Agostinho e seus críticos
Estudos Agostinianos 1
* * * * * * * Nota Editorial Desde a publicação do original desta obra em inglês, deu-se o falecimento de alguns dos autores de artigos que a integram: Daniel W. Hardy (2007), Robert Markus (2010), Robert Crouse (2011), bem como de José Manuel Guirau (2012), OSA, então bibliotecário do “Augustinianum”. Nomes de relevo nos estudos patrísticos e agostinianos. Gostaríamos, aqui, de reverenciá-los e homenageá-los. Igualmente, mas talvez com maior ênfase, gostaríamos de reverenciar e homenagear, mesmo se postumamente, Gerald Bonner – a quem este volume é dedicado –, cujo falecimento deu-se em 22 de maio deste ano, ao longo do processo de preparação para publicação desta obra. R. Dodaro, ao final da Introdução, manifesta-lhe estima e deseja-lhe muitos anos (p. 19), e D. W. Hardy, ao final de sua apreciação de G. Bonner, fala de seu estudo da controvérsia pelagiana como conquista desejada para os últimos anos (p. 28). A bibliografia de G. Bonner, no original em inglês, selecionada também por D. W. Hardy, cita como suas últimas produções – isto é, até aquele momento – dois artigos de 1998 e outro, naquela ocasião, ainda por ser publicado. Expandimos até 2011 a bibliografia com algumas outras de suas publicações, claro, posteriores a 1998. Não sabemos dizer se G. Bonner realizou sua conquista exatamente como a desejava, mas a ampliação da bibliografia mostra que conseguiu dedicar-se ao que queria e que ampliou seu legado, deixando – como sempre fez – bases sólidas para os estudiosos de Agostinho de Hipona. A memória e a obra de Gerald Bonner, certamente, permanecerão vivos e estimados por muitos e muitos anos, e continuarão a merecer respeito e admiração.
Robert Dodaro e George Lawless (organizadores)
Agostinho e seus críticos Artigos em homenagem a Gerald Bonner
Tradução de
Caio Pereira
Título original: Augustine and his critics ISBN 978-0-415-20063-9 © 2000 Robert Dodaro e George Lawless (eds.) Todos os direitos reservados. Tradução do original em inglês autorizada por © Routledge, membro do Grupo Taylor & Francis. Texto conforme o Novo Acordo Ortográfico Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP-Brasil) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) _________________________________________________________________________ Agostinho e seus críticos : artigos em homenagem a Gerald Bonner / Robert Dodaro e George Lawless, (organizadores) ; tradução de Caio Pereira. – Curitiba : Scripta Publicações, 2013. – (Estudos Agostinianos) Título original: Augustine and his critics : essays in honour of Gerald Bonner. Vários autores. ISBN 978-85-66613-01-8 1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 2. Bonner, Gerald I. Dodaro, Robert. II. Lawless, George. III. Série. 13-08963 CDD-230 _________________________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Agostinho, Santo : Teologia cristã 230
Proibida qualquer reprodução, transmissão ou armazenamento deste livro, por e em quaisquer meios, sem prévia e expressa autorização. Todos os direitos em língua portuguesa reservados a © Scripta Publicações Ltda. Rua João Palomeque, 142 - Sala 01 81050-040 Curitiba PR Tel: 41 3327 3163 scripta@scripta.net.br www.scripta.net.br 1ª edição – 2013 ISBN 978-85-66613-01-8
S um ár io
Autores Agradecimentos Abreviações Introdução
7 9 11 15
1 Gerald Bonner: Uma apreciação Daniel W. Hardy
21
2 Gerald Bonner: Bibliografia seleta Daniel W. Hardy
29
3 Estudando Agostinho: Panorama da pesquisa recente Hubertus R. Drobner
39
I - Se Platão estivesse vivo 4 Paucis mutatis verbis: O platonismo de Santo Agostinho Robert Crouse
63
5 A gramática fundamental da teologia trinitária de Agostinho Lewis Ayres
81
6 Tríades Sagradas: Agostinho e a alma indo-europeia John Milbank
115
II - A ordem do amor 7 Mal insubstancial Rowan Williams
151
8
Redes da verdade: Agostinho sobre o livre-arbítrio e a predestinação James Wetzel
9
O Descentramento do ascetismo de Agostinho George Lawless
175 199
10 Cristo, Deus e a mulher no pensamento de Santo Agostinho E. Ann Matter
227
11 Uma avaliação crítica das críticas sobre o ponto de vista de Agostinho a respeito da sexualidade Mathijs Lamberigts
243
III - Nós somos os tempos 12 Tempora christiana revisitados Robert A. Markus 13 A retórica da Escritura e da pregação: Decadência Clássica ou Estética Cristã? Carol Harrison 14 A cidade secular de Agostinho Robert Dodaro
Índice onomástico, de obras e termos relevantes Índice geral
273
291 313 351 367
Au t or e s
Lewis Ayres é professor no Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Durham (Inglaterra). Robert Crouse (†) era professor emérito no Departamento de Estudos Clássicos da Universidade Dalhousie e na Universidade do King’s College, Halifax (Canadá). Robert Dodaro é professor no Instituto Patrístico “Augustinianum”, Roma. Hubertus R. Drobner é professor na Faculdade Católica de Paderborn (Alemanha). Daniel W. Hardy (†) era membro da Faculdade de Teologia da Universidade de Cambridge, e foi, antes, Van Mildert Professor of Divinity1 na Universidade de Durham (Inglaterra) e, em seguida, diretor do Center of Theological Inquiry, Princeton (EUA). Carol Herrison é professora no Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Durham (Inglaterra). Mathijs Lamberigts é professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Leuven (Bélgica). George Lawless é professor emérito no Instituto Patrístico “Augustinianum” e na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. Robert A. Markus (†) era professor emérito da Faculdade de História da Universidade de Nottingham (Inglaterra).
7
E. Ann Matter é William R. Kenan Jr. Professor no Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Pensilvânia (EUA). John Milbank é professor no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de Nottingham (Inglaterra). James Wetzel é professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Villanova, Villanova (EUA). Rowan Williams é Master do Magdalene College da Universidade de Cambridge; foi, até 2012, Arcebispo de Canterbury e, antes, Lady Margaret Professor of Divinity na Universidade de Oxford.
Not a s 1 Uma das mais antigas cátedras da Universidade de Durham. Cátedras nomeadas, como a que esta nota explica, homenageiam personagens de relevo ligados a universidades europeias e norte-americanas; correspondem, grosso modo, a professor titular, ou catedrático; mas, mais que um grau da carreira, identificam uma posição de destaque. Por isso, preferimos mantê-los como no original (N. do T.).
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Ag rade c im e n t o s
Gostaríamos de agradecer aos editores, Lewis Ayres e Michel Barnes, pelo convite a publicarmos este volume com Routledge, em sua série Christian Origins. Lewis Ayres dispensou-nos fidedignos e seguros conselhos ao longo do processo de publicação. Coco Stevenson e outros, em Routledge, fizeram com que trabalhar neste projeto fosse o mais próximo possível do prazer que é publicar. Em Roma, Allan Fitzgerald, OSA, e Aldo Bazan, OSA, dispensaram-nos horas de assistência técnica ao computador, quando alguma “falha” ameaçava o processo de edição. José Manuel Guirau (†), OSA, então bibliotecário do Instituto Patrístico, contribuiu com valorosa assistência na pesquisa de certos registros bibliográficos para nós. A contribuição de John Milbank, Tríades sagradas: Agostinho e a alma indo-europeia, aparece aqui substancialmente intocada de sua publicação em Modern Theology 13 (1997) 451-474. Agradecemos aos editores a permissão de reproduzi-la aqui.
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A br e v iaçõe s
Ediç ões e t r aduç ões das obr as de Agost inh o ACW Ancient Christian Writers: The Works of the Fathers in Translation, ed. J. Quasten, J. C. Plumpe, W. J. Burghart, J. Dillon e D. D. McManus, Westminster Md., 1946-. BA Œuvres de Saint Augustin, Bibliothèque Augustinienne, Paris, 1936-. CCL Corpus Christianorum Series Latina, Turnhout: Brepols, 1954CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, Wien, 1866-. FaCh Fathers of the Church, ed. L. Schopp, R. J. Deferrari, H. Dresler e T. P. Halton, Whashington D.C., 1947-. MA Miscellanea Agostiniana. Testi e Studi, vol. 1: Sancti Augustini Sermones post Maurinos Reperti, Roma, 1930. PL Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, ed. J.-P. Migne, Paris, 1841-1866. WSA The Works of Saint Augustine. A translation for the 21st. Century, New York: New City Press, 1989-.
O br as de Agostinho cit adas nest e volume Acad. adult. coniug. agon. an. et or. bapt. b. uita
De Academicis [PL 32; CSEL 63; CCL 29; FaCh 1; ACW 12]. De adulterinis coniugiis [PL 40; CSEL 41; FaCh 27]. De agone christiano [PL 40; CSEL 41; FaCh 2]. De anima et eius origine [PL 44; CSEL 60; WSA 1/23]. De baptismo [PL 43; CSEL 51]. De beata uita [PL 32; CSEL 63; CCL 29; FaCh 1].
11
b. coniug. b. uid. cat. rud. ciu.
De bono coniugali [PL 40; CSEL 41; CCL 29; FaCh 27]. De bono uiduitatis [PL 40; CSEL 41; FaCh 16]. De catechizandis rudibus [PL 40; CCL 46; ACW 2]. De ciuitate Dei [PL 40; CCL 47-48; FaCh 8, 14, 24; H. Bettenson, Concerning the City of God Against the Pagans, London, 1972]. conf. Confessiones [PL 32; CSEL 33; CCL 27; R. S. Pine-Coffin, Saint Augustine, Confessions, London, 1961; FaCh 21; WSA 1/1]. c. Faust. Contra Faustum Manicheum [PL 42; CSEL 25]. cons. eu. De consensu euangelistarum [PL 34; CSEL 43]. cont. De continentia [PL 40; CSEL 41; FaCh 16]. Cresc. Contra Cresconium grammaticum partis Donati [PL 43; CSEL 52]. diu. qu. Diuersis quaestionibus octoginta tribus [PL 40; CCL 44A; FaCh 70]. doc. chr. De doctrina christiana [PL 34; CSEL 80; CCL 32; FaCh 2; WSA 1/11]. en. Ps. Enarrationes in Psalmos [PL 36-37; CCL 38-40]. ench. Enchiridion ad Laurentium de fide spe et caritate [PL 40; CCL 46; ACW 3; FaCh 2]. ep. Epistula(e) [PL 33; CSEL 34/1-2, 57; 58; FaCh 12, 18, 20, 30, 32]. ep.* Epistula(e) 1*-29* [CSEL 88, FaCh 81]. ep. Rm. inch. Epistulae ad Romanos inchoata expositio [PL 35; CSEL 84]. c. ep. Pel. Contra duas epistulas Pelagianorum [CSEL 60; WSA 1/24]. c. ep. Parm. Contra epistulam Parmeniani [PL 43; CSEL 51]. exc. urb. De excidio urbis Romae [PL 40; CCL 46; WSA 3/10]. exp. Gal. Expositio epistulae ad Galatas [PL 35; CSEL 84]. exp. prop. Rm. Expositio quarundam propositionum ex epistula apostoli ad Romanos [PL 35; CSEL 84]. f. et op. De fide et operibus [PL 40; CSEL 41; FaCh 27; ACW 48]. f. et symb. De fide et symbolo [PL 40; CSEL 41; FaCh 27]. Gn. adu. Man. De Genesi aduersus Manicheos [PL 34; CSEL 91; FaCh 84]. Gn. litt. De Genesi ad litteram [PL 34; CSEL 28/1; ACW 41-42]. gr. et pecc. or. De gratia christi et de peccato originali [PL 44; CSEL 42; WSA 1/23].
12
haer. imm. an. Io. eu. tr. c. Iul. c. Iul. imp. c. litt. Pet. c. Max. mend. c. mend. mor. mus. nat. et gr. nupt. et conc. op. mon. ord. pecc. mer. perf. iust. perseu. praed. sanct. qu. quant. an. reg.
retr. s.
De haeresibus [PL 42; CCL 46; WSA 1/18]. De immortalitate animae [PL 32; CSEL 89; FaCh 2]. In Iohannis euangelium tractatus [PL 35; CCL 36; FaCh 78, 79, 88, 90, 92]. Contra Iulianum [PL 44; FaCh 35; WSA 1/24]. Contra Iulianum opus imperfectum [PL 45; CSEL 85/1]. Contra litteras Petiliani [PL 43; CSEL 52]. Contra Maximinum Arrianorum [PL 42; WSA 1/18]. De mendacio liber unus [CSEL 41,413-466] Contra mendacium liber unus [CSEL 41,469-528] De moribus ecclesiae catholicae et de moribus Manicheorum [PL 32; CSEL 90; FaCh 56]. De musica [PL 32; FaCh 2]. De natura et gratia [PL 44; CSEL 60; FaCh 86]. De nuptiis et concupiscentia [PL 44; CSEL 42; WSA 1/24]. De opere monachorum [PL 40; CSEL 41; FaCh 16]. De ordine libri duo [CSEL 63,121-185] De peccatorum meritis et remissione et de baptismo paruulorum [PL 44; CSEL 60; WSA 1/23]. De perfectione iustitiae hominis [PL 44; CSEL 42; WSA 1/23]. De dono perseuerantiae [PL 45; FaCh 86]. De praedestinatione sanctorum [PL 44,959-922] Quaestiones libri septem = Quaestiones in heptateuchum libri septem [PL 34; CSEL 28/2; CCL 33]. De quantitate animae [PL 32; CSEL 89; FaCh 2; ACW 9]. Praeceptum [L. Verheijen, La Règle de saint Augustin, Paris: Études Augustiniennes, 1967; tradução em inglês: G. Lawless, Augustine of Hippo and his Monastic Rule, Oxford: Clarendon Press, 1987]. Retractationes [PL 32; CSEL 36; CCL 57; FaCh 60]. Sermo(nes). [Para uma lista das edições latinas, ver C. Mayer (ed.), Augustinus-Lexikon, Basel: Schwabe, 1986-1994, cc. xxxviii-xxxix. A esses, acrescente-se a lista de F. Dolbeau, Augustin d’Hippone. Vingt-six sermons au peuple d’Afrique, Paris: Études Augustiniennes, 1996; WSA 3/1-11].
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s. dom. m. Simpl. sol. spec. spir. et litt. trin. util. ieiun. uera rel. uirg.
De sermone domini in monte [PL 34; CCL 35; FaCh 11; AWC 5]. Ad Simplicianum de diuersis quaestionibus [PL 40; CCL 44]. Soliloquiorum libri duo [CSEL 89,3-98] Speculum [PL 34; CSEL 12]. De spiritu et littera [PL 44; CSEL 60; WSA 1/23]. De trinitate [PL 42; CCL 50, 50A; FaCh 45]. De utilitate ieiunii [PL 40; CCL46; FaCh 16; WSA 3/10]. De uera religione [PL 34; CSEL 77; CCL 32]. De uirginitate [PL 40; CSEL 41; FaCh 27].
O ut r as abre viaç þes CTh CJ CSirm
14
Codex Theodosianus, em T. Mommsen (ed.), Theodosii libri XVI cum Constitutionibus Sirmondianis, Berlin: Weidmann, 1904-1905; reimpresso em 1971, p. 27-906. Codex Justinianus = Corpus Iuris Ciuilis, vol. II, em P. Krueger (ed.), Codex Justinianus, Berlin: Weidmann, 1954. Constitutiones Sirmondianae, em T. Mommsen (ed.), Theodosiani libri XVI cum constitutionibus Sirmondianis, Berlin: Weidmann, 1904-1905; reimpresso em 1971, p. 907-921.
Introdução
“O que desejo para todas as minhas obras, é claro, não é somente um bem-disposto leitor, mas também um crítico livre”1. Agostinho não temia a crítica. Nem precisava procurar demais para encontrá-la. Pode ser seguramente afirmado que, desde quando começou a escrever, sua opus encontrou-se tanto com leitores bem-dispostos quanto com críticos livres, geralmente, reunidos nas mesmas pessoas. O interesse no pensamento de Agostinho da parte de acadêmicos e estudiosos engajados em vários campos de estudo não diminuiu mesmo em nossa época. Filósofos contemporâneos, teólogos, escritores espirituais, teóricos culturais e cientistas sociais censuram-no por certos posicionamentos em questões que vão desde a sexualidade e o corpo humanos, gênero, liberdade pessoal, liberdade religiosa e a ética da força até seus conceitos sobre o eu e Deus. Hoje, mais frequentemente, a perspectiva de Agostinho é caracterizada como “pessimista”, e ele é acusado de ser responsável por certa indisposição cristã. Inspirados pelo exemplo acadêmico pacifista, embora tenaz, do Professor Gerald Bonner, a quem este volume é dedicado afetuosamente, os colaboradores de Agostinho e seus críticos desejaram examinar os argumentos de certos críticos severos atuais de Agostinho na tentativa tanto de responder às críticas mais incorretas e injustas quanto argumentar a favor de algumas das perspectivas mais negligenciadas histórica, filosófica e teologicamente que subjazem às convicções mais impopulares de Agostinho. Longe de desejar, com isso, abafar a crítica a Agostinho ou de “branquear” seus posicionamentos controversos, os autores reunidos aqui esperam promover um diálogo mais profundo no que tange às resoluções, ao direcionamento e, onde foi possível, ao valor contemporâneo das difíceis áreas disputadas de seu pensamento. Após uma apreciação acerca de Gerald Bonner preparada por Daniel Hardy, Hubertus Drobner abre o volume com um relatório pa15
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norâmico sobre as tendências de pesquisa em estudos agostinianos ao longo das últimas décadas. Seu artigo oferece a especialistas e também a estudantes uma indicação concisa dos interesses multifacetados pela obra de Agostinho que atualmente exigem a maior porção de atenção dos acadêmicos. A referência aos críticos de Agostinho, então, começa com a Primeira Parte do volume, “Se Platão estivesse vivo”, uma frase tornada famosa pelo esforço de Agostinho, em De uera religione, de aceitar a dívida dos cristãos para com os platônicos. A herança platônica de Agostinho constitui, para os críticos modernos, um dos problemas mais complicados de sua obra. Esse platonismo cristão agostiniano, ainda difícil de definir precisamente, mesmo depois de um século de pesquisa, é uma questão que pesa sobre cada aspecto do pensamento dele, e está, às vezes inaudível, nos fundamentos das críticas à sua obra consideradas em cada um dos artigos deste volume. Robert Crouse oferece uma descrição magistral dos mais importantes dentre os esforços recentes para especificar as diversas correntes de influência platônica dentro do empreendimento intelectual e espiritual de Agostinho, e aponta com veemência na direção da necessidade de toda uma explicação nova e compreensiva do platonismo agostiniano. Por sua vez, Lewis Ayres e John Milbank apresentam novos e fortes argumentos para separar as resoluções teológicas e antropológicas de Agostinho daquelas comumente classificadas, ou mesmo repudiadas, como “platonismos”. Escrevendo sobre a teologia trinitária agostiniana, Ayres tece objeções contra várias caracterizações recentes da teologia trinitária de Agostinho que são populares na América do Norte e no Reino Unido, e que associam a teologia agostiniana a uma “platônica” (leiase “de outro mundo”) superpreocupação com a especulação acerca da Trindade imanente, às custas de uma reflexão bíblica encerrada na experiência histórica do desígnio de um Deus triúno sobre a salvação humana. Milbank toma o outro polo principal nas investigações mais filosóficas sobre Agostinho – sobre o eu e as relações deste com a regra – e argumenta que Agostinho foi além de Platão ao substituir a estrutura mitológica tripartite indo-europeia da alma (e as teorias políticas contingentes desta, centradas no ideal da autonomia) por algo relacionado à estrutura tripartite do amor, um movimento que leva Agostinho ao ponto de subverter a interioridade platônica. Essa “ordem do amor” agostiniana, o coração do livro 15 da obra A Cidade de Deus, constitui o tema da Segunda Parte do volume, que 16
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começa com a reconsideração altamente sugestiva – em parte, por ser revigorantemente não convencional – de Rowan Williams da compreensão agostiniana do mal como a “privação do bem” (priuatio boni). Williams abre novas possibilidades nesse direcionamento fundamental do pensamento de Agostinho ao reimaginar as dinâmicas psicológicas e religiosas envolvidas na autodescoberta de Deus, na reconciliação e no relacionamento com Ele num mundo assolado pela tragédia. James Wetzel retorna corajosamente aos mais agitados mares filosóficos e teológicos que cercam as doutrinas agostinianas do livrearbítrio e da predestinação, por muito tempo o flagelo dos defensores da teologia agostiniana da graça devido a uma lógica aparentemente deturpada desta última doutrina e da não atenção à vontade divina a favor da salvação universal. Depois de colocar em termos consideravelmente claros o que enxerga estar em jogo no posicionamento agostiniano, Wetzel propõe um compromisso com os aspectos mais duros da doutrina, mas que não rejeita a totalidade da intenção de Agostinho de manter intacto o divino mistério por trás da graça da confissão. George Lawless examina muitos desses temas acerca da teologia de Agostinho sobre a graça focado nas diversas formas do ascetismo em sua vida e pensamento. Lawless encontra unidade no interesse ascético de Agostinho pela moderação com respeito à apreciação do corpo, da sexualidade e de outros prazeres materiais, concluindo que, para Agostinho, o ascetismo cristão consistia do cultivo de jeitos e maneiras de nutrir relacionamentos humanos e mantê-los firmes. E. Ann Matter dedica-se ao altamente disputado território do gênero no pensamento de Agostinho com uma revisão minuciosa das mais recentes discussões acadêmicas acerca dos seus escritos sobre as mulheres. Talvez em nenhum outro lugar na pesquisa acadêmica agostiniana atual, as perspectivas histórica, filosófica e teológica são tão vitais para nossos esforços de acessar o legado e o valor das obras de Agostinho quanto no que tange à recepção destes pelos pontos de vista feministas. Matter transita por entre vários métodos diversos de interpretação da visão de Agostinho sobre as mulheres de uma maneira que lhe permite delinear a força de tais avaliações, enquanto mantém sempre perante nosso olhar a distância histórica entre a época de Agostinho e a nossa. Mathijs Lamberigts traz um conjunto similar de habilidades e sensibilidade como apoio em sua investigação acerca das amplamente variadas críticas sobre os pontos de vista de Agostinho 17
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em relação à sexualidade humana, das quais muitas são frequentemente repassadas pela literatura popular atual. Ao descobrir que nenhum crítico moderno de Agostinho, quando se trata dessas questões, é tão corajoso ao enfrentar Agostinho quanto seu contemporâneo mais jovem, Juliano de Eclano, Lamberigts coloca sua apresentação e avaliação, meticulosamente detalhadas, do caso de Agostinho com base nas críticas de Juliano. Tamanho era o peso que a época de Agostinho exercia ao limitar os horizontes de seu pensamento que o tópico em si parecia sancionar uma avaliação. Por isso, o tema da Terceira Parte do volume, “Somos os tempos”, toma sua inspiração de um sentimento expresso no Sermão 80 de Agostinho. Num artigo que define o tom desta seção, Robert Markus reabre a questão acerca das razões por trás do abandono de Agostinho de sua visão anterior de que vivia em “tempos cristãos” divinamente privilegiados, a era de uma evangelização cumprida, trocada pela adoção de uma dúvida radical e desencantada quanto aos propósitos de Deus na história humana, e de uma determinação de perseguir a “cristianização” não encontrada nas leis seculares e nas estruturas institucionais que apoiavam a obra e os valores da religião cristã, mas na renovação interior e espiritual de cada cristão. Em consonância com essa discussão, Carol Harrison rejeita o julgamento de que as realizações retóricas de Agostinho na exegese bíblica e na pregação – o coração de sua produção cultural – existem como continuidade medíocre em relação às sensibilidades clássicas da cultura da Roma antiga tardia, e argumenta, em sentido contrário, que representam uma estética cristã emergente e distinta, informadas pelo e subservientes ao objetivo de promover na alma o amor a Deus e ao próximo, como testemunhado pela vida e pelos ensinamentos de Cristo. Finalmente, Robert Dodaro avalia o valor das críticas recentes ao pensamento e às táticas políticas de Agostinho como autoritárias, elitistas e coercivas, contra o seu objetivo de liberar os indivíduos de todo um leque de filosofias e espiritualidades antigas, que, para ele, eram encantadoras mediante uma ilusão do eu como capaz de autossuficiência moral e espiritual. Dodaro interpreta a rejeição agostiniana da virtude cívica romana, paradigmaticamente representada no herói militar e político, como sendo fundamentada, em última análise, no fechamento da sociedade imperial às possibilidades de reconciliação social contidas na experiência do perdão como dom divino. Evidentemente, um sem-número de urgentes críticas contem18
I N T RO D U ÇÃO
porâneas de Agostinho não estão representadas neste volume. Suas atitudes para com a guerra, os judeus e a autoridade eclesiástica são apenas exemplos de outras posições suas que atraem disparos constantes dos críticos modernos. A seleção dos tópicos aqui mencionados e a exclusão de outros são consequências da disponibilidade, no momento, de colaboradores qualificados e o limite da extensão do volume que podia ser produzido. Routledge deve ser agradecida pelas generosas considerações dadas a nós no que tange a tal condição. Além das pessoas mencionadas nos Agradecimentos deste livro, gostaríamos de agradecer particularmente a nossos colaboradores por sua imediata e surpreendentemente positiva resposta a nosso convite para participar deste projeto. Apesar de suas ocupadas vidas pessoais e acadêmicas, eles responderam deste modo tanto por amor a Agostinho quanto pela afeição e estima mais profundas por Gerald Bonner. A você, Gerald, nossos mais sinceros e afetuosos desejos ad plurimos annos! Robert Dodaro, OSA George Lawless, OSA Roma, 28 de agosto de 1999 Festa de Santo Agostinho Not a s 1
Agostinho, trin. 3,2 [CCL 50,128]: “sane cum in omnibus litteris meis non solum pium lectorem sed etiam liberum correctorem desiderem”.
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