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Comentário Geral n° 1 sobre Artigo

direitos humanos desse século. A minuta do texto da Convenção foi apresentada pelo México e foi a primeira vez em que as organizações da sociedade civil participaram da construção de um tratado na ONU. Pude presenciar a intensa troca de informações entre os 192 países sobre as realidades vividas pelas pessoas com deficiência em suas culturas.

A verdade é que a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência consagrou uma mudança paradigmática na concepção da deficiência. Como verão neste relevante Caderno da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o novo paradigma resulta do amadurecimento da sociedade e do reconhecimento social, político e científico da deficiência como um atributo da sociedade. É um conceito revolucionário, no qual a deficiência deixou de ser considerada um atributo do indivíduo, mas sim a resposta inacessível do meio, que não oferece recursos para o exercício pleno dos direitos.

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O impacto desta transformação não poderia ser outro, senão uma mudança profunda no enfrentamento de questões e soluções relativas à deficiência, bem como na implantação de ações e políticas públicas destinadas a garantir a plena inclusão na sociedade de pessoas, sem discriminação em razão de suas diferentes formas de se locomover, de ouvir, de ver, de pensar, de aprender, de existir.

Ter acesso à educação e ao sistema de saúde, viver de forma independente em sua comunidade, exercer seus direitos políticos, conseguir empregos e trabalhos decentes, acessar informações, mover-se livremente e poder tomar suas próprias decisões eram direitos rotineiramente negados a quem tem uma deficiência. Infelizmente, ainda são negados por muitos que ainda nos colocam como os últimos na fila dos direitos humanos básicos. A própria pandemia escancarou isso, com pessoas com deficiência excluídas das estratégias de apoio, prevenção e combate ao coronavírus.

Nessa triste escalada de exclusões, percebemos que meninas e mulheres com deficiência são ainda mais afetadas. Embora vivenciem as mesmas formas de violência de gênero que mulheres e meninas sem deficiência, elas continuam a ser submetidas a formas específicas e únicas de violência, devido à somatória de discriminações que carregam. Tratamento forçado, negação da capacidade legal e de tomada de decisão, além de violações dos direitos sexuais e reprodutivos são exemplos das violações sofridas.

Para mudar essa realidade, desde 2018, tenho o privilégio de acompanhar de perto essas e outras discussões por ter sido eleita membro do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, colegiado responsável por monitorar a implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelos Estados Parte. O Comitê reúne dezoito membros de diferentes países, peritos na temática da pessoa com deficiência. Atuar no Comitê tem sido uma oportunidade de me transportar para a realidade e para barreiras enfrentadas por outros países e perceber os esforços de muitos em promover as transformações necessárias, sobretudo daqueles mais pobres, em desenvolvimento, que pedem ajuda do Comitê para implementar e fortalecer suas políticas. Por outro lado, independentemente de seu IDH ou PIB per capita, todos os Estados do planeta, em algum grau, ainda estão em déficit para o pleno cumprimento dos direitos das pessoas com deficiência. Tem sido uma experiência ímpar poder entender melhor a

realidade das pessoas com deficiência no mundo, desde países mais desenvolvidos, como Espanha, Estônia, França e Noruega, até nações em desenvolvimento, como Djibuti, Níger, Ruanda e Senegal.

Posso afirmar também que o Comitê tem envidado cada vez mais esforços pela igualdade de gênero, não apenas no discurso, mas também na prática. Dos dezoito especialistas eleitos pela Assembleia Geral das Nações Unidas com base em sua competência e experiência no campo dos direitos humanos e da deficiência, atualmente onze são mulheres! No último Dia Internacional da Mulher (8/3/21), no processo eleitoral para a Presidência do Comitê, elegemos Rosemary Keyess, perita australiana tetraplégica. Tal resultado reafirmou a importância das mulheres na alta hierarquia nas instâncias de poder da ONU, bem como o compromisso com a paridade de gênero nos órgãos colegiados da organização. Além desta conquista, em agosto e setembro deste ano, alcançamos uma nova vitória: a reinstalação do Grupo de Trabalho de Meninas e Mulheres com Deficiência, que estava paralisado há dez anos. A Convenção busca, assim, que a “maior minoria” do mundo desfrute dos mesmos direitos humanos e sejam capazes de levar suas vidas como cidadãs e cidadãos em sua plenitude. Para isso, apresenta oito princípios gerais orientadores aos Estados e demais atores da sociedade civil: respeito pela dignidade inerente, autonomia, incluindo a liberdade de tomar as próprias decisões, e independência das pessoas; não discriminação; participação e inclusão plena e efetiva na sociedade; respeito pela diferença e aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; igualdade de oportunidades; acessibilidade; respeito pelas capacidades em evolução das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar suas identidades; e igualdade entre homens e mulheres, princípio este particularmente caro para mim, na qualidade de mulher tetraplégica.

Ao incorporar essa mudança atitudinal, a Convenção deu um passo importante para alterar a percepção da deficiência e garantir que as sociedades reconheçam que todas as pessoas devem ter a oportunidade de atingir seu pleno potencial. Tal mudança não ocorre apenas na esfera internacional, mas em nossa realidade doméstica: em primeiro lugar, porque a Convenção foi o primeiro instrumento jurídico internacional ratificado pelo Brasil com status de emenda constitucional, integrando o nosso bloco de constitucionalidade. Em segundo lugar, porque a mesma inspirou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n° 13.146/2015, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência), a qual tive a honra de ser a relatora de Plenário e autora de seu texto substitutivo final. Todos os tratados internacionais de direitos humanos juridicamente vinculantes têm um componente de monitoramento, e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência não é exceção. Nesse sentido, compete ao seu Comitê, o qual me orgulho de ter sido eleita perita, monitorar o cumprimento dos compromissos e das obrigações por parte dos Estados.

Atualmente, a ONU contabiliza 184 países que ratificaram a Convenção, o que confirma sua abrangência e universalidade. Semestralmente, o Comitê analisa uma série de relatórios submetidos periodicamente pelos Estados Partes. Com base nessa documentação,

os peritos e peritas se reúnem com cada país, emitem observações finais e apresentam recomendações para o pleno cumprimento da Convenção.

Nesse sentido, os relatórios periódicos têm um papel fundamental em promover o cumprimento, pelos governos nacionais, de suas obrigações para todas as pessoas com deficiência nos termos da Convenção, permitindo à sociedade civil avaliar a situação de respeito pelos direitos humanos das pessoas com deficiência em seus países. Além disso, por meio do Protocolo Opcional à Convenção, o Comitê introduziu o procedimento de comunicação individual, que permite que indivíduos e grupos denunciem violações ao Comitê que, por sua vez, examina a reclamação e formula recomendações com base no caso concreto, de forma a impedir a continuação da violação de direitos.

Por fim, não menos importante, o Comitê exerce robusta função interpretativa internacional dos direitos humanos por meio da edição de Comentários Gerais que, de boa-fé, devem ser observados pelos Estados na implementação interna das convenções. Esses Comentários Gerais também servem de argumento em ações judiciais e reclamações, na medida em que seus conteúdos devem ser reconhecidos como componentes das obrigações decorrentes da Convenção, o que confere ainda mais importância a este Caderno da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Ao traduzi-los para língua portuguesa, alunas e alunos da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo amplificam o acesso dos cidadãos com deficiência, aos seus direitos humanos mais essenciais. Em breve, teremos novos Comentários Gerais que virão se somar aos que já estão em vigor. Em março deste ano, o Comitê realizou chamada pública para receber contribuições da sociedade ao projeto de Comentário Geral sobre o Artigo 27 sobre o direito das pessoas com deficiência ao trabalho e ao emprego. Estar na ONU, como a personificação de uma somatória de exclusões, me faz perceber a cada missão o quanto os direitos das pessoas com deficiência - ou a ausência deles - servem de parâmetro para medir o desenvolvimento humano. Quem cresce de maneira sustentável, que é nosso objetivo, não deixa ninguém para trás.

Tornar as cidades inclusivas, seguras, sustentáveis e consagrar a acessibilidade como um direito de todos, e não só das pessoas com deficiência e dos idosos, é um objetivo que necessitará de grande união de esforços e planejamento cuidadoso. Este já é o papel que assumi no Brasil como deputada federal e como senadora. Mas também tem sido o meu papel no Comitê da ONU. O paradigma da segurança humana, do novo humanismo, somente será atingido se entendermos que esta é uma responsabilidade de todos nós na promoção do bem-estar, da dignidade e da inclusão social de todas as pessoas. O desenvolvimento sustentável que tanto almejamos e os objetivos da Agenda 2030 da ONU reúnem todas as preocupações que estimulam o diálogo e a cooperação entre países, governos, instituições e sociedade, em busca de soluções para superar a pobreza, crises, pandemias, conflitos, desigualdades, preconceitos, violações de direitos humanos e do meio ambiente. Estas metas são ambiciosas, passam pela convivência sustentável e o desenvolvimento de todas as pessoas, e valem os nossos melhores esforços e investimentos.

Nas páginas a seguir, vocês poderão conferir, por meio dos Comentários Gerais do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, como a Convenção pode se tornar de fato uma ferramenta de garantia de direitos.

A todos vocês, meu imenso agradecimento.

MARA GABRILLI Senadora Federal e Perita independente do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

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