Sefarad Universo
USF N.7- EDIÇÃO DE ROSH HASHANÁ 5781 - SETEMBRO 2020
Ecos Sefarditas
Uma literatura amazônica singular 1
SHANÁ TOVÁ A toda a querida Kehilá de Manaus, são os votos de Jaime, Anne e José Benchimol, e de Rebeca, Joshua, Benjamin e Daniel Neman.
Desejamos a todo Am Israel
SHANÁ TOVÁ UMEVORECHET Sergio Benchimol e família 3
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Diretor/Editor Executivo Elias Salgado Editora Executiva Regina Igel Diretor de Arte e Design Eddy Zlotnitzki Oriente Médio Henrique Cymerman Benarroch Literatura Cristina Konder Colaboram neste número Nancy Rozenchan Paulo Valadares Alessandra Conde Conselho Editorial HOMENAGEM ESPECIAL: Prof. Samuel Isaac Benchimol z”l Alessandra Conde Andre de Lemos Freixo Fernando Lattman-Weltman Heliete Vaitsman Henrique Cymerman Benarroch Ilana Feldman Isaac Dahan Jeffrey Lesser Michel Gherman Monica Grin Monique Sochaczewski Goldfeld Regina Igel Wagner Bentes Lins Incluí o Suplemento Amazônia Judaica
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EDITORIAL Nossa edição atual celebra os 10 anos do Portal e do Arquivo Histórico Amazônia Judaica! Muitas novidades são anunciadas no artigo correspondente, como a abertura, em breve, de uma exposição virtual permanente sobre os judeus na Amazônia, como também a manutenção e ampliação do Arquivo das Famílias e a inauguração, no corrente ano, da coluna assinada por Paulo Valadares, geneólogo que sabe levantar várias dimensões das pessoas perscrutadas, como o tempo em que viveram, o que fizeram de bom e não tão bom, etc. Ainda no âmbito das celebrações de seus 10 anos, o Portal e o Arquivo Histórico Amazônia Judaica, publica um belíssimo Luach Shaná Calendário Judaico, para o ano de 5781, ilustrado com belíssimas gravuras do gênero naif, artista plástico sefardi paraense, Arieh Wagner. Mais ainda, também celebramos o lançamento de um livro fabuloso, que consiste numa coletânea de ensaios a respeito de escritores sefarditas estabelecidos na região amazônica. Trata-se de Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia, obra coordenada pelas professoras Alessandra Conde e Silvia Benchimol, num audacioso e feliz projeto da Universidade Federal do Pará, campus Bragança. O dossiê, além de apresentar uma entrevista com a professora Conde, é um convite aberto a que se conheça a cornucópia literária judaica atual da região florestal brasileira e hispânica, como representada por escritores sefarditas, natos ou imigrados para o território amazônico. A resenha do livro, pela professora Nancy Rozenchan, da Universidade de São Paulo, examina a variada coleção de ensaios sobre este mundo recém descoberto, isto é, os escritores e suas obras, entre eles alguns conhecidos e outros quase totalmente desconhecidos do público leitor brasileiro. A partir do dossiê, da entrevista e da resenha, nossa aposta é que nossos ledores vão querer adquirir a coletânea, o que é facilitado por instruções no corpo do dossiê. Outra parte desta mesma edição nos remete a uma história comovente, “A suplicante e o amanuense: o drama de Lola Abitbol”, como narrada e documentada por Paulo Valadares. Lola era uma moça marroquina que chegou no Rio de Janeiro em 1895, aos 23 anos de idade. O que ela queria era naturalizar-se brasileira, o que facilitaria certas situações na sua vida como mãe de uma filha, sem pai. Mais do que a burocracia, que a fez ir e vir do Ministério do Interior por um ano inteiro, foi o preconceito contra mulheres sozinhas, ainda que honestas e infatigáveis trabalhadoras (ela era costureira), o que estabeleceu seu destino em terras brasileiras. O Ministério era lotado por ‘grandes’ senhores conservadores... Esta edição é rica, como já podem ver. Temos um interessantíssimo artigo de Inácio Steinhardt sobre os criptojudeus em Belmonte, Portugal. Também uma resenha das mais primorosas, por Cristina Konder, a respeito de três livros de Elias Salgado, escritor e nosso entusiasmado diretor. Dele, uma deliciosa crônica sobre como se livrar de sapatos velhos, aqueles com os quais se tem uma ligação afetuosa – afinal, nossos sapatos estão conosco em nossas andanças pelo mundo.. Entremos no Rosh Hashaná, no Ano Novo judaico, com o pé direito! Que tenham todos nossos leitores, familiares e amigos, um Bom Ano! Como se diz em hebraico: Shaná Tová!
A Editora
ÍNDICE
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DOSSIÊ - Escritores sefarditas da Amazônia: uma literatura registrada em projeto inédito
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MEMÓRIA
Criptojudeus em Portugal: “Deus, antes de ser português, foi judeu!”
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RESENHA
O homem que veio do fim do mundo
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CRÔNICA
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Os sapatos, o quinhão, o apego e a liberdade
IMIGRANTES - A Suplicante e o Amanuense: o drama de Lola Abitbol
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SUPLEMENTO UNIVERSO AMAZÔNIA JUDAICA
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RESENHA ESPECIAL - Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia
42 CAPA
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REGISTRO
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DO NOSSO LEITOR
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PÁGINA OURO
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LE ZECHER
Donna Benchimol z"l
UM ANJO SUBIU AO CÉU Em homenagem à Senhora Donna Benchimol (Z’L)
“Kol haolam kulô gesher tzar meod Ve haikar, vehaikar, lo lefached klal” Alguns acreditam ser a vida “uma caixinha de surpresas”. Outros, um sopro da Divindade. Ficamos com a segunda hipótese, já que entendemos que a surpresa nada mais é do que a ausência de saber o sentido de tudo o que compõe aquilo que chamamos de vida 6 USF NO. 7 – ANO 3 – EDIÇÃO DE ROSH HASHANÁ 5781 – SETEMBRO 2020
É com imenso pesar que informamos o falecimento da genitora - Senhora Donna Benchimol -- do nosso prezado amigo e colaborador, Dr. Sérgio Benchimol. Ao nosso querido amigo Sérgio e a toda família, nossas condolências e nossa certeza de que a Senhora Benchimol está na Eternidade e nos nossos corações. Que a sua memória seja abençoada. Abaixo, o texto que nos foi enviado por seu filho Sérgio. Elias Salgado
Queridos familiares e amigos. Ontem, nove de agosto, às cinco e cinquenta da manhã, faleceu minha mãe, Donna Benchimol. Não foi vítima de Covid, nem de Alzeimer, aliás, minha mãe nunca foi vítima, ao contrário, foi protagonista de sua vida, junto com meu pai o Dr Raphael Benchimol (Z’L). Construíram uma família, viram filhos, netos e
“Carimbó”, Donna Benchimol
bisnetos. Juntos deram início à uma clínica que ano que vem completa 75 anos. Pessoa sensível, artística, alegre, educadora, nos deu uma educação baseada no exemplo e na conversa direta. Conta nossa tradição que a Alma das pessoas, antes de vir a esse mundo, pergunta a Deus como vai ser. Lhe é explicado que vai vir como um bebê indefeso, num mundo muitas vezes difícil. Daí a Alma pergunta, mas se é assim, como farei? E Deus então lhe diz: não se preocupe, vou mandar um anjo especial pra você. E a Alma pergunta de novo: mas como é seu nome? E Deus diz: Você vai chamá-la de Mãe. Hoje esse meu anjo subiu ao céu. Imagino ela sendo recebida por meu pai, por seus pais, todos seus irmãos. Ela deve estar feliz mas um pouco preocupada conosco. Se eu tivesse o WhatsApp dela, ligaria e diria, mãe fica tranquila, com tudo que você e o papai nos deram, vamos seguir em frente, te amamos muito!
“Ver o Peso”. Donna Benchimol 7
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MEMÓRIA
CRIPTOJUDEUS EM PORTUGAL:
“DEUS, ANTES DE SER PORTUGUÊS, FOI JUDEU!” Inácio Steinhardt * Fonte: WebMosaica revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall v.6 n.2 (jul-dez) 2014
A cena se passa na aldeia de Argozelo, no nordeste montanhoso de Portugal. Estávamos no chamado “Bairro de Baixo”. No centro da aldeia, transeuntes a quem havíamos perguntado sobre a presença de judeus haviam-nos instruído: a aldeia está dividida em duas zonas, o “Bairro de Cima”, onde vivem os lavradores e o “Bairro de Baixo”, onde vivem os peliqueiros (curtidores de peles), ou seja, os “judeus”. 8 USF NO. 7 – ANO 3 – EDIÇÃO DE ROSH HASHANÁ 5781 – SETEMBRO 2020
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orém, percorrendo as ruelas daquela zona, em vão perguntávamos por judeus. Os transeuntes respondiam-nos que não sabiam, ou simplesmente voltavam-nos as costas e afastavam-se rapidamente. Então chegamos àquele pequeno cruzamento onde, na escadaria exterior de uma casa, típica daquela região, um grupo de mulheres estava sentado, trabalhando nas suas costuras ou fazendo crochê e conversando baixinho mas animadamente, naquela atividade que, na
linguagem popular da região, por influência do dialeto mirandês, se designa por “fazer sinagoga”, sem se referir necessariamente a mulheres judias. Ali, a minha pergunta causou um inesperado burburinho. Algumas mulheres embrulharam rapidamente os trabalhos que tinham no regaço e levantaram-se. Uma, mais excitada, pôs-se de pé e, gesticulando num tom quase ameaçador, repetia em altos gritos: “Eu sou de Nossa Senhora, não quero ser judia.” Então, a que se sentava no primeiro degrau, no topo da escadaria, esclareceu em termos mais moderados: “Os senhores devem ter sido enganados no Bairro de Cima. Para nos achincalhar, eles dizem que nós, do Bairro de Baixo, somos judeus. Não é verdade. Mas olhe, meu senhor, eu cá não sou ‘Judeia’ (sic), mas, se fosse, não me envergonhava, porque até Deus, antes de ser português, foi judeu!” Esta frase singela deixou-me sem palavras. Na cândida ignorância do significado das palavras, aquela mulher simbolizou tanta coisa. No limitado escopo dos seus conhecimentos, “Deus” era o homem crucificado que lhe mostravam na igreja. Não conhecia outro conceito da divindade. As pessoas que seguiam a religião dele eram os portugueses. Provavelmente nem conhecia o termo “cristãos”. Quem não era português (ou seja, cristão) era judeu. Consciente ou inconscientemente, ela sabia que também fora judia, como todos os seus vizinhos do “Bairro de Baixo”. Sentiu necessidade de justificar perante aquelas pessoas que vinham procurar judeus – sabese lá com que intenção – que aquele homem a quem chamavam Deus também fora judeu. Não era nenhum estigma. Na realidade, falando assim, ela estava a confessar a sua origem judaica.
Um marranismo diferente Esta cena, ocorrida no início da década de 1980, teve um seguimento significativo, a que voltarei mais adiante. Decidi relatá-la aqui porque tenho para mim que ela simboliza bem quão diferente 9
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foi a evolução histórica do marranismo em Portugal, comparando-se com aquele que resultou da expulsão dos judeus da Espanha. Na Espanha, houve, efetivamente, uma expulsão dos judeus, uma exclusão religiosa, muitas vezes étnica. Em Portugal, não houve expulsão. Pelo contrário, houve uma absorção forçada dos judeus, muitas vezes cruel, sob a égide de um sofisticado Decreto de Expulsão. Em 1492, viviam, na Espanha, aproximadamente 300 mil judeus. Em Portugal, 80 mil. Nada distinguia estes daqueles. Eram os mesmos judeus, provinham das mesmas origens e circulavam livremente de um país para o outro, estabelecendo-se ora de um lado da fronteira ora do outro, conforme as circunstâncias e as condições de vida nos diversos reinos da Península Ibérica. Pertenciam todos ao mesmo povo. Recapitulemos os fatos. Em 1492, após a conquista de Granada,
último reduto muçulmano na Península, Isabel de Castela e seu marido Fernando de Aragão, movidos talvez por um excessivo zelo cristão, incitado por uma parte fanática do clero, decidem eliminar a presença judaica nos seus territórios, deixando aos judeus espanhóis a alternativa de se converterem ao cristianismo ou saírem do país. Em termos aproximados, na falta de estatísticas exatas, considera-se que um terço da comunidade partiu para um novo exílio, outro terço, mais arraigado aos bens temporais que possuía em Espanha, converteu-se ao cristianismo, uns sinceramente, outros continuando a seguir a lei de Moisés na clandestinidade. Finalmente, o último terço alimentou a esperança de que a Espanha reconsiderasse e que eles pudessem, em breve, regressar às suas terras. Esses negociaram com o rei de Portugal o direito de asilo no país vizinho. Para D. João II, foi um
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negócio duplamente favorável. Por um lado, ele necessitava urgentemente de renovar a população do reino, bastante desfalcada pela partida de muitos portugueses para as promissoras aventuras nas terras de além-mar, que se estavam a descobrir. Acresce que os candidatos a imigrantes possuíam precisamente as profissões mais necessárias: cientistas, médicos, astrólogos e artífices. Por outro lado, eles iriam pagar uma taxa por cabeça, nada de desprezar para o erário real. Pelo sim, pelo não, o monarca condicionou a entrada dos judeus espanhóis à obrigação de partirem em breve com outros destinos (que ele sabia não existirem na prática) sob pena de serem considerados escravos da coroa. Até à data da sua morte, em 1495, o rei português procurou, por todos os meios, legítimos e ilegítimos, e com extrema crueldade, persuadir os seus súditos judeus a aceitar a conversão ao cristianismo. Chegou ao ponto de lhes arrancar os filhos dos braços e mandá-los conduzir para a ilha de São Tomé, na África, ainda não colonizada e habitada por crocodilos: a Ilha dos Lagartos, para aí serem criados como cristãos os que fisicamente resistissem. Seu sucessor, D. Manuel I, começou por usar de atitudes mais brandas. Ele compreendeu o quanto necessitava da presença e da atividade dos judeus no reino. Mas não foi assim por muito tempo. Em 1496, forçado pelas condições drásticas do seu prometido casamento com D. Maria de Aragão, filha dos Reis Católicos de Castela e Aragão (que supostamente lhe viria a dar a oportunidade para reunir, sob o seu cetro, todas as coroas da Península), D. Manuel concebeu um plano sofisticado para “expulsar” os judeus e ficar com eles.
O Decreto de Expulsão dos Criptojudeus em Portugal: Dezembro de 1496 concedia um prazo de dez meses aos judeus do reino para se converterem ou abandonarem o país. Como incentivo para que os judeus não se precipitassem para a opção do exílio, o soberano comprometeu- se a fornecerlhe navios para a partida. Na prática, esses navios nunca apareceram. A alternativa era pagarem aos
proprietários de pequenos navios, em péssimas condições de navegabilidade, cujos mestres, quando os apanhavam a bordo, os despojavam de todos os seus bens e até das roupas, para depois os matarem ou, no melhor dos casos, os abandonarem nas costas da Barbárie, onde acabariam por perecer de fome e sede. Não era, pois, uma opção. Em maio de 1497, D. Manuel publicou mais um decreto, desta vez destinado a persuadir os judeus para que aceitassem converter-se “de livre vontade” – após a sua conversão, eles seriam obrigados a frequentar as igrejas e a cumprir todos os preceitos da religião cristã, mas era-lhes concedido um período de graça de 20 anos, durante o qual ninguém teria o direito de inquirir o que eles praticavam dentro dos seus lares. Tinham, assim, até maio de 1517, tempo para se adaptarem gradualmente à nova religião. Esses anos, eles aproveitaram não para se “adaptarem à nova religião”, mas para criarem as condições necessárias para seguirem secretamente a religião dos seus antepassados. Posteriormente, este prazo foi prorrogado por mais 20 anos, até 1537. Isto não impediu, contudo, que houvesse denúncias e perseguições contra os judeus. De fato, D. Manuel procurou, mas nem sempre a tempo, impedir essas violações contra o seu decreto, e castigar os infratores. Terminado o prazo para deixarem o país ou converterem-se, e surdo a todos os clamores dos refugiados que se acumulavam em Lisboa, implorando o cumprimento da promessa real, o rei ordenou que fossem todos arrastados
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para as igrejas, e ali “batizados em pé”. Resulta evidente que foi o tal decreto de Maio de 1497 que produziu o fenômeno único do criptojudaísmo, ou marranismo, em Portugal. Os judeus, cujo número se cifrava aproximadamente em 200 mil (80 mil portugueses e mais 120 mil que vieram da Espanha, pagando a sua taxa de entrada), representavam um quinto da população total de Portugal, que era cerca de um milhão de pessoas. Terminado o período de graça, a população já se achava convenientemente preparada para seguir uma vida de dupla personalidade, uma pública, outra clandestina. Possuíam já uma certa organização de classe, que lhes permitiu, quando a Coroa intentou obter do Papa autorização para a criação do Santo Ofício da Inquisição, enviar para Roma um representante que manteve uma luta diplomática prolongada contra o embaixador de Portugal, a que não foram estranhas chorudas propinas e subornos aos cardeais e outros membros da Cúria.
Instituída em 1536 a Inquisição, tribunal eclesiástico destinado a investigar e punir os crimes contra a religião católica, a sociedade criptojudaica depressa estudou os seus procedimentos e criou uma estratégia para se defender. O Tribunal funcionava à base de denúncias. O primeiro passo era a prisão do denunciado, acompanhada da expropriação dos seus bens móveis, antes mesmo de provada a culpa. E depois, o primeiro interrogatório. Estes interrogatórios eram conduzidos para que o réu se visse obrigado a confessar, na ignorância das denúncias, os crimes de que presumivelmente era acusado, bem como as identidades das pessoas com quem os praticara, seus presumíveis denunciantes. Isto representava uma importante fonte para os inquisidores. Entre 1536 e 1773, realizaram-se centenas de devassas e inquirições à vida religiosa íntima dos portugueses, que deram lugar aos 44.000 processos que se conservam nos arquivos da Torre do Tombo. Assim, o Tribunal ia construindo uma base de dados sobre as “heresias” e os seus praticantes secretos. Montaramse, de parte a parte, redes de espionagem e de contraespionagem, e até de agentes duplos. Os alvos das devassas eram lugares e regiões predeterminados. A emigração estava rigorosamente proibida aos cristãos-novos. Contudo, cada vez que a Inquisição decidia um território a ser devassado (e o aviso chegava, pelas vias referidas, ao conhecimento dos ameaçados), quem podia ausentava-se, sobretudo atravessando a fronteira para Espanha, que, paradoxalmente, era agora um território mais seguro para quem ali não fosse suspeito. Serviam-lhes de pretexto negócios do outro lado da fronteira. Da Espanha, uns voltavam para suas aldeias mais tarde, passado o perigo; muitos continuavam de contrabando para o sul da França, para a Itália, e dali para a Flandres e outros países, onde regressavam abertamente ao judaísmo dos seus antepassados. Assim, foi se criando a diáspora judaica portuguesa, e “português” começou a ser, em alguns países, sinônimo de judeu. Em Portugal, na falta de outros meios de instrução judaica, os
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próprios autos dos interrogatórios serviam para a propagação de ensinamentos primitivos. Outra fonte importante de instrução chegava pelos “emigrantes” que, por terem deixado negócios, familiares ou propriedades em Portugal, vinham de visita, ao abrigo de falsas identidades. Alguns desses traziam consigo informações sobre rezas e práticas religiosas, que haviam aprendido nos lugares onde agora viviam. Por vezes, acontecia de serem presos e castigados pela Inquisição, antes que pudessem fugir. Outras vezes, eram julgados à revelia e “queimados em estátua”.
Os cristãos novos e suas tipologias Em breve trecho, essas tradições secretas judaicas só se mantiveram nos meios rurais, sobretudo na faixa fronteiriça. A grande maioria dos cristãos- novos assimilou-se à população geral, através de uniões em que o capital e a linhagem desempenharam papel preponderante. Temos, assim, três tipos de cristãos-novos: os que se assimilaram à população geral cristã, os que mantiveram o culto secreto (sobretudo nas aldeias isoladas) e os novos judeus da Diáspora de Portugal. Não se estranhe, pois, que se encontrem hoje, na Holanda, na Alemanha, no Caribe e nos Estados Unidos, famílias judaicas com sobrenomes iguais a ramos católicos das mesmas genealogias, que ficaram em Portugal. No Reino, os chamados “cristãos-novos”, descendentes dos judeus forçados a converterse ao cristianismo, eram minuciosamente classificados quanto à percentagem de “sangue infecto” que corria nas suas veias. Eles podiam ser “cristãos-novos inteiros”, ou meios, ou um quarto e até um oitavo de cristãonovo. E, contudo, apenas um número cada vez
menor continuava a seguir, com persistente devoção, uma parte ínfima das tradições judaicas. Isso só foi possível em núcleos concentrados em aldeias com condições geográficas de semiisolamento. E as características desse culto secreto afastavam-se, cada vez mais, das tradições judaicas originais, ao mesmo tempo em que absorviam outras do meio ambiente cristão que, pelas suas origens na religião bíblica primitiva, supriam o esquecimento daquelas que tinham sido seguidas pelos seus antepassados. A transmissão era, sobretudo, matriarcal, pois eram as mulheres que estavam mais isoladas na intimidade dos seus lares, que se reuniam mais facilmente para as orações e as celebrações religiosas, e as transmitiam em segredo às suas filhas. O sigilo não foi suficiente para escapar do Santo Ofício. Os judeus emigraram para as possessões portuguesas no Ultramar. Mas a Inquisição perseguiu-os também aí: quer prendendo-os, como sucedeu nos Açores, na Madeira e no Brasil; quer trazendo-os para as masmorras do
Rossio, em Lisboa; quer criando tribunais da fé em lugares mais longínquos, como foi o caso de Goa (e extensa outra bibliografia desta e de outros autores). Ao mesmo tempo, para concorrer a um grande número de cargos oficiais era obrigatório apresentar um certificado de “pureza de sangue”. 13
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Existiam, para referência, listas de cristãos-novos e, por vezes, os interessados despendiam fortunas para obter um certificado “limpo”. Somente em 25 de maio de 1773, o Marquês de Pombal, primeiro-ministro de D. José I, promulgou uma lei que extinguiu a distinção entre cristãosvelhos e cristãos-novos, tornando inválidos todos os anteriores decretos e leis que discriminavam os cristãos-novos. As listas de cristãos-novos no Reino foram queimadas (com grande prejuízo para o trabalho dos genealogistas); foi abolido o conceito de limpeza de sangue e passou a ser proibido usar a palavra “cristão-novo”. Isto libertou a grande maioria dos portugueses do estigma de “cristão-novo”, mas quase não teve influência nos núcleos de criptojudeus, que continuavam a viver a sua dupla personalidade, na qual a endogamia protegia a conservação do segredo. Se havia algum casamento “mestiço”, o cônjuge não-judeu era afastado das cerimônias secretas, e o cônjuge judeu só continuava a participar se fosse mulher. Os homens eram excluídos. Evidentemente que o fato de essas pessoas serem “judeus” e seguirem rituais
especiais, independentemente de frequentarem as igrejas e receberem os sacramentos desta, não podia passar despercebido aos seus vizinhos. Para quem perguntasse sobre judeus nessas aldeias, apontavam-lhes logo aqueles que assim eram chamados. Estes, porém, negavam quase sempre. Em muitos lugares, existia mesmo uma segregação física, com bairros separados, e até designações especiais para cada uma dessas populações, variando consoante os lugares. No Fundão, os “judeus” eram “caimões”; em Rebordelo, eram “lafrains” ou “lafrãos”; em Vilarinho dos Galegos, os não-judeus eram os “chuços”; em Carção, eram os “cabrões” (sem o atributo pejorativo habitual deste termo); e assim por diante. Pouco tempo depois da extinção do “Santo Ofício”, no início do século XIX, começaram a chegar ao reino judeus sefarditas provenientes de Gibraltar e de Marrocos, que lentamente estabeleceram o culto judaico tolerado no Algarve, em Lisboa, nos Açores, na Madeira e em algumas colônias portuguesas. Obviamente, estes judeus eram descendentes dos judeus que conseguiram escapar da expulsão da Espanha e da conversão
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forçada em Portugal. Em Marrocos, chamavam-lhes de “megurashim” (expulsos), para distingui-los dos “toshabim” (autóctones). Mas não estavam relacionados diretamente com os criptojudeus portugueses da época. Estes viviam ainda na ilusão de serem os últimos remanescentes do judaísmo em Portugal, senão no mundo. Os criptojudeus não representavam senão uma percentagem mínima dos descendentes dos forçados à conversão. Ainda que, nos grandes meios urbanos de Portugal, as famílias de cristãos-novos tenham sido facilmente absorvidas na genealogia dos cristãosvelhos, não faltam os trabalhos publicados tentando provar o “opróbrio” judaico infiltrado em certas famílias. Já o mesmo não podia suceder nos meios rurais. Nesses, manteve-se de maneira mais intensa a distinção e até a separação física entre as duas populações: cristãos-novos e cristãos-velhos. Durante séculos, aqueles mantiveram também tradições secretas do judaísmo, cada vez mais diluídas e mais influenciadas pelo meio ambiente cristão. A isso não terá sido estranha, por motivos opostos, a influência da Inquisição, mas isso é outro tema. Cristãos na rua, judeus em casa, mesmo quando quase toda a memória das orações judaicas e dos seus costumes desapareceu. De tal modo se manteve o estigma, que houve aldeias onde o padre católico estendia uma corda ao longo da igreja, ordenando: “judeus para um lado, cristãos para o outro”. Eram os “judeus da corda”, expressão que se manteve no português coloquial. O apodo era apenas um eco distante do passado, de quando os judeus perseguidos se refugiaram pelas aldeias recônditas porque, consumada a absorção da comunidade criptojudaica de Belmonte, já não se mantém agora, em qualquer outro lugar, nenhuma prática relacionada com a religião judaica. De qualquer modo, cada grupo considerava uma ofensa pertencer ao outro e disparava o insulto, acrescido de vernáculos floreados, sempre que a ocasião se proporcionava. Assim se manteve até aos nossos dias. Numa das aldeias de Trásos-Montes, uma mulher explicava assim ao
jornalista porque não era “cabrona”: “Nunca gostei de trabalhar no campo, por isso pertenço aos almocreves”. Nada mais sobre a origem étnica, como se “judeu” ou “judia” fosse apenas mais um apodo como os outros. A prática secreta de tradições judaicas (jejum de Kipur, confecção de pão ázimo – matsá – em Pessach, acender candeias de azeite nas noites de sexta-feira, cerimônias familiares de casamento e de lavagem do morto, precedendo os sacramentos da Igreja, etc.) manteve-se em alguns lugares até a primeira metade do século XX.
Novos tempos, novos ares Pouco depois do advento da República, em Portugal, em 1910, que deu lugar a uma política anticlerical, dois acontecimentos históricos quase coincidentes vieram agitar a vida dos criptojudeus. Um judeu polaco, engenheiro de minas, Samuel Schwarz, foi contratado para trabalhar em Belmonte. Aí ele teve contato com a comunidade criptojudaica local, e difundiu a sua “descoberta” pelo mundo judaico, dando lugar a uma quase peregrinação de pesquisadores e turistas judeus. Nos nossos dias, já não existem criptojudeus em Belmonte, pois todos ingressaram na corrente central do judaísmo, constituindose na “Comunidade Judaica de Belmonte”, oficialmente reconhecida pelas autoridades. O outro acontecimento foi a conversão, realizada no Tribunal Rabínico de Tanger, de um jovem oficial do Exército Português, que descobriu raízes judaicas na sua família. O capitão Arthur Carlos de Barros Basto, natural de Amarante e residente no Porto, casou com uma senhora judia e procurou congregar os poucos judeus (ashkenazis) residentes na cidade para um “minyan” (numa casa alugada). Com grande surpresa sua, a sua sinagoga atraiu vários cristãos residentes do Porto, que se apresentaram como judeus. Barros Basto seguiu-os até as suas aldeias, por seu intermédio conquistou a confiança das “sacerdotisas” criptojudias, assistiu às suas rezas e iniciou uma “obra de redenção”, para lhes ensinar a prática do judaísmo tradicional, frisando o novo clima de liberdade religiosa 15
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que reinava no país. O seu movimento atraiu membros de diversas comunidades judaicas no estrangeiro, que constituíram dois comitês “prómarranos” (rivais!), um em Londres e outro em Amsterdã. Por intermédio do Comitê de Londres, conseguiu que um milionário de Hong-Kong, Sir Eli Kadoori, cobrisse os custos da construção de
uma sinagoga monumental na cidade do Porto – a Kadoori–Mekor Haim. Aí fundou também um Instituto Teológico “Rosh Pinah” e uma escola de lavores para as meninas, “Eshet Chail”. Embora sem habilitações para isso e sem a assistência de um tribunal rabínico, realizou algumas dezenas de conversões. Barro Basto, de tão entusiasta e otimista, não previu dois contratempos importantes. Um deles era a problemática de afastar os jovens das aldeias e trazê-los para o Porto. A motivação positiva era sobretudo econômica, mas as mães não aceitavam de coração aquela “nova forma de religião”. Contudo, as famílias eram pobres, e a contribuição do trabalho deles fazia-lhes falta. Em muitos casos, foram obrigados a regressar às aldeias. Outros encontraram o seu futuro na grande cidade, mas acabaram por contrair casamentos fora da religião.
Novas mudanças, retrocessos e reminiscências O contratempo mais importante foi a mudança do regime político em Portugal. A liberdade religiosa adquirida com a revolução republicana de 1910, que havia entusiasmado aqueles que mantinham o seu judaísmo em segredo, foi grandemente cerceada pelo novo regime de 1926, que pôs termo à primeira república e instituiu a ditadura militar. O clero católico readquiriu a sua influência e deu novo alento aos opositores do renascimento judaico. O próprio Barros Basto foi severamente perseguido dentro e fora do exército, acabando por ser exonerado e humilhado. O criptojudaismo, nas aldeias, voltou rapidamente à clandestinidade, desta vez mais enfraquecido e mais receoso. As poucas senhoras que encontrei em Trás-os-Montes, que ainda se lembravam das orações que haviam aprendido com as mães, tinham participado das reuniões em que se rezava. “Nós éramos bugalha pequena, não prestávamos atenção” – disse-nos a senhora Olívia Tabaco, em Vilarinho dos Galegos, contudo, ainda acendia as candeias de Shabat e rezava muitas orações bastante semelhantes às que ainda eram rezadas nas Beiras. E como eram também as da senhora Deolinda Araújo, em Rebordelo, uma mulher de armas, “eshet chail”, que faleceu com 97 anos, mãe de 18 filhos, rodeada de netos e bisnetos. Até os seus últimos dias, ela manteve uma relação muito especial e muito íntima com o Criador. Por isso, não tinha pejo nenhum em frequentar a igreja, onde mantinha um diálogo quase de igual para igual com o padre, de quem não escondia a sua condição de judia. “Quando peço a Deus, ele me atende sempre” – dizia ela. Sabia as orações do
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culto católico da aldeia, mas aquelas eram “as da rua”, e as dela eram “as de casa”. Ao padre ela respondia: “O senhor com as suas, e eu com as minhas”. Curiosamente, “as de casa” ela terminava sempre com uma frase que continha uma palavra em hebraico: “Cadós, cadós (Santo, Santo), ao céu vá a minha voz”. Em vão tentei determinar se ela conhecia o significado da palavra “Cadós” (pronúncia sefardita de “Kadosh”). A resposta que dava ao padre, ela aplicou para mim também: “O senhor com as suas e eu com as minhas.” Chegou a hora da prometida continuação ao episódio no Bairro de Baixo, em Argozelo. Ainda eu não me tinha refeito da comovedora frase daquela senhora (“Deus, antes de ser português, foi judeu!”), quando me fizeram sinal para olhar para um homem que, no outro lado da rua, procurava chamar a minha atenção com uma grande pele de ovelha em que se embrulhara, sinal de que era peliqueiro, portanto judeu. Dirigi-me a ele e apresentei-me: “Sou o Inácio, venho de Jerusalém, ouvi dizer que aqui, no Bairro de Baixo, vivem judeus”. “É, judeus, judeus, aqui no Bairro de Baixo, somos todos judeus. Sou judeu” – disse, mostrando a pele de ovelha. Aqui saltou a mulher que, momentos antes, levantara-se da escada para dizer em altos gritos: “Eu sou de Nossa Senhora, não quero ser judia”. Agora ela assediava o homem da pele de ovelha: “Não és nada (aqui um palavrão!) É o meu marido, não é judeu.” “Mas o seu marido diz que é judeu!” “O meu marido não é nada.” “Judeu, judeu” – insistia o marido. – “Não vê que ela é judia? Veja como ela fala.” Mais abaixo, onde a rua formava um pequeno largo, estavam sentadas ao sol outras três mulheres. Perguntei: “E aquelas senhoras?” “Judias”, atestou o peliqueiro. “Nós somos de Jerusalém”, responderam as mulheres em uníssono. O pobre peliqueiro não atingiu: “São do Bairro de Baixo, nascidas e criadas aqui! Judias!” Poderá dizer-se que isto era quase tudo o que restava do judaísmo, há 20 anos, uma memória atávica, comum aos descendentes dos judeus e aos seus vizinhos, que não têm dúvida em apontá-los como judeus, embora se tenham desvanecido as separações físicas e se apontem já
“casamentos mestiços”. Voltei a Trás-os-Montes em 2009, convidado a participar de uma jornada de estudos sobre “Judaísmo e Marranismo – duas faces de uma identidade”, que teve lugar em Vimioso, sede do concelho de que fazem parte Argozelo e Carção. Muita coisa estava diferente. As reminiscências judaicas são hoje objeto de aproveitamento turístico, equipes de filmagem chegam constantemente, assim como os investigadores, numa tentativa de última hora para preservar o que resta para além do possível DNA judaico. Os ditos judeus já não escondem as suas origens étnicas, alguns até fazem gala delas. Em Argozelo, no mesmo Bairro de Baixo, uma “deputação” estava à nossa espera. Provavelmente tinham sido avisados, e alguém lhes relatou a cena acima, do vídeo que tinha sido exibido numa das sessões. Um homem sacou de uma fotografia sua, embrulhado numa pele de ovelha, querendo convencer-me de que tinha sido tirada por mim. Só que ele teria agora aproximadamente a mesma idade que o outro tinha 20 anos antes. Alguém nos disse que o casal já tinha falecido, o que francamente não me surpreendeu. Ofereceram-se para recitar para mim e até cantar algumas das rezas dos judeus. Não eram judaicas, eram todos salmos e ladainhas da igreja. Em Carção, existe já um Museu do Marranismo. E também uma revista “O Almocreve” (profissão judaica). Publicamse livros sobre o tema. Investigadores locais desenterram dos arquivos da Inquisição, na Torre do Tombo (Arquivo Nacional, sediado em Lisboa), documentação preciosa sobre o passado dos judeus na região trasmontana. * Tradutor, jornalista, ensaísta e estudioso do judaísmo em Portugal. Mora em Jerusalém, Israel.
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CAPA: DOSSIÊ LITERATURA
ESCRITORES SEFARDITAS DA AMAZÔNIA:
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UMA LITERATURA REGISTRADA EM PROJETO INÉDITO O projeto prodoutoral “Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia” foi criado em 2018 pela professora Alessandra F. Conde da Silva, da Universidade Federal do Pará, campus de Bragança. A pesquisa volta-se para o estudo da literatura produzida por escritores de origem sefardita na Amazônia
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CAPA: DOSSIÊ LITERATURA
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o entanto, o princípio deste estudo não ocorreu em 2018, mas em 2014, quando a professora Silvia Benchimol, também da UFPA, apresentou à professora Alessandra Conde os livros Eretz Amazônia, de Samuel Benchimol e Cabelos de fogo, de Marcos Serruya. Foi o início da parceria, tornando a professora Silvia Benchimol, de origem sefardita, a vice coordenadora do projeto. Até a sua formação, buscou-se reunir fontes literárias e documentais e uma fortuna crítica que amparassem a pesquisa, que apresenta caráter de ineditismo na Amazônia. Com a renovação do projeto até julho de 2020, com o alargamento do corpus da pesquisa e com publicações em periódicos nacionais e internacionais, as coordenadoras procuraram caminhos mais ousados e projetaram um livro, produto das suas investigações. O livro homônimo – Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia - é uma coletânea de ensaios de diversos pesquisadores de Universidades Federais nacionais e do exterior. Além disso, criou-se um grupo de pesquisa no CNPq, o Núcleo de Estudos Sefarditas da Amazônia (NESA), que reúne professores de áreas distintas, originários de diversas instituições de ensino no Brasil e nos Estados Unidos, como a professora Regina Igel, da Universidade de Maryland, em College Park. Preocupados com a propagação dos resultados das pesquisas e, principalmente, com a divulgação da literatura dos escritores de origem sefardita na Amazônia, que até então era desconhecida mesmo nos centros acadêmicos, o projeto criou um site e uma página no Facebook. Neles foram criadas seções para divulgação dos escritores e suas obras, muitas delas ainda de difícil acesso, inexistindo nas bibliotecas das universidades e carecendo de republicações.
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ELIAS SALGADO Quem é a Alessandra? R: Geralmente, ao falarmos de nossa formação acadêmica, fazemos um pequeníssimo currículo mais ou menos assim: Alessandra Fabrícia Conde da Silva é professora de Literatura da Universidade Federal do Pará, campus de Bragança. Tem Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo e Doutorado em Letras e Linguística pela Universidade de Goiás. É coordenadora do projeto de pesquisa “Ecos sefarditas: judeus na Amazônia” e do NESA. Mas, para falar um pouco mais de questões não profissionais, eu sou a filha caçula da Dona Rosa Conde. Tenho dois irmãos e três irmãs. Sou casada e tenho o pequeno Benjamin. Tenho ainda a minha mãe, a quem devo meus estudos e amor. Meu pai, Elzeman Maués, já não se encontra mais entre nós. Eu tenho certeza que ele estaria muito feliz por me ver estudar sobre os judeus na Amazônia Por que a literatura? R: Amo a literatura. Leio desde menina. Ainda recordo-me do meu primeiro livro preferido e ainda o tenho: Janga, a última gazela, de Jair Vitória. Cito-o apenas para mostrar a importância da leitura na vida infantil. A criança leitora terá mais chance de se tornar o adolescente leitor, o adulto leitor. Comecei a minha carreira
ENTREVISTA A PROFA. ALESSANDRA CONDE de pesquisadora estudando a literatura medieval. Fiz dissertação e tese sobre “A demanda do Santo Graal”. Desde 2018 fiz uma pausa, mas ainda pretendo retornar a este tema, que para mim é aliciante e instigante. O que levou você a criar o projeto? R: Falei acima do meu pai, o Sr. Maués. Ele foi militar da Aeronáutica na juventude e estudou na academia sobre a Segunda Guerra Mundial, o nazismo e os judeus. Em casa, sempre falava sobre as monstruosidades dos alemães. O assunto judaico, de alguma forma, sempre esteve ao meu redor, aliciando-me para buscar entender um pouco mais sobre esta cultura. Mesmo nos estudos medievais, alguma figura judaica surgia como que me atraindo para si, para perscrutá-la. Como você vê a trajetória do projeto até os dias de hoje? R: Confesso que o andamento que o projeto tomou tem me surpreendido bastante, sobretudo pelas formas de divulgação. Era minha intenção divulgar, publicar os resultados da pesquisa e as obras dos escritores, mas não pensei jamais em site ou página no Facebook. Silvia indicou o site. Ela tem um feeling excepcional.
E eu acabei enveredando para a página. Precisei aprender bastante para lidar com ela. Não é fácil “alimentá-la”. As bolsistas contribuem, assim como outros pesquisadores apaixonados pela causa judaica. Acredito que estamos colaborando com os estudos sobre a literatura sefardita na Amazônia e esperamos que muitos outros pesquisadores também o façam, dando maior visibilidade a esta literatura. Obtivemos apoio e incentivo de escritores como Ilko Minev e Elias Salgado, autores de textos que estudamos, o que nos deixou orgulhosas e com muitas responsabilidades. Mas há uma contribuição ímpar: as orientações da professora Regina Igel, que nos são muito caras. O ineditismo assusta. Por conta disso, vi-me conduzida a mostrar não só ao meio acadêmico, mas para o público em geral, em que consistia nossos estudos. Procurando livros, tivemos contato com o diretor da “Amazônia Judaica”. Certa vez falei para ele sobre a ideia de um dia fazer um livro sobre os frutos da pesquisa. Não demorou para que conhecesse a Talu Cultural e tudo aconteceu: o nosso livro foi feito. Mas ainda há muito a ser estudado. O nosso projeto também acabou por dar visibilidade a muitos autores
que a academia desconhecia, como Mady Benoliel Benzecry, Elias Salgado, Marcos Serruya e Ilko Minev. Outros escritores como Sultana Levy Rosenblatt, Leão Pacífico Esaguy são pouco conhecidos. Apenas Paulo Jacob recebeu maior divulgação de alguns de seus romances. Planos para o projeto no futuro R: Professora Silvia, que é da área da tradução, e eu queremos fortalecer o NESA, que ainda está nos primeiros meses de formação. As adversidades oriundas da pandemia, que ora sofremos, conduziramnos a repensar as nossas ações. Estamos trabalhando nisso, junto com nossos outros colaboradores. Neste sentido, buscamos meios de fomentar a pesquisa com nossas dedicadas bolsistas, produzindo artigos, ensaios e TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso). Além disso, com o alargamento da pesquisa e sua maior divulgação, temos recebido apoio da professora Lyslei Nascimento, da Universidade Federal de Minas Gerais, para que expuséssemos nossos trabalhos em eventos, colocando o projeto em maior evidência, satisfazendo a um dos seus objetivos: a divulgação da literatura sefardita na Amazônia.
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CAPA: DOSSIÊ LITERATURA
PROJETO ECOS SEFARDITAS: JUDEUS NA AMAZÔNIA Membros: Alessandra Conde (coordenadora) Silvia Benchimol (vice coordenadora) Angélica da Silva Pinheiro Aldilene Lopes de Morais Carla Vitória Gomes de Castro Libna Keite da Silva Gama Isabella de Kássia Cordeiro Barbosa (bolsistas em 2018/2020).
NESA – NÚCLEO DE ESTUDOS SEFARDITAS DA AMAZÔNIA
Profa. Dra. Alessandra Conde (Coordenadora)
Membros: Profa. Dra. Alessandra Conde (Coordenadora) Profa. Dra. Silvia Benchimol (vice coordenadora) Profa. Dra. Regina Igel (Universidade de Maryland) (Consultora) Participantes Profa. Dra. Tabita Fernandes da Silva (UFPA) Profa. Dra. Roberta Alexandrina da Silva (UFPA) Prof. Dr. Antonio Heriberto Catalão Jr. (UNIFESSPA). Profa. Mestre Rosa Helena Oliveira (UFPA) Profa. Mestre Aldilene Lopes de Morais (Pan Americana) Profa. Angélica da Silva Pinheiro Prof. Espc. Elias Salgado (Professor convidado) Bolsistas de iniciação científica Carla Vitória Gomes de Castro Libna Keite da Silva Gama Isabela de Cássia Cordeiro Barbosa 22 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
Profa. Dra. Silvia Benchimol (vice Coordenadora)
AUTORES SEFARDITAS DA AMAZÔNIA E SUAS PUBLICAÇÕES:
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COLUNA: IMIGRANTES
A Suplicante e o Amanuense: o drama de Lola Abitbol Paulo Valadares
As muralhas da Praça Forte de Arzila, antiga possessão portuguesa , Região de Tanger-Tetuan, no Marrocos
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A história da presença feminina judaica no país mostra uma trajetória que começou com as furtivas rezadeiras cristãs-novas até chegar às bem sucedidas executivas de nossos dias. Hoje, as mulheres participam da política, das esferas acadêmicas e, principalmente, são as voluntárias que movimentam as instituições judaicas
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as esta história não deve esquecer por nenhum momento as imigrantes anônimas, mulheres humildes, que estão na raiz da comunidade e que enfrentaram dificuldades imensas para se inserirem no cotidiano brasileiro. Este artigo lembra uma delas e sua luta inglória contra a burocracia nacional. Um episódio que pode ser desdobrado numa espécie de calendário da agonia, que vai de setembro de 1897 a março de 1898. Nele, a imigrante marroquina Lola Abitbol, moradora no Rio de Janeiro, buscou obter a nacionalidade brasileira. É como se fosse uma peça teatral, tem a personagem principal, o seu antagonista (a Burocracia invisível) e, contracenando com estes dois dramatis personae, alguns figurantes, como os inspetores de quarteirões, outras figuras do autoritarismo brasileiro e também duas testemunhas quase mudas.
LOLA SE APRESENTA Lola Abitbol (“o que faz tambores”) nasceu em Arzila, em 1872 – cidade marroquina que foi portuguesa por alguns anos, até D. Sebastião ser morto na região. (Os judeus locais comemoravam esta morte com o “purim sebastiano”.) Lola chegou ao Rio de Janeiro em 1895, morou na Rua Riachuelo nº 61 e trabalhou como “modista” ou “costureira”. Era a antiga Rua Matacavalos, que recebera novo nome com as glórias da Guerra do Paraguai – era o domicilio do General Osório. Machado de Assis retratou-a em D. Casmurro. O Governador Suassuna, pai do escritor Ariano Suassuna, foi assassinado nas suas calçadas. Quando se apresentou à Burocracia, ela tinha 23 anos, era solteira e tinha uma filha. Fisicamente era de “estatura baixa, cabelos pretos, olhos pardos”. Foi assim que num expediente da primavera de 1897, ela entrou numa repartição do Ministério do Interior para tentar obter a nacionalidade 25
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COLUNA: IMIGRANTES
Uma típica e jovem mulher do século XIX
brasileira. É hora perigosa para uma mulher judia, solteira e pobre tornar-se visível para o establishment da época. As suas características cabem no perfil a ser caçado policialmente e não precisa estar em atividade criminosa, basta encaixar-se nele. O cáften e a prostituta judia são os personagens mais procurados da crônica policial naquele momento. Como ela será vista nos autos?
15 DE SETEMBRO DE 1897 Através de um “solicitador”, um despachante daquela época, foi apresentado um reque26 ANO 3 N.6 - PESSACH 2020 - EDIÇÃO DE PESSACH - ABRIL 2020
Rua Riachuelo, Rio de Janeiro. Antiga Mata-cavalos, onde residia Lola Abitbol
rimento, onde Lola Abitbol que, na linguagem jurídico-burocrática – “officialese” * diria o nazista Eichmann - é a Suplicante, que pede ao Ministro:
“(...) que V. Excia se digne mandar à Suplicante; a carta respectiva de naturalização brasileira (...)” (*) “Officialese – a linguagem oficial (Amtssprache) é minha linguagem”. Foi como o dirigente nazista Adolf Otto Eichmann (1906-1962) definiu o seu vocabulário de burocrata cumpridor de ordens.
Examinada a documentação, percebeu-se que estavam faltando alguns documentos. Mas a Burocracia orientou a trazê-los o mais depressa possível.
16 DE SETEMBRO DE 1897 No outro dia, o Solicitador retornou à repartição com um passaporte de Lola Abitbol, emitido em Tânger, em 23 de outubro de 1894 e assinado por José Daniel Raimundo Colaço, Barão de Colaço e McNamara - “cônsul dos Estados Unidos do Brasil em Marrocos” (1831-1907), pintor e orientalista nascido numa família européia assentada naquela região. Ao mesmo tempo, preencheu um requerimento, dirigido ao Delegado da 7ª Circunscrição, onde pediu que o Inspetor da Circunscrição verificasse se o seu comportamento era bom e se ela residia no número indicado.
23 DE SETEMBRO DE 1897 Lola renovou o pedido de naturalização. Pediu na linguagem empolada usada nestes documentos a:
“(...) graça de concedê-la a Suplicante por ser esta sua livre espontânea vontade (...)” Ela assinou o pedido. Não o fizera antes por considerar-se analfabeta, caprichou na letrinha desenhada e acrescentou até o sobrenome materno: Lola Garcia Abitbol.
24 DE SETEMBRO DE 1897 Comparecem à Repartição as duas testemunhas: Menahem Moysés Cagi, de 43 anos e Salvador Acris, de trinta e seis. Ambos são marroquinos
naturalizados, negociantes de tecidos que começaram como mascates e depois abriram lojas no centro do Rio de Janeiro. Os dois são maçons. Rezam na sinagoga Shel Guemilut Hassadim (da qual se tornariam diretores em 1911). As perguntas foram simples: conhece a Suplicante? Sabe sua idade? Acris respondeu que a conhecia desde criança, enquanto Cagi declarou que a conhecia do Rio. A idade era aquela declarada pela mesma, concordaram ambos. Os judeus magrebinos mantinham-se dentro do círculo formado por gente da mesma origem. Eles negociavam, casavam entre si e rezavam na mesma sinagoga, que existe até hoje. O personagem mais visível e, portanto, mais documentado desta história é a testemunha Cagi, que era casado com Estrela Benzaquen. A filha era casada com o marroquino Mendes e o seu advogado era Isaac Garson. Eles ajudavam os recém-chegados para adquirirem a cidadania brasileira. Ambos testemunharam para outros imigrantes marroquinos também.
25 DE OUTUBRO DE 1897 Um personagem começa a tomar importância nesta trama. Ele assina os documentos como “O Amanuense”, assim mesmo, com maiúscula, deixando sua rubrica quase sem nenhuma importância: “A. Oliveira”.
26 DE OUTUBRO DE 1897 O Inspetor de Quarteirão, Oscar Eusébio Rodrigues Roxo, nascido em Campinas – cidade onde escrevo esta peça, redige o seu relatório:
“(...) de acordo com as informações colhidas 27
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atesto que na Rua em que mora a Suplicante nada conste que desabone o seu comportamento e estado moral (...)” Porém e sempre tem um porém, como dizia o teatrólogo Plínio Marcos, ele aproveita e introduz o seu veneno:
“(...) conota, porém, a Suplicante de reputação duvidosa (...)” E agora? Acreditar no que ele atestou no início do seu relatório ou na ilação final?
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ele pode classificar os Suplicantes. Neste caso, uma mulher sozinha, mãe-solteira e judia. Ele exerce o seu poder e recomenda ao chefe, mostrando que é implacável no serviço:
“(...) não se lhe deve conceder a portaria da naturalização solicitada (...)” Primeiro “O Diretor da Seção”, depois “O Diretor Geral”, que é designado pelo nome Cândido A. C. Rosa, seguem o seu parecer.
1° DE NOVEMBRO DE 1897 Lola voltou à Repartição e pediu, através de um documento, que o:
“(...) Delegado da 7ª Circunscrição certifique que se existe alguma coisa em desabono da conduta da Suplicante (...)” O mesmo documento já tinha sido pedido antes por seu procurador.
3 DE NOVEMBRO DE 1897 O documento é distribuído para a Burocracia. Dois respondem no mesmo dia. Oscar Eusébio, “O Inspetor”, declara secamente que ela mora na Rua Resende nº 30. O Cartório responde que: Cópia da página de rosto de uma publicação sobre processo de naturalização brasileira – Decreto no. 58-A de 15 de dezembro de 1889
A documentação cresce com os adendos, informes e requerimentos, passa a residir na mesa do “O Amanuense” que, sem pensar muito, já mecanizado pelo serviço burocrático, vai despachando com as categorias em que
“(...) nada consta em desabono da Suplicante (...)”
6 DE DEZEMBRO DE 1897 Num ofício dirigido ao “Cidadão Ministro da Justiça e Negócios Interiores”, “O Chefe de Polícia” responde dubiamente:
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“(...) Nada consta em desabono, não obstante, já ter, há tempos, vivido da prostituição (...)”. Termina hipocritamente com a saudação usada na época:
“Saúde e Fraternidade”.
10 DE DEZEMBRO DE 1897 “O Amanuense” recebeu as informações, destacou os trechos comprometedores e jogou o problema para frente:
“(...) S. Excia. Se dignará resolver como julgar acertado (...)”
11 DE DEZEMBRO DE 1897 Talvez pensando já nas promoções de fim de ano, “O Diretor de Seção” examinou minuciosamente toda a documentação:
“(...) Tendo a requerente exibido nesta Diretoria uma certidão passada pelo Cartório do escrivão da 7ª Delegacia de Polícia Urbana e da qual nada consta em desabono da sua conduta (...)”
apresentado pela requerente, - Neste mesmo documento, lê-se a assinatura – Lola Garcia Abitbol -, ao passo que na 5ª Pretoria não assinou o requerente a justificação de idade alegando não saber escrever e ao mesmo tempo, assina o presente requerimento com o nome de – Lola Abitbol além de outros, - Penso, pois, que requerente não está procedendo de boa fé, parecendo-me até que o passaporte exibido pertence a outra, de nome semelhante, sendo de presumir falsas as declarações feitas. Assim, opino que se indefira o requerimento (...)”
14 DE DEZEMBRO DE 1897 Dr. Amaro Cavalcanti Soares de Brito (18491922). Foi Ministro da Justiça e Negócios do Interior
Ele tomou fôlego e foi às minúcias.
“(...) Devo, entretanto, pedir a atenção do Sr. Ministro para o fato de achar-se emendado, por supressão do nome - Garcia - o passaporte
Cândido A. C. da Rosa, que é “O Diretor Geral Interino” requer a abertura de um inquérito. Ele é também um literato e escreve na Revista Brasileira. Dois dias depois, o Dr. Amaro 29
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Cavalcanti Soares de Brito (1849-1922), futuro tudo: juiz do STF, prefeito do Rio e Ministro da Fazenda, deu início ao inquérito para saber da falsidade ou não do passaporte da pobre moça.
28 DE JANEIRO DE 1898 Lola voltou à delegacia e ali, frente ao Delegado Francisco de Paulo Monteiro de Barros Lima (1871-1935) – descendente de um judeu convertido, o alfaiate Agostinho de Paredes, como também o autor destas linhas, que reunia fundos para minorar o sofrimento dos judaizantes presos em Lisboa. Era a sua forma de praticar o ahavat Israel (o amor ao próximo). Ao Escrivão Numa de Azevedo Vieira, declarou:
“(...) que são do próprio punho as assinaturas que se acham juntas aos autos que neste ato lhe são apresentadas. Que o passaporte que se acha junto aos autos é seu, que o levou em Tanger, sendo que Garcia pertencia à sua mãe, e tendo esta falecido passou ela assinar-se Lola Abitbol, sendo certo que não foi ela quem riscou a palavra Garcia, ignorando quem o fez (...)” No dia seguinte, o resultado do inquérito é levado para a máquina burocrática inocentando a quase ré.
9 DE FEVEREIRO DE 1898 Retornando o processo ao Ministério, apesar de ter sido inocentada, outro burocrata,
chamado Carlos Coelho, recomenda pelo indeferimento do pedido de Lola. Ou seja, é a recusa da naturalização. “O Diretor” segue a recomendação do funcionário e pede o arquivamento do processo.
8 DE MARÇO DE 1898 Lola retornou à Repartição com outro pedido de naturalização. É dirigido ao:
“Ilmº Sr. Dr. Ministro do Interior (...)”. Ela reconta sua história:
“(...) Que tem de seguir para Marrocos, onde vai em demanda de haveres deixados por parentes seus, haveres estes, que hão de reverter em benefício de sua filha. Que é brasileira nata e sua única herdeira, e teme que o Sultão daí como de costume faz, lance mão sobre estes bens (...)” Oito dias depois saiu o novo veredicto. É a fala do Amanuense, ele nega a naturalização à pobre Suplicante. Com a ordem despótica:
“Arquive-se.”
KADDISH A história terminou de forma abrupta; como o rio que se transforma em cachoeira, ela perdeu a herança familiar e continuou lutando pela sobrevivência. Egon e Frieda Wolff não a encontraram na pesquisa que fizeram
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nos cemitérios gentios do Brasil. Não a encontramos nos quatro cemitérios israelitas do Rio de Janeiro: Caju, Vila Rosali, Vilar dos Teles e Inhaúma, que visitamos e anotamos. Encontramos nos anos 30s uma “Mlle Abitbol”, “chiromante e médium vidente reconhecida pela bola de cristal”. Buscamos outras fontes, como o médico Maximiliano Ponte, autor de “Certas mulheres que vieram de longe: as “pobres mulheres” sepultadas no cemitério S. João Batista de Manaus” (Boletim do AHJB nº 48, agosto de 2013, pp. 18-21), sem sucesso. O historiador Reginaldo Jonas Heller em Judeus do Eldorado: reinventando uma identidade em plena Amazônia, p. 108, diz que ela morreu nos anos 30 e era dona de uma pensão em Manaus. Não se tem certeza do seu fim: mas que esta pecinha lhe sirva de matseiva (pedra tumular; lousa).
Paulo Valadares é mestre em História pela USP, escritor, especialista em genealogia judaica. É coautor do Dicionário Sefaradi de Sobrenomes. Ed. Sêfer. 2ª. Edição
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DOSSIÊ LITERATURA – RESENHA ESPECIAL
Ecos Sefarditas:
Judeus na
Amazônia Nancy Rozenchan * Especial para a Universo Amazônia Judaica
H
istórias de imigrações sempre envolvem muitos e variados capítulos: motivos da imigração, condições de partida e chegada e, principalmente, a vida no novo país. Quando se trata da imigração judaica, suas especificidades se sobressaem ao se avaliar os aspectos referentes ao país de origem, escolha do local de assentamento e inserção no novo continente, criação de uma vida judaica local ou entrosamento naquela já existente. Desde o século XIX, quando deixaram de existir no Brasil entraves tanto à imigração como à prática re-
ligiosa, judeus de várias origens dirigiram-se a pontos diversos do país. Os grupos mais amplos e mais conhecidos chegaram aqui no século XX. É, todavia, menos conhecido o fato de que foram antecedidos no século XIX por um grupo esparso e menos numeroso de judeus sefarditas provenientes do Marrocos que, há pouco mais de duzentos anos, escolheram o norte brasileiro como novo lar. Quanto da história desta imigração tem registros que comprovem os seus feitos, é difícil de averiguar. Sabidamente um considerável número de famílias
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embrenhou-se nos meandros da Amazônia, fixou residência e pontos de comércio, ao mesmo tempo em que, como regatões, atingiu as mais longínquas paragens. Considera-se que paulatinamente duas mil famílias de judeus marroquinos cruzaram o Atlântico e se instalaram na Amazônia. Algumas retornaram ao Marrocos, mas a maioria permaneceu no Brasil. Os feitos e os causos desta experiência sem precedentes foram repassados oralmente pelas diversas gerações destes imigrantes, por registro em correspondências, na imprensa da época ou documentos para efeito civil ou religioso (documentos de casamento e de cartórios). O que se perdeu da história nestas trajetórias não é recuperável. Ainda assim, diversos trabalhos acadêmicos ou jornalísticos procuraram dar conta da vivência judaica e geral dos marroquinos amazônicos e de suas numerosas proles. Neste contexto, merece um destaque especial o papel representado por poetas e escritores. Pouquíssimos membros das gerações nascidas na Amazônia no século XX são os responsáveis por um importante feito: ao se dedicarem à literatura, valeram-se do que ouviram e do que aprenderam e, em suas obras ficcionais e poéticas, estabeleceram uma trama em que realidade e ficção cumprem importante função para o estudioso do século XXI que, simultaneamente, forma uma imagem própria do que foi a vida na Amazônia dos sefarditas provenientes do Marrocos e se deleita com uma primorosa escrita. A intimidade do romance com a realidade torna-o um constante lugar de reavaliação e contestação. Ele nos permite entrar em mundos ficcionais que são com frequência inextricavelmente vinculados a circunstâncias sociais, políticas e culturais que nos modelam. O processo de ajustamento ao novo país e a um novo modo de vida foi um dos temas dessa literatura. Por
ele pode-se vislumbrar um retrato multifacetado das gerações de imigrantes e seus descendentes, avaliar quanto da vida judaica marroquina foi mantido e quanto, precisamente, das identidades competidoras judaica e brasileira estabeleceu um equilíbrio e se conservou. Cada escritor ou escritora foi tanto um produto das circunstâncias como o espelho que as refletiu de volta para uma audiência composta em grande parte por leitores não pessoalmente familiarizados com a vida na floresta. A literatura de migração judaica da Amazônia escrita, na quase totalidade, por descendentes dos judeus marroquinos, foi capaz de abordar o status quo de sua época assim como o interculturalismo e o multiculturalismo que acabaram prevalecendo na região e seus efeitos. Como o número de autores e obras é escasso e, em sequência, as ações de consciência das épocas registradas esvaem-se com o passar dos anos, o trabalho de recuperar o papel desses escritos e torná-los uma presença constante na comunidade literária e cultural amazonense e brasileira é uma tarefa gigante que carece de estudiosos e interessados para ser conduzida. Além dos sempre bem-vindos trabalhos esparsos em espaços culturais muito distantes e diversificados, surgiu, felizmente, uma força-tarefa disposta a incentivar, a apoiar e a orientar a vitalização desta literatura – missão que se faz necessária continuamente - como foi a grata conjugação de trabalho e capacidade das professoras Alessandra F. Conde da Silva e Silvia Helena Benchimol-Barros, do campus de Bragança da Universidade Federal do Pará, que desenvolveram, de 2018 a 2020, o Projeto Prodoutoral “Ecos sefarditas: judeus na Amazônia”. Graças ao auxílio ao projeto da professora Regina Igel, da Universidade de Maryland, e ao apoio dos autores Ilko Minev e Elias Salgado, surge agora o resultado desse trabalho no precioso volume Ecos Sefarditas – Judeus na Amazônia, que insufla nova 33
Sefarad Universo
DOSSIÊ LITERATURA – RESENHA ESPECIAL
vida a tema muito caro à cultura brasileira, ainda que pouco divulgado, qual seja, o registro literário da vivência dos judeus de origem marroquina no norte do país. Incluem-se nesse volume organizado pelas mencionadas pesquisadoras e publicado pela Talu Cultural, Rio de Janeiro, 2020, uma apresentação, um prefácio, cópia de uma carta e treze artigos. Os autores e autoras do livro são em número de nove, sendo a maior parte de origem amazônica. Há ainda um mineiro e a citada professora Igel, residente nos Estados Unidos. Foram abordados escritos literários dos autores amazonenses de origem marroquina Elias Salgado, Leão Pacífico Esaguy, Mady B. Benzecry, Sultana Levy Rosenblatt, Paulo Jacob e Marcos Serruya. As análises desenvolvidas das obras são bastante esclarecedoras do panorama literário representado pelos autores enumerados. Fosse apenas esse o propósito da obra, já estaríamos aptos a pronunciar o refrão Dayenu – bastar-nos-iam – repetido muitas vezes na celebração de Pêssach. Em continuação, o leitor é agradavelmente surpreendido pela oportunidade de apreciar outros escritores que, não de imediato, são vinculados ao grupo literário inicial. Assim, Regina Igel nos conduz ao extremo oeste da Amazônia na América Latina para introduzir o escritor colombiano, igualmente sefardita, José Guillermo Ángel (Memo Ánjel), apresentado em conjunto com breves dados da história dos judeus no país vizinho. A complementação obtida com a inclusão de um autor não brasileiro, assim como a menção feita a outros escritores sefarditas hispano-americanos da Colômbia e da Venezuela, delineia para o leitor brasileiro o espectro mais amplo de autores sefarditas latino-americanos quase totalmente desconhecidos. Traços comuns de temas judaicos sefarditas colaboram para a compreensão de parte da presença e cultura judaicas nesses países. Mais inesperada do que a inclusão do autor colombiano descendente de argelinos, a abordagem
de dois autores não nativos e sem vinculação com o Marrocos, - Ilko Minev, sefardita nascido na Bulgária, e a asquenaze, Sally Knopf, natural da Polônia, aponta para outras perspectivas pelas quais a literatura da região deve ser avaliada, para além daquela de autoria de sefarditas de raiz marroquina. Knopf e Minev, autores de gerações diversas, sofreram diferentes experiências de guerra, discriminação e antissemitismo na Europa antes de conseguirem chegar ao Brasil e também passaram por etapas de vida diversas daquelas dos autores da Amazônia citados anteriormente. No livro de Knopf, destaca-se a inusitada história de sua atividade e atuação em garimpo no norte do país. Minev, por sua vez, apaixonado, assim como Knopf, pela Amazônia que o acolheu, estende-se tanto pelas paisagens povoadas pelas histórias comunitárias ou não-comunitárias que absorveu, com destaque para as figuras femininas, como pelos traços biográficos mal disfarçados com que costura os seus romances. Autor pródigo de três romances publicados em quatro anos nesta década e aos quais, segundo informação recente, logo acrescentará mais um sobre lendas e personagens das paragens do norte, a escrita de Minev aponta para um revigoramento há longo tempo necessário na literatura regional, agora não mais de imigrante, mas da valorização do ambiente local. Por todos esses dados, não é sem motivo que a leitura prazerosa e esclarecedora de Ecos Sefarditas: Judeus na Amazônia é efusivamente recomendável.
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Nancy Rozenchan Professora Sênior de Língua e Literatura hebraicas da Universidade de São Paulo. Tradutora de literatura hebraica.
O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO JAMAIS SERÁ O MESMO.
TALU CULTURAL Lança seu mais novo selo com a coleção POSTAGENS SAGAZES
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Sefarad Universo
RESENHA
O HOMEM QUE VEIO DO FIM DO MUNDO Por Cristina Konder
Nestes tempos de pandemia, nestes tempos de confinamento rigoroso, não existe nada tão bom quanto um bom livro! Imagine só três bons livros!
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ois a Talu Cultural nos presenteia com a três obras do “O Homem do Fim do Mundo”, que nos permite viajar junto com o autor, Elias Salgado, e viver suas aventuras pelo Mundo. Mas o início, ah, o início... Qual início você quer? O da família? Ou o da vida aventureira do autor? O Homem que, afinal, veio do fim do mundo? Você encontrará, explicadas com pormenores deliciosos, as peripécias da família judia Elmaleh/Salgado e do Elias, do Marrocos até os confins da Amazônia! Nos três volumes, em formato de bolso, em crônicas autobiográficas, começando pelo O Fim do Mundo, depois passando pelo Vou Ali e Volto Já e no fim a Memória Indiciada, Elias vai levando o leitor por suas emoções e sentimentos, de aventura em aventura, por três continentes. Delicioso e imperdível. Você começa sabendo sobre a colônia de judeus na Amazônia, onde, deixando seus lares no Marrocos, começavam a reconstruir suas vidas numa terra diferente, mas que os recebeu e lhes permitiu ganhar o sustento para suas famílias. Onde os Elmaleh, no século XIX, se transformaram em Salgado, para facilitar a aproximação e a convivência com o povo local. E começa já a viajar com o autor em sua primeira aventura, ainda na barriga de “Vidinha”, para Rio Branco, onde nasceria. E sobre o barco “Estrela”,
de seu pai, David, única condução possível em Boca do Acre, onde moravam e seu pai tinha uma loja. A importância de David na vida da cidade, importância tão grande que o tornou candidato a prefeito, com direito até a ameaça de morte por parte de seu prepotente adversário. Elias fala de seu grande amor por Vidinha, sua mãe, e sua relação complicada com David, mistura de um grande amor, disputa e enfrentamento, um certo rancor e estranhamento que podem ter provocado a saída de casa e sua despedida com um “Vou ali e volto já” que nunca aconteceu. Nunca voltou à casa paterna. Talvez porque o amor à aventura fosse maior que o amor à casa paterna. Talvez porque na casa paterna já não tivesse Vidinha, que seguira por novos caminhos, em nova direção, sem David. A verdade é que depois de viver alguns anos no Rio e voltar a Manaus, onde completou seus estudos, resolveu que viveria novas aventuras em Israel, para uma pós-graduação. Foi onde conheceu e adotou – e foi adotado por ela – a família Alter e seus “irmãos do coração”, Horácio (Z´L) e Beni. Com eles frequentou a Universidade Hebraica de Jerusalém e se aventurou pela Europa. Na Espanha esperava encontrar a origem de sua família. Os Elmaleh. Sempre preferiu que sua origem fosse sefaradita, só tendo abandonado esse sentimento depois de muito tempo gasto em
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Talu Cultural - Elias Salgado: O Fim do Mundo e outras histórias do beira-rio, Vou ali e volto já, Memória indiciada
pesquisas por arquivos e museus europeus. Da Espanha vai para a Inglaterra e para uma viagem estranha à Índia. Chocado com a pobreza encontrada nesse país, tem uma crise grande e é ajudado pelo amigo Peter, que mostra que ele tem a possibilidade da escolha. E escolhe voltar muito rápido para a Inglaterra e para a Espanha, onde reencontra os Alter, especialmente Horácio (Z´L), que o reconforta pelo trauma dessa “bad trip”. Literalmente! A Espanha, especialmente Barcelona, é seu grande amor. Vai e volta várias vezes. Mas vai também à Argentina, Buenos Aires, a San Martin, estação de esqui onde pensa ficar e ali viver. Dissuadido pelo dono da pousada, de certo acostumado com viajantes que tinham esse desejo provocado pela beleza do lugar, volta ao Rio, onde morava e trabalhava. Em Memória Indiciada Elias se pergunta sobre o que ele é e como chegou aí. Na verdade, onde chegamos todos? Por que somos o que somos? Meu querido amigo Armênio Guedes (Z´L) nos disse sempre que a História é feita de acaso. Seria o acaso que também participa de nosso fazimento? Elias Salgado acha que o que o faz é a impulsividade, a paixão e a fidelidade. Seu trabalho
é com a Memória. Ela é a grande autora de suas paixões, a pesquisa e a escrita! E é nessa trilha, nesse caminho, que segue. E vai contando de seu encontro com Mariza, na noite maravilhosa dessa cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro. E conta de sua casa pequenina, nessa rua tão pacata que é quase invisível, com seu vizinho silencioso. E desse bairro que ele adora, com suas floriculturas, onde, na predileta, compra, em todo shabat, as flores preferidas de Mariza. No mercado em que faz suas compras e na farmácia, da balança que lhe provoca ataques de raiva ao mostrar-lhe impudicamente seu peso. E nessa viagem diferente vamos nos aninhando e querendo mais. Mais histórias, mais memória. Mais, sempre mais, Elias, Elmaleh Salgado!
Cristina Konder é jornalista com longa experiência no comando de redações de jornais e revistas. Foi vice-presidente do Jornal do Brasil. Ativista política engajada nas grandes causas humanistas nacionais. 37
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CRÔNICA
Os sapatos, o quinhão, o apego e a liberdade Elias Salgado
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apai tinha um amigo que volta e meia citava, pedagogicamente, uma passagem sobre o homem pobre que era feliz, mesmo tendo apenas um único par de sapatos. Na Mishná, no Pirkei Avot (A Ética dos Pais), há um versículo com uma máxima que vai muito na mesma linha moral: “Quem é o mais
rico dos homens? Aquele que se contenta com seu quinhão.” Não estamos mais no tempo da Mishná, a Idade Média, quando o consumismo desenfreado não imperava como em nossos dias e, portanto, nem o mais pobre e tampouco o mais rico dos homens possui um só par de sapatos. Eu, mesmo não sendo proprietário de
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Rabi Iochanan Ben Zakai dizia: “Deus não pode ser servido senão por homens moralmente livres e não por escravos”
uma portentosa sapateira, daquelas que se parecem do tamanho de apartamento de milhões de brasileiros, até que gosto de um bom sapato. Tenho lá minhas vaidades... Mas aquele que pretende saber onde está e para onde quer ir, não pode prescindir de um bom par de sapatos, concordam? E por que toda esta conversa feita de rodeios? Bem, é que acabo de colocar na lixeira um par de sapatos. Sim que eles estavam pra lá de velhinhos e já me traziam mais desconforto que conforto. Levei exatamente dois anos dizendo a mim e a eles que seu fim estava próximo e que havia chegado a hora de nos separar. Mas, por todo este tempo, quando eu abria o armário decidido a me separar deles, eles pareciam me olhar como dois cãozinhos carentes a pedir
por um carinho e a tentar me convencer que o dia ainda não havia chegado. E como sabiam argumentar, como era convincentes os danados: -Pense bem, não faça como sugeria Chico Buarque, não aja duas vezes antes de pensar. Lembre-se de nossos grandes momentos, não renegue nem deixe pra trás tudo o que juntos vivemos, os lugares por onde juntos passamos e o que passamos até chegar ao hoje aqui. E eu não tinha como contra-argumentar, tudo o que eles diziam era a mais pura verdade. Porém, hoje amanheci decidido: não deixei que eles me mirassem com aquele conhecido olhar de vítimas. Não me deixei levar por seus argumentos. Peguei-os com carinho, mas sem hesitar, coloquei-os numa sacola plástica e os deixei na lixeira. Da sapateira para a lixeira. Rima e solução. Amanhã será um novo dia, uma nova história nascerá. Um novo par de sapatos me acompanhará em minhas andanças. Descobri que não eram meus amados e saudosos sapatos o meu verdadeiro quinhão. Não é a sapatos que me apego. Meu apego e meu quinhão são a minha liberdade. Dedicados a todos que têm a sorte de descobrir qual é seu verdadeiro sentido de liberdade.
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A Talu Cultural e o IBI - Instituto Brasil Israel, lançarão no Brasil, em Israel e em Portugal, No 1º. semestre de 2021”, o novo livro do mais premiado correspondente internacional para o Oriente Médio da atualidade.
Site Talu:
www.talucultural.com.br email:
contatotalucultural.com.br
ANO. 3 - NO. 7 - EDIÇÃO DE ROSH HASHANÁ 5781 - SETEMBRO 2020
Suplemento Universo
Rosh Hashaná 5781
UM CALENDÁRIO ESPECIAL Ribi Shimon Bar Iochai:
Luz e Santidade
CAPA
LUACH:
10 ANOS DO PORTAL AMAZÔNIA JUDAICA
UM CALENDÁRIO MUITO ESPECIAL No judaísmo, o “Luach Shaná” – o calendário do novo ano - é de fundamental importância, dado que a religião judaica é marcada pelos ciclos do tempo e da vida
A
elaboração de calendários pelas diversas kehilot (comunidades judaicas) em todo mundo é uma tradição que atravessa séculos e séculos. Entre os judeus de origem marroquina que imigraram para a Amazônia, a tradição sempre foi cultivada. Aqui no Amazônia Judaica, temos o kavod (orgulho) de ter, entre nós, um dos grandes elaboradores de calendário judaico, nosso querido cofundador, o chazan (cantor litúrgico) David Salgado.
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Na família de David, os Elmaleh-Salgado, afirma-se que certamente ele terá herdado do seu avô, Eliezer Elmaleh, patriarca do ramo da família que veio para o Brasil ainda no século XIX, sua inclinação por calendários. Ribi Eliezer era um guia espiritual dos judeus do Amazonas e confeccionava belíssimos calendários em seu tempo. E David seguiu os caminhos de seu avô. Quando da passagem dos 200 anos da Presença Judaica na Amazônia, ano da criação do Portal e do Arquivo Histórico Amazônia Judaica, David coordenou a confecção e publicação de um dos mais belos calendários judaicos, como nunca feito antes no Brasil em termos de rigor na apresentação das datas importantes e beleza estética. Passados 10 anos, Amazônia Judaica está publicando mais um Luach Shaná que, sem falsa modéstia, acredita-se será um novo marco na história de tão bela e marcante tradição do judaísmo. Desta vez, nosso luach conta com a preciosa colaboração do amigo de longa data do Amazônia Judaica, AriehWagner, artista plástico paraense de origem judaicomarroquina. O calendário apresenta maravilhosas ilustrações originais no gênero naïf, criadas especialmente para o nosso “almanaque de datas”. Estamos radiantes e agradecidos a este gigante da arte naïf nacional. Arie, nosso eterno todá rabá, habibi! A todos nossos queridos leitores, suas famílias e amizades, nossos desejos de Shaná Tová, um Bom Ano!
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REGISTRO
PORTAL E ARQUIVO AMAZÔNIA JUDAICA:
UMA REFERÊNCIA MUNDIAL FAZ 10 ANOS O Portal e o Arquivo Histórico Amazônia Judaica (AHAJ) foram criados pelos irmãos Elias e David Salgado em 2010, na ocasião dos festejos dos 200 anos da presença judaica na Amazônia
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ara sua fundação, contaram com o apoio de eminentes famílias da região, das kehilot (comunidades) locais e de famílias que, apesar de se terem mudado para o Sudeste do país, também deram sua contribuição. Desde então, passados 10 anos de atividades, o projeto não parou de crescer e, até hoje, mantém seu ineditismo como único em seu gênero em todo o mundo. Já recebeu cerca de 500.000 acessos no site, nas suas páginas no Facebook e em outras redes sociais.
O Arquivo Histórico Amazônia Judaica (AHAJ) e seu conteúdo:
Uma vasta gama de conteúdos e serviços compõem o Arquivo Histórico: * Preciosos esclarecimentos e dados sobre a história da imigração dos judeus marroquinos para a Amazônia e das comunidades que configuram, na atualidade, o judaísmo naquela região. 44 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2020
* A seção Universo Amazônia Judaica, composta de informações do judaísmo sefardita em outras regiões e países. Único em seu gênero em todo o mundo, tornou-se referência obrigatória para todos que se interessam pelo tema judeus na Amazônia, sejam pesquisadores acadêmicos
ou independentes, cineastas, jornalistas, membros de comunidades judaicas na Amazônia, pessoas e famílias oriundas das mesmas e o público em geral. O conteúdo do AHAJ está distribuído pelas seguintes seções:
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REGISTRO
* Arquivo de famílias * Biblioteca * Seção de documentos raros * Fototeca * Hemeroteca * Videoteca * Projetos e parcerias * Acesso gratuito à nossa revista digital Universo Amazônia Judaica e seu Suplemento Universo Amazônia Judaica * Acesso à loja virtual da nossa editora, a Talu Cultural, para a aquisição de nossas publicações.
Sobre nossas novidades Dentre as mais recentes novidades, gostaríamos de destacar três, que consideramos de fundamental importância:
1. ARQUIVO DE FAMÍLIAS O Arquivo de Famílias do AHAJ foi planejado e criado pela equipe de pesquisadores do Amazônia Judaica, baseado nos mais avançados modelos de arquivos do gênero. Contou com a experiência tecnológica da Macher Tecnologia, empresa do ramo de TI, criadora do nosso site, que nos fornece assessoria tecnológica e o mantém atualizado regularmente. A sua ampliação e atualização constantes contam com a participação de pessoas interessadas, que entendem a importância da preservação da memória familiar, pois sabem que a história do judaísmo amazônico e sua continuidade se dão a partir desta dinâmica.
2. COLUNA DE GENEALOGIA, POR PAULO VALADARES: Neste ano tão festivo tivemos a honra
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de ver aceito um convite que fizemos ao historiador, pesquisador de genealogia e escritor Paulo Valadares que, entre outras obras, é coautor do Dicionário Sefaradi de sobrenomes (agora em nova edição publicada pela Sêfer de São Paulo), para assinar com exclusividade nossa COLUNA GENEALÓGICA. Paulo é autor de inúmeras biografias, todas ou quase todas publicadas na rede Facebook, onde mantém uma página com textos que já foram acessados por mais de 120.000 leitores até esta data. Em 2018, nossa editora publicou, em sua coleção Postagens Sagazes, seu livro Caiu na rede é post, contendo uma primorosa seleção de colocações suas na rede e também inéditas. O livro tem sido um sucesso de vendas! Se tiver interesse, ele pode ser adquirido na nossa loja virtual (www.amazoniajudaica.com.br na loja Talu Cultural).
3. EXPOSIÇÃO DIGITAL PERMANENTE: JUDEUS NA AMAZÔNIA Como parte do Calendário de Festejos dos 10 anos do Portal e do Arquivo Amazônia Judaica e dos 210 anos da Presença Judaica na Amazônia, será lançada, até o fim do ano, uma exposição virtual permanente sobre os judeus da Amazônia.
Projetos para o futuro
Diz o velho dito popular que “em time que está ganhando não se mexe”. No caso do Amazônia Judaica, é assim, mas também não é. Tudo que já foi feito até aqui e tem dado
certo – e não foi pouco – permanecerá: o funcionamento, a atualização e ampliação do AHAJ; o atendimento aos estudiosos e interessados no tema judeus na Amazônia, com informações, dados e orientação em suas pesquisas. Somos inclinados a parcerias com outras instituições acadêmicas ou diversificadas, além de projetos de dissertações para finalizar Mestrados e Doutorados. O nosso trabalho de pesquisa, publicação de resultados, participação em eventos, congressos e simpósios e a edição de livros e seus lançamentos em todo o mundo, pelo selo Amazônia Judaica, tem sido intenso. E, claro, a publicação da nossa “menina dos olhos”, a revista Universo Amazônia Judaica e seu suplemento Universo Amazônia Judaica. Haverá mais novidades: novas colunas e seções serão criadas e as existentes serão constantemente atualizadas. E teremos um foco ainda maior na ampliação do Projeto Universo Amazônia Judaica, parte integrante do Portal. O mundo sefardita é muito bem representado no Brasil, não apenas na região amazônica, mas em outras áreas também. Nossa intenção é ir ao encontro de todas as comunidades “sefas”, como carinhosamente são lembradas pelos brasileiros natos, descendentes de expatriados de países onde se originaram seus antecedentes. Estejam atentos, muita coisa boa vem por aí.
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DO NOSSO LEITOR
A hamsa (amuleto em forma de mãozinha) chegou-me em forma de capa de livro; estava precisando de algo assim, numa semana com seus tzures (como se diz isto em hakitia?). É o livro “Ecos sefarditas. Judeus na Amazônia” organizado por Alessandra F. Conde da Silva (UFPA) e Silvia Helena Benchimol-Barros (RJ: Talu Editorial, 2020). O nome já diz tudo: é a história da outra metade dos judeus brasileiros. A sua origem etnocultural, seus costumes, sua língua (a hakitia, mistura de línguas ibéricas, hebraico e árabe) e principalmente a sua criação literária em treze estudos. Tenho amigos, judeus amazonenses, como o hazan (cantor litúrgico) Dahan, o editor Salgado, o escritor “judólico” Márcio de Souza, dentre outros; mas, não suspeitava desta riqueza oculta. Os textos dão conta disto. Você algum dia já leu Elias Salgado, Leão Pacifico Esaguy, Marcos Serruya, Mady Benzecry, Sultana Levy Rosenblatt. Mémo Anjel, Sally Knopf, Ilko Minev? Se não, não sabe o que está perdendo. Paulo Valadares
Agradeço imensamente o carinho de nos permitir lembrar a vida e a obra de nosso amado pai, Marcos Serruya z”l Karen Serruya Chevis 48 SUPLEMENTO AMAZÔNIA JUDAICA No 9 - SETEMBRO 2020
Elias Salgado, muito legal saber um pouco da sua história e das suas obras. Sucesso sempre! Ingrid Serruya
Acabo de receber meu exemplar do livro, “Ecos sefarditas, judeus na Amazônia”. Um primor de edição. Parabéns às organizadoras, aos coautores e a Ed. Talu Cultural por esta publicação única. Que venham muitas outras mais. Simão Bentolila
Agradecemos ao gentil Elias Salgado, por nos enviar este vídeo, e à família do Sr. Marcos Serruya por aceitar gravar o vídeo para o “Projeto Ecos sefarditas” e para o “Arquivo e portal Amazônia judaica”. Alessandra Conde
Oi Elias, estava digitando uma mensagem, mas por teclar mal ela se auto deletou. Dava parabéns a todo seu trabalho autoral e editorial e sua resiliência. Um abraço grande. Esther Regina Largman
Foi com muito prazer que recebi e li o magnífico suplemento sobre o judaísmo em Breves, Ilha de Marajói da Revista “Amazônia Judaica” do mês de março de 2020 – verdadeiro documento histórico. Marcos L. Sussekind 49
PÁGINA OURO
Nossa homenagem àqueles que vem nos apoiando por todos estes anos. A eles nosso toda rabá, Jaime Benchimol e família Sergio Benchimol e família Ilko Minev e família Mariza Blanco e família Jaime Salgado e família Regina Igel Nancy Rozenchan Eddy Zlotnitzki e familia Henrique Cymerman e família Família Elmaleh-Salgado Paulo Valadares Isaac Dahan Iehuda Benguigui e família Marcos Seerruya z”l, Celeste Pinto Serruya e família Arieh Wagner Cristina Konder e Mauro Malin Alessandra Conde e família Nelson Nisenbaum e família Gladys Shalom e família Fortunato e Raquelita Athias Fabio Silva
“Que O Eterno D-us nos proteja a todos nós e nossas famílias, inclusive de toda alma perversa, nos dando saúde e sabedoria e nos Inclua a todos nós no Livro Eterno da Vida e dos Justos”. É o que deseja a nossa família a todos. Shana Tova - Feliz 5781
Simão Jaime Rodrigues Pinto – Shimon Yaacov David Mendel Shimon Ely Elaine Iagallo Gonçalves Rodrigues Pinto Mateus Texeira Pinto z”l Maria Rodrigues Pinto
Fechando com chave de ouro o ano de celebrações dos 10 Anos do Portal e o Arquivo Histórico Amazônia Judaica e os 210 da Presença Judaica na Amazônia, será lançada em Chanuká, no Portal Amazônia Judaica e nas redes sociais, a Exposição Digital Permanente:
JUDEUS NA AMAZÔNIA:
NOS PASSOS DA MEMÓRIA
Inclua sua família no acervo permanente, enviando dados, documentos, vídeos e imagens. E se puder, contribua na produção da exposição.
Cotas de contribuição: * Citação de nome ou família...........................250,00 * Mensagem/anúncio .........................................500.00 Contato: Email: ed.amazoniajudaica@gmail.com