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PAULO RIBENBOIM
O amigo dos números ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA Universidade do Estado do Rio de Janeiro CÁSSIO LEITE VIEIRA Ciência Hoje/RJ Colaborou SAULO PEREIRA GUIMARÃES Especial para a Ciência Hoje
“A
cho que ele, hoje, é o brasileiro de maior renome na matemática mundial”, diz, ao telefone, Maria Laura Mouzinho Leite Lopes, pioneira da matemática no Brasil, ao saber que a Ciência Hoje quer fazer o perfil de seu colega Paulo Ribenboim. A leitura (mesmo enviesada) do currículo de Ribenboim sustenta a afirmação de sua colega de décadas. Cerca de 200 artigos publicados e 15 livros. É professor emérito da Universidade Queen’s (Canadá), membro da Royal Society daquele país, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Caen (França) e ganhador de prêmios de prestígio, como o George Pólya em exposição matemática, por um artigo sobre números 70 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 49 | 289
primos. A Associação Canadense de Teoria dos Números criou o prêmio Paulo Ribenboim, dado, a cada dois anos, a jovens matemáticos. É o único brasileiro com verbete biográfico na respeitada página de história da matemática da internet, o arquivo The MacTutor de História da Matemática, da Universidade Saint Andrews (Escócia). Ribenboim é um especialista de fama internacional em teoria dos números, e seus alunos são hoje renomados matemáticos, em vários países. Não há ‘se’ em história. Mas os fatos do parágrafo acima poderiam ter sido outros, caso o recifense Ribenboim, nascido em 13 de março de 1928, tivesse recebido resposta para as (várias) cartas enviadas a amigos do Brasil no início da década de 1960. À época, em Illinois (EUA), aquele jovem matemático – com mulher, dois filhos e contas a pagar – enfrentava o fim de uma prestigiosa bolsa Fulbright e de um visto de permanência nos EUA.
FOTO ZECA GUIMARÃES
Zero = número de respostas às cartas, nas quais Ribenboim sondava uma posição no Brasil. Um colega o aconselhou a buscar algo no Canadá. Veio o convite da Queen’s, que ele aceitou. E tantos outros, que teve que declinar. Nancy (França), 1951. Pela primeira vez na vida, Huguette Demangelle, jovem (e belíssima) aluna de um colégio católico da cidade, saía sozinha. Missão: comprar xampu para a irmã mais velha. Ribenboim a viu na fila da farmácia, entabulou conversa, esperou-a na saída e lhe pediu o telefone. Huguette cedeu. Ribenboim ligou. E a mãe da jovem, ao atender, autorizou a filha, ultratímida, a conversar com o rapaz. Saírem sozinhos? Nem pensar. Ribenboim teve que ir à casa da moçoila. O único obstáculo a um relacionamento parecia o cachorro da família, que teimava em ser antipático com o pretendente. Ribenboim reclamou da fera, e a mãe – talvez, julgando que um genro seria melhor que o contumaz mordedor de estranhos – acabou doando o cão. Em menos de um ano, Ribenboim, judeu, e Huguette, católica, se casariam
em uma igreja em Nancy e viriam para o Brasil. Ano passado, em 19 de dezembro, o casal completou 60 anos de casamento. Eles têm dois filhos, Serge, de 1953, e Eric, 1961. São cinco netos. “Alguns muitos bons em matemática”, diz o avô, orgulhoso. No momento, Ribenboim trabalha com afinco para terminar um livro (cerca de 600 páginas) sobre tema complexo (espaços ultramétricos). Todos os dias, são três horas de trabalho corrido e breve pausa para descanso – quando ele está no Brasil, onde passa alguns meses todos os anos, tem predileção pelos jogos na TV de seu time, o Fluminense. Seu último pedido na edição final deste perfil, lida para ele, por causa de sua pouca visão: “Por favor, retirem, com minha autorização, qualquer trecho em que eu possa ter soado arrogante.” Nele, modéstia soma-se à simpatia e à fineza extremas. O Brasil não poderia estar mais bem representado na matemática mundial; e, raramente, os números têm encontrado amigo tão fiel como Paulo – assim ele gosta de ser chamado.
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perfil
Ribenboim (à esquerda), com os dois irmãos, Hermano e Mário (à direita). Na página seguinte, aos 16 anos, no tiro de guerra (serviço militar), feito no Clube de Regatas Guanabara, diariamente
Seu ambiente familiar o influenciou
na opção pela matemática? Minha família era de classe média. Dos três filhos, sou o do meio. Meu pai era comerciante, e, naquele tempo, as senhoras não trabalhavam. Escolheram para mim uma boa escola, o Anglo-americano, de Botafogo; depois, o Andrews, para o curso científico. Co mo meus pais vieram da Europa, tínhamos gosto pela música clássica e pela leitura. Era um ambiente normal, de uma família bem estabelecida.
Do que o senhor se recorda do Recife? Vim de lá para o Rio de Janeiro com oito anos de idade. Lembro-me de começar lá o Grupo Escolar João Barbalho, onde fiz os dois primeiros anos. Em 1936, meus pais vieram para o Rio. A lembrança que tenho é a de brincar, ir à praia, coisas desse tipo.
Seu pai veio da Moldávia, na Rússia. Em casa, eles falavam russo, alemão ou outra língua? Meu pai não falava alemão, e minha mãe, vinda da Áustria, não falava russo; entre eles, falavam o iídiche e, comigo, português. Como brasileiro, eu me recusava a dizer que entendia outra língua a não ser o português.
O senhor desde pequeno já gostava de matemática? Sim. Sempre fui bom 72 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 49 | 289
nisso. Mas eu era bom aluno em todas as disciplinas. Por isso, no Anglo, ganhei várias medalhas [risos]. Gostava muito de mineralogia. Lia sobre o assunto, buscava informação nos jornais, livros e revistas. Mas isso era meu hobby. Matemática, talvez, fosse um talento natural, porque nunca tive dificuldade com ela.
O que o senhor se lembra de suas aulas com o [físico brasileiro Joaquim da] Costa Ribeiro [1906-1960]? Eram muito boas. Ele foi meu professor no primeiro ano científico do Anglo. Ensinava física naturalmente; foi excelente. Lembro-me de que eu gostava muito. No primeiro teste, me deixou por último ao distribuir as provas. E aí me disse que havia gostado muito do que eu havia feito e me fez elogios. O [físico brasileiro Jayme] Tiomno [1920-2011] também foi meu professor no Anglo. Eu tinha 13 anos, e ele lá ensinava química. Era muito bom, fazia experiências para a gente, as explicava. Eu gostava dele. Lembro de histórias engraçadas de meu tempo no ginásio. Eu tinha um professor ao qual eu mostrava as coisas que fazia em matemática, mas ele nunca olhava. Eu dizia: “Professor, você viu se está certo aquele teorema?”. A resposta era sempre:
“Ah, não” ou “Ah, vou ver”. Um dia, com mais ou menos 14 anos, estava brincando no andar térreo de meu edifício, e lá vinha ele. Vocês querem o nome? [Os entrev istador es respondem afirmativamente]. Então, lá vai: Miguel Pereira. Quando me defrontei com ele, pensei: “Ih, ele viu as minhas coisas, gostou e veio me dizer isso.” Nada disso! Subiu direto para o apartamento de uma viúva. Fiquei desapontado e nunca soube se ele havia ou não gostado das minhas demonstrações. Depois, estudei com o Ramalho [tudo indica ser Miguel Ramalho Novo], que a gente chamava de múmia, porque tinha cara de múmia mesmo. Era um bom professor, me ensinou muita coisa, muita mesmo. Isso foi nos três anos científicos, no Andrews.
Quando o senhor estudava no Andrews, sua opção por matemática já estava consolidada? A partir dos 14 anos de idade, eu realmente estava muito interessado em números, fazia tabelas com os cubos, quadrados, raízes quadradas, e observava padrões. Demonstrava teoremazinhos, entre outras coisas. Nessa época, eu queria entrar na escola de engenharia. E a razão é simples: não sabia que havia outra opção. Além disso, o [matemático brasileiro]
PAULO RIBENBOIM
Leopoldo [Nachbin (1922-1993), primo em primeiro grau de Ribenboim] havia estudado na Escola de Engenharia e era matemático. O [matemático brasileiro] Maurício Peixoto havia feito o mesmo. Quando o Leopoldo voltou de uma das bolsas dele em Chicago – por volta de 1945 –, disse a ele: “Vou entrar na engenharia e quero estudar matemática.” Ele me disse: “Não, é para a filosofia que você deve ir.” Aí, me inscrevi na filosofia. Meus pais não estavam muito contentes com a minha opção, porque eles não sabiam o que era essa profissão de ser professor de matemática. Tinham impressão – um pouco justa para a época – de que eu não ia ganhar dinheiro nunca, mas talvez virasse um contador, e, portanto, a opção talvez não fosse tão ruim assim. Meus dois irmãos estavam na engenharia e montaram uma grande empresa aqui [no Rio de Janeiro]. Ganharam muito dinheiro. Mas eu me recusei: não queria fazer esse tipo de coisa. Queria matemática. Não sou milionário, do ponto de vista financeiro; sou, até hoje, milionário no prazer e no tempo.
sores muito bons. O curso da Maria Laura [Leite Lopes] era muito interessante (ver ‘Uma realista esperançosa’ em CH 264). Ela usava um livro famoso, em espanhol, o [Guido] Castelnuovo [matemático italiano, 1865-1952]. O curso do [José] Abdelhay [19171996] era diferente, porque tudo era escrito no quadro-negro. Mas eu lia o livro do [matemático italiano Francesco] Severi [1879-1961] e outras coisas, ou seja, já tinha alguma independência. Com isso, aprendi italiano. O Costa Ribeiro também foi muito bom. O [físico brasileiro José] Leite Lopes [1918-2006] foi depois meu professor [de física] e ensinou coisas boas. Mais tarde, fui aluno do [matemático português] António Monteiro [1907-1980]. E foi ele quem me estimulou ao máximo. Era um pesquisador com um enorme entusiasmo. Fiquei muito próximo dele. Nessa época, eu já estava no terceiro ano.
Quando o senhor publicou seu primeiro trabalho? Em 1949, feito no ano anterior, com o Monteiro; pessoa muito carismática, professor como eu pensava que devia ser um. Estava na ponta da matemática. Talvez, não na ponta mais central, mas certamente em uma delas. E isso era o que interessava, porque as coisas mais recentes, ele ia e provava. E se entusiasmava, explicava, e eu seguia. Escrevi as notas para ele, em um daqueles volumes que ele publicou. Para mim, era muito estimulante e para Maria Laura também. Ela fez a tese dela com ele. E eu fiz o meu primeiro trabalho, porque ele estava lecionando álgebra de [Luitzen] Brouwer [1881-1966]. Eu disse: “Puxa, parece com álgebra de [George] Boole [matemático inglês, 1815-1864]. Quero ver se encontro uma axiomática para as álgebras de Brouwer semelhante à da álgebra de Boole”. E, então, fiz o trabalho; ele me estimulou muito, e publicamos.
Como era o ambiente na Faculdade Nacional de Filosofia em sua graduação? O
Como era a relação entre professores e assistentes? Por exemplo, o Leopoldo
curso não era mau, mas havia profes-
não podia dar aula na Faculdade Na-
cional de Filosofia, porque tinha lá o grupo de Abdelhay; eles brigavam. Havia lá um cargo que todo mundo queria. Era um funil, e era muito difícil, todo mundo brigando. Nesse ambiente, você tinha que tomar um lado. Se você estava do lado de um, não falava com os outros, senão ia ser visto como traidor. Era muito ruim.
O Monteiro foi embora do Brasil por quê? Porque eles o acusaram de comunista. Ele era de esquerda, mas não um comunista. Hoje, ele se diria um socialista. Era contra o [ditador português António de Oliveira] Salazar [18891970], como todo mundo deveria ser. Tinha viés um pouco de esquerda, mas era inofensivo. Era muito honesto, nunca prejudicaria ninguém por causa de suas posições políticas. Mas os inimigos tinham medo e ciúmes. Na universidade, Abdelhay e outros não queriam nada com o Monteiro, que não antagonizava com eles, mas, sim, porque ele era próximo de Maria Laura e de Leopoldo, que não se entendiam com o grupo do Abdelhay. O ambiente era muito desagradável.
Havia gente boa em São Paulo nessa época? Sim, muito melhor que no Rio. São Paulo estava melhor, mas, não sei a razão, não melhorou tanto. Acabou ficando um pouco estagnado, pois, cresceu muito, e não havia tanta gente tão boa assim para poder aumentar.
Nessa época, em São Paulo, havia estrangeiros, como o [matemático francês] André Weil [1885-1955] e os franceses Jean Dieudonné [1906-1992] e Laurent Schwartz [1915-2002]. Eles vinham ao Rio dar seminários? Sim, vinham ao Rio. Depois da guerra, a França, derrotada, queria pouco a pouco se recuperar. A embaixada no Brasil tinha a missão de dar bolsas e de trazer professores. Mandaram pessoas inteligentes. O Weil veio porque tinha problemas com o serviço militar [na França]. Nunca era persona grata nos meios oficiais. Passou dois anos em São Paulo, mas não teve muita influência. Ele e o [matemáti-
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perfil Ribenboim e Huguette, em Metz, perto de Nancy (França), em 1951, ano em que se casariam
Entre a formatura e a ida para Nancy, o que o senhor fez? Estudei todos os trabalhos do Dieudonné, e daí escrevi uma carta para ele, que gostava muito do Brasil. Eu dizia que ia nascer com o Dieudonné. co russo] Oscar Zariski [1899-1986] não brigavam, mas tinham posições matemáticas muito ferozes, pelo fato de ambos terem modos distintos de lidar com a geometria algébrica. Vendo de hoje, a do Weil era pior, porque ele escolheu as definições em uma situação em que acabou se enroscando. Enfim, eles discutiam cientificamente, como se deve. Mas isso foi antes de mim; são histórias que me contaram. O Dieudonné veio por volta de 1947, eu não o conhecia. O [matemático brasileiro Luiz Henrique] Jacy Monteiro [1918-1975] fazia todas as notas das aulas do Dieudonné, que depois eram mimeografadas. Eu as estudei avidamente, aprendi tudo aquilo sozinho. O Dieudonné, porém, apesar de grande matemático, não tinha a mesma estatura de Weil e Zariski.
Como o senhor conseguiu a bolsa para ir à França? Um dia, o Leite Lopes, que tinha muitos contatos, era pessoa muito correta e de muito carisma,
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chegou para mim, nos corredores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas [CBPF], em 1950, e disse: “Paulo, tenho uma bolsa para você ir para fora. Você quer?” Bem, eu tinha 21 anos, e minha resposta foi: “Vou perguntar à minha mãe.” O Leite deve ter pensado: “Mas que rapaz educado!” [risos]. Eu nunca havia viajado. Quando perguntei, minha mãe chorou – meu pai não entrava nisso. E ela acabou sendo convencida. Enfim, ganhei a bolsa, mas nunca preenchi um papel. Tive de assinar umas coisas e só. E aí fui para a França, com 22 anos de idade.
Ela foi convencida pelo senhor ou convencida pelo seu pai? Por mim, porque havia uma rivalidade entre as duas irmãs. Uma tinha um filho muito brilhante, Leopoldo. Com 28, 29 anos, já era um matemático conhecido. Eu estava começando. Minha mãe deve ter pensado: “Eu vou ficar distante de meu filho, mas ele vai ser como o primo”.
O Dieudonné tinha fama de ser direto, sem rodeios. Ele era assim? Sim. Por acaso, fui morar quase ao lado da casa dele e na frente da casa do Schwartz. Logo depois de chegar a Nancy, fui à casa do Dieudonné, e a gente conversou. Ele me perguntou o que eu já sabia em matemática. E, quando contei, ele me disse “Você não sabe nada! Você vai pegar o [livro do Nicolas] Bourbaki [pseudônimo de um grupo de matemáticos majoritariamente franceses], vai ler, e na sexta-feira nos falamos.” Ele era assim. Nunca foi ruim comigo, e eu gostava do modo dele. Ele chegava e dizia: “O que você leu? Está ruim”. Era grandão, muito forte, muita energia, uma voz forte. Mas foi muito bom comigo, sempre. Comecei a pegar cartaz com ele quando fazia meus exercícios ou quando fazia perguntas. “Você sabe que tem uma coisa assim assado?” Por vezes, ele não sabia, e aí tomava nota, porque a pergunta era interessante. Dizia que a pergunta fazia sentido, que não sa-
PAULO RIBENBOIM bia a resposta na hora, ia pensar e responderia depois. O Dieudonné dava muita bronca. Eu o vi dando bronca em gente que não merecia. Ele era ruim, às vezes. Mas comigo não. Até o fim da vida, eu o visitava a cada ano em Paris. Ele vinha à minha casa no Canadá.
E o Schwartz era simpático? Ele e a mulher, [a também matemática] Marie-Hélène Schwartz [1913-1998?], ambos muito humanos. Fui recebido de braços abertos na casa deles. Ele não fazia cerimônia, mas não era tão paternal – era ainda moço, tinha 35 anos. Eu o conheci em 1950, ano em que ele recebeu a medalha Fields.
Foi lá que o senhor conheceu o [Alexander] Grothendieck, não? Sim. Uma vez, eu estava lá, de tarde, tomando chá com bolinho, e o Schwartz disse – me lembro muito bem: “Você, que parece tão equilibrado, tão simpático... Um aluno meu virá hoje aqui. Você vê se sai com ele; ele estuda demais; não é bom para ele; tem a sua idade. Vocês vão ser amigos.” E, realmente, dali a pouco, chegou o cara de bicicleta, de bermudas, os cabelos enormes, bonitão, muito bem afeiçoado. Abre o portão de metal, deixa a bicicleta, sobe. Não tinha cerimônia com o Schwartz, nada. Ele falava igual com todo mundo. E, logo que me foi apresentado, gostou de mim. Ficamos amigos imediatamente. Tornou-se meu melhor amigo. Falávamos de tudo, menos de matemática, que ele sabia tanto mais que eu. Ensinou-me umas coisinhas, mas ele não era muito disso. Queria falar de cinema, literatura, música, teatro... Pois é, quem diria, ele tinha inveja de mim [risos]. Perguntou-me: “Você toca piano?”. Respondi: “Toco, a minha mãe veio da Áustria.” E ele queria tocar. Eu disse: “É fácil, você aluga o piano, pega umas músicas, paga-se um professor”. Aí ele respondeu: “Não, não quero. Aprendo sozinho.” Ele era assim: tinha vontade de fazer tudo sozinho; era individualista. Depois, ele completou: “Não posso alugar um piano; olha para mim;
pareço um filisteu muito pobre.” Ele era pobre. “Você vai lá e aluga para mim”, ele me pediu, porque eu andava mais bem vestido. Foi o que fiz. O piano foi colocado no quarto dele, mas ele só ia tocar por volta da meia-noite. Atrapalhava todo mundo, e aí ele foi mandado embora. A partir daí, ia trocando de quarto. Aprendeu um pouco, e a gente ia a concertos. Andávamos de bicicleta também.
Pouco anos depois, ele veio ao Brasil, não? Eu quis trazer o Grothendieck para cá. Depois dos três anos que passei lá, em 1952, retornei ao Brasil. Mas, quando cheguei no Rio, não havia dinheiro. Em 1952, ainda não era IMPA [Instituto de Matemática Pura e Aplicada]; era CBPF e a faculdade. Mas sem dinheiro. O Grothendieck acabou vindo por meio do Schwartz, que havia estado em São Paulo, com o [matemático brasileiro] Cândido [Lima da Silva Dias (1913-1998)], lá na USP. Ele ficou em São Paulo uns três anos, mas com interrupções. Veio ao Rio uma vez e fez palestras no IMPA. Ele já começava a ser famoso.
O Schwartz também vinha muito ao Brasil, não? Sim, em 1952, por um, dois meses. Sempre me encontrava com ele [no Rio]. Escutava as aulas. O próprio Schwartz seguia, com interesse, as ideias do Grothendieck sobre espaços vetoriais topológicos, quando ele, Schwartz, estava fazendo o segundo volume do livro sobre distribuições – por sinal, uma obra muito difícil. O Schwartz, na França, dava aulas sobre temas que ainda estava criando. Certa vez, disse: “Hoje à noite quase não dormi. Comi uma banana ou não comi nada, e foi isso aí que eu demonstrei.”
Ainda em Nancy, o senhor já havia feito a opção por teoria dos números? Foi graças ao Dieudonné. Ele trabalhava com muitos temas, análise, geometria, teoria dos números etc. Mas o curso dele era de números algébricos e valorizações. Quando esteve no Brasil, ele havia trabalhado um pouco sobre teoria dos números. Segui passo a passo o
que ele havia feito, trabalhei bastante nesse tema e daí ter ido nessa direção.
Desses matemáticos que o senhor conheceu quando jovem, qual o que mais lhe impressionou, como matemático de capacidade criativa? Grothendieck, naturalmente. Ele me impressionou co mo figura. Gostaria de escrever um pouco das minhas memórias, mas tem que ser engraçado, senão não escrevo. Teria um capítulo sobre ele chamado ‘gênio ou mais’. Conheci o Grothendieck muito bem. Meu confidente, amigo íntimo. A matemática dele é extraordinária. Como todo mundo diz, ele está entre os maiores do século, com certeza.
Diz-se que o Grothendieck tinha uma maneira completamente diferente de pensar. O Dieudonné teria reclamado de ele ser muito generalista, não? É verdade. Ele era generalista, mas era como ele pensava. Você pode pensar a matemática como um probleminha ou um problemão. Mas, para alguns, como era o caso dele, o problema só é um caso especial de um problema muito maior. Você pode subir uma montanha e ver muitas paisagens. Ele fazia isso, enxergava e resolvia muitos problemas. Criou o que a gente chamou monumentos. A matemática pode ter monumentos como aquela que ele criou, com belas portas e janelas, muito bem fundamentada. Mas pode ter também cantinhos agradáveis. Quanto a mim, não tenho a força que ele tem.
A certa altura, o Grothendieck se tornou uma pessoa muito política, mística. Ele já dava sinais disso? Sim, muitos. Quando nos encontrávamos, falávamos sobre filosofia, história, arte e cultura em geral. Ele tinha compleições budistas, com 22, 23 anos de idade. Havia também a mãe dele, figura muito importante para ele, mas que não o entendia. Você já viu o livro que ele escreveu Récoltes et semailles [Colheitas e semeaduras, reflexões polêmicas de Grothendieck sobre a vida e a matemática, com cerca de 1,5 mil páginas]? Recebi dele uma cópia autografada.
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perfil Abaixo, Ribenboim na década de 1960; ao lado, em foto tirada para o Prêmio de Excelência da Universidade Queen’s (Canadá) em 1983 – o prêmio seria dado a outro matemático apenas 20 anos depois; na outra página, Ribenboim, após solenidade em sua homenagem, em meados da década de 1970, no Canadá
Ao voltar de Nancy, o senhor é um matemático formado, que havia trabalhado e interagido com pesquisadores de renome internacional. O ambiente no Brasil não foi um choque? Bem, vim já sabendo que precisava melhorar. Ia para o CBPF, fazia seminários com o Luiz Adauto da Justa Medeiros. Havia gente boa aqui. O Brasil nunca teve falta de gente de qualidade. Nunca. Teve muita gente excepcional aqui. Fiquei pouco tempo aqui, porque queria continuar estudando e fui para Bonn, com [o matemático alemão Wolfgang] Krull [1899-1971], que era a grande autoridade no tema que eu havia escolhido, teoria dos ideais. O Krull já conhecia um pouco meus trabalhos, e eu já conhecia muito os dele – por sinal, publiquei as obras completas do Krull. Ele é um senhor da matemática.
O senhor sentiu diferença no modo alemão e francês de fazer matemática e de se relacionar com os alunos? Muito. O Schwartz, por exemplo, dizia: “Não me chame professor.” Ele sempre me disse isso, mesmo quando era muito jovem. Aliás, sempre tive muita sorte. Todo mundo me tratava muito bem. Eu ia às sessões secretas de Bourbaki, me sentava e escutava as exposições e as brigas. Dieudonné era o vigia. E o Weil era muito ruim com os outros, era 76 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 49 | 289
uma coisa horrível. [Pierre] Samuel [1921-2009], muito amigo meu também, ficava lá caladinho. Na época, o Grothendieck não ia. Depois, foi admitido e, muito cedo, brigou. Ele não aceitava nada. Quanto ao Krull, era na base do “bom dia, professor.” A gente se sentava direitinho, todo bem vestido. Ele chegava lá, dava a aula dele, e a gente podia falar. Mas, para falar com ele a sós, tinha que bater na porta dele e receber permissão para entrar. Havia uma secretária para barrar a gente [risos]. Ele só recebia aqueles que tinham perguntas. Comigo, foi muito gentil, até procurou um lugar para eu morar. Mas era formal. O Krull me deu um trabalho para estudar. “Esse é de um japonês, [Masayoshi] Nagata [1927-2008]. Parece que ele resolveu minha conjectura, dizendo que é falsa.” Ao estudar o artigo do Nagata, percebi que sua demonstração tinha um furo e que seu exemplo não estava correto. Produzi um exemplo correto, mostrando que a conjectura de Krull era realmente falsa. Fui, então, ao Krull e disse: “Professor, o Nagata estava errado. É assim que se faz isso.” O Krull viu que eu havia acertado e gostou. Dali por diante, me deu seminários para fazer.
Por que o senhor não fez seu doutorado em Bonn? Porque fui com uma bolsa de um ano...
Mas ficou três. Pois é, mas quem sabia disso antes? Eu não sabia. No dia em que cheguei, não sabia. A bolsa tinha que ser sempre renovada, e a gente nunca sabia se iria ser. Bem, além disso, vi como era o programa em Bonn. Tinha que estudar muita física e filosofia. E probabilidade. Eu ia sacrificar aquele ano, e para mim isso era impossível, pois, inicialmente, não sabia quanto tempo ia ficar lá. Além disso, eu não sabia bem o que era um doutorado. Nunca entendia a palavra. O pessoal tinha cátedra e outras qualificações; porém, PhD, no Brasil, eu não conhecia. Mas, depois, em São Paulo, fizeram um programa, por volta de 1955 que precisava de curso. Havia um exame, fazia-se uma tese e se tornava doutor. O exame era um assunto secundário. Depois, tinha a defesa da tese.
E quem foi a sua banca? Havia o Cândido – que era o meu orientador –, bem como o [Édison] Farah e o [Fernando] Furquim [de Almeida]. O Cândido me deu um bom livro para ler, de [Helmut] Hasse [1898-1979]. Muito bom. Tive que ler aquilo tudo e despejar
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aquele conhecimento para eles. No final, esse conhecimento foi muito útil. Em 1957, defendi meu doutorado e, pouco depois, publiquei minha tese no Boletim da Sociedade Brasileira de Matemática. Simultaneamente, vários artigos, desdobramentos da tese, saíram na Alemanha.
Como era a vida na Alemanha, 10 anos após a guerra? Dureza. Comia-se muito mal. Era difícil comprar. Faltava quantidade e qualidade. Não havia legumes no inverno. Meu filho, que era pequeno, ficou raquítico, porque não havia sol. O verão durava um dia. No resto, chovia. Bonn é muito chuvoso. O inverno é frio, úmido. E as pessoas não fazem amigos lá. Eu só fiz um: [o matemático alemão Otto] Endler [19291988], que trouxe para o Brasil. Ficamos muito amigos. Ele era muito tímido. Certa vez, disse a ele: “Está vendo aquela mulher ali? Acho que, se você for falar com ela, ela vai gostar.” Empurrei-o, ele foi, e ela gostou. E eles se casaram. Era a [física brasileira] Anna Maria Freire [depois, Endler].
Com uma bolsa da Fulbright, o senhor foi para a Universidade de Illinois [EUA], da qual recebeu uma oferta de trabalho. Por que o senhor não aceitou? São duas as razões. Uma porque não renovaram meu visto. Naquela época – isso foi
1962 –, escrevi muito de lá para cá, para poder voltar ao Brasil. Mas brasileiro não responde, e não havia possibilidade de telefonar – eu nem mesmo sabia os números de telefone das pessoas. Escrevia muitas cartas para meus amigos no Brasil, mas ninguém respondia. Eu não podia vir com duas crianças sem ter uma posição. Minha ideia inicial era voltar. Mas, como não deu certo e tinha que sair dos EUA, um colega meu disse “Olha, vá para o Canadá.” E eu escolhi ir para lá. A primeira oferta foi da Universidade Queen’s. Depois, vieram ofertas de tudo quanto era lugar. Mas eu já estava na Queen’s desde 1962. Não quis mais voltar para os EUA – e eis aqui a segunda razão: as questões militares. Você acha que os EUA, que estão sempre em guerra, vão parar de entrar em conflitos porque meus filhos cresceram? Não vão. Nesses casos, eles seriam chamados, estrangeiros ou não, para a guerra. E eu não sou a favor de nenhuma guerra. Então, não quis. O Canadá é um bom país – e não entra em guerra. É outra mentalidade. Tenho seis meses de liberdade para ir aonde quero. Em Illinois, eu trabalhava como escravo e tinha pouco tempo para fazer pesquisa. Além disso, há uma falta de qualidade nos EUA que não é muito comentada – é verdade que há excelentes alunos lá, mas há também muitos bolsistas, dos quais é exigido produção. E isso baixa a qualidade. Por sinal, isso é um grande perigo, em muitos lugares: onde há suporte para pesquisa, eles querem pressa. Ora, em matemática, você pode passar cinco, seis, oito anos para resolver um só problema, trabalhando sério. Mas querem resultados, em três anos. O aluno não tem tempo de aprender o que deve, fazer os exames de qualificação e fazer uma tese depois. A minha teoria é que, bom aluno, a gente guarda; aluno ruim, manda-se embora depressa. Tenho tido, no Canadá, alunos extraordinários. Um dos meus alunos, [o britânico] Andrew Granville, é famosíssimo em teoria dos números. Tenho outros também.
Aqui, no Brasil, o Aron Simis [da Universidade Federal de Pernambuco], muito bom. Em Queen’s, queria fazer um programa de estudos com meus colegas e pedi conselhos ao Dieudonné sobre um programa de cinco anos. Ele, então, me mandou essas sugestões por carta. Mas nunca conseguimos pô-las em prática, porque, no Canadá também, há alguma pressa. Esse dilema entre rapidez e segurança é difícil.
Em 1964, houve o golpe militar. O senhor se lembra do clima na época? Vim depois do golpe, em uma condição muito especial, para ver minha mãe. Ficava no hospital, e não falávamos sobre essas coisas. Meus irmãos estavam trabalhando, e não foram prejudicados. Depois, acho que voltei só em 1973, devido a um colóquio, talvez, porque eu não dava aula aqui; na verdade, nunca mais dei aula aqui. Nos últimos anos, tenho vindo com frequência, porque gosto daqui, minha mulher adora aqui, tenho amigos, primos e muito mais. Na França, nessa época [metade do ano], não tem nada. Em 1973, quando retornei, não tive um choque tão grande. Mas agora estou impressionado com a quantidade de dinheiro que existe aqui. Como tudo aumentou, não só de preço, mas de atividade. O Brasil está muito bem, tem muito dinheiro correndo aqui. No Canadá, não tem isso, não. Eles cortam tudo, não gastam mais do que devem. Eles estão mal, não tem essa fartura, pois o crescimento está reduzido por causa da crise.
Como o senhor escolhe um problema matemático? Vai atrás ou ele aparece? Existem os famosos. A gente mexe um pouco, fica difícil e não vai poder resolver aquilo. Se você não tem uma ideia muito específica, não adianta – você tem que pensar na quantidade de gente inteligente que passou anos ali. Portanto, sem uma visão diferente, não vale o esforço. Os outros, você estuda e se faz perguntas, e por aí vai. Ou você faz como estou fazendo agora: trabalha uma estrutura matemá-
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Paulo com os dois filhos, Serge (esquerda) e Eric. Com a neta Katy, em meados da década de 1990
tica. No caso, são os chamados espaços ultramétricos. Na matemática, como na física, é importante medir distâncias. Medidas ultramétricas se relacionam com os números primos e permitem um olhar novo sobre muitos problemas de aproximação. Trabalho nisso desde o tempo do Dieudonné – portanto, década de 1950. Comecei devagar e fui ampliando o escopo. De cima da montanha, fica uma coisa muito bonita. Gostaria de ter conexões com o pessoal do [matemático brasileiro] Marcelo Viana [do IMPA], entre outros.
O senhor leva questões de estética e beleza em consideração quando está trabalhando? Muito. Imitando [o matemático francês] Jean-Pierre Serre, o que é bonito deve ser verdade. Na matemática, tem muito disso; na física também. Você tem que ter aquele instinto de beleza, porque o mundo tem que ter muita beleza. A ciência é como a música; talvez, precise de beleza. Em uma situação em que não se vê beleza, você tem que recomeçar, até encontrar algo bonito. É um instinto matemático. As leis da física, a mesma coisa.
O senhor tem algum artigo seu preferido? Aquele em que resolvi aquela con-
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jectura de Krull foi marcante, porque o tema estava em aberto. Foi por isso, acho, que ganhei a bolsa Fulbright e me tornei professor associado em Illinois. Fiz esse artigo em 1954. Tinha 26 anos. É a tal história: garoto pode fazer matemática até melhor que matemático experiente. Talvez, porque garotos não podem avaliar as dificuldades dos problemas. Se o professor diz “Faça isso”, você tem que fazer [risos]. E, às vezes, faz melhor que os outros, mais experientes.
O senhor começou a escrever livros por encomenda ou vontade? Vontade. Só faço o que quero. Escrevo porque é uma compulsão. Estou feliz porque dois dos meus livros [My numbers, my friends (Meus números, meus amigos) e The little book of bigger primes (O pequeno livro dos números primos ainda maiores)] foram traduzidos para o alemão. Praticamente, o público desses livros lê em inglês. Mas um livro publicado no idioma do país é mais lido que o importado. Além disso, o preço é menor e se cria um vocabulário naquela língua. A primeira edição do livro sobre primos se esgotou e acabou de sair uma nova.
O senhor lembra em que ano foi criado o Prêmio Paulo Ribenboim de Teoria dos
Números? Em 1999, e está na sexta edição. Quem ganhou o primeiro foi meu ex-aluno Andrew [Granville] [Em 2002, Henri Darmon; em 2004, Michael Bennett; em 2006, Vinayak Vatsal; em 2008, Adrian Iovita]. O prêmio é decidido pelos organizadores dos encontros patrocinados pela Associação Canadense de Teoria dos Números. Eles me ligam para dizer quem foi escolhido. [Ano passado,] foi um alemão, [Valentin Blomer], que veio para o Canadá. Por sinal, sim paticíssimo, pianista de primeira – me deu um disco dele, tocando Schubert. Ele ganhou o prêmio e agora está voltando à Alemanha para ser professor [na Universidade de] Göttingen. Todos os anteriores são de altíssima qualidade. Uns do Canadá, outros passando um tempo lá. Estou muito feliz pelo prêmio ter esse nome. Ele é dado a cada dois anos. Um critério é que o ganhador tenha feito seu doutorado nos últimos 12 anos. Minha única imposição foi: se não há gente boa, então o prêmio não deve ser dado. Não quero vê-lo diminuir de qualidade. Mas a escola de teoria dos números no Canadá é muito vibrante. Há muita gente boa e muitos trabalhos de alta qualidade. Isso é bom, e eu espero que continue.