Arte e Ciências em Diálogo

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João Carlos Carvalho (Coordenação)

ARTE E CIÊNCIAS EM DIÁLOGO

Grácio Editor


FICHA TÉCNICA Título: Arte e Ciências em Diálogo Organização: João Carlos Carvalho Capa: Frederico Silva | Grácio Editor Design gráfico: Grácio Editor 1ª Edição: Outubro de 2013 ISBN: 978­989­8377­51­0 © Grácio Editor Avenida Emídio Navarro, 93, 2.º, Sala E 3000­151 COIMBRA Telef.: 239 091 658 e­mail: editor@ruigracio.com sítio: www.ruigracio.com Reservados todos os direitos

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ENCONTROS: ARTE COMO ARQUEOLOGIA, ARQUEOLOGIA COMO ARTE Sara Navarro

CIAC ­ Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade de Algarve

Resumo A arte contemporânea tem vindo a transformar­se naquilo que podemos descrever como um vasto programa de investigação que olha de forma crítica aquilo que somos e, neste sentido, pode oferecer um recurso fundamental para quem queira refletir sobre o mundo e perceber o processo que fez de nós o que somos hoje. A partir da constatação de que artistas e arqueólogos prestam, atualmente, cada vez mais aten­ ção ao respectivo trabalho de uns e de outros, proponho explorar a forma como a arte contemporânea – e em particular o meu trabalho – se pode encaixar no projeto arqueológico de estudo, compreensão e comunicação do passado humano. Palavras Chave Arte; Arqueologia; Criatividade; Objetividade;Afetividade

O diálogo, histórico e permanente, entre artistas e arqueólogos e a, cada vez mais comum, colaboração de artistas nos projetos de investigação arqueológica leva­me a questionar a natureza desta relação, o status do artista para a arqueo­ logia e o interesse dos arqueológos na prática artística. Ao longo da história, é comum encontrarmos artistas que se inspiraram na arqueologia ou que encontraram afinidades entre os processos criativos e os pro­ cessos de trabalho da arqueologia. Nos últimos dez ou quinze anos, tornou­se fre­ quente, especialmente no Reino Unido, encontrar arqueólogos que procuram no trabalho de artistas contemporâneos fontes de informação interpretativa. Colin Renfrew, professor de arqueologia na Universidade de Cambridge e uma das figuras mais destacadas da arqueologia contemporânea, em Figuring it Out – The Parallel Visions of Artists and Archaeologists (2006), propõe uma con­ vergência entre arte e arqueologia, investigando de que forma podem as questões levantadas pela prática artística contemporânea ter um contributo para a investi­ gação arqueológica. O seu objectivo é tentar olhar para a arte como arqueologia e para a arqueologia como arte, na procura de uma interação entre as duas onde, numa criativa analogia, questiona a condição humana. A condição humana, o tempo, o corpo, o lugar, a paisagem e a cultura mate­ rial são algumas das grandes temáticas que desafiam tanto artistas como arqueó­ logos. Ambos, artistas e arqueólogos, procuram encontrar respostas para as grandes questões intemporais relativas ao ser humano e ao seu papel no mundo. A arte caracteriza­se, hoje, pela sua natureza múltipla ou expandida, com uma dimensão crítica e utópica, cuja prática se integra noutros domínios mais am­ 355


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plos da vida, tornando­se cada vez mais cultural e socialmente relevante. A explo­ ração das formas de ver, sentir, perceber, conhecer e finalmente, estar no mundo, característica da arte contemporânea, expande e altera a noção de arte para lá da representação visual e torna­a numa interessante ferramenta de pesquisa com utilidade para as outras áreas do saber (Fernandes Dias, 2001: 104­106). No meu trabalho, procuro fazer uma ponte entre os processos mais remotos da produção cerâmica e a criação artística contemporânea, privilegiando a explora­ ção da relação entre a mão e a matéria, no sentido do ‘saber fazer’ artesanal. Pro­ curo entrar nos gestos dos produtores ancestrais, reproduzindo­os, sentindo­os como meus. Invoco, pelo poder do fogo, as práticas pré­históricas da produção cerâmica, para transformar a maleável argila num duro e estável material. Nesse sentido, conoto a prática da escultura com um valor cultural primordial. A terra(argila), pela sua maleabilidade, permite­me explorar o gesto que, as­ sociado a uma substancialidade terrestre, está na base da criação de esculturas ‘arqueologizantes’, gérmenes da época atual. As esculturas, (re)criadas pela arte do fogo, transmitem algo de pré­histórico. Algo que evoca a arte e a cultura de outros tempos, de outros lugares, algo que nos desperta os ecos de uma terra an­ tiga. Propondo um salto entre milénios, o meu trabalho responde a um fascínio pelos fragmentos arqueológicos vindos de tempos antigos, de sociedades extintas e enigmáticas. A dualidade de referências, entre um passado remoto e a contem­ poraneidade, funde­se num trabalho de síntese, em que as esculturas funcionam como metáfora que opera no deslocamento entre o sentido histórico das referên­ cias e o meu imaginário.

Fig. 1 ­ Sara Navarro, Modelando o Passado, 2011 ­ Fotografia R. Soares 356


ENCONTROS: ARTE COMO ARQUEOLOGIA, ARQUEOLOGIA COMO ARTE

Partindo de realidades perdidas, as formas que crio põem o tempo presente em comunicação com passados remotos. Pela transfiguração surgem modelos pri­ mordiais, reconhecíveis, mas carregados de novas simbologias. Artefactos com significados sempre múltiplos, com sentidos construídos e reconstruídos... Entre outras coisas, a interface entre arte contemporânea e arqueologia pode gerar novas perspectivas sobre o estatuto do objecto, a partir de um novo olhar sobre a cultura material. Um olhar estético que, ao contrário do tradicional e mais científico olhar arqueológico, não está subjugado ao projeto de explicar o passado, mas apenas de o interpretar. Centrada no carácter reflexivo e subjetivo da cultura material, proponho o desenvolvimento de novos métodos, menos positivistas e mais estéticos, em que o olhar dos artistas pode ser integrado na metodologia arqueológica, com vista a desenvolver novos modos de ver e registar, de pensar e representar. Rompendo com a objectividade e a cientificidade, por vezes excessiva, de al­ gumas correntes mais científicas do pensamento arqueológico, o diálogo entre as práticas da arte e da arqueologia pode levar à introdução de métodos mais esté­ ticos que afastem a arqueologia da convencional ideia de gerar uma clara repre­ sentação do passado subjugada à científica proposta de verdades a partir de factos. A negociação entre a objetividade versus afetividade (emoção estética) é tal­ vez aquela que ao mesmo tempo pode separar e unir arte e arqueologia num novo paradigma. As questões de afeto estético e beleza, que estão na base da arte, são frequentemente secundárias à objetividade do processo de escavação, documen­ tação, pesquisa, registo, reconstrução e representação arqueológica. No entanto, é compreensível que os arqueólogos, nas suas autorizadas auto­representações de mundos materiais objectivos, achem atraente a relação entre artista e arqueo­ lógo, na medida em que ela permite estabelecer, em simultâneo, uma autoridade crítica e objectiva, característica da arqueologia, e incluir a componente acrítica do afeto, característica da arte, na perpetuação de uma aura no processo arqueo­ lógico contemporâneo (Russell, 2011: 174). Neste sentido, penso que ambas as disciplinas podem usar a interpretação e o pensamento criativo, envolvendo­se em atos de intuição, reconhecendo pa­ drões e relacionando observações e ideias previamente não associadas, incidindo tanto na objetividade como na subjetividade, no materialismo como no idealismo (Bonaventura e Jones, 2011: 3). O não­explicativo, o não­representacional e o não­temporal, característicos da arte contemporânea, podem proporcionar à arqueologia a libertação de excessivos preconceitos teóricos rumo a uma observação do passado mais contemporânea. Tal como acontece com a prática artística contemporânea, a meu ver, é crucial que o trabalho da arqueologia não se limite à analise hermética do passado e se envolva na pluralidade e multivocalidade do pensamento contemporâneo (Bailey, 2008: 17). 357


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Fig. 2 – Sara Navarro, Cozedura de Cerâmica em Fogueira, 2012 ­ Fotografia R. Soares

A linha não­temporal e a compreensão de que os objetos da cultura material arqueológica, apesar de terem existido em diferentes tempos no passado, estão hoje conectados, pode levar a potenciais benefícios resultantes da justaposição de objetos, lugares, pessoas e eventos antes separados. Quer os objetos sejam ou não evidências de um passado, a nossa ligação com eles é decididamente contemporâ­ nea, porque estamos hoje, aqui e agora, juntos, a olhar para eles (Bailey, 2008: 17). O mundo é um palimpsesto de temporalidades em que passado e presente se misturam na formulação de um futuro. A arqueologia não se centra num pas­ 358


ENCONTROS: ARTE COMO ARQUEOLOGIA, ARQUEOLOGIA COMO ARTE

Fig. 3 ­ Sara Navarro, Exposição Do Magma às Estrelas, villa romana de Milreu, 2012 ­ Fotografia R. Soares

Fig. 4 – Sara Navarro, Exposição Do Magma às Estrelas, villa romana de Milreu, 2012 ­ Fotografia R. Soares 359


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sado objectivo, mas antes na ideia, ou no sonho, de um passado e, neste sentido, a cientificidade excessiva tem levado muitos arqueólogos a contarem somente metade da história. A narrativa arqueológica deve centrar­se tanto no fascínio de encontrar como na mediação entre os objetos e o mundo atual (Russell, 2008: 2). A interdisciplinaridade leva, geralmente, à criação de pensamento original. Rumo a um novo território intelectual, a prática interdisciplinar implica assumir riscos, criar rupturas, dar saltos, abdicar, quebrar convenções, renunciar à facili­ dade de continuar dentro do que é expectado e, claro, do que é aceite. Há muito que os artistas compreenderam a transgressão das fronteiras dis­ ciplinares e a resistência a categorizações leva a um desenvolvimento disciplinar, visando o crescimento e possibilitando uma ontologia transversal. Penso que, tal como a arte, a arqueologia pode beneficiar ao localizar­se num campo expandido, num contexto mais alargado, que é simultaneamente arqueológico, histórico e ar­ tístico. Ainda que ciente das diferenças entre as disciplinas, acredito que as propos­ tas culturais da arte contemporânea podem ser um instrumento valioso para a análise arqueológica, assim como o conhecimento de trabalhos arqueológicos sobre as culturas passadas se tem, ao longo da história, mostrado revelador para a prática artística. Não espero que os artistas se tornem arqueólogos, nem que os arqueólogos se tornem artistas, cada disciplina tem a sua própria agenda. Não obstante, de­ fendo que se podem aplicar os conhecimentos específicos de cada uma num tra­ balho comum, em que as duas disciplinas se justaponham na procura de um espaço e de um diálogo coeso, num contínuo campo de interação simbiótica entre práticas, numa experiência conjunta que ultrapasse a simples visita recíproca. Embora esta seja, em grande parte, uma história ainda por escrever, espero ter evidenciado a relevância do cruzamento entre o mundo da arte e da arqueo­ logia, na formação, visão e concepção da cultura contemporânea.

Referências bibliográficas

BAILEY, Douglas (2008) «Art to Archaeology to Archaeology to Art». In: Archaeologies of Art: Papers from the Sixth World Archaeological Congress. Dublin: UCD scholarcast, pp. 2­18. FERNANDES DIAS, José A. (2001) “Arte e Antropologia no século XX: modos de relação.” In Etnográfica, 5 (1), pp. 103­129. BONAVENTURA, Paul e JONES, Andrew (2011) Sculpture and Archaeology. London: The Henry Moore Foudation. RENFREW, Colin (2006). Figuring it Out: The Parallel Visions of Artists and Arqueologists. London: Thames & Hudson. RUSSELL, Ian A. (2008). «Art, Archaeology and the Contemporary». In: Archaeologies of Art: Papers from the Sixth World Archaeological Congress. Dublin: UCD scholarcast, pp. 2­7. RUSSELL, Ian A. (2011). «Art and archaeology. A modern allegory». In: Archaeological Dialogues. Cam­ bridge: University Press, 18 (2), pp. 172­176.

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