como ermitão numa cabana solitária nas montanhas Smoky, no estado do Tennessee. Nos outros meses do ano, ele viaja pelo país pregando o evangelho em prol da organização Food for the Poor, uma iniciativa missionária que envia alimentos para os famintos e sem-teto no Haiti, na Jamaica e em outras ilhas caribenhas. Numa visita recente, perguntei-lhe: "Augustus, numa só frase, qual a sua definição de vida cristã?". Ele nem piscou para 1

The Virtue ofTrust, p. 12.


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responder: "Brennan, posso definir a vida cristã numa única palavra: confiança". Já faz mais de quatro décadas que fui alcançado por Jesus numa capelinha nas montanhas Allegheny, no oeste da Pensilvânia. Depois de milhares de horas de oração e meditação sobre os anos vividos até aquele momento, posso declarar de forma inequívoca que a submissão confiante, a exemplo de uma criança, é o espírito que define a autêntica vida de discípulo. E eu acrescentaria que a grande necessidade da maioria das pessoas é muitas vezes a mais desconsiderada — a saber, a necessidade de uma confiança intransigente no amor de Deus. Além disso, eu diria que, embora haja vezes em que é melhor nos aproximarmos de Deus como faria um maltrapilho diante do Rei dos reis, é muito melhor nos achegarmos a ele como uma criancinha se achegaria a seu pai. Na Palestina do primeiro século, a pergunta que prevalecia na discussão religiosa era: como podemos apressar a vinda do reino de Deus? Jesus apontou para um único caminho: o caminho da confiança. Ele nunca pediu aos discípulos que confiassem em Deus. Pelo contrário, ele ordenou peremptoriamente: "Creiam em Deus; creiam também em mim" (Jo 14:1, NVI). A confiança não era um aspecto secundário dos ensinamentos de Jesus; era o coração deles. Ela, e somente ela, poderia apressar a vinda do reino de Deus. Quando o brilhante eticista John Kavanaugh foi trabalhar por três meses na "casa dos moribundos" em Calcutá, ele estava à procura de uma clara resposta sobre como viver melhor os anos que lhe restavam de vida. Na primeira manhã ali, ele conheceu a Madre Teresa. E ela lhe perguntou: — Como lhe posso ser útil? Kavanaugh pediu que ela orasse em seu favor. — E você quer que eu ore por qual necessidade?


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E ele verbalizou o pedido que havia carregado consigo milhares de quilómetros desde os Estados Unidos: — Ore para que eu tenha clareza. E ela disse com firmeza: — Não, eu não vou orar por isso. Quando ele lhe perguntou o porquê, ela respondeu: — Clareza é a última coisa a que você deve se apegar. Quando Kavanaugh comentou que ela sempre lhe parecera ter a clareza que ele tanto ansiava, ela riu e disse: — Nunca tive clareza; o que eu sempre tive foi confiança. Então vou orar para que você confie em Deus.2 "E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós" (ljo 4:16). Quando vamos em busca de clareza, tentamos eliminar o risco de confiar em Deus. O medo do caminho desconhecido a nossa frente destrói a confiança infantil na bondade ativa do Pai e em seu amor irrestrito. Muitas vezes partimos da premissa de que o ato de confiar irá desfazer a confusão, iluminar a escuridão, acabar com a incerteza e remir o tempo. Mas a nuvem de testemunhas de Hebreus 11 revela que não é bem assim. Nossa confiança não traz uma clareza definitiva neste mundo. Ela não elimina o caos, não entorpece a dor nem nos serve de muleta. No momento em que tudo está obscuro, o coração que confia diz, a exemplo de Jesus na cruz: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23:46). Se nos livrássemos da tentação de fazer da fé uma anuência despropositada a um balcão empoeirado cheio de doutrinas, descobriríamos assustados que a essência da fé bíblica reside em confiar em Deus. Como observa Marcus Borg: "A primeira 2

America 173, ns 3, 29 de jul. de 1995, p. 38.


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é uma questão da mente; a segunda, uma questão do coração. A primeira pode não nos transformar; a segunda traz mudança intrínseca".3 A fé que traz vida à comunidade cristã não é tanto uma questão de acreditar na existência de Deus, mas uma confiança prática em seu cuidado amoroso debaixo de toda e qualquer pressão. Muita coisa está em jogo aqui, pois não terei dito em meu coração "Deus existe" se eu não disser "eu confio em ti". A primeira afirmação é racional, abstrata, talvez uma questão da teologia natural, é a mente trabalhando com sua lógica. A segunda é "comunhão, pão que comemos de uma mão invisível".4 Diante de obstáculos intransponíveis e sem ter ideia alguma do que vai acontecer no final, o coração que confia diz: "Aba, entrego minha vontade e minha vida a ti, sem reservas e com confiança inesgotável, pois tu és meu Pai amoroso". Embora muitas vezes desconsideremos nossa necessidade de confiar sem vacilar no amor de Deus, tal necessidade é a mais urgente que temos. É o remédio para tantas doenças, melancolia e ódio contra nós mesmos. O coração que se converte da desconfiança para a confiança no perdão irreversível de Jesus Cristo é redimido da ação corrosiva do medo. O grande pavor existencial de que a salvação está reservada unicamente aos bons e piedosos, o temor anónimo de que estejamos predestinados ao fracasso espiritual, o pessimismo mórbido que nos leva a pensar que as boas novas do amor de Deus não passam de uma ilusão — todos esses elementos se unem para formar uma fina membrana de desconfiança que nos mantém num estado crónico de ansiedade. 5

Jesus: A New Vision, p. 111.

4

Daniel BERRIGAN, Isaiah: Spirit of Courage, Gift ofTears, p. 37.


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A conversão decisiva (ou aquilo que chamo de segunda conversão) da desconfiança para a confiança — conversão que deve se renovar todos os dias — é o momento da soberana libertação do cativeiro da preocupação. Esse supremo ato de confiança na aceitação de Jesus é tão transformador, que pode ser corretamente chamado de hora da salvação. Tantas vezes, o que está claramente faltando no conceito de salvação mecânica e externa é a autoaceitação, experiência internamente personalizada e arraigada na aceitação que vem de Jesus Cristo. Ela ordena libertação da culpa insana, da vergonha, do remorso e do ódio contra nós mesmos. Qualquer coisa que esteja aquém disso — autorrejeição sob todas as formas — é um inequívoco sinal de falta de confiança na completa suficiência da obra de salvação realizada por Jesus. Será que ele me libertou mesmo do medo em relação ao Pai e do ódio contra mim mesmo? O ato de confiar com base na graça é a grande decisão da vida. Sem ele, nada tem valor, e dele deriva o significado definitivo de todos os relacionamentos e conquistas, de cada sucesso ou fracasso. Uma confiança sem limites no amor misericordioso de Deus desfere um golpe mortal contra o ce-ticismo, contra o cinismo, contra a autocondenação e contra o desespero. E o nosso ato de obediência à ordem de Cristo: "Creiam em Deus; creiam também em mim". As palavras de Angelo Silésio, teólogo do século XV, são plenamente ortodoxas: "Se Deus deixasse de pensar em mim, ele deixaria de existir". Silésio está apenas parafraseando a mensagem de Jesus: "Não se vendem cinco pardais por dois asses? Entretanto nenhum deles está em esquecimento diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça todos estão contados. Não temais! Bem mais valeis do que muitos pardais" (Lc 12:6-7). Por sua própria natureza, Deus está pensando em mim.


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Quem vive da desconfiança desconsidera essas palavras como se fossem mera hipérbole e se mantém sombrio, melancólico e medroso. O discípulo que confia as recebe e dá pulos de alegria. A premissa da confiança segundo a Bíblia é a convicção de que Deus quer que cresçamos, avancemos e experimentemos plenitude de vida. Esse tipo de confiança, todavia, é adquirida apenas aos poucos e quase sempre através de uma série de crises e provações. No meio da angústia indescritível no monte Moriá, Abraão, ali com seu filho Isaque, aprendeu que o Deus que o havia chamado para crer contra a esperança era eminentemente confiável, e a única coisa que se podia esperar dele era confiança incondicional. O grande patriarca é modelo da essência da confiança nas Escrituras hebraicas e cristãs: ter convicção de que Deus é digno de crédito. O relato da história da salvação aponta para a realidade invariável de que a confiança precisa ser purificada pelo fogo da provação. Davi, a figura mais admirada da história do judaísmo sabia o que era medo, solidão, fracasso e até planos sinistros que visavam tirar-lhe a vida; mas ele conquistou o coração de Deus com sua confiança inabalável: Em me vindo o temor, hei de confiar em ti. Em Deus, cuja palavra eu exalto, neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer um mortal? (SI 56:3-4). ... e confio no SENHOR sem vacilar (SI 26:1). ... livrou-me, porque ele se agradou de mim (SI 18:19). No tocante a mim, confio na tua graça (SI 13:5). Espera pelo SENHOR, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração; espera, pois, pelo SENHOR. (SI 27:14). Bem-aventurado o homem que põe no SENHOR a sua confiança (SI 40:4).


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Dar-te-ei graças para sempre, porque assim o fizeste; na presença dos teus fiéis esperarei no teu nome, porque é bom (SI 52:9). Quanto a mim, porém, sou como a oliveira verdejante, na casa de Deus; confio na misericórdia de Deus (SI 52:8). Olhe para o esplendor de um coração humano que acredita que é amado! Talvez não seja por coincidência que o apóstolo João veio a ser conhecido como o discípulo amado. Por quê? "E nós conhecemos e cremos o amor que Deus nos tem" (IJo 4:16a). Davi e João, almas que entoavam o mesmo cântico de confiança inabalável no amor de Deus! Nunca me esquecerei do testemunho de um sacerdote episcopal chamado Tom Minifie, muitos anos atrás na igreja de St. Luke em Seattle, estado de Washington. Ele notou a presença sofisticada de um casal sentado no último banco com o filho de um ano de idade, portador da Síndrome de Down. Era óbvio, pelo comportamento dos pais, que aquela criancinha os deixava constrangidos. Eles se escondiam na parte de trás do templo, talvez planejando sair às pressas assim que o culto terminasse. Quando se dirigiam para a porta da rua, Tom os abordou e disse: "Venham comigo até meu escritório". Depois que se sentaram, Tom pegou o bebé nos braços e o embalou com carinho. Então, olhando para o rosto da criança, começou a chorar. E perguntou-lhes: "Vocês têm ideia do presente que Deus lhes deu por meio desta criança?". Percebendo que os pais estavam confusos e até apreensivos, ele explicou sua reação: "Dois anos atrás, Sylvia, minha filha de três anos de idade, portadora da Síndrome de Down, faleceu. Temos mais quatro filhos e sabemos como as crianças podem ser uma bênção. Contudo, o presente mais precioso


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que já recebemos em toda a nossa vida foi Sylvia. Com sua expressão desinibida de afeto, ela nos revelou a face de Deus como nenhum outro ser humano já havia feito. Vocês sabiam que várias tribos de índios americanos associavam divindade com as crianças com Down, pois na sua incrível simplicidade elas eram uma janela por meio da qual se via o Grande Espírito? Cuidem dessa criança como cuidariam de um tesouro, pois ela os conduzirá ao coração de Deus". Daquele dia em diante, os pais começaram a sentir orgulho do seu filhinho. A confiança inabalável no amor de Deus nos inspira a sermos gratos pelas trevas que nos cercam, pelo desemprego, pela artrite que não pára de doer e nos leva a orar do fundo do coração: "Aba, em tuas mãos entrego meu corpo, mente e espírito e todo o dia de hoje — manhã, tarde e noite. A tua vontade para mim, seja ela qual for, é a minha vontade, dependendo de ti e confiando em ti no meio da realidade da minha vida. Ao teu coração confio o meu coração, frágil, inseguro, incerto. Aba, entrego-me a ti em Jesus, nosso Senhor. Amém". Ao longo da minha vida, na qual as vitórias tem sido modestas e pessoais, as provações, razoavelmente triviais, e os fracassos, grandes o suficiente para ferir a mim e as pessoas que amo, tenho sempre caído e me levantado, caído e me levantado. Cada vez que caio, sou levado a renovar meu esforço por meio de uma confiança cega no perdão dos meus pecados por pura graça, na vindicação e justificação da minha jornada maltrapilha baseada não em quaisquer boas obras que eu tenha praticado (a abordagem do fariseu no templo), mas numa firme confiança no amor de um Deus cheio de graça e misericórdia. Quando Roslyn e eu nos casamos, estávamos ambos desempregados. Meu ministério na igreja católica havia se encerrado,


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e eu era praticamente desconhecido em outras comunidades eclesiásticas. Convites para pregar quase desapareceram, e ninguém me chamava para assumir algum trabalho ministerial. Nossa história talvez seja um paradigma para todo discípulo que confia. O caminho da confiança é um movimento em di-reção à obscuridade, ao indefinido, à ambiguidade, e não a um plano predeterminado e claramente delineado para o futuro. O passo seguinte revela-se a partir do discernimento de Deus agindo no deserto do momento presente. A realidade da confiança nua e crua é a vida de um peregrino que abandona aquilo que tem raízes, que é óbvio e seguro, e caminha para o desconhecido sem nenhuma explicação racional que justifique a decisão ou dê alguma garantia para o futuro. Por quê? Porque Deus ordenou aquele movimento e oferece sua presença e sua promessa. Ê claro que havia dias em que eu sentia medo, meu coração estava abatido e meu corpo tremia, em que prosseguia aos trancos e barrancos, sentindo-me como uma criança confusa e sozinha, perdida na noite escura, ouvindo barulhos assustadores e estranhos; trocando em miúdos, havia dias em que a ansiedade e a incerteza tomavam conta. Então, do nada vinha uma voz calma e tranquila: "Não tenha medo. Eu estou com você". O maior obstáculo em minha jornada pelo caminho da confiança foi uma sensação opressora de insegurança, incompetência, inferioridade e baixa autoestima. Não me lembro de ter recebido um abraço ou um beijo de minha mãe quando eu era pequeno. Chamavam-me de insuportável e de peste e viviam me mandando calar a boca e ficar quieto. Minha mãe havia ficado órfã aos três anos de idade — seus pais morreram de uma epidemia de gripe em Montreal — e a enviaram para um orfanato, onde ela morou muitos anos, até ser adotada. Então, quando tinha dezoito anos, mudou-se para


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o Brooklyn, em Nova York, para estudar enfermagem. Como não havia recebido muita atenção nem afeto durante a infância, ela era incapaz de oferecê-los. Nos últimos anos de vida, meu pai transformou-se na pessoa mais gentil e bondosa que eu já conheci. Mas durante minha infância ele sempre esteve ausente. Pressionado pelas limitações de uma baixa escolaridade, durante a Grande Depressão ele procurou emprego freneticamente, mas em vão. Eu não entendia por que ele nunca estava presente (exceto para dar uma bronca ou para nos impor castigos físicos). Quando eu via crianças da minha idade desfrutando de um excelente relacionamento com seus pais, eu concluía que devia haver algo de errado comigo. A culpa era minha. Como eu vivia me culpando, a semente do ódio corrosivo contra mim mesmo germinou e fixou raízes. Na falta de qualquer expressão de atenção ou afeto da parte dos outros, eu achava inconcebível que Deus tivesse sentimentos positivos a meu respeito. Numa noite de muita neve, quando eu tinha seis anos, meu pai chegou em casa depois de um dia difícil procurando emprego e perguntou à minha mãe como os meninos haviam se comportado. Apontando para meu irmão Rob (quinze meses mais velho que eu), ela disse: "Ele não toma jeito. Quero que você o leve até a delegacia agora mesmo. Diga aos policiais que o coloquem numa cela e o deixem ali". E foi o que meu pai fez. Ajoelhei-me sobre o parapeito da janela com o nariz contra o vidro, torcendo sem esperanças para que meu irmão voltasse para casa. Meia hora depois, vi meu pai subindo a rua de volta, mas sozinho. O terror da rejeição e abandono tomou conta do meu coração. As lágrimas rolaram pelo meu rosto. Tremendo, percebi que não havia ninguém mais para me proteger. Eu estava completamente só e sabia que seria o próximo.


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Mas então vi meu irmão uns trinta metros atrás do meu pai, caminhando e fazendo uma bola de neve. O pânico interior cedeu um pouco, mas eu continuava assustado e abalado. Limpando as lágrimas dos olhos, desci do parapeito, assumi a posição machista de que meninos de seis anos não choram e fingi estar desinteressado num episódio traumático que me perseguiu durante anos. Mas isso não é tudo. Certa manhã, enquanto eu orava — eu já era adulto nessa época — vi a imagem de minha falecida mãe com seis anos de idade no orfanato, ajoelhada sobre o parapeito de uma janela e com o nariz contra o vidro, lágrimas rolando pelo rosto, e pedindo a Deus que enviasse um casal bonzinho que a adotasse. De repente toda a raiva que eu tinha dentro de mim contra a minha mãe, todo o ressentimento que eu tinha por causa de sua ausência quando eu era criança, tudo aquilo desapareceu. Soluçando, pedi perdão a ela. Com um sorriso radiante, ela disse: "Eu posso ter errado muito, mas você conseguiu". Quando ela me abraçou e me beijou, o maior inimigo da confiança em minha vida foi desarmado. Uma vida que se revolve no meio da vergonha, do remorso, do ódio contra si mesmo e da culpa por causa de erros reais ou imaginários do passado revela uma falta de confiança no amor de Deus. Mostra que não aceitamos a aceitação de Jesus Cristo e, assim, rejeitamos toda a suficiência de sua obra redentora. A preocupação com pecados do passado, fraquezas do presente e defeitos de caráter faz com que nossas emoções se agitem de formas autodestrutivas, encerra-nos na cidadela poderosa do eu e tomam o lugar de um Deus compassivo. Por experiência própria posso testemunhar que a linguagem da baixa autoesti-ma é dura e exigente; ela comete abusos, faz acusações, critica, rejeita, acha erros, culpa, condena, repreende e esbraveja num monólogo de impaciência e castigo.


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Em vez de ficarmos surpresos por termos feito algo de bom — e certamente fazemos — ficamos chocados e horrorizados com nosso fracasso. Jamais julgaríamos nenhum outro filho de Deus com a mesma condenação selvagem com a qual nos oprimimos. O fato é que o ódio contra nós mesmos torna-se maior que a própria vida e cresce até o ponto de ser considerado o começo e o fim de tudo. A imagem da história infantil do Ga-linho Chicken Little me vem à mente. Em nosso ódio contra nós mesmos sentimo-nos como se o céu estivesse caindo. Assim, não é sem motivo que nos escondemos de Deus em oração. Simplesmente não acreditamos que ele possa cuidar de tudo que vai em nossa mente e coração. Ficamos a imaginar se ele poderia aceitar nossos pensamentos odiosos, nossas fantasias cruéis e nossos sonhos bizarros. Pode ele conviver com nossas imagens primitivas, nossas ilusões de grandeza e com os exóticos castelos que fabricamos em nossa mente? Concluímos que não e, portanto, escondemos de Jesus aquilo que mais precisa de seu toque de cura.5 Para que cresçamos em nossa confiança, precisamos permitir que Deus nos veja e nos ame exatamente como somos. A melhor forma de fazer isso é por meio da oração. A medida que oramos, o amor irrestrito de Deus vai aos poucos nos transformando. Abrimo-nos para receber a verdade sobre nós da perspectiva da verdade de Deus. O Espírito abre nossos olhos para vermos a realidade, ignorando as ilusões, de modo que possamos perceber que somos vistos por Deus com. um olhar de amor. Em novembro de 1999, enquanto eu caminhava pelo campus da universidade Stanford, em Paio Alto, na Califórnia, dirigindo5

Henri NOUWEN, America 180, n" 13, 17 de abr. de 1999, p. 34.


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me para um auditório onde eu iria dar uma palestra, um aluno aproximou-se de mim e disse: "Gostei do seu jeans largo e baggy. Para um coroa, até que você é um cara legal". Com uma fisionomia de quem não havia gostado daquilo, respondi: "Se as pessoas não forem legais, por que valeria a pena viver? Dê-me uma boa razão por que você deveria se arrastar através da lama deste mundo sombrio, sinistro e melancólico se você não for legal. Dá para você imaginar como seria não ser legal num mundo legal?". Meio assustado, ele respondeu: "Nossa! Não é assim tão ruim, cara. Por que você não vai conversar com o capelão?". Quando lhe revelei minha identidade, ele riu. Convidei-o para acompanhar-me ao auditório e ouvir minha palavra sobre o amor de Deus. Para minha surpresa e satisfação, ele aceitou. Mais tarde naquela noite, enquanto caminhávamos de volta ao seu dormitório, ele disse que se sentia distante de Deus. E explicou-me: "O peso dos estudos aqui é grande. Eu costumava levar uma vida de oração no segundo grau, mas tenho estado tão ocupado com os estudos, com a vida social e tentando me adaptar, que acabei descuidando de meu relacionamento com Deus. Eu sinto falta dele". Então, disfarçando, limpou as lágrimas. "Quero sentir a presença dele. A correria da vida me deixa tão afastado, que às vezes fico pensando se realmente confio em Deus. Daí eu me pego assustado. Mas eu continuo no mesmo esquema de vida, porque não consigo ver alternativa. Gostaria de estar mais perto de Deus." Na manhã seguinte, uma integrante do corpo docente daquela escola veio visitar-me. Suas palavras pareceram uma reprise do que aquele aluno havia compartilhado na noite anterior. Ela disse: "Houve um momento em minha vida que minha fé era tão grande, que ela era a própria força que eu tinha para cada dia. Eu tinha consciência da presença de Deus mesmo nas


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situações mais estressantes. A presença de Cristo ardia como fogo dentro de mim. Mas aos poucos, quase sem perceber, fui deixando de me aquecer com sua presença. A competição, aca-demicamente falando, é muito grande aqui e exige muito da gente". E, suspirando profundamente, soltou o corpo para trás, afundando na poltrona. Depois de uma pausa, ela continuou: "Ontem, depois que você falou sobre o amor de Deus, chorei durante uma hora. Minha vida está muito vazia. Vejo tanta dor e sofrimento aqui no campus e fora dele também, que às vezes fica difícil acreditar num Deus de amor. Eu ainda tenho fé — sei que tenho — mas não consigo senti-la; perdi toda a percepção da presença de Deus. Sou como Maria Madalena chorando no jardim: '... levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram'. Sinto tanta falta de Deus, que às vezes fico profundamente emocionada. Gostaria tanto de ter de volta o relacionamento que eu tinha com ele!". Pois bem, olhe para aquele aluno e para essa moça e finja que você é o Deus de amor encarnado em Jesus de Nazaré. O jovem está triste porque sente sua falta, abatido por não estar perto de você, sofrendo por estar tão ocupado que acabou por negligenciá-lo, quase em pânico por não confiar mais em você. A jovem está chorando porque não consegue mais sentir sua presença como antes. O sofrimento em seu coração se deve à experiência que ela tem de sua ausência. Enredada pela vida académica, ela teme que sua fé esteja declinando e que venha a perdê-lo para sempre. Ainda supondo por um momento que você seja Deus, como você se sente em relação a essas duas pessoas? Consegue vê-las como pessoas que mantêm um relacionamento com você?


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Seu coração está transbordando de compaixão por seus sentimentos de separação em relação a você? Consegue ver na vida dessas pessoas uma oração de anseio por você? Você as tomará nos braços no momento em que elas clamarem? Pegue seus sentimentos humanos, multiplique-os exponencialmente até o infinito e você terá uma noção do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Com uma forte afirmação de nossa bondade e um gentil entendimento de nossas fraquezas, Deus está nos amando — a mim e a você — neste exato momento, assim como somos e não como deveríamos ser. Não há nada que possamos fazer para aumentar seu amor por nós e nada que possa diminuí-lo. Quando, em nossa caminhada com Deus, somos atingidos por excesso de trabalho, depressão, problemas de família ou coisa pior, Deus não nos abandona. Nem nós, se andarmos pelo caminho da confiança, haveremos de abandoná-lo. Quando saímos do caminho, a confiança nos leva de volta; e não retrocedemos, hesitamos ou nos preocupamos com a possibilidade de Deus não nos acolher em seus braços. Não importa onde estejamos em nossa jornada, temos uma tranquila segurança de que nossa confiança no amor de Deus lhe proporciona imenso prazer. Todavia, se enxergamos um Deus pavio-curto, inacessível, que se aborrece facilmente, se a imagem que fazemos dele é de um Deus arrogante, indiferente ou cheio de raiva, atribuindo-lhe qualidades nada amorosas e nos encolhendo diante de seu olhar, descartaremos o caminho da confiança como uma ilusão, como um beco sem saída ou como um caminho fácil e suave para os fracos e tolos. Nosso ceticismo, cinismo ou racionalismo triunfante haverão de afastar para longe de nosso meio o Deus-conosco, fazendo dele um ser indiferente e desinteressado nas lutas e alegrias de seus filhos.


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Daniel Considine escreveu na década de 1930: "Nunca houve uma mãe tão cega para os erros do filho quanto o Senhor para os nossos".6 Portanto, nunca devemos nos desanimar com nossos erros. Podemos começar a fazer isso se não ficarmos surpresos com eles. Uma criancinha que não sabe andar direito não se surpreende com seus tropeços e quedas a cada passo que dá. Embora a gravidade do pecado não deva ser minimizada, desperdiçar tempo deplorando o passado mantém Deus longe de nós. Como disse o Pastor de Hermas no segundo século: "Pára de bater na tecla dos teus pecados e ora pedindo justiça". Qual a utilidade de nossa vida de oração, de nosso estudo da Bíblia, da teologia ou da espiritualidade, se não confiamos naquilo que aprendemos? Ficar num vai e vem entre um sim definitivo e um não desanimador nos mantém num estado de procrastinação terminal. Da mesma forma, uma ênfase exclusiva nas questões teológicas e quentes da moda (muitas das quais não são nem quentes nem teológicas) ou uma ênfase unilateral nas questões urgentes de justiça social podem temporária ou permanentemente adiar uma decisão de confiar no amor de Deus, mantendo-nos assim num estado de limbo espiritual. Minha avó paterna costumava dizer: "Viver sem correr riscos é correr o risco de não viver". O caminho da confiança é uma coisa arriscada, não há dúvida sobre isso. Mudar de profissão de uma hora para outra porque não nos sentimos realizados, assumir o cuidado extenuante dos pais idosos, isolar-se por três dias em silêncio e solitude com Jesus sem ficar estressado, fazer um trabalho voluntário no subSaara com somente alguns escassos recursos espirituais, assumir um cargo impopular com rumores Confidence ín God, p. 17.


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de descontentamento e medo nos bastidores, dominar a desilusão quando ficamos de frente com o descrédito nos lugares onde menos se esperava — todos esses desafios exigem disposição para arriscar uma jornada rumo ao desconhecido e prontidão para confiar em Deus mesmo no meio das trevas. É claro que não se deve agir impulsivamente. Toda e qualquer decisão mais importante deve ser precedida por um processo de discernimento cuidadoso, e isso envolve família, amigos e um mentor espiritual. Mas quando chega a hora certa, somente o discípulo que confia com determinação em Deus ousará correr o risco. E essa confiança não parte da ingenuidade, mas há consciência de que a possibilidade de errar e de se dar mal é bem concreta. Mas sem se expor à possibilidade de fracasso, não existe risco. Explicando o desenvolvimento de sua fé, o psiquiatra Gerald May escreve: Sei que Deus é amoroso, e o seu amor é confiável. Sei disso pela via direta, por meio da experiência da minha vida. Houve inúmeras vezes em que duvidei, principalmente quando eu achava que a bondade de Deus significava que eu não seria atingido por coisas ruins. Mas, tendo passado por sofrimento um número razoável de vezes, hoje sei que a bondade de Deus é algo muito mais profundo do que sofrimento e prazer — ela inclui as duas coisas.' Naturalmente, os que assumem riscos irritam os legalistas, que se sentem ameaçados por qualquer pessoa que confie em Deus e não na lei. Eles tendem a desprezar homens e mulheres 7

Simply Sane, p. 155.


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que não sejam tão cautelosos quanto eles. Colocam-se acima dos pecadores e dos não-conformistas. Em virtude dessa confiança no próprio eu, aliada a uma falta de autoconhecimento, os legalistas revelam-se incapazes de receber a graça; eles não vivem nem ousam viver com base na confiança num Deus de amor. Balançam a cabeça em desaprovação, invocam tradições sacrossantas e sem motivo lançam mão de sua arma mais cruel e poderosa: a opressão pela culpa. Ameaçados pela liberdade daqueles que confiam em Deus e não na lei, os legalistas avisam que haverá trágicas consequências e uivam como um grupo de lobos na noite. O discípulo, porém, não mais assolado pelo desejo de agradar os outros e considerando a aprovação de Deus mais valiosa que a desaprovação dos homens, segue em frente com o olhar fixo em Jesus, "Autor e Consumador da fé" (Hb 12:2). Achei fascinante um dos livros de Henri Nouwen, The Inner Voice of Love [O secreto som do amor], relativamente pequeno, apenas 115 páginas, publicado no dia de sua morte. Nouwen emprega os termos confiar ou confiança 65 vezes. Alguns exemplos: A cada momento precisamos decidir confiar na voz que nos diz: "Eu te amo. Eu te teci no ventre de tua mãe" (SI 139:13). Pare de perambular por aí. Pelo contrário, volte para casa e confie que Deus lhe trará o que você precisa. Pois, por tudo que você consegue se lembrar, você tem sido alguém que se preocupa em agradar os outros, dependendo deles para ter sua identidade. Mas agora você deve abrir mão de todos os apoios que produz para si mesmo e confiar que Deus lhe é suficiente. A escolha fundamental é confiar sempre que Deus está com você e lhe dará o que você mais precisa.8 8

E101, 105, 112, 113.


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Os livros anteriores de Nouwen estão pontuados com a palavra fé. E também em seu canto do cisne, ele emprega uma vez a palavra fé e sessenta e cinco vezes confiar. O que quero dizer com isso? Em algum lugar ao longo do caminho, na vida do cristão maduro, a fé junta-se com a esperança (falaremos mais sobre isso) e transforma-se em confiança. Baseada na experiência que temos da fidelidade invariável de Deus, floresce a confiança de que ele está conosco para continuar e terminar o que começou. Essa confiança era tão inabalável na vida de Nouwen, que ele pôde olhar para a própria morte como uma experiência alegre. Tenho certeza disso. E acho que a fidelidade no caminho da confiança nos conduzirá ao mesmo ponto aonde Jó foi conduzido: "Embora ele me mate, ainda assim esperarei nele" (Jó 13:15, NVI).


CAP ÍTULO

DOIS

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D

igamos que eu faça uma enquete com dez pessoas, perguntando a cada uma a mesma coisa: "Você confia em Deus?". Suponha que as dez respondessem: "Sim, eu confio em Deus", mas nove delas realmente não confiassem. Como eu descobriria qual dos maltrapilhos estava dizendo a verdade? Eu iria filmar a vida das dez pessoas durante um mês e então, depois de assistir a cada um, faria meu julgamento pelo seguinte critério: a pessoa com um espírito predominante de gratidão é a que confia em Deus. A principal qualidade de um discípulo que confia é a gratidão. Ela surge de uma clara percepção, avaliação e aceitação de tudo na vida como graça — como uma dádiva das mãos do Pai que não conquistamos nem merecemos, e a aceitação da dádiva é uma forma implícita de agradecimento ao doador. O coração grato exclama de manhã: "Senhor, obrigado pela dádiva de mais um dia". E continua expressando sua gratidão à medida que as bênçãos vão surgindo: Obrigado pela dádiva de amar e ser amado, pela beleza dos animais na fazenda e nas florestas, pelo som da cachoeira, pela


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beleza da velocidade da truta no riacho. Obrigado pelo cervo correndo pelas campinas, pelo fogo e pela água, pela magia de Monet, pelo arco-íris depois da chuva de verão, pela moça de cabelos esvoaçantes que desce a encosta da colina e pela xícara de café fumegante. Obrigado pelo sorriso no rosto de uma criança que toma um sorvete de chocolate, pelo cachorro que abana a cauda e pelo toque do seu focinho frio no meu rosto. Obrigado por eu ter nascido naquela casa da rua 48 Leste, no Brooklyn, e não na casa ao lado. Se meu local de nascimento tivesse sido outro, eu poderia nunca ter conhecido Jesus e tantas pessoas lindas que conheci por meio dele. Obrigado pelas quatro estações do ano, pelos dias gloriosos de sol e, acima de tudo, pelo dom de Jesus Cristo, o Sol que não se põe, que, por meio de sua morte e ressurreição, colocou-nos na estrada rumo à glória. Nunca me esquecerei de ter lido Seven Essays on Metaphysics [Sete ensaios sobre metafísica], de Jacques Maritain, durante meus dias no seminário de St. Francis, em Loretto, na Pensilvânia. Em um desses ensaios, Maritain conta de um dia em que ele, um filósofo renomado de 77 anos de idade, deu pulos no alto de um monte em Toulouse, na França, gritando aos céus: "Estou vivo, estou vivo!". Tendo a experiência de um arrebatamento repentino e absolutamente maravilhoso diante do dom da vida, a alegria de estar investido de existência, o privilégio de ser em vez de não ser, Maritain caiu de joelhos suspirando palavras de louvor e gratidão. A redescoberta da dádiva preciosa da vida e da existência, muitas vezes consideradas tão corriqueiras, dá lugar ao espírito de gratidão; a consciência das eventualidades, forçosamente apresentadas pelo noticiário da noite, motiva a decisão de aceitar o convite para celebrar a vida um dia por vez. Unidas a uma consciência intermitente da presença divina, as palavras


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de Jesus "eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10:10) brilham com a sensação de que a vida deve ser infinitamente valorizada. Sobre a minha mesa de trabalho encontra-se uma foto minha, na qual seguro nos braços a pequena Eloise Grace Elford, filha de um querido amigo, com uma semana de vida, nascida em Surrey, na Inglaterra, pesando pouco mais de três quilos. Gerada pela semente de seus pais e pelo beijo de Deus, ela entrou na história humana, generosamente enriquecida com o dom da vida, e presenteou a nós três (suspeitos como sempre — o pai e a mãe também estavam no quarto) com um sorriso que parecia gritar: "Eu existo! E tão bom estar viva!". Hans Urs von Balthasar, teólogo suíço, declara: "Precisamos apenas saber quem e o que realmente somos para romper em louvor e gratidão espontâneos". Mesmo sofridos e arruinados como somos, olhar para nossa grandeza como filhos amados de Aba, vivos e vibrantes em Cristo Jesus, supera a sensação repugnante de nosso eu desprezível e provoca a grata exclamação: "Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste" (SI 139:14). Aqui podemos descobrir a razão pela qual os grandes santos sempre se referiam a sua pecaminosidade. Motivados não por masoquismo, falsa modéstia ou baixa autoestima, mas por gratidão, eles aprofundam cada vez mais a consciência de que sua paixão por Cristo, a vida heróica de oração e sua generosidade no ministério eram dons imerecidos. Eles também passaram a perceber melhor como tantas vezes se esqueciam dos dons que tinham. A parábola do credor incompassivo declara que pecamos contra Deus se deixamos de perdoar as pequenas faltas de nosso próximo. Mas a verdade é que pecamos todos os dias, sempre que deixamos de ser gratos a Deus por suas dádivas multiformes.


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Teria sido ingratidão o pecado original de Adão e Eva? Será possível que Deus esteja interessado na gratidão de nosso coração mais do que em qualquer outra coisa? A parábola dos dez leprosos (Lc 16:11-19) dá apoio a essa conjectura. Em 1996, George Gallup Jr. escreveu um livro intitulado The Saints Among Us [Os santos entre nós]. Cristão sincero e episcopal consagrado, esse famoso pesquisador reconhecia a verdadeira santidade em pessoas aparentemente comuns que ele localizava entre os segmentos da população mais pobre, de baixíssima escolaridade e de pele não branca. Quando lhe perguntaram o que essa identificação implicava, Gallup respondeu: Em muitos casos, há pessoas que enfrentam situações económicas dificílimas, mas a confiança que elas têm lhes dá capacidade para sair de condições cruéis e achar alegria na vida, conseguindo se superar. O fato de serem das classes inferiores dá a entender que, mesmo atingidas por problemas económicos, elas não se deixam derrotar. São mais dispostas a perdoar, mais agradecidas e menos inclinadas a preconceitos, além de terem o dobro de disposição de estender a mão ao próximo como pessoas no extremo inferior da escala de compromisso espiritual. Em outros estudos que temos realizado, tais como de contribuição financeira, descobrimos que os pobres, proporcionalmente aos ricos, contribuem mais para obras assistenciais. Cercados pela miséria, encontram oportunidades de ajudar em todo canto. Os ricos, principalmente agora em que o abismo entre eles e os pobres está maior, tendem a se isolar e, portanto, não vêem muito da crueldade da vida.1 Se você passar algum tempo com mulheres negras de mais idade no chamado Sul Profundo (Nova Orleans, por exem1

Citado numa entrevista em America, 26 de out. de 1996, p. 20.


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Teria sido ingratidão o pecado original de Adão e Eva? Será possível que Deus esteja interessado na gratidão de nosso coração mais do que em qualquer outra coisa? A parábola dos dez leprosos (Lc 16:11-19) dá apoio a essa conjectura. Em 1996, George Gallup Jr. escreveu um livro intitulado The Saints Among Us [Os santos entre nós]. Cristão sincero e episcopal consagrado, esse famoso pesquisador reconhecia a verdadeira santidade em pessoas aparentemente comuns que ele localizava entre os segmentos da população mais pobre, de baixíssima escolaridade e de pele não branca. Quando lhe perguntaram o que essa identificação implicava, Gallup respondeu: Em muitos casos, há pessoas que enfrentam situações económicas dificílimas, mas a confiança que elas têm lhes dá capacidade para sair de condições cruéis e achar alegria na vida, conseguindo se superar. O fato de serem das classes inferiores dá a entender que, mesmo atingidas por problemas económicos, elas não se deixam derrotar. São mais dispostas a perdoar, mais agradecidas c menos inclinadas a preconceitos, além de terem o dobro de disposição de estender a mão ao próximo como pessoas no extremo inferior da escala de compromisso espiritual. Em outros estudos que temos realizado, tais como de contribuição financeira, descobrimos que os pobres, proporcionalmente aos ricos, contribuem mais para obras assistenciais. Cercados pela miséria, encontram oportunidades de ajudar em todo canto. Os ricos, principalmente agora em que o abismo entre eles e os pobres está maior, tendem a se isolar e, portanto, não vêem muito da crueldade da vida.1 Se você passar algum tempo com mulheres negras de mais idade no chamado Sul Profundo (Nova Orleans, por exem1

Citado numa entrevista em America, 26 de out. de 1996, p. 20.


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pio), não poderá deixar de observar o número de vezes que elas dizem "obrigada, Jesus" ao longo do dia. O fariseu do templo (Lc 18:9-14), todavia, não conhece o espírito de gratidão. Ele se mostra indignado pelo fato de Jesus se preocupar com pecadores, enfurecido com sua amizade com a ralé. O erro fundamental desse fariseu, homem de justiça própria que condena os pecadores injustos, estava em acreditar na sua infalibilidade. Consciente de sua religiosidade, ele expressa gratidão somente pelo que tem e pelo que é; ele está cego para o que não tem e para o que não é. Na realidade, o que Jesus diz para esse inimigo do evangelho da graça é isto: essas pessoas que você despreza são realmente pecadores não porque não fizeram sua meditação da manhã, mas porque a pro' fissão as corrompeu, e foram enredadas pela sensualidade e pela ganância. Entretanto, elas se arrependeram de coração e agora têm aquilo que falta a você — uma profunda gratidão a Deus por sua misericórdia e bondade. Por trás de todos os clamores do pecador agradecido está uma confiança inabalável na pessoa e na promessa de Jesus. Suas parábolas sobre a gratuidade da graça destilavam como chuva refrescante sobre o solo ressecado da religiosidade farisaica, como uma tempestade que varre as esquinas sombrias da religião do aleluia sentimental e vibra como relâmpagos na atmosfera sulfurosa de legalistas impetuosamente determinados a uma ortodoxia não-histórica. Lemos no Novo Testamento histórias que esclarecem o conceito da graça. Lemos sobre os trabalhadores da décima primeira hora na vinha e sobre a generosidade pródiga do proprietário (Mt 20:1-16), sobre o coletor de impostos arrependido que volta para casa justificado (Lc 18:10-14), sobre mendigos, aleijados, cegos e paralíticos que têm assento


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reservado no banquete messiânico (Lc 14:16-24), sobre o filho pródigo, miserável e esfarrapado, e seu pai generoso, que escandaliza o espírito calculista e trivial da religião controlada por homens (Lc 15:11-32). Somos então apresentados ao Deus revelado em Jesus Cristo, que é incomparavelmente outro. Uma confiança impoluta na revelação de Jesus permite-nos respirar mais livremente, dançar com mais alegria e cantar com mais gratidão pela dádiva da salvação. Andar em gratidão é um modo de vida inclusivo, atento, contagioso e teocêntrico. Vejamos cada um desses aspectos. A gratidão é inclusiva. Numa reunião dos Alcoólicos Anónimos em Kinsale, na Irlanda, um homem chamado Tony afirmou: "Se eu fosse obrigado a escolher uma doença entre todas as doenças que afligem a humanidade, escolheria a minha [alcoolismo], pois existe alguma coisa que eu possa fazer". Naquela reunião (a exemplo de todas as outras), ele se apresentou como "um alcoólico grato em recuperação". Quando lhe perguntaram o porquê disso, ele respondeu: "Porque sem os doze passos deste programa eu jamais teria me encontrado com Deus". Do mesmo modo, no livro de Jó, aquele homem de Deus, com a vida arruinada, afirma: "... temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?" (Jó 2:10). O saudoso Henri Nouwen escreveu sobre a gratidão espiritual: Ser grato pelas coisas boas que nos acontecem na vida é fácil, mas ser grato por tudo que temos na vida — o bom e o ruim, os momentos de alegria e os momentos de tristeza, os sucessos e os fracassos, as recompensas e as rejeições — exige um árduo trabalho espiritual. Somos pessoas gratas somente quando podemos dizer obrigado por tudo que nos trouxe ao momento presente. Enquanto ficarmos dividindo nossa vida entre pes-


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soas e fatos que gostaríamos de lembrar e pessoas e fatos que gostaríamos de esquecer, não poderemos alegar que a plenitude de nosso ser é uma dádiva de Deus pela qual devemos ser gratos. Não tenhamos medo de olhar para todas as coisas que nos trouxeram até onde estamos hoje e confiar que em breve veremos nelas a mão de um Deus que ama e orienta.2 Sim, a gratidão é inclusiva. Como psicanalista, Eric Erikson comentou certa vez que há somente duas escolhas: integração e aceitação de toda a história de nossa vida ou o desespero. Assim, o apóstolo Paulo escreve: "Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco" (1TS5:18), A gratidão é atenta. Quando estamos internamente dispersos por tudo que nos ocupa, por obsessões, vícios, falta de ponderação e preocupação com TV, esportes, fofocas, filmes, leituras inúteis e assim por diante, não podemos estar atentos para as dádivas que nos chegam a cada dia. O discípulo pergunta ao mestre: "Que preciso fazer para me tornar plenamente iluminado?". E o mestre responde: "Consciência". O discípulo coça a cabeça e pede ao mestre que explique melhor. O mestre responde: "Consciência, consciência, consciência, consciência". Estar consciente e alerta para a presença de Deus, que se manifesta numa música que ouvimos no rádio do carro, numa flor como o narciso, num beijo, numa palavra de ânimo de um amigo, numa tempestade, num bebé recém-nascido, no nascer e no pôr do sol, no arco-íris, ou nas magníficas linhas no rosto de um velho pescador de lagostas exige uma libertação interior do eu possibilitada pela oração. A gratidão nasce de um espírito de oração que nos ajuda a 2

Bread for the Journey.


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perceber a magnólia Dei, as maravilhas de Deus — a travessia do mar Vermelho, a coluna e o fogo e assim por diante. A gratidão é contagiosa. É sempre um prazer estar perto de pessoas gratas. Elas têm um espírito cativante. É simplesmente impossível estar simultaneamente grato e ressentido ou cheio de autopiedade. John Kavanaugh relata a história de uma idosa agradecida num hospital: Ela tinha um tipo de "doença degenerativa", e estava perdendo diferentes funções ao longo do mês. Uma aluna minha calhou de encontrá-la numa visita por coincidência. E voltou várias vezes movida por uma estranha força que vinha da alegria da mulher. Embora não conseguisse mais mexer os braços e as pernas, ela dizia: "Sou muito feliz porque ainda consigo mexer o pescoço". Quando ela não conseguia mais mexer o pescoço, ela dizia: "Sou muito feliz porque consigo ver e ouvir". Quando a jovem estudante finalmente perguntou-lhe o que aconteceria se ela perdesse a visão e a audição, a simpática velhinha disse: "Vou ficar muito grata se você vier me visitar". Havia uma liberdade incomum no olhar daquela estudante quando ela me contou sobre sua amiga. De alguma forma um grande inimigo havia sido desarmado em sua vida.3 O irmão David Steindl-Rast observa: "A raiz da alegria é a gratidão. [...] Não é a alegria que nos torna agradecidos; é a gratidão que nos faz felizes".4 Por fim, a gratidão é teocêntrica. G. K. Chesterton observou certa vez que a pior coisa para um ateu é sentir-se grato e não ter a quem agradecer. O caráter teocêntrico da gratidão tem por âncora a confiança de que há alguém a quem podemos ' America 73, n1210, 7 de out. de 1995, p. 24. 4 Gratefulness: The Heart of Prayer, p. 204-


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agradecer. Temos motivos para argumentar que o tema dominante da vida interior e das orações de Jesus era a gratidão. Educado na tradição judaica, Jesus com certeza agradecia a Deus antes e depois de comer e orava os grandes salmos de ação de graças (21, 28, 30, 65, 66, 116, 136, 139) com profunda gratidão pelo amor e pela fidelidade de seu Pai. No hino de júbilo (Lc 10:21), ele agradece a seu Aba "porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado". No cenáculo, com uma aguda consciência de sua morte iminente, ele tomou um pouco de pão e, "tendo dado graças" (Lc 22:19) o partiu e deu aos discípulos. Sabedor de que seu Pai manifestava-se na beleza das pequenas coisas, Jesus mostrava-se grato pelos pássaros no céu, pelos lírios do campo, pelo sol e pela lua, vales e montanhas, pelos animais que cruzavam os campos e pelos peixes que nadavam no mar. Recebemos a dádiva imerecida da salvação não por algum mérito nosso, mas pela misericórdia divina. Nossos pecados foram perdoados pelo sangue de Jesus Cristo. Recebemos um convite genuíno para beber vinho novo para sempre na festa das bodas no reino de Deus. Conforme prometeu Jesus, "para que comais e bebais à minha mesa no meu reino" (Lc 22:30). Quando as pessoas percebem que receberam uma dádiva que nunca poderão pagar, seu rosto e ações notificam isso, e a vida que levam segue na direção da gratidão humilde e alegre. Elas simplesmente regozijam-se na dádiva. "Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, e a sua misericórdia dura para sempre" (SI 107:1). Se John Henry Newman escreveu um livro intitulado Gram-mar of Assent [Gramática da anuência], pode-se dizer que Francisco de Assis escreveu uma Gramática da gratidão. Seu senso de gratidão e sua absoluta dependência de Deus não eram emoção e fantasia, mas realidade e fato. Em seus momentos


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mais sombrios, ele assim mesmo palmilhava o caminho da gratidão, consagrando-se à mais elevada forma de dar — dar graças. Seu lírico Cântico do irmão sol inclui até uma exclamação de louvor pela "irmã morte". Ele sabia que era uma pessoa plenamente possuída por outra, pertencia completamente a outra e era absolutamente dependente de outra. O contrário da gratidão, logicamente, é a ingratidão. A questão da ingratidão era tão grave na opinião de Inácio de Loiola, que ele escreveu uma carta a Simon Rodriguez em que declara: Parece-me que, à luz da Bondade divina, [...] a ingratidão é o pecado mais abominável e deve ser execrada aos olhos de nosso Criador e Senhor e por todas as suas criaturas capazes de desfrutar sua glória divina e eterna. Pois ela é o esquecimento das graças, benefícios e bênçãos que recebemos. [...] Pelo contrário, o reconhecimento agradecido das bênçãos e das dádivas é amado e estimado não apenas na terra, mas também no céu.5 A antítese de dar graças é murmurar. Os murmuradores vivem num estado de estresse autoinduzido. A exemplo do grupo de trabalhadores na vinha que haviam trabalhado de sol a sol e se sentiram explorados quando os que chegaram depois receberam o mesmo salário (Mt 20:1-16), eles reclamam das injustiças da vida, da escassez de seus dons, da insensibilidade do cônjuge e do patrão, dos liberais que estão destruindo a igreja e dos conservadores que abandonaram seus postos, reclamam do calor e da pizza fria, dos ricos gananciosos e da indolência dos pobres, da vitimização nas garras do leão do 5

Letters of St. Ignatius Loyola, p. 55. Citado por Peter van Breeman, Let Ali God's Glory Through.


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imposto de renda, do governo e do fabricante do Viagra. (Não causa surpresa a informação de que pessoas estressadas e que vivem reclamando têm duas vezes e meia mais chances de pegar resfriados do que as pessoas que se mostram gratas, de acordo com Ronald Glaser, virologista do estado de Ohio.) Em sua Regra para mosteiros, São Bento considerou a murmuração uma grave ofensa contra a vida comunitária. E escreveu: "Se um discípulo murmura, não apenas em voz alta, mas no coração [...] seus atos não serão aceitos com favor por Deus, que sabe que ele está murmurando no coração". Manifestando sua profunda oposição a esse comportamento, ele acrescenta: "Primeiro e acima de tudo, não haja nenhuma palavra ou sinal de murmuração, nenhuma manifestação por qualquer que seja o motivo. Se, porém, alguém for apanhado murmurando, que seja submetido a severa disciplina" (cap. 34). Em minha opinião, o trecho mais maravilhoso na Regra de Bento descreve a resposta adequada a um "monge contumaz" que estava criando discórdia numa comunidade monástica. "Que o padre Abbot envie dois monges fisicamente fortes para terem uma conversa com ele" (cap. 20, grifos do autor). O devoto fundador do monasticismo ocidental deixa implícito que um direto de esquerda na boca do estômago e um cruzado de direita no queixo iriam clarear rapidinho a mente do irmão re-clamão. Ser grato por uma oração não respondida, dar graças num estado de desolação interna, confiar no amor de Deus em face das maravilhas, circunstâncias cruéis, obscenidades e lugares-comuns da vida é sussurrar uma doxologia no meio das trevas.


CAPITULO

TRÊS

A ENORME DIFICULDADE

C

antarei para sempre as tuas misericórdias, ó SENHOR (SI 89:1). Como foi difícil para mim entoar esse cântico quando um

telefonema certa manhã trouxe a notícia da morte de meu amigo Rich Mullins, de 41 anos de idade, num acidente automobilístico algumas horas antes em Illinois. Sem explicar, recusei vários convites para falar em cultos celebrados em sua memória, em Nashville, Wichita e Chicago. Eu me sentia perdido em meu mundo interior confuso, sombrio e assustador, cheio de dúvidas, medo, dor e raiva por causa da morte de Rich. Oh!, provai, e vede que o SENHOR é bom (SI 34:1). Como foi duro para Anne Donovan, quando deu à luz um natimorto. Ela disse: "Tudo em que eu havia depositado minha confiança — a ciência moderna, a intuição feminina, a misericórdia de Deus — havia falhado e eu não tinha nada que me servisse de apoio". Amigos bem-intencionados apresentavam as condolências com palavras como "foi da vontade de Deus", "não entendemos a vontade de Deus", e diziam-lhe do


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"privilégio que ela agora desfrutava por ter seu próprio anjinho", mas o único gosto em sua boca era o de cinzas.1 Louvai ao SENHOR, porque o SENHOR é bom (SI 135:3). O louvor que se ouviu do povo da República Dominicana atingido pelo furacão Georges não foi abundante. Milhares de mortos, famílias destruídas, dezenas de milhares de desabrigados e a economia em ruínas. A bondade de Deus não foi cantada, louvada nem provada nos casos de famílias destruídas por terremotos na Turquia e em Taiwan, vítimas cujo sofrimento é visto em todo o mundo. A onipresença da dor e do sofrimento — indesejados, aparentemente imerecidos e que não se sujeitam a explicações nem soluções — levanta um enorme obstáculo a uma confiança infalível na bondade infinita de Deus. Como alguém tem coragem de propor o caminho da confiança em face da dor nua e crua, que não escolhe cor, raça nem posição social, da desordem mundial e do terror da história? Qualquer autor cristão que não considere essas realidades cruéis ou as descarte como de pequena monta é ingénuo, ou desonesto, ou desligado da angústia que detona a confiança de muitos cristãos que lutam contra ela. Quando a dor e o sofrimento se juntam ao monstruoso mistério do mal, chegamos a uma encruzilhada de onde não há caminho de volta. A onda de assassinatos nas escolas de alguns estados americanos, a violência do assassino em série Rafael Resendez-Ramirez, a selvageria das torturas sexuais de Charles Ng, de 38 anos de idade, que levaram à morte de seis homens, três mulheres e dois bebés, o horror por causa da mãe 1

America (1997). America é um excelente periódico que trata de teologia, espiritualidade, artes e da situação da igreja em todo o mundo.


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de setenta anos de idade que confessou muito tempo depois ter sufocado seus oito filhos antes que completassem dois anos de idade, as sepulturas coletivas de albaneses mortos em Ko-sovo — a lista de males parece não ter fim, impressionando tanto cristãos como não-cristãos com mais intensidade que a presença de Deus. Ao lado de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Samuel Beckett e Eugène Ionesco, muitos cristãos têm se mostrado incapazes de conviver com o que eles mais temem — a solidão e as coisas absurdas da vida. Eles descartaram o Deus de amor como se ele não passasse de fantasia e foram envolvidos pelos dedos gelados do agnosticismo e do ateísmo. Louis Dupré escreve: A absoluta magnitude do mal que nossa era tem experimentado como campos de concentração, guerras nucleares, genocídios tribais ou conflitos raciais não levanta a questão de como Deus pode tolerar tanto mal, mas nos faz perguntar como a realidade mais tangível do mal ainda permite a possibilidade da existência de Deus.2 A dor, o sofrimento e o mal constituem um divisor de águas para a comunidade da fé. Muitos evitam a questão por completo, ao passo que outros tentam substituir a confiança religiosa pela arte, pela reflexão racional ou pela especulação filosófica. Na verdade, conforme observa Dupré: "O mal convida à especulação filosófica, mas é o rochedo que faz a filosofia naufragar".3 Até mesmo a teologia não tem condições de resolver o problema da mãe cujo filhinho acabou de morrer de câncer. 2

Religious Mystery and Rational Reflection, p. 41-5 IbicL, p. 42.


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O livro de Jó e os salmos de lamento não revelam nenhum interesse de tirar de Deus a responsabilidade pela tragédia e pela miséria da existência humana. Os salmos apresentam a realidade nua e crua, incómoda e brutalmente honesta. È para um Jó com raiva e atónito que Deus aparece e fala, e ainda se dirige depois ao Elifaz teologicamente sofisticado, dizendo que peça as orações de Jó, acrescentando "porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó" (Jó 42.7). No capítulo 53 de seu livro profético, Isaías fala da figura misteriosa do servo sofredor, que, embora "desprezado, e o mais rejeitado entre os homens", brutalmente agredido, "tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si", mas ainda assim triunfou. As Escrituras cristãs falam da cruz e dão testemunho de que Deus pode transformar em bem os males mais hediondos. Escrevendo sobre a indescritível barbaridade do Holocausto, em que seis milhões de homens, mulheres e crianças foram aniquilados, Frederick Buechner declara: "Mas todas essas explicações soam obscuras e inadequadas diante das câmaras de gás de Buchenwald e Ravensbruck, os fornos de Treblinka".4 Ao longo de todo o sofrimento excruciante da experiência humana Jesus permanece, nas palavras pungentes de Ray-mond Nogar, The Lord of the Absurd [O Senhor do absurdo],5 e a esperança na promessa da ressurreição permanece firme e indiscutível. No entanto, para a esposa atingida pela dor de ver o marido e três filhos pequenos serem mortos por um motorista embriagado, afirmar a vida eterna oferece pouco alívio. Do mesmo modo, Anne Donovan, depois de um parto em que

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listening to Your Life, p. 285. 5E 126.


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seu bebé nasceu morto, ouviu apenas risos zombeteiros do céu quando uma amiga bem-intencionada recitou-lhe um poema piegas com esta repugnante mensagem: Deus olhou em volta no céu e resolveu que aquele lugar precisava de mais beleza; então ele colheu uma linda flor — seu bebé que havia nascido morto — para alegrar o céu. Anne disse: "Cerrei os lábios para não dizer alguma coisa da qual eu pudesse me arrepender".6 Harriet Beecher Stowe mostrou que compreendia as profundezas da luta humana quando escreveu estas palavras a uma amiga em sofrimento: Quando o coração é dilacerado de uma hora para outra, creio ser uma impossibilidade física ter fé ou resignar-se; ocorre uma revolta do sistema animal e instintivo e, embora possamos nos submeter a Deus, isso é provocado por um esforço constante e doloroso e não por alguma doce atração. Além da trindade da dor, do sofrimento e do mal, acrescente-se outro grande obstáculo a uma confiança inabalável no amor misericordioso de Deus: o testemunho infeliz de cristãos ultraconservadores com suas imagens execráveis de um Deus mau. Eles falam num tom sepulcral e frívolo a respeito de uma divindade que, com prazer maldoso, lança num lago de fogo noventa por cento das pessoas criadas a sua imagem e semelhança. Igualmente repugnante é a divindade descrita pelo inigualável Philip Yancey em seu livro magistral What's So Amazing About Grace? [Maravilhosa graça]: "Cresci com a imagem de um Deus calculista", ele recorda, "que pesava meus atos bons e maus em balanças e sempre me achava em falta. 6

Donovan, "Article Title", XX.


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[...] Eu imaginava Deus como um ser distante e assustador que preferia medo e respeito em vez de amor".7 O escritor Paul Messbarger lembra-se de uma vez que ele e a esposa foram passar férias em Nova Orleans. A semelhança da maioria dos turistas, foram para o Quarteirão Francês no primeiro dia. Ao virarem a esquina para a Royal Street, uma mulher veio na direção deles. Ela estava vestida como uma profissional, a não ser pelo par de ténis que usava. Com um sorriso escancarado, ela disse: "Eu logo soube que vocês eram salvos". Perplexo com a invasão e sem conhecer direito o jargão evangélico, Paul murmurou: "Assim espero". A mulher postou-se no caminho deles quando tentaram continuar andando. E exclamou: "Não é maravilhoso? Vocês não sentem que o arrebatamento está perto?". Confuso, o casal não respondeu nada. Então a mulher começou a mencionar as tensões que aumentavam em vários países do leste europeu e pareciam caminhar para o caos. Ela interpretava a escalada de conflitos internacionais como um claro sinal de uma guerra nuclear iminente — uma guerra que apressaria o fim do mundo, quando então os eleitos seriam convocados para o céu, transportados fisicamente numa viagem sem escalas. Isto foi o que Messbarger disse depois sobre ela: Revestida de uma confiança invencível, aquela mulher imatura anunciava com toda a serenidade uma mensagem indescri-tivelmente obscena: ela estava comemorando uma destruição em massa, pois, por decreto divino, algumas pessoas seriam retiradas deste mundo e elevadas ao céu para desfrutar de alegria 7

R52, 70 [veja bibliografia].


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eterna. Mas daí veio a jogada. Enquanto eu procurava palavras para dar uma resposta à altura daquela ofensa, ela enfiou um papel na minha mão e disse que se comparecêssemos a uma apresentação de uma construtora de condomínios que não duraria mais que uma hora, ganharíamos como cortesia um café da manhã no famoso restaurante The Court of Two Sisters na Bourbon Street!8 Desde a grosseira crueldade dos julgamentos das bruxas de Salém até os dias de hoje com imagens blasfemas e implacáveis de um Deus vingativo, a consciência cristã de muita gente tem sido assombrada pelos terrores de um Deus que não tem piedade, fazendo com que as pessoas duvidem até do que vêem. Os clichés, o palavrório e as exortações acerca da necessidade de confiarmos em Deus partem geralmente de crentes nominais que nunca passaram pelo vale da desolação; essa verborragia toda não somente é inútil, mas também é prova cabal de amargura insaciável. Somente quem já passou por esse vale, quem já bebeu do cálice do sofrimento, quem já experimentou solidão e alienação existencial da condição humana ousa sussurrar o nome do Santo em face de nossa aflição indescritível. Somente o testemunho dessas pessoas é válido; somente o amor dessa gente é digno de crédito. O enorme desafio da confiança é exacerbado para os que se encontram em estado de depressão; para os que estão dentro de um casamento sem amor, insistindo na convivência por amor dos filhos, mas sem ver saída; para os que anseiam por um amigo, mas parecem condenados à solidão, para os que não 8

America, 1997, p. 37.


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conseguem fazer florescer nada que lhes chega às mãos; para os desejam levar uma vida normal, mas se sentem irremediavelmente derrotados por algum vício que não conseguem dominar; para aqueles cuja vida de fé, oração e ministério para Deus começou com altos ideais e com grande entrega pessoal, mas agora tudo parece não ter sentido — pessoas para quem a fé não mais representa consolo e segurança, cujas orações estão envoltas em trevas, cujos ministérios se transformaram em rotina superficial. E então o sofrimento — sempre acabamos caindo de volta no tema do sofrimento. Como fica o desafio de confiar para os três milhões de refugiados que, com suas lágrimas, regam as estradas e os arrozais; para os que vivem em países onde ser negro não é ser belo, mas inferior; para os vinte mil sem-teto que vivem nas ruas de Calcutá, que fazem pequenas fogueiras para cozinhar restos de alimento, defecam nas sarjetas e se encolhem junto aos muros para dormir; para os que estão destruindo corpo e alma com álcool, cocaína e heroína; para os que mancham com o próprio sangue a terra desde Kosovo até a Irlanda do Norte ou pelas ruas de sua cidade natal; para as crianças com barriga inchada no Sudão; para os prostitutos e prostitutas de doze anos de idade (ou mais jovens ainda) em Nova York e outros lugares; para aqueles que estudam em escolas decadentes e sub-humanas? Talvez o leitor ache que estou exagerando a enorme dificuldade para causar um efeito dramático. Mas os que andaram pela longa e solitária estrada que leva ao Calvário não pensam assim. Nem os que viveram angústias insuportáveis e recusa-ram-se a desistir e perder as esperanças. O cético pode dirigir-se a Laura, uma moça cuja carta estava hoje em minha caixa do correio:


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A única coisa que anseio ouvir de Deus é: "Muito bem". Mas sei que nunca ouvirei isso dele, porque sou muito preguiçosa, burra e egoísta. Sou uma criança mimada e ingrata. Um fracasso total. Faça um favor a si mesmo, Brennan. Amasse esta carta e me esqueça. O cético pode também falar àquelas mulheres que, na infância, sofreram violência sexual do pai, do tio ou do irmão e agora estão tomadas de fúria, vergonha, impotência e ódio contra si mesmas. Ou a Anne Donovan, enquanto ela segura nos braços seu bebé morto. Se o assunto é esse, fale comigo sentado no meio-fio da avenida General Meyer aqui em Nova Orleans. Estou impregnado de álcool por causa de uma recaída. Minhas roupas estão rasgadas, meu corpo está fedendo, e não me barbeei. Meu rosto e meu abdómen estão inchados; meus olhos, vermelhos como se fossem sangrar. Estou agarrado a uma garrafa de vodca quase vazia. Meu casamento está desmoronando, meus amigos estão quase sem esperanças, e minha honra está manchada. Meu cérebro está confuso, e minha mente virou uma lata de lixo cheia de promessas que abandonei, de sonhos que não se realizaram e de resoluções que não levei adiante. Atrás de mim, a uns cinquenta metros, está a clínica de desintoxicação do hospital E Edward Hebert. Ao tomar o último trago, estremeço pela dor e tristeza que causei. Ir às reuniões dos Alcoólicos Anónimos, passar pelos doze passos, falar com meu padrinho, ler a Bíblia, orar — tudo isso deu certo para os outros. E por que não funcionou para mim? Sei que jamais ouvirei as palavras: "Muito bem, servo bom e fiel". Entro em pânico: acabou a bebida. Procurando nos bolsos encontro uma nota de cinco dólares. Cambaleando quatro


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quarteirões, encontro uma loja de conveniência ainda aberta à meia-noite. Compro meio litro de uma vodca barata. Volto pelo mesmo caminho, ziguezagueando através da avenida para retomar meu lugar no meio-fio. Não quero o tratamento resgatador de desintoxicação. Continuo a beber. Meus olhos estão cheios de lágrimas. Eu, um filho bêbado de Aba, estou clamando: "Jesus, onde estás?" Logo apago com meia garrafa de voda sobre o peito. Quando acordo na manhã seguinte, fico sabendo que dois integrantes da equipe haviam ido para a avenida e me carregaram para a clínica de desintoxicação. Como as pessoas podem bater palmas e celebrar a Deus com vozes de júbilo (SI 47:2) no meio da dor, do sofrimento, da tristeza e do desespero galopante? È possível resistir e no fim transpor a desolação e a melancolia de um panorama marcado pelo mal e pela destruição? Depois da conversão de Saulo / Paulo na estrada para Damasco, Jesus disse a Ananias: "... pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome" (At 9:16). Qualquer pessoa que Deus use de forma especial é sempre profundamente ferida. Não é por acaso que o título de um dos livros de Michael Ford sobre a vida e o ministério de Henri Nouwen é Wounded Prophet [O profeta ferido]. Somos, cada um de nós, pessoas insignificantes a quem Deus chamou e dispensou sua graça para usar de modo especial. Aos olhos dele, os grandes ministérios têm tanto valor quanto os que chamam pouca atenção e não são famosos. No último dia, Jesus olhará para nós em busca não de medalhas, diplomas ou honras, mas em busca de cicatrizes. Aonde levamos o mau cheiro exalado pela dor, pelo sofrimento e pelo mal? A especulação filosófica e a reflexão racional naufragam nos bancos de areia da enorme dificuldade.


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O único território inexplorado faz com que fixemos o olhar no vasto oceano sem fronteiras da glória de Deus. Ireneu, discípulo do apóstolo João, é nosso guia em Contra a heresia do gnos-ticismo, sua obra de cinco volumes. A sempre citada primeira metade de uma oração de duas partes diz: "A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo". Mas a parte menos mencionada diz: "... e a vida do homem consiste em contemplar a Deus".9

9

Ireneu, Contra a heresia do gnostichmo.


CAPITULO

QUATRO

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N

o filme Waking Ned Devine, um garoto de dez anos pergunta ao pastor interino de sua igreja: — Você já viu a Deus? — Não diretamente — responde o jovem ministro — mas eu recebo revelações. — Você ganha bem? — pergunta o garoto. — Não. As recompensas do meu trabalho são principalmente espirituais. Então o pastor pergunta ao menino: — Você já pensou numa vida de serviço dedicado à igreja? — Na verdade, não. Eu não quero trabalhar para alguém que eu nunca vejo e não me paga nem salário mínimo. Desconfio de que Ireneu pensava em algo mais quando falou de contemplarmos a Deus na passagem citada no fim do capítulo três. A essência da experiência de contemplação reside na kabõd (palavra hebraica traduzida por glória) do Senhor. Na Bíblia, kabõd é um conceito teológico rico e complexo com múltiplas nuanças de sentido. Começando com o Antigo Testamento, o primeiro sentido, o mais primitivo, tem a ver


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com o peso de um objeto determinado numa balança. O segundo sentido, também encontrado no Antigo Testamento, refere-se à riqueza material. O sonho de Salomão em Gibeão contém esta promessa: "Também até o que me não pediste eu te dou", disse Javé, "tanto riquezas como glória [kabõd]; que não haja teu igual entre os reis, por todos os teus dias" (lRs 3:13). Como parte do segundo sentido, a palavra é também usada figuradamente para descrever alguém que alcançou uma posição de destaque, status, proeminência, poder (Gn31:l). Num período posterior, a comunidade judaica identificava kabõd com "o 'peso', grandeza, eminência, poder e autoridade de Deus".' A estupenda majestade de Deus se manifesta na magnólia Dei. Saltando um momento para o presente, os astrónomos anunciaram há pouco tempo a descoberta do primeiro sistema multiplanetário encontrado em volta de uma estrela além do nosso. Os sinais de três mundos orbitais surgiram depois de onze anos que dois telescópios passaram pesquisando a estrela Upsilon Andromedae, cujo brilho pode ser visto a olho nu e está localizada a cerca de 420 trilhões de quilómetros da Terra. Essa distância deixa a mente perplexa, exige um grande esforço da imaginação e torna difícil descrevê-la. Os astrofísicos de hoje reconhecem que em algum lugar, entre doze e quinze bilhões de anos atrás, o universo teve início num berço estelar a uma distância de 428 quintilhões de quilómetros por meio de uma explosão de força incomensurável. 0 que aconteceu? Alguns cientistas pensam que uma estrela de nêutrons, composta de ferro tão denso que uma colher de 1

Peter van BREEMAN, Let Aíí God's GI017 Through, p. 105.


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chá com esse conteúdo pesa um milhão de toneladas, foi cani-balizada por um buraco negro tão denso que nem mesmo a luz pôde escapar. Outros defendem a ideia de que a energia pode ter se originado num colapso cataclísmico de uma estrela su-pergigante cem vezes maior que o sol. Seja lá como for que tenha acontecido, a explosão foi tão intensa, que muitos desconfiam de que ela deve ter recriado a condição do universo no primeiro milionésimo de segundo após o Big Bang, quando toda matéria existia na forma de um caldo estranho circulando a uma temperatura de quarenta bilhões de graus. De fato, o momento foi tão imenso, que causou um choque em nossas noções de física. Quer essas observações estejam erradas, quer haja alguma coisa que ainda não tenhamos começado a compreender, "sou um teórico muito cismado", disse um pesquisador.2 Ele merece nossos aplausos. Astrofísicos precisam ser humildes; eles trabalham num ambiente divino. As manifestações da kabõd — a magnalia Dei — continuam num cosmos em constante expansão. Não é de admirar que 94 anos atrás o eminente biógrafo Canon Sheehan imaginou o céu como "o descortinar interminável do recôndito das câmaras de Deus". O número inimaginável de doze a quinze bilhões de anos — idade estimada de nosso universo — faz com que eu me lembre de uma linda história da tradição iídiche. Certo dia, Israel Schwartz perguntou a Deus: — Javé, é verdade que para ti mil anos são como apenas um minuto? Javé respondeu: — Sim, Izzy, é verdade. 2

Editorial do jornal USA Today, 4 de jun. de 1998, p. 14.


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Mas Izzy tinha outra pergunta: — E Javé, é verdade que para ti um milhão de dólares são como apenas um centavo? Javé respondeu: — Sim, Izzy, isso também é verdade. Então, estendendo a palma da mão direita, Izzy Schwartz disse: — Javé, dá-me um centavo. E Javé respondeu: — Claro, espere só um minuto. Voltando à interpretação bíblica de kabõd nas Escrituras hebraicas, o terceiro e mais importante sentido é o que tem a ver com a glória de Deus que aparece como uma luz tão intensa, que o próprio Javé não pode ser visto por causa do brilho (Ez 1:28; 3:12, 23; 8:4; 10:18s).3 Quando Victor Hugo descreveu a Deus como "um terrível e divino esplendor", ele usou a palavra terrível não para se referir a alguma coisa assustadora ou medonha, mas a uma experiência que traz em si uma intensidade insuportável. Nessa frase, Victor Hugo apreendeu não apenas o sentido central de kabõd, mas a verdade contida num antigo epigrama judaico que diz: "Deus não um tio velhinho e bondoso; ele é um terremoto".4 Não há ser humano que possa subsistir ao fulgor da kabõd. Assim, a glória de Deus transmite o sentido de trevas profundas e esplendorosas. O pedido de Moisés para ver a kabõd Javé ' John L. MCKENZIE, Dictionary nf the Bible, p. 136. Este livro é uma grande realização de um único erudito bíblico, contendo mais de dois mil artigos que abrangem todos os livros da Bíblia, seus principais temas, conceitos e personagens. O que escrevo sobre a kabõd tem como lastro a erudição desse autor. 4 Citado por John KlRVAN, God-Hunger, p. 50.


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não é atendido. Ele é instruído a cobrir o rosto enquanto a glória passa e olhar somente depois da passagem de Deus: "Farei passar toda a minha bondade [kabõd] diante de ti", diz Javé, "e te proclamarei o nome do SENHOR; [...] Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá". E Javé também diz: "Eis aqui um lugar junto a mim; e tu estarás sobre a penha. Quando passar a minha glória, eu te porei numa fenda da penha e com a mão te cobrirei, até que eu tenha passado. Depois, em tirando eu a mão, tu me verás pelas costas; mas a minha face não se verá" (Ex 33:18-23). Peter van Breeman cita a revista do erudito de Antigo Testamento Fridolin Stier: "Este é o ápice, o máximo, o extremo que se permite a qualquer teologia, qualquer filosofia e qualquer erudição: as costas de Deus — contanto que realmente desejemos ver seu rosto".3 Está muito além de nossa capacidade ficar de frente com a intensidade insuportável do poder, da santidade e da grandeza de Deus. Ele "habita em luz inacessível" (lTm 6:16). Portanto, não é de admirar que nos relatos de muitas experiências de quase morte, a pessoa muitas vezes caminha em direção a uma luz ofuscante. "Homem algum verá a minha face e viverá." O sofrimento de João da Cruz reside na tristeza da condição humana, que o impediu de ter a visão beatífica. Ele exclamou: "Revela tua presença, e seja a visão da tua beleza a minha morte". O místico espanhol, impregnado pela beleza, ansiava ver a Fonte de toda beleza, mesmo sabendo que isso iria matá-lo. Mas e daí, se isso acontecesse? Sua morte seria a passagem para a vida 3

Vielleicht ist ingenduo Tag Aufzeichnungen, p. 205s. Citado por van BREEMAN, Let Aíí God's Glory Through.


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eterna, "onde eu te verei em tua beleza, e tu me verás em tua beleza, e minha beleza será tua, e tua beleza será minha".6 Nos textos posteriores do Antigo Testamento, a kabõd Javé se revela como a manifestação da santidade de Deus, e os israelitas lhe dão glória, reconhecendo e agradecendo a divindade de Deus. O magnífico tema da kabõd atinge seu ápice nas Escrituras cristãs, nas quais a kabõd reside na pessoa de Jesus, e ele participa do brilho esplendoroso de seu Pai. Ele é a luz que veio ao mundo. Glorificar Jesus é confessar tanto sua divindade quanto sua humanidade. Em resumo, Jesus é Deus. O carpinteiro que andou pelas estradas poeirentas da Galileia é aquele que foi "tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado" (Hb 4:15); é também, conforme estabelece o Credo de Niceia, Deus de Deus, Luz da Luz, Kabõd da Kabõd, vero Deus de vero Deus, eternamente gerado, não criado, um ser com o Pai. Ele é mais que um ser humano superior com um intelecto mais privilegiado que o nosso e com uma maior capacidade para amar. Em sua divindade, Jesus é Outro de forma inexprimível e absolutamente incomparável. Jesus é o poder, e a sabedoria, e a santidade do Deus todo-poderoso, "pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra" (Cl 1:16). Como criador, ele está presente a mais de 400 trilhões de quilómetros da Terra na estrela Upsilon An-dromedae. Não há pensamento que possa contê-lo nem palavra que possa expressá-lo. Ele transcende a todos os conceitos, considerações e expectativas do homem. Está em nosso meio como o Além e, mesmo em nosso meio, está além de qualquer coisa que possamos compreender ou imaginar pelo intelecto. Jesus Cristo 6

William JOHNSTON, Letters to Contemplativa, p. 6.


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sempre será um escândalo para a classe de intelectuais obscuros e orgulhosos, pois não pode ser compreendido pela mente racional, científica e finita. "Qualquer pessoa que tenha sido atingida pela kabõd divina não pode fazer outra coisa senão adorar a Deus."7 A única reação apropriada é a que teve o apóstolo João, que recostou a cabeça sobre o peito de Jesus no cenáculo. Em Apocalipse, ao ver vagamente a glória do Cristo ressurreto, ele caiu sobre o próprio rosto, prostrado em atitude de adoração. E de imensa importância entendermos que todas as palavras faladas e escritas sobre Deus nos chegam pela linguagem da analogia. Em toda analogia divina existe uma semelhança entre as palavras humanas empregadas acerca de Deus e a realidade do próprio Deus; entretanto, existe também uma dessemelhança radical. O que se afirma num momento deve ser negado no momento seguinte. Por exemplo, comparamos o amor divino com o amor humano. A semelhança nos induz a pensar que estamos entendendo o amor de Deus. Mas, embora o amor humano seja a melhor figura que temos, ela é absolutamente incapaz de expressar o amor do infinito. Não porque o amor humano seja muito sentimentalista ou piegas, emocional e passional, mas porque jamais poderá ser comparado à fonte de onde saiu — o amor de paixão e emoção do totalmente outro. Quanto mais abrimos mão de nossos conceitos e figuras, os quais sempre limitam a Deus, maior ele fica aos nossos olhos e mais nos aproximamos do mistério de sua natureza indefinível. Quando não atentamos para a dessemelhança, começamos a nos referir ao Santo com uma familiaridade execrável, fazendo 7

Citado por Peter van BREEMAN, Let AU God's Glory Through.


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comentários ridículos como "nunca podia imaginar que Deus fizesse algo assim", prevendo com toda a calma o Armagedom, proclamando facilmente um discernimento infalível da vontade de Deus, banalizando-o e aparando as garras do Leão de Judá. O hino cristão mais tocante que já ouvi é um tributo humilde, modesto e profundo ao mistério inefável da kabõd, a glória de Deus: Tu és de uma beleza indescritível Inexprimível por palavras, Maravilha incompreensível Nunca antes vista ou conhecida. Quem entenderá tua infinita sabedoria, Quem medirá de teu amor as profundezas? Tu és de uma beleza indescritível Majestade no céu entronizada. Com temor estou diante de ti. Estou diante, com temor estou diante de ti. Santo Deus a quem se deve todo o louvor Com temor estou diante de ti.8 Num mês de junho, quando esse hino foi entoado numa igreja na Inglaterra, a linguagem corporal da comunidade de adoradores mudou natural e facilmente para uma postura de profunda reverência, pessoas ajoelhadas, adorando de olhos fechados numa silenciosa dança paralitúrgica e grande submissão. Um espírito quase palpável de fascínio silencioso, admiração radical e temor afetuoso preencheu o galpão que servia como lugar de santa adoração. 8

Mark ALTROGGE, "I Stand in Awe". Publicado por People of Destiny Music, 1997.


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Mas em toda a minha vida nunca ouvi uma homilia ou sermão sobre a glória de Deus refle tida na face de Jesus (2Co 3:18). Talvez os pregadores de hoje não se sintam à vontade para pregar sobre o assunto pelo fato de nunca terem sido tocados pela kabõd divina. Ou talvez simplesmente nos sintamos incapazes de expressar o conceito; sentimos que tratar disso poderia mergulhar a nós e nossa congregação em absoluto mistério. E mistério é algo com que a mente moderna não tem afinidade. Tudo o que é difícil de entender, enigmático e complicado acaba se rendendo a nossa análise intelectual e depois a nossa classificação conclusiva — ou algo em que gostemos de pensar. Mas evitar o mistério é evitar o único Deus digno de louvor, honra e adoração. E é um erro acabar com a sede tanto de pessoas interessadas em Deus quanto daqueles que crêem — os que dizem não ao deus Rotary Club, dignificado e pragmático, sobre o qual falamos na manhã de domingo, e buscam um Deus digno de ser temido, silenciosamente reverenciado, com quem nos comprometemos plenamente e em quem confiamos de todo o coração. Tomás de Aquino, considerado o maior teólogo da tradição católica, não chegou a terminar sua obra-prima, a Summa Theologica. Depois de ser tocado pela kabõd, ele confessou com toda a humildade: "Não posso mais escrever, pois tudo o que já escrevi é palha". Em seu excelente livro The Trivialization of God [A Banalização de Deus], Donald McCullough escreveu um capítulo ousado intitulado "Em louvor do agnosticismo". E a visão de McCullough demonstra sabedoria. O agnóstico, sem negar nem afirmar a existência de Deus, concede que exista uma força cósmica remota e impessoal absolutamente incognoscível. Devido


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a esse posicionamento, o agnóstico se poupa de ter de repudiar as imagens de Deus patéticas e insignificantes que desfiguram o coração e a consciência de tantos cristãos. Como lidar com uma rápida visão das costas de Deus? O que acontece na inexprimível, vazia, mas devastadora colisão com a glória de Deus precipitada por essa rápida visão? Podemos olhar, ainda que por um só momento, para as profundezas da majestade esmagadora e da santidade inacessível do Deus vivo? Será que temos recursos interiores no momento em que somos confrontados pelo Santo, quando somos levados não apenas em pensamento, mas com a totalidade de nosso ser, à presença do grande Mistério que toca a raiz de nossa existência e envolve nosso espírito mesmo antes de nos convencer com força avassaladora? Na mesma hora se vão nossas credenciais de independência, e deixamos de andar de nariz empinado, à semelhança de um executivo que sabe de tudo o que está acontecendo e mantém todas as coisas sob controle. Ganhamos consciência de nossa pobreza inata, de nossa dependência até para respirar e de uma insensibilidade que invade os fundamentos da nossa pequenez e autenticidade. A consciência daquilo a que Ru-dolph Otto se referiu como o elemento fundamental em todas as experiências espirituais autênticas — mysterium tremendum — pode fazer com que paremos de olhar para nosso umbigo e fiquemos boquiabertos na experiência de adorar a Deus ou pode induzir terror, uma inércia profunda e fria que penetra o mais íntimo da nossa alma, à medida que aumenta o abismo entre a santidade divina e a pecaminosidade humana. A intuição inspirada de que a glória de Deus é amor absoluto — mesmo quando recusado por nós — não nos permite outra coisa a


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não ser orar como o coletor de impostos: "Ó Deus, sê propício a mim, pecador" (Lc 18:13). Com catorze anos de idade, o precoce e distinto filósofo judeu Martin Buber sentia-se atormentado pela questão do tempo. Seu terror diante da infinitude e da eternidade de Deus não permitia que ele se sentisse à vontade neste mundo. Ele escreve: Fui tomado por uma necessidade que não conseguia entender; eu precisava tentar de novo para imaginar a extremidade do espaço, ou a ausência de extremidade, o tempo com começo e fim ou um tempo sem começo nem fim, e ambos eram igualmente impossíveis, igualmente irrealizáveis — mas parecia haver apenas a escolha entre um absurdo ou outro. Sob uma compulsão irresistível, eu rodopiava de um para o outro, às vezes ameaçado tão de perto pelo risco da loucura, que pensei seriamente em evitá-la por meio do suicídio.9 Esse confronto com a infinitude, uma dimensão da kabõd Javé, encheu Buber de um terror tão grande, que ele escreveu: Eu tinha de me deixar ser atirado naquele abismo sem fim, na infinitude, e agora tudo rodopiava. Isso aconteceu vez após vez. Fórmulas matemáticas e físicas não tinham como me ajudar; o que estava em jogo era o mundo no qual era preciso viver e que havia assumido a face do absurdo e do inexplicável.10 Não é preciso dizer que todas as perguntas, pertinentes ou não, não encontram voz que lhes ofereça resposta. O escândalo do silêncio de Deus nas horas de maior aflição de nossa jornada 9

Maurice FRIEDMAN, Early Years. Citado por Friedman em Encounter on the Narrow Ridge, p. 16. 10 Ibid., p. 17.


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é percebido em retrospectiva como uma presença terna e oculta e uma passagem para uma confiança pura que não está à mercê da resposta que ela recebe. Quando a kabõd passa por alguém, a pessoa é tomada de uma forma anteriormente não compreendida pela alteridade intocável de Deus: "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR" (IS 55:8-9). Quando os arrepios, o tremor e o abalo diminuem, percebemos que expressões como "o amor do Pai", "a graça do Filho" e "as consolações do Espírito" são apenas sinais da kabõd inefável e que a essência da confiança bíblica reside na convicção de que por trás desses sinais está o amor sem medida. Somos movidos na direção de uma consciência da incompreensibili-dade divina cada vez mais profunda e mais direta.11 Já faz tempo que críticos afirmam que a única pessoa mais arrogante que um médico recém-formado é um sacerdote recém-ordenado. Aos 29 anos de idade, com as mãos ainda úmidas pelo óleo da ordenação, fui lecionar teologia numa universidade. Todo lépido, transpirando um entusiasmo profissional e um espírito sufocante de arrogância, expus os mistérios de Deus com tanto brilhantismo, que depois de um semestre não havia sobrado nenhum mistério. Certa vez, num mosteiro, ouvi de um frei idoso e consagrado o seguinte comentário: "Quanto mais envelheço, menos entendo sobre Deus", e concluí que ele estava tentando sinceramente ser modesto. Mas dentro de mim eu tinha pena de sua superficialidade. Hoje, quando olho para trás, aquela minha "profundidade" me causa arrepios. 1

Bernard MCGINN, The Foundations ofMystiásm, vol. 1, p. 286.


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Sem o toque santo e santificador da glória de Deus, eu era como o monge trapista da Holanda, que declarou: "Durante 21 anos orei e meditei com os monges da abadia, horas e horas, tanto de dia quanto de noite. E, assim mesmo, estava Deus vivo para mim? Era ele real e vivo para mim? Espero não chocar nem escandalizar ninguém, mas ele me era realmente desconhecido". Os livros do judeu Chaim Potok, autor de The Chosen [Os escolhidos], M31 Name is Asher Lev [Meu nome é Asher Lev], The Gift of Asher Lev [O presente de Asher Lev], Davitas Harp [A harpa de Davita], e Book of Lights [Livro das luzes] (entre outros), ensinaram-me a ter uma profunda admiração pela tradição mística dos hasidim. O estilo literário dos judeus é mais criativo, poético e imaginativo em comparação com os ocidentais mais solenes e literalísticos. Em Book of Lights, Potok apresenta sua descrição poética da kabõd: Natureza de santidade, natureza de poder, Natureza que faz temer, natureza de surpreender, Natureza que faz tremer, natureza de abalar, Natureza de assombrar, natureza de consternar, Ê a natureza da Vestimenta de Zoharariel, YHWH, Deus de Israel, Que, coroado, dirige-se ao trono de sua Glória [...] E não há olhos de criatura que possam contemplada, Não os olhos do corpo, não os olhos de seus servos E daquele que a contempla, olha ou vê de relance, O globo dos olhos começa a revirar, O globo dos olhos [...] tochas de fogo a lançar E estas o incandescem, e estas o incendeiam.12 12

E 104.


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Contemplar a Deus — isto é, contemplar a glória do Senhor — traz efeitos profundos e de longo alcance. Na vida de oração, por exemplo, a adoração assume um lugar preeminente. A aptidão para apreciar a grandeza da divina Realidade, resultante do toque da kabõd, afasta o orgulho e gera um espírito semelhante ao de Isaías, espírito de humildade que não tem palavras, de um fascínio de tirar o fôlego diante do esplendor irresistível de Deus. Depois de um encontro assim, o cristão passa a poder repetir as palavras de Abraham Heschel dirigidas de seu leito de morte a um amigo: "Sam, nunca em toda a minha vida pedi a Deus sucesso, sabedoria, poder ou fama. Pedi fascinação, e ela me foi concedida". Diante da visão da majestade de Deus, por mais efémera e obscura que seja, o ser humano hesita em falar e compartilhar da experiência, pois a linguagem humana se torna insuficiente para transmitir o que pode ser entendido somente de modo intuitivo e não racional. O intelecto capitula diante do mistério. Ler, meditar e refletir sobre algum texto bíblico é um ato que se submete inevitavelmente à reverência silenciosa. Adorar é reconhecer a insondável grandeza de Deus e a nulidade do adorador. Numa linguagem meio barroca, Père Sertillanges declara: "Adoração é o insignificante que perde os sentidos e expira alegremente na presença do Infinito". Barroco, sim; água com açúcar, não. A tendência humana de projetar — atribuindo a Deus pensamentos, sentimentos e atitudes acerca de nós mesmos e dos outros — é desmascarada como um total absurdo. Imagens distorcidas e caricaturas de um Deus vingativo, dado a caprichos, inconstante e punitivo (imagens que só podem gerar ansiedade, medo, dúvida e culpa insana) ficam expostas e se revelam percepções humanas frágeis e inadequadas.


PENSAMENTOS GRANDIOSOS

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O mesmo julgamento se aplica à ilusão do controle. Quando a vida está tranquila, os relacionamentos vão bem, a vida financeira está segura e a saúde se mostra cada vez melhor; quando o inimigo não está à porta; quando os tambores da guerra não estão rufando; quando o comercial de perfume Eterrúty for Men da Calvin Klein parece verdadeiro — então uma sensação de confiança, autossuficiência e domínio pessoal de nosso destino nos engana e nos faz pensar que estamos seguros. Mas a realidade da kabõd esmaga todas as ilusões. Quando as antigas convicções nos deixam, tornamo-nos vulneráveis e receptivos. A glória de Deus torna possível o ato religioso primordial: a percepção de que não somos suficientes e que nossa vida e existência foram recebidas de outro ser. Por meio de uma decisão que toca a raiz do mais íntimo do nosso ser e exige que renunciemos pertencer a esse ser, temos liberdade para ratificar nossa condição de criaturas. Mediante esse ato fundamental de desapropriação reconhecemos a ilusão do controle e nos abrimos para a realidade de Deus. A enorme dificuldade da dor, do sofrimento e do mal não é eliminada, as tristezas insistem em nos acompanhar, e há certas feridas do espírito que nunca se fecharão. Infelizmente, a religião organizada pouco ajuda em momentos de crise espiritual. Na verdade, muitas vezes ela piora as coisas. Qualquer religião que se concentre exclusivamente no sobrenatural e fique só afirmando coisas lindas sobre a vida após a morte não pode oferecer consolo, conforto nem solidariedade no meio do sofrimento do tempo presente. A arrogância, a rigidez e o entusiasmo ardente dos fanáticos religiosos que vêem em cada furacão e catástrofe um sinal de que estamos no limiar do apocalipse apenas isolam os que estão à deriva e sofrendo.


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No entanto, uma breve, fugaz e incompleta visão das costas de Deus — a experiência obscura, porém real, penetrante e transformadora de sua glória incomparável — desperta uma confiança que estava dormente. Alguma coisa está em construção no universo; alguém cheio de brilho transcendente, sabedoria, engenhosidade, poder e bondade está presente. Mesmo diante de fortes evidências em contrário, bem no fundo há uma voz que nos sussurra: "Está tudo bem e vai dar tudo certo". Karl Rahner, teólogo já falecido, insistia: "Nos dias que virão, o homem ou será um místico, ou seja, alguém que tem experiência com Deus, ou não será absolutamente nada". Se o cristianismo for simplesmente um código moral e ético ou uma filosofia de vida, ele não subsistirá à chegada do sofrimento. A experiência da graça da kabõd divina não é alguma coisa esotérica reservada para alguns de uma elite. Quando perguntaram a Thomas Merton quem poderia receber essa dádiva, ele respondeu: "A resposta é óbvia: qualquer pessoa".


C AP ÍTU LO

C I N C O

ARTISTAS, MÍSTICOS E PALHAÇOS

E

m Crime e castigo, Fiódor Dostoiévski acreditava com entusiasmo que a alma do camponês russo podia ser vista em Marmeladov, funcionário público desempregado e bêbado infeliz — um palhaço, um "bobo da corte", pai de Sônia, uma prostituta. Numa taverna em São Petersburgo, alterado pela bebida, Marmeladov conversa com o jovem racionalista Raskolnikov. Embora fosse alvo de desprezo e zombaria do povo local, Marmeladov insiste em não ser objeto de compaixão: Mas ele terá compaixão de mim, ele que tem compaixão de todos os homens, que entende todas as pessoas e todas as coisas. E ele. Ele também é o juiz. Naquele dia, virá e haverá de perguntar: "Onde está a filha [Sônia] que teve compaixão de um bêbado sujo, seu pai terreno, e não se desanimou por causa de seu estado tão desagradável?" [...] Ele perdoará minha Sônia, ele perdoará, eu sei que sim. E então nos conclamará. "Vinde, vós também", dirá ele. "Vinde, bêbados, vinde; vós, os fracos, vinde; vós, filhos da vergonha!" Então dirão os sábios e os que têm entendimento: "O,


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Senhor, por que recebes estes homens.7". E ele dirá: "O, vós, sábios, eis por que os recebo; ó, vós, que tendes entendimento, eis por que os recebo; para que nenhum deles pense ser merecedor do que lhes dou". E ele nos estenderá as mãos, e cairemos prostrados diante dele [...] e choraremos [...] e entenderemos todas as coisas! Então entenderemos tudo [...] e todos entenderão [...] Senhor; venha o teu reino!".1

Dostoiévski afirmava que no centro da vida do camponês russo residia uma confiança inabalável na misericórdia irrestrita de Deus e no amor de Jesus Cristo que a todos perdoa. Leo Tolstoy, contemporâneo de Dostoiévski, publicou seu clássico Guerra e Paz três anos depois de Crime e castigo. Num diálogo entre a piedosa princesa Mary e seu irmão, príncipe Andrew, ela reverbera as palavras e os sentimentos de Dostoiévski. Citando um inesquecível provérbio francês, ela diz: "Devemos experimentar o que o outro experimenta. Tout comprendre, c'est tout pardonner" — entender todas as coisas é perdoar todas as coisas.2 Em sua sabedoria soberana, somente Deus compreende o coração humano. E o que dizer da capacidade que o coração humano tem para compreender a Deus? Neste ponto precisamos da ajuda de visionários eloquentes como Dostoiévski. As Escrituras sagradas são importantes demais e não podem ficar confinadas a eruditos do conhecimento bíblico. A teologia é de tamanha importância, que não pode ficar nas mãos apenas de teólogos. Para explorar as profundezas do Deus que nos convida a con1

Crime and Punishment, p. 20 (publicado no Brasil por várias editoras sob o título Crime e castigo). 2 War and Peace, p. 238 (publicado no Brasil por várias editoras sob o título Guerra e paz) ■


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fiar, precisamos de artistas e místicos. Artistas cristãos que compuseram hinos como "Grandioso és tu", "Formoso Cristo" e outros convidam-nos a expandir nosso conhecimento limitado de Deus. Por meio de imagens ousadas e metáforas corajosas com fundamentação na Palavra, eles nos levam a uma profunda autoestima dentro de uma visão mais abrangente da magnitude do Divino. Nas palavras de Karl Rahner, eles nos ajudam a "passar a olhar para nós mesmos do jeito que Deus nos olha, como objetos de amor infinito e solicitude ininterrupta".3 Aumentam nossa fome do infinito. Afirmam que Javé kabõd precisa ser definido como amor absoluto. Deixam subentendido que nosso fascínio por Deus fica limitado por nossa imaginação paupérrima. E implicam que por trás das palavras que aplicamos a Deus — transcendência, divindade kabõd e até mesmo Deus — reside uma realidade misteriosa que não conseguimos denominar. Assim, Meister Eckhart, teólogo e místico, exclama: "Oro para que eu possa renunciar a Deus e, assim, encontrá-lo". Rahner, um dos mais notáveis teólogos do século vinte, declarou que precisamos desses artistas e místicos para acabar com nossa falso sentimento de segurança. Ele orava, dizendo: "Deus eterno, que eles possam dizer o que teu Espírito lhes colocou no coração, e não o que seria agradável ouvir daqueles que representam as forças de tudo o que fica apenas dentro da média".4 Em virtude da profundidade de seus escritos sobre a vida espiritual, Catarina de Siena, mística do século XIV é uma das três mulheres honradas pelo catolicismo como Doutora da 5

Prayers for a Lifetime, p. 138. 4 Ibid.


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Igreja. Ela costumava iniciar assim suas orações: "O, Divino louco". Quando lhe pediram que descrevesse o Deus de suas jornadas, essa italiana brilhante e fervorosa sussurrou: "Ele é pazzo d'amore, ebro d'amore" — ele é louco de amor, embriagado de amor. Além dos artistas e dos místicos, devemos falar da classe dos palhaços — aqueles que não fazem Deus se ajustar aos nossos padrões predeterminados. Palhaços são instrumentos da graça e imploram como porta-vozes de Deus: "Alegrem-se, maltrapilhos!". Seus saltos, cambalhotas e brincadeiras que nos pegam de surpresa entram em choque com nossa lógica toda certinha, que alega que o significado último pode ser encontrado no palpável, no visível e no perecível. O conselho espiritual que nos oferecem alinha-se com o pensamento do salmista: "Que fiquem alegres e contentes todos os que te adoram!" (SI 40:16, NTLH). Olhando para suas roupas excêntricas, vemos uma postura tranquila e imprevisível diante da vida. Reagindo as suas expressões de jovialidade genuína e de amizade sincera, o sentimento de importância pessoal inflado que temos a nosso respeito esvai-se como o ar que sai de uma bexiga perfurada com uma agulha. Eles nos convidam a resgatar a criança que um dia fomos, a suspender temporariamente a seriedade mortal da imagem que passamos para o mundo, do tamanho de nossa cintura, do resultado do campeonato de futebol. Riem de minha ridícula obsessão de fazer deste pequeno livro uma obra de arte da espiritualidade. Em meio à loucura e correria de Wall Street, do tráfego congestionado da hora de pico, das filas intermináveis no supermercado, com sua presença inesperada nos incentivam a reexaminar nossas prioridades com muito mais eficiência que o pregador de rua que anuncia o dia do juízo com ameaças apocalípticas.


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Os contemporâneos de Francisco de Assis chamavam-no le jongleur de Dieu — o palhaço de Deus. Na primeira reunião pública dos franciscanos, com a presença de três mil irmãos, Francisco ordenou gentilmente aos pássaros que parassem de piar para que os freis pudessem ouvir seu sermão. Eles obedeceram de imediato. Ele amansou um lobo que devorava pessoas no vilarejo de Gubbio e fez com que o povo do local prometesse que não deixaria de alimentar o carnívoro todas as noites. Pegou dois pedaços secos de madeira, fingindo ser arco e violino, e entoou canções de amor a Deus em francês. Compôs um cântico em que louva a Deus pelo irmão sol, pela irmã lua, pelo irmão fogo e pela irmã água, e até pela irmã morte. Muitas vezes ele plantava bananeira para ver o mundo de cabeça para baixo, lembrando aos seus próximos e a si mesmo que a vida no planeta Terra está numa relação de plena dependência da bondade de Deus. Esse improvável trio de artistas, místicos e palhaços ministra a Palavra ao expandir nosso entendimento da kabõd Javé por meio de suas ideias e pensamentos originais e espantosos; aprofundam nossa confiança ao nos lembrarem de que devemos submergir a enorme dificuldade do sofrimento e do mal na infinitude do mar da sabedoria e do amor absoluto; eles nos fazem perguntar: "Será que Deus é diferente da percepção que temos dele?". Deixam escancarada a porta que revela uma verdade incandescente há muito escondida pela ignorância, pela miopia e pela tradição ilegítima; nossas percepções acerca de Deus, de nossos companheiros maltrapilhos e de nós mesmos mostram-se redondamente enganadas. Por que os ministérios com universitários cristãos dedicam um tempo enorme ao trabalho com calouros que abandonaram a Deus, a igreja e as práticas religiosas no momento em que se viram livres do controle dos pais? Por que psiquiatras


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cristãos relatam o fenómeno cada vez mais comum de clientes atormentados por fortes sentimentos de culpa, vergonha, remorso e autopunição? Por que o espírito de melancolia das peças de Chekhov "Sua vida está péssima, meu amigo" assombra a consciência dos cristãos? Por que a igreja local é muitas vezes uma assembleia desanimada que reúne Hamlets mórbidos e Willie Lomans completamente exaustos? Por que o alcoolismo, a ergomania e outros comportamentos de adicção continuam a crescer no seio da comunidade da fé? Por que, conforme pergunta John Kirvan, satisfazemo-nos com a banalização superficial de nossa vida e de nossos sonhos, com tanta coisa que hoje se enquadra dentro do termo "espiritualidade"? Por que discípulos de todas as idades correm ansiosos na expectativa de assistir a um show de Michael W. Smith, mas se arrastam para o culto de domingo com um abatimento próprio de que tem uma doença em fase terminal? Depois de 37 anos de experiência pastoral com católicos, protestantes clássicos, evangélicos, fundamentalistas, adventistas do sétimo dia, negros, brancos, asiáticos e hispânicos, posso afirmar sem medo de errar que a percepção que muita gente tem de Deus é radicalmente errónea. De modo semelhante, nossa opinião sobre os outros torna-se um simples exercício de reducionismo. Bill Gates é um doido da informática, fulano é um gay todo empetecado, sicrano é um bilionário faminto de poder, a Madre Teresa é uma santa, Bill Clinton, um pecador, meu chefe é burro, meu pastor é nerd, a pessoa que passa pela rua é incompetente, a garçonete é demorada, Tiger Woods é um fenómeno, Mozart é um pândego genial, Tony Campolo é um pregador radical. Nossas percepções são totalmente inadequadas.


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Em American Pastoral, livro ganhador do prémio Pulitzer, Philip Roth escreve: Batalhamos contra nossa superficialidade, contra nossa falta de profundidade, para tentar nos aproximar das pessoas sem expectativas irreais, sem uma sobrecarga de preconceitos, esperanças ou arrogância, com o máximo possível de neutralidade [...]. Aproximamo-nos delas sem parecer uma ameaça, com toda cautela, pé ante pé, em vez de chegar como um rolo compressor, olhamos para elas com a mente aberta, como pessoas iguais a nós [...] e mesmo assim sempre as compreendemos mal [itálicos do autor]. Podemos também ter uma mentalidade de tanque de guerra. Deixamos de compreendê-las antes mesmo de conhecê-las, enquanto ainda pensávamos em conhecê-las; e as compreendemos mal quando estamos com elas; então vamos para casa para falar de nosso encontro a alguém e outra vez as compreendemos mal. O mesmo acontece com essas pessoas em relação a nós, o que faz de tudo isso uma ilusão realmente ofuscante, desprovida de toda percepção, uma farsa assombrosa de percepção errónea [...] de tão despreparados que todos estamos para enxergar como os outros funcionam por dentro e quais são suas metas invisíveis.3 Pensamentos inadequados sobre Deus e sobre as pessoas muitas vezes são fruto da imagem negativa que temos de nós mesmos. A medida que continuamos a tornar confusa nossa autopercepção com o mistério que de fato somos, a auto-rejei-ção passa a ser inevitável. Uma ex-aluna minha na universidade de Steubenville havia iniciado seu estágio à frente de uma grupo de alunos quando, de repente, foi surpreendida pela visita inesperada de seu supervisor. Seus alunos de 5

K35.


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segunda série transformaram-se de imediato num bando de monstrinhos agitados e barulhentos. A sala virou um campo de batalha. O caos reinava. Mais tarde o supervisor carrancudo informou à minha aluna — na época cursando seu último ano — que ela não tinha jeito para lecionar e devia mudar de curso imediatamente. Quando Anne voltou humilhada para o campus, sua colega de quarto dos últimos três anos estava ocupada com seus trabalhos e nem sequer a cumprimentou. Anne deplorou a insensibilidade da colega, acusou-a de ser amiga só das horas boas e saiu batendo a porta. E veio me procurar para dizer que não acreditava mais em Deus e que era ridículo confiar num Salvador compassivo. A crítica brutal de um superior havia destruído sua autoimagem. As consequências disso eram bem previsíveis. Que entrem em cena os artistas, místicos e palhaços. A criatividade que lhes é peculiar faz que vinho novo seja despejado dentro de odres novos (Lc 5:38). Com linguagem inovadora, visão poética e símbolos impressionantes, eles exprimem a palavra inexprimível de Deus, usando formas artísticas cheias do poder divino, cativando nossa mente e despertando nosso coração à medida que se incendeiam e ardem. O salmista declara que os céus e a terra estão cheios da glória de Deus. O poeta Gerard Manley Hopkins escreve: "O mundo está carregado da grandeza de Deus". Thomas Plunkett insiste: "Vejo o sangue dele numa rosa". Entusiasmado, Agostinho declara: "O Beleza sempre antiga, sempre nova". Num país degradado por bairros poluídos e paisagens destruídas, os visionários espirituais aquietam os temores que cultivamos e nos inspiram a confiar, levantando nossos olhos para a exuberante beleza de Deus manifestada na criação. Comen-


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tando o salmo 148, Agostinho pergunta: "Será que Deus se proclama nas maravilhas da criação?". E responde: "Não. Todas as coisas o proclamam, todas as coisas falam por ele. A beleza que elas têm é a voz com a qual anunciam a Deus e cantam: 'Foste tu que me fizeste bela, não eu, mas tu'". Poetas, cantores, compositores, romancistas, músicos, palhaços e místicos fazem com que as vozes da criação sejam capazes de exclamar: "Como é belo Aquele que nos fez!". Quando criança, John Henry Newman imaginava que por trás de cada flor havia uma anjo escondido que a fazia crescer e se abrir. Mais tarde na vida, tendo-se tornado um eminente teólogo na Inglaterra, ele escreve: "A realidade é mais profunda. É o próprio Deus que pode ser percebido na beleza das coisas sensíveis". Até Jesus se maravilhava com a beleza que o cercava. "Vejam como crescem as flores do campo: elas não trabalham, nem fazem roupas para si mesmas. Mas eu afirmo a vocês que nem mesmo Salomão, sendo tão rico, usava roupas tão bonitas como essas flores" (Mt 6:28-29, NTLH). Os que enxergam além do literal vêem o mundo como uma metáfora de Deus. Ao dirigirem nossa atenção para a majestade das montanhas, para a beleza das campinas, para a variedade de flores do campo à beira da estrada, para o aroma da hortelã e do feno numa manhã de verão, para o barulho do trem que corta o vale, para o som das cachoeiras, eles fazem nascer a Palavra em nosso meio. E nos desafiam a sonhar com nosso lar, cuja beleza que nos aguarda jamais foi vista por nossos olhos, ouvida por nossos ouvidos nem concebida por nossa imaginação.


CAPITULO

SEIS

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T

odas as tentativas humanas para exprimir o inexprimível — ou, nas palavras de Alan Watts, para "conhecer o incognoscível" — mostram-se terrivelmente incapazes em face da enorme diferença quantitativa e qualitativa entre nossa percepção defeituosa e a realidade divina. Kabõd não é um tema seguro. Induz a um sentimento de terror diante do infinito e desnuda a fraude de nosso discurso religioso vazio, de nosso ativismo despropositado, de nossa curiosidade ociosa, dos absurdos ares de importância e de nossos afazeres frenéticos. A consciência de que o eterno e transcendente Deus de Jesus Cristo é nosso futuro absoluto nos faz tremer na base. Um belo dia, do nada nos sobrevêm o pensamento de morte inevitável, algo que nos perturba tanto, que passamos a desejar viver o resto da vida dentro de uma redoma. Não causa muita surpresa a presença de um silêncio ensurdecedor da parte de pregadores e publicadores no que tange ao caráter transcendente do Deus todo-poderoso. E quem pode nos acusar? Ao longo de toda a história da salvação, Deus tem revelado sua presença, mas nunca sua essência. Uma vez que o Santo é absolutamente incognoscível, não podemos fazer outra coisa senão gaguejar diante de uma divindade onipotente que, sem nenhum esforço, criou uma estrela que está a mais de 400 trilhões de quilómetros de onde nos encontramos.


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Na condição de líder espiritual, não quero parecer burro. Tampouco desejo passar a impressão de ser alguém que fala coisas sem sentido nem de ser um covarde. Diante da realida-de do risco de ambas as possibilidades em face do incognoscível, a sensatez me leva a evitar por completo o assunto da transcendência de Deus. Além disso, quero que as pessoas de minha igreja gostem de mim e não se arrependam de ter pas-sado dentro do templo uma hora de seu tempo precioso numa manhã de domingo. Fazer as pessoas saírem da igreja trémulas diante da necessidade de reexaminar toda a direção que têm dado à vida, sentindo-se perseguidas por um Deus implacável que não aceita nada menos do que tudo, seria não só um exemplo de masoquismo, mas um ato de suicídio profissional. Não estou pastoreando um grupo de pessoas numa montanha-russa espiritual. Costumo dizer que os tremores devem ficar com os quacres! Mas pagamos um preço quando nos desviamos da transcendência e da incognoscibilidade. A perda do senso de transcendência entre os cristãos de hoje tem causado um dano incalculável à espiritualidade cristã e à vida interior de cristãos como indivíduos. As primeiras vítimas são o silêncio reverente, o fascínio radical, o temor afetuoso diante da bondade infinita de Deus — características que fazem parte do termo bíblico "temor do Senhor". A adoração, elemento que flui naturalmente de nossa capacidade de apreciar a grandeza da realidade divina, está obviamente em falta em nossa vida de oração. A hora silenciosa nem sempre é silenciosa. O tempo que separamos para oração, em geral, é consumido por uma meditação feita às pressas em cima de um texto bíblico, por uma passada de olhos numa lista de nomes de pessoas pelas quais devemos interceder e, de vez em quando, por expressões de gratidão pelas dádivas da vida


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— fé, saúde, família e amigos. A urgência interior de nos prostrarmos diante do Infinito raramente nos chega ao nível da consciência. Estudos recentes mostram que uma congregação que se reúne numa manhã de domingo consegue tolerar, em média, apenas quinze segundos de silêncio antes que alguém se veja compelido a interromper com um aviso, um cântico, uma palavra de profecia ou seja lá o que for. Por ironia, a própria igreja muitas vezes nos impede de olhar para dentro e para cima, na direção de Deus. Conforme observa Parker Palmer: Muitas vezes a própria igreja é inimiga de nossa solitude é mais um agente na grande conspiração social de reuniões e de ruídos que visam nos distrair de um encontro com nós mesmos. A igreja nos mantém ocupados com esta ou aquela causa, esta ou aquela comissão, tentando conferir sentido por meio da ativi-dade, até que nos "esgotemos" e nos afastemos da vida da igreja. Até mesmo em seu ato central de culto, a igreja dá pouco espaço para a jornada silenciosa e solitária voltada para nosso interior (às vezes preenchendo o espaço vago com exortações ruidosas para que venhamos a empreender justamente essa jornada!).1 Quando a glória do Deus transcendente está fora da nossa pauta, nossa atenção se volta para o comportamento humano, para o cultivo de virtudes e para a eliminação de defeitos, para as qualidades do discípulo e assim por diante. A responsabilidade pessoal passa a ocupar o lugar da resposta pessoal diante de Deus, e mergulhamos em nossos esforços para crescer em santidade. Nosso principal interesse passa a ser o bem-estar 1

The Monastic Renewal ofthe Church.


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— fé, saúde, família e amigos. A urgência interior de nos prostrarmos diante do Infinito raramente nos chega ao nível da consciência. Estudos recentes mostram que uma congregação que se reúne numa manhã de domingo consegue tolerar, em média, apenas quinze segundos de silêncio antes que alguém se veja compelido a interromper com um aviso, um cântico, uma palavra de profecia ou seja lá o que for. Por ironia, a própria igreja muitas vezes nos impede de olhar para dentro e para cima, na direção de Deus. Conforme observa Parker Palmer: Muitas vezes a própria igreja é inimiga de nossa solitude é mais um agente na grande conspiração social de reuniões e de ruídos que visam nos distrair de um encontro com nós mesmos. A igreja nos mantém ocupados com esta ou aquela causa, esta ou aquela comissão, tentando conferir sentido por meio da ativi-dade, até que nos "esgotemos" e nos afastemos da vida da igreja. Até mesmo em seu ato central de culto, a igreja dá pouco espaço para a jornada silenciosa e solitária voltada para nosso interior (às vezes preenchendo o espaço vago com exortações ruidosas para que venhamos a empreender justamente essa jornada!).1 Quando a glória do Deus transcendente está fora da nossa pauta, nossa atenção se volta para o comportamento humano, para o cultivo de virtudes e para a eliminação de defeitos, para as qualidades do discípulo e assim por diante. A responsabilidade pessoal passa a ocupar o lugar da resposta pessoal diante de Deus, e mergulhamos em nossos esforços para crescer em santidade. Nosso principal interesse passa a ser o bem-estar 1

The Monastic Reneuial of the Church.


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espiritual, intelectual e emocional. Quando outros cristãos nos perguntam se somos felizes, respondemos com um "sim" automático ou nos livramos deles com um sorriso benevolente, mesmo que estejamos à beira das lágrimas. É óbvio que existe um quê de pequenez e de monotonia nessa atenção desordenada que dedicamos a nós mesmos, à condição de nossa alma e à presença ou falta de felicidade em nosso coração. Simon Tugwell afirma: Uma das maneiras mais eficazes de não sermos felizes é insistir em sermos felizes a qualquer custo. A religião da felicidade, lembra-nos o padre Brown, é uma religião cruel, e talvez a melhor maneira de não enlouquecer esteja em não nos importar muito se enlouquecermos.2 Na espiritualidade desequilibrada, o que fica em primeiro plano é o moralismo. Logo de início apresenta-se uma ideia distorcida do relacionamento entre Deus e os seres humanos. Com os país a criança aprende que existe uma divindade que desaprova a desobediência, as brigas entre irmãos e as mentiras. Quando vai para a escola, essa criança percebe que Deus está do lado de professores com suas exigências meticulosas. Na igreja, aprende que Deus tem outro conjunto de prioridades: aprende que ele não gosta da falta de crescimento numérico da congregação, da frequência irregular dos membros e das exigências financeiras que não estão sendo atendidas. Ao chegar ao ensino médio, ela descobre que Deus também está preocupado com a obsessão por sexo, com a bebida e com as drogas. Depois de vários anos de doutrinamento cristão em casa, na escola e na igreja, a criança, agora adolescente, per2

The Beatitudes: Soundings in Christian Traditkm, p. 18.


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cebe com tristeza que Deus foi usado como ameaça por todos os que se responsabilizaram por sua disciplina — a exemplo do papai e da mamãe que, já sem saber como lidar com as travessuras de uma criança, acabam fazendo referências ao inferno ou a um castigo eterno. Por meio de um doutrinamento ignorante como esse, Deus acaba sendo associado ao medo na maioria dos jovens corações.3 O moralismo e seu filho adotivo, o legalismo, pervertem o caráter da vida cristã. Já antes da faculdade os jovens abandonam Deus, igreja e religião. Se perseveram na prática da religião, a necessidade que têm de apaziguar um Deus arbitrário transforma o culto de domingo numa apólice de seguro marcada por superstição e destinada a proteger o crente contra os caprichos de Deus. Quando o fracasso inevitável chega na vida das pessoas feridas, elas disparam um mecanismo de negação para se proteger do castigo. A imagem perfeita precisa ser preservada a qualquer preço. Nós também nos esforçamos muito por proteger nossa imagem coletiva. Um jovem obreiro de uma igreja no meio-oeste dos Estados Unidos, depois de confessar à liderança que tinha problemas com pornografia, recebeu sua carta de afastamento no mesmo dia. Com toda a clareza, o Deus da nossa imaginação não é digno de confiança, adoração, louvor, reverência ou gratidão. E assim, se não estamos dispostos a lidar com a questão da transcendência, esta é a única divindade que conhecemos. A perda da transcendência tem deixado um rastro de cristãos desconfiados, cínicos e revoltados contra um Deus dado a caprichos e uma porção de bibliólatras arrogantes que alegam saber exatamente o que Deus pensa e planeja fazer. James T. BURTCHAELL, Phílemorís Prublem, p. 18.


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Neste ponto é necessária uma palavra de cautela — palavra que nos conduz ao trecho final deste capítulo: a :ranscen-dência precisa estar aliada à imanência; o céu precisa estar em equilíbrio com a terra. Em outras palavras, a distância de Deus precisa ser compensada por sua proximidade. Uma ênfase exclusiva na kabõd divina e no mistério transcendente de Deus coloca-o fora do nosso mundo e da nossa vida. Ele fica lá distante, indiferente em sua majestade infinita. Habita numa luz da qual não podemos nos aproximar. O universo inteiro é pequeno demais para conter sua imensidão. Entender a infinitude da realidade de Deus é tão possível quanto segurar um furacão usando uma rede de pesca ou fazer com que as águas das cataratas do Iguaçu caibam numa xícara de café. Um olhar unilateral sobre Deus como o outro reduz o santo a um observador cósmico, um estranho distante e desligado dos movimentos da luta do ser humano. Imanência não é o contrário de transcendência, mas seu correlato; imanência e transcendência são dois lados da mesma moeda, duas faces da mesma realidade divina. Transcendência significa que Deus não pode ser limitado ao mundo; ele não é isto ou aquilo, nem está aqui ou ali. Imanência, porém, significa que Deus está integralmente envolvido conosco "e, sendo o mistério mais profundo, vive em tudo que existe",4 está aqui com o mistério de sua proximidade. (Falaremos mais sobre isso no próximo capítulo.) Desconsiderar a imanência de Deus nos priva de todo senso íntimo de pertencer, ao passo que, se não olharmos para sua transcendência, estaremos negando a Deus sua divindade. Nas páginas da história da igreja encontramos um exemplo muito claro das consequências devastadoras acarretadas por 4

Tugwell, The Beatitudes, p. 44.


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um olhar desequilibrado sobre um ou outro aspecto de Deus. Isso começou com a grande heresia dos tempos antigos, o arianismo, que negava a divindade de Cristo. O que estava em jogo era de suma importância: se Jesus não era divino, ele não passava de outro organismo que se deterioraria no túmulo oferecido por José de Arimateia, e as esperanças morreriam no Calvário. A igreja reagiu com uma ênfase unilateral na divindade de Cristo em detrimento de sua humanidade. Não se tratava de uma questão de ortodoxia, como observa Godfrey Diek-mann, mas de enxergar algumas verdades fora de foco,5 do jeito que acontece quando o foco de uma máquina fotográfica se concentra numa única flor e a imagem das outras em volta fica embaçada. Os efeitos que essa distorção trouxe a longo prazo introduziram um mal-estar que duraria séculos. O primeiro e mais importante é que Jesus, o Deus-homem, havia passado para o outro lado, por assim dizer, e agora estava ao lado de Deus. Cristo já não era nosso irmão na carne, mas o Deus temível e inacessível. Com sua humanidade relegada a segundo plano, Jesus foi confinado à esfera infinita do divino. Ofuscou-se a íntima comunhão de Jesus com os discípulos. "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" são palavras de Jesus que passaram a ser ignoradas ou esquecidas. Como a videira separada dos ramos, o Cristo de Deus tornou-se uma figura remota e inacessível. A lembrança de Jesus como alguém que foi "tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas não pecou" (Hb 4:15) ficou obscurecida por sua presença divina. Como ousaríamos nos achegar ao nosso irmão mais velho "confiadamente, 5

Come, Let Us Worship.


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a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hb 4:16)? A ênfase inadequada sobre a divindade de Cristo nessa he-resia cristológica criou inevitavelmente um abismo entre os filhos de Deus e o Salvador transcendente. Como isso afetou a participação dos leigos na vida de adoração comunitária? A reação antiariana, com ênfase na transcendência em relação à imanência e na divindade em relação à humanidade de Cristo, transformou a celebração eucarística do povo de Deus num assunto de alçada estritamente clerical. O sumo sacerdócio de Jesus Cristo não era mais exercido mediante o "sacerdócio real" (IPe 2:9) dos leigos, mas apenas por intermédio do ministro ordenado. Na igreja católica, o santuário foi separado da nave pelo espaço cercado da Eucaristia, a fim de que o Santo dos Santos fosse protegido da contaminação que poderia vir dos leigos miseráveis, e o altar foi virado, de modo que o sacerdote passou a ficar de costas para o povo. Durante a oração litúrgica do cânon, as pessoas passaram a se ajoelhar e não mais a ficar de pé, várias orações eram acompanhadas pelo gesto de bater no peito, a genuflexão foi introduzida durante o momento em que o credo era recitado e o ato de receber a comunhão — antecedido por uma nova oração, "Senhor, não sou digno de vos receber..." (quem poderia não concordar com isso?) — entrou em rápido declínio. A participação na Eucaristia deteriorou-se e passou a ser um mero comparecimento. Jesus, visto como o divino consagrador, era observado principalmente como Deus. Assim, o curvar a cabeça e o bater no peito na hora das palavras de consagração, Hoc est enim corpus meum (Este é meu corpo), tornou-se a postura padrão. O fato é que muitos fiéis corriam de uma missa para outra nas manhãs de domingo, desprezando


INFINITO E ÍNTIMO

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a liturgia da Palavra, somente para estar presentes no momento da consagração; e com a repetição de "Hoc est enim corpus meum", a expressão "hocus-pocus", empregada de modo pejorativo pelos cínicos, entrou para o vocabulário inglês.6 Esta palavra de advertência de altíssima importância — que a transcendência precisa andar junto com a imanência, que a divindade precisa estar de mãos dadas com a humanidade, que o céu precisa estar em equilíbrio com a terra e que a distância de Deus precisa ser complementada por sua proximidade — é essencial se quisermos entender o verdadeiro significado da glória de Jesus.

6

Essas observações podem ser verificadas nos escritos de teólogos e eruditos litúrgicos como Godfrey DIEKMANN, Yves CONGAR, Karl ADAM, Cyprian VAGGA-GINI, Louis BUOYER e outros.


CAPITULO

SETE

CONFIAR EM JESUS

A

fé nasce da experiência pessoal com Jesus como Senhor. Esperança é o ato de acreditar na promessa de Jesus acompanhada pela expectativa de cumprimento. Confiança é o feliz casamento da fé com a esperança. No evangelho de Lucas, o centurião confessa sua fé em Jesus com as seguintes palavras: "Senhor [...] não sou digno de que entres em minha casa"; e confessa sua esperança, dizendo: "... porém manda com uma palavra e o meu rapaz será curado" (7:7). Então, Jesus "... voltando-se para o povo que o acompanhava, disse: Afirmo-vos que nem mesmo em Israel achei fé como esta" (7:9). Fé + esperança = confiança. No evangelho de João, um oficial do rei, cujo filho estava doente, vai até Jesus e pede: "Senhor, desce, antes que meu filho morra". E Jesus lhe diz: "Vai [...] teu filho vive" (Jo 4:49-50). O homem põe sua confiança nas palavras proferidas por Jesus e segue para casa. Novamente vemos a fé na pessoa de Jesus e a esperança em sua promessa.


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Em Marcos, um pai leva a Jesus seu filho possuído por um espírito mudo e pede: "... se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos". E Jesus responde: "Se podes! Tudo é possível ao que crê". Então, o pai do menino exclama de imediato: "Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!" (Mc 9:22-24). O que está faltando neste caso? Esperança. O pai do garoto crê em Jesus, mas falta-lhe convicção de que sua expectativa de cura se confirmará. Fé e esperança atuam juntas na formação do discípulo que confia. Em seu discurso de despedida, Jesus diz: "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3). Este é um ponto de importância crucial para nossa compreensão bíblica do que significa confiar em Jesus: no pensamento ocidental, o conhecimento é a apreensão intelectual da realidade, a afirmação que a mente faz de uma verdade percebida. Nas Escrituras hebraicas e cristãs, o conhecimento é prático; surge da experiência com Deus em fé e amor e não da averiguação humana.1 Conhecimento é o fruto de um encontro de fé com Jesus, o Cristo. Sem a experiência, é simplesmente impossível receber a revelação de Deus no Cristo transcendente e imanente. A experiência é parte essencial do processo de conhecer Jesus e de todo o conceito de revelação. O teólogo holandês Edward Schillebeeckx afirma: "O cristianismo não é uma mensagem na qual se deve crer, mas uma experiência de fé que se transforma numa mensagem".2 Antes de examinar a natureza dessa experiência, deve-se observar que somente Jesus revela quem é Deus. Ele é nossa 1

John L. MCKENZIE, Díctionary of the Bible, p. 249. 1 ínterim Report on the Boohs Jesus and Christ, p. 52.


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fonte de informações acerca da transcendência e da divindade. Não podemos deduzir coisa alguma a respeito de Jesus com base no que pensamos saber de Deus; precisamos, porém, deduzir todas as coisas a respeito de Deus com base no que sabemos sobre Jesus.3 Isso quer dizer que todas as imagens e conceitos sobre Deus que prevalecem em nós precisam sucumbir ao terremoto causado pela autorrevelação de Jesus. Confiar é estar disposto a nos esvaziar completamente de todas as terríveis e confortáveis imagens que tínhamos de Deus, de modo que seu dom em Jesus Cristo nos alcance de acordo com as condições divinas. Se não permitirmos que Jesus transforme nossa imagem de Deus, não poderemos confessá-lo como fez o apóstolo Tomé: "Senhor meu e Deus meu!". Por mais que gostemos da ideia, não podemos confinar o carpinteiro humilde e compassivo aos limites de nossa mente, privando-o assim de sua transcendência. Não importa as semelhanças que ele guarde conosco, não importa quantas atitudes, valores e características humanas possamos compartilhar, Jesus é também completamente distinto de nós. Nas profundezas de sua pessoa, ele é divino, totalmente outro, e a kabõd Javé repousa sobre ele. Jesus permanece um mistério tanto em sua proximidade quanto em sua transcendência. Para mim e muitas outras pessoas, Jesus é a revelação do único Deus digna de confiança. A experiência plena com Jesus consiste num encontro com ele nos níveis de existência divina e humana, uma vez que ambas se aplicam a ele. Essa experiência — esse momento de reconhecimento, se você preferir — não se reserva a alguns poucos privilegiados, mas é generosamente extensiva aos grandes e pequenos, ricos e pobres, instruídos e analfabetos — em suma, ' Albert NOLAN, ]esus Before Christicmity, p. 137.


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a qualquer um que esteja buscando com seriedade o Deus de Jesus. (Entretanto, verdade seja dita, buscar a experiência simplesmente pela experiência é buscar a si mesmo, não a Deus.) A experiência com Jesus como Senhor, que desperta a resposta da fé, varia tanto quanto o número de pessoas que passam por ela. E abrange a experiência da kabõd vivida por Paulo na estrada de Damasco, a transformação silenciosa de uma mulher durante uma proclamação poderosa da Palavra e o resgate das garras da derrota inevitável vivenciado pelo alcoólico Bill Wilson (cofundador dos Alcoólicos Anónimos) num quarto de hospital na cidade de Nova York. Quaisquer que sejam as circunstâncias, o mesmo fio perpassa cada experiência. A explicação fica por conta do erudito bíblico John McKenzie: O elemento básico parece ser o reconhecimento. Reconhecemos que a pessoa com quem estamos tendo contato fala di-reto e fundo ao nosso ser, atende nossas necessidades, satisfaz nossos anseios. Reconhecemos que essa pessoa confere sentido à vida. Não digo novo sentido, mas sentido apenas, pois reconhecemos que, antes de entrar em contato com ela, a vida simplesmente não tinha sentido real. Reconhecemos que ela se revelou a nós, e não somente a si mesma, mas também nos revelou nosso verdadeiro eu. Reconhecemos que não podemos ser nosso verdadeiro eu sem nos unir a essa pessoa. È nela que a escuridão recebe luz, a incerteza cede lugar à certeza, e a insegurança é trocada por um profundo sentimento de segurança. Descobrimos que nela passamos a compreender muitas coisas que nos deixavam confusos. Reconhecemos que ela é a fonte de força e poder que fluem para nós. E a maior certeza de todas é o reconhecimento de que nessa pessoa encontramos Deus e que jamais o encontraremos de algum outro modo.4

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The Power and the Wisdom.


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A fé, nascida dessa experiência indispensável, infunde em nós o conhecimento prático do único Deus verdadeiro e de Jesus Cristo, que ele enviou. A certeza serena daquele que crê pode ser traduzida com toda simplicidade: "Eu sei que sei que sei", por mais que tal certeza seja ténue e contemplada através de um vidro escuro. Mil e oitocentos anos depois de chamar Abraão, Deus tornou finita sua palavra infinita. Pelo menos somos poupados do sentimento de terror diante do infinito. Deus veio até nós numa palavra humana, e seu nome é Jesus Cristo. A kabõd Javé, que nos deixa assustados e nos tira todo sentimento de segurança, fala-nos em linguagem humana, e a palavra amor deixa de ser algo que devemos temer. Quando Jesus disse: "Como o Pai me amou, também eu vos amei; permanecei no meu amor", ele estava usando palavras que vinham de um coração humano. Ainda que seu amor seja incomparavelmente maior que o amor humano, pois é o amor de Deus, continua sendo amor e, de um modo limitado, torna-se compreensível ao nosso frágil intelecto. A kabõd brilha na face de Jesus, e a glória absoluta de Deus é manifestada como a genuína glória do amor. Depois do evento da encarnação, a pergunta que se faz não é mais se Jesus é como Deus, mas se Deus é como Jesus. O Deus transcendente e imanente é, nas conhecidas palavras de Agostinho, "mais íntimo que o mais profundo do meu ser e mais elevado que o meu ponto mais alto".5Na pessoa de Jesus, Deus está mais próximo de mim, mais do que eu mesmo. Sublinhando os títulos messiânicos de Salvador, Redentor e assim por diante reside a impressionante verdade de que Jesus "incorpora" o amor infinito The Confessions ofSt. Augustine, p. 11.


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de Deus. Bernard Lonergan reafirma: "Toda experiência espiritual autêntica é uma experiência de viver em amor irrestrito e incondicional".6 Se a noite se mostra ameaçadora, e nossos nervos estão em frangalhos, chegam as trevas, há sofrimento por todos os lados, a ausência do Santo é quase palpável e queremos conhecer os verdadeiros sentimentos que o Deus insondável tem por nós, precisamos nos voltar e olhar para Jesus. Essa via que leva a Deus pode ser contemplada na oração de Karl Rahner: O Deus infinito, permita-me sempre me agarrar a Jesus Cristo, meu Senhor. Que o coração dele sempre me revele tua disposição em relação a mim. Olharei para o coração dele sempre que eu quiser saber quem tu és. Os olhos da minha mente ficam cegos quando olham somente para tua infinitude, na qual estás de todo presente em todos os aspectos ao mesmo tempo. Fico então cercado pelas trevas da tua imensidão, mais acentuadas que todas as minhas noites neste mundo. Em vez disso, porém, contemplarei teu coração humano, ó Deus do Senhor Jesus Cristo, e assim estarei certo de que tu me amas.7 Se alguém lhe perguntasse: "Qual a única coisa de que podemos ter certeza nesta vida?", você teria de responder: "O amor de Cristo". Mais que seus pais, parentes e amigos. Mais que as artes e as ciências, a filosofia ou qualquer produto da sabedoria humana. Apenas o amor de Cristo. Você não poderia nem mesmo dizer "o amor de Deus", pois a verdade de que Deus é amor é plenamente conhecida apenas por meio de Jesus Cristo. Assim é a convicção da fé que nasce da experiência. Eu sei que sei que sei. Portanto, convém que todas as 6

Insight, p. 38.

' Prayers for a Lifetime, p. 39.


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nossas orações, em público ou em particular, se encerrem com as palavras "mediante Cristo, nosso Senhor". Nossa confiança em Jesus cresce à medida que deixamos de nos esforçar para sermos bons e passamos a nos permitir ser amados como somos (não como deveríamos ser). O Espírito Santo nos faz passar da mente para o coração, da cognição intelectual para a realidade da experiência. Uma quietude interior começa a impregnar nosso ser, e nosso tempo de oração passa a se caracterizar por reflexão e discurso menos racionais e mais por uma postura contemplativa e disposta a ouvir. A introspecção individualista dá lugar ao desprendimento com relação a nós mesmos, à medida que contemplamos o brilho do Senhor. Nas palavras de Paulo, "refletimos a glória que vem do Senhor. Essa glória vai ficando cada vez mais brilhante e vai nos tornando cada vez mais parecidos com o Senhor, que é o Espírito" (2Co 3:18, NTLH). Jesus, a luz do mundo, é a manifestação visível da kabõd Javé, a glória infinita de Deus. Os autores dos evangelhos si-nóticos, desejosos de estabelecer essa verdade desde o princípio, referem-se à glória de Deus que iluminou os pastores em Belém com uma luz brilhante (Lc 2:9). Jesus participa do fulgor radiante do Pai, e isso será revelado em sua segunda vinda como juiz (Mt 16:29; Mc 8:38; Lc 21:27). A radiância da glória de Jesus se manifesta previamente em sua transfiguração (Lc9:31ss.). João afirma que os discípulos viram sua glória na portentosa amostra de poder no casamento em Cana. "Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Cana da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele" (Jo 2:11). Nos escritos joaninos principalmente, Jesus é glorificado em sua paixão, morte e ressurreição.


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Outros escritores do Novo Testamento também tratam das questões em torno da kabõd. Na carta aos Hebreus, Jesus é citado como reflexo da glória do Pai (1:3). Em ICoríntios e também na carta de Tiago (2:1), Jesus recebe o título "Senhor da glória" (2:8). Inúmeros exemplos das Escrituras dão testemunho da percepção que as primeiras comunidades cristãs tinham de Jesus como Senhor da glória; não era preciso ficar repetindo essas verdades para elas. A proclamação do evangelho posterior à Páscoa dá crédito ao comentário de S0ren Kierke-gaard: "A vida deve ser vivida em perspectiva, mas entendida em retrospectiva".8 Após a ressurreição, a assembleia dos que creram reexaminou intensamente as Escrituras hebraicas e percebeu a kabõd Javé manifestada no evento singular de quando o próprio Deus assumiu nossa natureza humana na pessoa de Jesus. Por que insistir nesse assunto? Por que chegar a esse ponto para tornar notavelmente óbvio o que é obviamente notável? Porque a experiência pessoal com a glória de Jesus, o terrível encontro com o Cristo transcendente e imanente, é o fundamento da fé e da esperança que forma e alimenta uma vida de confiança cega. Jesus nos garantiu duas coisas: presença e promessa. Não é redundante dizer a promessa de sua presença ("estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos") e a presença de sua promessa (Cristo em você agora e sua esperança da glória ao longo da vida). Jesus nunca deu garantias de que seríamos poupados de sofrimento nem de que não seríamos vítimas do mal; o fato é que ele disse claramente: "No mundo passais por aflições" (Jo 16:33). O que ele prometeu foi que nas horas de 8

Purity ofHeart is to Will One Thing, p. 102.


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nossa aflição haveria somente um par de pegadas. Em graus variados, sofrimento e perda marcam a vida de todas as pessoas — assim como a presença de Deus em Cristo, se tivermos fé em sua presença e esperança em sua promessa. No meio das ruínas — na morte prematura de um ente querido, quando estamos no inferno na terra e apelamos para as drogas, ou quando nos sentimos magoados, na maldade nua e crua de Kosovo e Ruanda — a presença de Deus é real. O discípulo que confia, muitas vezes cerrando os dentes, diz, com efeito, Deus ainda é digno de crédito, mas não por causa do poder irrestrito para intervir em meu favor; ele é digno de crédito por causa da promessa feita e sustentada nas comunidades cristãs ao longo das gerações.9 Em meio aos eventos trágicos que nos deixam destituídos de qualquer possibilidade de entender as coisas, a confiança não exige explicações, mas volta-se para Aquele que prometeu: "Não vos deixareis órfãos" (Jo 14:18). Em face da pressão da necessidade de respostas e soluções para os problemas da vida — respostas que não nos chegam rapidamente — a confiança na sabedoria e no poder de Jesus Cristo sabe como esperar. Dennis Rainey conta a história de uma família missionária que passava uma temporada em seu país de origem, hos-pedando-se na casa de um amigo, à beira de um lago. No dia em questão, o pai estava dentro de um barracão às voltas com coisas relativas ao barco da família hospedeira, a mãe estava na cozinha, e os três filhos, de quatro, sete e doze anos, brincavam no gramado. Billy, o caçula, escapou dos olhos atentos da irmã mais velha e rumou para a plataforma de madeira onde o barco ficava atracado. O brilho do barco de alumínio o deixou 9

Michael DOWNEY, Hope Begins Where Hope Begins, p. 106-107.


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encantado, mas os passos inseguros fizeram-no cair na água a uma profundidade de quase três metros. Quando a menina de doze anos gritou, o pai saiu correndo de onde estava. Percebendo o que havia acontecido, mergulhou nas águas escuras. Desesperado, tateava procurando o filho, mas teve de subir à superfície duas vezes para respirar. Enchendo os pulmões de ar, submergiu novamente e encontrou o garotinho agarrado a uma pilastra de madeira vários metros abaixo da superfície. Soltando os dedos do menino, voltou à superfície com ele nos braços. Já em segurança, o pai perguntou: "Billy, o que você estava fazendo lá embaixo?". E o pequeno respondeu: "Eu só tava esperando você, papai, só tava esperando você". Mesmo sendo tão pequeno, o menino certamente conhecia o pai — e sabia que podia se sentir seguro, protegido, aceito e amado. Ele sabia por experiência própria que o pai o amava. Ele tinha tudo para possuir uma autoimagem positiva e saudável: havia aprendido que era amado e conhecia a fidelidade do pai. Gente mais fria poderia julgar o garotinho e acusá-lo de ser presunçoso, afirmando que ele havia sido irresponsável em relação a sua segurança. Devia ter assumido o controle de sua situação de desespero, diriam essas pessoas. E claro que elas não deixam de ter alguma razão. Entretanto, quando assumir o controle se torna parte de nossa reação rotineira nos relacionamentos humanos conturbados e nos problemas que nos preocupam, Deus deixa de ser nosso co-piloto; na verdade, ele nem está a bordo. A exemplo da fé e da esperança, a confiança não é autoge-rada. Confiar não é um simples ato volitivo. Que ironia ultrajante: eu mesmo não posso gerar a única coisa pela qual sou responsável ao longo de toda a vida. A única coisa que preciso fazer é justamente a que não posso fazer. Mas é exatamente


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este o significado de dependência radical. Consiste em virtu-des teológicas, em dons divinamente ordenados. Por que eu haveria de me reprovar por minha falta de confiança? Por que perder tempo me torturando por algo sobre que eu não tenho controle? O que realmente está dentro de minha competência é olhar para a fidelidade de Jesus. É isso que devo fazer: atentar para Jesus ao longo de toda a minha jornada, lembrando-me de sua bondade (SI 103:2). A primeira pessoa a publicar um de meus livros contou-me a história de uma tarde de verão, quando ele estava dirigindo por uma estrada de Nova Jersey. Na mesma faixa de pista em que ele estava, cem metros adiante, seguia um carro na velocidade máxima, e Tom ficou chocado quando viu a porta traseira direita se abrir, por onde o passageiro atirou um cachorro para fora do carro. O animal chocou-se contra o concreto e rolou até uma valeta. Sangrando muito, o cachorro levantou-se e começou a correr atrás do carro do dono que o havia abandonado com tanta crueldade. Sua fidelidade incondicional não levava em conta a violência sofrida nem a dureza de coração do seu dono. A lealdade obstinada de Jesus diante de nossa indiferença ao seu afeto e de nossa ingratidão por sua fidelidade — ele sempre é fiel, pois de maneira nenhuma pode negar a si mesmo (2Tm 2:13) — é um mistério de magnitude tão alucinante, que, em sua presença, o intelecto se curva e a teologia baixa a cabeça. Humildemente, ao reconhecer nossas limitações, somos levados a orar com fervor: "Senhor, eu creio. Ajuda-me na minha falta de fé". Woody Allen observou com ironia que noventa por cento da vida consiste em simplesmente comparecer. Confiar em alguém é um sentimento instintivo de que a pessoa vai comparecer


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nas horas ruins e nas boas, nas tempestades e na bonança, nos altos e baixos das lutas da vida. Confiar em alguém não quer dizer que a pessoa tenha passado por testes exaustivos e dado prova cabal de ser digna de confiança. Nossa confiança baseia-se não em provas, mas numa intuição, num sentimento — sentimento não destituído de base, claro, mas não como resultado definitivo de um silogismo ou de um questionário. A confiança vem da experiência com o outro, experiência que não se reduz a provas. Quase sempre se desenvolve num relacionamento de amor mútuo, pois amamos e somos amados pelo outro. Um belo exemplo de confiança se encontra na obra-prima literária conhecida como Livro de Jó, que pertence à literatura classificada como de sabedoria. Jó está cercado de sofrimento e perda por todos os lados, mas sua confiança resiste mesmo quando não é possível compreender. O relato bíblico apresenta sua experiência não como um modo de entender o mal, mas como uma forma de conviver com ele. O que a história de Jó declara de maneira implícita é que podemos resistir à invasão indesejável do mal quando temos experiência com a teofania — ou seja, uma visão da realidade de Deus. Walter Burghardt escreve: Apenas a confiança pode tornar o mal suportável — confiar não porque Deus apresentou provas, mas porque ele mostrou sua face. O resumo desse movimento: passa-se da experiência com Deus para o amor de Deus e então para a confiança em Deus.10 A jornada maltrapilha deste evangelista itinerante já me pôs em contato com uma multidão de pessoas. Prego o evangelho, 10

Tell the Next Generation, p. 42.


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não me sinto um apóstolo vitorioso e confiante que irradia poderes sobre-humanos e uma segurança interior inabalável. Dirigindo-me a obreiros que trabalham com jovens ou a pessoas mais velhas e profundamente sábias que já ouviram pre-letores muito mais capazes que eu, atormenta-me a sensação de ser "como o bronze que soa ou como o címbalo que retine". Como meu amigo Paul Sheldon poderá confirmar, sempre fico admirado (mesmo depois de estar fazendo o que faço há vinte e cinco anos em tempo integral) quando as pessoas acolhem meu ministério com gratidão e me convidam a voltar. Continuo a me maravilhar com as muitas pessoas que me permitem entrar no mais íntimo do seu coração, pois conseguiram enxergar Jesus oculto em mim. E chacoalho a cabeça em grata surpresa diante do milagre de sua graça que opera no meu ministério. Então volto para o hotel, faço as malas e sigo para o próximo destino. Ao longo da estrada, conheço outros que se tornam meus companheiros por algum tempo, pois estamos seguindo na mesma direção. Quando um de nós pega uma das rotas de saída, sem uma palavra ou um sinal de adeus, separamo-nos para nunca mais nos ver. Não é motivo para sofrimento ou autopiedade, mas simplesmente é essa a natureza da vida itinerante. Às vezes, porém, em algum momento de rara espontaneidade ao longo da estrada, conheço alguém e vivencio o que pode ser descrito somente como um momento de reconhecimento mútuo. Com o passar do tempo, vamos ficando amigos, e nossa vontade de estar juntos aumenta. Quando o ministério me leva de volta à cidade desse amigo, não dá nem para pensar em não jantar com ele. Um amigo desses permite que eu seja eu mesmo, sensato num momento e tolo no momento seguinte. A confiança cresce entre nós. Se uma palavra de exortação fraternal se mostra necessária, o amigo a apresenta sendo direto, mas a expressão


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de pesar em sua fisionomia revela-me como essa repreensão também é difícil para ele. Assim, ele tem coragem de me dizer algo nada agradável, mas necessário — algo que os outros deveriam me dizer, mas não o dizem. (Esquivam-se por medo de que eu venha a deixar de gostar deles. O equilíbrio emocional é mais importante para eles do que o meu crescimento espiritual.) Com cada interação aprofunda-se a confiança em meu amigo. Paul e alguns outros permaneceram ao meu lado durante as horas mais difíceis de minha vida. Logo penso neles quando leio esta passagem de um livro intitulado Brendan, de Fre-derick Buechner: Apoiando-se com firmeza sobre os punhos na mesa, ergueu-se e ficou de pé no lugar onde estava. Pela primeira vez percebemos que ele não tinha uma perna. Do joelho para baixo não havia perna. Pulando para o lado para pegar sua bengala que estava no canto, ele perdeu o equilíbrio. E teria levado um enorme tombo se Brendan não tivesse se arremessado em sua díreção para segurá-lo. — Sou mais inútil que o mundo das trevas — disse Gildas. — Quem de nós não é, meu caro? — respondeu Brendan. Gildas com uma perna só. Brendan com certeza havia desperdiçado toda a vida. Eu havia deixado minha esposa para segui-lo e enterrei nosso único filho homem. A verdade das palavras de Brendan calou todas as bocas. Éramos inúteis, todos nós. Por um momento ou dois, não se ouviu outro barulho, mas só 0 zunido que vinha das abelhas. "Oferecer ajuda uns aos outros quando estamos caindo", disse Brendan, "talvez seja o único ato que importe no final".11 E 217.


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Durante toda a vida, no meu esforço por vencer o ódio contra mim mesmo, no desespero por me sentir digno de ser amado, tenho recebido ajuda incomensurável de amigos em quem confio e que confiam em mim, os quais, sem nenhum motivo especial, enxergam em mim algo que eu não consigo enxergar. Eles não apenas me falam disso, mas relacionam-se comigo de um modo que demonstra que me acham digno de ser amado. Aprender a confiar em meus amigos tem sido um processo lento, mas de valor incalculável. Honestidade com os outros ou consigo mesmo é um produto raramente encontrado no mundo como um todo ou na igreja. Revelar nosso lado escuro para o outro é assumir riscos. Pode haver retaliação, conforme aprendeu o jovem obreiro que mencionei no capítulo anterior. Ele teve de pagar um alto preço. Todos lutamos com as perguntas que fiz em O impostor que vive em mim: Com quem posso conversar de maneira franca? Diante de quem posso desnudar minha alma? A quem ousarei dizer que sou mau e bom, puro e perverso, compassivo e vingativo, altruísta e egoísta? Que sob minhas palavras corajosas vive uma criança assustada? Que me imiscuo na religião e na pornografia? Que manchei o caráter de um amigo, traí a confiança, violei uma confidência? Que sou tolerante e zeloso, beato e arrogante? Que detesto quiabo?12 Sentindo que, se desnudar minha alma, serei abandonado por meus amigos e ridicularizado pelos inimigos, mantenho-me vivendo às ocultas, recorrendo a cosméticos para vestir uma máscara bonita. Escondo minha desconfiança silenciosa 12

São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 178.


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atrás de um semblante alegre, mascaro meus temores com oti-mismo fingido e apresento um falso eu que, em sua maior parte, é admirável, moderadamente simpático e superficialmente feliz. Mais tarde, tenho ódio de mim mesmo por causa de minha desonestidade escancarada. Para quem posso me voltar? Numa das declarações mais surpreendentes de toda a Bíblia, Jesus diz: "... chamo vocês de amigos" 0° 15:15, NTLH). Agostinho faz o seguinte comentário sobre essas palavras: "Um amigo é alguém que sabe tudo a respeito de você e o aceita plenamente do jeito que você é".13Será que todos nós não sonhamos com isso? Um dia, em algum lugar, vou encontrar aquela pessoa que realmente me entende — entende as palavras que falo e até as que eu não falo. O evangelho proclama que Jesus de Nazaré é a realização desse sonho. Para mim, a definição de confiança apresentada por Paul Tillich sempre foi a que me faz mais sentido. Ele define confiança como "coragem para aceitar a aceitação".14 Diante de Jesus, a verdade nua e crua acerca de nossas dúvidas e ansiedades, nossa luxúria e preguiça, nossa vida de oração medíocre e religiosidade insípida, nossas motivações dúbias e coração dividido é o risco que assumimos na certeza de sermos aceitáveis e aceitos. E a expressão plena e madura da confiança insuperável. Jesus é o amigo que nunca nos deixa na mão, amigo fiel a quem nunca falta fidelidade, mesmo quando as pessoas lhe são infiéis, e é ele que nos aparta do ódio contra nós mesmos. 13 14

The Confessions ofSt. Augustine, p. 14. The Shakmg of the Foundations, p. 42.


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O teólogo alemão Walter Kasper, depois de observar que a experiência pessoal é o sine qua non da fé bíblica, conclui: Vivenciar o amor de Deus em Jesus Cristo significa vivenciar que fomos aceitos sem reservas, aprovados e infinitamente amados [itálicos meus], que podemos e devemos aceitar a nós mesmos e o nosso próximo.15 A confiança, com raízes na fé e na esperança, alcança uma profundidade sem precedentes na experiência do amor infinito. De nada vale protestar dizendo que um conceito desses é sublime demais para nós. É claro úue é sublime demais para nós. A kabõd Javé, glória absoluta de Deus, revela-se em Jesus como amor absoluto, e dela não podemos ter mais que uma noção superficial. No entanto, fomos feitos para o que é grandioso demais para nós. Somos feitos para Deus e nunca estaremos satisfeitos com menos do que isso. Simon Tugwell escreve: "Precisamos permitir que nosso apetite pela infinitude nos desaloje sempre que estivermos propensos a nos acomodar e achar que já fizemos tudo o que havia para ser feito".16 A fome e a sede por mais tiram o sossego da resignação, induzem a um abençoado estado de inquietude e impulsionam nossa infindável sondagem dos mistérios de Deus em Cristo Jesus. Não aceitar substitutos para aquilo que realmente queremos é uma postura que leva à simplicidade de vida. Parece-me ser melhor começar a adotar essa postura desde já, pois é inevitável que chegue o dia em que teremos de nos submeter sem inibição alguma à irresistível atração exercida por Jesus. Quer sejamos iniciantes na jornada, quer sejamos veteranos tão próximos do fim que jamais façamos planos de longo prazo, 15 16

Jesus the Christ, p. 86. The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition, p. 79.


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gigantes espirituais ou anões, a resposta que Jesus procura é sempre a mesma: confiança. Lemos na primeira carta de João: "E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós" (4:16). Ou, de acordo com a feliz tradução de Eugene Peter-son: "Nós conhecemos tão bem esse amor que vem de Deus, que o acolhemos no coração e na alma" (The Message). Se não permitirmos que Jesus transforme nossa percepção de Deus, se continuarmos agarrados a nossas imagens e projeções distorcidas e pré-cristãs, se pensarmos que não é fácil nos rela-cionar com Jesus (ele é sensível, inacessível e se melindra com facilidade), estaremos rejeitando a dádiva da sua amizade, desprezando a atmosfera clara, aberta e arejada de seu reino e escolhendo as masmorras escuras e repugnantes da desconfiança. Mas e as dúvidas e preocupações? Também são sinais de rejeição do reino de Deus? Não necessariamente. Não há fé isenta de dúvida, nem esperança imune à ansiedade, nem confiança livre de preocupações. Dúvida, ansiedade e preocupação lançam sobre nós sua sombra em variados graus; na verdade, surgem até em nossos sonhos. Conquanto internamente venhamos a dar consentimento a essas diversas facetas do medo, elas não são motivo para alarme, pois não são atos voluntários. Quando ameaçam nos consumir, podemos sobrepujá-las com um ato de confiança simples e espontâneo: Jesus por tua graça aquieto-me por um momento e ouço-te dizer: "Coragem! Sou eu! Não tenhas medo". Na tua presença e no teu amor faço repousar minha confiança. Obrigado. Jamais subestimemos o poder da verdade que se libera em nossa experiência com Jesus e se amplia em nossa fidelidade na busca de sua face. No final da vida, Thomas Merton escreveu em seu The Asian Journal que a confiança aumenta por inter-


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médio de nossa fidelidade na busca e conduz a "uma certeza muito, muito profunda, pois não se trata de nossa própria certeza pessoal, mas da certeza do próprio Deus em nós".17 Depois da experiência inicial, a perseverança na busca vitalícia de uma intimidade cada vez maior com Jesus, por mais que venhamos a tropeçar e cair, transforma-se não apenas num antídoto para a desesperança e o desespero, mas na trilha segura que leva à certeza divina que supera as dúvidas, ansiedades e preocupações. Segundo Juliana de Norwich, mística do século XV considerada por Merton um dos dois grandes nomes da teologia da Inglaterra (ao lado de John Henri Newman): E da vontade de Deus que, à medida que buscamos, venhamos a receber dele três dádivas. A primeira é que o busquemos deliberada e diligentemente, sem preguiça, pois que assim é possível com sua graça, contentes e alegremente, sem depressão injustificada nem tristezas inúteis. A segunda é que o esperemos com firmeza e constância, pelo amor que lhe temos, sem murmurar nem lutar contra ele [...]. A terceira é que tenhamos grande confiança nele, motivados por uma fé plena e verdadeira, pois é de sua vontade que saibamos que ele virá de repente e abençoará todos os que o amam.18 A experiência de fé e esperança gera grande profundidade e dimensão no relacionamento com Aba. Pelo testemunho que nos está disponível (Mc 14:36), parece que Jesus muitas vezes chamava Deus de "Aba", palavra aramaica coloquial, de intimidade, que significa "Papai". Esse tratamento deve ter chocado os contemporâneos de Jesus por parecer irreverente e 17

R 54. ISE

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ofensivamente familiar. Mas familiaridade não exclui respeito. Reverência e prontidão para obedecer formam a base da compreensão que Jesus tem do Pai. Seu emprego extraordinário da forma afetuosa de se dirigir a ele subentende que podemos nos aproximar de Deus segura e confiadamente, a exemplo de uma criança que se aproxima de seu pai amoroso. Orar "O Aba, todo-poderoso, eterno e infinito" não somente evita o sentimentalismo barato, mas vai ao encontro do que creio ser a necessidade mais importante e urgente em nossa geração — uma nova percepção da transcendência. Tal percepção de forma alguma diminui a ternura e o afeto do título "Aba". Dirigir-nos a Deus desse modo é a expressão mais simples e corajosa cia confiança absoluta de que Deus é bom, está ao nosso lado, e cremos que "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem" (SI 103:13). A percepção da transcendência restaura a reverência, o fascínio, o temor e a adoração de quem ora: "Aba, eu pertenço a ti". E o complemento cristão para a declaração primorosa encontrada na tradição hassídica: "Temor sem amor é uma imperfeição; amor sem temor não é absolutamente nada". A carta aos Hebreus descreve a eficácia da oração que Jesus dirigiu a seu Aba: "... tendo oferecido preces e súplicas com forte clamor e lágrimas ao que podia salvá-lo da morte, e tendo sido ouvido pela sua reverência" (5:7-8). Não quero uma espiritualidade terrorista que me mantenha num perpétuo estado de pânico com relação ao relacionamento corre to com meu Pai celestial, nem uma espiritualidade tola que retrate a Deus como se fosse um ursinho de pelúcia tão bonzinho, que não há comportamento ou desejo anormais que eu possa ter que ele não venha a aprovar. Quero relacionar-me com o Aba de Jesus, que é infinitamente compassivo diante de minha


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fraqueza e ao mesmo tempo um mistério terrível, incompreensível e invencível. Quando Jesus disse "sede misericordiosos, como misericordioso é vosso Pai" (Lc 6:36), ele pretendia que demonstrássemos compaixão em relação ao nosso eu neurótico e aos nossos próximos igualmente neuróticos. (Todas as manhãs converso com minhas neuroses e avalio se elas estão num estado de intensa agitação ou em seu estado debilitante normal. Se agitadas, peço graça para que possa me valer de maiores reservas de empatia; se debilitantes, valho-me de minhas reservas normais de compaixão. Mais tarde no mesmo dia, isso me ajuda a ser gentil diante das loucuras dos meus próximos.) Esse mandamento de Jesus é também um convite para uma observação mais profunda da kabõd javé. Muitos salmos referem-se a kabõd como uma força invencível e uma realidade esmagadora, mas também falam de abrigo e proteção para os que confiam em Javé (SI 11, 16, 36). O carpinteiro nazareno, com seu jeito direto, franco e prático, leva-nos incomparavelmente além da revelação do Antigo Testamento, declarando que a glória de Deus apresenta-se em afeto sem limite, em amor irrestrito e em compaixão que não cabe dentro de nossa experiência humana limitada. Na realidade, o que Jesus está dizendo é: jamais seja tolo a ponto de medir a compaixão de meu Pai pelos critérios da sua compaixão. Jamais seja tão estúpido a ponto de comparar sua compaixão humana cheia de caprichos, esquálida, anêmica e inconstante com a minha, pois sou Deus assim como também homem. Duns Scotus, o grande teólogo franciscano, sustentava que se Adão e Eva não tivessem pecado (e, assim, a raça humana não precisaria de um salvador), Jesus viria do mesmo modo ao nosso encontro como aquele que revela a compaixão do Pai. Ele escandalizou o sistema religioso da Palestina do primeiro


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século por causa de seu relacionamento amistoso com pecadores notórios. Bem, como costumam dizer os franceses, "plu ca change, plus cest la même chose" — quanto mais uma coisa muda, mais continua a mesma. O mínimo que nós, pregadores, podemos fazer é falar timidamente da compaixão infinita. A retomada da percepção da transcendência não afasta Aba de nossa experiência humana. Ele não está inlinitamente distante em sua majestade tremenda. Por paradoxal que seja, à medida que entramos na "nuvem do desconhecido" e todas as imagens de Deus que acalentamos se desfazem, Aba se aproxima de nós em seu Filho Jesus. "Quem me vê a mim, vê o Pai" (Jo 14:9). Jesus é a face humana de Deus com todas as mesmas atitudes, os mesmos atributos e as mesmas características de seu Aba. O amor paternal se revela no amor fraternal de Jesus, nosso irmão: "... e não vos digo que rogarei ao Fai por vós, porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado" (Jo 16:26-27). Para que se compreenda um pouco Aba — não sua essência, pois esta permanece incognoscível, mas seu cará-ter — precisamos olhar para Jesus. Mais uma vez, reconhecer Jesus como Senhor é torná-lo a fonte de nossas informações sobre a divindade e recusar-nos a impor-lhe nossas próprias ideias acerca da divindade. Em 1968, numa noite de inverno límpida e estrelada, fiquei acordado esperando o sol nascer. A areia do deserto espanhol reluzia como se fosse açúcar prateado. Cada vez mais o vento sussurrava o nome dele para mim: "Aba, Aba". Não havia trovões, não havia clarões de relâmpagos — simplesmente uma experiência silenciosa e transformadora. A vigília de oração de uma noite havia chegado ao fim, e alguma coisa bem nova havia começado. Numa caverna solitária no deserto de Zaragoza, fui agraciado com o conhecimento prático do Pai como meu Aba. Eu era filho de novo, arrebatado em louvor, fascínio e gratidão.


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A experiência de ser o filho amado do Aba todo-poderoso, eterno e infinito traz à tona um sentimento de "santo temor" vinculado à expressão "Aba, eu pertenço a ti". A grande escravidão emocional do medo vai aos poucos perdendo força quando em confronto com a grandiosidade do amor e da compaixão de Deus. Questionamentos, especulações e queixas sobre os absurdos da vida, os acidentes e as doenças a torto e a direito, as noites escuras da alma, a diminuição da capacidade mental por causa do envelhecimento, nossa morte inevitável, e até o último trapo ao qual nos apegamos — nossa integridade e inocência irretocáveis — tudo parece inadequado na presença da bondade infinita. Citando novamente Walter Burghardt, a confiança aumenta "não porque Deus apresentou provas, mas porque ele mostrou sua face". Por que John Lennon provou ser um falso profeta quando, em 1960, fez a previsão de que dentro de dez anos os Beatles seriam mais famosos que Jesus Cristo? Dallas Willard apresenta uma resposta em sua brilhante obra A conspiração divina: Acho que temos de dizer afinal que a duradoura importância de Jesus se baseia na sua capacidade atestada historicamente de tocar, curar e fortalecer a condição de cada ser humano. Ele é importante por causa daquilo que trouxe e daquilo que ainda traz aos seres humanos comuns, às pessoas na sua vida comum, envolvidas nos seus afazeres cotidianos. Ele promete completar a vida delas. Ao participar da nossa fraqueza ele nos dá força e, com a sua companhia, nos concede uma vida que tem a marca da eternidade.19 Em última análise, confiar em Jesus consiste na obediência ao seu mandamento: "Credes em Deus, crede também em mim" (Jo 14:1). 19

São Paulo: Mundo Cristão, 2001, p. 34.


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OITO

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eus instruiu Moisés: "Envia homens que espiem a terra de Canaã, que eu hei de dar aos filhos de Israel" (Nm 13:1). A equipe de reconhecimento passa quarenta dias fazendo uma investigação às escondidas. E voltam para o acampamento trazendo notícias boas e notícias ruins. È uma terra onde mana leite e mel, dizem eles (enquanto ficam com a boca cheia d'água olhando para as frutas exóticas que trouxeram de amostra), mas um grupo de bandoleiros que se chamam anaquins dão as cartas em toda a região. São enormes como jogadores de futebol americano (sem falar nas tatuagens, no nariz e umbigo perfurados) — tão grandes que a equipe de reconhecimento sentiu-se como um bando de gafanhotos na presença deles. O destemido Calebe levanta a voz e diz: "Vamos expulsá-los de lá e tomar o território!". Seus colegas protestam: "De jeito nenhum! Eles vão acabar com a gente." A comunidade israelita vacila e então começam o choro e os lamentos. O povo tem terríveis pesadelos assim que cada um põe a cabeça no travesseiro. Eles crêem em Deus. Têm fé em Javé e mesmo assim — com medo dos anaquins — abandonam a esperança na sua promessa


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de que tomariam posse de Canaã. Excetuando Moisés, Arão e Calebe, a desesperança contamina o povo escolhido. Ao se confrontar com exércitos mais fortes, deparando com obstáculos aparentemente insuperáveis, eles permitem que a confiança na orientação e na proteção de Javé caia por terra. Mas fé em Deus sem esperança nas suas promessas é uma confiança contaminada. Como conhecemos bem o dilema dos israelitas! O que prevalece é indecisão e incerteza. Aumenta a necessidade de garantia tangível da fidelidade de Deus. Queremos mais provas convincentes da presença divina ininterrupta. Quando essas coisas não estão a nossa disposição, decidimos assumir o controle. Nossa única paixão chama-se segurança. Numa vida espiritual cheia de ambiguidades, não podemos nos dar ao luxo de cometer erros. Avaliações intermináveis tomam o lugar das ações criativas. A disposição para assumir riscos afunda num mar agitado de dúvidas que nos atormentam. Precisamos de clareza absoluta antes de seguir em frente. Não entendemos que clareza, segurança e provas não podem gerar confiança, nem sustentá-la, nem garantir sua presença. Edward Farrell, autor de Prazer h a Hunger [Oração é avidez] defende a ideia de que os três grandes obstáculos para a confiança são amnésia, inércia e manana. Todos corremos o risco de nos esquecer da fidelidade de Deus no passado, de ter preguiça de agir segundo a promessa divina e de adiar o que Jesus pede que façamos hoje: que, à semelhança de crianças, nos entreguemos num ato de confiança. Quando ingressei na Ordem Franciscana em 1956, pergun-taram-me se eu pretendia ser candidato ao sacerdócio ou à irmandade. Respondi que não sabia que eu podia escolher, e além do mais eu não entendia a diferença entre as duas coisas. Disseram-me que os irmãos realizavam trabalho braçal e eram


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treinados para ser cozinheiros, sapateiros, para realizar serviços gerais e assim por diante. Os sacerdotes estudavam e eram ordenados para pregar o evangelho e celebrar os sacramentos. Por ser tímido, introvertido e por morrer de medo da perspectiva de falar em público, optei de imediato pela irmandade. Desconfiado de que eu não havia refletido bem sobre a questão, o superior local me disse que não havia necessidade de tomar uma decisão apressada. Tempos depois, a comunidade franciscana identificou meus dons, colocou-os em evidência e ordenou-me sacerdote. O celibato não era opcional naquele contexto; era pressuposto. Com inocência e boa fé, entrei de cabeça. Naquela época, eu jamais imaginava, nem em minhas mais ousadas fantasias, que um dia pudesse me casar e consagrar a maior parte da vida peregrinando pelo mundo como evangelista itinerante! Minha contribuição pessoal para meu presente Sitz ira Leben foi seguir a correnteza e os suaves movimentos do Espírito de Deus dentro de mim. Hoje morro de rir quando percebo que eu havia começado de novo a "gerenciar" minha vida — algo que todos fazemos com uma regularidade impressionante. A ilusão do controle é realmente patética, mas também engraçada. Decidir o que mais preciso na vida, calculando com todo o cuidado o movimento seguinte e geralmente concedendo total liberdade a meu eu autónomo faz com que eu me sinta envaidecido, cheio de importância pessoal, levando-me a reduzir o papel do Deus da minha incrível jornada ao de um mero espectador das arquibancadas. Somente a sabedoria e a perspectiva colhidas na minha hora matutina de oração silenciosa é que me impedem de me candidatar a administrador geral do universo. E como certa vez Henri Nouwen ressaltou: "Uma das tarefas espirituais


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mais árduas está em abrir mão do controle e permitir que o Espírito de Deus conduza nossa vida".1 A pretensão, todavia, é uma perversão tão traiçoeira, que a confiança não é apenas contaminada por ela, mas corrompida. É com pretensão que atribuímos a Deus a tarefa de fazer por nós o que deveríamos estar fazendo. O padre Joe Martin, um dos zaddiqs (sábios anciãos) da comunidade dos Alcoólicos Anónimos, faz uso da seguinte ilustração: Imagine um homem que chegue e diga: "Padre Martin, quero ser um grande cirurgião cardíaco como o cr. Michael DeBakey. Eu acredito que todo o poder no céu e na terra pertence a Jesus. Então coloque suas mãos sobre minha cabeça e peça a ele que derrame sobre mim o conhecimento e a competência do dr. DeBakey. E assim poderei começar a praticar Medicina". O velho Joe pisca sem poder acreditar e diz: "Filho, vá para uma faculdade de Medicina e, depois que terminar sua residência, especialize-se em cirurgia coronariana. Então ingresse num hospital, trabalhe durante anos junto a um dos magos da cirurgia e, talvez, depois de trinta anos, você esteja entre os melhores". Do mesmo modo, diz o padre Martin, pense num cara que venha a mim e diga: "Padre, sou um alcoólico inveterado. Nos últimos vinte anos venho bebendo vodca, vinho e cerveja todos os dias. Venho lendo na Bíblia um monte de relatos de milagres e sei que Jesus é o senhor do impossível. Então ore impondo a mão sobre minha cabeça e diga a Jesus que me liberte dessa escravidão". E o padre Martin responde: "Tenho uma ideia melhor. Vá para os Alcoólicos Anónimos, compareça a noventa reuniões em noventa dias, encontre você mesmo 1

Here and Now, p. 54.


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um padrinho, cumpra diligentemente os doze passos debaixo da orientação dele e leia a Bíblia todos os dias. Trocando em miúdos, faça a lição de casa".2 A forma mais corriqueira de pretensão é a expectativa de que Deus vai intervir direta e secretamente nos assuntos humanos. Presumimos esse tipo de coisa quando dizemos: "Senhor, Senhor", o câncer ou a falência ou a infidelidade vão desaparecer. Presumimos que Deus responde a todas as orações garantindo finais felizes, que o alimento para órfãos e viúvas vai cair do céu, que o Santo dá plena garantia de que o bebé terá um parto seguro e que Deus com certeza vai vender nossa casa pelo preço que queremos, se colocarmos uma estátua de São José de cabeça para baixo no quintal de casa. Os argumentos teológicos que defendem a ideia de um Deus intervencionista são muitos e variados. Muitas vezes as pessoas relatam que experimentaram cura física ou interior. E é verdade. John Shea escreve: "Mas nada muda o fato histórico brutal — Jesus é pregado na cruz sem misericórdia e, apesar do ufanismo de Mateus, doze legiões de anjos não o salvaram daquela hora. Nenhuma teoria da redenção que afirme que Deus queria que isso acontecesse desse modo explica a morte do Filho de Deus, solitário e abandonado. Deste lado do túmulo, Jesus é deixado totalmente incapaz pelo Senhor do céu e da terra. Confiar em Deus não é pressupor que ele irá intervir".5 Quase sempre a confiança nasce no lado extremo do desespero. Quando se extinguem todos os recursos humanos e sufoca-se o anseio por garantias, quando perdemos o controle sobre as coisas e paramos de tentar manipular a Deus e 2

Chalk Talk, série de videoteipes que circularam durante muitos anos pela sociedade dos Alcoólicos Anónimos. 5 The Challenge of Jesus, p. 133-134-


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desmistificar oMistério, então—comofimdenossacapacidade — a confiança nasce dentro de nós e do coração surge um clamor incontaminado: "Aba, em tuas mãos entrego o meu espírito". Infelizmente, outra forma de confiança contaminada é a desonestidade com Jesus. Às vezes desconfiamos silenciosamente de que ele não pode dar conta de tudo o que vai em nossa mente e coração. Duvidamos de que ele possa aceitar nossos pensamentos cheios de ódio, nossas fantasias cruéis e nossas sonhos bizarros. Ficamos a nos perguntar como ele lidaria com nossos impulsos primitivos, nossas ilusões envaidecidas e nossos castelos mentais exóticos. A profunda resistência a nos tornar vulneráveis, a nos expor e a nos sentir totalmente desprotegidos é nossa forma implícita de dizer: "Jesus, confio em ti, mas há limites". Quando nos recusamos a compartilhar nossas fantasias, preocupações e alegrias, estabelecemos limites ao senhorio de Deus sobre nossa vida e deixamos claro que há partes de nós sobre as quais não queremos conversar com Deus. Parece que não era só isso que o Mestre tinha em mente quando disse: "... crede também em mim" (Jo 14:1b).


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NOVE

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N

uma linda manhã de outubro, dois seminaristas, Atti-la DeBattista e Osama OToole, resolveram que iam se ajudar mutuamente a desenvolver a virtude fundamental da humildade. Depois de confessarem seus sentimentos de superioridade espiritual em relação ao leigos, resolveram fazer um exercício diário de humilhação, algo brutal para superar o orgulho excessivo. — Bom dia, larva — rosnou Attila. — Oi, seu verme — devolveu Osama. — Sua mente é um esgoto. — Seu coração é uma fossa. — Seu egoísmo é obsceno. — Suas fantasias sexuais são tão imundas quanto você. — Você é um mentiroso impenitente cuja salvação está ameaçada. — Aqui no seminário todo mundo sabe que você é um fracasso. Esses cumprimentos brutais duraram dias a lio, até que finalmente os dois abandonaram o seminário e mergulharam numa vida de autodestruição inescrupulosa. Rangendo os dentes em face de suas faltas, tentaram evitar a vergonha pecando.


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Assolados pela culpa, refugiaram-se na bebida, em mulheres e fantasias. Afundados no ódio contra si mesmos, encontraram vã compensação na negligência e na devassidão. Quanto mais vergonha e culpa sepultamos dentro de nós mesmos, mais forçados nos sentimos a procurar alívio no pecado. Se nos fixamos em nossa motivação que se esgota, ou no esgoto de nossa consciência, nossa autoestima é massacrada e, num salto de lógica perniciosa, pensamos que finalmente estamos aprendendo a ser humildes. Pelo contrário, uma autoimagem empobrecida revela falta de humildade. Sentimentos de insegurança, incompetência, inferioridade e ódio contra nós mesmos fazem com que nossa atenção se concentre em nossa própria pessoa. Homens e mulheres humildes não têm uma imagem medíocre sobre si mesmos, pois raramente pensam em si mesmos. A essência da humildade reside numa atenção indivisível dirigida a Deus, numa presença contemplativa diante de cada pessoa que fala conosco e numa despersonalização de nossos planos, projetos, ambições e até de nossa alma. A humildade se manifesta na indiferença com nosso bem-estar intelectual, emocional e físico e na falta de preocupação com a imagem que apresentamos aos outros. Livres do pensamento de que precisamos parecer bons, podemos seguir em direção ao mistério de quem na verdade somos, conscientes da soberania de Deus e de nossa absoluta insuficiência, mas impulsionados por um espírito de autoacei-tação radical e sem nos preocupar com nós mesmos. As pessoas humildes não fingem, estão livres de sentimentos de superioridade espiritual e isentas da necessidade de serem associadas a pessoas importantes. A consciência do vazio espiritual não as deixa desconcertadas. Nem sensíveis demais às críticas, nem com o ego inflado pelos elogios, mas admitindo


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sua ruína, reconhecendo seus dons e recusando-se a levar a si mesmas a sério. Devo ficar deprimido com a gigantesca discrepância entre o que escrevo e o que vivo? Flagelar-me por ser um hipócrita que raramente pratica o que prega? Devo passar dias e semanas em autocensura por ter dificuldades de perdoar pequenos erros dos outros, ao passo que eu mesmo recebi gratuitamente o perdão de Jesus? Vai aqui uma ilustração: durante um retiro de fim de semana em Colorado Springs ao lado de dez amigos chegados, meu "impostor" — ou seja, o personificador, doente, ágil e sutil, do meu verdadeiro eu — foi impiedosamente exposto. Guiados pelo Espírito, meus irmãos me disseram que eu era insincero, teimoso e inclinado a mentiras, e que minha vontade própria corria solta na minha vida. Será que eu recebi essas críticas com boa vontade e gratidão? Não! Na mesma hora coloquei-me na defensiva; fechei-me em minha revolta contra aquilo e voltei para casa, onde meditei durante várias semanas. Um homem verdadeiramente humilde não tem medo de se expor. Eu tenho. Naquele retiro, meu sentimento incorrigível de importância pessoal refutou todos os desafios a minha integridade. Imaginando ser alguma coisa diante de Deus, descartei a censura dos meus amigos como se ela fosse irreal, vingativa e insensível. Dias depois, quando a luz de Cristo raiou no meio das minhas trevas, caí de joelhos e orei como o publicano no templo, pecador, porém sincero: "O Deus, sê propício a mim, pecador!" (Lc 18:13). A grande fraqueza na igreja como um todo, e certamente também na minha vida, está na recusa em aceitar nossa ruína. Nós a escondemos, afastamos, disfarçamos, douramos. Pegamos o estojo de maquilagem e nos produzimos para parecermos admiráveis ao público. Assim, apresentamos aos outros um eu espiritualmente íntegro, superficialmente feliz e com


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um verniz de bom humor autodepreciativo que passa por humildade. A ironia está no fato de que, embora eu não queira que ninguém saiba que sou crítico, preguiçoso, vulnerável, que estou perdido e com medo de não conseguir manter a aparência, é justamente a aparência do impostor que estou querendo preservar, não a minha! Se existe uma clara falta de poder e de sabedoria na igreja, ela surgiu porque não enfrentamos a grande deficiência de nossa vida: a ruína própria da condição humana. Sem esse reconhecimento, haverá pouco poder, pois Jesus disse ao apóstolo Paulo: "O poder se aperfeiçoa na fraqueza" (2Co 12:9). Antes de um retiro silencioso de cinco dias de duração em Grand Coteau, no estado da Louisiana, John Colette, meu di-retor espiritual durante esse período, recomendou-me que, nos momentos de oração, eu abrisse mão do sucesso em minha vida pessoal e profissional e me apresentasse de mãos vazias diante de Deus. Ele usou a analogia de um caranguejo que sai da concha, desprotegido e vulnerável aos predadores. Agitado, procura a vegetação mais alta, onde pode se isolar para formar uma nova concha. Ele disse: Brennan, você tem uma reputação internacional que pode estar interferindo em sua relação com Deus. Saia da concha das suas realizações. Deixe para lá suas várias identidades como autor, evangelista e líder espiritual admirado pelos amigos e respeitado por seu público leitor. Simplesmente se coloque diante de Deus, apoiando-se apenas e tão-somente na sua condição humana. Assim, o tempo gasto em oração tornou-se em morte para todas as realizações do passado e identidades que não estivessem fundamentadas na verdade. Logo descobri que, além da dependência do álcool, eu havia desenvolvido mais uma dependência: o ministério. A atenção e o reconhecimento advindos de minhas atividades como escritor, pregador, professor e conselheiro haviam se transformado na minha mais recente


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droga. Até o meu relacionamento com Deus repousava sobre minha identidade ministerial. A verdade é que eu havia substituído Deus pelo meu relacionamento com Deus. Em vez de adorar, louvar, agradecer e fascinar-me, eu havia passado a olhar para o relacionamento, e ali eu ficava diante de Deus, contando vantagens em meu esforço por impressioná-lo, de-batendo-me em minhas tentativas de melhorar a mim mesmo. Ao depositar minha confiança em meu currículo, eu sempre sentia necessidade de ler outro livro, escutar outra fita, fazer mais um retiro. Sempre que ouvia as palavras "bem-aventu-rados os humildes de espírito" (Mt 5:3), eu pensava: Que coisa, essa bênção era para publicanos e prostitutas que não tinham minha impecável folha de serviços prestados em prol do reino de Deus! O fariseu que reside dentro de mim estava obviamente vivo e em excelentes condições. Mecanismos de defesa são manobras úteis que distorcem nossa percepção do eu e nos protegem de rejeições, perdas e sofrimentos emocionais. No meio da cortina de fumaça da racionalização, da projeção e do isolamento, não descemos do carrossel da negação e da insinceridade. Incapazes de encarar nossa ruína, vestimos centenas de máscaras para disfarçar nossa face aterrorizada. O franciscano Richard Rohr escreve: Humildade e sinceridade são a mesma coisa. Uma pessoa humilde é simplesmente uma pessoa de extrema sinceridade para com a verdade como um todo. Você e eu chegamos neste mundo faz alguns anos e daqui a alguns anos não estaremos mais aqui. A única postura sincera diante da vida é a postura da humildade.1

1

Everythíng Belongs, p. 103.


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Os Alcoólicos Anónimos têm uma definição clássica de humildade: "sinceridade máxima, levada ao extremo". As pessoas humildes são pequenas aos próprios olhos, sinceras quanto às lutas que enfrentam e abertas à crítica construtiva. Seguem o conselho de Jesus e procuram os últimos lugares; não ficam chocadas nem ofendidas quando os outros as colocam ali. Confiam que são amadas, aceitas, perdoadas e redimidas do jeito que são. Conscientes de sua pobreza inata, lançam-se sobre a misericórdia de Deus numa entrega despreocupada. Jesus disse: 'Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração" (Mt 11:29). Em que consistia a humildade de Jesus? Baixa autoestima, sentimentos de indignidade, decepção com seu progresso espiritual? Isso seria um absurdo! Ele tinha prazer em seu Pai. Com extremo desprendimento, vivia para Deus. O tema central de sua vida era a intimidade, a confiança e o amor em relação a seu Aba. Ele vivia com segurança pela aceitação do Pai. E ele nos tranquiliza: "Como o Pai me amou, também eu vos amei" (Jo 15:9). A vida interior de Jesus estava centrada em Deus. Sua comunhão com Aba transformou sua visão da realidade, capacitando-o a ter percepção do amor divino para com pecadores e gente perversa. Jesus não viveu a partir de si mesmo nem para si mesmo, mas viveu pela graça do outro, que cuida de nós de modo incompreensível. Ele entendia o coração compassivo do Pai. Por que Jesus era atraído pelos que não tinham atrativos, por que ele desejava contato com pessoas indesejáveis e amava os que não eram dignos de amor pelos padrões humanos? Por que ele amava tanta gente fracassada, derrotada e indigna? Porque seu Pai também ama. "Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho


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Os Alcoólicos Anónimos têm uma definição clássica de humildade: "sinceridade máxima, levada ao extremo". As pessoas humildes são pequenas aos próprios olhos, sinceras quanto às lutas que enfrentam e abertas à crítica construtiva. Seguem o conselho de Jesus e procuram os últimos lugares; não ficam chocadas nem ofendidas quando os outros as colocam ali. Confiam que são amadas, aceitas, perdoadas e redimidas do jeito que são. Conscientes de sua pobreza inata, lançam-se sobre a misericórdia de Deus numa entrega despreocupada. Jesus disse: "Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração" (Mt 11:29). Em que consistia a humildade de Jesus? Baixa autoestima, sentimentos de indignidade, decepção com seu progresso espiritual? Isso seria um absurdo! Ele tinha prazer em seu Pai. Com extremo desprendimento, vivia para Deus. O tema central de sua vida era a intimidade, a confiança e o amor em relação a seu Aba. Ele vivia com segurança pela aceitação do Pai. E ele nos tranquiliza: "Como o Pai me amou, também eu vos amei" (Jo 15:9). A vida interior de Jesus estava centrada em Deus. Sua comunhão com Aba transformou sua visão da realidade, capacitando-o a ter percepção do amor divino para com pecadores e gente perversa. Jesus não viveu a partir de si mesmo nem para si mesmo, mas viveu pela graça do outro, que cuida de nós de modo incompreensível. Ele entendia o coração compassivo do Pai. Por que Jesus era atraído pelos que não tinham atrativos, por que ele desejava contato com pessoas indesejáveis e amava os que não eram dignos de amor pelos padrões humanos? Por que ele amava tanta gente fracassada, derrotada e indigna? Porque seu Pai também ama. "Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho


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também semelhantemente o faz" (Jo 5:19). Sua postura inabalável em relação ao Pai o livrava de olhar para si mesmo. Mergulhado em fascínio e gratidão, ele nos ensinou o verdadeiro sentido da humildade. Quando a pessoa humilde de coração segue Jesus, ela não perde tempo com introspecções, olhando para o próprio umbigo ou para o espelho, nem fica ansiosa por causa de seu crescimento espiritual. Sua autoaceitação sem se preocupar consigo mesma tem como âncora a aceitação de Jesus diante da luta que ela enfrenta para ser fiel. Ela concentra a atenção em Deus. Um franciscano já idoso compreendeu a natureza teocên-trica da verdadeira humildade e fez a seguinte recomendação: Se você sente o chamado do espírito, então seja santo de toda a sua alma, de todo o seu coração e com todas as suas forças. Se, porém, por causa da fraqueza humana, você não pode ser santo, então seja perfeito de toda a sua alma, de todo o seu coração e com todas as suas forças. Mas se você não consegue ser perfeito por causa da vaidade de sua vida, então seja bom de toda a sua alma. [...] Mas se você não pode ser bom por causa das armadilhas do maligno, então seja sábio de toda a sua alma. [...] Se, no final de tudo, você não puder ser santo, nem perfeito, nem bom, nem sábio por causa do peso dos seus pecados, então leve esse peso até Deus e entregue sua vida à misericórdia divina. Se você fizer isso sem amargura, com toda a humildade e com um espírito alegre por causa da ternura de um Deus que ama o pecador e o ingrato, daí começará a sentir o que é ser sábio, aprenderá o que é ser bom, desejará ser perfeito e, finalmente, ansiará ser santo.2

2

Citado por Peter van BREEMAN, Let Aíí God's Glory Through, p. 134.


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Firmado nas Escrituras hebraicas, Jesus identificou a tradição mística dos anauiin (remanescentes humildes que misturavam um senso de incapacidade pessoal com uma firme confiança no amor de Deus e uma plena submissão à orientação baseada em sua vontade) consigo mesmo ("sou manso e humilde de coração") e deu a essa tradição lugar de honra em sua pregação. Ele começa seu "discurso de posse", o Sermão do Monte, dizendo: "Bem-aventurados os que sabem que são pobres, pois deles é o reino dos céus" (Mt 5:3).3 E ele sempre voltava para esse tema: "Porque todo o que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado" (Lc 18:14); este é o caminho da humildade: "Porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela" (Mt 7:14). Uma leitura atenciosa da mensagem do evangelho dá a entender que Jesus não precisa de nada mais que nossa humildade e confiança para operar milagres em nós. Jesus achou tão irresistível a humildade da mulher cananeia, que não lhe pôde negar o que ela pedia: "Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos" (Mt 15:27). Vendo-a se humilhar desse jeito, Jesus a exaltou: "O mulher, grande é a tua fé. Faça-se contigo como queres" (15:28). Profundamente emocionado pela confiança humilde do ladrão da cruz — "Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino" (Lc 23:42) — Jesus cancelou a vida de pecados daquele homem e transmutou o maltrapilho, fazendo dele o primeiro santo canonizado. Nada de um milhão de anos no purgatório nem voltas em torno do lago de fogo — "... hoje estarás comigo no paraíso" (v. 43). 5

Tradução livre baseada na New English Bible, versão usada pelo autor. (N. do T.)


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Com as lembranças de sua tríplice negação gravadas em sua mente, Pedro escreveu do fundo do coração: "No trato de uns com os outros, cingi-vos todos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes concede a sua graça" (lPe5:5). O homem humilde se surpreende com as muitas coisas boas que vê a sua volta, em vez de se escandalizar com coisas que ele não pode julgar. A mulher humilde é grata por suas realizações, mas não se desanima por causa dos fracassos. Faz bom uso de seus dons e logo admite seus erros. Mantém-se de bom humor apesar da instabilidade da bolsa de valores e não se deixa abater por causa de seus defeitos de caráter. Sua confiança humilde no amor de Deus e sua fascinação diante da kabõd Javé formam uma barreira de espinhos que a impedem de ensimesmar-se e a libertam para voltar o olhar para os que estão a sua volta. Jesus comparou o reino de Deus à inexplicável colheita realizada por um homem que lança a semente na terra. Com esse simples ato, a parte do agricultor está feita. Ele hiberna no inverno, dorme tarde, vai praticar esportes, assiste à televisão, lava as roupas, conserta o buraco no telhado e viaja pelo país para visitar seus três filhos. Seja dia, seja noite, esteja o agricultor dormindo ou acordado, em casa ou viajando, a semente lançada germina e brota. Ele não tem a mínima ideia de como isso acontece. A terra faz tudo sem a sua ajuda. Primeiro o broto, depois a espiga, depois o grão cheio na espiga. Numa manhã ensolarada, ele está pronto para tomar seu farto café da manhã, vai até a porta, coça a cabeça olhando para as espigas maduras e faz a colheita (Mc 4:26-29). Com a confiança acontece a mesma coisa. Ao longo dos anos, ela se desenvolve e amadurece. Com base na sólida e


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irrefutável evidência da inabalável fidelidade de Deus, vai surgindo a certeza da credibilidade daquele que nos ama profundamente, e isso acontece sem o menor esforço de nossa parte. Depois que o agricultor semeia a terra, ele pode dormir tranquilamente, e a terra produz o fruto "de si mesma" — no texto grego, "automaticamente". O amadurecimento da confiança acontece do mesmo modo. Assim como a pessoa humilde acha fácil dizer "eu não sei", também o discípulo que confia humildemente, quando lhe pedem que explique a certeza que ele tem do amor de Deus, coça a cabeça e diz: "Não dá para explicar, porque eu simplesmente não sei a resposta". Quando o agricultor se levanta de manhã cedo, nada disposto a sair da cama, ele não está ansioso por ter perdido tempo dormindo; pelo contrário, ele está confiante de que a semente continuou a se desenvolver durante a noite. Do mesmo modo, a mulher espiritual não fica agitada nem irritada por causa de oportunidades perdidas, não se condena por não haver trabalhado o necessário, nem sofre um ataque de pânico, questionando se foi em vão que recebeu a graça. Ela descansa, confiante de que Deus está dia e noite trabalhando na sua vida. A semelhança do agricultor, ela não é totalmente passiva nem age com presunção. A mulher sabe que uma parte do trabalho depende dela e de mais ninguém, mas tem consciência de que o resultado está nas mãos de Deus, e que o fator decisivo é a graça imerecida. Assim, ela trabalha como se tudo dependesse de Deus e ora como se tudo dependesse dela. (Ela aprendeu com um monge trapista, Thomas Keating, que a única maneira de não ter sucesso na oração é não orando.) O discurso de despedida de Jesus no cenáculo, na véspera de sua morte, tem um significado especial no contexto da confiança. Durante três anos os apóstolos haviam se relacionado


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de perto com o Mestre. Haviam testemunhado a ressurreição de Lázaro e do filho da viúva de Naim; ouviram seus aforismas originais e as metáforas ricas e contundentes do camelo e do fundo da agulha; haviam sentido o sangue em suas pregações e o fogo que ardia nas bem-aventuranças; presenciaram o tumulto no meio do povo à medida que o grande rabino perambulava como evangelista itinerante pela Judeia e Galileia. Pedro o havia confessado como o Cristo. Pedro, Tiago e João testemunharam sua glória no monte Tabor. Tomé havia aprendido que ver Jesus era o mesmo que ver o Pai. Todos haviam aprendido que havia espaço reservado para eles nos aposentos da eternidade. Mesmo sendo briguentos e lentos para compreender as coisas, confiavam em Jesus e a ele entregaram a vida. O tempo passava como areia numa ampulheta, e Jesus levantou-se da mesa e proferiu suas últimas palavras aos seus amigos: "Eu lhes falei todas essas coisas para que, confiando em mim, vocês sejam inabaláveis e fiquem tranquilos, profundamente em paz. Neste mundo ímpio, vocês continuarão a passar por dificuldades. Mas confiem, pois eu venci o mundo" (Jol6:33).4 Será que o Cristo da história e o Cristo de nossa caminhada de fé nos proporcionam uma base para confiarmos com segurança? Será que exigimos mais sinais e maravilhas, coisas mais espetaculares (e que nos tiram do foco) do que ele fez pelos Onze quando, por meio do dom do Espírito, eles romperam de seu esconderijo com confiança e destemidamente proclamaram o Cristo ressurreto para a assembleia de judeus?

4

Tradução livre baseada nas versões escolhidas pelo auror, The Message e Douay-Rheims. (N. do T.)


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Aquilo foi de fato espetacular, mas, para mim, igualmente admirável é a graça constante que nos permite permanecer em fidelidade inabalável no meio de desgraças e desapontamentos e de lutas e mágoas da vida humana. Nosso caminho pontilhado pela graça incute uma confiança modesta que, embora venhamos a tropeçar e cair, faz com que continuemos a nos levantar, de modo que não estejamos entre as pessoas superficiais que rasgam a Bíblia junto com o primeiro sinal de problema, nem com as derrotadas, que, valorosas, lutam pela fé durante muito tempo, mas, no fim, dobram-se ao desespero; é a confiança que nos ergue, de modo que nos sejam dadas a graça para o próximo passo e a coragem para recebê-la. Num feliz reconhecimento de que todas as coisas se dão pela graça, oremos juntos: Aba, hoje submeto a ti rainha vontade e minha vida, sem reservas e confiando humildemente, pois tu és meu Pai amoroso. Liberta-me da falta de espontaneidade, da ansiedade por causa do futuro e da tirania da aprovação ou desaprovação dos outros, para que eu possa encontrar alegria e prazer única e exclusivamente em agradar a ti. Que a minha liberdade interior seja um sinal convincente de tua presença, tua paz, teu poder e teu amor. Que o teu plano para a minha vida e para a vida de todos os teus filhos se revelem pela graça um pouco a cada dia. Eu te amo de todo o coração e em ti deposito toda a minha confiança, pois tu és meu Aba.


CAPITULO

DEZ

O JARRO TRINCADO

U

m homem que transportava água na índia tinha dois grandes jarros. Ele carregava um em cada ponta de uma madeira apoiada sobre a nuca. Um dos jarros estava trincado, ao passo que o outro era perfeito. Este sempre chegava cheio de água ao fim da longa caminhada do riacho até a casa do patrão do carregador. O jarro trincado chegava com água só pela metade. Todos os dias, durante dois anos, o carregador chegava apenas com um jarro e meio de água. O jarro perfeito tinha orgulho de suas realizações, pois cumpria com excelência o propósito para o qual tinha sido feito. Mas o pobre jarro trincado tinha vergonha de sua imperfeição e sentia-se abatido por ser capaz de realizar apenas metade da tarefa para a qual tinha sido feito. Infeliz, depois de dois anos considerando isso um triste defeito, um dia o jarro falou ao carregador junto ao riacho: — Tenho vergonha de mim mesmo e quero pedir-lhe desculpas. — Por quê? De que você sente vergonha? — Durante os dois últimos anos tenho sido capaz de chegar com apenas metade da minha capacidade, porque essa trinca no meu lado faz que a água vaze por todo o caminho de volta


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à casa do seu patrão. Por causa dos meus defeitos, você tem de ter todo esse trabalho e não obtém o melhor resultado dos seus esforços. O carregador teve pena do velho jarro trincado e disse em sua compaixão: — Quando estivermos voltando, quero que você observe as lindas flores ao longo do caminho. De fato, ao subirem a colina, o jarro trincado observou as belas flores do campo que estavam ao lado da trilha, brilhando sob os raios de sol, e essa visão o animou um pouco. Mas no final da trilha, ele ainda se sentia mal por perder metade da água e, por isso, desculpou-se novamente com o homem. O carregador disse então ao jarro: — Você percebeu que havia flores somente do seu lado do caminho e não do lado do outro jarro? Eu sempre soube do seu defeito e o usei para algo bom. Joguei sementes de flores no seu lado do caminho, e todos os dias, enquanto fazíamos nosso percurso de volta do riacho, você as regava. Durante dois anos pude colher lindas flores para enfeitar a mesa do meu patrão. Se você não fosse do jeito que é, ele não teria essas lindas flores para alegrar a casa.1 Na ânsia por extrair uma lição de moral dessa história adorável, o artista do óbvio se apressará a nos dizer que todos nós somos jarros trincados e que devemos permitir que Jesus use nossos defeitos para embelezar a mesa do Pai. Essa lição de moral está muito batida e estraga a história. Colocando a figura do jarro trincado a serviço de sua didática, o moralista lança outro fardo sobre nós, dizendo, com efeito: "Aceite seu eu esquisito e deformado, seu burro estúpido!".

História com origem na índia, de autor desconhecido.


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Não há dúvida de que um código moral é indispensável para uma vida espiritual autêntica. Ficamos intelectual, estética e moralmente enfermos à medida que nos faltam raízes na realidade absoluta. Em nossa essência, somos seres transcendentes e, como tais, não podemos viver plenamente sem um compromisso sólido e seguro com valores, princípios morais e objetivos. O moralismo incessante e exclusivo, porém, reduz o evangelho a um monótono código de comportamento, a uma ética rígida ou a uma filosofia de vida baseada no altruísmo. Marta ilustra aquilo em que nos transformamos quando nos concentramos apenas nos princípios morais: Indo eles de caminho, entrou Jesus num povoado. E certa mulher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa. Tinha ela uma irmã, chamada Maria, e esta quedava-se assentada aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos. Marta agitava-se de um lado para outro, ocupada em muitos serviços. Então, se aproximou de Jesus e disse: Senhor, não te importas de que minha irmã tenha deixado que eu fique a servir sozinha? Ordena-lhe, pois, que venha ajudar-me. Respondeu-lhe o Senhor: Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada. (Lc 10:38-42) Muitos estudiosos bíblicos enxergam nessa passagem um contraste entre os méritos da vida contemplativa e os méritos da vida ativa. Ao juntar a história de Marta e Maria com a parábola do bom samaritano (que vem logo antes), Lucas — dizem-nos esses estudiosos — tem como objetivo estabelecer a primazia da vida de oração sobre a vida repleta de atividades, e ele faz isso ao mostrar Jesus criticando Marta.


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(É claro, o sentimento de culpa nos ameaçará de qualquer modo, se escolhermos o caminho de Marta e optarmos pelo urgente em detrimento do essencial.) Mas pense nesta possibilidade: admitindo que a eisegese2 é um terreno bem escorregadio, podemos declarar sem medo de errar que Jesus não é apenas o coração da mensagem do evangelho, mas o evangelho inteiro. Em suas narrativas, os quatro evangelistas nunca dirigem o foco para outra pessoa. Mulheres que estão à margem continuam à margem; homens que estão em segundo plano continuam em segundo plano. Ninguém mais ocupa o centro do palco. Vários indivíduos são introduzidos apenas para interrogar, responder ou reagir a Jesus. Ni-codemos, Pedro, Tomé, Marta, Maria, Caifás, Pilatos e várias outras pessoas ficam em segundo plano em relação a Jesus. Ele faz com que todos os outros diminuam. E é assim que deve ser, pois o evangelho é kairos, a hora da salvação. Essa é a interpretação teológica adequada do Novo Testamento e da soberania escatológica de Jesus Cristo. Marta e Maria, obviamente, não constituem o foco da narrativa de Lucas. Assim, o que a passagem nos diz sobre Jesusl Ele está a caminho de Jerusalém, consciente da recepção hostil que o aguarda. Interrompe sua viagem e faz uma parada no povoado de Betânia. Exausto pela agitação do ministério, pesaroso com a intriga dos fariseus e com a mesquinhez dos apóstolos, ansiando por companhia feminina, ele vai ao encontro de duas 2

Eisegese é o ato de impor ao texto bíblico um sentido que ele não tem, dependendo do gosto ou das ideias do indivíduo. Entre os exemplos de eisegese de hoje encontram-se aberrações como a ingénua tentativa de fazer com que símbolos do livro de Apocalipse correspondam a fatos históricos atuais, a fim de profetizar a iminência do fim do mundo. Exegese, porém, é o ato de extrair do próprio texto a explicação ou interpretação crítica.


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queridas amigas. Percebendo sua necessidade, Maria permite que Jesus desabafe e, arrebatada, concede-lhe total atenção e afeição. Marta, que está com fome, pensa que seu hóspede está mais interessado em comer do que conversar e se entrega ao ministério da hospitalidade. Ela acha que sua irmã desligada deve cair na real e pede a Jesus que a faça mudar de atitude. Esta é a essência da resposta de Jesus: "Calma, Marta. Podemos comer esse peixe frito mais tarde. Estou esgotado, sozinho, me sentindo vazio e assustado. Estou a caminho da cidade santa e, como você sabe, um profeta deve morrer em Jerusalém. Coloque a frigideira de lado, venha para cá, sente-se ao lado de sua irmã e segure minha mão. Estou precisando de você. Maria percebeu direitinho a minha situação. Ela sabe que sou plenamente humano, tenho um coração sensível e anseio ser tratado como um homem que é humano". E ele poderia acrescentar as seguintes palavras, para o nosso benefício: "Estou orando e fazendo uso das passagens bíblicas, não se contente com as palavras escritas nas páginas, mas dirija-se por elas a minha presença e, junto com Maria, aquiete-se, preste atenção, escute". O carregador de água deixou o jarro trincado atónito ao dizer: "Se você não fosse do jeito que é, meu patrão não teria essas lindas flores para alegrar sua casa". O jarro estava partindo da premissa de que o propósito único de sua existência era transportar água do riacho para a casa. Preso a sua estreita autodeterminação, o jarro com defeito não havia percebido o propósito maior de Deus para ele: fazer germinar as sementes de flores que haviam sido lançadas ao longo do caminho. Por acaso essa visão limitada não ilustra nossa própria situação? Fazemos planos para cumprir o que achamos ser o propósito


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de nossa vida (inevitavelmente limitado), e quando a locomotiva de nossos anseios sai dos trilhos, consideramo-nos um fracasso. Aqui vai um exemplo: aluguei um escritório aqui em Nova Orleans. Por quê? O objetivo era muito claro, ou seja, ficar sozinho e longe de interrupções para poder escrever um livro. Durante três meses me vi incapacitado pela falta de ideias. A cada dia a pressão interna aumentava, e a tensão ia se acumulando. Sentindo-me frustrado, certo dia fui dar uma volta dentro do condomínio. Johnny, um senhor de oitenta anos, impossibilitado de dirigir e mal conseguindo andar, me chamou: — Oi, filho, você me faria um favor? — Que favor? — Você iria ao mercado para mim? E assim começou um ritual que acontecia duas vezes por semana. Eu ia ao mercado para comprar os produtos de sua alimentação: salsichas, pão, refrigerante e uma torta de limão ou chocolate. Certo dia, enquanto eu orava, o Espírito Santo me sussurrou: A função desse escritório é permitir que você cumpra o propósito de sua vida: gastar tempo orando, amando a Deus de todo o seu coração, de toda a sua mente e com todas as suas forças, e ir ao mercado para o Johnny. O livro é um brinde. Então me vieram à mente as palavras de Meister Eckhart, que insistia em dizer que o objetivo da vida espiritual é compaixão. Se você se achasse num êxtase tão profundo como aquele de Paulo e houvesse um homem doente precisando de um prato de sopa, seria melhor você sair do êxtase e, por amor, ir buscar o prato de sopa. Nosso desencanto nasce do fato de que pressupomos saber as consequências de atos específicos que praticamos. O jarro


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trincado não tinha a menor ideia de seu propósito de produzir vida. Nós, pregadores, muitas vezes nos desanimamos quando "nossas palavras de maior impacto não dão em nada", conforme observa Simon Tugwell, "e nossos pensamentos mais improvisados e imaturos acabam produzindo fruto. A vida de algumas pessoas é transformada por palavras casuais que elas não ouviram bem ou não entenderam direito".3 O décimo primeiro passo do programa dos Alcoólicos Anónimos diz: "Procurei melhorar meu contato consciente com Deus mediante oração e meditação, buscando apenas o conhecimento da vontade dele para nós e as forças para executá-la". Depois de fazer uma explanação desse passo de uma forma que considerei espetacular — uma interpretação cheia de profundas ideias teológicas, espirituais e psicológicas, introduzi uma ilustração água com açúcar: Um monge estava sendo perseguido por um tigre feroz. Correndo o máximo que conseguia, chegou à beira de um precipício. E notou que havia uma corda pendurada que descia pelo despenhadeiro. Então segurou-se nela e foi descendo pela encosta. Ao olhar para baixo, viu uma enorme rocha pontiaguda a menos de duzentos metros dele. Então o monge olhou para cima, e lá estava o tigre parado bem na beirada. Naquele exaro momento, dois camundongos começaram a roer a corda. O que fazer/ O monge olhou para a encosta do precipício e viu uns morangos que haviam crescido ali. Esticando o braço, colheu-os e, enquanto os comia, murmurava: "Nossa! São os melhores morangos que já comi na vida". Se ele tivesse ficado preocupado com a rocha abaixo dele (o futuro), ou com o tigre lá em cima (o passado), teria perdido os morangos que aparecem apenas no presente. The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition, p. 38.


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Mais tarde, uma senhora que estava na reunião aproximou-se de mim e disse: "Eu adorei sua história dos morangos". Engoli em seco. Concordamos silenciosamente que um modesto morango tinha obtido mais resultados que toda aquela minha baboseira cheia de pompa e de suposto "impacto". Conforme observa Tugwell, às vezes nossas intenções conscientes fazem pouco mais do que distrair a plateia nos intervalos do drama da nossa vida. Pense no terapeuta que dá conselhos de "impacto" em relação a um problema que o cliente nem mesmo tem. O cliente conclui então que o terapeuta é um sujeito que vive no mundo da lua e, pela providência de Deus, encontra um terapeuta que realmente tem condições de ajudar. Ou pense num homem indignado por causa de um homicídio em seu bairro que procura orientação do seu pastor. O sábio conselho do pastor enfurece o homem de tal forma, que ele passa a entender como é a obsessão por matar e chega a uma conciliação. Assim como o jarro trincado, não temos consciência das intenções divinas em muita coisa que fazemos. Submetendo-nos ao Mistério, caminhamos sem medo, sabedores de que o futuro do planeta provavelmente não depende do que vamos fazer daqui a cinco minutos. O jarro trincado estava triste porque havia se comparado com o jarro perfeito. Sem a comparação, ele seria feliz e estaria satisfeito em saber que era exatamente como devia ser. Uma mulher obesa será feliz enquanto não se comparar com Naomi Campbell. Um escritor iniciante sente-se em paz até que se compara com William Faulkner. Um jogador de futebol se sente satisfeito até que se compara com Pele. Estou bem comigo mesmo até que me comparo com Madre Teresa. Israel Schwartz sentia-se triste por não ser como Moisés. Certa noite, apareceu-lhe um anjo e disse: "No dia do juízo


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final, Javé não vai lhe perguntar por que você não foi Moisés; ele vai perguntar por que você não foi seu amado Izzy". Desde pequenos somos ensinados a nos comparar com os outros em termos de inteligência, talento, carisma e aparência física. Crianças aparecem em comerciais da televisão, es-petáculos artísticos são produzidos para crianças com seis anos de idade, aplicam-se testes de inteligência nos primeiros anos de escola, e as crianças são submetidas a comparações também nos esportes. Vestibulares, posição social e sucesso financeiro — ao lado de competições e rivalidades em todas as áreas da vida — obrigam-nos a medir nosso valor, para o bem ou para o mal, segundo critérios que não existem na mente de Deus. Não é permitido o menor erro que seja, pois isso já conduz a um sentimento mortal de inferioridade. Se eu não consigo escrever com a beleza, o encanto e a competência de um Philip Yancey, concluo desesperado que meu destino é escrever textos de quinta categoria. Todas as tentativas de medir o valor de nossa vida por meio de comparações com os outros depreciam os nosssos dons e desonram a Deus por causa de nossa ingratidão. È como um velho pregador negro disse a um viajante numa das estradas poeirentas no estado da Geórgia: "Seja quem você é, porque se você não for quem você é, você será quem você não é". Antes da revelação feita pelo carregador de água, o jarro trincado estava em maus lençóis. Perseguido pela falta de autoaceitação e submetendo-se à preocupação consigo mesmo, o jarro se sentia atormentado por sua incompetência. E a mesma coisa acontece conosco. O estresse autoinduzido pela falta de espontaneidade leva-nos à depressão e ao desespero. Ficamos indignados quando um fã emocionalmente desequilibrado persegue um artista da TV como David Letterman


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até sua casa em Greenwich, estado de Connecticut. Mas acariciamos e tratamos com todas as honras o hábito que temos de nos ensimesmar, hábito que nos persegue dia e noite e aparece até em nossos sonhos. O tratamento cordial estendido à nossa falta de espontaneidade e preocupação com o que os outros vão pensar traz sobre nós maldição e não bênção. O narcisismo fica senhor da situação, e "o ego toma o lugar da naturalidade própria resultante do fascínio e do sentimento de gratidão".4 O que Sebastian Moore chama de "inevitável narcisismo da autopercepção" desperta não apenas o fascínio com o eu, mas um sentimento de pavor: abaixo do nosso arrogante (ou modesto) senso do eu oculta-se o medo de que não tenhamos vida interior alguma. As possibilidades otimistas ou pessimistas para a vida mascaram uma suspeita íntima de que nosso relacionamento com Deus é fictício e que estamos apenas repetindo palavras e sentimentos de outras pessoas sem que tenhamos alguma certeza íntima. Nosso coração é invadido por um terrível sentimento de vazio, e em cada rota de fuga aparece uma placa em que lemos SEM SAÍDA. A falta de espontaneidade lançou as sementes do ódio que dirigimos a nós mesmos. Como na história do jarro trincado, vivemos sentindo a necessidade de pedir desculpas aos carregadores de água que passam pela nossa vida. Merton, que lutava com uma autoestima reduzida, achava que a única saída para a falta de espontaneidade está na "inocência da presença pura no momento presente".5 Não importa se estamos saboreando um sorvete delicioso, escutando uma sinfonia de Mozart, sentindo o aroma de uma

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Suzanne ZUERCHER, Merton: An Enneagram Profile, p. 92. Ibid.


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rosa, fascinados com uma teia de aranha, tocando a pele macia de um bebé, prestando atenção àquilo que uma pessoa nos diz, ou conscientemente "perdendo" tempo em oração, podemos encontrar alívio e libertação imediata do Perseguidor se olharmos e vivermos o agora. Verdade seja dita, o que existe é só o agora. Imagino que as famosas palavras de Thoreau, "não quero morrer sem ter vivido", nasceram da consciência de que, ao nos ensimesmar e nos preocupar com o passado ou o futuro, estamos negligenciando o presente e deixando de viver (o próximo capítulo tratará mais desse assunto). Então, aonde nos levam as difíceis reflexões deste capítulo? De que tema elas tratam? Estamos falando disto: confie em você como alguém que recebeu de Deus tudo o que precisa para viver a vida em sua plenitude. Apesar de nossas trincas físicas, limitações intelectuais, mazelas emocionais e fissuras espirituais, a providência divina nos preparou para cumprirmos o propósito singular de nossa existência. Fazendo uso de seu modesto talento, o monge acrobata proporcionou prazer a Deus, mais do que toda a comunidade de monges com mais talentos — "... os últimos serão primeiros" (Mt 20:16). O fato de que o ponto fraco do jarro transformou-se em seu ponto forte sublinha o pensamento de Agostinho: "Todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus, até mesmo os nossos pecados".6 Esta é uma das principais promessas feitas pelos alcoólicos em recuperação com a ajuda dos Alcoólicos Anónimos: "Não importa o ponto a que tenhamos chegado, procuraremos saber como nossa experiência pode beneficiar as outras pessoas". De outra perspectiva, Robert Johnson conta a respeito de uma visão em que sua alma estava sendo julgada: 6

The Confessions of St. Augustine, p. 212.


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Um promotor apresentou todos os pecados de comissão e de omissão pelos quais eu havia sido responsável na vida, e a lista era realmente grande. Aquilo tudo levou horas e caiu sobre mim como uma avalanche. Eu estava me sentindo cada vez pior, tanto que comecei a sentir o calor debaixo da sola dos pés. Depois de horas de acusação da promotoria, surgiu um grupo de anjos para fazer a minha defesa. E eles disseram apenas uma coisa: "Mas ele amou". E começaram a repetir isso em coro: "Mas ele amou. Mas ele amou. Mas ele amou". E assim foi até o raiar do dia; no final, os anjos venceram, e eu estava salvo.7 A Palavra declara que o amor cobre multidão de pecados. Por falar num pecador de mão cheia, Jesus diz a Simão, o fariseu: "Perdoados lhes são os seus muitos pecados, porque ela muito amou" (Lc 7:47). Confie em Jesus, confie no amor que você tem no coração, confie na Palavra que você acabou de ler. Com todas as suas trincas e fissuras, você é capaz de coisas grandiosas no novo Israel de Deus. Entretanto, ao ouvir com fidelidade a Palavra de Deus, muitas vezes negligenciamos sua principal palavra para nós — a dádiva de nós para nós mesmos: nossa existência, nosso temperamento, nossa história pessoal, nossa singularidade, nossos defeitos e imperfeições, nossa identidade. Nossa própria existência é uma das maneiras únicas que Deus escolheu para se expressar no tempo e no espaço. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus e, por isso, você e eu somos mais uma promessa que ele fez ao universo de que continuaria a amá-lo e a cuidar dele. Mas, ainda que aceitemos o fato de que somos uma palavra proferida por Deus, podemos não entender o que ele está ten-

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JOHNSON e RUHL, Balancing Heaven and Earth, p. 173-174.


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tando dizer por nosso intermédio. Merton escreve em Seeds of Contemplation [Sementes da contemplação]: Deus me pronuncia como uma palavra sua que contém um pensamento parcial. Uma palavra nunca conseguirá compreender a voz que a profere. Mas se eu for fiel ao conceito que Deus pronuncia em mim, e se for fiel ao pensamento dele que devo incorporar, serei pleno de sua realidade e o encontrarei em qualquer lugar em mim, e não me acharei em lugar algum. Nele eu me perderei. Com paciência perseverante esperamos que Deus deixe claro o que ele quer dizer por nosso intermédio. Essa espera exige não apenas atenção, mas a coragem de permitir que ele nos pronuncie. É uma coragem que nasce de uma confiança inabalável na sabedoria de Deus, que não pronuncia palavras falsas. Desde 1984, conheço Bob Krulish, ex-jogador profissional de basquete. Alguns anos depois de nosso primeiro contato, conheci seu filho Daniel, portador de várias deficiências congénitas. Ele enfrentava cirurgias e terapias sem se queixar. Um dia lhe perguntaram: "Dan, se você pudesse ser outra pessoa, quem gostaria de ser?". Ele não vacilou para responder: "Ninguém. Gosto de mim do jeito que eu sou". No dia 28 de dezembro de 1997, aos 23 anos de idade, Daniel morreu na cidade de Denver, vítima de um incêndio provocado por uma árvore de Natal que pegou fogo e fechou a única saída de seu apartamento. Como é glorioso o esplendor de um coração humano que sabe que é amado! Dan Krulish encantou o coração de Deus. Ele foi a mistura do jarro trincado com o monge acrobata.


CAPÍTULO

ONZE.

A GEOGRAFIA DO AQUI E AGORA

N

o meio da beleza estonteante de County Kerry no sudoeste da Irlanda, Fionn MacCumhaill pergunta aos seus seguidores: — Qual a música mais linda do mundo? E, alegre, seu filho exclama: — O cuco que canta da árvore mais alta de todas. — É um som bonito — disse Fion. Então perguntou: — Oscar, em sua opinião, qual a música mais linda do mundo? — O máximo da música é a vibração da lança contra o escudo — exclamou o robusto garoto. — É um belo som — disse Fionn. E os outros caçadores falaram do que lhes dava prazer: a música produzida por um cervo atravessando a água, a melodia produzida pelo uivo de lobos a distância, a música de uma cotovia, o riso feliz de uma menina, ou o sussurro da pessoa amada. — São todos belos sons — disse Fionn. — Chefe, qual a sua opinião? — aventurou-se um deles. — A música do que está acontecendo — disse o grande Fionn — essa é a música mais linda do mundo.' 1

John J. 0'RiORDAN, The Musíc ofWhat Happens, p. 109-110.


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A música do que está acontecendo pode ser ouvida apenas no momento presente, aqui e agora. Estar presente de corpo e alma com quem ou com o que está bem a nossa frente é montar uma tenda no deserto do aqui e agora. É um ato de confiança radical — saber que Deus não pode ser encontrado em outro lugar nem em outra hora, mas no momento presente. Estar presente de corpo e alma para o agora talvez seja a principal competência da vida espiritual. O que acontece muitas vezes é que não ouço a música do que está acontecendo agora porque meus pensamentos ficam de um lado para o outro entre o passado e o futuro. Hoje de manhã, por exemplo, enquanto eu orava, a lembrança de uma animadora conversa que tive ontem pelo telefone com um amigo e a expectativa de uma palestra amanhã no seminário batista de Nova Orleans sequestraram minha atenção que deveria estar voltada para Deus. Recitei algumas orações de forma mecânica, mas minha mente e meu coração estavam em outro lugar. Eu era como o rei Claudius de Hamlet: "Minhas palavras saem voando, meus pensamentos aqui hão de ficar; palavras sem pensamentos nunca ao céu hão de chegar". Há um comentário de Henry D. Thoreau muitas vezes citado, que provavelmente teve origem na consciência de que as preocupações com o ontem e o amanhã em detrimento do aqui e agora são a mesma coisa que deixar de viver: "Fui para o meio do mato, pois desejava viver espontaneamente, ficar de frente apenas com os fatos essenciais da vida e verificar se eu podia aprender o que tinha de ensinar e para que, quando eu morresse, não descobrisse que não tinha vivido".2 Quando minha mente está revivendo glórias e derrotas do passado 2

Walden, p. xi.


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ou imaginando o amanhã desconhecido, o som da música do que está acontecendo não pode ser ouvido. Se fico agitado, pensando num futuro que pode ser medonho, minha agitação impede toda e qualquer consciência do momento que estou vivendo. Minha sogra contou-me uma vez a história de um cajun3 que estava trabalhando com uma enxada em sua horta. Um homem correu até ele, gritando: "Richard, Richard, rápido! Sua casa está pegando fogo!". O cajun largou a enxada e saiu em disparada pelo caminho, apavorado com o que o esperava. Então, de repente, parou, freou os pensamentos e exclamou: "Mas por que estou preocupado? Meu nome não é Richard e eu nem tenho uma casa!" Ligar-se no momento presente debaixo de estresse indica um inabalável senso de que temos o controle sobre nós e sobre a situação. Conforme observa John Shea, é uma das melhores maneiras de percebermos que os terrores do futuro desconhecido nascem e são nutridos apenas em nossos pensamentos.4 Mas algumas pessoas haverão de protestar: "Estou plenamente comprometido com o aqui e agora, mas ele é vazio, vago, apagado. Não há música alguma. Estou cansado disso. O aqui e agora não está com essa bola toda. Resposta: Meu senhor, minha senhora, você não está comprometido! Se estivesse, não teria a sensação de monotonia. A doença constritora da falta de espontaneidade roubou-lhe a atenção que deveria estar dirigida ao que é, ao que acontece. Espontaneidade, ou seja, deixarmos de olhar para nós mesmos e para o que os outros pensam, é um pré-requisito para a verdadeira existência no agora. É como 3

Cajun é um termo que se refere a um grupo de pessoas do sul dos Estados Unidos descendentes de colonizadores franceses. (N. do T.) 4 Starlight, p. 117.


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Thomas Merton um dia observou: "Tenho a honra de sentir uma pequena mariposa pousada em minha mão com suas asas douradas, e ela fica comigo com sua delicada perfeição até que eu a mando embora com um sopro". Uma verdadeira sinfonia numa pequena mariposa. Será que essa presença no presente é algo que se reserva apenas a monges e místicos? Absolutamente, não. Marv Levy, ex-técnico do time de futebol americano Buffalo BiUs, estava em campo no Cleveland Stadium para uma partida contra os Browns que seria televisionada para o país inteiro numa noite de segunda-feira. Ele havia acabado de receber o diagnóstico de câncer de próstata e decidiu não dizer nada aos jogadores, para que eles não se desconcentrassem do combate que os aguardava. Naquela noite, num dado momento, Levy virou-se para seu auxiliar e disse: "Olhe para tudo isso, John. Que lugar incrível! Babe Ruth e Jimmie Foxx fizeram aqui suas maravilhosas jogadas no beisebol. Pense só nos jogadores de futebol americano que passaram por aqui — Jim Brown e Otto Graham. Isso não é espetacular? Ou seja, há algum outro lugar no mundo onde você gostaria de estar agora?"5 Certa vez perguntaram a John Frankenheimer, diretor de cinema de Hollywood, se ele ficava nervoso antes de rodar um filme de oitenta milhões de dólares com megaestrelas. Ele disse: "Para mim, como ser humano e diretor de cinema, a coisa mais importante é dar atenção total ao presente. Não há nada que eu possa fazer quanto ao passado. O futuro é medonho, pois, como já sabemos, nada disso aqui acaba bem. Então temos de ficar bem aqui, exatamente agora".6 5 6

Sports íllustrated, 27 de nov. de 1995, p. 41. Newsweek, 27 de abr. de 1998, p. 60.


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Permanecer com obstinação no aqui e agora, rejeitando a agitação que nos força a seguir em frente, silenciando as vozes que nos atraem para o amanhã e espantando a sugestão demoníaca: "Mexa-se — Jesus está voltando", é um ato de confiança inabalável na presença de Deus, que habita apenas na imediação irredutível do que Martin Buber chamou o "concreto vivido". Sue Monk Kidd cita sua mentora Beatrice Bruteau: "Seja aquilo que você estiver fazendo no momento presente. Se estiver arando, faça isso em sua plenitude, com a mente e de todo coração — em outras palavras, 'are como se isso fosse você'". E Kidd acrescenta: "Certa vez ouvi uma história da tradição has-sídica a respeito de um mestre conhecido por ter levado uma vida de plenitude singular. Depois de sua morte, perguntaram a um de seus alunos: 'Qual era a coisa mais importante para o seu mestre?' O aluno respondeu: 'Qualquer coisa que ele estivesse fazendo no momento'".' O que existe é somente o agora. Por isso, Jesus recomenda: "Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir" (Mt 6:25; grifos do autor). Em vez disso, Jesus recomenda: "Observai as aves do céu" (v. 26). Depois de nos instruir para que não nos preocupássemos com o que pode ou não acontecer amanhã, ele acrescenta uma pitada de humor negro: "Basta ao dia o seu próprio mal" (v. 34). Um dos benefícios de viver aqui e agora é a libertação de uma existência preocupada com nossa condição espiritual. Viver aqui e agora nos livra das autoanálises infindáveis e inúteis. Além disso, na falta da auto-observação, a culpa e a vergonha desaparecem num passe de mágica. Longe da esfera de nossos 7

Sue Monk KIDD, When the Heart Waits, p. 193-194.


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sentimentos, pensamentos e nossas análises, temos liberdade para ouvir a música do que está acontecendo. Se nos perdemos no aqui e agora, acabamos nos achando na infinitude do agora eterno. Muitas vezes me pego insatisfeito com a vida no aqui e agora. Reagindo ao momento de acordo com a classificação Myers-Briggs do meu tipo (introvertido, intuitivo, sentimental, perceptivo) e segundo meu Eneagrama tipo quatro,8 desprezo a mariposa de asas douradas como se ela fosse insignificante e vou em busca de emoção e romantismo em todas as experiências. Preferindo agonia ou êxtase em vez do comum e corriqueiros, tento incrementar cada momento com significados espalhafatosos. Sabendo de minha tendência louca de trabalhar todas as situações para transformá-las num diamante, meus amigos me lembram que nem todo dia é dia de grandes realizações. No evangelho de Lucas temos o relato de Jesus ouvindo uma linda melodia no único lugar onde ela verdadeiramente acontece: aqui e agora. "Estando Jesus a observar, viu os ricos lançarem suas ofertas no gazofilácio. Viu também certa viúva pobre lançar ali duas pequenas moedas" (21:1-2, grifos do autor). A música produzida pela modesta contribuição da viúva penetrou a alma de Jesus. O momento presente não era uma fenda estreita entre o ontem, que havia trazido o confronto com os principais sacerdotes e escribas acerca do tributo devido a César, e o amanhã, que viria com a traição de Judas e a festa da Páscoa. A expressão "estando Jesus a observar" joga luz sobre a pessoa de Cristo, ressaltando sua plena atenção ao momento presente, sua vigilância, consciência, sensibilidade, percepção e uma franca estima por 8

Tipo psicológico romântico, esteta e individualista. (N. do T.)


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uma mulher idosa e discreta que havia contribuído com duas moedinhas e ido logo embora. Ele ficou profundamente tocado por aquela maltrapilha. Como o cenário não era fora do comum, eu teria dado as costas, achando que tinha visto uma mendiga e não havia mais nada para ver. Digressão. É claro que, através dos tempos, os pregadores fatalistas têm desprezado Jesus e manipulado essa história com a competência de um produtor de Hollywood, de tal modo que nos sentimos envergonhados por causa de nossos dízimos ma' gros, atormentamo-nos com nossa infernal relutância em ofertar e voltamos para casa cheios de culpa, convencidos de que somos o suprassumo da avareza. Mais uma vez, percebemos como o moralismo incessante obscurece Jesus e transforma as boas notícias em más notícias. Pregadores petulantes nos inspiram a sermos incrivelmente rigorosos com nós mesmos. Não faríamos o que fazemos conosco nem a um cachorro. E como observa Gerald May: As pessoas mais religiosas têm tanto medo de parecer egoístas, que se submetem a crueldades internas inomináveis. E as que são mais egoístas se enchem de veneno e se submetem a punições com poder de autodestruição. Algumas são mais maldosas que outras, mas ainda não encontrei uma só pessoa na cultura ocidental de hoje que de alguma forma não tenha imposto a si mesma um alto nível de crueldade.9 A questão das ofertas deve ser tratada diretamente com Jesus, não com algum pregador covarde. Fim da digressão. A certeza inabalável de que o momento presente não é só um caminho, mas o caminho que leva à comunhão com Deus Simply Sane, p. 164.


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influenciou de tal modo a irmã Noel Toomey, minha diretora espiritual, que ela me disse uma vez, com todas as letras, que minha conversão iria dar em nada se eu deixasse de buscar a Deus aqui e agora. E lógico que uma presença ininterrupta e inflexível a cada momento é algo física e psicologicamente impossível. De fato, não é nem aconselhável que seja assim. Ninguém prepararia o jantar, os aniversários não seriam comemorados, os ingressos para o jogo de beisebol não seriam comprados, lavadoras e secadoras não seriam consertadas, notas escolares não seriam aplicadas, não se fariam declarações do imposto de renda e agentes do trânsito não aplicariam multas — e você não saberia nem a diferença entre esquerda e direita. Uma previsão ponderada de compromissos e obrigações do futuro é um comportamento responsável, contanto que não seja uma fuga compulsiva do aqui e agora. É através da imersão nas coisas corriqueiras — as experiências aparentemente vazias, triviais e sem significado de um dia de rotina — que a vida/Vida pode ser encontrada e vivida. Viver de verdade não tem nada a ver com palavras, conceitos e abstrações, mas com a experiência do que ou de quem está logo diante de nós. Essa experiência exige que não sejamos ensimesmados, pois nisso reside a essência da simplicidade contemplativa. Em seu livro The Miracle of Mindfulness [O milagre da diligência] , o monge budista de nacionalidade vietnamita Thich Nhat Hanh recorda a visita de um líder cristão chamado Jim Forest. Depois de jantarem juntos, Nhat Hanh preparava-se para lavar a louça antes de servir o chá e a sobremesa, conforme seu costume.


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Então terminaram de jantar, e Nhat Hanh disse que iria lavar a louça antes de trazer o chá. Jim se ofereceu para lavar a louça, enquanto Nhat Hanh preparava o chá; mas Nhat Hanh disse: "Eu não acho que você saiba lavar a louça". Jim riu e disse: "È claro que sei. Faço isso desde que me entendo por gente". Mas o monge respondeu: "Não; você estaria lavando a louça para poder passar para o chá e a sobremesa. Não é assim que se lava a louça. Para lavar a louça você precisa lavar a louça".10 Lavar a louça não é um interlúdio sem significado que antecede a torta de banana. Antes, na melhor das hipóteses — se feito com a mente alerta e atenta para o ato de lavar — é um excelente preparo para a oração. Enquanto escrevo estas páginas, é véspera do Dia de Ação de Graças. Voltei agora há pouco de uma caminhada de cinco quilómetros em ritmo acelerado. Esta tarde, enquanto eu caminhava, em nenhum instante tive a consciência de que estava caminhando. Imagens do peru assado, do puré com alho, da sobremesa e de outras iguarias passavam diante dos meus olhos. A totalidade do meu ser estava presente no dia seguinte. Certa vez, o mestre disse ao seu aluno: — Quando você andar, ande; quando você comer, coma. O aluno respondeu: — Mas todo mundo não faz assim? E o mestre disse: — Não. Ao caminhar, muitas pessoas estão interessadas apenas em chegar ao destino. Não estão vivenciando a cami nhada de verdade. Nem percebem que estão andando. Ao comer, muita gente está mais preocupada em planejar o que farão depois que acabarem de comer. Essa desatenção com o 10

Citado por William H. SHANNON, Silence on Fire, p. 74-


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que estão fazendo significa que as pessoas dificilmente se referem ao que estão comendo ou ao fato de estarem comendo. Com certeza, não estão se alegrando com o ato de comer. Lavar a louça com atenção tem tudo a ver com oração, e o mesmo acontece com a alegria de comer — ou com escrever um memorando, ou aparar a grama, ou ajudar os filhos com a lição de casa. "Orai sem cessar", nos diz a Bíblia, e "em tudo, dai graças" (lTs 5:17-18). E o que devemos agradecer? O peru assado de amanhã? Não, mas o sacramento do momento presente, o qual, segundo escreveu Jean-Pierre de Caussade, "está sempre a transbordar com riquezas incalculáveis, muito mais do que conseguimos possuir".11 Viver no momento presente requer que acreditemos profundamente que a vida abundante prometida por Jesus pode ser vivida apenas aqui e agora. A compaixão é o mais fascinante e delicioso fruto da atenção dispensada ao aqui e agora. Olhar sem pressa para uma flor, contemplar uma criancinha que dorme, fazer companhia sem críticas para uma pessoa que amamos e que está sofrendo são atos que, como num passe de mágica, despertam sentimentos marcados por gentileza para com os outros e para conosco. Por meio de um longo e carinhoso olhar dirigido ao real/Real, co-locamo-nos, sem nenhum esforço consciente de nossa parte, na presença do Compassivo. A misericórdia criativa de Deus (o Espírito Santo) reverbera dentro de nós, e na inocência da presença pura nossa autoimagem subestimada se dissipa em autoaceitação simples e terna. Conforme observa Merton: Em nossos relacionamentos humanos não precisamos identificar os outros com seus pecados e condená-los por suas ações;

1

The Sacrament ofthe Present Moment, p. 53.


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pois neles também somos capazes de enxergar abaixo da superfície e intuir a presença do eu interior e inocente que é a imagem de Deus.12 Depois de uma experiência assim na Tailândia, bem pouco antes de sua morte, Merton escreveu em seu diário: "Tudo é compaixão; estou nadando nela". O esforço para nos libertarmos das preocupações e a prontidão para pôr de lado abstrações que nos fazem perder o foco implicam uma espécie de morte para que se possa tomar a cruz do momento presente. Uma vez perguntaram a Louis Armstrong o que fazia Frank Sinatra ser tão especial. Ele respondeu: "Se não o ouvimos, é porque não temos ouvidos". Em outras palavras, não se pode ouvir se isso não for feito ativamente; se você atentar para alguma coisa apenas de maneira superficial, não ouvirá a música do que está acontecendo. O compromisso de viver em vez de fugir do dom da vida é competência especial das crianças. Elas têm um jeito de pôr de lado o tempo e os prejuízos do progresso. Elas funcionam em uma plataforma completamente distinta. Observe um grupo de crianças num playground ou no mato, atirando pedras contra o alto de uma árvore para derrubar alguma fruta. O romancista Dom DeLillo fez exatamente isso. Ele descobriu que as crianças ficariam jogando pedras o dia inteiro se preciso fosse para levar para casa as melhores frutas. O tempo parava. Não havia pressa. Totalmente envolvidas pelo momento presente. Ou observe uma menininha que amarra a uma grade de janela a ponta de uma corda e aproveita a presença de seu irmãozinho para movimentar a corda pela outra ponta. Ela se posiciona

12

Suzanne ZUERCHER, Merton: An Ermeagram Profile, p. 143.


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no meio e pula (e pula e pula), mas o tempo, da forma como o conhecemos, não existe para ela. Quase todas as crianças nascem com uma tendência natural para a contemplação — para olhar com carinho e durante muito tempo para o Real — e uma inclinação para momentos de silêncio compenetrado. Coisas simples podem absorver a atenção da criança por um longo período. Brincar com os dedos dos pés, por exemplo, é uma experiência tão envolvente, que é difícil desviar a atenção da criança para outra coisa. Seu dom, porém, começa a secar quando insistimos: "Rápido com isso, eu tenho mais o que fazer!". Não é de admirar, diz o irmão David Steindl-Rast, "que tantas crianças maravilhosas se transformem em adultos insensíveis. Não é de admirar que sua unidade se despedace e seu senso de mistério se perca". A boa notícia é que a criança que está dentro de nós pode ser recuperada. Isso pode acontecer agora mesmo, bastando algo simples como dar uma volta com uma criança montada "de cavalinho" nas suas costas ou caminhar devagar pela rua, ouvindo a música do que está acontecendo. "... se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças..." (Mt 18:3). O cristianismo designou alguns lugares supostamente mais sagrados que outros, alguns dias mais santos que outros e algumas práticas mais religiosas que outras, dando assim a impressão de que o contato com Deus acontece fundamentalmente, ou até de forma exclusiva, no primeiro dia da semana num edifício chamado igreja. Confinar a presença de Deus a certos dias e lugares previsíveis é limitador demais e conduz à premissa silenciosa de que o restante da semana não tem nada a ver com religião. No que tange a Jesus, porém, o sábado foi feito para as pessoas, e não as pessoas para o sábado.


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Í65

James Mackey escreve: O dia sagrado, com seus prédios e profissionais especiais, seus rituais e alimentos especiais, existe simplesmente como símbolo a serviço da fé, ou seja, a convicção vivenciada de que todos os dias e lugares [...] e todas as coisas, mais importantes ou menos importantes, estão igualmente próximas de Deus e são sua dádiva afetuosa para todos nós. Assim, a religião com toda a sua panóplia deve ser deixada intacta, mas sua função e seu caráter devem ser devidamente ajustados. Uma fé realmente radical, pela qual se viveria e provavelmente se morreria.13 Quer você esteja escalando o Himalaia, quer esteja em pé num metro lotado, comendo um bolo ou tomando um leite, a geografia do aqui e agora abrange todos os lugares e todos os momentos.

]esus: The Man and ihe Myth, p. 171.


CAPITULO

DOZE

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J

ohn Tauler, teólogo e místico do século XIV orou durante oito anos para que Deus lhe enviasse uma pessoa que pudesse lhe ensinar o verdadeiro caminho da perfeição. Certo dia, enquanto orava, ouviu uma voz interior que lhe dizia que saísse e fosse para a escadaria da igreja, onde encontraria seu mentor. Ele obedeceu sem hesitar. Chegando à escadaria da igreja, Tauler encontrou um mendigo descalço e todo rasgado, ferido e com crostas de sangue pelo corpo. Tauler cumprimentou o homem educadamente: — Bom dia, caro irmão. Que Deus lhe dê um dia agradável e uma vida feliz. — Senhor — respondeu o mendigo — não me lembro de alguma vez ter tido um dia que não fosse bom. Admirado, Tauler perguntou-lhe como isso era possível, uma vez que dor e tristeza fazem parte da condição humana. O mendigo explicou-lhe: — O senhor me desejou um bom dia, e eu respondi que não me lembrava de ter vivido algum dia que não tivesse sido bom. Sabe, quer meu estômago esteja cheio, quer esteja vazio, eu louvo a Deus do mesmo jeito; quando sou rejeitado e des prezado, assim mesmo agradeço a Deus. Minha confiança na


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providência de Deus e em seu plano para a minha vida é total, de modo que não existem dias ruins. E continuou: — O senhor também me desejou uma vida feliz. Devo dizer que sempre estou feliz, pois não seria justo dizer o contrário. Minha experiência com Deus me ensinou que não importa o que ele faça, tudo é bom. Assim, tudo o que recebo de suas mãos de amor ou o que ele permite que eu receba das mãos dos outros — seja prosperidade, seja adversidade, quer doce, quer amargo — eu aceito com alegria e encaro como um sinal de seu favor. Já faz muitos e muitos anos que minha primeira resolução todas as manhãs é apegar-me unicamente à vontade de Deus. Aprendi que a vontade de Deus é o seu amor. E no derramar de sua graça, tenho de tal forma me identificado com sua vontade, que aquilo que ele deseja, eu também desejo. Portanto, sempre estou feliz.1 O testemunho que o mendigo deu de Jesus Cristo reside numa confiança cega no amor de Deus e na determinação de dar graças em tudo (lTs 5:18). Mais tarde na vida, Tauler escreveu que essa mistura de confiança e gratidão é o caminho mais curto para Deus. Por que estou fazendo referência a uma confiança cega? Porque numa confiança cega não há dúvida nem questionamento. Ela é incondicional, absoluta. Uso essa palavra neste contexto de confiança, pois a autopiedade é o arquiinimigo da confiança. Isso não significa que toda autopiedade deve ser descartada. Quando a sombra da cruz de Jesus se projeta sobre nós, quando a dor e o sofrimento nos invadem, e nossa vida organizada e segura é atingida, quando a tragédia faz uma visita inesperada

1

George MALONEY, In Jesus We Trust, p. 129.


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e ficamos surdos para todas as coisas, exceto para o clamor do nosso desespero, quando o ânimo desaparece e o mundo em nossa volta se torna repentinamente escuro e ameaçador, a autopiedade é a primeira reação normal, inevitável e provavelmente correta; e somente nos esgotamos cada vez mais se tentamos abafá-la. A experiência humana me ensinou que não há um meio eficaz de combater a autopiedade. Claro, podemos espiritualizar a mágoa, camuflar nossas emoções e flertar com a religiosidade. Mas essa bravata é o mesmo que negar nossa natureza humana e, além do mais, não funciona. Não somos robôs espirituais, mas pessoas com sentimentos. Há ocasiões, porém, em que a autopiedade se torna maligna e nos atrai a padrões de comportamento de autodestruição marcados por afastamento, isolamento, bebidas, drogas e assim por diante. Simplesmente pedimos que a graça imponha limites à nossa autopiedade. Tuesâays with Morrie [Terças com Morrie], da lista de best-sel-lers do New York Times, narra a história do amor de um homem por seu mentor. Morrie Schwartz, sociólogo e professor da Brandeis University, estava morrendo de ALS (mal de Lou Gehrig).2 Mitch Albom, ex-aluno, pegava um avião todas as terças-feiras e ia de Detroit até Boston para passar o dia com seu querido professor. Um dia, Mitch perguntou a Morrie se ele já tinha sentido pena de si mesmo. — Às vezes, de manhã — ele respondeu. — E quando eu lamento a minha sorte. Sinto o meu corpo, mexo os dedos e as mãos, o que ainda consigo mexer, e lamento o que eu já perdi. Lamento a forma lenta e insidiosa de morrer. Mas então eu paro de lamentar. 2

Doença neurodegenerativa incurável. (N. do T.)


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— Assim desse jeito? — E também me permito chorar se for preciso. Mas em seguida eu procuro me concentrar em todas as coisas boas que ainda tenho na vida. Nas pessoas que vêm me ver. Nas histórias que vou ouvir. Em você, se for terça-feira. Porque somos especialistas em terça-feira. Abri um sorriso. Especialistas em terça-feira. — Mitch, isso é o máximo de autopiedade que me permito sentir. Um pouquinho pelas manhãs, algumas lágrimas, e não passa disso.' O caminho da confiança cega não é uma abstração, mas uma realidade concreta, visível e impressionante. Ela dá definição ao nosso viver, revela o que dentro de nós gera vida, determina as decisões que tomamos e as palavras que falamos, estimula nossa consciência, nutre o nosso espírito, impacta nossa interação com os outros, sustenta nossa vontade de dar sentido à vida e reveste de carne e osso nosso jeito de ser no mundo. Fé na pessoa de Jesus e esperança em sua promessa significam que sua voz, viva e ouvida nos evangelhos, tem suprema e soberana autoridade sobre nossa vida. Deixando de lado os linguistas e historiadores que, nas palavras de John Kirvan, mantêm-se ocupados "examinando minúcias dos textos em busca de autenticidade histórica",4 e os sofisticados exegetas do Jesus Seminar, que, pelo amor de Deus, ainda estão votando naquilo que Jesus realmente disse e no que ele não disse, interpretamos as palavras do Mestre do jeito que Francisco de Assis fazia — literalmente. E essa abordagem inovadora da mensagem de Jesus traz implicações radicais para o modo de vida de um discípulo que confia. 'E 56-57. 4

God Hunger, p. 14-


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Pense um pouco. Num mundo de mudanças rápidas e capitalismo global turbinado, a competição acirrada é o que impulsiona não somente o mercado de trabalho, mas também a música gospel, a publicação de livros cristãos, instituições políticas, as relações pessoais, museus, Hollywood, astros do rap, rivalidade entre igrejas, a própria vida. Liderança na concorrência, escalada social, jogo de poder, traição, autoengrande-cimento e coisas do género são as pedras preciosas em nosso altar das realizações. Contrastando com isso, Jesus faz a seguinte pergunta naquela que se tornou sua parábola mais citada: "Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?". "O que usou de misericórdia para com ele", respondeu o especialista da lei. E Jesus então lhe responde: "Vai e procede tu de igual modo" (Lc 10:36-37). Comentando sobre a história do bom samaritano, Thomas Cahill escreve: Agora que estamos no limiar do terceiro milénio depois de Jesus, podemos olhar para trás e enxergar os horrores da história cristã, sem duvidar por um instante sequer: se os cristãos tivessem colocado a bondade à frente da devoção à boa ordem, cia teologia correta e de nossas próprias justificativas — se tivéssemos andado nas pegadas humildes do samaritano herege que estava disposto a lavar as feridas dos outros, em vez de seguirmos os passos autocêntricos do sacerdote e as pegadas imaculadas do levita — o mundo em que vivemos seria bem diferente.5 1

Desire oj the Everlasting Hills, p. 185.


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Lemos em Mateus estas palavras de Jesus, o Caminho, a Verdade e a Vida: "Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (25:40; grifos do autor). Depositando confiança absoluta na Palavra viva, Cuthbert, depois de receber do rei um lindo cavalo para substituir o antigo, que estava velho e manco, cavalga pela estrada, encontra um mendigo esfarrapado e dá-lhe o cavalo. O rei fica sabendo. E fica furioso. Ao se encontrarem novamente, o rei diz a Cuthbert: "Eu lhe dei um cavalo magnífico e você o desperdiçou, dando-o a um mendigo imprestável. Eu devia lhe ter dado uma égua velha e inútil". Cuthbert respondeu: "Ah, meu amado rei, para o senhor, o filho de um puro-sangue vale mais do que um filho de Deus".6 Em 1970, passei a véspera de Natal no bairro conhecido como Bowery na cidade de Nova York. Durante o dia trabalhei com uma equipe da Catholic Worker, entidade que cuida dos moradores de rua ou de quem não tem o que comer. Depois de ajudar a servir um jantar para talvez oitenta ou noventa moradores de rua, fui convidado a subir as escadas para visitar Dorothy Day, uma senhora de 73 anos de idade, fundadora da Catholic Worker. Fazendo croché numa velha cadeira de balanço, ela me recebeu com alegria e disse: — Brennan, tenho certeza de que você já ouviu falar de Peter Claver. — Sim, senhora — respondi. — Por volta de 1640, ele tinha um ministério dirigido aos negros que haviam sido vítimas do comércio de escravos; eles eram muitas vezes explorados até as últimas forças e depois abandonados para morrer sozinhos. Claver deu sua vida, ainda 6

0'RIORDAN, The Music ofWhat Happens, p. 156.


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que breve, como se fosse um paramédico dos dias de hoje, aliviando o sofrimento dessas pessoas ou proporcionando-lhes conforto e cuidado espiritual na hora da morte. Aquela senhora, já marcada pela idade e que havia proclamado o evangelho com sua vida, então me disse: — Certa noite, Peter chamou um casal de voluntários para ajudá-lo a ministrar a um homem que estava morrendo, cujo corpo estava apodrecendo com feridas causadas por tantos anos que havia ficado acorrentado. Quando os voluntários viram suas feridas abertas e sentiram o odor próprio da putre-fação, saíram correndo do lugar tomados pelo pânico. Peter então gritou: "Vocês não podem ir embora. Não podem abandoná-lo — é Cristo". Dorothy fez um movimento com a cabeça, indicando que a visita havia chegado ao fim e pediu minha bênção. Eu lhe beijei a mão e, muito emocionado, fui embora. Nossa cultura nos diz que a competição cega é o segredo para o sucesso. Jesus diz que a compaixão cega é o propósito de nossa caminhada por este mundo. "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1:14). Com a cabeça girando, as pernas bambas, trémulos, ajoelhamo-nos diante de um bebé deitado num comedouro para gado e sussurramos como o incrédulo Tomé: "Senhor meu e Deus meu!" (Jo 20:28). Jesus é meu Salvador. Encarnação — prova viva de que o amor infinito faz coisas assim. O mundo das teorias é deixado de lado. Apenas fascínio e adoração silenciosa. "... a si mesmo se esvaziou" (Fp 2:7). A onipotência envolta pelos laços de minha frágil natureza humana. A grandiosidade dessa dádiva exige uma resposta de confiança cega. É a confiança cega que faz Teresa de Ávila perseverar em oração durante dezoito anos sem nenhum sentimento de consolo, crendo que "fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a


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ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los" (Lc 18:7). É a confiança cega que nos faz atentar para a advertência: "Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles" (Mt 6:1), levando-nos, em vez disso, a praticar secretamente atos de bondade que ninguém jamais saberá, confiantes de que nosso "Pai, que vê em secreto, [nos] recompensará" (Mt 6:6). E a confiança cega que nos leva a ter coragem nas noites escuras, quando estamos mergulhados em tristeza, mas sabemos que a ausência de Deus é apenas aparente. Conforme diz Bede Griffiths: "Sinto-me no vazio, mas o vazio está totalmente saturado de amor". "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós" (ljo 1:8). Vivemos numa sociedade que se compraz com o que é terapêutico e tolerante, condena o julgamento por ser uma atitude autoritária, rejeita o reconhecimento do pecado por ser uma violência contra o valor da pessoa humana e resiste ao discernimento de espíritos por ser uma imposição de padrões arbitrários. A consequência devastadora desses desvios da sociedade é que, em seu gnosticismo, ela se afasta eternamente da responsabilidade pessoal. Se evitamos enfrentar a genuína culpa, acabamos sufocando nosso crescimento pessoal. Se continuamos a culpar os outros por nossas fraquezas e fracassos, rejeitamos nossa responsabilidade pela direção de nossa vida. Embora a autopie-dade possa frustrar a autoaceitação, trazer conosco a letra V escarlate ("v" de vítima) permite com que nos sintamos superiores aos outros. Bob Stewart, um psiquiatra amigo, contou-me certa vez de uma paciente casada cujo caso extraconjugal de sete anos


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com um homem também casado havia chegado ao fim abruptamente, quando ele a trocou por outra mais jovem. Incapaz de enfrentar a essência de sua infelicidade, ela atribuía sua infidelidade ao casamento sem amor e havia procurado a terapia e os comprimidos para se livrar do sofrimento que infligia a si própria. Por fim, com uma grave depressão e apresentando sinais de suicídio, sem responder à medicação antidepressiva, ela foi hospitalizada. Aquela mulher não se sentia moralmente responsável e, por isso, desprezava todo sentimento de culpa pessoal. Pela mesma razão, procurou um psiquiatra em busca de alívio em vez de procurar o Jesus de sua infância. Num mundo em que o único veredicto é "inocente", que possibilidades restam para um encontro sincero com Jesus, que "morreu pelos nossos pecados"? Podemos apenas fingir que somos pecadores e, assim, apenas fingir que somos perdoados. É preciso que tenhamos enorme coragem e uma confiança cega no amor misericordioso do Deus redentor para que possamos transpor nosso fingimento, nossa covardia e nossas evasivas e enxergar a verdade sobre nós mesmos e sobre o real estado de nossa alma diante de Deus. Trocando em miúdos, o pecado precisa ser reconhecido e confessado para que possa haver perdão e verdadeira transformação. Se os leitores deste livro conhecessem a história da minha vida, se soubessem quantas vezes me afastei como um filho pródigo, se soubessem de meus tropeços e recaídas, de minha mesquinhez, de como eu costumo me ensimesmar e se soubessem do meu apetite voraz em busca de aprovação, eles ficariam corados de vergonha. Vivo caindo, mas vivo me levantando, sabendo que quando Jesus respondeu à pergunta de Pedro sobre a frequência do perdão oferecido a um irmão — "Não te


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digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (Mt 18:21) — ele estava descrevendo o que ele mesmo faz- O psicólogo clínico Jim Finley pergunta: "Será possível que sempre que tropeçamos, caímos e novamente nos levantamos, Deus mal consegue conter sua alegria?".7 A premissa é que nossas intenções são boas. Como todos nós somos reincidentes, os que não têm intenção de se arrepender e de seguir numa nova direção enganam-se a si mesmos e fazem pouco da misericórdia de Deus. Confiança cega é o que faz um idoso marcado pelo tempo ajoelhar-se junto à cama de um asilo, correndo de novo o risco do "vazio" — a sensação de ausência de Deus, o inferno da insensibilidade que o havia dominado dezoito anos atrás, quando sua mulher e três filhos morreram num acidente de carro — com lágrimas de gratidão correndo pelo rosto. Confiança cega é o que se vê no padre bêbado de Graham Greene, na cura de Georges Bernanos, no missionário de Shu-saku Endo e no Père de Brian Moore.8 Confiança cega é o que se vê no poeta pobre e cego descrito por John CRiordan em The Music of What Happens [A música do que está acontecendo]. Ele não tem renda, não tem plano de saúde, nem segurança. Não sabe de onde virá sua próxima refeição nem onde dormirá quando cair a noite. E o que ele está fazendo? Compondo uma música de ação de graças pelas bênçãos de Deus que lhe avivam o espírito — plenitude de amor e esperança, uma consciência limpa e um coração leve. Livre da busca de coisas materiais e dotado de uma profunda confiança no amor de Deus, ele é a personifi7

The Contemplative Heart, p. 57. Graham GREENE, The Power and the Glory; Georges BERNANOS, The Diary of a Country Priest; Shusaku ENDO, A Life of Jesus; Brian MOORE, Bhckrobe — A Novel. 8


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cação do que o escritor Brendan Kenneally chama de "espiritualidade exultante" — perspectiva que surgiu na Irlanda muito tempo atrás. Ele faz sua viagem despreocupado e celebra com ação de graças a jornada que se descortina.9 Confiança cega é o que se vê na sra. Neylon, que chega à escola e cumprimenta as crianças, dizendo: "Uma manhã linda e agradável, graças a Deus". Essas palavras faziam sentido quando o sol de verão brilhava lá fora. Mas aquela senhora forte e determinada, também descrita por 0'Riordan, chegava igualmente animada no meio do inverno com a chuva castigando Sliabh Luachra, com sua capa molhada e sapatos encharcados; ela tirava o chapéu molhado, sacudia-o e dizia: "Uma manhã chuvosa e agradável, graças a Deus". Em seu coração havia a plena confiança de que todas as manhãs eram manhãs de Deus. Chuva, granizo ou neve — tudo era dádiva de Deus, e gratidão era a única resposta adequada.10 (Não posso deixar de pensar nas muitas vezes em que me queixei: "Coitado de mim!", quando a chuva acabava com meus planos de jogar golfe. Se autopiedade fosse asfalto, eu já teria asfaltado milhares de quilômetros.) Confiança cega é o que está no espírito dos discípulos de Cristo que se recusam a trocar o compromisso pessoal pela retórica de ideais. Permita-me agora dirigir-me a um grupo de cristãos bem diferentes — aqueles que são assediados pelas incertezas, atormentados pelas dúvidas e assombrados pelas perguntas para as quais não há resposta. Eles se comprometem com Cristo e, 9

R 69.

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E 70.


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mesmo assim, lutam constantemente, com medo de que a liberdade humana seja fatal. Conforme me disse uma senhora idosa, "as pessoas dizem que Deus não nos força a nada. Bom, eu não preciso desse tipo de cortesia". Esses indivíduos querem abraçar o evangelho, mas não conseguem integrar-se a ele. As palavras mais frustrantes que eles ouvem são: "Basta crer", pois a fé não é algo que acontece com facilidade — e às vezes nem acontece. Digno de admiração é o fato de eles não fingirem que crêem, embora essa atitude possa obrigá-los a viver isolados pela comunidade da fé. Mas eles não precisam estar na condição de excluídos da comunhão dos maltrapilhos. Um dos grandes escritores cristãos de nossa geração pertence a esse grupo, e eu o considero um gigante espiritual. Essas almas corajosas embrenham-se pela solidão existencial da condição humana e recusam-se a sair. Aonde poderão elas ir para se encontrar com sua divindade indefinível? Um amigo me disse: "Eu não consigo dizer Aba, eu pertenço a ti', pois isso parece artificial — como se eu estivesse apenas pronunciando palavras nas quais não acredito". Mas o misterioso amor de Deus penetra o coração até das pessoas que pensam não poder recebê-lo. Mergulhados no silêncio da infinita misericórdia, os excluídos ganham consciência da presença e ouvem a voz gentil que lhes sussurra: "Eu estou aqui. Não tenha medo. No meio da dissonância e dos contratempos de seu mundo conturbado, eu vivo e reino". Assim como para muitos dependentes do álcool a recuperação começa no extremo do desespero, também para os isolados a confiança se encontra no extremo da desesperança. É como a experiência descrita pelo grande filósofo judeu Martin Buber, que confessou: "Realmente não sou nenhum zaddík, nem alguém que se sinta seguro em Deus, mas um homem que se sente ameaçado diante dele,


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alguém que vive lutando em busca de sua luz, que vive mergulhado nos abismos de Deus".'1 Buber nos deu esse autorretrato quando estava com quarenta anos de idade, e ele provavelmente continuou a refletir sua essência pelos quase cinqüenta anos de vida que ainda teria pela frente. Não é de admirar que os excluídos tenham um chamado singular e sejam especialmente agraciados para encarar as inúmeras perguntas que torturam os cristãos e oferecer respostas aos corações temerosos. E eles são totalmente dignos de crédito, pois já passaram pelo mesmo inferno. Mais que os outros, conhecem o caminho da confiança cega. Mas não consigo imaginar uma só pessoa que gostaria de pertencer a esse grupo. Nos ministérios cristãos sofisticados — ou seja, ministérios de gente famosa como pregadores, professores, eruditos, pastores e escritores, juntamente com célebres artistas, cantores, compositores, músicos, poetas e outros — a confiança cega é o que permite manter a uma distância segura o prestígio, a honra, o poder, a fama e os encantos da vida de celebridade. É a coragem de rejeitar o que vemos descrito na primeira epístola de João: "... tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo" (2:16). O cantor e compositor de música gospel Michael Card havia terminado uma apresentação no estádio de Wembley em Londres, e o público tinha ficado em pé para oferecer-lhe uma longa e barulhenta salva de palmas. O entusiasmo era tão in-contido que foi necessário abrir e fechar as cortinas várias vezes. Quando o clamor do público arrefeceu, Michael correu 1

Maurice FRIEDMAN, Encounter on the Narroiv Ridge, p. 53-54-


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para o camarim e me ligou aqui em Nova Orleans, implorando: "Brennan, por favor, ore agora mesmo por mim". Como eu, ele também sabia que podia ser facilmente seduzido pelo canto da sereia do sucesso, pela bajulação sem limite dos fãs. Ele praticamente gritava: "Eu não quero essa coisa. Peça a Jesus que me liberte". Mike, porém, que me lembra Francisco de Assis mais do que qualquer outra pessoa que já conheci, estava liberto antes mesmo de pedir. Confiança cega é aceitar a incontestável verdade contida no provérbio irlandês: "Convidado ou não, ele se faz presente". Ao entrarmos no terceiro milênio, a confiança cega está na certeza corajosa de que, apesar do sofrimento e do mal, do terrorismo e dos conflitos domésticos, o plano de Deus em Jesus Cristo não pode falhar. Os próximos anos trarão um avanço lento porém constante nos valores do reino, e chegará o dia em que o leão se deitará junto com o cordeiro; o Oriente aprenderá a língua do Ocidente (e vice-versa); brancos, negros e amarelos poderão realmente se comunicar; nossas cidades cheias de lixo, apatia e desespero conhecerão o brilho de uma vida melhor; e todos os homens e mulheres se alegrarão no espírito que nos torna um só em Cristo, o Senhor. Não somos bêbados sonhadores, idealistas sem esperança nem otimistas do absurdo. Não estamos jogando o "jogo da religião". Conforme escrevi na primeira página do primeiro capítulo, confiar é uma atitude inabalável. Procure em seu coração o Isaque de sua vida — dê nome a ele e coloque-o sobre o altar como oferta ao Senhor — e você conhecerá o significado de uma confiança igual à de Abraão. "Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres" (Mc 14:36). A morte de Jesus no Calvário é seu supremo ato


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de confiança no Pai. Jesus mergulha nas trevas da morte, sem saber o que há do outro lado, confiante de que seu Aba iria de alguma forma vindicá-lo. A espontaneidade com que Jesus abriu mão da vida é sua maior expressão de confiança perseverante, e isso conquistou para ele e para nós a plenitude de vida. Sua confiança bendita, obstinada e pertinaz encanta o coração de seu Aba. Ser cristão é ser como Cristo. É claro que crescer na confiança não é algo automático. A coisa que mais precisamos não pode ser suprida por nós mesmos. Mas há uma fonte de confiança abundante a qual devemos sempre voltar. Ela flui da rocha do Gólgota aos pés do Cristo crucificado. Contemple o amor incomparável de Jesus enquanto ele caminha para a morte por asfixia. "Ninguém tem maior amor do que este ..." (Jo 15:13). Fique face a face por alguns minutos com o Jesus que está à beira da morte e ouça-o sussurrar: "Estou morrendo... para estar com você". É o mesmo amor ontem no Calvário, hoje em nosso coração e para sempre no céu. O Jesus crucificado não é um mero exemplo de heroísmo para a igreja. Ele é o poder e a sabedoria de Deus, e seu amor é capaz de transformar nosso coração covarde e incrédulo num coração fortalecido pela confiança de que é amado. Não há nada que precisemos fazer, exceto permitir que nosso eu indigno e ingrato seja amado no estado em que nos encontramos. A confiança acontece! Você confiará nele a ponto de saber que é amado por ele. "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente. Crês isto?" (Jo 11:26). No final das contas, a confiança cega resume-se a isto: fé na pessoa de Jesus e esperança em sua promessa. Embora as


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aparências sejam desnorteantes, encaramos a morte sem ansiedade e antevemos a ressurreição única e exclusivamente porque Jesus disse "eu lhes dou minha palavra". Confiança mais cega que isso é impossível. Ou cremos na ressurreição e, portanto, confiamos em Jesus de Nazaré e no evangelho que ele pregou, ou não cremos na ressurreição e, portanto, não confiamos em Jesus de Nazaré nem no evangelho que ele pregou. Se a Páscoa não é fato histórico, só nos resta nos tornar céticos. Em outras palavras, ou confiamos na pessoa e na promessa de Jesus e comprometemos nossa vida com esses valores, ou não. Será que no século passado houve um testemunho mais corajoso do que o de Dietrich Bonhoeffer? No dia 9 de abril de 1945, num campo de concentração em Flossenburg, na Alemanha, condenado à morte por conspirar num complô para matar Adolf Hitler, Bonhoeffer soltou-se dos dois guardas nazistas que o conduziam e correu em direção ao cadafalso, gritando: "O morte, tu és a suprema festa no caminho para a liberdade cristã!".12 Agora que estou chegando ao final deste livro, minha sensação é de estar chegando em casa. E em casa que está nosso coração. O lar é lugar de amor acolhedor, de aceitação sem críticas, de beijos e hospitalidade — elementos que induzem um profundo senso de pertencer. "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" (Jo 15:14)"Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada" (Jo 14:23). "Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" (ICo 3:16).

12

Geffrey B. KELLY, Liberating Faith, p. 31.


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"Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo?" (1CO6:19). O extraordinário mistério do Deus triuno que habita em nós! Confiança cega é o que nos faz escolher ser habitação de Deus. Enquanto você respira ao longo do dia, permita que essa habitação seja um lembrete de seu verdadeiro domicílio. Meu Senhor misericordioso tem me mostrado que a melhor maneira de neutralizar o incrível poder do medo é sendo habitado e habitando o palácio do aqui e agora. Confiança cega é um profundo sentimento de certeza de que por trás de toda agitação, monotonia e insegurança da vida, tudo ficará bem. Ventos fortes podem soprar, podem aparecer outros defeitos de caráter, a doença pode nos visitar, e amigos certamente vão morrer; mas persiste uma certeza contumaz e irrefutável de que Deus está conosco e nos ama em nossa luta por sermos fiéis. O que permanece é uma intuição não-racional e inteiramente verdadeira de que há algo grande e incompreensível no universo (kabõd), algo que aponta para Alguém repleto de paz e poder, de amor e criatividade inimaginável — Alguém que inevitavelmente reconciliará todas as coisas em si mesmo. Voltando ao tema central deste livro, a exemplo do que declarei no primeiro capítulo: o esplendor de um coração humano que sabe que é amado dá a Deus mais prazer do que a Catedral de Westminster, a Capela Sistina e todas as outras glórias humanas juntas. Por que nossa confiança dá esse imenso prazer a Deus? Porque a confiança é a suprema expressão do amor. Assim, pode ser que, para Jesus, o fato de dizermos "eu confio em ti" pode ter mais significado do que dizer "eu te amo". Onde me encontro no meio disso tudo? Com você, de mãos dadas a cada manhã e exclamando em uníssono: "Senhor Jesus, eu confio em ti; ajuda-me quando a confiança me faltar".


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