Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho

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Cristo

e a sociedade justa no pensamento de Agostinho


Estudos Agostinianos 2


Robert Dodaro

Cristo

e a sociedade justa no pensamento de Agostinho

tradução de Bárbara Theoto Lambert


Título original: Christ and the Just Society in the Thought of Augusine ISBN 978-0-521-84162-3 © Robert Dodaro, 2004 Todos os direitos reservados. Tradução do original inglês autorizada por © Cambridge University Press.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dodaro, Robert Cristo e a sociedade justa no pensamento de Agostinho / Robert Dodaro; tradução de Bárbara Theoto Lambert. – Curitiba : Scripta Publicações, 2014. – (Estudos Agostinianos ; 2) Título original: Christ and the just society in the thought of Augustine. Bibliografia. ISBN 978-85-66613-02-5 1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 2. Cristianismo e justiça – História das doutrinas – Igreja primitiva, ca. 30-600 3. Sociologia cristã – História – Igreja primitiva, ca. 30-600 I. Título. II. Série 14-04617

CDD-261.7 Índices para catálogo sistemático: 1. Agostinho, Santo : Cristianismo e justiça : Teologia social 261.7

Proibida qualquer reprodução, transmissão ou armazenamento deste livro, por e em quaisquer meios, sem prévia e expressa autorização. Todos os direitos em língua portuguesa reservados a

© Scripta Publicações Ltda. Rua João Palomeque, 142 - Sala 01 81050-040 Curitiba PR scripta@scripta.net.br www.scripta.net.br 1ª edição - 2014


Sumário

Agradecimentos Abreviaturas

7 9

Introdução

13

1 Eloquência e virtude no estadista de Cícero

19

2 Justiça e os limites da alma

47

3 Cristo e a formação da sociedade justa

105

4 Eloquência divina e virtude nas escrituras

161

5 Razões ocultas da sabedoria

201

6 Eloquência e virtude no estadista de Agostinho

245

Conclusão geral

287

Bibliografia seleta Índice de referências às obras de Agostinho Índice onomástico e de termos relevantes Índice geral

293 314 317 325



Agradecimentos

Sou profundamente grato ao Reverendíssimo e Honorabilíssimo Rowan Williams, Arcebispo da Cantuária, que, há muitos anos, como Lady Margaret Professor of Divinity da Universidade de Oxford, orientou-me na tese de doutorado, a qual me levou às questões centrais deste livro. Rowan e sua esposa, Jane, receberam-me em sua casa durante meus anos no Christ Church College, em Oxford, e, ao longo desse tempo, ofereceram-me seus conselhos e amizade. Outros amigos e colegas ajudaram-me a moldar meu trabalho neste livro, tanto na fase inicial, como tese, quanto na fase final, em Roma. Sou particularmente grato a Lewis Ayres pelas muitas formas de aconselhamento e assistência, assim como a Basil Studer, cujos trabalhos minuciosos a respeito de Agostinho influenciaram-me profundamente desde o tempo de meus estudos iniciais em Roma. A Robert Markus, que demonstrou interesse súbito e encorajador sobre os argumentos centrais deste livro, não há expressão de gratidão suficiente de minha parte. Discussões sobre Agostinho e trabalhos acadêmicos compartilhados com Eric Rebillard, George Lawless, Hubertus Drobner, Margaret Atkins, Wayne Hankey, Oliver O’Donovan, Robert Crouse, John Rist, Robert Wilken, Peter Garnsey e Peter Kaufmann ampliaram minha visão sobre as questões centrais deste livro, o que não teria conseguido sem eles. Sou grato também pelos convites para discutir aspectos do meu trabalho em seminários e conferências organizados nos últimos dez anos por Elena Cavalcanti, na Universidade de Roma III; Luigi Alici, na Universidade de Perugia; Mark Vessey, na Universidade da Columbia Britânica; Eric Rebillard e Claire Sotinel, na Escola Francesa de Roma; Susanna Elm, na Universidade da Califórnia, em Berkeley; Peter Kaufmann, na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill; Elizabeth Clark, na Universidade Duke; Wayne Hankey, na Universidade de Dalhousie; John Rotelle e Tho-


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mas Martin, na Universidade de Villanova, e Giovanni Catapano, na Universidade de Pádua. Também gostaria de agradecer aos membros da Ordem Agostiniana, particularmente aos membros da Província de Chicago, cujas orações, trabalho e sacrifício mantiveram meus estudos por muitos anos. Entre os amigos agostinianos, John Szura ofereceume inestimável encorajamento e sugestões, que contribuíram muito para este livro. Sou profundamente grato aos meus colegas e confrades no Instituto Patrístico Augustinianum, em Roma, que garantiram um ambiente acadêmico propício à pesquisa e à escrita. Sou igualmente grato a minha editora, Katharina Brett, da Cambridge University Press, cuja habilidade e entusiasmo conduziram este projeto à finalização. Também gostaria de agradecer a Eugenio Hasler pela assistência técnica importante. Finalmente, não consigo expressar adequadamente meu apreço a Tom Mueller, que se empenhou em cada página do meu trabalho, meticulosamente, pela clareza de expressão. Dedico carinhosamente este livro, e tudo o que ele representa, aos meus pais, William e Margaret Dodaro.

Roma, 28 de agosto de 2004.


Abreviaçþes

O bras de Agostinho citadas neste volume Acad. c. Adim. adn. Iob adult. coniug. agon. an. et or. an. quant. bapt. b. coniug. cat. rud. ciu. conf. cons. eu. corrept. Cresc. diu. qu. doc. chr. duab. an. ench. en. Ps. ep. ep.* ep. Io. tr. c. ep. Parm.

De Academicis [CCL 29,3-61]. Contra Adimantum Manicheum discipulum [CSEL 25/1,115190]. Adnotationes in Iob [CSEL 28/2,509-628]. De adulterinis coniugiis [PL 40,451-486; CSEL 41,347-410]. De agone christiano [PL 40,289-310; CSEL 41,101-138]. De anima et eius origine [PL 44,475-548; CSEL 60,303-419]. De animae quantitate [PL 32,1035-1080; CSEL 89,131-231]. De baptismo [CSEL 51,145-375]. De bono coniugali [CSEL 41,187-231]. De catechizandis rudibus [PL 40,309-348; CCL 46,121-178]. De ciuitate Dei [PL 41,13-804; CSEL 40/1,3-660; 40/2,1670]. Confessiones [PL 32,659-868; CSEL 33,1-388; CCL 27,1273]. De consensu euangelistarum [PL 34,1041-1230; CSEL 43,1418]. De correptione et gratia [CSEL 92,219-280]. Ad Cresconium grammaticum [CSEL 52,325-582]. Diuersis quaestionibus octoginta tribus [PL 40,11-100; CCL 44A,11-249]. De doctrina christiana [PL 34,15-122; CSEL 80,3-169]. De duabus animabus [CSEL 25/1,51-80]. Enchiridion de fide spe et caritate [PL 40,231-290; CCL 46,49114]. Enarratio(nes) in Psalmos [PL 36,67-1028; 37,1033-1966; CCL 38,1-616; 39,623-1417; 40,1425-2196]. Epistula(e) [PL 33,61-1094; CSEL 34/1,1-125; 34/2,1-746; 44,1-736; 57,1-656; 58,xciii]. Epistula(e) 1*-29* [CSEL 88,3-138]. In epistulam Iohannis ad Parthos tractatus X [PL 35,19772062]. Contra epistulam Parmeniani [CSEL 51,19-141].


10 c. ep. Pel. exc. urb. exp. Gal. ex. prop. Rm. f. et symb. c. Faust. c. Fort. gest. Pel. Gn. adu. Man. Gn. litt. gr. et lib. arb. gr. et pecc. or. Io. eu. tr. c. Iul. c. Iul. imp. lib arb. c. litt. Pet. mag. c. Max. mend. c. mend. mor. mus. nat. et gr. nupt. et conc. op. mon. ord. pat. pecc. mer. perf. iust. perseu. praed. sanct. retr. rhet.

Contra duas epistulas Pelagianorum [PL 44,549-638; CSEL 60,423-570]. De excidio urbis Romae [PL 40,715-724; CCL 46,249-262]. Expositio epistulae ad Galatas [CSEL 84,55-141]. Expositio quarundam propositionum ex epistula apostoli ad Romanos [CSEL 84]. De fide et symbolo [CSEL 41,3-32]. Contra Faustum Manicheum [CSEL 25/1,251-797]. Contra Fortunatum Manicheum [CSEL 25/1,83-112]. De gestis Pelagii [PL 44,319-360; CSEL 42,51-122]. De Genesi aduersus Manicheos [PL 37,173-220]. De Genesi ad litteram [PL 34,245-468; CSEL 28/1,3-435]. De gratia et libero arbitrio [PL 44,881-912]. De gratia Christi et de peccato originali [PL 44,359-410; CSEL 42,125-206]. In Iohannis euangelium tractatus [PL 35,1379-1976; CCL 36,1-688]. Contra Iulianum [PL 44,641-874]. Contra Iulianum opus imperfectum [PL 45,1049-1608; CSEL 85/1,3-506]. De libero arbitrio [PL 32,1221-1310; CSEL 74,2-154; CCL 29,211-321]. Contra litteras Petiliani [CSEL 52,3-227]. De magistro [PL 32,1193-1220; CSEL 77/1,3-55; CCL 29,157-203]. Contra Maximinum Arrianorum [PL 42,743-814]. De mendacio [PL 40,487-518; CSEL 41,413-466]. Contra mendacium [PL 40,517-548; CSEL 41,469-528]. De moribus ecclesiae catholicae et de moribus Manicheorum [PL 32,1309-1378]. De musica [PL 32,1081-1194]. De natura et gratia [PL 44,247-290; CSEL 60,233-299]. De nuptiis et concupiscentia [CSEL 42,211-319] De opere monachorum [CSEL 41,531-596]. De ordine [PL 32,977-1020; CSEL 63,121-185; CCL 29,89137]. De patientia [CSEL 41,663-691]. De peccatorum meritis et remissione et de baptismo paruulorum [PL 44,109-200; CSEL 60,3-151]. De perfectione iustitiae hominis [PL 44,291-318; CSEL 42,348]. De dono perseuerantiae [PL 45,993-1034]. De praedestinatione sanctorum [PL 44,959-992]. Retractationes [PL 32,583-656; CSEL 36,7-204; CCL 57,5143]. De rhetorica [PL 32,1439-1448; R. Giomini, “A. Augustinus, ‘De rhetorica’, Studi latini e italiani 4 (1990) 35-76].


11 s.

c. s. Arrian. s. Casin. s. Denis s. Dolbeau s. Guelf. s. Lambot s. Mai spec. spir. et litt. trin. util. cred. uera rel. uirg.

Semo(nes). [PL 38,23-1484; 39,1493-1638, 1650-1652, 1655-1657, 1657-1659, 1663-1669, 1671-1684, 1695-1697, 1701-1706, 1710-1715, 1716-1718, 1719-1736; CCL 41,3633 (= s. 1-50)]. Contra sermonem Arrianorum [PL 42,683-708]. Sermo in bibliotheca Casinensi editi [MA 1,413-415]. Sermo(nes) a M. Denis editi [MA 1,11-164]. Sermo(nes) a F. Dolbeau editi [F. Dolbeau (ed.), Augustin d’Hippone, Vingt-six sermons au peuple d’Afrique. Retrouvés à Mayence, Paris, 1996]. Sermo(nes) Moriniani ex collectione Guelferbytana [MA 1,450585]. Sermo a C. Lambot editus [PLS 2,750-755]. Sermo(nes) ab A. Mai editi [MA 1,285-386]. Speculum de scriptura sacra [CSEL 12/3,3-285]. De spiritu et littera [PL 44,201-246; CSEL 60,155-229]. De trinitate [PL 42,819-1098; CCL 50,25-380; 50A,381535]. De utilitate credendi [CSEL 25/1,3-48]. De uera religione [PL 34,121-172; CSEL 77/2,3-81; CCL 32,187-260]. De sancta uirginitate [CSEL 41,235-302].

O utras Abreviações AL AM ANRW Aug AugStud BA CCL CPL CSEL CSirm CTh Dolbeau

Augustinus-Lexikon, C. Mayer (ed.), Basel: Schwabe, 1986-. Augustinus Magister. Congrès International Augustinien, Paris, 2124 septembre 1954, 3 vols., Paris, 1954-1955. Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, Berlin/New York: De Gruyter, 1972-. Augustinianum. Periodicum quadrimestre Collegii Internationalis Augustiniani, 1961-. Augustinian Studies, Augustinian Institute at Villanova University, 1970-. Œuvres de Saint Augustin, Bibliothèque Augustinienne, Paris, 1936-. Corpus Christianorum. Series latina, Turnhout, 1959Clavis Patrum Latinorum, E. Dekkers (ed.), Turnhout, 19953. Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, Wien, 1866Constitutiones Sirmondianae, em T. Mommsen (ed.), Theodosiani libri XVI cum Constitutionibus Sirmondianis, Berlin: Weidmann, 1904-1905; reimpr. em 1971, p. 907-921. Codex Theodosianus, em T. Mommsen (ed.), Theodosii libri XVI cum Contitutionibus Sirmondianis, Berlin: Weidmann, 1904-1905, reimpr. em 1971, p. 27-906. F. Dolbeau (ed.), Augustin d’Hippone, Vingt-six sermons au peuple


12 DSp JECS MA PL PLS RAC REAug RechAug REL SC SEAug Signum SPM StPatr VigChr

d’Afrique, Paris, 1996. Dictionnaire de spiritualité, ascétique et mystique, Paris: Beauchesne, 1932-1995. Journal of Early Christian Studies, North American Patristics Society, 1993-. Miscellanea Agostiniana. Testi e studi pubblicati a cura dell’ordine eremitano di s. Agostino nel XV centenario della morte del santo dottore, 2 vols., Roma, 1930-1931. Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, J.-P. Migne (ed.), Paris, 1844-1864. Patrologiae Latinae Supplementum, 3 vols., A. Hamman (ed.), Paris, 1958-1963. Reallexikon für Antike und Christentum, Stuttgart: Hiersemann. Revue des Études Augustiniennes, Paris: Institut des Études Augustiniennes, 1955-. Recherches Augustiniennes, Paris: Institut des Études Augustiniennes, 1958-. Revue des Études Latines, Paris: Société des Études Latines, 1923-. Sources Chrétiennes, Paris, 1915-. Studia Ephemeridis Augustinianum, Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1967Zumkeller, A. (ed.), Signum pietatis. Festgabe fur Cornelius P. Mayer OSA zum 6o. Geburtstag, Würzburg, 1989. Stromata Patristica et Medievalia, C. Mohrmann e J. Quasten (eds.), Utrecht, 1950Studia Patristica, Berlin, 1951-1983, vols. 1-14; Leuven, 1984-, vols. 15-. Vigiliae Christianae, Leiden: Brill, 1947-.


Introdução

Neste livro, tentei responder à seguinte questão: “como Agostinho concebe a sociedade justa?”, questão da qual tratei inicialmente em meu doutorado, em 1992, na Universidade de Oxford, “Language and Justice in Augustine’s City of God”. A questão refere-se não à comunhão dos santos na cidade celestial, que é o ideal de “sociedade justa”, mas na cidade de Deus em sua peregrinação terrena. Observei que havia suficientes estudos acadêmicos disponíveis que tratavam de vários aspectos do pensamento social e político de Agostinho, assim como um bom número de estudos dedicados a aspectos particulares de sua obra De ciuitate Dei. A obra de Robert Markus, Saeculum: History and Society in the Theology of St. Augustine (Cambridge, 1970, 1989), representa, em muitos aspectos, o melhor de ambas as séries de estudos. Entretanto, pensei que havia espaço para um estudo que procurasse unir várias áreas do pensamento de Agostinho; na verdade, havia necessidade de tal estudo, já que, muitas vezes, essas várias áreas são estudadas isoladamente umas das outras. Esse é um defeito que geralmente encontro nos estudos de Agostinho e, a meu ver, isso impede uma compreensão mais profunda dos estudos de Agostinho. É claro para mim, por exemplo, que estudos que dizem respeito ao pensamento político de Agostinho, invariavelmente, atentam pouco a seu pensamento sobre Cristo e interpretação das escrituras, e pouco se empenham em questionar que papel essas e outras áreas de seu pensamento contribuem para sua ética política. Qualquer pessoa familiarizada com o pensamento de Agostinho, em geral, sabe quão diferente é a sua abordagem da nossa abordagem moderna e compartimentalizada com relação a assuntos de filosofia ou teologia. Por exemplo, Agostinho não pode pensar em “Cristo” sem, ao mesmo tempo, pensar na “Igreja” e vice-versa. Assim, para mim, a questão de “como Agostinho concebeu a sociedade justa?” envolve aspectos de seu pensamento


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Cristo e a sociedade justa em Agostinho

sobre Cristo, conhecimento humano, a Igreja e a hermenêutica das escrituras, assim como o pensamento político e a ética. Certamente, ainda falhei em compreender suficientemente a amplitude considerável do pensamento de Agostinho ao realizar esta síntese, mas espero que, com o que fiz, forneça um guia para outras que se seguirão. A questão sobre a “sociedade justa”, na mente de Agostinho, emerge, especificamente, em conjunto com sua objeção à pretensão de Cícero, em De re publica, de que Roma deixou de ser uma república quando abandonou a justiça. No capítulo 1, sugiro que a réplica inicial de Agostinho a Cícero (no livro 2 de De ciuitate Dei), de que Roma nunca fora uma res publica, porque sempre careceu da verdadeira justiça, fornece-lhe uma direção na questão da história e da verdadeira natureza das virtudes cívicas, como a justiça. Entretanto, ao explorar a relação entre a verdadeira justiça e a república, Agostinho opõe ao estadista ideal de Cícero, em De re publica, Cristo, o fundador e o soberano da cidade de Deus. Agostinho conscientemente refere-se à descrição que Cícero oferece do estadista ideal, cuja função é promover justiça dentro da comunidade mediante seu exemplo de conduta justa e sua eloquência. Parece razoável admitir que Agostinho demonstra a superioridade do exemplo e da eloquência de Cristo aos exemplos dos “excelentes cidadãos” (optimi uiri) de Roma, enfatizados em De re publica e em outra literatura romana. Ao mesmo tempo, torna-se claro que Agostinho seguiu a direção de Cícero, ao focar o conceito da sociedade justa no papel de seus líderes em estabelecer a justiça. Todavia, em termos agostinianos, a questão concernente a como a virtude é aprendida também promove a discussão do pecado original e suas consequências gêmeas na alma, ignorância e fraqueza. Esse é o tópico central do capítulo 2, no qual examino a extensão que Agostinho atribui ao fracasso de Roma em alcançar a verdadeira justiça pelo fracasso de seu povo, mal direcionado por seus líderes, em superar esses defeitos permanentes. Discutindo esse caso, tenho em mente que Agostinho escreveu De ciuitate Dei durante o período de sua controvérsia com os pelagianos pela necessidade da graça para a virtude. Durante a controvérsia, iniciada por volta de 411, Agostinho aprofunda sua análise da ignorância e da fraqueza, que forma a base de suas objeções às virtudes romanas pagãs, como discutido nos livros 1-10 da obra De ciuitate Dei.


Introdução

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Em vista da natureza penetrante do pecado original a partir da perspectiva de Agostinho, Cristo ĂŠ capaz de estabelecer uma sociedade justa somente porque, como Deus-homem, sĂł ele ĂŠ capaz de livrar os seres humanos da ignorância e da fraqueza, que os impede de compreender as obrigaçþes da justiça e cumpri-las. No capĂ­tulo 3, examino a conexĂŁo, no pensamento de Agostinho, entre o papel de Cristo na mediação da virtude para a alma e seu papel no estabelecimento da sociedade justa. Somente ao comparar a discussĂŁo acerca de Cristo em De ciuitate Dei, particularmente no livro 10, com o que Agostinho diz dele em outros escritos, fica clara a centralidade de seu papel no estabelecimento de uma ordem social justa no pensamento de Agostinho. Nos capĂ­tulos 4 e 5, o foco ĂŠ a questĂŁo da função das escrituras de instruir os crentes a viver justamente. QuestĂľes que dizem respeito Ă interpretação correta dos ensinamentos ĂŠticos  bĂ­blicos emergem como discussĂŁo na correspondĂŞncia agostiniana com oficiais  pĂşblicos,  QRWDGDPHQWH FRP 5~ÂżR 9ROXVLDQR R SURF{Qsul pagĂŁo da Ă frica, ca. 411/412. Volusiano alega que a nĂŁo violĂŞncia pregada por Cristo (por exemplo, no SermĂŁo da Montanha, em Mt 5,39-41) minimiza a capacidade do cristianismo de defender o ImpĂŠrio Romano. AlĂŠm disso, Volusiano tambĂŠm se opĂľe Ă variação nos ensinamentos ĂŠticos entre o Antigo e o Novo Testamentos. Em resposta a Volusiano, Agostinho toca em um princĂ­pio que explica detalhadamente em outros escritos, dizendo que as escrituras de ambos os testamentos representam um discurso divino Ăşnico e harmonioso. No capĂ­tulo 4, sĂŁo examinadas as implicaçþes desse princĂ­pio na interpretação do conteĂşdo ĂŠtico das escrituras, em conjunto com outros princĂ­pios empregados por Agostinho para interpretar a BĂ­blia. Defendo neste capĂ­tulo que, em De ciuitate Dei, Agostinho confronta as escrituras como “oratĂłriaâ€? de Deus com o papel que CĂ­cero confere Ă oratĂłria do estadista na promoção da justiça na repĂşblica. CristĂŁos que buscam saber viver justamente descobrem, nas escrituras, ensinamentos divinos que revelam a natureza da verdadeira virtude. Entretanto, Agostinho insiste que o verdadeiro significado da palavra da escritura frequentemente estĂĄ escondido abaixo da superfĂ­cie do texto. No capĂ­tulo 4, examino as razĂľes dadas por Agostinho para as tĂŠcnicas que ele acredita que Deus, como autor das escrituras, utiliza na transmissĂŁo das verdades essenciais contidas de maneira oculta nas escrituras.


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Cristo e a sociedade justa em Agostinho

Minha discussão no capítulo 5 prossegue diretamente desse tratamento da interpretação das escrituras no capítulo 4, mas examina a questão à luz da explicação de Agostinho, em De trinitate, da transformação divina do conhecimento sobre a virtude, que os crentes adquirem a partir da leitura das escrituras. Talvez este seja o capítulo mais exigente do livro, pois revela, de um lado, a relação no pensamento agostiniano entre o conhecimento humano e a sabedoria divina e, de outro lado, entre a união das naturezas humana e divina do Cristo. Neste capítulo, também retorno à controvérsia pelagiana como pano de fundo para a reiterada insistência de Agostinho de que as virtudes têm um conteúdo intelectual, tendo de ser, primeiro, entendida para, depois, serem praticadas, e que os seres humanos são, pela ignorância e pela fraqueza, impedidos de compreender os mais profundos significados das virtudes. O capítulo 5 deve ser lido em conjunto com o capítulo 3, porque ambos discutem, a partir de pontos de vista complementares, a insistência de Agostinho de que, entre os seres humanos, somente Cristo alcança a perfeita virtude e que toda “verdadeira virtude” nos seres humanos depende de sua mediação da virtude para a alma. Finalmente, no capítulo 6, retorno ao contraste que Agostinho delineia, em De ciuitate Dei, entre os exemplos dos “excelentes cidadãos” de Roma e os exemplos de Cristo e dos santos. Defendo que a condição única de Cristo enquanto ser humano completamente justo significa que ele não pode servir como exemplo de arrependimento e de dependência da graça divina, que, Agostinho conclui, os crentes precisam para viver justamente. A cidade de Deus, na peregrinação através da cidade terrena, portanto, requer como seus “heróis” santos, como o Rei Davi e os apóstolos Pedro e Paulo, cujos atos públicos de penitência tornam-nos modelos adequados de membros da república justa, governada por Cristo. Essa sociedade, na visão de Agostinho, é amplamente penitencial enquanto confinada à cidade terrena. Agostinho conclui que sua capacidade de conquistar a verdadeira justiça depende do quanto ela segue o exemplo de Cristo e dos santos ao rezar: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido” (Mt 6,12).


Introdução

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Justiç a O leitor deste livro deve ter em mente que o uso agostiniano do termo iustitia envolve a combinação de três significados gerais; o primeiro vem, geralmente, do grego e também da filosofia romana e considera a justiça como “o hábito da alma, ou a virtude, mediante o qual é dado a cada indivíduo o que lhe é devido”1; o segundo chega para Agostinho a partir do Novo Testamento e dos escritos patrísticos latinos e iguala a virtude com o amor que é devido a Deus e ao próximo2; o terceiro segue ao segundo pela lógica e, por vezes, é traduzido como “retidão”. Ele descreve a noção paulina de dikaiosyne como a condição da alma mediante a qual ela se encontra em uma relação “correta” com Deus, o Criador, desde que propriamente ordenada. No livro 8 do De trinitate, Agostinho discute a mudança no uso entre o primeiro e o segundo significados do termo em associação com Rm 13,8: “Não devais nada a ninguém a não ser o amor mútuo”. Do mesmo modo que ele interpreta esse versículo, o sentido clássico filosófico de justiça, como “dar a cada pessoa o que lhe é devido”, traduz-se em dar a Deus e ao próximo o amor, que é o que se deve a eles em virtude do duplo mandamento do amor (cf. Mt 22,40). Então, viver justamente (iuste uiuere) significa amar ao próximo de modo a ajudá-lo a viver justamente, possibilitando-lhe amar a si mesmo, a seu próximo e a Deus, da forma prescrita pela lei divina e pelo exemplo de Cristo. Assim, justiça é entendida em conjunção com o conceito agostiniano de ordem, particularmente com a “ordem do amor” (ordo amoris), que transmite a hierarquia dos bens estabelecida por Deus como objeto do amor e do desejo3. Justiça, concebida de acordo com essa ordem própria do amor, concilia o aspecto volitivo do amor com a ordem criada da natureza4. Vista dessa forma, justiça expressa uma série de relações corretas, que aumentam gradativamente em valor em proporção à ordem desejada por Deus. Nesse contexto, Agostinho define justiça como “amor que serve somente a Deus e, assim, dispõe corretamente do que está sujeito aos seres humanos”5.


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Cristo e a sociedade justa em Agostinho

Notas 1

2

3 4 5

Ver ord. 1,19; 2,22; diu. qu. 31,1; lib. arb. 1,27; en. Ps 83,11; ciu. 19,4; 19,21. Para o conhecimento do pano de fundo filosófico e jurídico desta utilização, ver, por exemplo, Aristóteles, Ethica Nicomachea 1129A e 1130A, Ars rhetorica 1366B9; Cícero, De inuentione 2,160, De finibus 5,65, Digesta 1,1 [Ulpiano] = Justiniano, Institutiones 1,1. Ver, por exemplo, diu. qu. 61,4. Este uso do termo iustitia é encontrado geralmente nos escritores patrísticos latinos como Cipriano, De opere et eleemoysinis, Lactâncio, Institutiones diuinae 5, Epitome 54-55, e Ambrósio, De officiis ministrorum 1,20-23, 1,252, 1,130-136, 1,142, 1,188, 2,49, Expositio Psalmi CXVIII 35,7, De Nabuthe historia 47-48. Ver diu. qu. 36,1-3; lib. arb. 1,11-15; c. Faust. 22,27; cat. rud. 14,1-2; ep. 140,4; trin. 9,14; ciu. 11,17, 15,22. Ver conf. 13,10; s. Lambot 2,13. Ver mor. 1,25. Influências platônicas e neoplatônicas podem ser detectadas atrás desta ligação entre justiça e um conceito ordenado de universo; ver Platão, Timaeus 29E-30B, Plotino, Enneades 3,2,13-14, Porfírio, De abstinentia 2,45, Ad Marcellam 21.




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