Anais 2012 - SEMINÁRIO DE HQ

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS Dijon Moraes Júnior Reitor Santuza Abras Vice-Reitora Eduardo Andrade Santa Cecília Chefe de Gabinete Giovânio Aguiar Pró-Reitor de Planejamento, Gestão e Finanças Terezinha Abreu Gontijo Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Renata Nunes Vasconcelos Pró-Reitora de Ensino Vânia Aparecida Costa Pró-Reitora de Extensão

EDUEMG - EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS Daniele Alves Ribeiro Coordenadora Marco Aurélio Costa Santiago Diagramador Regina Maria Boratto Cunningham Revisora Universidade do Estado de Minas Gerais. Escola de Design Anais do Seminário de Quadrinhos: pesquisa, educação e mercado/ Organização de: Eliane Meire Soares Raslan Barbacena: EdUEMG, 2013. 108 p. Seminário de Quadrinhos: pesquisa, educação e mercado: 2012, Belo Horizonte - MG, 14 e 15 junho de 2012. ISBN: 978-85-62578-22-9 1. Arte. 2. Educação. 3. Pesquisa. I. Raslan, Eliane Meire Soares, org. II. Título. Série. CDU: 741.5:37.012 Elaborada por: Sandro Alex Batista - Bibliotecário CRB6: 2433


14 e 15 de junho de 2012 - Escola de Design Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) - Belo Horizonte Coordenadora Eliane Meire Soares Raslan Promoção do evento Centro de Estudos em Design da Imagem - Escola de Design – UEMG Comissão organizadora do Centro de Pesquisa: Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos (NIQ) Professoras Eliane Meire Soares Raslan e Ivone Gomes da Silva http://niqeduemg.blogspot.com.br Comissão selecionadora de artigos Dra. Rita da Conceição Ribeiro Dr. Sérgio Antônio Silva Dra. Marcelina das Graças Almeida Alunos voluntários Adalfan Filho – Design de Produto – Pós-Graduação em Design de Móveis Ana Luiza Magalhães – Design de Produto Carina Ribeiro – Design Gráfico Ludmila Vitoriano de Castro – Design Gráfico Lucas Marques – Design Gráfico Cadastro de participantes e emissão de certificados CENTRO DE EXTENSÃO DA ESCOLA DE DESIGN – UEMG Divulgação oficial na internet seminariodequadrinhoseduemg@blogspot.com.br (em construção) www.ed.uemg.br/ www.quadrinho.com/ niqeduemg.blogspot.com.br/ Eixos temáticos propostos para os grupos de trabalhos - GTS 1) Quadrinhos e literatura 2) Quadrinhos e história 3) Quadrinhos e humor 4) Quadrinhos e linguagem 5) Quadrinhos e mercado 6) Quadrinhos e educação 7) Quadrinhos e cidadania 8) Quadrinhos e design 9) Quadrinhos e cultura e sociedade


ANAIS DO SEMINÁRIO

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

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JUVENTUDE EM QUADRINHOS: DO LÁPIS AO TABLET

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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS MINEIRAS E AS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA

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REFLEXÕES SOBRE OS MERCADOS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

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O PAPEL DO ACADÊMICO NOS QUADRINHOS EM MINAS GERAIS: BREVE HISTÓRIA DO NÚCLEO DE QUADRINHOS DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFMG

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VILÕES E HERÓIS: O ESTUDO DOS QUADRINHOS COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL

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A PRESENÇA DO HUMOR NAS CHARGES DOS MINEIROS EDUARDO DOS REIS EVANGELISTA (DUKE) E EDSON JUNIOR (DUM)

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MOVIMENTO INDEPENDENTE E A REVISTA GRAFFITI

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TÉCNICAS DE TRAÇOS E APLICAÇÕES DAS CORES: INFLUÊNCIA E ESTILO NOS QUADRINHOS

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LINGUAGEM E GÊNERO DOS QUADRINHOS

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SOBRE OS AUTORES

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ANAIS DO SEMINÁRIO

APRESENTAÇÃO

Além de permitir o encontro entre a comunidade acadêmica e os profissionais do mercado de Histórias em Quadrinhos, sobretudo, os de Minas Gerais, o Seminário de Quadrinhos: Pesquisa, Educação e Mercado, promovido pelo Centro de Estudos em Design da Imagem da Universidade do Estado de Minas Gerais (ED/UEMG) e organizado pelo Núcleo de Ilustração e Quadrinhos (NIQ) da mesma instituição, tem por objetivo também promover o diálogo e a troca de experiências e conhecimento entre estudantes, professores e profissionais da área. O resultado deste evento será apresentado em publicação digital, com o intuito de apresentar um cenário abrangente do que foi discutido, possibilitando, assim, verificar as diversas opiniões de estudantes, pesquisadores e profissionais especializados sobre a maneira de pensar e fazer quadrinhos.

Eliane Meire Soares Raslan Coordenadora do NIQ - Núcleo de Ilustração e Quadrinhos da UEMG


JUVENTUDE EM QUADRINHOS: DO LÁPIS AO TABLET Chantal Herskovic

Resumo Neste artigo apresenta-se a história da publicação da tira em quadrinhos Juventude, citando as principais mudanças, dos anos iniciais no jornal Diário da Tarde até a transição para a publicação diária no jornal Estado de Minas. Aborda-se também o desenvolvimento das temáticas, os personagens, o processo de criação e a adoção de tecnologias digitais para criação e finalização dos quadrinhos. No trabalho mostra-se, a partir de exemplos, algumas etapas da história dessa tira, principalmente a transição do lápis ao tablet. Palavras-chave: história em quadrinhos; linguagem; ilustração digital.

Abstract The paper intends to share the history of this comic strip series, printed in a daily newspaper, showing the main changes, the early years in Diário da Tarde newspaper and the publication in Estado de Minas newspaper. It also explores the developing of the creation process, ideas, characters and the use of new technologies to create digital drawings and coloring. From examples, the steps of the creation of a comic strip is shown, pointing the changes from the pencil to the digital drawing using tablets devices. Keywords: comics; language; digital illustration. A tira da série Juventude começou a ser publicada semanalmente em dezembro de 1992 no jornal Diário da Tarde. Em 1995, por um breve período, o caderno Gurilândia, do jornal Estado de Minas, também publicou a série e, a partir de 1997, este mesmo jornal passou a publicá-la diariamente. Na redação do Estado de Minas, os desenhos foram apresentados para Son Salvador, da Editoria de Artes, que propôs sua publicação uma vez por semana no Diário da Tarde. Há diferenças entre os primeiros desenhos e os mais recentes. Os cabelos dos personagens eram feitos de outra forma, assim como o desenho das letras. À medida que o tempo passava, as dicas de artistas mais experientes e o conhecimento de diversas técnicas de desenho e pintura usadas na Editoria de Artes eram incorporados ao trabalho. Na Editoria houve o contato com artistas como Lélis, Alexandre Coelho, Quinho, Oldack Esteves, Marcelo Monteiro, Valf, Paulinho, entre vários. Nos primeiros anos, outros artistas também davam dicas de leitura de quadrinhos e séries de desenhos animados. Era interessante ir até o centro da cidade visitar a redação: além das três grandes lojas de materiais de desenho próximas ao Jornal, tinha as dicas dos colegas. Nesse período, o trabalho era todo manual e a artista tinha que levar as tiras originais até a Editoria. Posteriormente, o material passou a ser enviado por fax. A primeira vez que se tentou enviá-lo por internet, o material chegou

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completamente truncado, e a vez do fax ainda durou algum tempo. Foi no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 que o envio por internet se consolidou. A tira em quadrinhos foi criada com o nome Juventude para que pudesse ser um universo amplo, com vários personagens transitando por ele, sem necessariamente ser a tira de um personagem específico. Uma breve situação desse contexto é abordada no release abaixo: A série em quadrinhos ‘Juventude’ é para todos os que mantêm o espírito jovem. Edu, Hugo e Cacá são alguns dos personagens que povoam o mundo dessa tira. As situações giram em torno do cotidiano desses jovens, em uma linguagem dinâmica e descontraída, de modo que o leitor possa se identificar através das histórias que retratam não apenas o mundo jovem, mas também momentos vividos por todos nós, como a passagem pela adolescência, passar no exame de direção, estágio, colegas de trabalho, shows de rock, namoros, e tudo mais que faz parte de nós e do nosso mundo. Assuntos como moda, tecnologia digital, cibercultura, esportes radicais, música e planeta urbano estão presentes nessa mídia em quadrinhos, não apenas sendo parte do cotidiano, mas também assumindo um papel de crítica perante essa sociedade globalizada em vivemos hoje (HERSKOVIC, 2007, p. 28).

Inicialmente, como o caderno do Diário da Tarde era em preto e branco (P&B), a tira foi criada para explorar as possibilidades da cor preta em contraste com o branco. No ano 2000, já no jornal Estado de Minas, a tira passou a ter suas páginas coloridas, o que fez com que o processo de criação da série Juventude fosse alterado e o impacto das novas tecnologias passasse a exigir novo empenho nessa produção. As primeiras tiras em cores eram textos de metalinguagem, em que a mídia cita sua própria forma de produção e, no caso, os personagens citavam os processos de impressão ou chamavam a atenção para as cores que antes não existiam (FIG. 1).

FIGURA 1 - Primeiras tiras coloridas publicadas no jornal Estado de Minas. Fonte: Jornal Estado de Minas, 22 e 23 de março de 2000.

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A partir desse período, a tira passou a ser escaneada e tratada digitalmente, por meio do programa Adobe Photoshop. Foi desenvolvida uma paleta de cores apenas para a tira e estabelecidas as cores dos tons de pele, das roupas dos personagens, dos cenários e planos de fundo, tanto em CMYK (Ciano Magenta Yellow Black) como em RGB (Red Green Blue). O tratamento da imagem incluiu uma separação de cores e tratamento do preto para evitar que o texto ficasse ilegível, caso a impressão saísse do registro1. Esse processo de separação foi adotado durante os anos iniciais da impressão em cores na página em que era publicada a tira. Depois, com a evolução das tecnologias de impressão, não foi mais necessária a utilização desse método. Em 2005, devido a problemas com equipamentos de digitalização, o tablet da Wacom, que era usado apenas para a colorização da tira e tratamentos de texturas, sombras e outros efeitos, passou a ser utilizado para a criação total da tira e todo o processo de criação, desenvolvimento e finalização. O tablet, também denominado como mesa digitalizadora, desse período era do ano 2000, um Graphire 3 – modelo ET-0405-U da Wacom2. A caneta digitalizadora possui vários níveis de pressão, e sua outra ponta é usada como a ferramenta borracha. Usando essa tecnologia com o programa Photoshop, é possível usá-la como pincel, lápis, bastão, pastel, grafite. Dependendo da pressão, o traço sai espesso ou fino, como um lápis real o faria. Também é possível calcular níveis de pressão para o aerógrafo e a opacidade. A partir de 2007, o tablet utilizado passou a ser um novo modelo Wacom, denominado Intuos 3, com uma nova caneta e novas pontas. O modelo anterior passou a ser utilizado apenas em viagens, por ser portátil, até que foi substituído. Foram feitas tirinhas abordando o tema da “pane do scanner” (FIG. 2) e outros dramas tecnológicos relacionados.

FIGURA 2 - Tirinha sobre a “pane do scanner”. Fonte: Jornal Estado de Minas, 26 de maio de 2005.

O texto da tira que até 2005 era feito manualmente, de forma a deixar o trabalho com aspecto mais personalizado e autoral, passou a ser produzido por computador, no Photoshop. A fonte utilizada inicialmente foi a Comic Sans em caixa alta e, posteriormente, foi adotada a Carl Barks Script por sua legibilidade. Essa mudança criou uma preocupação maior sobre a composição da tira, uma vez que a agilidade para se mudar o texto de lugar e editá-lo é maior.

1 O registro é uma referência para o conhecimento de que as máquinas estão alinhadas e a impressão correta. 2 Empresa de mesas digitalizadoras, responsável por inovações nessa área.

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FIGURA 3 Recorte – maio/2006.

A imagem acima exemplifica o processo de criação digital da tira. Alguns textos ainda estão sem balões; a tira ainda está em processo de criação dos desenhos e o texto já se encontra na composição desejada.

FIGURA 4 Recorte – maio/2006.

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Na lateral esquerda da FIG. 4, está a barra de ferramentas do Photoshop. A ferramenta selecionada é o pincel e pode ser percebido um pequeno círculo na parte inferior do segundo quadro da tira. O programa da Adobe trabalha por camadas e, na lateral direita, o terceiro box, estão as camadas trabalhadas. Cada texto possui uma e o desenho é feito em uma camada que fica acima do plano de fundo. O primeiro box é a paleta de cores; o segundo, o histórico do arquivo e a última é o navegador. A parte vermelha selecionada pelo navegador é o que está mostrado na tela.

FIGURA 5 Recorte – maio/2006.

Na FIG. 5 é mostrado o estágio em que a tira se encontra.

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FIGURA 6 Recorte- maio/2006.

Na figura 6, as cores jรก foram colocadas; inicia-se a parte de tratamento de profundidade, filtros e outras pinceladas.

FIGURA 7 Recorte - maio/2006.

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Na FIG. 7, o cobertor do primeiro quadro é trabalhado de forma a torná-lo estampado com vários “Z”. No segundo quadro, é possível perceber um pontilhado em torno do cobertor - é a ferramenta seleção, que impede que o pincel usado para desenhar os “Z” na cor laranja interfira com o traço preto e com o azul-claro do plano de fundo. A fase de acabamento é a que deixa a tira com as cores e os contornos destacados e as difere das demais. Foram feitas outras experimentações ao longo dos anos com filtros, aerógrafos, diferentes tipos de pincéis, variações tonais e estudo de cores. Por volta de 2003, quando a tira passou a ser produzida totalmente no computador, outras experimentações tiveram início com os traçados e outros programas como o Painter e suas inúmeras possibilidades e simulações de materiais e técnicas.

FIGURA 8 Recorte – maio/2006.

Na FIG. 8 são mostradas a tabela e as possibilidades do uso do pincel na parte superior e esquerda da imagem.

a) pintura digital – experimentação de texturas e contrastes entre as cores e o movimento dos personagens

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b) pintura digital – experimentação com o ambiente e as cores do plano de fundo como forma de composição do espaço.

c) rascunho feito no Painter, por cima de imagem a lápis digitalizada. Experimentação com cores e pincéis em diferentes formas e texturas.

d) tira do esboço anterior (c), finalizada. FIGURA 9: a, b, c, d - etapas de criação e experimentações digitais. Fonte: registros pessoais e jornal Estado de Minas - março/2004.

Essa fase envolve experimentações com cores, pincéis, aerógrafo, pressão, texturas e filtros (FIG. 9) e apresenta a sofisticação que o programa oferece, levando ao profundo conhecimento das ferramentas utilizadas e as possibilidades que apresentam. Devido à sofisticação alcançada

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em alguns trabalhos e tiras, foi incluído o conceito de pintura digital (ilustração), pois não mais era apenas o uso do pincel para traçar linhas claras (line claire) e sim, misturas de técnicas e ferramentas, criando texturas especiais e únicas. Como exemplificado nas ilustrações anteriores, os esboços a lápis e experimentações no Photoshop e no Painter sobre a variedade de pincéis e suportes virtuais disponíveis em ambos os programas.

FIGURA 10 Recorte - maio/2006.

Na ilustração acima (FIG. 10) está a imagem da tira acabada. O texto é breve e a tira possui poucos traços, com temática voltada para o cotidiano e a escola. O personagem é Edu, protagonista da série, e a brincadeira nas tiras, conhecidas como tiras do cobertor, é ele quase nunca aparecer quando não quer se levantar para ir estudar; por isso permanece debaixo das cobertas. O segundo quadro mostra o personagem sentado, que é como aparece na maior parte dessas tiras; pelas imagens é possível perceber os dois pés por baixo do cobertor. As séries do cobertor passaram a fazer sucesso entre os leitores, que a achavam original e diferente, e em uma das oficinas ministradas no Sexto Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), um dos alunos fez sua própria tira do cobertor. Depois, Edu começa a aparecer no primeiro ou último quadro, e são colocados móveis, luminárias, livros, revistas, outras partes da cama e mais travesseiros. A primeira tira do cobertor foi publicada ainda no Diário da Tarde, em preto e branco, com muitos detalhes e achuras, intensificando o ambiente em preto e branco. Na época, isso se deveu à influência do trabalho de David Mazzucheli e seu livro sobre Paul Auster. Outro exemplo das séries é a dos computadores. Na tira, eles são personagens, como o D. A. R. Y. L., o computador psicótico de Edu que, possuído pelo vírus do Apocalipse, determina a chegada do Juízo Final. O nome é uma homenagem ao filme homônimo de 1985, em que um garoto possui um cérebro robótico. Em várias tiras, Edu faz alusão a livros, filme e séries de televisão, criando um discurso intertextual próprio da cultura contemporânea de buscar referências diversas como filmes da série Guerra nas Estrelas ou Arquivo X.

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Cacá, outra personagem da tira, também é dona um computador instável em que o mouse, possuído por um vírus terrível, anda sozinho pelo teto. O computador está sempre lhe trazendo problemas e se rebelando (FIG. 11).

FIGURA 11 - Cacá e seu computador. Fonte: jornal Estado de Minas, 7 de julho de 2008.

Ao longo dos anos, a tira passou por algumas transformações em seu processo de criação, porém, manteve-se fiel aos personagens que transitam por seu universo. Da família nuclear da Cacá, em que surgem irmão, pais e avós, até o cotidiano da escola, dos estudos e da enrolação com Edu e seus professores, a tira aborda assuntos dos mais variados. Por um breve período foram produzidas tiras sobre skates, patins inline, vestibular, carteiras de motoristas, exames de direção, faculdade, estágio, colégio, deveres de casa, colas em provas, entre outros. O tema da informática, novas tecnologias, celulares e computadores é recorrente, pois são objetos do dia-a-dia. Temas como esportes, relacionamentos familiares e estudos também surgem no cotidiano, assim como assuntos do momento. Há tiras com abordagens mais críticas sobre aspectos como sustentabilidade, meio ambiente, ética e literatura. Nessas, Edu é mostrado em momentos de reflexão ou com um livro em mãos. O livro vermelho de Edu é uma homenagem a Carl Barks e o manual do escoteiro mirim criado pelo autor para Huguinho, Zezinho e Luizinho – o livro que tem respostas para qualquer pergunta. E, de forma indireta, funcionaria também como um incentivo ao hábito da leitura. A tira é destinada a um amplo público leitor de jornal, de diversas idades. À medida que o tempo passou, o jornal Estado de Minas passou por várias alterações na página das tiras em quadrinhos; uma das últimas foi o aumento do tamanho das tiras. Atualmente são publicadas no caderno de cultura (EM Cultura) e estão também disponíveis para os assinantes na versão online.

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REFERÊNCIAS ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme - a metalinguagem no cinema. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 2., p. 37-55, 1997. HERSKOVIC, Chantal. Chegando em Springfield, um estudo crítico sobre a série “Os Simpsons”. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005. HERSKOVIC, Chantal. <Ai, amigas! Ninguém merece!>. Belo Horizonte: Leitura, 2008. HERSKOVIC, Chantal. Blog da Cacau:// Ninguém Merece. Belo Horizonte: Leitura, 2008. HERSKOVIC, Chantal. Tiras de Letra na Casa da Vizinha. São Caetano do Sul: Virgo, 2007. HERSKOVIC, Chantal. Tiras de Letra Todo Dia. São Caetano do Sul: Virgo, 2006. HERSKOVIC, Chantal. Tiras de Letra pra Valer. São Caetano do Sul: Virgo, 2004. HERSKOVIC, Chantal. Tiras de Letra Outra Vez. São Caetano do Sul: Virgo, 2003. HERSKOVIC, Chantal. Central de Tiras. São Paulo: Vialettera, 2002. MAY, Rollo. A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo. São Paulo: Summus, 1993. PAULINO, Graça; WALTY Ivete; CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte: Lê, 1995.

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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS MINEIRAS E AS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA Richardson Santos de Freitas Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar as leis de incentivo à cultura do Brasil e a forma com que os quadrinistas mineiros fizeram o uso desses mecanismos para o financiamento de suas revistas em quadrinhos em 2011. Os dados desta pesquisa foram obtidos por meio de documentos publicados em órgãos públicos, como o Diário Oficial do Município, Imprensa Oficial de Minas Gerais, relatórios das Gerências de Leis de Incentivo à Cultura e em sites oficiais de prestação de contas públicas. Palavras-chave: histórias em quadrinhos; lei de incentivo; cultura; Minas Gerais.

Abstract This article aims to analyze the incentive laws and culture of Brazil and how the mineiros’s comics use of these mechanisms to finance their comics in 2011. Data from this study were obtained from published papers on public bodies such as the Official Gazette of the Municipality, Press Officer of Minas Gerais, reports of Managements Incentive Laws and Culture official websites for public accountability. Keywords: comics; incentive laws; culture; Minas Gerais.

INTRODUÇÃO

A Constituição Brasileira de 1988 estabelece, em seus artigos 215 e 216, que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL. Constituição, 1988, Seção II – Da Cultura1). É facultado aos Estados vincular um fundo de fomento à cultura para o financiamento de programas e projetos. O papel do Estado na gestão pública da cultura, segundo o Sistema Nacional de Cultura (2010), é “fortalecer institucionalmente as políticas culturais da União, Estados e Municípios, com a participação da sociedade” (BRASIL. Sistema Nacional de Cultura – Guia de Orientação para os Estados, 2011, p. 18). Entre as ferramentas que o Estado tem disponível para atingir suas metas de fomento cultural está o sistema de financiamento a projetos culturais por intermédio de leis de incentivo. Apesar de iniciativas importantes, Simões e Vieira nos alertam que, 1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 215. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm>.

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Ao refletir-se a respeito da atual situação da cultura no Brasil, parece evidente que esta – diante dos diversos problemas sociais e econômicos do país, não é a pauta central, nem da sociedade e nem do mercado, tampouco é uma prioridade governamental. Obviamente, não se ignora o interesse do mercado em certos “produtos” culturais, nem o protesto de alguns grupos pelo sucateamento do aparelho estatal cultural e muito menos o fato de algumas políticas públicas utilizarem a cultura como ferramenta de inclusão social. Mas o importante a ser destacado e repensado é o fato de que não é um fenômeno recente o papel secundário que o campo da cultura ocupa atualmente. É um processo construído historicamente pela própria sociedade e que sofreu fortes influências do Mercado e, principalmente, do Estado ao longo do tempo (SIMÕES; VIEIRA, 2005, p. 17).

Segundo Medeiros, o ponto favorável para a criação dessas leis é a ideia de que “O Estado não deve ser produtor de cultura, mas apenas provedor dos recursos” (MEDEIROS, 2010, p. 31). Segundo sua pesquisa, o objetivo inicial das leis, por meio da renúncia fiscal, era fazer com que a atividade cultural fosse liberada do paternalismo estatal. Isso evitaria que restrições de ideologias e influências políticas dos ocupantes do poder interferissem nas decisões das atividades artísticas e culturais. No Brasil, a primeira lei de incentivo à cultura entrou em vigor em 1986. Conhecida como Lei Sarney, a lei n. 7.505/86 foi instituída um ano após a criação do Ministério da Cultura e com recursos vinculados aos benefícios de dedução do imposto de renda dos financiadores. O presidente Collor de Melo suspendeu em 1990 a Lei Sarney e todos os seus benefícios. No final de 1991, o mecanismo de incentivo cultural é recriado por meio da lei 8.313/91. Batizada de Lei Rouanet, criou-se o Fundo Nacional de Cultura, o Fundo de Investimento Cultural e Artístico e o Incentivo a Projetos Culturais. O Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) criado pela Lei Rouanet desvinculou o financiamento do imposto de renda e permitiu que empresas financiassem projetos por intermédio de renúncia fiscal de tributos federais, estaduais ou municipais. Em 2010, uma nova proposta de reforma foi elaborada pelo Ministério da Cultura por meio do projeto de lei n. 6722/2010, que prevê o fim da Lei Rouanet e a criação do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura). Esse projeto de lei do Poder Executivo ainda está sendo avaliado em comissões do Congresso Nacional, e só depois de aprovado por essas comissões mistas, será levado ao Plenário para votação e aprovação do Poder Legislativo. O Município de Belo Horizonte aprovou sua Lei Municipal de Incentivo à Cultura em 1993. Em 1997, foi a vez do Governo de Minas criar sua legislação da Lei de Incentivo à Cultura de Minas Gerais. O financiamento por meio de mecanismo das leis de incentivo tem o potencial de estimular a produção e a difusão de obras e eventos culturais de diversos segmentos. Este estudo pretende fazer uma análise das leis e contextualizar como os quadrinistas mineiros utilizaram esses recursos para financiarem suas publicações e eventos em 2011. Os dados deste trabalho foram obtidos por meio de pesquisa a documentos oficiais da Fundação Municipal de Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais e do Ministério da Cultura.

LEI MUNICIPAL DE INCENTIVO À CULTURA DE BELO HORIZONTE A Lei Municipal de Incentivo à Cultura (LMIC) da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), lei n. 6.498, foi publicada no Diário Oficial do Município (DOM) em 29 de dezembro de 1993. O primeiro edital foi lançado em 1995. O atual edital é regulamentado pelo Decreto Municipal n. 11.103, de 5 de agosto de 2002. O

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decreto serve de base para a elaboração do edital da LMIC. Entre seus artigos estão a criação de duas modalidades de incentivo: fiscal e fundo de projetos culturais. São beneficiadas pessoas físicas ou jurídicas, domiciliadas no Município há pelo menos dois anos. Segundo o último edital publicado, em 27 de setembro de 2011, ano XVII – edição 3.918 do DOM, as definições para as categorias são: I – Incentivo Fiscal (IF): mecanismo por meio do qual a PBH pratica a renúncia fiscal em favor de projetos de caráter artístico e/ou cultural que visem à exibição, utilização e/ou circulação pública de bens culturais na cidade; II – Fundo de Projetos Culturais (FPC): mecanismo por meio do qual a PBH viabiliza projetos de natureza experimental, de pesquisa e de formação, promovendo o incentivo direto de criadores, artistas e produtores locais. O FPC é financiado com recursos de impostos arrecadados pela PBH. No caso do IF, empresas patrocinadoras têm o benefício da dedução de até 20% do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) pago mensalmente. No edital de 2011, a LMIC contou com um aporte total de R$ 13.847.275,59 que incentivarão 212 projetos. O FPC movimentará 8 milhões de reais, apoiando 138 propostas aprovadas. O IF selecionou 74 empreendedores que irão captar recursos na ordem de 5,3 milhões de reais junto a financiadores culturais. No formulário de inscrição de propostas de projetos culturais, no setor Artes Visuais existe o subsetor específico para as Histórias em Quadrinhos. No edital 2011 foram habilitados no setor de Artes Visuais 69 projetos no Fundo de Projetos Culturais e 34 em Incentivo Fiscal. Destes, apenas dois projetos de quadrinhos foram escritos no FPC, sendo que ambos foram propostos pelo mesmo empreendedor. Outros dois projetos foram inscritos no IF, sendo um festival e uma publicação de revista em quadrinhos. Ao final da seleção, a comissão aprovou 17 projetos de Artes Visuais no FPC e 6 no IF. Nenhuma das quatro propostas relacionadas a quadrinhos foi aprovada em 2011. TABELA 1 Relatório de gestão e resultados do edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura – 2011 – Versão preliminar.

Fonte: Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Divisão de Gestão da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, 2012, p. 15.

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LEI DE INCENTIVO À CULTURA DE MINAS GERAIS O Governo de Minas Gerais de fomento possui dois sistemas de financiamento: a Lei Estadual de Incentivo à Cultura e o Fundo de Cultura.

LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À CULTURA A Lei Estadual de Incentivo à Cultura foi instituída em 1998. O mecanismo da lei consiste em permitir que as contribuições de pessoas jurídicas aos projetos culturais sejam deduzidas do imposto estadual devido pelas empresas. Tem como base o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Após aprovado, o proponente tem que captar recursos junto a pessoas jurídicas. Toda empresa que apoia financeiramente um projeto cultural aprovado pode deduzir do imposto devido ao estado até 80% do valor total destinado ao projeto. Os 20% restantes são considerados participação própria do incentivador. A inscrição dos projetos candidatos aos benefícios da lei é feita segundo as regras do edital divulgado anualmente, regulamentado pela lei n. 17.615, de 4 de julho de 2008 e decreto n. 44.866, de 1º de agosto de 2008. Em lista publicada no site oficial da Secretaria Estadual de Cultura de Minas Gerais, na edição de 20112, foram inscritos 1.954 projetos, do qual 1.673 foram aprovados. Quatro dos projetos selecionados têm relação com quadrinhos, sendo três publicações de revistas e uma organização de festival. Três desses projetos são de empreendedores de Belo Horizonte e um da cidade de Ipatinga. Foram aprovados os projetos: – “Graffiti 76% Quadrinhos: História, Sociedade e Cultura em Minas”, de Piero Bagnariol, de Belo Horizonte, contemplado com o valor de R$ 215.000,00; – “HQ Brasil”, de Nilo Estanislau do Rosário, de Belo Horizonte, contemplado com o valor de R$ 332.000,00; – “HQ e etc... - 1ª Edição”, de Cleuciane Ferreira Sales, de Ipatinga, contemplado com R$ 293.246,40; – Revista em Quadrinhos “O Cordel dos Dominadores do Bem e do Mal”, de Rafael Penchel D’Aparecida, de Belo Horizonte, contemplado com o valor de R$ 42.560,00. O valor total destinado à lei estadual em 2011 foi de R$ 321.984.406,16, sendo R$ 13.819.215,92 para a área de Artes Visuais (4,29% sobre o valor total), que incluem as categorias de artes plásticas, design artístico, design de moda, fotografia, artes gráficas, filatelia e congêneres. Os projetos da área de quadrinhos conseguiram, juntos, aprovar R$ 882.806,40. Esse valor corresponde a 6,38% do valor aprovado em Artes Visuais. Os projetos estão agora em fase de captação de recursos.

2 Disponível em: <http:// www.cultura.mg.gov.br/fundo-estadual-de-cultura>. Acesso em: 8 abr 2012.

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TABELA 2 Resumo de projetos aprovados na modalidade de Lei de Incentivo à Cultura - Edital 2011.3

Fonte: Diretoria da Lei de Incentivo à Cultura da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, 2012.

FUNDO ESTADUAL DE CULTURA Criado em 2006, o fundo foi sancionado por meio da lei n. 15.975/2006 e regulamentado pelo decreto n. 44.341/2006. Em 2010 uma nova lei, n. 19.088/2010, modificou a lei anterior. Podem participar do Fundo Estadual de Cultura empresas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, e de direito público estabelecidas em Minas Gerais voltadas para a cultura, que tenha pelo menos um ano de atuação. Nesta opção, a empresa pode optar por duas modalidades: a) Liberação de recursos não reembolsáveis – aberto para entidade de direito público ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos. Nesta modalidade não reembolsável, o patrocínio não exige de volta o valor liberado em conta; b) Financiamento reembolsável – aberto para pessoa jurídica de direito privado. Caso seja aprovado pela SEC, encaminha para o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) avaliar aspectos econômicos, jurídicos e financeiros. Nesta modalidade de financiamento a entidade aprovada deve pagar o valor do financiamento ao BDMG de acordo com os procedimentos e juros do banco. Nos dois casos, exige-se uma contrapartida de no mínimo 20% por parte da entidade aprovada do valor financiado. É possível que a contrapartida seja paga por meio de serviços prestados ou produtos doados para o projeto em execução. No edital 01/2010, foram previstos R$ 6.500.000,00 para o Fundo. Cinco por cento desse valor estavam destinados à área de Fomento - produção de novas linguagens artísticas, na qual estão 3 As Artes Visuais correspondem à área número 3 da tabela.

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incluídos trabalhos de artes gráficas e visuais, entre outros segmentos culturais. O valor teto de cada projeto do setor era de cem mil reais. Na Relação dos Projetos selecionados, aprovados na modalidade de recursos não reembolsáveis, consta a aprovação de 171 projetos e 22 outros projetos considerados suplentes. Entre eles, não há nenhum relacionado ao segmento das histórias em quadrinhos.

LEI FEDERAL DE INCENTIVO À CULTURA - LEI ROUANET O programa que o Ministério da Cultura (MinC) gerencia é a Lei Rouanet – lei n. 8.313/1991. Seu mecanismo funciona por meio da implementação do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Segundo o relatório de prestação de contas de 2011 do Tribunal de Contas da União, em 2011 a captação total de recursos com base nas leis de incentivo (posição de 31/12/2011) foi de R$ 1,02 bilhão, sendo que 87% desse valor referem-se à benefícios concedidos com base na Lei Rouanet, 11%, na Lei do Audiovisual e os 2% restantes, na Medida Provisória 2.228-1/2001. TABELA 3 Recursos renunciados - Lei Rouanet

Fonte: Relatório e parecer prévio sobre as contas do Governo da República - Exercício de 2011 Tribunal de Contas da União, 2011, p. 252.

Em pesquisa feita pelo sistema Salic Web - Sistema de Apresentação de Propostas Culturais e Acompanhamento de Projetos Via Web4, foram usados os termos “quadrinhos”, “hq” e “gibi”. Como não há uma categoria específica para histórias em quadrinhos, os projetos inscritos optam por diferentes critérios, de acordo com o perfil de seu empreendimento, inscrevendo-se nas categorias Edição de Livros, Evento Literário, Artes Integradas, Periódicos, Artes Gráficas, Exposição Itinerante, Artes Visuais, Multimídia, Biblioteca, Teatro e Exposição de Artes. 4 Disponível em: <http://www.cultura.mg.gov.br/fundo-estadual-de-cultura>. Acesso em: 8 abr 2012

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Da amostra dos projetos pesquisados, três foram inscritos na modalidade Fundo Nacional de Cultura e 31, Mecenato. Desses, seis foram reprovados; 20 foram aprovados, mas não conseguiram captar recursos e oito conseguiram financiamento para execução de seus projetos. Dos 34 projetos, apenas dois são de proponentes de Minas Gerais: um inscrito em 2004 – “1º Salão de Humor e Quadrinhos do Cerrado” e “HQ Brasil”, de Nilo Estanislau do Rosário, em 2011. O primeiro projeto não conseguiu captar recursos; o segundo recebeu aprovação e autorização para captação em oito de março de 2012. O projeto “HQ Brasil”, projeto número 1113394, solicitou o valor de R$ 504.672,54 para realização de um evento cultural voltado ao setor de quadrinhos em Belo Horizonte em 2011. A comissão aprovou o valor de R$ 354.803,38. Em nova consulta feita em 25 de setembro de 2012, o empreendimento declarou R$ 0,00 de recursos captados. Segundo dados do sistema, o prazo final para captação é o dia 31 de dezembro de 2012.

PROAC – UMA EXPERIÊNCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo criou o Programa de Ação Cultural (ProAC) com editais específicos para a produção de histórias em quadrinhos (HQ). O projeto, surgido em 2009, lançou três editais de fomento à produção e publicação de HQs. Para cada edital foi reservado o valor R$ 250.000,00, sendo selecionados dez propostas para criação e publicação com o valor de incentivo de R$ 25.000,00 por projeto. Como pré-requisito, exige-se que a história em quadrinhos nunca tenha sido publicada na forma impressa e que o proponente seja pessoa física residente no estado de São Paulo. Trinta projetos já foram contemplados até 2011 e, em sua última edição, no edital ProAC n. 06/2011, foram habilitados 137 para concorrem ao financiamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não existem estatísticas ou mapeamento para saber quantos são os quadrinistas ou grupos atuantes no estado de Minas Gerais. Mas, mesmo sem esses dados, nota-se a baixa taxa de adesão dos artistas mineiros aos mecanismos de fomento à cultura. Na Lei de Incentivo à Cultura Estadual, apenas quatro projetos foram aprovados em 2011, sendo três da capital e um do interior de Minas. Em âmbito federal, apenas um empreendedor mineiro se inscreveu no projeto. Em sua última edição, o sétimo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ-BH), que ocorreu na Serraria Souza Pinto entre os dia 9 e 13 de novembro de 2011, recebeu um público de 148 mil pessoas, segundo anúncio feito por seus organizadores no site oficial do evento5. Com um custo estimado em R$ 967.426,006, o FIQ-BH trouxe ao evento 69 artistas nacionais e internacionais convidados, realizou mesas redondas, bate-papos e 44 oficinas dirigidas para os quadrinistas iniciantes e experientes. Além do festival bienal, são realizados, no período, outros eventos independentes, como os encontro promovidos pela grupo da revista Graffiti e pela Associação Cultural Nação HQ. Há várias escolas especializadas na formação de novos artistas na região metropolitana (Casa dos Quadrinhos, Fábrica dos Sonhos, Repúblicas dos Quadrinhos, Estúdio Black Ink e Stúdio A4), e Belo Horizonte possui dois Núcleos de Quadrinhos, um instalado na Universidade Estadual de Minas Gerais (Escola de Design) e o outro na Universidade Federal de Minas Gerais (Escola de Belas Artes). E, baseado no número de visitantes do FIQ-BH, temos grande potencial de consumidores. Apesar do 5 Disponível em: <http://www.fiqbh.gov.br>. Acesso em: 20 abr 2012. 6 Fonte: extrato do DOM n. 3.917, Ano XVII, do dia 24 de setembro de 2011.

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cenário favorável, esses números não se refletem na inscrição de propostas para as leis de incentivo à cultura em nenhuma das instâncias. Um dos grandes temas centrais de debate em qualquer evento é justamente a dificuldade de publicação e a remuneração ao se produzir uma revista em quadrinhos. Comparando com a realidade de São Paulo, somente com o edital de 2011 do ProAC, o estado paulista supera em muito o número de revistas publicadas por meio de incentivo público, além do expressivo número de inscrições de projetos, 137 propostas. O incentivo dado em São Paulo faz com que iniciativas que poderiam ser estimuladas em Minas Gerais migrem para o estado vizinho. Um exemplo é o da publicação da revista História do Clube da Esquina, produzida por Laudo Ferreira e Omar Viñole, com apoio do Museu do Clube da Esquina de Belo Horizonte. A história, que conta o surgimento do movimento musical mineiro de repercussão nacional, teve apoio e financiamento do governo de São Paulo, por intermédio do ProAC 2010, e foi publicado pela editora paulista Devir. Outros setores artísticos se fortaleceram com o financiamento público de suas ações. Os projetos visam à execução de um trabalho artístico/cultural e têm a preocupação com a formação de público e de gestores culturais. O resultado pode ser medido pelo número de projetos financiados pelos editais. Usando como referência a Lei de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, 65 projetos ligados às Artes Cênicas, 64 projetos de Música e 41 projetos de Audiovisual foram aprovados em 2011, levando ao público uma rica diversidade de apresentações, fortalecendo a cadeia produtiva do setor, empregando e remunerando os profissionais envolvidos. TABELA 4 Relatório de gestão e resultados do edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura – 2011 – Versão Preliminar

Fonte: Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Divisão de Gestão da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, 2012, p. 10.

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Cabe aos quadrinistas mineiros se conscientizarem de que as leis de incentivo à cultura são importantes instrumentos para o financiamento de suas obras. Por esse caminho é possível remunerar uma equipe de profissionais, produzir uma revista autoral, elaborar uma estratégia de distribuição e aumentar o acesso à população ao produto. Junto de outras iniciativas de financiamento privado, publicações de revistas ou fanzines com recursos próprios ou de editoras, as leis de incentivo podem se tornar importante opção na consolidação do mercado dos quadrinhos no estado.

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4. REFERÊNCIAS BELO HORIZONTE. Lei Municipal n. 6.498, de 29 de dezembro de 1993. Dispõe sobre incentivo fiscal para realização de projetos culturais, no âmbito do Município, e dá outras providências. Imprensa Oficial, Diário Oficial do Estado de Minas Gerais. BELO HORIZONTE. Decreto Municipal n. 11.103, de 5 de agosto de 2002. Regulamenta a lei n. 6.498, de 29 de dezembro de 1993, que dispõe sobre o incentivo fiscal para a realização de projetos culturais no âmbito do Município e dá outras providências. Diário Oficial do Município de Belo Horizonte, 6 ago. 2002. BELO HORIZONTE. Edital para projetos culturais - Ano 2011, 27 de setembro de 2011. Diário Oficial do Município de Belo Horizonte, 27 set. 2011. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei 7.505/86 (Lei Sarney), de 2 de julho de 1986. Dispõe sobre benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico. Diário Oficial da União, Brasília. BRASIL. Lei 8.313/1991, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá outras providências. Lei Rouanet - Casa Civil. Presidência da República. Diário Oficial da União, Brasília. BRASIL. Sistema Nacional de Cultura – Guia de Orientação para os Estados. Ministério da Cultura. Conselho Nacional de Política Cultural. Secretaria de Articulação. Governo Federal. BRASIL. Projeto de Lei n. 6722/2010 – Institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – Procultura, e dá outras providências. Congresso Nacional, Brasília. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório e Parecer Prévio sobre as Contas do Governo da República - Exercício de 2011. Ministro José Múcio, Relator. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Gestão e Resultados do Edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura – 2011 – Versão Preliminar. Diretoria de Ação Cultural. Departamento de Fomento e Incentivo à Cultura. Divisão de Gestão de Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Fundação Municipal de Cultura, 2012. MEDEIROS, Maria Elisa Souza. O financiamento da cultura no Estado de Minas Gerais: uma análise da Lei Estadual de Incentivo à Cultura 1998-2008 e do Fundo Estadual de Cultura 20062008. 130 f. (Mestrado em Administração) - Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2010. MINAS GERAIS. Lei n. 15.975/2006, de 12 de janeiro de 2006. Dispõe sobre a criação do Fundo Estadual de Cultura - FEC e outras providências. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte.

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MINAS GERAIS. Lei n. 17.615/2008, de 5 de julho de 2008. Dispõe sobra a concessão de incentivo fiscal com o objetivo de estimular a realização de projetos culturais no Estado. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. MINAS GERAIS. Lei n. 19.088/2010, de 22 de julho de 2010. Altera a lei n. 15.975/2006, de 12 de janeiro de 2006, que cria o Fundo Estadual de Cultura - FEC. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. MINAS GERAIS. Decreto Estadual n. 44.341/2006, de 28 de junho de 2006. Regulamenta o Fundo Estadual da Cultura – FEC, nos termos da lei n. 15.975/2006. Nele são detalhados os procedimentos e regras para as modalidades liberação de recursos não reembolsáveis e financiamento reembolsável. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. MINAS GERAIS. Decreto Estadual n. 44.866/2008, de 2 de agosto de 2008, regulamenta a concessão de incentivos fiscais de estímulo à realização de projetos artístico-culturais no estado, de que trata a lei n. 17.615, de 4 de julho de 2008. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. MINAS GERAIS. Edital do Fundo Estadual de Cultura 2010, de 9 de dezembro de 2010. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. MINAS GERAIS. Relação dos projetos selecionados, aprovados na modalidade de recursos não reembolsáveis, elaborado pela Diretoria do Fundo Estadual de Cultura. Superintendência de Fomento e Incentivo à Cultura. Secretaria de Estado de Cultura. Governo do Estado de Minas Gerais, 2011. MINAS GERAIS. Resumo de projetos aprovados na modalidade de Lei de Incentivo à Cultural Edital 2011. Secretaria de Estado de Cultura. Diretoria da Lei de Incentivo à Cultura da Secretaria. Governo do Estado de Minas Gerais, 2012. SIMÕES, Janaina Machado; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. Reflexões acerca da cultura, estado e mercado no Brasil. Revista Administração em Diálogo, São Paulo, n. 7, 2005.

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REFLEXÕES SOBRE OS MERCADOS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS1 Erick Azevedo Resumo Este texto pretende ser apresentado como um sumário de temas que considero perenes e que têm importância para definirmos os caminhos de continuidade das histórias em quadrinhos (HQs), permitindo também uma vida digna aos autores (não por acaso, esses são alguns dos principais temas presentes nos cursos que criei e ministro ao longo dos anos). É bom ressaltar que é também uma visão parcial do assunto. Um texto não é capaz de esgotar o tema, até porque sua conclusão, espero, está longe de ser alcançada. Mais do que dar respostas, desejo auxiliar no entendimento do contexto e dos desafios que ele propõe. Além de falar sobre as possibilidades do mercado e seu perfil neste momento, gostaria de lançar um olhar mais amplo, não só para trás, no tempo, como para além do conceito de mercado, para visualizar o que o abarca, sustenta e alimenta com novas ideias e procurar os motivos que levam alguém a ainda se interessar pelas histórias em quadrinhos, a despeito de toda a concorrência dos meios de comunicação de massa atuais. Palavras-chave: autores; criatividade; histórias em quadrinhos; mercado; público.

Abstract This text is intended to be presented as a summary of issues that I consider perennials and which are important for defining the paths of continuity of comics, also allowing a decent life for authors (not coincidentally, these are some of the main themes present I created courses and minister over the years). It is also good to note that a partial view of the subject. A text cannot be exhaustive, because its conclusion, I hope, is far from being achieved. More than giving answers, desire assist in understanding the context and the challenges it offers. Besides talking about the possibilities of the market and its profile at the moment, I would launch a broader perspective, not only back in time, and beyond the concept of market, to see what embraces, sustains and nourishes with new ideas and seek the reasons why someone is still interested in the comics, despite all the competition from mass media today. Keywords: authors; creativity; comics; market; public.

MERCADO OU MERCADOS? Se perguntarmos a cada profissional de HQs, em qualquer momento, o que é o mercado, teremos respostas diferentes, e todas podem descrever um aspecto desse mercado. Talvez essa 1 Diferentemente dos demais textos científicos, este artigo foi redigido em primeira pessoa, devido ao caráter pessoal de seu conteúdo que descreve uma trajetória profissional - e por decisão da editora dos Anais do Seminário de HQ. Os demais itens, no entanto, seguem estritamente as regras de normalização adotadas pela Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais (EdUEMG), de acordo com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

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seja a primeira noção que precisamos para compreender o potencial dos quadrinhos: enquanto existirem quadrinistas, as possibilidades das HQs estarão em mutação, assim como o seu mercado. A impossibilidade de definir definitivamente o que é esta cena é um indício de que, apesar de todas as dificuldades, ainda estamos vivos e atuantes na “cadeia evolutiva da cultura humana”.

DESCONHECIMENTO E PRECONCEITO Ao longo do século XX, elas foram vistas com preconceito: desestimulavam a leitura de literatura, tornando os leitores preguiçosos, corrompiam a juventude, induzindo-a ao crime, às drogas e ao comunismo. Além disso, já que as HQs têm sua origem em algo simples como a tira, o cartum, a caricatura e a charge, em que o desenho parecia feito às pressas, de qualquer forma, e como ao longo do século XX elas se destacaram como produto para crianças, pensa-se que as HQs são pobres como linguagem/técnica, limitadas como espaço de expressão artística e fácil de se fazer. Isso as relegou ao ostracismo entre grande parte dos estudiosos de semiótica, artes plásticas e visuais, artistas e críticos de arte “sérios”. Nunca se deu aos quadrinhos o lugar que a literatura, a pintura ou mesmo o cinema mereceram (todas as “artes” que utilizam recursos também presentes nas HQs): um lugar de reconhecimento à altura de suas possibilidades e de sua contribuição cultural. Atualmente, tanto o mercado milionário japonês de mangás como o sucesso dos filmes baseados em HQs escritas há mais de 40 anos atestam o que se sucede quando os quadrinhos são potencializados pela máquina publicitária capitalista. Foi apenas com a contracultura, os situacionistas e o underground que as HQs receberam um olhar acadêmico e mereceram melhor status (precursora da linguagem cinematográfica, do surrealismo, do cinema de Orson Welles etc). Esses textos lançaram um olhar mais positivo e, às vezes, mesmo indiscriminadamente positivo, o que vem a ser outro preconceito. O destaque vai para os textos de Umberto Eco, que reflete de forma consistente, sem condescendência, sobre esse vasto universo, suas implicações sociais e seu potencial. Ainda que seja inegável que esses intelectuais iniciaram uma mudança gradual e duradoura a respeito das HQs, corroborada por grandes artistas de todas as épocas, é raro que se escreva hoje algo relevante sobre elas. Apesar dessa mudança de percepção e do crescimento desse mercado tanto no Brasil quanto no exterior, o desconhecimento por parte do grande público continua gerando um verdadeiro retrocesso da relação do consumidor com os quadrinhos. No caso do cidadão médio, o desconhecimento devese, em parte, à enxurrada de meios de “comunicação”, cada vez mais “pirotécnicos” e de fácil acesso e compreensão, já que são levados “de graça”, com as refeições, para cada pequeno consumidor em potencial, o que ajuda a tornar as HQs menos presentes desde a infância (não nos esquecendo de que esses meios de comunicação de massa são também porta de entrada para algumas HQs). É natural que essa atitude ignorante e distanciada do público se estenda também aos empresários: se as histórias em quadrinhos não fazem parte do cotidiano, não é possível aprender a decodificar essa linguagem e vê-las como fonte de lucro em potencial. Nas relações das HQs com as artes plásticas, soma-se a esse desconhecimento um preconceito mascarado pela indiferença. Lembro-me de uma conversa que tive, nos anos 1990, com um aluno de artes plásticas (e que hoje é professor universitário). Ao saber que eu trabalhava com HQs, ele exclamou, surpreso, que “achava que já estavam extintas”. Afirmação curiosa para quem não só estudava as possibilidades do desenho como apreciava e acreditava na pintura como forma de expressão artística. O que me parecia equivocado na exclamação um pouco irônica do nobre artista era o preconceito velado que levava ao não reconhecimento dos quadrinhos como área de conhecimento, com história e influência na sociedade e, acima de tudo, com linguagem de

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possibilidades quase ilimitadas. Esse preconceito e desconhecimento são alguns dos motivos que me levaram à conclusão de que a preservação da memória e a discussão sobre ela são essenciais para fomentar o desenvolvimento dos quadrinhos no Brasil, para inserir o país nesse universo efervescente, variado e criativo e apresentar suas possibilidades.

MAS, AFINAL, O QUE É HISTÓRIA EM QUADRINHOS? Ler quadrinhos não é para qualquer um. Esse é, sem dúvida, outro obstáculo ao desenvolvimento do mercado e dos quadrinhos em geral. As HQs são um conjunto de técnicas e convenções para criar e organizar uma narrativa com imagem e texto, geralmente de forma sequencial. Podemos dizer que os elementos que o autor usa nas diversas camadas que compõem uma história em quadrinhos é o campo simbólico onde o leitor pode buscar pistas e construir sua leitura. Ela é tão boa quanto a capacidade desse leitor de relacionar esses elementos, sua cultura e imaginação, engajados para dar vida às cenas congeladas das HQs. É claro que isso vale para todas as linguagens, mas nas HQs temos uma combinação particular de imagens e texto, além de todas as convenções narrativas dos quadrinhos (estilização, onomatopeias, linhas de movimento, estilização etc...) e da página (composição dos quadrinhos, uso da elipse etc...). Um vocabulário que exige prática para ser devidamente assimilado e utilizado. Elas são ricas em possibilidades, mas exigem do leitor um esforço e um acordo com o autor. Acordo em que a imaginação é mais requisitada no processo de decodificação do que no caso do irmão mais novo das HQs: o cinema e sua filha bastarda, a TV. Não que esses meios sejam inferiores ou mais simples, mas neles a ilusão do movimento e o som funcionam como um fluxo no qual podemos abandonar nossa atenção e simplesmente deixar que a história aconteça. Nas HQs, essa ilusão é, em parte, um exercício consciente do leitor. Se olharmos do ponto de vista do autor, dominar esses elementos é ainda mais complexo. Creio que apenas o cinema possui tantos aspectos a serem observados: figurino, caracterização de personagens, desenho, texto, estruturação de roteiros, cores, sequencialidade, posicionamento de câmera etc. A diferença é que, nele, uma grande equipe cuida desses diversos aspectos, enquanto que na HQ raramente temos mais de cinco artistas cuidando de tudo. Não afirmo que o quadrinho é bom por ser difícil. Muito menos que quadrinho é arte. É sim uma linguagem, e o que pode ser criado com essa linguagem depende do quadrinista, seja entretenimento, publicidade, educação, adaptação literária, confissões pessoais, narrativa ou arte. É preciso separar as técnicas narrativas das HQs dos conteúdos veiculados por ela. Nosso apreço em relação a elas não garante a utilidade desses conteúdos ou sua qualidade artística, valor social, ético ou moral. Se não se entende isso, não se está olhando para elas de forma crítica. Idealiza-se o mundo das HQs como de imaginação inocente e infantil (no qual, cada vez mais, as crianças têm de sete a 70 anos) sem olhá-lo como um produto cultural/industrial sujeito a preconceitos e manipulações ideológicas. Esse olhar, no entanto, não desqualifica a relação de fascinação que une o fã às HQs ou a qualquer outra forma de expressão.

O MERCADO NOS ANOS 1990 Ironicamente, na época da conversa sobre a “extinção dos quadrinhos”, no exterior e nas bancas do país, as HQs viviam um grande momento: desde os anos 1980, o mercado nos Estados Unidos vinha numa escalada de vendas (e especulação), o pagamento de royalties levava as duas maiores editoras de super-heróis a uma competição sem precedentes e a produzirem o seu melhor, com

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nomes como John Byrne, Jim Lee, Cris Claremont, Alan Moore, Frank Miller, Garth Ennis, Todd Macfarlane, Grant Morrison, Neil Gaiman, entre tantos outros. Sob o nome genérico de graphic-novel, cunhada por Will Eisner, as HQs de autor chegavam à maturidade de temas e experimentavam as diversas inovações das artes plásticas, atraindo artistas mais “sérios” das artes gráficas e das artes plásticas, revolução que os europeus já tinham realizado nos anos 1970 e que, entre altos e baixos, tinha rendido frutos nas duas décadas seguintes, apresentando alguns dos melhores trabalhos da história das HQs mundial. Os quadrinhos underground, surgidos nos anos 1960, eram reconhecidos, e autores como os irmãos Hernandez, Gilbert Shelton ou Robert Crumb tinham seus trabalhos editados em álbuns com uma aura cult e o status de arte. O Japão, maior mercado mundial, vendia milhões de exemplares de seus mangás semanalmente numa verdadeira indústria - tão popular lá quanto o futebol, a novela e o carnaval no Brasil - e ampliava sua invasão ao ocidente. A influência das HQs no cinema e na TV crescia com a mudança do perfil do público, mais infantojuvenil (mesmo aos 70 anos), ainda que não tanto quanto hoje, no qual os chamados blockbusters têm cada vez mais uma relação direta ou indireta com as ideias e roteiros criados, nesse período, pelas HQs.

O FIM DA HQ NACIONAL Mas parte da surpresa e do desconhecimento do meu amigo tinham razão de ser. No início dos anos 1980, dois mercados tradicionais no país começaram a decrescer: o terror e o quadrinho erótico. Mesmo Maurício de Souza teve quedas nas vendas. Com o fim da Ditadura Militar, boa parte dos chargistas, cartunistas e caricaturistas que brilharam nos anos de chumbo ficaram desempregados ou viram seus ganhos caírem junto com as vendas do quadrinho mais expressivo e influente naquele momento no mercado - humor político para adultos. Muitos foram sumariamente demitidos pelos jornais, que passaram a vê-los como inimigos em potencial. Alguns desistiam ou buscavam mercados externos. Soma-se a isso a hiperinflação e a consolidação do mercado de HQs “made in USA”, capitaneadas pelos super-heróis. E o que se via era um território arrasado. Em seu lugar, em franca ascensão ao longo dos anos 1980, surgia um quadrinho mais influenciado pelo underground americano, cujo tema eram os costumes: sexo, drogas e rock and roll, voltado para o público juvenil e adulto. Outro aspecto que chamava a atenção era o perfil do público jovem, os potenciais consumidores do que se produzia nesse cenário dos anos 1970 e 1980: terror, humor político, de costumes e infantil, erotismo, ficção científica e alguns heróis nacionais. Esse público não tinha crescido lendo sobre a maioria desses temas (com exceção, talvez, do humor de costumes e das HQs de Maurício de Souza), mas sim os super-heróis da Marvel e da DC. Era despolitizado e alienado do contexto que alimentava as tiras e charges políticas. Essa diferença era, na prática, uma ruptura. A substituição de um perfil de temas por outro: a agenda made in USA e os ícones dessa cultura como ponta de lança de produtos variados, veiculados pelo mercado ao seu público consumidor, o que sufocou a produção nacional calcada em outros valores, objetivos, formação estética e público alvo, a saber: a criação de um mercado forte, com uma estética identificada com nossos ícones e referências culturais. Por causa desse cenário, nos anos 1990 o que existia de publicação nacional no país era algo mais próximo do fanzine, e alguns dos melhores trabalhos desse período tiveram o formato de histórias curtas ou, no máximo, de álbum, já que o conceito tinha voltado à moda com as graphic novels. Como não havia (e ainda não há) um sindicato, associação ou mesmo o reconhecimento da profissão de quadrinista, muito menos algum tipo de instância educativa ou de arquivo (nossos

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arquivos são as revistas, o que resta da história daqueles autores e personagens, a história de nossa HQ), esses acontecimentos sequer chegaram ao conhecimento dos aspirantes à profissão, o que deixou na estaca zero, no escuro e realmente órfãos toda uma geração de futuros quadrinistas.

HQ: A GRANDE NARRADORA VISUAL DA HISTÓRIA BRASILEIRA Apesar daquele momento especialmente negro para nosso mercado produtor de quadrinhos, eu tinha consciência de que não era verdade que ele sempre fora fraco. De fato, é possível traçar um fio ao longo de todo o século XX, desde a segunda metade do XIX, ininterruptamente, encontrando sempre, pelo menos, um autor nacional vivendo de HQs e alcançando vendas sempre expressivas, quando não as maiores do período, atingindo centenas de milhares de leitores (geralmente, mais do que a literatura) e influindo na vida política e cultural do país. Em todas as épocas, os quadrinhos têm sido presença constante em nossa história, de forma que é possível ilustrar mais de cem anos dessa história apenas com charges, cartuns, caricaturas, assim como identificar tipos, preconceitos expostos e velados, e às vezes, a visão do derrotado. Alguns nomes, só para citar alguns, nesse “fio” são: Ângelo Agostinni, Jota Carlos, Thiré, Péricles, Flávio Colin, Ziraldo, Maurício de Souza, Henfil, Angeli, Fabio Yabu, Deodato Filho, Lourenço Mutarelli, os irmãos Moon/Bá, Rafael Grampá. Saber disso me dava algum ânimo para buscar um caminho nesse vazio, pois indicava que ao longo de mais de cem anos, pessoas nascidas no Brasil haviam comprado revistas em quadrinhos feitas (ainda que nem sempre) no Brasil! Naquele momento, isso parecia incrível.

MOVIMENTO E GRUPOS CRIATIVOS No início dos anos 1990, eu, como todo aspirante a quadrinista no país, me encontrava nesse território inóspito. Ainda assim, escolhi tentar me profissionalizar. Não foi difícil perceber que os dois lados, naquele momento, desvinculados, podiam ser reconectados: o da produção nacional, que praticamente sobrevivia de projetos que nunca passavam do número um, e o do consumo, com as bancas e livrarias cada vez mais abarrotadas de revistas em quadrinhos de qualidade cada vez maior. Essa profusão de revistas (todas feitas nos Estados Unidos) apontava para a existência de um mercado potencial crescente, ainda que modesto se comparado à população total do país e para a possibilidade de ampliar de forma maciça o acesso da população brasileira às HQs. O perfil “colonizado” de nossos quadrinistas é, por outro lado, eclético (o outro lado da moeda da colonização cultural) se pensarmos que fomos alimentados com produtos culturais da Europa, Estados Unidos e Japão e se olharmos de forma crítica e pessoal esses personagens e seu contexto ideológico e cultural, ou seja, do ponto de vista de um produto da cultura de massa, veremos que temos a bagagem cultural e a capacidade técnica para realizar produtos como os americanos (e com os americanos, indianos, europeus, japoneses e até... argentinos) e acrescentar elementos mais autorais/nacionais; a identidade não está separada da mistura, sobretudo no caso do Brasil. Essas constatações serviram de base para mostrar a possibilidade de se iniciar um movimento de histórias em quadrinhos em Belo Horizonte, na virada da década de 80 para a de 90. Seu objetivo declarado era iniciar uma cena de HQs na cidade que desse continuidade aos cem anos de história das HQs mineiras, buscando a profissionalização e a valorização dos quadrinhos produzidos no país e em especial na cidade de Belo Horizonte. É importante, aqui, definir o que quero dizer com movimento. Tradicionalmente, a ideia de movimento surge na história como um conjunto de ideias que, via de regra, se opõem a outras concepções e a outros movimentos. Entendo o movimento que se esboçava no final dos anos 80 como uma constelação de pequenos grupos com gostos comuns

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às HQs e muitas diferenças, que iam dos super-heróis, passando pela tira, o cartum, quadrinhos europeus, mangá e quadrinhos experimentais, misturando artes plásticas e visuais. Assim, era mais uma congregação dessas tendências e diferenças, organizadas, geralmente, em torno de grupos: a Legenda, do núcleo de quadrinhos da Fundação Mineira de Arte Aleijadinho (FUMA), a Grafitti, o pessoal do Big Jack, além de quadrinistas dos jornais e outros tantos. Nesse contexto, o Estúdio HQ funcionava ao mesmo tempo como um dos grupos e como coordenador dos grupos, divulgando um modelo e buscando debates das questões que este texto apresenta. Eu tinha a convicção, como ainda tenho, de que, mesmo se produzíssemos uma HQ descaracterizada culturalmente, ela conservaria certos elementos arquetípicos que continuariam lhe dando força e permitiriam que mantivesse o interesse, inclusive de públicos estrangeiros, o que poderia nos ligar aos mercados internacionais, trazendo divisas para o país e aumentando nossa visibilidade e importância econômica, melhorando o nível cultural dessas criações e, sobretudo, alimentando a diversidade, possibilitando ainda que vivêssemos da produção de quadrinhos. Mas, para que conseguíssemos isso, três etapas precisariam ser vencidas: 1- a formação de profissionais competentes conhecendo, ainda que parcialmente, os perfis dos mercados potenciais, do Brasil e do exterior; 2- a profissionalização da área e o apoio dos governos federal, estadual e municipal, além de empresários e meios de comunicação de massa; 3 - a distribuição organizada, no Brasil e exterior. Num movimento, essas etapas não são alcançadas por um único grupo, estúdio, escola ou empresa, mas de forma fragmentada e coletiva. Só assim podemos realmente falar em sucesso em cada uma dessas áreas/etapas. Se ela se institucionaliza, torna-se coletiva e mutante; logo, viva. Para que isso fosse alcançado, algumas estruturas teriam que ser criadas e alguns temas discutidos. Hoje, 20 anos depois, ainda é uma luta em curso. A seguir, enumero alguns desses tópicos, essenciais para continuar a desenvolver as premissas e objetivos do movimento com sucesso.

ECONOMIA CRIATIVA X INDÚSTRIA CRIATIVA Para conhecer as forças que engendram determinado mercado, precisamos ver além dele, enxergando o contexto que o abarca. Refiro-me ao que vem se convencionando chamar de economia criativa. Cito a definição do termo, dada por Edna Santos, de acordo com Avelar (2008), chefe do departamento de economia criativa da Organização das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), no livro O Avesso da Cena, de Rômulo Avelar: Economia criativa pode ser definida como o ciclo que engloba a criação, produção e distribuição de produtos e serviços que usam o conhecimento, a criatividade e o capital intelectual como principais recursos produtivos [...] a economia criativa é uma área vasta e heterogênea que abrange desde os produtos artesanais até as artes cênicas, artes visuais, os serviços audiovisuais, multimídia, indústria de software etc. Seus principais subgrupos são: música e indústria fonográfica; cinema, rádio e televisão; teatro e dança; pintura e escultura; edição e publicidade; indústria digital e jogos de computador e desenho em geral, que vai desde a arquitetura ao desenho industrial e à moda (AVELLAR, 2008, p. 26).

(Chamo a atenção para a ausência das HQs na longa lista de subgrupos, que inclui até os jogos eletrônicos, indicativo do já citado desconhecimento sobre a área). Essa definição pode, no entanto, dar a impressão de que se fala apenas do mercado, já que criação, produção e distribuição são quase sempre suas partes componentes. Para Lala Deheinzelin2, especialista em economia criativa e desenvolvimento, existem dois conceitos diferentes, ainda que relacionados: 2 Site oficial da artista. Disponível em: < http://www.laladeheinzelin.com>. Acesso em: jul. 2012.

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- a indústria criativa, e dentro dela a chamada indústria cultural (que é uma parte dessa que vem das artes), focada na produção em massa, nos direitos autorais e de propriedade intelectual e no lucro, modelo adotado pelas transnacionais do primeiro mundo; - a economia criativa, focada na diversidade, no pequeno, no local, ligada à economia informal, que trabalha para gerar mercado, não para competir com a indústria criativa, mas para renová-la e que, acredita Deheinzelin3, é o modelo que pode gerar resultados mais duradouros e benéficos para o terceiro mundo em geral e o Brasil em particular. Os imperativos econômicos que regem a indústria criativa criam um processo autofágico, no qual aquilo que faz sucesso converte-se em fórmula que é usada até o desgaste. A economia criativa é o ambiente no qual florescem essas “fórmulas” e atua como campo de experimentação, renovando a linguagem e os temas do mercado criativo. Portanto, opõe-se à lógica vigente dentro desse mercado, ou seja, não existe para dar lucro e fazer sucesso, mas para dar ênfase ao processo criativo e à experimentação e à fruição. Essa oposição é, na verdade, uma sinergia, um processo paradoxal que pode gerar novas possibilidades, modificando o mercado, renovando-o e garantindo sua sobrevida, enquanto cria novas áreas, temas, estilos e gêneros e alimenta com novas questões aqueles que se debruçam sobre as HQs, renovando continuamente o ciclo. O que “dá certo” torna-se parte do mercado. Temos, ainda, que reconhecer que entre o mercado e a economia crativa há uma tensão estrutural, que nunca é solucionada, a não ser em detrimento de uma das partes: ou censuramos e simplificamos o underground, ou modificamos o modelo vigente no mercado. Segundo Deheinzelin4, sessenta por cento da população mundial está oficialmente fora do mercado. Certamente, essas pessoas têm uma vivência cultural cotidiana, divertem-se, produzem e fruem da arte, ainda que em suas formas mais espúrias ou, em muitos casos, mais puras, justamente porque livres das exigências mercadológicas e, potencialmente mais conectadas às urgências da sociedade e do sujeito. Esse é o ambiente gerador da economia criativa e, talvez, seja a parte mais invisível no mercado, a que não é notada como parte dele, mas que o estimula e o renova. É dela que vem a força motriz principal do movimento, não necessariamente dos quadrinistas, mas de agitadores culturais, fãs e pesquisadores. Um bom exemplo atualmente é o Lady’s Comics, site sensacional sobre mulheres que fazem HQs. Outro exemplo é Amauri de Paula, que trabalha “há décadas” com as HQs e não é desenhista nem roteirista (mas de vez em quando....), ainda assim realiza um trabalho contínuo de promoção delas. Não basta enxergar o modelo “economia alimentando mercado”, pois esse espaço de pura criação e fruição que está presente na economia criativa é mais essencial que o próprio mercado; basta observar que, mesmo nos períodos mais difíceis para os profissionais brasileiros, o mercado consumidor continuou forte. Mas mesmo essas definições são parciais e esquecem o fator fundamental que alimenta tanto a economia quanto o mercado criativo: o leitor.

MINHA INFÂNCIA ENCANTADA EM MORDOR OU UM RETRATO DO ARTISTA COMO CONSUMIDOR Não me lembro quando vi uma revista em quadrinhos pela primeira vez. Minhas memórias mais remotas relativas ao entretenimento de massa são discos de histórias infantis, dos Beatles e dos Mutantes, concertos para a juventude na TV e músicas de sucesso cantaroladas em casa. Havia também livros ilustrados e os desenhos animados na TV: Looney Tunes, Hanna e Barbera, UPA e Disney, os live-actions japoneses e americanos, novelas, séries, musicais, filmes de arte e filmes B, peças infantis, folclore, contos de fadas, fábulas, mitos, o Sítio do Pica Pau Amarelo, vídeo-teatro e 3 e 4 Site oficial da artista. Disponível em: < http://www.laladeheinzelin.com>. Acesso em: jul. 2012.

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dança, tudo ao mesmo tempo, ampliavam meu repertório e meu leque de escolhas. Ainda assim, por algum motivo, as HQs tiveram influência e preponderância em meio a tal oferta de estímulos e possibilidades. Então, desde os cinco anos de idade, minha memória pulula de lembranças relativas às HQs. O elo entre quase todas é meu tio Nilson, na época quadrinista iniciante. Meu encanto eram os desenhos desde que, em uma tarde, ele visitou minha casa e desenhou para mim um dragão, além de um navio viking, que se tornaram daí para frente, até seu desaparecimento, meus brinquedos favoritos. Pouco depois, lembro de uma revista do Homem Aranha em preto e branco, uma história do Quarteto Fantástico desenhada por Jack Kirby. Quis aprender a ler para saber mais sobre aquela história (guardo até hoje aquela mesma edição, caindo aos pedaços, após quase 40 anos!). Numa sucessão de anos, nos quais pude ver quadrinhos de épocas e nacionalidades variadas, sempre comentadas pelo Nilson (que chegou a ter um curso nos anos 70, o Qualé a do Batman, junto com o Lor, outro quadrinista de renome de BH), títulos diferentes, como os clássicos do Sindicate americano na revista Gibi, o Club des Band Desineé, Disney, Maurício, Ziraldo, Valentina, Corto Maltese, Milton Cannif, a revista Mad (em sua era de ouro), A Cripta e A Kripta, Alberto Breccia e os argentinos chegaram aos meus olhos. A lista é vasta e variada demais. Outro aspecto, ou melhor, espectro, importante da época, era a ditadura, mais presente nos silêncios e conversas cifradas dos adultos do que propriamente em atos e desmandos que aconteciam na calada da noite. Por causa dela e, depois do processo de redemocratização, da força dos quadrinistas nesse período e de entender o papel das HQs de super-heróis (que eu lia avidamente) no processo de colonização cultural e política imperialista apoiados pela ditadura, tive uma crise em relação às HQs, como fã, que foi fundamental para meu amadurecimento e entendimento sobre ideologia e o poder das HQs como ferramenta de mobilização social e de propaganda. Aos poucos, tentando desenhar eu mesmo, intuía personagens e situações, minha imaginação e desejo materializados. De início, desenhava e recortava, brincando com os personagens, repetindo mil variações do mesmo roteiro, depois entendendo, aos poucos, do que era um roteiro, os personagens etc... Mas, então, já pensava nos quadrinhos como modo de viver. Havia se passado 20 anos.

MAS O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM O MERCADO? 1- Mesmo estando no terceiro mundo e assistindo a uma TV “colonizada” (e por isso mesmo), tive acesso a culturas de várias procedências (Europa, Japão, Estados Unidos, Brasil, Argentina etc.), o que me possibilitou entender e utilizar mais até do que essas mesmas culturas os códigos culturais, as influências estilísticas, (até porque não eram exatamente os meus), a variedade de temas. Esse acesso foi sempre mediado por uma visão crítica, intercalando teoria, estudo e prática, produção e fruição. Consumir todos esses “produtos” estrangeiros não me limitou, porque pude entendê-los numa perspectiva histórica e, ao mesmo tempo, dar-lhes o valor que mereciam, do ponto de vista técnico e artístico, preservando minha ligação afetiva com os personagens e as histórias, sem perder o olhar crítico. Assim pude me apropriar desses conteúdos, de forma antropofágica, recriando-os no meu contexto, enquanto entendia os códigos, preconceitos e símbolos da cultura estadunidense. 2- Todo mercado existe em função dessa relação lúdica e afetiva que cada pessoa que lida com essas “entidades culturais” tem. Esse é o centro de qualquer forma de expressão: a relação entre o artista, a obra e o fruidor. O custo de produção das HQs é relativamente baixo e sua criação não exige do autor um virtuosismo para começar. Assim, não é necessário um mercado produtor local para que existam quadrinistas, só papel e lápis! E quanto aos leitores, o próprio invasor/concorrente forma público potencial para os quadrinhos nacionais, e seus mercados tornam-se mercados para nós. 3- O elemento catalisador foi certamente meu tio Nilson. Creio que a existência de um adulto inserido

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na cena política e social do país, que não apenas lia como pensava e discutia sobre HQs (e um adulto cuja inteligência era reconhecida por todos) e que, ainda por cima, produzia HQs e vivia desse trabalho, foi definidora de uma visão das possibilidades dessa linguagem. Mais do que uma fonte de informação (e ela era das mais variadas no sentido de apresentar o estranho, o diferente e o maravilhoso), as HQs se apresentaram para mim como um modo de expressar que me permitia muito, quase tudo, mas que parecia fácil e barato de fazer. Parecia... Na perspectiva do movimento que pretendíamos realizar, esses três elementos se constelavam num só lugar: a escola.

A IMPORTÂNCIA DA ESCOLA Um dos fatores fundamentais para a saúde da economia e do mercado criativo (e dentro dele as HQs) é a escola. Nesse cenário e na perspectiva de uma economia criativa, poucas são as estruturas com mais possibilidades de catalisar ações e ideias, preservar e divulgar dados (a história dos quadrinhos e dos quadrinistas, seus sucessos e fracassos) e de apresentar ao aluno/fã, e não somente ao aspirante a profissional, as facetas das HQs ou do que quer que elas ensinem. O professor não pode ser apenas o que transmite a informação, mas aquele que auxilia na construção do ponto de vista do aluno, situando-o: contextualizando, criticando e debatendo. A escola é, ainda, um indicativo de saúde desse “ecossistema”, visto que está nas “duas pontas da corda”, formando profissionais (quadrinistas e professores/pesquisadores) e consumidores, servindo como elo privilegiado entre o passado e o futuro, potencial fomentadora de projetos, sendo ainda uma expansão do próprio mercado de quadrinhos. Mas é um erro considerar a escola apenas de um ponto de vista da lógica de mercado, assim com não pode ser responsabilizada pelo sucesso ou fracasso desse mercado. A escola alimenta, estrutura e fortalece, mas não cria o mercado. Para que haja mercado, é preciso dinheiro. Logo, consumidores. A escola pode ser um bom negócio, mas não pode ser o objetivo final de um mercado produtor saudável. Não é possível que todos os profissionais que se formam dêem aula para viver. Para que existam HQs, é necessário quadrinistas, os quais a escola pode ajudar a formar, mas ela faz mais que isso na medida em que instrui e prepara melhor o consumidor, o futuro crítico e, mesmo, informa a sociedade que não consome, mas convive com esse meio de comunicação. A escola não é a responsável exclusiva pelo sucesso do aluno no mercado ou da expansão desse mercado, mas uma porta de entrada nesse universo. Deve ser o lugar dos mais experimentados e da variedade, da organização e da experimentação, lugar de formação de profissionais e de pesquisa, polo de irradiação de informação e de potencial criador de produtos culturais e, quem sabe, de arte.

ÉTICA E IDEOLOGIA Outro tópico importante é o da ética e da ideologia. As mensagens subliminares e os preconceitos, conscientes ou não, são elementos cotidianos das artes visuais e, marcadamente, das HQs. Independentemente de sua orientação política ou suas opiniões, o quadrinista não deve ser inocente e pensar que o que produz está fora da história e do chamado “sistema”. Por isso, cada profissional tem responsabilidade pelo que escreve ou desenha ou ao qual associa, de qualquer outra forma, seu nome e seu talento. Usar de forma consciente e ética esses recursos é mesmo uma condição para a saúde da linguagem e o sucesso do mercado de HQs. As HQs são, hoje, um dos possíveis e prováveis acessos à cultura por parte das crianças e dos jovens. Assim, se todos os protagonistas que um autor cria são brancos, heterossexuais e magros, se as mulheres sempre exalam sexualidade como bonecas e apenas os maus são feios ou negros, esse autor é uma estação reprodutora de estereótipos e preconceitos involuntários e colabora com

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uma campanha publicitária invisível e sem cabeça, que leva ao consumo de academias, dietas e operações plásticas. E não adianta dizer que foi influenciado pela cultura, as modelos e as celebridades malhadas, famintas e plastificadas. Dizer que as HQs não devem se meter em política é falar em vão, assim como negar que elas o fazem de forma intencional é ser conivente com a manipulação. É uma verdadeira guerra de símbolos e mensagens, valores e palavras de ordem, quase sempre para um público desavisado e em formação. O objetivo dessas mensagens é, principalmente, de ordem econômica, incentivando o consumo de bugigangas variadas. A agenda militar dos Estados Unidos também está sempre dando sua cara nas HQs de lá. Não é novidade que os super-heróis são garotos-propaganda das ações imperialistas made in USA e defensores (quando não participantes) das inúmeras guerras e invasões do Tio Sam. Trabalhos como O Reino do Amanhã / Kingdoom Come e Os Supremos / Ultimate são verdadeiras propagandas próguerra, sempre apoiando o “Bush way” e fazendo o discurso de “a melhor defesa é o ataque” e “se não está comigo, está contra mim”. Também é fácil imaginar que a venda de Katanás aumentou em todo o mundo, assim como a popularidade dos samurais, por causa dos animês e mangás japoneses que inserem os produtos e a cultura de massa japoneses nos mercados internacionais. Em outro extremo, temos autores como Quino, e sua Mafalda, e Henfil, só para citar os dois mais populares. Ambos transformaram suas HQs em campo de batalha, propaganda das mazelas e resistência contra as ditaduras no Brasil e na Argentina. Henfil teve ainda influência na campanha das diretas, tendo inclusive criado o slogan “Diretas já”. Em cima do muro, Alan Moore, de dentro do sistema, realizou trabalhos de crítica dos super-heróis, ainda que mais revitalizadora que demolidora. Não adianta refletir a sociedade, mas sim refletir sobre ela. Ter um olhar crítico e distanciado, mas também apaixonado e envolvido. Visão crítica e bom humor ajudam. A antropofagia me parece, ainda, o melhor modo de se aproximar desses produtos, com um pouco de Sartre, Berthold Brecht, Freud e Jung pra ajudar a entender todos os aspectos de criação nos quadrinhos (mas tudo isso é assunto para outro texto). O desafio é escapar desses preconceitos sem tornar a HQ moralista e chata, evitando o “politicamente correto”, o racismo e o sexismo, entre outros vícios. É bom lembrar, ainda, que o leitor é coautor e que suas relações com a história estão fora do controle do autor, podendo se dar mesmo sem relação alguma com os conteúdos vinculados por ela. É fundamental, também, o exercício da ética nas relações profissionais, de preços e valores de trabalho e com o consumidor, nos direitos autorais e no pagamento de royalties. Ela se aplica também ao consumidor, já que é para ele que a história é endereçada; ele também responde por sua divulgação, assim como dialoga com os valores divulgados. Outra questão ética que envolve diretamente o consumidor é a do consumo pirata ou o não pagamento pelo produto via internet.

PROIBIDO PROIBIR Outro fator a ser considerado é a censura, que, mesmo nas sociedades ocidentais, ditas democráticas, existe de forma velada e, às vezes, até mais dura e eficaz que nos regimes totalitários. Às vezes, essa censura é do autor, que escolhe públicos específicos e se molda aos seus gostos. É no entretenimento e na publicidade que essa questão é mais premente, assim como nos produtos educativos e paradidáticos. Em comparação com outras formas industriais de entretenimento, a HQ é relativamente menos policiada, tanto por sua popularidade ser menor que a do cinema quanto pela facilidade de sua produção. Mas esse policiamento cresce na proporção da tiragem e do sucesso do título. Ainda assim, é um dos espaços do mercado de entretenimento no qual mais se tem ousado e experimentado.

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Por outro lado, as HQs são uma expressão do ser humano - do que somos e do que podemos e não podemos ser, do que queremos fazer e não podemos e, como tal, deve muito de sua aura e sedução à possibilidade de encenar esses impedimentos e impossibilidades. É necessário separar cultura de educação naquilo que elas têm de diferente. A educação é (ou supõe ser) o conjunto de técnicas e regras que permitem que os seres humanos vivam em sociedade; portanto reúne o que se tem de melhor em uma cultura. Já a cultura comporta também o material espúrio produzido pela humanidade, o desviante, o grotesco, o bárbaro, o indecente, o animal, o estranho etc. É o que Freud chamou de sublimação, transformar o recalcado em outra coisa: a cultura. É nela que devemos despejar esses outros possíveis aterradores e jogar com e contra eles. Pode ser assustador assistir violência e sexo nas HQs, mas essas cenas são reflexo da sociedade e das ansiedades do sujeito e, no mais das vezes, sua única válvula de escape para esses impulsos, além de reduto lúdico e com algum significado maior, dando-lhe a sensação de pertencer a um grupo, num mundo cada vez mais automatizado e vazio. Esse perfil das tribos, no entanto, não dá a elas o dom de saber o que é bom. Isso é mito. Creio que foi Alan Moore quem disse não fazer pesquisa para saber o desejo do público. Por ser o “Alan Moore”, ele é quem oferece ao público algo de interessante. Muitas vezes, a autoria na abordagem do assunto é o ponto de interesse e diferenciação e não “o assunto” que esteja na moda, como vampiros ou Pokemons. Tratar de assuntos que esse público não quer saber, mas precisa, é outro aspecto legítimo e necessário.

INVESTIMENTO PÚBLICO, PRIVADO, MECENATO E LEIS DE INCENTIVO Fator importante para o desenvolvimento da economia criativa são as diversas leis de incentivo e outras formas de mecenato, concursos, concorrências etc. Elas possuem, ainda, imperfeições e criaram algumas distorções na percepção dos possíveis investidores, desestimulando o investimento, se não for pela lei e, na prática, submetendo os conteúdos do projeto a um controle e censura por parte daquele que cede o seu imposto, o que é inadmissível. Mas essas leis foram fundamentais para o surgimento de autores e publicações dos anos 90 em diante, auxiliando muito o movimento de quadrinhos de Belo Horizonte nesses anos e ainda hoje. Wellington Srbek e a revista Grafitti são os melhores exemplos disso. Creio que a utilização acertada desses recursos é uma das molas mestras para a gestação de um mercado produtor sólido, mas não a única e nem a mais importante. O apoio do Estado, assim como parcerias com empresários é outro aspecto extremamente relevante. Nas últimas décadas, cada vez mais meios de financiamento vêm surgindo, assim como tem aumentado a utilização das HQs por parte dos publicitários, do Estado e das escolas para divulgar, informar, educar e entreter. As editoras, graças à crescente indicação de publicações de HQs para as escolas, vêm aumentando seu investimento em quadrinhos como nunca antes na história do país, com resultados animadores. O principal atualmente, a meu ver, é estabelecer um diálogo cada vez mais direto e variado entre o Estado, o quadrinista, os empresários e o consumidor. Falta entre eles, ainda, a figura do fã, que cria, financia e divulga artistas e quadrinistas, por admirar e acreditar nesse trabalho e não somente utilizar as HQs para vender produtos.

EVENTOS A relação dos quadrinhos com eventos, como exposições e festivais, é bem particular. Isso porque, diferentemente do teatro, do cinema e da dança, os eventos de HQ não apresentam ao público toda a história, mas fragmentos da obra, o que não dá ao visitante a real ideia do que se trata. Eventos

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como o FIQ vêm repensando suas estratégias, visando mais interação com o público, exposições e atividades cada vez mais informativas e de discussão. Ainda assim, é inegável a importância de encontros e festivais nos moldes já existentes e a importância do FIQ para o movimento em BH. É um espaço ideal para o desenvolvimento da economia criativa, complementar à escola, já que possibilita aos iniciantes visibilidade e, ao mesmo tempo, contato com o público e os profissionais da área, saindo do isolamento cada vez mais comum de todos. Vejo os eventos divididos em dois tipos ou aspectos principais que se complementam: 1 - conhecer outros mercados e autores de outros países; 2 - discutir o desenvolvimento do mercado produtor e os rumos da HQ na cidade. O FIQ tem buscado atender aos dois aspectos, mas hoje falta aos profissionais de quadrinhos de BH, tanto na economia quanto no mercado criativo, representado pelo universo dos quadrinhos na cidade, a capacidade de organização para conduzir a discussão em direção a melhores resultados, potencializando eventos como o FIQ e criando, coletivamente, outros.

A LEI DE STURGEON E A TEORIA DA CAUDA LONGA Duas outras noções, desde que as olhemos de forma crítica, são importantes para nós, pois estão relacionadas à sinergia economia criativa/mercado criativo e ao perfil do consumidor atualmente: são a “Lei de Sturgeon” e a “Teoria da Cauda Longa”. Theodore Sturgeon é um escritor de ficção científica que teorizou que 90% da produção, numa determinada área (no caso os quadrinhos), tende a ser medíocre e apenas 10% é realmente inovador e criativo. Mas, para Sturgeon, para existir esses 10% são necessários os outros 90%. A quantidade faz a qualidade. Se pensarmos nessa regra aplicada ao modelo da economia criativa, o que teremos é mais uma pulverização dessas “qualidades”, ou seja, as obras (HQ, filme animação, jogo, peça, propaganda etc.) podem ter aspectos inovadores misturados aos mais pop e até publicitários ou ainda serem amadores e ineficazes. Nesse cenário, o “bom” e o “ruim” estão misturados e não há uma hierarquia tão clara. Outro fator a levar em conta é que nem sempre qualidade se traduz em vendagem. Raramente o trabalho mais interessante e inovador é o que tem mais aceitação do público. Quando isso acontece, geralmente estamos diante do gênio. Nas HQs, Henfil, Hugo Pratt e Moebius são alguns dos exemplos dessa mistura de arte e entretenimento, pop e erudito, experimental e sucesso de vendas. Esses gênios não precisam de um mercado estruturado para existir, mas são um indicativo de que existe público, desde que possamos falar aos seus anseios e mazelas. Creio, ainda, que nesses 90% de supostos medíocres existe uma gradação e que além desses 10% geniais é possível criar equipes e parcerias, com excelentes resultados, utilizando boa parte desses 90%. É dessas combinações que surge a indústria das HQs e não apenas desses 10%, que são, no entanto, essenciais para oxigenar tanto a indústria quanto a linguagem. São eles os criadores, na maioria das vezes, de trabalhos realmente relevantes do ponto de vista artístico. Mas as HQs não são apenas “obras de arte”, são também entretenimento, catarse, educação, propaganda e produto cultural. Assim, é muito mais uma questão de quanto dinheiro existe para investir do que se o trabalho é genial.

POUCO DE MUITOS Outra teoria é a da “Cauda Longa”, cunhada por Chris Anderson, editor da revista Wired, em seu livro The Long Tail. Analisando as mudanças do mercado cultural e de produtos em geral, Anderson constata que os fenômenos de vendas, como o LP Trilher, de Michael Jackson, seriam

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cada vez mais raros por causa da segmentação de público surgida ao longo da década de 90, no primeiro mundo, devido à internet, no que se convencionou chamar de “tribos”. Esse processo se iniciara já nos anos 50/60, com os Beatniks e os Hippies, mas era ainda relativamente underground. Com a internet e os computadores, esse processo se modificou e expandiu. Artistas de todas as áreas (desde que possam pagar por um computador e um site na internet) tiveram, de repente, acesso muito mais democrático ao potencial consumidor, enquanto os custos de produção caíam e uma gama crescente de recursos artísticos se pôs à disposição por um preço cada vez mais em conta e um potencial cada vez maior. O barateamento de todo o processo produtivo e de distribuição criou um excesso de oferta e grande parte dela, grátis! Essa variedade de ofertas e recursos para a criação gerou uma variação dos gostos, com o surgimento de pequenos grupos de “iniciados” em determinada área cultural. Para Anderson, com essas mudanças, a venda dos produtos passa a ser lenta e gradual; há o crescimento do estoque (virtual) e da variedade de temas enquanto se reduz a tiragem. No caso específico das HQs, tiragens menores e variedade de temas e públicos-alvo são algumas das mudanças. Assim, houve um enfraquecimento das HQs populares, como mangás e super-heróis, que também embarcaram nessa “tribalização”, transformando seus personagens em verdadeiras franquias. A Marvel tornouse uma transnacional que atuava em áreas tão variadas quanto roupas, jogos, souvenirs, bonecos articulados, desenhos animados, filmes etc. Mas, mesmo nos Estados Unidos, hoje, o mercado de HQ é quase marginal, sendo sustentado por grandes transnacionais que ganham com filmes, séries, brinquedos etc. Por outro lado, há também novos problemas. Faz diferença se um autor vende mil ou cem exemplares de uma HQ. Do ponto de vista do editor também, se ele tem que fazer tiragens mínimas (tanto que muitos fazem parcerias com os autores, a exemplo de editoras americanas, como a Dark Horse). Isso encarece o produto, tornando-o acessível apenas para uma elite econômica e não para a sua “tribo”. Talvez seja o caso de o autor ter mais de um trabalho e viver da renda de álbuns já publicados (direitos autorais) ou de produtos derivados (merchandising). Mas isso esbarra, novamente, na questão da quantidade de dinheiro circulante num determinado contexto e não da qualidade ou acessibilidade do produto para o leitor. O editor pode ter que sustentar HQs que dão prejuízo ou variar de autor de revista para revista, experimentando e simplesmente não gerando renda suficiente para sustentar todos eles ou arcando com custos elevados demais. Nesse caso, a possível solução é uma revista com vários títulos e não várias revistas ou, o que se torna cada vez mais comum, usar a internet, mas o mesmo vale para patrocínio em sites. Se a concorrência é grande, esse excesso de oferta para o possível investidor acaba sendo determinante para desvalorizar esse tipo de trabalho, o que pode garantir que todos sejam pagos, mas que ninguém consiga se sustentar apenas disso.

PANACEIA UNIVERSAL? A internet pode ser a solução, mas o consumidor tem que ter a consciência de que só consumindo pela internet, sem pagar, não ajudará a formar um mercado. O que nem sempre se percebe é que o público também pode ter sua censura, baseada nos seus gostos e nas modas, e nada garante que essa autonomia criativa seja sinônimo de sucesso, qualidade ou mesmo de real autonomia. A internet vem transformando de tal forma o mercado capitalista que suas consequências ainda estão em curso, e não podemos ter certeza do que nos espera num futuro mais ou menos próximo. E não é porque a internet se configura como um novo e promissor mercado, resolvendo questões fundamentais como custo de produção, divulgação e distribuição que devemos abandonar outros

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canais. Alguém que queira trabalhar para a Marvel ou a DC, por exemplo, não será tão beneficiado por ela quanto outro que vê na internet seu veículo primordial de publicação e que deseja um caminho mais autoral.

DOIS MODELOS DE INSERÇÃO NO MERCADO Para concluir (sem, no entanto, concluir), quero analisar, brevemente, dois modelos que vêm se mostrando eficazes (ainda que embrionários) na inserção no mercado. O primeiro é o caso dos irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon, cujos passos foram seguidos por Rafael Grampá. Em ambos os casos, os autores financiaram suas próprias publicações e foram pessoalmente aos Estados Unidos tentar vender suas criações. Esse é um antecedente importante, mas também específico. O talento dos três artistas é inegável, assim como o fato de a influência do trabalho deles estar dentro dos estilos populares por lá. Mesmo assim, trata-se de trabalhos autorais e criativos. Outro caso, esse emblemático, do movimento de quadrinhos de Belo Horizonte é o de Eduardo Damasceno e Luis Felipe Garrocho. Ambos estudaram em escolas de quadrinhos da cidade - Felipe no Estúdio HQ e Eduardo na Casa dos Quadrinhos. Damasceno deu, inclusive, uma declaração, dizendo que, antes de passar pela escola, gostava apenas de mangá, desconhecendo grande parte dos títulos e autores da HQ mundial. Enquanto Felipe passeava por outras praias, como música, por exemplo, aprimorando suas já consideráveis habilidades narrativas, Eduardo trabalhou com publicidade e animação, iniciando sua carreira profissional ainda enquanto cursava a Casa, com contatos conseguidos por meio dela, em parceria com professores. A ideia de criar o site Quadrinhos Rasos veio como um desafio para publicar cooperativamente uma HQ por dia, sempre baseada numa música, sem, contudo, ser literal na adaptação. Mais que uma ideia genial, a forma como essas versões foram feitas é o que garantiu o sucesso de público. A partir dessa divulgação, os dois propuseram no site Catarse, a HQ Achados e Perdidos, que é, ao mesmo tempo, popular e experimental, já que vem com trilha sonora (criada pelo terceiro autor da HQ, Bruno Ito), mas usa as convenções tradicionais, com o perfil de personagens e de história bem ao gosto popular. Os dois autores não só conseguiram os recursos para financiar o projeto (40 mil reais!), por meio de doações dos fãs, como ultrapassaram essa marca, o que possibilitou que editassem ainda outra publicação de autoria de Felipe, suas hilárias tiras bufas. O sucesso foi enorme, com a indicação para prêmios importantes na área e a republicação de Achados e Perdidos por uma editora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Trabalhar de graça, de modo cooperativo, inclusive dividindo a autoria, é uma característica da economia criativa e do que convencionei chamar, neste texto, de movimento. Os dois autores foram atraídos até o universo das HQs pelo mercado internacional, iniciaram sua formação mais ampla com as escolas, aperfeiçoando e aprendendo com o mercado e outras mídias. Dai usaram a internet para divulgar seu trabalho autoral e passaram a uma publicação igualmente autoral, popular e experimental que mereceu indicação ao prêmio HQMIX. Tudo isso sem usar as editoras ou leis de incentivo. Enfim receberam convite de uma editora nacional para relançar o trabalho. Não creio que a trajetória de sucesso dessa dupla possa ser atribuída a qualquer desses elementos separadamente. Resta saber se é um fenômeno isolado ou se vai se reproduzir em escala. O possível entrave, como sempre, é a quantidade de dinheiro circulante. Eles podem ter um público cativo, mas este não pode ser responsável por sustentar todo um mercado.

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Assim, acredito que tudo que enumerei nos demais tópicos acima parte dos possíveis caminhos de publicação e profissionalização no país. Creio que um movimento é uma estrutura coletiva sem uma “cabeça”, mas guiada por ideias, fórmulas e, principalmente, o desejo comum de viver daquilo que ama: as histórias em quadrinhos.

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REFERÊNCIAS AVELAR, Rômulo. O Avesso da cena - Notas sobre Produção e Gestão Cultural. Belo Horizonte: DUO Editorial, 2008. BARROSO, Fabiano. História dos Quadrinhos em Belo Horizonte. Guia Ilustrado de Graffiti e Quadrinhos, Belo Horizonte, 2004. BLISSET, Luther. Guerrilha Psíquica - São Paulo: Conrad, 2001. Catarse. Disponível em: <Catarse.me>. Acesso em: 10 ago. 2012. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1972. ______. Rigor e delírio em Corto Maltese. Revista Oitenta, Porto Alegre, n. 9, 1984. HQ não é só para seu namorado. Lady’s Comics. Disponível em: <LadysComics.com.br>. Acesso em: 15 ago. 2012. PRATT, Hugo. A aventura das Revoluções. Revista Oitenta, Porto Alegre, n. 9, 1984. Quadrinhos feitos a partir de músicas: por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho. Quadrinhos Rasos. Disponível em: <Quadrinhosrasos.com>. Acesso em: 10 ago. 2012.

Fica aqui o meu agradecimento ao Núcleo de Quadrinhos da UEMG pelo convite e a oportunidade para escrever sobre a cena e o mercado locais das histórias em quadrinhos, os quais vieram em boa hora, até porque o debate sobre esse assunto deve ser permanente.

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O PAPEL DO ACADÊMICO NOS QUADRINHOS EM MINAS GERAIS: BREVE HISTÓRIA DO NÚCLEO DE QUADRINHOS DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFMG Daniel Leal Werneck Resumo A relação entre os quadrinhos e a academia já foi conturbada e mutuamente exclusiva. No entanto, eventos recentes no cenário nacional apontam para o início de uma nova era, na qual acadêmicos de quadrinhos podem pesquisar e debater seus temas sem precisar se justificar o tempo todo, recorrendo a citações de Umberto Eco e Carlos Drummond de Andrade para serem aceitos pelas altas rodas da educação e da ciência. A criação das Jornadas de Quadrinhos da USP, a premiação de trabalhos acadêmicos nos principais prêmios de quadrinhos, o aumento significativo da produção acadêmica sobre esse tema, a criação de novos núcleos de pesquisa e ensino de quadrinhos com conexões acadêmicas - tudo isso aponta para um novo momento de desenvolvimento teórico e cultural da discussão e produção dos quadrinhos, tanto dentro quanto fora da academia. Neste artigo, tentamos demonstrar algumas possibilidades de atuação para os pesquisadores científicos que queiram trabalhar na área de quadrinhos, usando exemplos reais, mais especificamente da experiência do Núcleo de Pesquisa em Narrativas Gráficas da Escola de Belas Artes da UFMG, criado no início de 2011 e que, apesar da pouca idade, já atuou em diversas frentes, causando um impacto inicial no cenário dos quadrinhos no Brasil que deve continuar no futuro próximo, na medida em que as primeira ações já ganham desdobramentos. Palavras-chave: Academia das HQS; mercado das HQs; EBA-UFMG; HQs na academia.

Abstract The relationship between the comic and the gym was already troubled and mutually exclusive. However, recent events on the national scene point to the beginning of a new era in which comics scholars can research and discuss their issues without having to justify all the time, using quotes from Umberto Eco and Carlos Drummond de Andrade to be accepted by high wheels of education and science. The creation of the Days of Comic USP, the award of academic papers on major comics awards, the significant increase in scholarship on this issue, the creation of new research centers and teaching comics with academic connections - all point to a new moment of theoretical development and cultural discussion and production of comics, both inside and outside academia. In this article, we attempt to demonstrate some possibilities of action for scientific researchers who want to work in the field of comics, using real examples, specifically the experience of the Center for Research in Graphic Narratives of Fine Arts School of UFMG, created in early 2011 and that despite her young age, she has acted on several fronts, causing an initial impact on the comics scene in Brazil that should continue in the near future, since the first actions already earn developments. Keywords: Academy of HQS; market of comics; EBA-UFMG; comics in academia.

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INTRODUÇÃO Atendendo a inúmeras demandas internas e externas, o Núcleo de Pesquisa em Narrativas Gráficas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi fundado oficialmente em 20 julho de 2011, mas sua atuação começou ainda no início daquele ano, com o convite para atuar junto à organização do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) 2011. Como esse trabalho durou o ano quase inteiro, ainda não foi possível estabelecer a contento outras atividades de extensão, pesquisa e ensino. Mesmo assim, a quantidade e, principalmente, a variedade de atividades promovidas pelo núcleo oferecem um panorama bastante diverso das possíveis formas de atuação que os acadêmicos e pesquisadores da área de quadrinhos podem exercer na sociedade.

PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO EM FORMA DE QUADRINHOS Em 9 de fevereiro de 2011, foi feito um convite ao Núcleo pela professora Doutora Glaura Goulart Silva, do Departamento de Química do Instituto de Ciências Exatas (ICEx) da UFMG. Tratava-se de uma pesquisa de licenciatura em química, na qual seria produzido um material didático sobre o tema “Nanotecnologia”, com uma bolsa de iniciação científica destinada especificamente à criação de uma história em quadrinhos sobre o tema. As pesquisadoras decidiram usar as histórias em quadrinhos por serem um meio de comunicação que facilita a explicação de temas complexos e abstratos, misturando texto e imagem de maneira bastante didática. Cabe salientar que foram as próprias pesquisadoras da Escola de Química quem tiveram essa ideia e procuraram o Núcleo, sinalizando a abertura de espaço para esse tipo de trabalho e comprovando o interesse de outros campos da ciência e da academia para a utilização dos quadrinhos como linguagem didática. É essencial que essa frente de atuação seja explorada pelos acadêmicos que se interessam por quadrinhos em todo o Brasil, pois a utilização de quadrinhos em sala de aula precisa deixar de ser tabu ou um projeto quixotesco e passar a ser realidade. Um sinal de que estamos na época certa para discutir e agir nesse sentido é a adoção do Governo Federal de livros em quadrinhos para o ensino da literatura. Por que não expandir a área de cobertura dos quadrinhos educativos para outros temas de sala de aula como física, matemática, história ou o que quer que seja? Isso pode ser feito não apenas com a leitura de obras específicas sobre esses temas, mas, inversamente, na produção de quadrinhos pelos próprios alunos, como ferramenta de pesquisa e fixação de conteúdo. Os próprios professores também podem ser educados a criar seus próprios quadrinhos. Podemos explorar os quadrinhos como linguagem e forma de comunicação de ideias e conceitos e, a partir daí, seu uso ganharia formatos variados de acordo com a necessidade de cada um.

CURADORIA DE EVENTOS - O EXEMPLO DO FIQ 2011 A maior e mais notória atuação do Núcleo até hoje foi a curadoria e coorganização do 7° Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte. Foram diversas atividades entre definição de exposições, design de ambientes, mediação de debates e palestras, coordenação de atividades artísticas ao vivo, criação e manutenção de um site com entrevistas, notícias e informações sobre o evento, entre outras. O FIQ tem uma longa história, e a primeira atuação do Núcleo nesse evento buscava justamente unir o aprendizado das edições anteriores a novas ideias que pudessem levá-lo adiante, permitindo o diálogo entre inovação e tradição. O evento começou com a Bienal de Quadrinhos do Rio de Janeiro, em 1991, que mais tarde mudou de lugar. A última edição da Bienal foi realizada em Belo

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Horizonte no ano de 1997. A partir de 1999, ela se reinventa com o nome de Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte ou FIQ. A organização do evento ficava a cargo da Editora Casa XXI, do Rio de Janeiro, criadora da Bienal, e o patrocínio era feito por meio da Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, mas também com o apoio institucional da própria prefeitura por intermédio de sua Fundação Municipal de Cultura. Entre 1999 e 2009, as seis edições do FIQ homenagearam quadrinistas como Angeli, Mozart Couto, Lourenço Mutarelli e Júlio Shimamoto e trouxeram ao país diversos convidados internacionais dos mais variados perfis artísticos e culturais. No entanto, após a edição de 2009, a Casa XXI decidiu criar seu próprio evento de quadrinhos, a Rio Comicon, que se realizaria anualmente na capital carioca. Assim, decidiram abrir mão da organização do FIQ, pois seria inviável cuidar de dois eventos simultaneamente, especialmente porque a Rio Comicon é um evento anual e não apenas bienal. Houve um período de incerteza em Belo Horizonte, e muitos acreditavam que a prefeitura não teria interesse em manter um festival de quadrinhos em sua lista de prioridades culturais. No entanto, para espanto de alguns, a Fundação Municipal de Cultura decidiu tomar para si a produção do evento, mantendo seu cronograma normal e anunciando a edição de 2011. A produção executiva ficaria a cargo da própria fundação e não mais de uma editora especializada em quadrinhos. Foi nesse período de reestruturação administrativa que o núcleo foi contatado e convidado para fazer a curadoria e auxiliar na coordenação geral do evento. Em dezenas de reuniões ao longo de 2011 foram discutidos temas dos mais variados, como listas de artistas convidados, temas das exposições, fluxo de visitantes na planta do evento, perfil dos expositores comerciais, temas das oficinas etc. Grande parte da responsabilidade dos curadores do evento era manter as propostas dos eventos anteriores que ainda poderiam funcionar e apresentar novas maneiras de explorar o festival, dando tanto aos convidados quanto aos visitantes uma gama mais abrangente de possibilidades e oportunidades. Um dos novos projetos foi a criação de uma sessão diária de OuBaPo, mostrando tanto ao público quanto aos artistas uma maneira diferente e intrigante de produzir histórias em quadrinhos. Em um telão, a plateia via o que cada artista desenhava, e as regras do jogo iam mudando a cada novo quadrinho. Isso permitiu que os artistas convidados fizessem uma atividade diferente e interessante, conhecendo melhor os outros convidados que participavam da mesma atividade. Também deu ao público a oportunidade rara de ver os quadrinistas em ação, ao vivo. Outro novo projeto que deu retorno positivo foi a criação de mesas individuais para artistas independentes. Tradicionalmente, sempre houve no FIQ stands de quadrinistas independentes, que se reuniam em grupos grandes para pagar um stand. A partir de 2011, foram criadas as mesas individuais para que grupos pequenos ou até mesmo artistas individuais pudessem expor seus trabalhos diretamente ao público. A participação do público também foi feita por meio de três murais, desenhados na parte de fora de uma das exposições do evento. Inicialmente, os artistas expositores desenhavam nos painéis, e as pessoas que chegavam depois acrescentavam seus próprios desenhos. Antes do final do evento, os três murais já estavam cobertos de desenhos e assinaturas feitas por visitantes, criando um interessante registro visual das 140 mil visitas que o FIQ recebeu. A área de stands manteve sua verve original, abrigando editoras, lojas e quadrinistas independentes. No entanto, houve grande aumento da oferta de espaço. Por isso, muitos quadrinistas e grupos de artistas que nunca tinham ido ao evento apresentaram pela primeira vez seus trabalhos no Festival ao lado de outros expositores tradicionais. Esse aumento na oferta de espaços foi uma aposta da organização do Festival, que sentia no cenário brasileiro de quadrinhos uma efervescência acima do normal. Isso foi confirmado com o enorme número de artistas e títulos apresentados, produzidos por artistas de diversos estados do Brasil, representando todas as regiões do país e quadrinhos de todos os formatos, gêneros e públicos.

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FIGURA 1 - FIQ 2011, novembro/2011, Serraria Souza Pinto. Fonte: Site Oficial do FIQ.1

PRODUÇÃO ARTÍSTICA E EDITORIAL: O EXEMPLO DO PANDEMÔNIO A atuação do acadêmico de quadrinhos não precisa se restringir ao estudo de obras finalizadas. O principal objetivo do Núcleo da Escola de Belas Artes da UFMG é levar um olhar científico sobre a produção de quadrinhos, área ainda pouco explorada em comparação à literatura comparada, leituras semióticas, registros históricos e análise de mercados. Outra linha de atuação do Núcleo foi a produção e a publicação direta de quadrinhos autorais. O grupo Pandemônio nasceu como uma associação de sete artistas, todos residentes em Belo Horizonte, para dividir um stand no FIQ. O plano era produzir alguns livros e revistas ao longo de 2011 e lançá-los em novembro, durante o festival. Foram ao todo oito títulos2 autopublicados de maneira independente pelos sete artistas, que fizeram tudo por conta própria: roteiro, desenhos, editoração, letreiramento, montagem, fechamento de arquivo e acompanhamento de gráfica. Esse tipo de trabalho merece apoio acadêmico no sentido de instrumentalizar os artistas independentes a produzirem seus próprios livros, auxiliando-os em todas as etapas do processo não apenas na escrita e no desenho, que já são cobertos por muitos livros e cursos da área, mas especialmente nas etapas que não são abordadas com tanta frequência, como acompanhamento de gráfica e design de maneira geral3. 1 Disponível em: <fiqbh.com.br>. 2 Achados e perdidos, de Luís Felipe Garrocho e Eduardo Damasceno; Mix tape, de Lu Cafaggi; Pirilampifania, de Daniel Pinheiro Lima; Duotone e Valente para sempre, de Vitor Cafaggi; Bufas danadas, de Luis Felipe Garrocho, Ryotiras #3, de Ricardo Tokumoto (Ryot) e Ovelha negra; de Daniel Werneck e Ricardo Tokumoto. Nesse stand também foi lançado o livro Quadrinhos A2 de Paulo Crumbim e Cris Eiko, que posteriormente se tornaram membros oficiais do Pandemônio. 3 Cf. Seção sobre cursos mais adiante, neste mesmo texto.

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Para a produção do livro Ovelha negra, foi feito um trabalho de pesquisa para situar a história dentro de um contexto específico. O livro é um falso documentário sobre uma revista em quadrinhos que teria existido em Belo Horizonte do final dos anos 1950 até o início dos anos 1970 - uma espécie de MAD da capital mineira, mas que enfrentou uma série de problemas até o ponto em que precisou ser fechada. Para contar essa história da maneira mais realista possível, foram criados 12 personagens, que seriam os artistas da tal revista, e suas biografias incluíam, claro, suas produções de quadrinhos. Cada um desses personagens teria criado um “meta-personagem”, e os quadrinhos deles foram desenvolvidos pela dupla de artistas por trás do livro, usando uma ampla variedade de técnicas artísticas e narrativas para simular o visual da revista fictícia. O trabalho de pesquisa começou na história dos quadrinhos daquele período, especialmente a MAD, mas também na de outros artistas importantes dos anos 1940-1960. Como o livro era uma homenagem aos artistas da época, foi produzido o máximo de trabalho possível usando o mesmo material e as técnicas disponíveis na época ou o mais próximo deles. Todas as páginas foram criadas em papel, usando lápis (colorido ou preto, dependendo do caso), penas de nanquim, pincel, aquarela etc. As retículas, infelizmente, tiveram que ser feitas diretamente no computador, assim como o letreiramento - foram usadas várias fontes digitais diferentes para que cada quadrinho tivesse uma caligrafia própria e diversa dos demais. O livro foi todo escrito como se fosse um texto acadêmico, e todas as páginas de quadrinhos receberam um comentário no rodapé para enfatizar ou explicar alguns elementos das histórias que poderiam passar despercebidos pelo público leitor de hoje em dia, especialmente os mais jovens.

FIGURA 2 - Stand do Pandemônio no FIQ 2011, novembro/2011, Serraria Souza Pinto. Fonte: Site Oficial do FIQ.4

PUBLICAÇÃO, EDIÇÃO E IMPRESSÃO Além dos desenhos e pinturas propriamente ditos, é consenso no Núcleo que a produção de quadrinhos não se restringe apenas à prancheta ou ao computador, mas segue até o final da cadeia 4 Disponível em: <fiqbh.com.br>.

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produtiva: a publicação em forma impressa, digital, ou outra imaginada (impressa em camisetas, pintada em paredes etc.). A impressão de Ovelha Negra (2011) foi feita na gráfica Formato, em Belo Horizonte, com arquivos digitais gerados pelo próprio Núcleo e com acompanhamento de seus integrantes, especialmente na impressão da capa colorida, com verificação do balanceamento das cores e do posicionamento das retículas e letras. Essa fase é extremamente importante para a produção de qualquer quadrinho impresso; o objetivo é possibilitar que os artistas também façam essa etapa do processo com cursos e tutoriais em vídeos. O mesmo vale para a publicação digital, por meio da capacitação de autores independentes para que possam criar e manter seus próprios websites e blogs especializados em quadrinhos, vendas em lojas virtuais etc. O acadêmico pode ainda atuar como editor, assim como o professor Matt Madden, da Universidade de Yale, que edita anualmente a coletânea Best American Comics.

FIGURA 3: Ovelha Negra – digital - Belo Horizonte, 2011. Fonte: Daniel Leal Werneck

TRADUÇÃO DE OBRAS EM QUADRINHOS OU TEMAS RELACIONADOS Um dos inúmeros frutos que o FIQ produziu será o lançamento no mercado brasileiro, em 2012, de um livro produzido por um dos artistas internacionais que esteve no festival. Uma editora brasileira está preparando esse livro para impressão e convidou o Núcleo para colaborar nesse

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processo, garantindo a qualidade editorial da publicação. A tradução do título ficará a cargo dos membros do Núcleo, apontando para mais um caminho possível de atuação acadêmica no mundo dos quadrinhos: a tradução e adaptação textual de obras de língua estrangeira, tanto de autores internacionais publicadas no Brasil quanto de autores nacionais que estejam sendo publicadas no exterior. Tanto professores quantos alunos, de pós-graduação e graduação, poderiam se envolver em projetos semelhantes – como inclusive já aconteceu quando a turma de alunos da disciplina A história do quadrinho, da charge e do cartum na Alemanha, ministrada pelo prof. Dr. Georg Wink, no primeiro semestre de 2009, na pós-graduação da Faculdade de Letras da UFMG, traduziu o livro Panorama dos Quadrinhos Contemporâneos na Alemanha3. É interessante para as editoras a presença de um pesquisador acadêmico a cargo de tradução, pois, por ser especialista em quadrinhos, pode perceber nuances no trabalho que um tradutor menos especializado poderia perder. Seria o caso, por exemplo, de quadrinhos que já foram publicados no Brasil e cuja nova tradução teria que considerar os erros e acertos da anterior. Poderia ser também o caso de mensurar até que ponto certos nomes de personagens ou termos de sua fala precisariam ser traduzidos, dependendo do que leitores e conhecedores da história já venham falando no Brasil – caso, por exemplo, de quadrinhos adaptados de livros ou filmes que já tenham leitores no país e cuja tradução precisa levar em conta o que a comunidade de fãs daquela história já usa como padrão linguístico. O livro Kill your Boyfriend, de Grant Morrison (1995), por exemplo, é famoso entre os leitores de quadrinhos brasileiros por ter sido corrompido por uma tradução preguiçosa e burocrática, que não faz jus ao texto original. O universo ficcional de Sandman, criado por Neil Gaiman (1994), também já sofreu nas mãos de tradutores despreparados, que traduziram Worlds’ End para Taverna do Fim do Mundo, no singular, quando o original é no plural, indicando a natureza onírica e metafísica daquele universo ficcional. Esse erro foi cometido na tradução original da Editora Globo e corrigido pelo editor Sidney Gusman e pelo tradutor Daniel Pellizzari na Editora Conrad e foi novamente repetido na edição da Panini. Outro problema (não necessariamente um erro) de tradução que provocou polêmica até fora dos círculos de leitores de quadrinhos, foi a tradução de um gibi do Batman, publicada no dia 13 de fevereiro de 2011, no qual o personagem utiliza uma expressão típica de alguns articulistas da revista Veja, um neologismo com grave carga ideológica que foi incutida em um personagem que, até onde se sabe, nunca leu a Veja. O termo teria sido criado pelo colunista Reinaldo Azevedo, misturando as palavras “petista” e “metralha”, em referência aos Irmãos Metralha das histórias do Tio Patinhas, associando assim os filiados ao PT a uma gangue de ladrões. O termo original usado na história do Batman era apenas “nasty”, um adjetivo com uma gama diversa de significados como “desagradável”, “sórdido” ou “antipático” - mas nenhuma delas faz referência a qualquer tipo de associação política ou a crimes de corrupção e colarinho branco. Faltou ao tradutor de Batman a neutralidade e a objetividade de ponto de vista de um pesquisador científico. Também é da alçada do pesquisador científico de quadrinhos dominar e definir o vocabulário técnico do meio, evitando traduções estranhas, como o neológico verbo “lapisar”, que aparece na página 190 de Desenhando Quadrinhos4, de Scott McCloud. É normal usar verbos como “penciling” e “inking” em inglês, mas no Brasil ninguém usa o termo “lapisar” e nem mesmo “entintar” no campo dos quadrinhos. Faltou uma pesquisa com profissionais da área para criar uma tradução mais realista e adaptada à realidade dos leitores. Em 2012, será publicada a primeira tradução feita pelo Núcleo de um livro estrangeiro produzido por um quadrinista convidado do FIQ 2011. 3 Ver WINK, 2009. 4 Ver McCLOUD, 2007.

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O ENSINO DOS QUADRINHOS Como é de se esperar, o pesquisador acadêmico de quadrinhos também pode atuar lecionando sobre o tema, tanto sobre a parte teórica (história dos quadrinhos, análise estética de narrativas visuais etc.) quanto a prática (produção de roteiros, páginas ou histórias completas, exercícios de produção criativa etc.). Um bom exemplo desse caso é o quadrinista e acadêmico americano Matt Madden. Autor de diversos minicomics e graphic novels, é também professor da School of Visual Arts e da Yale University em Nova York. Sua terceira frente de atuação é a publicação de livros sobre a prática dos quadrinhos: o primeiro, escrito por Abel, em parceria com sua esposa Jessica Abel, é Writing Pictures, Drawing Words5, lançado em 2006, um curso prático em 15 capítulos com teoria e exercícios, que pode ser usado para aprendizado próprio do leitor ou como material didático em sala de aula. O segundo livro, 99 Ways to Tell a Story, publicado em 2005, apresenta um exercício estilístico por meio do qual a mesma história é contada 99 vezes, demonstrando ao leitor a ampla gama de possibilidades narrativas que uma história em quadrinhos pode ter. Madden atua nessas três frentes de maneira complementar, aproveitando as experiências adquiridas em algumas delas nos projetos e resultados das outras, interconectando as práticas artísticas, didáticas e teóricas.

CRITICANDO A ARTE DOS QUADRINHOS It was only when someone finally conveyed these internet postings to me... that I began to understand the invaluable asset that Jess represented... I realised that if we had [him] tracking down all of the references for the readers, then we could be as obscure and far-reaching as we wanted. Alan Moore

Jess Nevins é um escritor e bibliotecário americano que ganhou notoriedade na comunidade de pesquisadores de quadrinhos a partir de 2003 quando publicou a primeira de uma série de compilações, extremamente concisas e bem pesquisadas, englobando todas as referências culturais possíveis de serem lidas no primeiro volume da série The League of Extraordinary Gentlemen (2003)6. A série foi escrita e concebida por Alan Moore, um dos escritores mais brilhantes e complexos da história dos quadrinhos. Graças aos guias publicados por Nevins, os leitores da série podem compreender com exatidão cada pequeno detalhe da narrativa de Moore, incluindo os significados dos nomes dos personagens, alusões a outras obras literárias citadas pelos personagens, pequenos elementos presentes nos cenários dos quadrinhos etc. Na introdução escrita por Moore para uma edição impressa do guia de Nevins, Moore atesta a importância da pesquisa do bibliotecário, ajudando assim a compreender um dos diversos possíveis papéis que um acadêmico de quadrinhos pode ter: a de crítico literário especialista na linguagem dos quadrinhos, que possa traduzir ao público todas as idiossincrasias do trabalho de um autor, permitindo que o mesmo se deixe levar pela inspiração sem a necessidade de explicar sua própria narrativa, temendo uma alienação com o mercado leitor e o público médio. Isso, em teoria, ajudaria a linguagem dos quadrinhos a se desenvolver para patamares mais elevados, deixando a análise e a avaliação das obras para especialistas e críticos, como já acontece há muito tempo em outros campos da arte narrativa, como o teatro e a literatura de prosa. O acadêmico de quadrinhos seria, assim, um crítico cultural capaz de explicar em palavras todo o poder que a linguagem dos quadrinhos pode ter e eleger os melhores e mais interessantes artistas, dignos de nota dentro do cenário dos quadrinhos, trazendo a público trabalhos desconhecidos que 5 Ver ABEL; MADDEN (2008). 6 Ver MOORE; NEILL (2003).

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merecem leitura mais atenta e confirmando, com embasamento teórico, a eventual fama que algum grande artista possa vir a ter.

ATUAÇÃO TRADICIONAL Além de todas essas áreas de atuação possíveis, não se pode esquecer, obviamente, da atuação acadêmica mais tradicional, como a publicação de artigos, livros, pesquisas, as palestras etc. Vivemos um momento muito rico para esse tipo de atividade no Brasil hoje, com a criação das Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da USP, que atraíram cerca de trezentos resumos oriundos de todo o Brasil. Além disso, o HQ Mix, maior prêmio de quadrinhos do Brasil, tem hoje prêmios reservados para os melhores trabalhos acadêmicos sobre o tema. Outros eventos do mesmo tipo começam a surgir por todo o Brasil, e a tendência atual é que exista uma rica programação acadêmica volta exclusivamente para os quadrinhos, com muitos espaços para discussão e debate sobre o tema. Vale registrar que ainda falta a criação de uma revista acadêmica exclusivamente sobre quadrinhos, como já existe em outros países, e que essa ideia é um dos diversos projetos do Núcleo.

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REFERÊNCIAS ABEL, Jessica; MADDEN, Matt. Drawing words, writing pictures: making comics: Manga, Graphic Novels, and Beyond. New York: First Second, 2008. GAIMAN, Neil. Worlds’End. Coleção DC Comics series The Sandman, 1994. MADDEN, Matt. 99 Ways to Tell a Story. New York: Chamberlian Bros, 2005. McCLOUD, Scott. “Desenhando Quadrinhos”. Editora M. Books, 2007. MOORE, Alan; O’NEILL, Kevin. The League of Extraordinary Gentlemen: black dossier. America’s Best Comics, 2003. MORRISON, Grant; BOND, Philip; D’ISRAELI. Kill Your Boyfriend. DC Comics Vertigo, 1995. TOKUMOTO, Ricardo. Nanotecnologia e Nanociência: um Mundo Novo e Diferente. Belo Horizonte, 2011. Digital. WINK, Georg (Org.). Panorama dos quadrinhos contemporâneos na Alemanha. Belo Horizonte: Emcomum Estúdio Livre, 2009.

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VILÕES E HERÓIS: O ESTUDO DOS QUADRINHOS COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL Rita Aparecida da Conceição Ribeiro Resumo O artigo apresenta uma visão acerca das particularidades dos quadrinhos, que criam laços afetivos com os leitores, migram para o cinema, a televisão e têm uma gama de produtos a eles associados, transformando-se numa indústria altamente lucrativa. Discorre sobre os processos de identificação do leitor e a necessidade do elemento fantástico presente nas narrativas e na constituição de heróis e vilões das histórias. Palavras-chave: histórias em quadrinhos; processos de identificação; heróis e vilões.

Abstract The article presents an overview about the particularities of the comics that create emotional bonds with readers migrate to the film, television and have a range of products associated with them, becoming a highly profitable industry. Discusses the process of identifying the player and need the fantastic element present in the narratives and the collection of heroes and villains of the stories. Keywords: comics; identification processes; heroes and villains.

NO INÍCIO... As ligações entre quadrinhos e academia não poderiam ser caracterizadas como tranquilas. As HQs praticamente ganharam status de assunto acadêmico apenas nos anos 70 do século passado. Ainda assim, com uma visão nada positiva. A primeira obra de impacto, Para Ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo (1971), de Ariel Dorfman e Armand Mattelart faz uma leitura marxista das obras da Disney, atribuindo-lhes uma ideologia colonialista e imperialista. Na visão de Dorfman e Mattelart, ao se dirigir ao público infantil, os enredos do universo Disney seriam construídos visando educar as crianças de acordo com os valores da sociedade burguesa e manter as diferenças sociais, numa clara alusão ao modo de vida propagado pelo american way of life. O trabalho dos autores, ainda que uma crítica severa aos quadrinhos, começa a suscitar outras visões acerca do tema, já promovido a objeto de estudo. No Brasil, em 1970, Moacyr Cyrne publica A Explosão Criativa dos Quadrinhos e estuda elementos da estrutura linguística das HQs. No mesmo período, Álvaro Moya organiza a coletânea Shazam! com artigos de diversas abordagens sobre os quadrinhos. No entanto, os quadrinhos seguem como um estudo ainda à margem dos rigores acadêmicos, fato que mudaria radicalmente nos anos 80. Em 1941, Will Eisner criou The Spirit, um quadrinho que não se referenciava no universo infantil.

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Em 1985, publicou o livro Quadrinhos e Arte Sequencial. Nele o autor analisou os aspectos técnicos da estrutura narrativa das HQs, discutindo as relações entre texto escrito e imagem, criação do efeito de passagem do tempo etc. Agora, os quadrinhos começam a ter sua própria estrutura narrativa reconhecida como arte autônoma. Outro criador que percebeu a importância da discussão acerca do universo dos quadrinhos é Scott McCloud, que começou sua carreira nos anos 80 desenhando a série de ficção científica Zot! Posteriormente publicou Desvendando os Quadrinhos, em 1993, Reinventando os Quadrinhos, em 2000 e Desenhando Quadrinhos, em 2006. Atualmente percebemos que, felizmente, os quadrinhos deixaram o fundo das prateleiras e ganharam status de linguagem própria, merecendo estudos, congressos e diversas publicações acerca dessa arte sequencial. A grande revolução ocorrida nos anos 80 com a publicação de uma série de Graphic Novels – a começar por Cavaleiro das Trevas, seguida de outros sucessos como V de Vingança, Watchmen, entre outros, definitivamente estabeleceram os quadrinhos no universo adulto e passaram a influenciar a criação de diversos produtos associados, como filmes, games, roupas e outros artefatos, ganhando o interesse de pesquisadores em todo o mundo.

MAS POR QUE GOSTAMOS DE QUADRINHOS? Ainda que relegados a uma condição minoritária, os quadrinhos oferecem um inestimável portal por meio do qual podemos ver nosso mundo. Hoje a imagem animada – tanto a do cinema como a da TV – constitui parte do leão de tais portais. Os quadrinhos, como outras formas minoritárias, são vitais para diversificar nossa percepção do mundo (McCLOUD, 2005). Morin aponta que a necessidade da indústria cultural divide-se no paradoxo entre a repetição de modelos e a exigência do novo. A possibilidade de identificação é uma necessidade iminente para manutenção e aceitação de seus produtos. O imaginário se estrutura segundo arquétipos: existem figurinos-modelo do espírito humano que ordenam os sonhos e, particularmente, os sonhos racionalizados que são os temas míticos ou romanescos. Regras, convenções e gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às obras, enquanto situações-tipo e personagens-tipo lhes fornecem as estruturas internas. [...] A indústria cultural persegue a demonstração à sua maneira, padronizando os grandes temas romanescos, fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos (MORIN, 2007, p. 26).

No cinema, nos quadrinhos e, posteriormente, na televisão, esses estereótipos são delineados de forma a propiciar a identificação do espectador com os temas e os personagens. Como gênero, as histórias em quadrinhos se pautam sobre suas próprias regras e convenções, mas também utilizam os mesmos dispositivos que propiciam processos de identificação que causem sensação de familiaridade com o leitor. O aspecto ficcional surge na vida cotidiana como forma de assegurar um valor adicional à vida banal, um recurso que nos permite fugir do tédio e da melancolia diante das coerções sociais que somos obrigados a aceitar em nosso dia-a-dia. O fantástico constitui elemento importante do dado social, sendo um elemento de base sobre o qual se elevam, a seguir, cristalizações particulares. A ficção científica, o romanesco, o fantástico pictórico ou cinematográfico são pseudomorfoses, no sentido que O. Spengler dá a esse termo; não são formas novas e inéditas, mas cristalizações particulares numa matriz já existente (THOMPSON, 2002). Muitas dessas cristalizações particulares oferecem uma representação – ainda que indireta das situações cotidianas, delas extraindo elementos familiares que possibilitam ao homem mais compreensão de si e do mundo que o cerca. O cinema, como uma das formas simbólicas que se desenvolveu no decorrer do século vinte, é um dos principais veículos de disseminação dessas

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representações, bem como os quadrinhos e, posteriormente, a televisão. Morin mostra como as imagens constroem nossas representações: As imagens infiltram-se entre o homem e a sua percepção, permitindo-lhe ver o que pensa ver. A substância imaginária confunde-se com a nossa vida anímica, com a nossa realidade afetiva. A participação é fonte permanente do imaginário. O que nos pode parecer mais irreal tem como origem o que há de mais real. A participação é a presença concreta do homem no mundo: é a sua vida (MORIN, 1997, p. 235).

Por intermédio das imagens disseminadas pelos quadrinhos, pelo cinema e pela TV e das representações que elas trazem, o homem descobre seu papel no mundo e estabelece novas relações com seus semelhantes. Essa idealização de personagens e situações traduzidas num filme, numa HQ ou em um seriado televisivo, assim como nos contos ou nas lendas populares, produz uma eufemização, no sentido dado por Maffesoli (2002) de idealização, que passa despercebida na vida cotidiana. Essa eufemização pode ser traduzida, entre outras maneiras, pelas diversas figuras que assume o herói ou seu duplo – o anti-herói. Essa relação ‘totêmica’, que pode assumir múltiplas formas, encontra-se na fascinação que exercem o chefe, a vedete, o herói, o criminoso, etc., onde a força dessa relação reside no fato de encontrarmos nesse totem, nesse ícone, um pedaço de nós mesmos, de nossa vida. Existe uma familiaridade imediata que alimenta sonhos e fantasmas e que, através da dupla relação com o objeto da fascinação, assegura um valor adicional à vida banal. Essa duplicidade é assim como dissemos, uma maneira de se viver a imortalidade (MAFFESOLI, 2002, p. 71-2).

Metz, por sua vez, ressalta a relação de cumplicidade que se estabelece na relação entre espectador e personagem: “no cinema estamos sempre um pouco divididos, vivendo uma situação de compromisso” (METZ apud COSTA, 1987, p. 26). Vivenciando uma relação de familiaridade com os personagens dos quadrinhos, filmes e seriados, cria-se, por parte do leitor/espectador, uma cumplicidade que o permite conviver com os dramas a cada edição, filme ou novo episódio, como se fizesse parte do cotidiano dos personagens tal o grau de envolvimento e reconhecimento que se forma nessa relação espectador/personagem. Para Maffesoli (2002), as imagens (de toda ordem e em seus vários suportes) são formadoras de todo o corpo social, consumidas coletivamente, aqui e agora, servindo como fator de agregação que permite perceber o mundo e não apenas representá-lo. Elas forneceriam, então, vínculos que relacionam todos os elementos do dado mundano entre si, proporcionando um reconhecimento de si por meio do outro - seja esse outro pessoa, ideias ou imagens. As imagens proporcionam uma sagração dos rituais do dia-a-dia e das representações que constituem o imaginário do ser humano. Thompson (2007) aponta que o conhecimento de mundo parte de nossa experiência pessoal, próxima no espaço e no tempo, para aquela mediada pela mídia, proporcionando assim uma “mundanidade mediada”. Da mesma forma, nossa compreensão do passado se vê permeada pelos produtos da indústria da mídia, proporcionando uma “historicidade mediada”, na qual a tradição oral e a interação face a face se servem cada vez mais desses produtos. Essa mediação, associada à necessidade constante de renovação dos produtos da mídia proporciona uma constante renovação dos mitos, constitutivos do imaginário social. Assim, as representações constituídas na literatura e nos quadrinhos são apropriadas por outros veículos da mídia recriando de diversas maneiras nossas estruturas simbólicas. Para Gilbert Durand (1984), toda cultura assimilada pela educação é um conjunto de estruturas fantásticas. Após o estágio educativo, a função fantástica tem papel direto na ação: as obras da imaginação e toda criação humana, mesmo a mais utilitária, são criadas a partir da fantasia. A necessidade da função fantástica, portanto, reside na faculdade que tem o imaginário de ultrapassar a temporalidade e a morte.

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A CONSTITUIÇÃO DOS HERÓIS A noção de herói foi sendo modificada com o decorrer da história. Segundo Abbagnano (1992) ao citar Platão (398c), os heróis seriam frutos da união entre deuses e mortais, o que os eleva à categoria de mito. Mais perto de nós, Hegel [18--], segundo o mesmo autor, afasta a concepção dos heróis do universo mitológico, mas atribui-lhes a providência histórica, por meio da qual eles estariam predestinados a cumprir importantes tarefas, sendo instrumentos das mais significativas realizações da história. Seriam os heróis, ainda, segundo Hegel, capazes de aglutinar seguidores à sua volta porque exprimem “aquilo cuja hora é chegada” (HEGEL [18--] apud ABBAGNANO, 1992, p. 498). Na mesma linha está T. Carlyle (1841), para quem os heróis seriam os “grandes líderes da humanidade, os inspiradores, os campeões e, lato sensu, os artífices de tudo aquilo que a multidão coletiva dos homens cumpriu e conseguiu” (CARLYLE, 1841 apud ABBAGNANO, 1992, p. 498). Essas visões, tributárias de uma concepção romântica da história, continuam a povoar nosso imaginário. Autores como Pierre Brunel (1998), no Dicionário de Mitos Literários, e Flávio Kothe (1987), em O Herói, apresentam definições mais próximas à visão atual do herói, às quais nos remetemos como referência principal para caracterizá-los. Os heróis, para esses autores, são apresentados como indivíduos excepcionais, que têm a astúcia e a providência divina a seu lado, capazes dos feitos mais audazes e dos sacrifícios mais nobres e a quem os simples mortais devem respeito e gratidão. Sobre a constituição da figura do herói, seu nascimento é, na maioria das vezes, ligado a figuras ilustres como deuses, nobres ou indivíduos privilegiados. Thor e Batman são excelentes exemplos. O primeiro, filho do Deus Odin; o segundo, filho de um milionário. Geralmente, a figura do herói tem sua natureza ocultada, como no caso dos que somente se revelam à medida que realizam algum feito fabuloso. É o que se denomina “epifania heróica”, que pode ser constatada nos Doze Trabalhos de Hércules, ou então no western representado pelo desconhecido que se revela um exímio pistoleiro, ou nos super-heróis que descobrem seus poderes em situações emergenciais. Frequentemente, a descoberta do herói se dá no confronto, seja com um monstro ou com um inimigo poderoso. Ao combatê-los, o herói mostra-se como o salvador, o libertador. Outra forma de representação do caráter epifânico do herói ocorre na “descida ao inferno”, seja ao inferno literalmente, como Ulisses ou Orfeu ou, então, no universo do western, nos desertos intransponíveis e nas “portas do diabo” que o herói tem que transpor - “infernos” onde nenhum homem mortal jamais se aventurou, ao passo que o herói consegue voltar. A Queda de Murdock (Born Again), criada por Frank Miller e David Mazzucchelli (1986) exemplifica o calvário de Matthew Murdock, o Demolidor, até sua ascensão novamente ao posto de herói. O caráter de libertador do herói serve ou para conduzi-lo até o poder - já que alguns são filhos de nobres, como Robin Hood - ou para colocá-lo em conflito direto com esse mesmo poder - que a princípio o venera - passando o herói a representar uma ameaça. Por ser um homem especial, o herói quase sempre é antissocial, tende a escapar das leis, origem da maioria dos conflitos com as estruturas de poder, seja no western ou no romance policial. Os quadrinhos Wolverine e Bruce Banner são dois bons exemplos desse caráter. Uma consequência do caráter antissocial, da insubmissão às regras, é que a soberania do herói, por vezes, pode levá-lo ao infortúnio. Numa atitude que desafia poderes maiores que os seus, o herói acaba sofrendo por seu orgulho e descomedimento. É o caso de Ulisses, que mesmo contando com a proteção da deusa Atena, desafia o poder de Poseidon ao cegar seu filho, o ciclope Polifemo, e se vangloriar. O fato acarreta uma perseguição implacável ao herói que, por diversas vezes, é quase morto. A fragilidade do herói vem à tona diante de um destino imutável ou de alguém mais poderoso, caso de ambos os personagens citados.

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Esse retomar de sua condição humana leva-o ao risco iminente da morte. A morte do herói nunca acontece por causas banais, como mero acidente. Ela é sempre cercada por circunstâncias que o levam à glória. Essa morte acontece em combates ou quando o herói coloca sua vida a serviço de uma causa mais nobre - a Fênix Negra dos X-Men exemplifica. Não podemos deixar de lembrar do final do mais recente filme da saga Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (Christopher Nolan, 2012), com a suposta morte do herói para salvar Gotham City.

SE EXISTEM OS HERÓIS... PRECISAMOS DOS VILÕES PARA NOS ESPELHAR NO REAL Para que exista o herói, é necessário o seu contraponto, o inimigo, que possibilita a realização de seus feitos. Brunel (1998) apresenta as principais características que delineiam a figura do herói e a de seu principal oponente. O herói é solar, e seu inimigo faz parte de um universo tenebroso. Enquanto o herói possui “olhos cintilantes ou claros, cabeleira irradiante, beleza do rosto, silhueta viril, perfil afilado” (BRUNEL, 1998, p. 76) (Capitão América e Superman figuram como ótimos exemplos), seus oponentes apresentam-se com “brilho sombrio no olhar, rosto noturno (vilão mal barbeado, feio, sujo, suspeito), às vezes adiposo” (BRUNEL, 1998, p. 76). O Coringa e o Rei do Crime também traduzem esse estereótipo com perfeição. O caráter do herói revela franqueza e lealdade, enquanto o inimigo tem a dissimulação e a traição como principais características. As representações do bestiário do herói remetem ao seu caráter solar. O leão, a águia, a fênix, o cavalo, animais que vivem ao ar livre. O inimigo é ligado às trevas, à noite. Cerca-se de dragões, serpentes, monstros, aranhas, morcegos, animais dissimulados em cavernas e pântanos. O quadro social que envolve o universo dos heróis é definido pela contraposição das relações de poder, principalmente o político e o econômico. Enquanto o herói é alguém salvador, potente, solitário, justiceiro, um ser à margem do comum, que não se liga a bens materiais, os inimigos são bem situados socialmente, arrivistas (banqueiros e latifundiários no western, financistas, empresários de grandes corporações atualmente), que conspiram nas sombras e vivem cercados por conluios, intrigas e mesquinharia. Batman e o Rei do Crime poderiam ser os dois lados dessa moeda. Outro contraponto à figura do herói é a presença da mulher, que não se constitui exatamente como inimigo, mas, às vezes, causa problemas. A relação do herói com as mulheres revela-se, nas narrativas fantásticas, com a atração proporcionada por seus poderes mágicos capaz de enfeitiçá-lo para, então, seduzi-lo, como fazem a feiticeira Circe e a ninfa Calipso, que seduzem Ulisses por meio de encantamentos. Elas geralmente são apresentadas como seres perigosos, já que por meio da sedução desviam o herói de sua rota de feitos. Nos romances de cavalaria, bem como em algumas narrativas do western, a conquista da mulher transforma-se num prêmio para o herói, que só a consegue depois de enfrentar terríveis provações. Nem todas as representações, no entanto, são tão negativas com relação à figura feminina. A mulher é também o contraponto à natureza brutal do herói. Em algumas histórias, feminilidade é sinônimo de sabedoria. A mulher é a companheira que aconselha o herói, que o instiga a prosseguir em sua jornada, mesmo que tenha que abrir mão de seu amor. No western é muito clara essa perspectiva. Ele retrata o modelo expansionista norte-americano, no qual a colonização deveria sempre prosseguir. O herói, representante máximo desse desejo desbravador, não poderia desenvolver laços que o prendessem a determinado espaço. O homem do oeste é sempre solitário, assim como os tripulantes das embarcações marítimas ou das naves estelares. Numa visão mais de acordo com o século XXI, as mulheres ganham outras conotações. Companheiras, sem dúvida, como Mary Jane Watson Parker, do Spider Man, heroínas como Tempestade, dos X-Men, até as femmes fatales, como Selina Kyle, Mulher Gato ou assassinas como

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Elektra. Podem, assim, serem as mulheres heroínas ou adotarem qualquer outro papel nas tramas fantásticas contemporâneas. O herói representa para o leitor o seu duplo, aquele que está ali para resolver os conflitos que, intimamente, desejamos que sejam transportados de nossa vida para as páginas dos quadrinhos ou para as telas do cinema. Como a figura do duplo descrita por Morin (1997), representada pelo processo de projeção-identificação do espectador ou, como o autor afirma, por meio de “participações afetivas”, o espectador se reconhece nas atitudes e dilemas enfrentados pelo herói como se fossem seus. O conflito é o ponto de união entre o leitor/espectador e o herói. Os conflitos devem ser próximos da realidade do leitor, de forma a gerar uma relação de cumplicidade entre ele e o herói. Cumplicidade que não é unilateral, já que o leitor/espectador confia na vitória do herói, o que, na maioria das histórias, realmente acontece. Doc Comparato (2009) aponta duas qualidades essenciais do conflito: correspondência e motivação. Ambas provocam, quando bem utilizadas, uma reação emocional no público, motivada por simpatia ou solidariedade, empatia ou identificação com a figura do herói ou, ainda, por antipatia ou reação com relação a um inimigo que também se torna seu. A correspondência do conflito se dá à medida que a motivação é convincente para o espectador. Assim é criado o ponto de identificação, ou seja, o ponto convergente entre o público e a história. Normalmente existe uma série de pontos de identificação, que só se percebem quando intervém a emoção: no momento em que nos damos conta de que o problema que a personagem enfrenta também poderia ser nosso. Isso faz com que o espectador diga ‘se eu fosse ele, não faria aquilo’. Todo conflito possui, por mais absurdas que pareçam as premissas, um ponto em comum – de identificação – com a plateia. (COMPARATO, 2009, p. 150).

O processo de identificação do espectador/leitor com as imagens já se desenvolvia nas primeiras exibições do cinematógrafo dos irmãos Lumière. Vários escritores, a exemplo de Jules Romains (1919), voltaram o olhar para o fascínio que o cinema, mesmo em seus primórdios, exercia sobre o espectador comum: O sonho da multidão começa. Ela dorme; seus olhos não a vêem mais, não tem mais consciência de sua carne. Não há nela mais que uma fuga de imagens, um deslizar e um frufru de sonhos. Ela não sabe mais, que ela é, numa grande peça quadrada, um grupo imóvel, com sulcos paralelos como na lavoura. Toda a sua realidade interior treme na tela. Visões que lembram a vida, uma bruma oscila diante delas. As coisas não têm o mesmo porte que do lado de fora. Elas mudaram de cor, de tamanho, de gestos. Os seres parecem gigantes, movem-se com pressa. O tempo que dirige esses ritmos não é o tempo comum, aquele que adota a maioria das multidões, quando elas não sonham (ROMAINS, 1919 apud PRIEUR, 1995, p. 49).

Nascido como projeto científico, o cinematógrafo logo vai ganhar seu espaço nas feiras, cabarés, em diminutos boulevards. É no espaço do homem comum que ele se desenvolve. Nos pequenos redutos, para um público que - em troca de um níquel - por alguns momentos abandona sua condição miserável e se transforma no cowboy destemido, no grande espadachim, no príncipe em seu suntuoso palácio. Jean-Paul Sartre (1964) demonstra o mecanismo de identificação do espectador com o personagem. Ao se transportar para o universo imaginário, ele deixa, por momentos, seu papel de espectador e passa a ser o ator, o herói imaginário: O herói colocava o pé no chão, apagava o pavio, o traidor se jogava sobre ele, um duelo a faca começava: mas as sortes desses duelos estavam, a rigor, ligadas ao desenvolvimento musical: eram falsas sortes que mal dissimulavam a ordem universal. Que alegria quando a última facada coincidia com o último acorde! Eu ficava extasiado, havia encontrado o mundo onde eu queria viver, eu tocava o absoluto. Que mal-estar, também, quando as luzes se acendiam: eu me tinha rasgado de amor por aqueles personagens e eles haviam desaparecido, levando seus mundos; eu havia sentido a

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vitória deles nos meus ombros, e no entanto ela era deles, não minha: na rua eu me sentia a mais (SARTRE, 1964 apud PRIEUR, p. 52, 1995).

Os heróis, que antes existiam apenas nas narrativas, corporificam-se, assumem feições cada vez mais humanas nas imagens produzidas desde o cinematógrafo. Se nas narrativas a figura do herói exercia grande empatia com leitor, pouco a pouco o processo de identificação do espectador com o personagem vai se intensificando nas imagens do cinema e, paralelamente, nos quadrinhos. Nas narrativas, o personagem pode viver uma série de aventuras. Assim surgem os seriados nas histórias em quadrinhos e, posteriormente, eles serão desenvolvidos no cinema. Dessa forma, o leitor poderá, semanalmente, participar das aventuras de seu herói, com quem cada vez mais desenvolve uma relação de intimidade. A cada edição, cria-se uma relação de familiaridade com os personagens, uma quase cumplicidade, fazendo com que ele se identifique com os dramas e as soluções vivenciadas pelo herói. Para Umberto Eco: Na série, o leitor acredita que desfruta da novidade da história enquanto, de fato, distrai-se seguindo um esquema narrativo constante e fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido, com seus tiques, suas frases feitas, suas técnicas para solucionar problemas... A série neste sentido responde à necessidade infantil, mas nem por isso doentia, de ouvir sempre a mesma história, de consolar-se com o retorno do idêntico, superficialmente mascarado (ECO, 1984, p. 123).

Nesse sentido, as histórias em quadrinhos disseminam parâmetros de identificação nos quais o homem comum se reconhece, pois tratam de temas que lhe são familiares, frutos do conhecimento do cotidiano do leitor. Na verdade, ele está submetido a um processo de encantamento menos intenso do que aquele vivido durante duas horas no cinema, mas talvez mais marcante, porque recorrente. No contato mensal ou quinzenal com os quadrinhos, o leitor vai conhecendo os personagens, travando uma relação contínua, cada vez mais íntima com eles, à medida que suas histórias são contadas, seu passado revelado, trazendo uma explicação para suas atitudes. A densidade emocional do personagem é fator fundamental para a identificação com o leitor. O lado humano, as contradições têm que estar presentes durante todo o tempo. O homem não vive somente de heróis perfeitos, porque assim não haveria um ponto comum com o qual pudesse se identificar. É justamente por meio das falhas e da fraqueza do herói - que ainda assim consegue vencê-las - que nos identificamos e almejamos, como ele, conseguir superar nossas próprias dificuldades e limitações. A complexidade de uma personagem e suas contradições têm que se manifestar para que seja verossímil, real. Quanto maior for sua densidade humana, mais real nos parecerá. Um grave erro na configuração de uma personagem é pretender que seja perfeita. Por natureza, o ser humano é imperfeito e, portanto, contraditório e conflituoso (COMPARATO, 2009, p. 128).

Os modelos do herói, seja nos quadrinhos, no cinema ou na TV, utilizam-se de elementos originados a partir de contos e lendas. Porém, com o tempo, esses arquétipos sofrem adaptações para dialogar com as necessidades e incertezas do homem contemporâneo. Os meios de comunicação de massa contribuem para uma construção simbólica mais complexa, capaz de interferir na forma como os sujeitos localizam-se no mundo e constroem sua identidade. A identificação pode ser compreendida como uma idealização de personagens e situações traduzidas num seriado televisivo, nos heróis dos quadrinhos, assim como nos contos ou nas lendas populares. Assim como não podemos nos livrar dos vilões do cotidiano, precisamos, ao menos, ter a sensação de que os heróis, vez por outra, podem emergir das páginas dos quadrinhos e tornar nossa vida mais leve.

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REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2009. COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. KOTHE, Flávio R. O herói. Belo Horizonte: Ática, 1987. LEGROS, Patrick et al. Sociologia do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007. MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Petrópolis: Vozes, 2002. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2005. MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. v. 1. PRIEUR, Jerome (Org.). O espectador noturno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 2002. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 2007.

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A PRESENÇA DO HUMOR NAS CHARGES DOS MINEIROS EDUARDO DOS REIS EVANGELISTA (DUKE) E EDSON JUNIOR (DUM) Eliane Meire Soares Raslan Ana Luiza Pereira Guimarães Resumo: Este artigo tem como proposta analisar o uso do humor nas charges dos mineiros Eduado dos Reis Evangelista (Duke) e Edson Junior (Dum), publicadas em Minas Gerais. O objetivo é compreender o efeito do humor provocado pelos autores em seus trabalhos ao retratar fatos cotidianos, bem como as conexões que estabelecem com os leitores, por meio dos elementos visuais e textuais presentes nas temáticas abordadas. Baseada no estudo de obras publicadas pelos chargistas e visitas à palestra e exposição de seus trabalhos, esta análise busca, ainda, evidenciar a importância do caráter opinativo da charge e de sua ligação com o contexto em que foram criadas, visando estimular novas propostas que abordem a produção de charges em Minas como objeto de estudo e ensino. Palavras-chave: charge e humor; gênero; histórico; Minas Gerais.

Abstract: This article intents to analyze the use of humor in the charges by Eduardo dos Reis Evangelista (Duke) and Edson Junior (Dum), published in Minas Gerais state. The objective is to understand the effect of humor caused by this work, when their authors exhibit daily facts, as well as the connections established with the readers, through visual and textual elements present in the topics treated by the authors. Based in studies of cartoonist’s published works and visits to lectures and exposition of their work, this article also tries to evidence the importance of opinionated feature of the charges and its connection with the context they were created, with the objective of promote new proposals related to the charges production in Minas as an object of study and education. Keywords: charge and humor; gender; historical; Minas Gerais.

INTRODUÇÃO Conforme designa Civita (1985), o objetivo básico do desenho de humor é suscitar risos, embora alguns artistas busquem ir além, despertando uma consciência crítica ora relacionada ao poder político, ora relacionada à vida social ou cultural. Personagens como Mafalda, do argentino Quino, Ferdinando, do americano Al Capp, assim como a Graúna e os Fradinhos, do brasileiro Henfil são

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exemplos da diversidade de quadrinhos produzidos por quadrinistas de diferentes países encontrados na história brasileira. A palavra comic1 vem da língua inglesa, utilizada para designar, além dos desenhos de humor, as histórias em quadrinhos, revelando a força que essa temática mais séria nos desenhos de humor tem no mundo dos meios de comunicação. Destacam-se nos desenhos de humor características como simplificação e deformação intencional. O humor, de acordo com Santos (2011), é um campo no qual podem ser desempenhados diversos gêneros, como charge, comédia, crônica, narrativa e história em quadrinhos. Ele é visto inicialmente a partir de sua perspectiva informal, aquela que causa risos, entretanto pode ser suscetível de análise no ambiente escolar. Textos humorísticos podem ser ricos em aspectos linguísticos, além de possibilitar a contextualização de fenômenos. A ambiguidade presente nos textos de charge e de humor estimula o raciocínio e exige o conhecimento prévio do contexto em que estão inseridos para a compreensão de seu humor. Entender os elementos linguísticos e suas variações é algo fundamental à interpretação.

O HUMOR NAS CHARGES MINEIRAS COM DUKE E DUM A linguagem, tanto a verbal quanto a não verbal, é uma ferramenta que permite aos indivíduos explicitar a visão de mundo. O fenômeno de comunicação que ela estabelece determina o gênero que irá representar. As charges, segundo Abaurre e Abaurre (2007), são exemplos de gêneros discursivos por serem caracterizados pelo contexto em que são produzidos, pelo público a que se destinam, por sua finalidade, pela estrutura, pelos temas abordados e por seu contexto de circulação. Assim como as pinturas, as charges registram situações e expressam os sentimentos da sociedade em determinado contexto. Mumford (1980) afirma que a arte, exceto em suas formas mais triviais e imitativas, não é um substituto da vida nem uma fuga dela, mas sim uma manifestação de impulsos e valores significantes que não encontram outra forma de expressão. Não é necessário ser adepto de Benedetto Croce para ver que toda arte é, fundamentalmente, expressão por meio de símbolos estéticos. Percebe-se a banalização de diversas fontes de estudo que abordam temas atuais, por possuírem características de humor. Porém, o uso do humor já era defendido há décadas pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), inclusive para falar sobre coisas sérias: “ridendo dicere severum” (“rindo, dizer as coisas sérias”, do latim). Bremmer e Roodenburg (1997) asseguram que, para Nietzsche, o humor quase sempre reflete as percepções culturais mais profundas e nos oferece um instrumento poderoso para a compreensão dos modos de pensar e sentir moldado pela cultura, o que favorece a sua constituição como elemento dinâmico e de produção de conhecimento. No mundo contemporâneo, as charges estão presentes em diferentes meios de comunicação, como jornais, revistas e livros dos próprios chargistas. Podem ser encontradas também em portais da web. Nestes, as ilustrações assumem o papel de signo que, segundo Santaella (2004), é responsável por moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos e também por propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. Para Santaella (1996, p. 60), “todo signo é, em maior ou menor medida, uma espécie de imagem especular: o signo não é apenas um corpo físico que habita a realidade, mas também é capaz de refletir essa realidade de que ele é parte e que está fora dele”. 1 JAGUAR. Antologia brasileira de humor. Porto Alegre: L&PM, 1976. 2 v.

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FIGURA 1- Charge do cartunista Duke. Fonte: Jornal O Tempo, novembro de 2009.

FIGURA 2: Charge do cartunista Dum. Fonte: Jornal Hoje em Dia, janeiro de 2010.

Podemos notar nas charges dos mineiros Duke2 e Dum3 que o humor foi utilizado para refletir a percepção da sociedade e expressar seu sentimento em um contexto determinado. A primeira charge retrata a instabilidade econômica vivenciada por muitos cidadãos em 2009, ano em que ocorreu a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já a segunda mostra a precariedade do sistema público de saúde no país, apresentando a fila de espera a que são submetidas centenas de pessoas que buscam por esse serviço. A análise do trabalho dos mineiros Duke e Dum, além da entrevista feita com esses cartunistas, revelaram a relevância que o humor, em conjunto com as charges, têm para retratar o contexto atual. Para Breemer e Roodenburg (2000, p. 13), o humor pode ser definido como “qualquer mensagem expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas, cuja intenção é provocar o riso ou um sorriso”. Breemer e Roodenburg (2000) buscaram alguns autores, como Sigmund Freud (1856-1939), que considera as manifestações humorísticas apenas um mecanismo de defesa em face de determinadas situações da vida moderna. William Davis Luján, jornalista, gourmet e escritor espanhol, sustenta a ideia de que há mais facilidade na compreensão que na definição do humor. O humorista espanhol Wenceslao Fernández Flórez (1885-1964) tentou defini-lo, em 1936, como um estilo literário em que se aliam a graça com a ironia e a alegria com a tristeza, fazendo referências a um estilo e a um gênero literário que possuem exercício de criação concreto. Existem diferentes formas de humor e algumas com mais facilidade de difusão. O humor das charges4, em geral, possui apenas compreensão em âmbito local, devido à dependência que estabelecem com o conhecimento de figuras públicas com características nacionais, de determinados modos de vida e de temas da atualidade como assuntos cotidianos, política, futebol, economia, ciência, relacionamentos, artes e consumo. 2 Eduardo dos Reis Evangelista (Duke) é mineiro de Belo Horizonte. Formou-se em cinema de animação pela Escola de Belas Artes da UFMG. Assina as charges diárias dos jornais O Tempo e Super Notícia. Também é editor da página de jogos e diversão do suplemento infantil Tempinho e da página de quadrinhos, jogos e entretenimento Supimpa. Colabora com a Revista CNT, Transporte Atual, publicando cartuns. Recebeu o troféu HQMIX como melhor cartunista brasileiro de 2008. É um dos organizadores do BH Humor, salão Internacional de humor gráfico de Belo Horizonte. Fonte: Site oficial do cartunista, chargista e ilustrador Duke. Disponível em: <http://dukechargista.com. br/biografia/> Acesso em: 23 fev. 2012. 3 Edson Junior (Dum) também é natural de BH. Ilustrador, cartunista, caricaturista, designer gráfico e publicitário. Participa de salões de humor nacionais e internacionais tendo sido selecionado em vários deles com premiações e menções honrosas. Trabalha no jornal Hoje em Dia, onde é ilustrador e infografista. Faz ilustrações para várias editoras. É membro da Cartuminas (Associação dos Cartunistas de Minas Gerais). Disponível em: < http://dumilustrador.blogspot.com.br/> Acesso em: 23 fev. 2012. 4 GÊ, Luiz. Mocambúzios e sorumbáticos: os anos 77-80 nas charges de Luiz Gê. São Paulo: T. A. Queiroz, 1981.

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No contexto político do Brasil, por exemplo, as charges e seu humor5 podem ser grandes influentes na sociedade em que estão inseridas, evidenciando a hipocrisia de certos argumentos e aproximando da realidade desses indivíduos. O brasileiro, segundo Machado (1976), sempre foi muito engraçado, mas nem sempre muito humorista. O humorista era o engraçado profissional, mas considerava-se antibrasileiro, alguém que é pago para fazer piada. Desde o Império, a imprensa brasileira apresenta excelentes caricaturistas, chargistas e impiedosos “frasistas”, influenciados por portugueses e franceses. O bom humor do Brasil era feito somente por amadores. Os historiadores, de acordo com Bremmer e Roodenburg (1997), apenas certificaram-se da importância do humor recentemente, considerando-o uma chave para a compreensão de códigos culturais e percepções do passado, como pode se observar nas charges abaixo dos mineiros Duke e Dum.

FIGURA 3: Charge de Duke. Fonte: Jornal O Tempo, novembro de 2009.

FIGURA 4: Charge de Dum. Fonte: Jornal Hoje em Dia, fevereiro de 2010.

Na charge acima (FIG. 3), do mineiro Eduardo dos Reis Evangelista (Duke), percebe-se a insatisfação dos indivíduos com a medida tomada pelo governo no ano de 2009, refletindo a insatisfação popular do momento. Nela a ironia é aliada à tristeza dos cidadãos, à carência e à falta de informação da maioria da população – em grande parte carente, mas não inocente quanto às verdadeiras intenções políticas. A compreensão dessa charge não depende do conhecimento de figuras públicas com características nacionais, mas do contexto político e social. O mineiro Edson Junior (Dum) revelou o fato de que a população brasileira estava aterrorizada com a situação do país no ano de 2010, como é mostrado na FIG. 4. “O Mensalão do DEM” é personificado na figura do frequente fantasma que rodeia as constantes facetas do governo. Para sua compreensão eficaz, é necessário reconhecer figuras públicas brasileiras, além da circunstância que definiu seu tema.

A REALIDADE VIVENCIADA NAS CHARGES Segundo Lailson (1981), a charge possui efeito efêmero, direto e imediato, além de realçar o lado crítico do assunto. O chargista deve oferecer ao seu leitor um arsenal simbólico suficiente para a 5 SALAO NACIONAL DE HUMOR E QUADRINHOS DE RIBEIRÃO PRETO/98, 8., 1998, Ribeirão Preto (SP). Anais... Ribeirão Preto (SP): Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, 1998. 11 p. Catálogo de exposição, 01 - 15 set. 1998, Museu da Imagem e do Som Ribeirão Preto (SP).

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compreensão de sua charge, que o leve à reflexão quanto ao tema que, em pouco tempo, pode não ter mais graça conforme o seu desenrolar. O improviso sobre a notícia, a durabilidade dos assuntos escolhidos e a necessidade de ser cômico são fatores determinantes à qualidade das charges. Segundo Silva (2008), os meios de comunicação influenciam a opinião dos cidadãos.

FIGURA 5: Charge de Duke. Fonte: Jornal Super Notícia, agosto de 2012.

FIGURA 6: Charge de Dum. Fonte: Blog do chargista Dum.6

Cada chargista, de acordo com Ferreira (2008), tem uma forma de tornar sua charge um texto efetivo, essencial na prática do dia-a-dia do jornalismo de opinião. O texto deve concretizar o tema abordado e apresentar um gesto de autoria. Nele também deve estar presente a multirreferencialidade enunciativa, que contém outras maneiras de transmitir a informação desejada às esferas sociais. Os papéis enunciativos são assumidos na representatividade das charges por seus autores. As características que tornam a charge um gênero discursivo são, segundo Abaurre e Abaurre (2007), o contexto em que é produzida, o público a que se destina, sua finalidade, estrutura, temas abordados e contexto de circulação. Para Silva (2008), a compreensão do texto chargístico depende da relação verbal e não verbal, o que nos permite afirmar que a imagem e as palavras em uma charge se complementam e interagem para formar a significação. Lopes (2004) afirma que está presente a ficcionalidade nas charges, em graus distintos, algumas com preponderância e outras nas quais ela somente auxilia a construção de uma produção discursiva. O tema abordado pode ser real, porém a situação e os personagens, ficcionais. Na charge da FIG. 6, Dum retrata um acontecimento de caráter internacional realizado no Brasil em 2012, a RIO+207. Sua significação verbal e não-verbal é formada a partir da ironia textual, que se confirma pela imagem que a acompanha. O tema abordado é real, porém a situação e os personagens, ficcionais. Em entrevista8, Dum revela acreditar na eficácia do uso da charge como objeto de estudo, devido à sua longa trajetória na história. O chargista afirma que “a charge é uma das ferramentas mais antigas na história da imprensa. Conta grande parte do que aconteceu na política, economia, cultura, 6 Disponível em: <http://dukechargista.com.br/biografia/> Acesso em: 28 jun. 2012. 7 A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, foi realizada de 13 a 22 de junho de 2012, no Rio de Janeiro. A Rio+20 foi assim conhecida porque marcou os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) e contribuiu para definir a agenda do desenvolvimento sustentável para as próximas décadas. A proposta brasileira de sediar a Rio+20 foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua 64ª Sessão, em 2009.O objetivo da Conferência foi a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes. Disponível em: <http://www.rio20.gov.br/sobre_a_rio_mais_20>. Acesso em: 30 ago. 2012. 8 Entrevista realizada pessoalmente por uma das autoras, Ana Luiza Pereira Guimarães, no dia 22 de maio de 2012.

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esporte, cotidiano do mundo” (informação verbal). Além disso, citou múltiplas funções que ela pode assumir, como seu uso em teses de mestrado, no curso de comunicação social, em concursos e vestibulares. Assim como Dum, Duke também acredita, com convicção, nas múltiplas funções e usos da charge, confirmando existir diversas monografias, teses e estudos em relação à sua utilidade como objeto de estudo.

OS SIGNOS E A COMUNICAÇÃO COM LÚCIA SANTAELLA Buscando Santaella (1996), podemos comparar as ideias da autora sobre os signos dentro das representações de significados das ilustrações nas charges, já que os signos são capazes de refletir a realidade de que fazem parte. Os signos são transmitidos para a sociedade por diversos veículos de comunicação. Para Santaella (2004), diferentemente dos sintomas do século XIX, que marcavam o corpo, gradativamente esses sintomas foram crescendo até tomar o corpo ele mesmo como sintoma da cultura. O sintoma simboliza algo enigmático para quem o sofre e também, na análise, para quem o escuta. Oposto ao signo, o significante em si não tem sentido, porém, no impasse incessante de significantes precisamente ligados (eixo metonímico) ele age, produz efeitos de significação (eixo metafórico) sempre retroativos. Assim, um significante só é significante para outros significantes, ou seja, é aquilo que representa o sujeito para outros significantes. Como significante, ele é da classe de um saber, o saber inconsciente, que sabe do sujeito sem ele o conhecer. Assim, o leitor das charges de Duke e de Dum precisa ter o mínimo de bagagem sobre o assunto tratado, uma ideia sobre o tema; caso contrário, não haverá sentido ou mesmo significado para ele. Podemos notar uma distorção proposital nos personagens de Duke (FIG. 1, 3 e 5), recurso que busca deixar os personagens mais toscos, provocando sensações como a insatisfação dentro do contexto que retrata. Tal recurso nos permite sentir a dificuldade ou a angústia vivenciada pelo personagem. É como se o personagem estivesse o tempo todo impressionado, ou mesmo abobado, apalermado com as diversas situações tratadas por Duke. Já os personagens de Dum buscam traços próximos do personagem tratado, seja ele um político ou mesmo a própria sociedade. Suas charges nos aproximam mais dos personagens como algo real, por mais que o leitor esteja em um momento de busca de entretenimento. De acordo com Santaella (2004), a história da arte revela que o foco da atenção dos artistas sempre esteve, em diferentes intensidades, no corpo humano. Além de onipresente, no decorrer do século XX até os dias atuais, o corpo foi deixando de ser uma representação e simplesmente um conteúdo artístico para se tornar principalmente uma questão e um problema explorado pela arte sob múltiplos aspectos e dimensões que evidenciam sua plasticidade e seu poliformismo. A visão do corpo como um sistema de interações e conexões foi gerada pelas margens instáveis entre o ego e o mundo, entre o real e o imaginário, entre o existente e o projetado. Utilizado como matéria do vivido, o corpo, com foco privilegiado, se fez presente na atividade constante da modificação e adaptação por meio da troca de informação com o ambiente circundante. As charges de Duke e de Dum têm personagens que nos fazem associar a alguém que esteja sendo visado no momento pela crítica da mídia. São criadas para “chacotear” os desvios de conduta e de caráter de pessoas conhecidas. Buscam o tempo todo “satirizar” essas personalidades que vivem no mundo da irregularidade, transferindo-as para o mundo do humor político, econômico, social e cultural das charges. Ambos os artistas brincam com os corpos de seus personagens em suas diferentes intensidades. Projetam o vivido por todos nós nesses personagens permitindo buscar nosso conhecimento para refletir a situação por meio do humor. Esses personagens criados pelos cartunistas nos conduzem a refletir sobre nossos valores,

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atitudes de consumo, modismo, o que prevalece na imagem do corpo e da mídia. Fazem-nos pensar nas faces históricas, em especial, a que vivemos. A moda reflete o entrelaçamento indissolúvel das esferas do econômico, social, cultural, organizacional, técnico e estético. Santaella (2004) ainda afirma que ao mesmo tempo em que se comporta como produto do capitalismo, a moda também funciona como índice, e até mesmo sintoma, de suas diferentes faces históricas. No momento em que a Revolução Industrial tornou possível a reprodução em série do mesmo produto, a moda foi ficando explícita, o que a torna filha direta da aceleração do capitalismo industrial. Era nela que a veemência da imaginação moderna encontrava seu refúgio. O olhar moderno aprendeu a desejar o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela publicidade, ficam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das vitrines. Santaella (2004) afirma que a sociedade atual enfrenta uma crise em relação à “ideia do eu”, proliferando agora, no lugar do eu, novas imagens de subjetividade. Tais imagens assumem hoje múltiplas formas heteróclitas, descentradas, instáveis e subversivas. Em contradição, no momento em que essas imagens conduzem para o declinante conceito do eu, as práticas regulatórias das instituições sociais persistem em governar os indivíduos de uma maneira que está excessivamente ligada às antigas características que o definem como um “eu”. Ao mesmo tempo em que discursos filosóficos e culturais proferem contradições e inadequações das definições estáveis e acabadas do eu, a mídia em geral trabalha ansiosamente pela preservação da “ideia do eu” que fundamenta as práticas regulatórias institucionais. Na mídia prevalecem as imagens do corpo, o corpo reificado, fetichizado, modelizado como ideal a ser atingido, em harmonia com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem manchas. Conforme designa Santaella (2004), grande parte das variadas manifestações das artes nos anos 70 esteve voltada para a questão do corpo. O corpo vivo do artista tomado como suporte da arte, que teve início em Duchamp (1887-1968) e continuou, como nos movimentos8 Happening, Fluxus e Acionismo dos anos 50 e 60, atingiu seu paroxismo na body art dos anos 70. Esta contou com a notável introdução de irreverentes mulheres artistas, alimentadas pela força libertária dos discursos feministas da época. Esse foi também o período em que a resistência dos artistas à dissimulada servidão da arte ao mercado encontrou sua expressão nas instalações que, mesmo quando não tematizavam diretamente o corpo, tratavam dele ao transformar o receptor contemplativo em observador participativo. Ao encontrarem nas fotos um meio para a documentação da brevidade que é própria das instalações, acabaram por estimular uma tendência que já havia iniciado nos movimentos artísticos Happening e Fluxus: dar à fotografia a função de documentação auxiliar, o que, ao mesmo tempo, permite complementar, adicionar outros tipos de artes e, muitas vezes, também transformar os documentos em meios artísticos da própria instalação. No decorrer do século XX, estão sendo desenvolvidos aparatos, por meio da propaganda e do marketing, com o objetivo de compreender e agir sobre as relações entre pessoas e produtos em relação às imagens do eu, ao seu mundo interior, ao seu estilo de vida e ao seu invólucro corporal. São, realmente, as exibições na mídia e na publicidade que têm efeito significativo sobre as experiências do corpo. Os cartunistas Duke e Dum nos permitem refletir sobre a corrupção e a falta de ética que 8 O happening é considerado uma performance. Cria uma situação ou evento que às vezes é considerado arte performática. No happening não existe uma narrativa linear, existe a participação do público e pode ser realizado em qualquer lugar - espaço usado pelo artista para improvisação, mesmo que a maior parte dos elementos tenha os acontecimentos previstos, limite que passa a ser eliminado entre arte e espectador. Fluxus é um movimento que, através da difusão em diferentes artes (visuais, literatura, música, teatro, pintura), caracterizou-se como uma das novas vanguardas. Foi um modo de fazer coisas diferentes no movimento da arte social e não estética; buscam quebrar as categorias que têm arte em modos separados. O acionismo inicia com as ações impactantes e de conflito da época que são potencializadas na liberdade através do corpo, uma discussão da arte pela era digital. Movimentos e experimentações do corpo como forma artística. A body art é uma forma de arte que consiste em trabalhos realizados no corpo humano (piercings, tatuagens, implantes subcutâneos, pintura corporal). Pode ser permanente ou temporária, pensada para decorar ou modificar o corpo. OSBORNE, Peter. Conceptual Art. London/ New York: Phaidon, 2002.

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passaram a avançar com o processo de industrialização. Ao mesmo tempo, nos fazem criar outro olhar sobre essas questões, transformando situações de angústia na de refúgio, graças ao humor contido nas charges. Notamos, no trabalho de Duke, determinadas características físicas: os braços e as pernas de seus personagens são bastante finos, os olhos esbugalhados e os dentes ressaltam da boca. As bocas são sempre longas e acompanham o restante dos traços. O cartunista consegue colocar movimento no personagem; existem características lineares e relativas à criação do artista. A arte dos cartunistas brinca com nossa imaginação e nos permite buscar o real desconfigurado. Já os personagens de Dum apresentam mais curvas e se assemelham a pessoas reais de nossa sociedade. Por serem veiculadas em contextos jornalísticos, as charges permitem desenvolver o senso crítico de seus leitores. Podemos notar, nos traços de ambos os artistas, a tentativa de tratar o corpo para que possamos relacioná-los a outras pessoas, imagens e produtos presentes na mídia; em alguns casos, até em nosso estilo de vida. O corpo está presente em todos os lugares, segundo Santaella (2004). Comentado, transfigurado, pesquisado, dissecado na filosofia, no pensamento feminista, nos estudos culturais, nas ciências naturais e sociais, nas artes, na literatura e nas charges. Na mídia, ele é levado ao máximo, ocorrendo muitas vezes de não percebemos quando são modificados ou reais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A charge é basicamente gênero textual e um tipo de crônica humorística, de caráter crítico, que usa o exagero para atingir o efeito desejado. Os chargistas Duke e Dum tratam do que ocorre no momento político, social e econômico do país. Seus trabalhos têm caráter opinativo e de crítica a personagens ou fatos específicos do contexto em que foram produzidos. A palavra humor pode assumir significados distintos, mas o humor das charges de Duke e de Dum se caracteriza por estabelecer conexão com determinados modos de vida, figuras públicas e temas contemporâneos como política, futebol, economia, ciência, relacionamentos, artes e consumo, em âmbito local e nacional. Tal qualidade confere às charges a virtude de serem meios para a compreensão de códigos culturais e percepção do passado. As charges costumam ser veiculadas em suportes como jornais, revistas, livros e sites específicos, com a finalidade de retratar e satirizar, por meio de caricaturas, os acontecimentos atuais e os personagens envolvidos. A etimologia da palavra charge já revela parte de suas propriedades, pois é de origem francesa e significa “carga”, ou seja, exagero de traços do caráter de alguém ou de algo para torná-lo engraçado. Muito utilizadas para retratar o futebol e criticar a política brasileira, as charges foram criadas com o objetivo de expressar a oposição ao governo e fazer críticas políticas de maneira jamais apresentada. Foram reprimidas por governos e impérios por se tornarem populares, fato que acarretou em sua existência até os dias de hoje.

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MOVIMENTO INDEPENDENTE E A REVISTA GRAFFITI Eliane Meire Soares Raslan Ivone Gomes da Silva Carina Ribeiro Cardoso Ludimila Vitoriano de Castro Martins Resumo Este artigo é um estudo de caso que analisa aspectos contextuais e processuais envolvidos na produção da revista Graffiti, publicada em Belo Horizonte desde 1995 até os dias atuais. Para o julgamento do tema aqui exposto, foram abordados os Movimentos Independentes dos Quadrinhos mineiros nos anos 90 na capital, bem como as características do mercado de divulgação dos quadrinhos e as produções independentes de destaque na cidade, culminando com a revista Graffiti, objeto desta análise. A revista foi considerada referência nacional, segundo o Guia Cultural Mixordia, editado por Daniel Silva, Débora Fantini e Marcelo Lustosa, por ser um luxuoso almanaque graficamente elaborado, fruto do esforço de um grupo de jovens universitários e artistas plásticos. Para o aprofundamento do estudo, além da coleta de dados, utilizou-se também o método da entrevista semiestruturada, acompanhada de questionários estruturados. Esta análise visa contribuir para o estudo e o fomento das pesquisas em quadrinhos no estado de Minas Gerais, bem como propiciar a divulgação dos trabalhos da revista e mostrar a importância e a influência das revistas em quadrinhos para o mercado. Palavras-chave: movimento independente; quadrinhos mineiros; revista Graffiti.

Abstract This article is a case study that examines the contextual and procedural aspects involved in the production of Graffiti magazine, published in Belo Horizonte since 1995 until today. To analyze the topic, was approached the independent movement of comics in the 90s at Belo Horizonte, the market characteristics for the dissemination of comics and independent productions featured in the city, culminating in the comics magazine Graffiti, the object of analysis in this article. The magazine was considered a national benchmark for being graphically designed luxury almanac, fruit of the efforts of a group of university students and artists. To reinforce the study, we used the method of data collection, semi-structured interview, followed by structured questionnaires. This analysis aims to contribute to the study and promotion of research in comics in the state of Minas Gerais, as well as provide disclosure of the work of the magazine and show the importance and influence of his articles for the market. Keywords: independent movements; Minas Gerais comics; Graffiti magazine.

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INTRODUÇÃO Os movimentos independentes de quadrinhos1 em Minas Gerais, desde a década de 90 até os dias atuais, é o objeto deste estudo. A partir dessa época, ocorreu no Brasil um interessante florescimento de movimentos para desenvolver o quadrinho nacional e defendê-lo da já octogenária invasão estrangeira. Por esse motivo, tornou-se necessário um estudo a respeito da emergência dos quadrinhos nacionais como publicações independentes até transformarem-se em almanaques de grande circulação, dentro e fora do país. Para melhor abordagem do tema, foi escolhido como principal objeto de estudo a revista Graffiti 76% Quadrinhos, que obteve grande visibilidade desde sua concepção. A revista foi considerada referência nacional por ser um luxuoso almanaque graficamente elaborado, fruto do esforço de um grupo de jovens universitários e artistas plásticos. A Graffiti publicava dezenas de autores pouco conhecidos nacionalmente e que não teriam muito espaço em outras revistas e ganhou grande destaque em meio às publicações mineiras, adquirindo merecimento para ser uma interessante fonte de pesquisa e aprendizado para a inspiração de grandes projetos bem sucedidos. Para o aprofundamento desse tema, foi aplicada a coleta de dados e utilizado também o método da entrevista semiestruturada, acompanhada de questionários estruturados. Este artigo é dividido em seções. As primeiras, Emergência dos movimentos independentes de quadrinhos nos anos 80-90 e A história da Graffiti: fanzine e incentivo à cultura apresentam o contexto histórico da emergência dos movimentos independentes nos anos 80-90; a seção seguinte, Olhares: produção da revista gráfica aborda um tema mais aprofundado em relação à revista Graffiti.

EMERGÊNCIA DOS MOVIMENTOS INDEPENDENTES DE QUADRINHOS NOS ANOS 80-90 A segunda metade dos anos 80 representou um quadro de crise para os quadrinhos independentes, causado principalmente pela própria crise econômica que o país atravessou, afetando diretamente a situação financeira dos editores, fazendo com que muitos não pudessem mais manter suas publicações e que outros fizessem edições bem mais modestas. Nessa época, surge um peculiar trabalho, o do quadrinista Lacarmélio Alfeo2, que inspirou grandes quadrinistas dos anos 90. A revista Celton (FIG. 1), vendida pelas ruas da capital mineira pelo próprio autor, narra as aventuras do personagem homônimo pela cidade, tornando o público-alvo da revista qualquer residente de Belo Horizonte ou, ainda, qualquer turista. O trabalho de publicação, venda e divulgação da Celton é feito pelo próprio Lacarmélio, que picha muros pela cidade com os dizeres “Leia Celton”. O autor sai pelas ruas fantasiado, cantando e tocando violão, segurando um cartaz com a frase: “Compre quadrinhos nacionais”. A revista Celton (FIG. 1) usa material impresso de baixo custo, mantendo a impressão colorida para sustentar a percepção visual, que tende a estimular o interesse do leitor em continuar a leitura. De conteúdo despojado, consegue relacionar a história com o dia-a-dia das pessoas.

1 Quadrinhos: Série de desenhos que representa uma história ou uma situação, geralmente dividida em retângulos sequenciais. = Banda Desenhada, História aos Quadrinhos, História em Quadrinhos. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http:// www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=quadrinhos>. Acesso em: 4 jun. 2012. 2 Lacarmélio Alfeo de Araújo, mais conhecido como Celton, vende seus gibis nos engarrafamentos da cidade de Belo Horizonte (e, hoje em dia, também na capital paulista) – gibis que ele mesmo escreve, desenha, edita e vende. Fonte: EMT Cultura. Disponível em: <http:// editoraemt.blogspot.com.br/2011/06/lancamento-celton-26-lacarmelio-alfeo-d.html>. Acesso em 4 jun. 2012.

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FIGURA 1: Capa da revista Celton n. 21, segunda edição, 2008. Fonte: Blog oficial do quadrinista Celton.3

A partir da década de 90, a produção de quadrinhos independentes volta a ficar intensa. Na época, em Belo Horizonte, o prefeito Patrus Ananias, de esquerda, que tinha outra visão em relação às políticas públicas e sociais do momento, havia sido eleito. A partir dessa mudança, segundo Fabiano Barroso, um dos produtores da Graffiti, passou-se a investir em festivais culturais como a Bienal do Livro, o Festival de Arte Negra, o Teatro de Bonecos, entre outros. Esse fenômeno possibilitou uma nova perspectiva para a arte, aumentando a diversidade de temas, estilos e publicações (informação verbal).4 Além disso, segundo Barroso, que viveu essa realidade na época, o custo de impressão e o preço dos papéis foram viabilizados devido ao Plano Real, lançado nessa mesma década com o objetivo de reduzir a inflação. Assim, buscando a expansão de leitores e com o objetivo de viabilizar economicamente edições mais sofisticadas, os editores procuraram se organizar, criando estruturas mais eficientes, caso da revista Graffiti 76% Quadrinhos. A I Bienal Nacional de Quadrinhos surge nesse período dos anos 90, animando e inspirando os jovens quadrinistas a se moverem por conta própria. O evento inaugurou uma grande “onda” de fanzines5 e edições independentes que conquistou enorme parcela de consumidores no país e perdura até hoje, na forma de pequenas publicações, eventos e redes de distribuição alternativa. Após a exposição de quadrinhos na Primeira Bienal, ocorreu um florescimento de movimentos para que os quadrinhos nacionais fossem desenvolvidos, visto que os quadrinhos brasileiros estavam sendo, mais uma vez, ameaçados pelo grande sucesso de publicações estrangeiras. Com 3 Disponível em: <http://zinismo.blogspot.com.br/2011/12/celton-lacarmelio-cidadao-honorario-de.html>. Acesso em: 4 jun. 2012. 4 Entrevista concedida aos autores Carina Cardoso e Ludimila Martins em 15 de maio de 2012. 5 Fanzine: “De modo geral, o Fanzine é toda publicação feita pelo fã. Seu nome vem da contração de duas palavras inglesas e significa literalmente revista do fã (De Fanatic Magazine). No entanto, o termo fanzine se disseminou de tal forma que hoje engloba todo tipo de publicação que tenha caráter amador, que seja feita sem intenção de lucro, pela simples paixão pelo assunto enfocado.” GUIMARÃES, Edgard. Fanzine. 3.ed. João Pessoa: Marca de fantasia, 2005.

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a inspiração das experiências independentes de fanzines dos anos 80, jovens autores começaram a publicar seu próprio material com frequência cada vez maior. Em 1994, a nova moeda pôs fim na inflação e, assim, o preço do papel caiu o suficiente para ser mais um fator de motivação para a publicação de novos trabalhos, agora melhor finalizados, coloridos, com o potencial e a qualidade das publicações independentes. De acordo com a revista O grito6, do Rio de Janeiro, os grandes destaques foram a FRI (Frente das Revistas Independentes) – que publicou as revistas Quadrinhos Tristes e Grimoire – e a Editora Nova Arte, fundada por André Diniz para editar seus próprios trabalhos. Belo Horizonte ganha visibilidade em quadrinhos nessa mesma década, considerado um polo de jovens artistas e iniciativas bem sucedidas, como a revista Graffiti 76% Quadrinhos, que desde 1995 publica trabalhos independentes e é considerada referência nacional. Ainda em Belo Horizonte, em 1996, surge também a revista Solar, com o objetivo de ser uma alternativa aos quadrinhos norte-americanos de super-heróis, na qual o personagem principal é um super-herói que vive na capital mineira. Enquanto isso, no Rio de Janeiro e em São Paulo ocorriam eventos e salões de quadrinhos com palestras, oficinas de desenhos e convidados internacionais. Bagnarol (2004) ainda afirma que, com o passar do tempo, a sede da Bienal de Quadrinhos foi transferida para Belo Horizonte, mais precisamente em 1997, e, em 1999, a cidade já era sede também do evento Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ).

A HISTÓRIA DA GRAFFITI: FANZINE E INCENTIVO À CULTURA Na análise da revista Graffiti, os dados tiveram como fonte, em especial, a entrevista com Fabiano Barroso7, designer, desenhista autodidata e também produtor da Graffiti 76% Quadrinhos. A história da revista começa com o encontro, em 1995, de Piero Bagnariol, mestre em artes na Itália e professor de quadrinhos, com o grupo Flit, um conjunto de estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais. O Flit fazia intervenções com grafite pela cidade, usando principalmente a técnica do estêncil que permite que foto, imagem e outros elementos passem um efeito de tipografia desenhada. O grupo era composto por Marcos Malafae, Pablo Pires, Andrei Goulard, Marilá Dardot e Pedro Portela (que não chegou a fazer parte da equipe de elaboração da revista, mas atuou como colaborador). O grupo carregava o nome Flit em homenagem à tirinha Níquel Náusea, de Fernando Gonsales, na qual existia a personagem Flit, a barata (FIG. 2).

FIGURA 2: A barata Flit, da tirinha Níquel Náusea, de Fernando Gonsales. Fonte: Blog Sincretismo Sinérgico.8 6 Revista O grito. Disponível em: < www.revistaogrito.com/page/blog/2011/07/.../entrevista-andre-diniz/>. Acesso em: 4 jun. 2012. 7 Entrevista concedida a Carina Cardoso e Ludimila Martins em 15 de maio de 2012 sobre parte da trajetória da Graffiti e de seus autores. 8 <http://sincretismosinergico.blogspot.com.br/2009/04/tech-no-logic.html>. Acesso em: 4 jun. 2012.

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O contato do Grupo Flit com Piero se deu em um café na região da Savassi, em Belo Horizonte, onde compartilharam interesses. Assim surgiu a ideia de se produzir uma revista que privilegiasse a parte gráfica e valorizasse os quadrinhos. Desde o início, a Graffiti foi concebida como algo maior que um fanzine, apesar de ter como conceito um projeto independente e experimental. O objetivo era produzir uma publicação de alta qualidade e ao mesmo tempo não industrial. Naquela época, a maioria dos quadrinhos independentes era feita em máquinas de xerox e, em contrapartida, a Graffiti era cuidadosamente editorada e trabalhada para ser impressa em gráfica com o uso de fotolitos, impressão mais utilizada na época, e principalmente, com recurso próprio. O nome Graffiti originou-se do grupo Flit e seu estilo, que mantinha um caráter experimental e urbano. O nome também se baseia no significado da palavra “grafia”, que designa tudo aquilo que é rabiscado e abstrato. O modo peculiar como se escreve o nome da revista, no entanto, vem de como se escreve “grafite” em italiano, ou seja, graffiti. Por fim, a porcentagem contida no nome da revista (76%) é realmente um cálculo, segundo Barroso9: “76% era para ser pura matemática” (informação verbal). Os outros 24% são referentes ao jornalismo cultural, que desde o início fazia parte da revista: matérias feitas de acordo com o tema específico de cada número, concebidas pela própria equipe de jornalistas da publicação. Inicialmente, a equipe editorial da Graffiti, era composta pela maioria dos integrantes do grupo Flit, Marcos Malafae, Pablo Pires, Andrei Goulard, Marilá Dardot, além de Piero Bagnariol, o grande idealizador do projeto. Um pouco mais tarde, quando já havia saído a Graffiti zero, Fabiano Barroso foi convidado por Piero para integrar-se ao grupo. No começo, os integrantes eram divididos de acordo com tarefas específicas sobre as quais seriam responsáveis, mas logo percebeu-se que a divisão não funcionaria, e a equipe da Graffiti se tornou um grande conselho em que todos opinavam e saiam a campo para o trabalho prático. A revista hoje é encontrada à venda, principalmente, em eventos como o FIQ e a Bienal do Livro. Atualmente, a equipe é composta por Piero, Fabiano, Pablo Pires (do grupo Flit), Rafael Soares e Alexandra Martins, que foram convidados a integrar o conselho atual da Graffiti. Todos compartilham o mesmo interesse, sustentar a revista como uma publicação independente, sempre explorando possibilidades e limites dos quadrinhos como linguagem, com o objetivo de inspirar novos quadrinistas e artistas a se lançarem no mercado. As publicações da Graffiti começaram com autores mineiros, geralmente aqueles já conhecidos do grupo, e também com trabalhos autorais de cada um dos integrantes da equipe. Com o passar do tempo e com o sucesso da revista, passou-se a buscar novos trabalhos por cartas; assim, quadrinistas de outros estados também participariam da publicação. Com a internet, caíram as fronteiras físicas; selecionar trabalhos para a revista se tornou um processo bem menos pesado. A equipe busca trabalhos na rede e envia convites a autores já conhecidos e que julga interessante para participar das edições especiais, normalmente temáticas. O ponto inicial da Graffiti foi justamente o fanzine. Entretanto, o objetivo era confeccionar uma publicação independente, de alta qualidade, algo que consequentemente teve alto custo. Logo após o lançamento, a equipe editorial tomou conhecimento de uma revista argentina chamada Fierro, que fez muito sucesso nos anos 80 e mantinha uma ideia muito semelhante à da Graffiti. Apesar da semelhança, o projeto da Graffiti não se originou da Fierro, mas da iniciativa do grupo em dar oportunidades para autores brasileiros não renomados na época e que teriam chance de serem conhecidos por meio da própria revista. A Graffiti já usou técnicas diversas em suas publicações, inclusive a litografia. Até a edição número quatro, a revista foi impressa com recursos próprios, o que era economicamente inviável de se manter. Para a viabilizar a publicação da Graffiti, o projeto foi inscrito na Lei de 9 Informação passada na entrevista de 15 de maio de 2012.

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Incentivo à Cultura, de modo que, com o mesmo aprovado, devia-se sair para captar recursos com patrocinadores, o que acarretou em complicações para a equipe. No entanto, posteriormente, foi aberto um fundo municipal considerando que todos os projetos culturais de cunho social que fossem aprovados teriam direito a uma quantia para sua viabilização. Por intermédio desse fundo, a Graffiti pôde publicar a maior parte de suas revistas. Em situações em que o projeto não era aprovado, sua impressão era totalmente feita com recursos próprios. A publicação da Graffiti Especial FIQ foi uma ideia inovadora da equipe. A proposta era que se produzisse a revista durante os quatro dias do Festival Internacional de Quadrinhos de 2011. Para participar dessa produção foram convidados muitos autores presentes no evento. Além disso, vários quadrinistas tomaram a iniciativa e se juntaram ao estande. Com recursos gráficos de impressão, o festival disponibilizou ao estande da Graffiti máquinas de xerox, de escrever, mimeógrafo, silk, máquina de datilografar, entre outras técnicas para produção imediata da revista (FIG. 3).

FIGURA 3: Capa da Graffiti FIQ! 2011 Fonte: Blog oficial da revista Graffiti10.

Com o grande sucesso e a repercussão da revista no mercado, veio a oportunidade de se lançar um álbuns dos autores. A partir daí, surgiu a inciativa da Graffiti 100% Quadrinhos (FIG. 4-8), que era basicamente uma edição de luxo de um autor específico que se destacou com a influência da Graffiti. Foram lançados cinco álbuns Graffiti 100% Quadrinhos, sendo o primeiro de autoria dos próprios Pietro Bagnariol e Fabiano Barroso, seguido de trabalhos de Luciano Irrthum, Guazzelli, Guga Schultze e Alves, concluindo assim os cinco álbuns de luxo, a coletânea de quadrinhos desses artistas. Além desses autores, grandes nomes de destaque mineiro que ainda não produziram o álbum 10 Disponível em: http://<graffiti76.blogspot.com.br>. Acesso em: 6 jun. 2012).

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especial da Graffiti são Marcelo Lélis e Sílvia Amélia, que também cresceram com a oportunidade dada pela revista. De acordo com Fabiano Barroso, editor da Graffiti, inicialmente a revista tinha a proposta de ser um “fanzine de luxo”. No decorrer do tempo, percebem que os leitores estavam gostando de histórias que tivessem continuidade e então criaram a Graffiti 100%.

FIG. 4: Capa de A Rua de lá, de Evandro Alves, 2012. FIG. 5: Capa de Saída 3, de Guga Schultze, 2010. FIG. 6: Capa de A Comadre do Zé, de Luciano Irrthum, 2009. FIG. 7: Capa de O Relógio Insano, de Eloar Guazzelli, 2007. FIG. 8: Capa de Um dia uma morte, de Fabiano Barroso e Piero Bagnarol, 2007. Fonte: Blog oficial da Revista Graffiti.11

Premiada por seis vezes na categoria de melhor revista na premiação HQ MIX12, que elege os melhores profissionais e títulos do segmento de quadrinhos do ano, a Graffiti 76% Quadrinhos chega à maturidade em 2012, ano em que completa seu aniversário de dezessete anos de publicações, vinte e quatro revistas e cinco álbuns (FIG. 4-8). Alguns exemplos de edições premiadas são as revistas de número quatro e cinco. A Graffiti número 4 (FIG.13) foi agraciada com o Troféu HQ Mix de 11 Disponível em: <http://graffiti76.blogspot.com.br/> Acesso em: 4 de junho de 2012. 12 Premiação HQMix. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1106466-trofeu-hqmix-divulga-vencedores-do-premio.shtml>. Acesso em: 4 jun. 2012.

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melhor projeto gráfico, que contou com a participação dos artistas: Fernando Rabelo, Guga Schultze, Luciano Irthum, Angelo Abu, Bellini, Valf, Leo Muniz, Fabiano Barroso, Gilberto de Abreu, Alessandro Correia, Piero Bagnariol, Sílvia Amélia e Binho e entrevistas com José Muñoz e Arrigo Barnabé. A Graffiti 5 (FIG.14), vencedora de dois troféus HQMix - categorias melhor projeto gráfico e melhor revista mix -, apresenta em seu repertório os artistas: Vimal, Alexandre, Piero, Valf, Luciano Irthum, Luiz Gê, Paulo Barbosa, Fabiano e Cau Gomez, Quinho, Guga Shutze, Ed, Gilberto de Abreu.

OLHARES: PRODUÇÃO GRÁFICA DA REVISTA A partir das informações coletadas e do contato com o autor da Graffiti Fabiano Barroso, foi proposta uma análise gráfica, também conhecida como análise técnica, do projeto da revista. Essa análise consiste no estudo dos aspectos de editorial, layout e processos de impressão. Todas as informações pertinentes para o estudo dos elementos editoriais estão apresentadas em tópicos, trazendo imagens exemplificativas e demonstrativas. Após analisar as vinte e quatro edições da revista (a primeira publicada em 1995 e a última em 2011), incluindo suas edições especiais e pontuais, foi possível perceber a grande diversidade de temas como norteadores dos projetos gráficos. Mas, apesar dessa diversidade temática, a Graffiti preserva seu conceito básico, a arte experimental e independente. A fim de manter esse conceito, os autores procuram construir projetos estruturados, principalmente, na variedade de papéis, processos de impressão e layouts de páginas editoriais diferenciados. Segundo Barroso, os editores têm o objetivo de “variar e ousar sempre”, experimentar diversas maneiras de se fazer um projeto inovador. A Graffiti já foi publicada em diversos tipos de papel, como couché, seda, craft, papel jornal, apergaminhado, que são materiais de diferentes cores, texturas, transparências e gramaturas. Na maioria das edições, a revista se pautou em um layout de página editorial livre, respeitando as margens e as diagramações dos trabalhos de cada artista, uma vez que têm características próprias, que podem divergir de acordo com o traço e estilo de desenho. As capas (FIG. 9-32) da Graffiti são, em sua maioria, fotos ou ilustrações que resumem o tema proposto pela edição. Em alguns momentos, também, podem ser recortes de quadrinhos ou ilustrações publicados no interior da revista e selecionados pelos editores para tornar a capa atrativa e manter a coerência com o tema. As ilustrações de capa podem ser preparadas por autores convidados ou até mesmo por artistas voluntários.

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FIGURAS 9-32: Capas das revistas Graffiti 76% Quadrinhos números 0 a 23. Fonte: Revista Graffiti 76% Quadrinhos.

Após análise geral do perfil gráfico das revistas, a edição de número 20 (FIG. 29) foi selecionada para nossa pesquisa. Especificamente pelo aspecto experimental e exemplificativo do conceito geral da Graffiti, foi escolhida como objeto de estudo, a fim de se obter uma investigação mais abrangente a respeito de seus elementos editoriais. A edição teve a ilustradora Maartje Schalkx como responsável pela capa (FIG. 29 e 32) e contracapa (FIG. 33), tendo ainda participado com uma publicação interna. Como visto anteriormente, as capas da Graffiti, em geral, são ilustrações ou fotos que sintetizam

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o tema proposto. Essa edição tem um foco na sensualidade e na mulher. Assim, na capa há uma ilustração voluptuosa que resume, em parte, o conteúdo da revista. A logo (FIG. 29) Graffiti 76% quadrinhos permaneceu em sua posição institucional, não sofrendo nenhuma alteração de tamanho ou forma e mantendo a margem de respiro de um centímetro. Percebe-se também o uso da cor vermelha para o logotipo em todas as letras, diferentemente das outras edições, com o objetivo de reforçar a ideia geral daquela edição. O vermelho é uma cor que se destaca, é muito viva e representa, semioticamente, a paixão; é considerada uma cor quente e estimulante. Pode ser relacionada ao poder e/ou violência, além de simbolizar o corpo, o desejo, o amor e o sentimento.

FIG. 33-34: Capa e contracapa da revista Graffiti 76% Quadrinhos n. 20. Fonte: Blog oficial da revista Graffiti13. A grelha divide a página em blocos de espaços ou unidades. Estas unidades atuam como orientação para colocação do texto, das imagens e dos títulos no layout. A grelha ajuda muito a dispor as coisas numa ordem lógica e é uma ferramenta fundamental quando uma equipe de designers trabalha em conjunto num projeto (DABNER, 2003, p. 30).

Com relação ao grid, ou grelha, o número de unidades depende da complexidade do material com que o designer trabalha. Para Dabner (2003, p. 30), “quanto mais complexo for o conteúdo, tanto mais versátil a grelha tem de ser.” Na edição 20, a grelha, ou grid, permaneceu com seu aspecto despojado e absolvido de regras, uma vez que segue a diagramação de cada ilustração e HQ. Percebe-se a ausência de margens e sangrias em alguns pontos, explicitando o aspecto experimental e artístico da publicação. 13 Disponível em: <http://graffiti76.blogspot.com.br/> Acesso em: 4 jun. 2012.

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FIGURAS 35-39: Páginas internas da revista Graffiti edição 20. Fonte: Revista Graffiti 76% Quadrinhos - ed. 20, p. 3, 6, 18, 26, 49, ano 2009.

Devido ao fato de a Graffiti ser uma revista empírica e, em sua maior parte, ilustrativa, ela não contém um exercício muito amplo de tipografia. Geralmente, os tipos utilizados nas histórias em quadrinhos são escolhidos pelos próprios quadrinistas, sem interferência dos editores. Para o índice, legendas e matérias jornalísticas, a tipografia é determinada de acordo com o tema da edição e a coerência com a matéria, ilustração ou história em quadrinhos a que se refere. Na edição 20, a tipografia predominante é a Helvética e suas variações, presentes no índice (FIG. 39), no detalhamento técnico, nas notas e na inscrição do site localizado no verso da revista. A Helvética, além de ter boa legibilidade, é de fácil leitura; trata-se de uma tipografia neutra que não cria tensão ao ser utilizada em conjunto com imagens. Dessa forma, o tema da edição não é prejudicado e sua ideia geral é preservada.

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FIGURAS 40-42: Páginas internas da revista Graffiti edição 20. Fonte: Revista Graffiti 76% Quadrinhos, ed. 20, p. 6, 7, 29, ano 2009.

A Graffiti tem o formato 21 x 28 cm e explora sua verticalidade (FIG. 40-42) na maioria de seus projetos. Entretanto, com o objetivo de tornar o projeto gráfico mais atraente, pontualmente os editores estudam possibilidades horizontais (FIG. 44-45) por meio de trabalhos de diversos artistas. Na Graffiti n. 20 (FIG. 33-34), essas possibilidades estão explicitadas nas páginas internas (FIG. 4345) da revista, incluindo a capa (FIG. 33).

FIGURAS 43-45: Páginas internas da revista Graffiti edição 20. Fonte: Revista Graffiti 76% Quadrinhos, edição 20, p. 2, 28, 44, ano 2009.

A escolha imagética também pode ser referenciada. Frequentemente, a revista seleciona artistas de estilos variados. Porém, devido ao seu caráter de experimentação, a Graffiti apresenta um estilo visual mais underground9 devido à predominância do preto e branco. Dessa maneira, com o propósito de manter o tema “sensualidade e mulher”, a revista número 20 contou com uma seleção de trabalhos mais coloridos (FIG. 38,45-47), com grafismos e traços delicados e que também explorassem um aspecto menos underground do estilo preto e branco (FIG. 35-38, 43-44, 49-52), mesmo tendo diversas formas de tratar a mulher, dos traços ao estilo, do conteúdo à fantasia. A equipe consegue brincar com 9 “Underground (‘subterrâneo’, em inglês) é uma expressão usada para designar um ambiente cultural que foge dos padrões comerciais, dos modismos e que está fora da mídia. Também conhecida como Cultura Underground ou Movimento Underground, para designar toda produção cultural com essas características, ou Cena Underground, usada para nomear a produção de cultura underground em um determinado período e local. A Cultura Underground pode estar relacionada à produção musical, às artes plásticas, à literatura, ou a qualquer forma de expressão artística da cultura urbana contemporânea.” Fonte: <http://www.associatepublisher.com/e/u/un/underground_culture. htm>. Acesso em: 29 maio 2012.

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manequins (FIG. 50-51) sem afrontar a mulher com excesso de peso; de forma espontânea, associam essas mulheres a brincadeiras ou mesmo ao desejo e à ilusão (FIG. 47, 49 e 50).

FIGURA 46-52: Páginas da revista Graffiti edição 20. Fonte: Revista Graffiti 76% Quadrinhos, ed. 20, p. 36, 53, 35, 15, encartes 1, 3, 55, ano 2009.

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Em relação ao processo de produção, a maioria das edições foi publicada em papel couché (FIG. 39, 45-48), exceto algumas publicações internas que variam de acordo com a edição, como, por exemplo, as figuras de encarte da revista n. 20 (FIG. 50-51). Podem-se citar algumas capas em que os editores ousaram ao utilizar suportes bem diferenciados, mas sempre utilizando gramaturas entre 115 g/m² e 200 g/m². As edições número sete (FIG. 17), produzida com papel craft, número 13 (FIG. 23), com papel apergaminhado e a edição aqui estudada, número 20 (FIG. 30 e 33), também com papel apergaminhado. Além da capa diferenciada, a Graffiti n. 20 foi rodada, em sua parte interna, em papel apergaminhado 90 g/m² e 250 g/m², couché brilho 90 g/m² e papel jornal 45g/m². O tipo de impressão usada na revista foi o offset.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se perceber que os quadrinhos nacionais, ao longo dos anos, sofreram profunda transformação. A revista Graffiti inaugurou um novo modo de fazer quadrinhos independentes. Anteriormente, existiam apenas duas formas de publicar quadrinhos - ou como fanzine ou industrialmente. Com o lançamento da Graffiti, surgiu um novo tipo de publicação com caráter inovador; seu processo ainda é totalmente amador, mesmo contando com algumas modificações tecnológicas. No entanto, o resultado tem qualidade profissional. Hoje, esse segmento de quadrinhos criado pela Graffiti é inspiração por todo o Brasil, tanto no projeto de composição e publicação da revista quanto sua distribuição lenta e setorizada. O quadrinho independente vem evoluindo muito ao longo dessas quatro décadas de conquistas, de modo que, por meio de seus elementos de técnica, divulgação, projeto gráfico e distribuição, muito se aproxima dos quadrinhos profissionais. A revista Graffiti se adapta às mudanças culturais e sociais, um dos fatores que garante sua presença no mercado. Em sua maior parte, as revistas em quadrinhos ainda utilizam poucos aparatos tecnológicos, exceto o fato de serem divulgadas e comercializadas por meio eletrônico ou mesmo produzidas em computadores, porém sem a utilização de programas e softwares avançados. Os avanços tecnológicos movimentam o mercado dos quadrinistas ainda de forma tímida e lenta. Devese considerar também o pouco investimento de empresas e pesquisadores nesse ramo, o que prejudica o avanço desse mercado.

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TÉCNICAS DE TRAÇOS E APLICAÇÕES DAS CORES: INFLUÊNCIA E ESTILO NOS QUADRINHOS Eliane Meire Soares Raslan Lucas Marques Lomasso Costa Resumo A pesquisa analisa o uso da aquarela nos trabalhos do quadrinista e ilustrador mineiro Marcelo Lelis. A aquarela, conhecida técnica milenar e muito difundida no Brasil, apresenta características de uso, cores e formas bem variadas e com aplicações diversas. As ilustrações de Marcelo Lelis contêm traços muito característicos e apresentam também um tratamento em aquarela bem diferenciado. Buscando entender o processo de desenvolvimento da técnica e do estilo desenvolvido pelo artista – a forma com que consegue chegar aos resultados em seus trabalhos e traçar relações entre o estilo academicamente ensinado e o autodidatismo – a pesquisa tenta ampliar o entendimento sobre a técnica da aquarela, sua história, uso e representatividade na ilustração de Marcelo Lelis. Ao mesmo tempo, arrisca conhecer algumas de suas diferentes aplicações, buscando relacioná-las ao estilo do artista. Associa o estilo de Lelis com o estilo regional e as suas influências, visando também a representatividade de suas ilustrações no contexto mundial, onde têm mais destaque. Palavras-chave: aquarela; histórias em quadrinhos mineiras; ilustrador; imagem; Marcelo Lelis.

Abstract This case study analyzes the use of watercolor in the work of the cartoonist and illustrator Marcelo Lelis. The watercolor, known ancient technique is widespread in Brazil, with usage characteristics, colors and shapes and with varied and diverse applications. The illustrations by Marcelo Lelis have a very characteristic trait and also has a well-differentiated treatment in watercolor. In order to understand the process of development of technique and style developed by the artist - how he manages to get the results in their work and draw relationships between the style taught academically and self-taught - the search then tries to expand the understanding of the watercolor technique, history, use, representation in the illustration from Marcelo Lelis. While we know some risks of its different applications, seeking to relate the artist’s style. Associated with the style of Lelis, the regional style and its influences, also aiming at the representation of your illustrations in the global context, where they have greater prominence. Keywords: watercolor; comics; illustrator; image; Marcelo Lelis.

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INTRODUÇÃO As Histórias em Quadrinhos (HQ) tiveram seu ápice de criação no século XIX na Europa. Atualmente, são vistas como um meio de comunicação de massa muito eficaz na transmissão de informação e ideias, além de terem importância social. As criações nas HQs podem ser consideradas uma forma de retratar a sociedade. Na década de 1960, por exemplo, nos Estados Unidos, surgiu o movimento da contracultura e também a criação do estilo underground que, de acordo com Luyten (1989), tratava de temas relacionados com a contracultura, as críticas sociais, o uso de drogas etc. Esse veículo de informação tem grande importância na sociedade. Além da relevância dos temas tratados nas histórias, há também uma questão artística envolvida. As ilustrações nos quadrinhos relacionam-se com o estilo artístico vigente do período, difundindo assim a arte para a população. Luyten (1989) traz como exemplo os anos 1920, época na qual os artistas utilizavam traços geométricos, usados também na arquitetura, na produção de mobiliários e em cartazes. Tal período ficou conhecido como art déco. Com os quadrinhos não foi diferente; muitos artistas utilizavam linhas geometrizadas em suas ilustrações. As influências desse movimento também estiveram presentes na vestimenta de personagens e na composição dos cenários. O estudo sobre quadrinhos tem grande relevância para a atualidade, principalmente com relação às HQs na educação. Alguns estudos, como o de Gralik (2007), abordam a temática do estudo artístico nas histórias em quadrinhos mostrando também que se pode explorar a questão da educação infantil utilizando essa forma de arte, uma vez que a criança inicia seu processo de alfabetização ao ler uma revista, que trazem textos mais curtos e de fácil entendimento. Ao mesmo tempo, nos mostra que a parte artística dos quadrinhos é tão importante quanto a temática do enredo e dos personagens, já que o traço utilizado nas ilustrações pode indicar o que a revista trará na narrativa.

AQUARELA: HISTÓRIA E USO Este artigo traz uma visão sobre as artes gráficas nos quadrinhos, com uma abordagem sobre as ilustrações e o foco voltado para Marcelo Lelis, ilustrador mineiro que desenvolve trabalho em HQs, utilizando predominantemente a aquarela em seus desenhos. Buscamos, a partir disso, entender também sobre a técnica da aquarela, suas aplicações e seu desenvolvimento ao longo da história até a atualidade, para que tracemos o perfil do artista, os resultados que obtém nas ilustrações, as relações com linguagem gráfica e as significações envolvidas, que podem também estarem ligadas à própria história narrada. A atual preocupação em desenvolver esse estudo é a tentativa de ampliar o conhecimento sobre os artistas no cenário mineiro de ilustrações. Dentro dessa ideia, procuramos também ampliar o conhecimento histórico do desenvolvimento da técnica da aquarela, suas aplicações ao longo da história e tentar fazer uma ligação dos estudos com a criação do artista. Percebemos a técnica do uso da aquarela na capa (FIG. 1) da revista abaixo:

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FIGURA 1: Capa da revista Saino a Percurá - ôtra vez Fonte: LELIS, 2007

De acordo com Rocha (1985), a aquarela é uma técnica de pintura em que se misturam pigmentos de tinta colorida com aglutinante e, também, técnica em que se aplica essa tinta diluída em água. A história do surgimento dessa forma de pintura está relacionada ao início da civilização. De acordo com Ávila (2005, p. 9) “[...] a aquarela, como a conhecemos, deve ter suas origens ligadas à história do papel”. Logo, a aquarela é uma técnica muito antiga; suas aplicações no período em que surgiu provavelmente se diferenciam dos dias atuais, assim como os materiais usados na diluição do pigmento e nas composições químicas da tinta. O uso dessa técnica teve início na Idade Média, quando foi aplicada em ilustrações de livros manuscritos desse período. Desde a baixa Idade Média até o Renascimento, este foi o procedimento mais utilizado. As ilustrações chamadas miniaturas ou iluminuras, que acompanhavam os textos dos manuscritos, eram pintadas com aquarela misturada com pigmento branco e chumbo (ÁVILA, p. 7, 2005).

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As iluminuras consistiam em ilustrações e eram feitas ao lado dos textos acompanhando-os. Eram produzidas normalmente em livros e serviam como ornamentação; em muitos casos, também tinham a função de explicar visualmente o que abordava o texto. A tinta aplicada nessas ilustrações passava por misturas de outros materiais; nessa época, ainda se utilizava o chumbo – um metal pesado – na composição do pigmento. Hoje em dia as tintas são fabricadas com pigmentos em pó e goma-arábica. Nota-se que a aquarela aplicada em ilustrações teve como origem o território europeu. No Brasil, porém, ela chegou no período da exploração do ouro, sendo utilizada para ilustrações, mas, diferentemente do que ocorreu na Europa, os tais desenhos tinham como propósito apenas adornar documentos e mapas da região do ouro, não cumprindo funções relacionadas à complemento da leitura. Vários documentos utilizados na Capitania de Minas foram ilustrados em aquarela, e a temática usada para as ilustrações passava por elementos figurativos presentes na região. Os desenhos também serviam para construir uma imagem do novo mundo explorado. No entanto, a aquarela vinha sendo, ao mesmo tempo, utilizada para estudos, feitos por meio da cópia de telas de pintores renascentistas - esse método era utilizado para aplicação da aquarela no meio acadêmico. Segundo Ávila (2005), muitas das cópias eram feitas utilizando-se material aquoso, com o propósito de treinar a percepção dos alunos. Assim, ao longo do tempo foram sendo descobertas várias possibilidades de aplicação da tinta. Alguns pintores notaram que as transparências causadas pelo pigmento diluído em água lhes proporcionavam mais fluidez no resultado final e, ao mesmo tempo, era rápidas de se executar. Passaram então a testar a aquarela de modos diferentes, motivando a exploração de novas maneiras de utilizá-la. A evolução do papel também foi uma variável que colaborou para o desenvolvimento dessa forma de pintar; com o tempo, foram criados métodos de produção e papéis melhores. Na Inglaterra, James Whatman, de acordo com Ávila (2005), foi um dos grandes nomes que levou ao amadurecimento do uso da tinta. No século XIX, alguns pintores impressionistas produziram obras em aquarela. Artistas como Renoir, Bodin e Cezanne utilizaram-na também como estudos e, posteriormente, como material para criação das telas ao ar livre. Ávila (2005) ainda afirma que a temática das obras sofreu mudanças nas mãos de tais pintores, que buscavam representar ambientes ao ar livre, em uma tentativa de escapar da produção exposta nas galerias da época. No mesmo período, no Brasil, novos temas foram surgindo, mas no início do século XIX havia ainda uma relação com a produção europeia, sendo comum a representação de paisagens. Com o correr do século, os artistas passaram a explorar melhor a criação com a aquarela e buscaram temas relacionados à mitologia, aos retratos e ao cotidiano nacionalista, mostrando o início da evolução e da abertura para temas mais diversos dentro da produção criativa do país. No mesmo século, alguns pintores começaram a utilizar a tinta para criação de esboços para pinturas em tela. Para Ávila (2005), todos os gêneros de pintura migraram da Europa para o Brasil e, muitas vezes, era feito primeiro a aplicação da aquarela, como uma espécie de esboço, para depois usarem a tinta a óleo. A razão para tal é a combinação de quantidade maior de água sobre a de pigmento, o que gera um efeito transparente, fluido na tinta e permite ao artista adiciona-lo à tela de forma mais rápida; assim, o esboço interfere menos no resultado final. A aquarela passou de esboço para pintura, do uso ilustrativo de imagens que complementam texto para o uso da representação de ambientes naturais, paisagens, pessoas e situações do cotidiano e

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também esteve relacionada a estudos acadêmicos. Atualmente, a técnica vem sendo aplicada para várias outras situações e, voltando-se novamente ao uso ilustrativo, a aquarela se mostra uma técnica muito bem aplicável, por ser rápida de trabalhar e proporcionar bons resultados. Nos quadrinhos – que será o foco da análise da técnica – ela tem também um propósito, além de questões sobre opções de cores, que é revelar significações e relação com a linguagem das HQs.

MARCELO LELIS E OS TRAÇOS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Marcelo Lelis é quadrinista nascido em Montes Claros, Minas Gerais, onde também teve sua primeira experiência com ilustração. Começou ilustrando para um jornal local, com trabalhos feitos em nanquim. Posteriormente, passou a usar o lápis de cor; em seguida, o nanquim colorido e, por fim, a aquarela. O artista não cursou escolas de arte, mas desenvolveu sua própria técnica por meio da prática. Ao analisar o traço de Lelis, nota-se um estilo de representação gráfica que se aproxima do natural; os personagens, apesar de serem levemente caricaturados, apresentam atributos como proporção corporal e iluminação, que o afasta da classificação de traço fantasioso. Esse estilo de representação é conhecido como naturalista. Esse estilo, dentro do mundo das HQs, vem evoluindo desde o início do desenvolvimento das revistas; em determinadas épocas, os ilustradores utilizam tal forma de representação. Em alguns casos, esse recurso gráfico serviu para acompanhar um enredo que, muitas vezes, pela complexidade da narrativa, exigia que as ilustrações fossem mais detalhadas. Mattos (2009, p. 112) considera que “era evidente que essas primeiras ilustrações precisavam ser naturalistas, pois representavam o que era citado nos artigos.” No início do século XX, os traços das HQs tiveram como característica o estilo naturalista, com linhas grossas e uso de grandes áreas em preto. O estilo utilizado nessa época está relacionado também à evolução da tecnologia de impressão do período, como afirma Mattos (2009, p. 112): “trabalhos que precisavam resistir à reprodução simples e ao grosseiro papel-jornal vão tender para um traço mais grosso e grande áreas em negro.” Os quadrinhos, até aquela época, tratavam de temas humorísticos, mas ao longo do tempo as temáticas das histórias foram mudando, passando por fantasias, histórias mitológicas e ficção científica (LUYTEN, 1989). O estilo naturalista volta a aparecer na década de 1930, quando os quadrinhos passam por um período de grande desenvolvimento. O traço característico da época teve como referência o Neoclassicismo; as formas e fisionomias dos personagens passaram a ser mais realistas e os cenários apresentavam acabamentos melhorados. Ao longo da década, os ilustradores norteamericanos usaram referências greco-romanas nas ilustrações, com o propósito de tornar as ações mais dramáticas. Segundo Mattos (2009), o estilo dessa época pode ser considerado também uma reação conservadora de um grupo de autores de formação clássica. Assim, os primeiros quadrinhos não tinham balões de fala, mas legendas e texto de rodapé. É importante ressaltar também que, no período em questão, houve a valorização das aventuras fantasiosas, ficção científica, faroeste etc. Para Luyten (1989), ao final da década surgem também os heróis, como o Super-Homem. Nos anos de 1960, na Europa, o tema relacionado à ficção científica volta a ser tratado nos quadrinhos. Mattos (2009) afirma que o traço fantasia europeu – segundo sua classificação – surge

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então e tem como característica uma linha bem definida. Ao mesmo tempo, percebe-se o retorno do estilo naturalista, porém dessa vez ele é mais acadêmico e muito técnico, os cenários são bem definidos e as poucas sombras são feitas com hachuras finas.

ANÁLISE DOS TRAÇOS COM UMBERTO ECO Apesar das diferenças dos movimentos artísticos e das ilustrações dos quadrinhos ao longo da história, vemos que os desenhos são representações do real, e entendemos os traços como uma linguagem à parte dentro das HQs. Forma-se, assim, um conjunto com a linguagem escrita. O estilo da narrativa exige ilustrações que a represente de modo específico e, ao mesmo tempo, tenha relação com a forma, a complexidade e a cor das ilustrações. A linguagem visual dos quadrinhos apresenta uma característica icônica; são representações ou esquemas que possuem alguns elementos gráficos que buscam semelhança com o que se tem no real. Buscamos o autor Umberto Eco (1971), que contribui nessa análise, ao afirmar que: O signo icônico pode, portanto, possuir, entre as propriedades do objeto, as ópticas (visíveis), as ontológicas (pressupostas) e as convencionadas (modelizadas, sabidamente inexistentes, mas eficazmente denotantes. Exemplo: os raios do sol em forma de vareta). Um esquema gráfico produz as propriedades relacionais de um esquema mental (ECO, 1971, p. 107).

Nota-se que nos quadrinhos os ilustradores buscam representar propriedades convencionadas e óticas para que o leitor familiarizado com o estilo consiga perceber o que buscou ser representado. No entanto, o artista nem sempre recorre à representação gráfica baseada nas propriedades óticas, por isso, utiliza algumas referências convencionadas que não se baseiam em naturais ou realistas, mas no senso comum. Trouxemos um exemplo dado por Eco (1971), que resumidamente diz que ao se desenhar o sol, utilizamos um círculo rodeado de riscos que representam sua coroa luminosa. Sabe-se no mundo cientifico, porém, que a representação solar passa longe de uma circunferência rodeada de riscos. O que normalmente ocorre em uma representação gráfica é reduzir a quantidade de informação do objeto, selecionando o que seria mais pertinente representar, criando uma imagem estilizada. Assim, a causa da estilização dos traços nos quadrinhos é feita porque as expressões estilizadas são mais fáceis de interpretar e trazem ao leitor entendimento mais rápido do que se está passando, o que não ocorreria se fossem muito ricas em detalhes. A percepção do leitor poderia ser prejudicada por complexos elementos nos detalhes de um rosto realista.

AQUARELA COM MARCELO LELIS

As ilustrações de Marcelo Lelis têm semelhança com o traço europeu; o estilo que o artista imprime, somado às características próprias no uso das linhas, cores e acabamentos tem relação próxima ao que os ilustradores europeus aplicavam em seus quadrinhos. Buscando o estudo de Mattos (2009), podemos confirmar a presença dos atributos em comum ao “estilo linha clara europeu” de Lelis devido à linha bem definida, ao estilo naturalista e, em algumas ilustrações, ao uso da hachura, semelhante a de alguns artistas europeus. Porém, Lelis afirma que suas influências de estilo não estão ligadas a qualquer artista ou movimento artístico, mas à bagagem de sua própria vivência, somada a todo tipo de referência visual

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considerada influente em seu trabalho (informação verbal)1. A escolha do material e a bagagem do artista é o que torna seu trabalho único.

FIG. 2 e 3: Páginas da revista Saino a Percurá - ôtra vez. Fonte: LELIS, 2007, p. 7.

Lelis utiliza em sua linguagem gráfica o mesmo recurso que usamos na linguagem verbal. No momento em que construímos uma frase, impomos na verbalização certas entonações que implicam determinados significados. Essas características, tratadas por Eco (1971), são como impressões digitais, atributos únicos que constroem a identidade na linguagem. A aquarela (FIG. 2 e 3) é quase uma assinatura nos trabalhos de Lelis; vê-se em sua arte a maneira como trabalha a pincelada, a combinação das cores e a própria paleta escolhida como características da identidade do artista. Ao analisar seus quadrinhos, percebe-se que o artista utiliza recursos referentes à aquarela (FIG. 2 e 3), o que os torna diferenciados. Lelis aplica a tinta mais seca em suas ilustrações, diferenciandose de muitos artistas, que a utilizam na forma aguada, ou seja, fluida no papel. A aquarela aguada, para Rocha (1985), é uma forma tradicional de se utilizar a tinta, obtida por meio da mistura do pigmento com maior proporção de água, garantindo a transparência do material no momento de passá-la ao papel; a pincelada também é feita de maneira contínua, conseguindo um movimento de fluidez. Essa característica leve, fluídica e sutil da tinta utilizada nos quadrinhos se torna relevante: [...] igualmente muito usual na literatura infantil como na ilustração de textos ou forma de se contar uma história non sense ou não, com sentido pedagógico em livros 1 Entrevista concedida a um dos autores, Lucas Marques Lomasso Costa, no dia 5 de maio de 2012 , no local de trabalho do cartunista Lelis, na redação do jornal Estado de Minas, em Belo Horizonte, MG.

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escolares bastante apropriados pelos jogos das manchas, a luminosidade, a poética sensível das transparências e a opacidade que despertam a criatividade e a analogia visual (ÁVILA, 2005, p. 22).

Outro fator presente na mistura aguada é a mancha, provocada pela tinta ao secar sobre o papel; em muitos casos ela é feita propositalmente, estimulando a imaginação do leitor. O que Lelis faz é utilizar a tinta onde trata a mistura de forma mais uniforme. Com a proporção de água e tinta equilibrada, a pincelada é dada com o pincel mais seco, trabalhando a combinação de vários tons de um mesmo matiz. Uma obra em aquarela funciona bem se é bem trabalhado o jogo de luz e sombra. A luz é alcançada utilizando-se o branco do papel sem adição de tinta branca, fazendo com que a pintura ou ilustração ganhe vida: As áreas brancas desempenham um papel muito positivo - elas têm força visual igual ou superior a das áreas escuras. Enquanto as escuras absorvem a luz e parecem contrair-se, as áreas claras refletem-na e criam impressão de expansão (ROCHA, 1985, p. 34).

Percebemos nas ilustrações de Lelis a utilização do branco do papel para conseguir brilhos e pontos luminosos. Esses pontos de luz são importantes, pois, em conjunto com as regiões mais escuras, gera contraste na composição, o que, de acordo com Rocha (1985), guia nosso olhar ao longo da página. Outro aspecto importante no trabalho do artista são as tonalidades das cores. Para Lelis, o uso dos tons tem ligação direta com sua origem – uma cidade do interior do estado de Minas Gerais – o que o levou a utilizar tonalidades que se aproximam das de terra. Ao mesmo tempo, são escolhidas pensando também na digitalização, uma vez que ao passar o desenho do papel para o meio digital, em algumas ocasiões, ocorre a perda de certas cores ou uma cor com alto índice de saturação acaba por adquirir brilho muito intenso, fazendo com que as demais colorações fiquem prejudicadas. Sua paleta de cores passa por matizes que não são puros, mantendo sempre cores com saturação baixa. Lelis também utiliza um tom de cinza que ajuda a amenizar o restante das cores. A forma com que executa a pincelada é outro fator particular que faz seu trabalho ser único. As pinceladas são muito marcadas, e a forma com que pinta destaca as manchas feitas pela passagem do pincel. Percebemos também que as hachuras de seu trabalho são feitas de uma forma irregular, muitas vezes provocando ruído na imagem, diferenciado-se bastante da hachura acadêmica. O modo como Lelis faz uso da aquarela é diferenciado, misturando a hachura com a aplicação da tinta. Podemos notar a questão da perspectiva explorada nos quadrinhos; alguns ângulos e pontos de vista como enquadramento retratado nas ilustrações são inusitados. Muitos dos quadrinhos têm enquadramentos que transmitem a ideia de universo “lúdico” ou mesmo “surreal”. O uso das manchas, um atributo da aquarela, é valorizado por Lelis em suas ilustrações. Diferentemente dos pintores de obras artísticas, que procuram manter as passadas do pincel de forma mais homogênea na tela, Lelis utiliza as manchas em qualidades próximas à hachura, fazendo muitas marcas, de formas e direções diferentes. Lelis utiliza em sua paleta de cores, em sua maioria, matizes quentes como vermelho, amarelo e laranja. Para Farina (1982), tais cores estão relacionadas à sensação de dinamismo, reforçada pelo enquadramento que o artista faz em cada momento da ilustração, somado também ao fato de a narrativa ser feita em rimas, combinando o ritmo da leitura do texto com o das ilustrações. A aquarela tem uma representatividade simbólica no contexto das HQs. A aquarela de Lelis, apesar de não possuir as qualidades de fluidez típicas de uma ilustração aquarelada, ainda mantém a característica da transparência, percebida principalmente nos objetos em segundo plano. Assim, podemos entender que os resultados alcançados dentro de sua obra são ilustrações voltadas para um público mais maduro, pela complexidade dos traços e a densidade das aquarelas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O campo da pesquisa em quadrinhos é muito amplo, e a abordagem deste estudo foi tentar verificar a visão artística do quadrinista Marcelo Lelis, evidenciando os elementos gráficos como parte dos quadrinhos que trazem em si um significado. A aquarela surge como elemento usado para o acabamento em cores em uma ilustração. No entanto, ela também traz em sua composição física – a mistura com água e pigmentos de cor – uma sensação que se relaciona diretamente com o leitor, provocando reações ao longo da leitura. Ao mesmo tempo, pelas qualidades de estilo contidas no traço e na pincelada, uma ilustração pode ser direcionada a determinado público. Tais elementos também carregam a identidade do ilustrador, contendo neles as características de estilo que cada um produz. As HQs, muito mais do que trazer narrativas de personagens, mantêm uma sintonia aproximando escritor e ilustrador com a história. Mostra duas versões narrativas de uma mesma história que se complementam e levam o leitor a explorar a capacidade imaginativa ao folhear as páginas de uma revista.

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REFERÊNCIAS ÁVILA, Cristina. Mário Bhering: a história da aquarela. Belo Horizonte: C/Arte, 2005. ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. FARINA, Modesto. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Edgard Blucher, 1982. GRALIK P., Thais. As histórias em quadrinhos no ensino das artes visuais na perspectiva dos estudos da cultura visual. 2007. 44 f. Dissertação (Pós-Graduação em Artes Visuais) - Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. LELIS, Marcelo. Saino a Percurá. São Paulo: Zarabatana Books, 2007. LUYTEN B. M., Sonia. Histórias em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: UCBC/Edições Paulinas, 1989. MATTOS, Gabriel de. Remontando os quadrinhos: histórias em quadrinhos, educação e regionalidade. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2009. ROCHA, Cássia; AMARANTE, Cristina. Curso de desenho e pintura. São Paulo: Editora Globo, 1985.

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LINGUAGEM E GÊNERO DOS QUADRINHOS Eliane Meire Soares Raslan Ivone Gomes da Silva Adalfan da Silva Bessa

Resumo Neste artigo buscou-se tratar gênero, narrativa e metáforas nos quadrinhos com base em diversos autores. Paulo Ramos trata de valores como gênero, temática, abordagem, características e elementos principais das histórias em quadrinhos e, ainda, com semelhanças e interseções entre quadrinhos e outros gêneros midiáticos. Gian Danton aborda valores voltados para a elaboração e o desenvolvimento da narrativa dos quadrinhos. Vitor Nicolau complementa o pensamento de Paulo Ramos com uma análise criteriosa do texto, mais precisamente da metáfora e das figuras de linguagem. Esses autores buscam o sentido e a linguagem dos quadrinhos por meio de suas visões particulares. Em determinados momentos, suas ideias se aproximam e têm relevâncias distintas no universo dos quadrinhos. Palavras-chave: linguagem; forma; metáfora; consumo de massa; gênero.

Abstract In this article we tried to define genre, narrative and metaphor in comics based on some authors as Paulo Ramos, who deals with values such as gender, thematic approach, characteristics and key elements of comics. He also works with similarities and intersections between comics and other media genres. Gian Danton discusses values related to the construction and the development of the narrative in comics. Vitor Nicolau complements the thought of Paulo Ramos with a careful review of the text in the comic, more precisely about metaphor and figures of speech. These authors seek the meaning and the language of comics through their particular views. At certain times their ideas are similar and show distinct relevances in this universe of comics. Keywords: language; form; metaphor; mass consumption; genre.

INTRODUÇÃO O que é linguagem? O conceito de linguagem é amplamente debatido e mesmo após muitos estudos ainda gera bastante discussão. É consenso que a linguagem, em seu sentido mais restrito, é particular aos seres humanos. Dessa forma, para entendê-la, é preciso compreender mais que o significado, o signo e o significante. É preciso enxergar o que há por trás dessas informações.

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Por isso, tal pergunta permite diversas conclusões; já que sua resposta é dinâmica, está sempre evoluindo e se modificado. O que é a linguagem dos quadrinhos? Essa é uma pergunta cuja resposta não conseguimos obter tão facilmente. Apesar de se restringir a um elemento principal, os próprios quadrinhos, essa pergunta se encontra sem resolução por falta de mais estudos. É notável que durante certo tempo o tema “quadrinhos” foi tratado com certo desdém no meio acadêmico. Mais que isso, a própria validade dos quadrinhos foi questionada e seus status de arte abnegado. Alguns autores arriscaram-se a resolver a questão e obtiveram grande sucesso. Mas ainda percebemos uma lacuna acerca do tema. No Brasil, durante muito tempo, foi negado aos quadrinhos o posto de estudo de caso. São poucos os autores que, antes dos anos 1990, abordaram o tema com alguma sobriedade. Esse súbito interesse pelas histórias em quadrinhos (HQs) surge, então, de uma carência anterior. A partir dos anos 2000 cresce consideravelmente, em termos de volume e qualidade, a produção acadêmica relacionada às HQs. Podemos destacar, com mais relevância, o trabalho de Paulo Ramos1, complementado por Vitor Nicolau2 e Gian Danton3. Para ficar apenas nesses autores, podemos traçar um panorama interessante da linguagem dos quadrinhos do ponto de vista de autores nacionais. A linguagem dos quadrinhos, para Lima, Messias e Oliveira (2012), é um conceito que pode ser entendido como o elemento-chave, uma interseção inerente a todas as publicações artísticas desse universo, já explorado pelo ser humano há bastante tempo. Na realidade, os quadrinhos se apropriam de ideias e conceitos universais das artes plásticas e visuais. Seu diferencial reside na aplicação de tais conceitos de uma forma peculiar, e seu início pode ser datado no século XIX. Como arte popular moderna, tal como se apresenta hoje, data de meados do século XX. Foi nas folhas de jornais que as tirinhas ajudaram a impulsionar o mercado dessa forma de arte. É bastante curioso, inclusive, o modo como rapidamente a indústria dos quadrinhos ascendeu, especificamente no mercado norte-americano. Em apenas um século, essa indústria passou por altos e baixos, reviravoltas que ajudaram a nona arte a atingir relativa maturidade. Por outro lado, trata-se de um mercado que ainda reside em certa marginalidade, não goza de estabilidade ou relevância econômica. Porém, como fonte de informação, os quadrinhos são muito ricos. A linguagem, e, por que não, a metalinguagem já foi bastante explorada e ainda assim parece não se limitar. Ao longo do século XX, período em que a nona arte alcançou a emancipação, diversos artistas de relevância exploram os potenciais de sua linguagem. É notável, como exemplo, a abordagem metafórica textual dada por Bill Watterson em sua obra Calvin e Haroldo. De forma análoga, Schultz, no clássico Peanuts, e Quino, com sua notável Mafalda, exploram ao máximo a linguagem textual dos quadrinhos. São autores que pendem para uma abordagem mais poética, diferenciada em relação ao texto. O próprio potencial dessa forma de arte parece expandir e embaralhar nossos conceitos de linguagem. Vivemos um momento interessante do ponto de vista da produção de quadrinhos nacionais. Nunca se produziu tanto! É preciso contextualizar a situação para entender o fenômeno. Após um hiato produtivo nos anos 1990, nos quais o país passou por diversas dificuldades financeiras e a indústria de quadrinhos, por uma crise criativa, a situação se inverteu. As facilidades advindas da prosperidade do país, o acesso a maior quantidade de obras, a facilidade de divulgação com as novas mídias permitiram que novos autores se lançassem no mercado, ao menos de forma independente. 1 Paulo Eduardo Ramos é graduado em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (2003) e em Letras pela PUC - SP (2003). É doutor em Língua Portuguesa pela USP (2007) e professor adjunto do Departamento de Letras da Unifesp. Tem pós-doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2009-11). Fonte: Revista Eletrônica da PUC-SP. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index. php/nexi/about/editorialTeamBio/3233> Acesso em: 15 jun. 2012 2 Vitor Feitosa Nicolau é publicitário pelo Instituto de Educação Superior da Paraíba, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPB (2011). Fonte: Currículo Lattes. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do> Acesso em: 07 jun. 2012. 3 Ivan Carlo Andrade de Oliveira (Gian Danton) é jornalista pela UFPA (1993) e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Amapá. Fonte: Blog Criando HQ. Disponível em: <http://criandohqs.blogspot. com.br/2012/12/o-prof-gian-danton-ensina-personagens.html> Acesso em: 17 dez. 2012.

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E essa cena independente cresce em relevância e produtividade; a partir dela espera-se que o mercado absorva as obras mais interessantes atingindo assim o grande público. Seguindo essa lógica, percebemos o quão importante é a crítica e o questionamento da produção nacional. Somente compreendendo nossa própria arte é que podemos entender os reflexos de nossa produção, dominar nosso próprio mercado e criar obras que cada vez mais contribuam para nosso próprio crescimento. Tendo em vista que já fomos incomensuravelmente bombardeados com obras de artistas do exterior, ficamos, por certo período, sem produção nacional em bancas. Por consequência, nossas próprias obras ficaram desconhecidas do público geral, perderam seu valor ao longo dos anos, mas não sua relevância para a construção de uma identidade artística nacional. Assim, resgatando a memória de nossas obras e aproveitando o gancho momentâneo de boom criativo, podemos escrever um novo capítulo em nossa história. A linguagem dos quadrinhos é a ferramenta que catalisa esse processo. Se pudermos compreendê-la, certamente ganharemos muito ao produzir nossas obras. Pensando além, como propõem os autores Gonçalo Júnior, Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro4, essa linguagem pode ser explorada didaticamente. A grande vertente atual dos quadrinhos é seu uso voltado para o ensino nas escolas. O caráter dinâmico, de ritmo agradável e de forte apelo visual torna a nona arte arrebatadora para os novos leitores. Sua aparente simplicidade revela uma enorme complexidade de significados que é assimilada de forma divertida pelo leitor. Como utilizar essa característica em prol da formação de leitores, de sua consciência crítica e transformá-la em um convite à inserção da cultura é o que atrai pesquisadores e professores. O homem tem na imagem uma das mais antigas e relevantes configurações de linguagem e comunicação. Essa configuração também está presente nas histórias em quadrinhos e se relaciona com o contexto social e mercadológico atual. Como meio de comunicação de massa, as histórias em quadrinhos apresentam boa penetração popular, em especial com o público jovem.

A LINGUAGEM E O GÊNERO DOS QUADRINHOS Entender a linguagem dos quadrinhos é, de certa forma, uma tarefa complexa. Daí a necessidade de buscar em três autores três abordagens diferentes de concepção; em certos pontos elas se distanciam e em outros se aproximam. Vitor Nicolau e Gian Danton serão abordados na tentativa de apresentar um universo maior de linguagem, que possa acrescentar opiniões e ideias ao pensamento do autor em foco, Paulo Ramos, as visões e o conteúdo não abordados por ele. Não é possível trabalhar com o pensamento de um autor sem deixar de considerar os teóricos que fundamentaram seu pensamento. Tampouco se poderia esquecer de contextualizar suas ideias. Paulo Ramos (2009a) trata da leitura dos quadrinhos sob diversos pontos de vista. De seu material publicado podemos perceber uma preocupação essencial que justifica compreender a linguagem das HQs - a importância dos quadrinhos como formadora de consciência e caráter dos leitores. Portanto, o autor despende boa parte do tempo refletindo sobre o tema, apresentando e caracterizando os elementos narrativos dos quadrinhos para, então, questionar a aplicação dos conceitos e apontar novas possibilidades de uso, incluindo as salas de aula. Inicialmente Ramos (2009a), contextualiza os quadrinhos como gênero apresentando-nos uma situação bastante peculiar. Segundo o autor, baseado em suas próprias pesquisas, os meios de comunicação, mesmo os mais influentes, desconhecem ou não chegam a um consenso acerca dos gêneros dos quadrinhos. Até mesmo autores de quadrinhos muitas vezes não detêm esse conhecimento. A descrição equivocada ou incompleta acerca do assunto apenas prejudica o leitor. 4 Os três autores participaram do encontro em São Paulo Tratando quadrinhos. Disponível em: <http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br/ noticia/arch2010-07-01_2010-07-31.html>. Acesso em: Acesso em: 03 jun. 2012.

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É comum encontrar confusão de denominação entre tiras, charges e cartuns. Uma interpretação errônea do que é a obra condiciona o leitor também a uma interpretação errada ou, no mínimo, causa-lhe estranheza. Sabendo disso, fica evidente a falta de estudo apropriado sobre o tema. É preciso entender, então, de que forma é possível classificar os gêneros dos quadrinhos e, para isso, é preciso entender o que é gênero. Ramos (2009a) busca Bakhtin5 (2000) para abordar as questões de gênero tanto literário quanto não literário. Para o autor, o gênero não é algo fixo; ele se molda de acordo com a situação discursiva. Mas um gênero se estabelece apenas quando consegue equilibrar seus pontos de fuga com as forças de reiteração. Também é na forma como esse equilíbrio se estabelece que se evidenciam algumas características comuns ao gênero, como estrutura composicional, tema e estilo. Buscando definir gênero, Ramos (2009b) se baseia em Maingueneau6 (2002), que afirma ocorrer no atual momento uma tendência de privilegiar o caráter relativo do gênero, já que, por ser flexível e variável, pode se adaptar, renovar e se multiplicar com mais facilidade. Ainda nessa mesma linha de pensamento, Maingueneau (2002) constata que há muitos outros elementos para se levar em consideração na definição de um gênero, tais como a finalidade, o local, o suporte e o momento em que ocorre. Portanto, para o autor, gênero é um acordo, pressuposto e não declarado que faz parte do jogo comunicativo. Ramos (2009b), ainda baseado em Maingueneau (2005), afirma que os rótulos de gênero influenciam também os aspectos formais, além dos aspectos interpretativos do texto. Pode-se dizer ainda que há diferentes níveis de rotulação, os próprios aos gêneros autorais e os que interferem na formatação do texto, caso dos hipergêneros. Essa interpretação lança um novo problema: distinguir as tipologias de gênero que vêm dos usuários das que são elaboradas por pesquisadores. É comum encontrar divergências de definição de gênero de uma obra, como quando não é possível afirmar se um livro é um paradidático ou uma história em quadrinhos. Entender os gêneros, o modo como funcionam num sistema e as circunstâncias nas quais é desenvolvido permitem ao autor da obra torná-la mais compreensível e correspondente às expectativas dos leitores. Quando o autor parte, enfim, para as definições de gênero e hipergênero nos quadrinhos, ele alcança algumas tendências e não conclusões. Segundo Ramos (2009b), existem vários gêneros que se utilizam da linguagem dos quadrinhos. Há também aqueles que não se aproximam da forma estável do gênero e se parecem mais com contos ou poemas gráficos. Ainda de acordo com sua pesquisa, existem dois elementos que se destacam e são comuns, inerentes aos diversos gêneros estudados: a predominância de sequência narrativa em um ou mais quadros e a utilização de linguagem gráfica dos quadrinhos, como o balão. Esses elementos antecipam informações e contribuem para a identificação e a leitura dos diversos gêneros que compartilham essas características. Dessa forma, o autor conclui que os quadrinhos são um grande rótulo que agrega diferentes gêneros comuns. Ramos (2009b) afirma ser possível englobar dentro do hipergênero chamado quadrinhos os cartuns, as charges, as tiras cômicas seriadas e os diversos modos de produção de histórias em quadrinhos. A partir dessa definição consolidada, o autor parte para a caracterização destes principais modos de produção de quadrinhos. A charge é um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário, afirma Ramos (2011). De certa forma, ela recria o fato de forma ficcional, estabelecendo com a notícia uma relação 5 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): filósofo russo, semiólogo e literário. Trabalhou com teoria literária, filosófica, discursos cotidianos, científicos, artísticos e éticos da linguagem, além de vários assuntos acadêmicos como marxismo, estruturalismo, semiótica e crítica religiosa. Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de Bakhtin, como ficou conhecido o grupo, foi enxergar a linguagem como um constante processo de interação. Fonte: Revista Nova Escola - Editora Abril. Disponível em: < http://revistaescola.abril.com.br/formacao/ formacao-inicial/filosofo-dialogo-487608.shtml> Acesso: 14 fev. 2013. 6 Dominique Maingueneau (1950): professor de Linguística na Faculdade de língua francesa pela Universidade de Paris-Sorbonne. Seu trabalho concentrou-se na linguística francesa e análise do discurso. Fonte: Página pessoal. Disponível em: < http://dominique.maingueneau. pagesperso-orange.fr/>. Acesso em: 20 maio 2012.

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intertextual. O leitor, para entender o texto, deve recuperar os dados históricos referentes à época em que a charge foi feita e inferir quais personagens são mostrados, normalmente de forma caricata. A temática de humor está atrelada à narrativa. O cartum diferencia-se da charge apenas por não estar vinculado a um fato do noticiário. A temática atrelada ao humor é uma das principais características do gênero – tira cômica. Mas Ramos (2011) garante existir outras: trata-se de um texto curto (dada à restrição do formato retangular, que é fixo), construído em um ou mais quadrinhos, com presença de personagens, fixos ou não, que criam uma narrativa com desfecho inesperado. O gênero usa estratégias textuais semelhantes a uma piada para provocar efeito de humor. Essa ligação é tão forte que a tira cômica se torna um híbrido de piada e quadrinhos. Ainda há outros gêneros de tira que não são as cômicas: as tiras cômicas seriadas e as tiras seriadas. As tiras seriadas, chamadas também de tiras de aventuras, estão centradas numa história narrada em partes. É válido observar que, isoladamente, tais tiras seriadas formam um gênero autônomo, com diferentes temáticas, que é produzido e lido em capítulos. Quando organizadas em sequência em livro, ficam mais próximas das histórias em quadrinhos convencionais. Já as tiras cômicas seriadas encontram-se na fronteira entre as tiras cômicas e as tiras seriadas. Essa história em quadrinhos mais longa, como tem sido chamada, é a base de uma série de outros gêneros. Em comum, têm a característica de serem publicadas em suportes que permitem uma condução narrativa maior e mais detalhada. É o que ocorre com as revistas em quadrinhos, os álbuns e a página dominical. Há uma diversidade de gêneros atrelados a uma diversidade de fatores. Parece haver um interesse em rotular gêneros pela temática da história. A quantidade de temáticas é enorme, mas é importante dizer que, segundo o autor, cada temática pode vir a constituir um gênero autônomo, publicado em diferentes formatos e suportes. A consequência dessa interpretação é que evita a análise dos gêneros de um ponto de vista apenas descritivo. É preciso levar em consideração outros elementos. Dessa forma, o autor entende que há características que se tornam mais ou menos relevantes de acordo com dada situação e, portanto, há gêneros com tendência à estabilidade maior e outros, menor. Ramos (2009b) conclui que o hipergênero daria as coordenadas de formatação textual de vários gêneros, anteciparia informações textuais ao leitor e ao produtor e funcionaria como um guarda-chuva para diferentes gêneros, todos autônomos, mas com características afins. Gian Danton apresenta uma vertente diferente de pensamento. Seu trabalho busca apreender a linguagem dos quadrinhos por meio de sua prática e do roteiro. O autor se aprofunda nas questões técnicas de roteirização, desenho, paradigmas e gêneros que, segundo o próprio, constituem as peculiaridades dos quadrinhos em relação às outras artes. Para Danton (2010), um autor completo seria aquele que domina o desenho e a escrita e que, além disso, é capaz de entender e aplicar a linguagem das HQs de forma concisa e clara. Em outras palavras, seria capaz de entender a linguagem dos quadrinhos. Primeiramente, seria preciso compreender o que é roteiro - um veículo pelo qual o roteirista instrui o desenhista a fazer o trabalho de acordo com sua imaginação. O que há de peculiar nesse meio de escrita é que o roteiro para HQs possui uma dinâmica própria, semelhante à da televisão e à do cinema, mas, ao mesmo tempo, diferente, pois trabalha com elementos específicos dos quadrinhos. Entender esses elementos é essencial para entender a linguagem das HQs. Ângulos de visão e apresentação dos requadros, assim como estilo e certos elementos gráficos são inerentes aos quadrinhos e, muitas vezes, só são encontrados nessa forma de arte. Porém o autor atenta especialmente para a forma da narrativa dos quadrinhos. A narrativa nada mais é do que o modo como a história se desenrola. E é justamente a forma como ela decorre que prende ou não o leitor à história. Então, o autor destrincha as formas de narrativa mais usuais, ganchos, atos de histórias, suspense, motivação, suspensão de descrença e

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elementos narrativos que não são exatamente originais dos quadrinhos, mas que encontram neles formas inovadoras de representação. Já a forma da narrativa dos quadrinhos é mais complexa e misteriosa. Portanto, para simplificar o entendimento desse conceito, o autor limita a trabalhar a forma do texto e dos diálogos. Danton se preocupa em definir três tipos de texto e três tipos de diálogos que são mais generalistas. Podemos inferir, então, que a forma está relacionada ao estilo do autor ou da obra e é o modo pelo qual a informação é transmitida e se relaciona com a imagem. Danton (2010) também aborda o estudo de gêneros nos quadrinhos. Sua abordagem é mais focada na técnica, portanto ele discute bastante com o leitor a respeito de paradigmas já estabelecidos dentro dos gêneros dos quadrinhos. É aqui que sua interpretação de gênero vai de encontro à de Paulo Ramos. Para Danton, o gênero seria, na realidade, a temática de gênero tal como é abordada por Ramos. São duas vertentes diferentes de pensamento: Danton trabalha o gênero buscando a prática enquanto Ramos entende que se trata de um conceito mais amplo, que serve para entender a dinâmica de paradigmas na arte contemporânea. Danton faz questão de esclarecer: mais importante que entender os paradigmas de certo gênero é captar sua essência e entender seus objetivos para que o autor possa se utilizar das regras de narrativa, e até quebrá-las, tornando a obra mais interessante para o leitor. Por fim, o autor incita o leitor a produzir, na forma de exercício, uma obra de quadrinhos, sugerindo práticas e técnicas. Isso deixa evidente sua preocupação didática de entender os pormenores das histórias em quadrinhos. Danton (2010) considera que a prática é fundamental para entender a linguagem narrativa das HQs. Vitor Nicolau inicia seu pensamento, preocupado em preparar o leitor para seu ponto de vista sobre a linguagem visual. Para isso, trata da semiótica de Peirce (1839-1914) fundamentando seus argumentos. Segundo o autor, podemos entender o ser humano e suas linguagens por intermédio das ideias de símbolo, ícone e índice, subdivisões do signo. Essa concepção é bastante aplicada na linguística e na área de comunicação. Signo seria um represetâmen, aquilo que de certo modo ou aspecto representa algo para alguém. O objeto é representado de acordo com o interpretante, que tem relação direta com o signo – forma triádica (objeto, interpretante e signo). O processo pelo qual o signo é algo para alguém é descrito como semiose. Dessa forma, o autor trabalha a semiótica e a metáfora para compreender as semioses comuns na sociedade. Inicialmente entendemos o ícone como o signo que possui a principal característica de ser a representação de algo. Assim, o ícone é capaz de substituir aquilo que representa ou/e que se assemelha. Ele é também a forma mais simples e direta de comunicar algo. O índice é o signo que se refere ao objeto por suas características serem diretamente afetadas pelo objeto. Ele apresenta qualidades que estão de acordo com a do objeto representado. Como exemplo de índice nas histórias em quadrinhos existe o balão. Ele representa a ação de fala do personagem e é diretamente afetado por ele, influenciando a interpretação do leitor. Já o símbolo é um signo que se refere a um objeto por meio de uma associação de ideias convencionadas. Basicamente ele consiste de uma regra que condiciona o interpretante. Nicolau (2009) também aborda a metáfora conceitual e busca as ideias de George Lakoff e Mark Johnson (2002)7. Para Nicolau, a metáfora não é apenas uma figura de linguagem e de retórica; é um processo cognitivo fundamental de comunicação do nosso cotidiano. É a utilização de uma ideia fora de seu uso cotidiano atribuindo-lhe outro significado. Pode ser entendida também como a comparação entre dois sentidos. O autor divide a metáfora em dois tipos: a metáfora estética, que tem a intenção deliberada de criar um efeito emotivo, e a metáfora linguística, que se tornou habitual e foi absorvida no cotidiano. O autor ainda explica que a força da metáfora está em sua ambiguidade, exatamente no fato de 7 George Lakoff é jornalista pela UFBA e advogado pela UCSAL, escritor e pesquisador nas áreas de imprensa, música, cinema e HQ. Cartunista e roteirista de HQs. Disponível em: <http://georgelakoff.com/blog/>. Acesso em: 20 out. 2012.

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vacilarmos quanto ao seu significado, em nunca deixar claro qual o sentido real do que se propõe. Nicolau (2009), por intermédio da interpretação de Rocha Lima8 (1985), discorre sobre as diferentes vertentes da metáfora e suas possibilidades de uso. Conclui, então, que a utilização da metáfora é um importante recurso retórico e nos faz perceber semelhanças novas e surpreendentes entre duas ou mais coisas. Ajuda a captarmos, de forma simples e clara, assuntos difíceis de serem compreendidos. Nicolau (2009) nos lembra que, para utilizarmos uma metáfora, é preciso ter em mente seu sentido e sua funcionalidade, tornando-se agradável como um enigma ao qual deciframos o significado. O autor começa a aproximar a ideia de metáfora da linguagem dos quadrinhos quando nos apresenta a metáfora conceitual. Essa abordagem da metáfora rompe com o paradigma de figura de linguagem e afirma que ela está infiltrada em nossos pensamentos e ações. Assim, o modo como agimos e pensamos é fundamentalmente metafórico. Nesse caso, para ilustrar melhor a situação, o autor define metáfora como a compreensão e a experiência de alguma coisa em termos de outra. O principal objetivo do quadrinista é transmitir sua mensagem de forma acessível e compreensível; daí o uso da metáfora, que aumenta as chances de suas ideias serem assimiladas. A metáfora nos quadrinhos, mais especificamente nas tirinhas, como trabalha o autor, só pode ser compreendida por meio de sua leitura completa e de seu contexto. Nos quadrinhos, então, pode-se criar uma metáfora similar à realidade por intermédio do domínio e do compartilhamento de experiências. A própria imagem que é utilizada como ícone nos quadrinhos pode conter uma metáfora, criando nova conceituação da realidade similar a nossa, seguindo a ótica do autor. Para ele, quando uma metáfora é consolidada, dificilmente é removida de nosso subconsciente; a menos que seu significado seja atualizado novamente, seu sentido será mantido. Como a metáfora utiliza domínios de experiência, ela pode ser relacionada com nosso dia-a-dia. Dessa forma, os autores que conhecem tal poder podem utilizar o próprio veículo para criar novas metáforas com senso crítico ou mesmo desconstruir metáforas existentes. As metáforas novas têm esse poder de criar realidades, e podemos perceber nossas experiências em termos de metáforas quando começamos a agir em função delas. Elementos como cores, expressão dos personagens e diagramação podem ser compreendidos como signos que transmitem metáforas. É a união entre as metáforas contidas nos desenhos e nos textos que torna a linguagem dos quadrinhos peculiar e os quadrinhos um dos gêneros mais eficientes no contexto da comunicação. A metáfora então é um instrumento que ajuda a compreender parcialmente aquilo que não podemos compreender em sua plenitude. Por meio delas, podemos construir uma realidade imaginativa que não confunde nossa racionalidade, mas, ao contrário, esclarece e amplia nossa visão de mundo. Para a linguagem dos quadrinhos, que possui agilidade e imediatismo, o conceito de metáfora tornase imprescindível! Serve para brincar e tornar agradável a mensagem transmitida ao leitor, mexe com a sua imaginação e fundamenta a liberdade inventiva do autor. Na sociedade moderna, em que as HQs têm relativo alcance social, os quadrinhos também se inserem no grupo de produtos que conhecemos como de consumo de massa. A arte e a cultura na contemporaneidade são absorvidas como produtos de consumo de massa. Consumo em massa pode ser entendido como compra e venda de um comportamento ou objeto de forma extensiva em nossa sociedade. Para Baudrillard9 (2005), o consumo de cultura torna a mesma apenas uma versão caricatural 8 Carlos Henrique da Rocha Lima (1915 – 1991). Doutor em Letras, passou a reger a cadeira de Português do Instituto Rio Branco, do Ministério de Relações Exteriores, em 1947, a convite de Guimarães Rosa. Em 1956, tornou-se catedrático de língua pátria no Colégio Pedro II. Foi professor, diretor e examinador dos melhores colégios, universidades e instituições brasileiras sediadas no Rio de Janeiro. É autor de numerosos estudos linguísticos e literários e de obras didáticas. Fonte: Grupo Editorial Record. Disponível em: < http://www. record.com.br/autor_sobre.asp?id_autor=3387> Acesso em: 14 fev. 2013. 9 Jean Baudrillard (1929), Ph.D., sociólogo francês, crítico cultural e teórico da pós-modernidade. Sua filosofia é centrada nos conceitos gêmeos de ‘hiper-realidade’ e ‘simulação’ – termos que se referem à natureza virtual ou irreal da cultura contemporânea em uma era de comunicação de massa e consumo de massa. Fonte: The European Graduate School. Disponível em: < http://www.egs.edu/faculty/jeanbaudrillard/biography/> Acesso em: 29 maio 2012.

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de si. Podemos entender que a essência da cultura é perdida ou fica relegada ao segundo plano quando, por exemplo, um museu é visitado e consumido como representação de bom gosto estético. Dessa forma, nossa sociedade moderna transforma a relação que estabelecemos com um objeto histórico/cultural. A cultura perde sua relevância usual e prática, adquire um caráter que representa, muitas vezes, apenas prestígio e status social. Tal caráter pode explicar a efemeridade de uma obra de arte, como uma HQ, por exemplo. A crítica de Baudrillard (2005) nos permite inferir, tal como ocorre com a pintura, por exemplo, que consumimos os quadrinhos como forma de diferenciação social, por meio de um status ou privilégio intelectual. O que fica implícito é que o verdadeiro significado cultural dos quadrinhos, assim como da arte de forma geral, é destituído de seu valor e, muitas vezes, o significado de uma obra é ignorado ou não é compreendido pelo leitor, já que essa instância passa a ser considerada secundária. Portanto, a partir desse ponto de vista exposto pelo autor, passamos a compreender a proliferação de quadrinhos como entretenimento vendável. A alienação da cultura se dá justamente pela naturalidade de seu consumo. Os quadrinhos são uma forma de arte pensada para atingir de forma ampla a sociedade, devido ao seu caráter dinâmico e convidativo. Consequentemente poderíamos afirmar, segundo a visão de Baudrillard, que os quadrinhos são uma forma de arte que já nasce alienada. As HQs existiriam, portanto, com um claro objetivo de cativar a massa de consumidores. Este é um ponto de vista bastante pessimista, para não dizer também moralista. Talvez os quadrinhos encontrem na produção independente seu refugo criativo maior e a possibilidade de ter seu potencial explorado a fundo. Sabendo que os quadrinhos independentes têm métodos de produção, meios de propagação e objetivos de publicação diferentes dos mais comerciais, é aí que essa arte pode encontrar sua maturidade cultural. Essa ideia merece ainda ser estudada, já que apenas podemos deduzi-la logicamente a partir do pensamento de Baudrillard. Podemos entender, então, a linguagem como a capacidade humana de aquisição e aplicação de sistemas de comunicação complexos ou, da forma vulgarmente entendida, apenas como a instância específica de um sistema de comunicação complexo. Dessa forma, os quadrinhos constituem um sistema ou hipergênero, como discutido anteriormente, a partir do pensamento de Paulo Ramos, com seu próprio modo e peculiaridades de transmissão da mensagem. Possui características e elementos inerentes ao meio, sem os quais não haveria coesão o suficiente para determinar o que são quadrinhos, mas possui flexibilidade suficiente para permitir inovações no processo de criação da mensagem, sem jamais perder sua essência. As histórias em quadrinhos ainda podem ser classificadas como forma de narração, já que, como o próprio nome denuncia, serve para contar, ou narrar, uma história. No entanto, uma de suas características peculiares é sua narrativa, que nada mais é que a forma como a mensagem é contada. Cada mídia possui sua maneira de transmitir a mensagem, servindo-se de seus meios, signos e métodos. Nos quadrinhos podemos encontrar a linguagem escrita e imagética. Eventualmente, podemos nos deparar com uma única linguagem. No entanto, é muito mais comum encontrar nos quadrinhos uma relação forte entre texto e imagem. Os quadrinhos, assim, são uma forma de arte que conjuga imagem e texto. Com a união entre essas duas formas de expressão é possível ampliar e reforçar significativamente e de forma original a mensagem passada. Há ainda, particularmente, uma relação rítmica extremamente importante entre as imagens, como nos quadros da história, que é inerente ao meio. A esse conjunto de características chamamos linguagem própria dos quadrinhos. Já a forma como tais características são apresentadas ao leitor denominamos narrativa da história. Signo é algo que representa alguma coisa para alguém. Partindo desse conceito formulado por Peirce, as HQs podem ser vistas como um signo, ao mesmo tempo em que detêm incontáveis

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outros signos. A importância dos signos para os quadrinhos é indiscutível, já que a principal função dessa arte é a transmissão de uma ideia, mensagem, em forma de história. É exatamente disso que o signo trata, da contenção de um significado. Assim, entender como funcionam os signos ajuda a potencializar o uso dos quadrinhos. As histórias em quadrinhos como hipergênero tendem a encontrar seu equilíbrio cultural de acordo com seu desenvolvimento ao passar dos anos. Segundo as teorias estudadas, seria impossível ocorrer uma extinção dessa forma de arte, mas sim uma transformação de seus gêneros, o que é extremamente natural no decurso da história da arte. Assim, a essência das histórias em quadrinhos, ou seja, sua linguagem estaria preservada culturalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo da linguagem dos quadrinhos abordado por esses três autores – Ramos, Nicolau e Danton – podemos concluir unicamente que o sistema constituinte da linguagem dessa forma de arte é muito mais complexo. Cada autor, com seu ponto de vista, aborda uma ideia de linguagem dissociada de alguns pontos da opinião do outro. Paulo Ramos aproxima-se mais do conceito de linguagem para determinar o que diferencia os gêneros de quadrinhos. No entanto, parece nunca se aprofundar nas relações semânticas textuais ou mesmo nas relações semânticas imagéticas. Ramos está mais preocupado em classificar e caracterizar do que explicar os signos dos quadrinhos. Vitor Nicolau prefere recortar uma característica específica, a da linguagem metafórica dos quadrinhos, para trabalhar. E assim ele apresenta uma ideia a partir de uma abordagem nova, original, que reflete muito bem o que de fato as HQs transmitem e como transmitem. Mas, ao mesmo tempo, omite diversos outros conceitos e abordagens de linguagem. Já Danton se propõe a estudar a forma de apresentação da narrativa. Sua obra é interessante, especialmente quando aborda questões de produção que não foram observadas pelos demais autores. Sua abordagem foge da mensagem propriamente dita para apresentar o modo de produção peculiar dos quadrinhos, que como Ramos afirma, também constitui elemento caracterizador de gênero e hipergênero. Percebemos que os três autores tratam de três instâncias diferentes dessa forma de arte. Ramos trata muito mais da mensagem, o que está sendo passado, enquanto Nicolau aborda a forma com que é transmitida e a função poética da arte, e Danton, o modo como é produzida. Essas visões não são de forma alguma excludentes nem mesmo contraditórias; são complementares. Embora possamos perceber, por meio da leitura, que ainda há espaço para muita pesquisa, para ficar apenas em um exemplo, em nenhum momento algum dos autores trabalha a relação de tempo entre os quadros de uma HQ. Os autores foram escolhidos justamente por sua nacionalidade. Paulo Ramos, tomado aqui como o maior referencial da produção de pesquisa nacional, tem uma extensa bibliografia a respeito dos quadrinhos. Sua abordagem é bastante criteriosa no que diz respeito à sua classificação e à sua definição. Apresenta uma pesquisa bem fundamentada e justifica, em sua obra, a importância dos quadrinhos na educação e na formação de caráter de um cidadão. Com este artigo, esperamos que a mensagem passada por Ramos seja difundida ainda mais. Tratar da linguagem dos quadrinhos e de seu alcance social é um tema, como percebido, bastante extenso e prolixo. É com essa pequena contribuição, na tentativa de apresentar um panorama mais amplo possível do tema que finalizamos com a ideia de que os quadrinhos possuem um potencial comunicativo enorme. Os quadrinhos são, graças à sua linguagem, um hipergênero de potencial cultural único e original.

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REFERÊNCIAS BAKTHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______ . Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1953]. p. 277-326. BAUDRILLARD, Jean. Significação na publicidade. In: MOLES, Abraham A. Teoria da cultura de massa. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 289-299. DANTON, Gian. O roteiro nas histórias em quadrinhos. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2010. LAKOFF, G.; JOHSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação de tradução: Maria Sophia Zanotto. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Educ, 2002. LIMA; MESSIAS & OLIVEIRA. Os quadrinhos da linguagem. Disponível em: <http://legacy.unifacef. com.br/novo/letras/rel/edicao03/Os_Quadrinhos_Linguagem.pdf.> Acesso em: 07 maio 2012. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. Genre, hypergenre, dialogue. Calidoscópio, São Leopoldo (Unisinos), v. 3, n. 2, p. 131-137, mai./ago. 2005. NICOLAU, Vitor. Calvin & Haroldo: metáfora e crítica à indústria cultural. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2009. RAMOS, Paulo. Faces do Humor - Uma Aproximação entre Piadas e Tiras. Campinas: Zarabatana Books, 2011. RAMOS, Paulo. A Leitura dos Quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009a. RAMOS, Paulo. Histórias em Quadrinhos: Gênero ou Hipergênero. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 38, p. 1-141, 2009b. ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. 25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

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ANAIS DO SEMINÁRIO

SOBRE OS AUTORES Chantal Herskovic

Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG na área de cinema de animação, onde o tema de sua pesquisa é animação para o público infanto-juvenil; tem formação em Design Gráfico na Escola de Design da UEMG. Começou a publicar tiras em quadrinhos com treze anos no jornal Diário da Tarde. Atualmente mantém uma publicação diária da tira em quadrinhos da série Juventude no jornal Estado de Minas. Lançou seu livro infanto-juvenil Blog da Cacau:// Ninguém Merece.

Richardson Santos de Freitas Licenciado em Desenho e Plástica pela UEMG, pós-graduado em Projetos Gráficos Editoriais e Multimídia pela UNA. Presidente da Associação Cultural Nação HQ e Membro da Comissão Municipal da Lei de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte - Gestão 2011/2012. Editor e redator do site Quadrinho.com e Coordenador do site Anime.com.br.

Daniel Leal Werneck Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010) e professor da Escola de Belas Artes - UFMG. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Cinema de Animação, atuando principalmente nos seguintes temas: cinema de animação, história da animação, técnicas de animação direta (stop motion), narrativas gráficas (histórias em quadrinhos).

Erick Azevedo Há 15 anos trabalha como professor de histórias em quadrinhos em escolas como a Comuna S.A., Estúdio HQ, Casa dos Quadrinhos e Planet Comics. Desenvolve, desde 1999, trabalho na área de educação envolvendo os temas transversais, as mudanças na sociedade pós-industrial, a psicanálise, a psicologia analítica e os meios de comunicação como quadrinhos, cinema, teatro, dança, mitos, lendas, fábulas, histórias coletivas, jogos eletrônicos e RPG.

Rita Aparecida da Conceição Ribeiro Professora do programa de Pós-Graduação em Design da Escola de Design da UEMG. Líder do grupo de pesquisa do CNPq Design e Representações Sociais e pesquisadora do Centro de Estudos em Design da Imagem. Doutora em Geografia pela UFMG (2008). Avaliadora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP.

Eliane Meire Soares Raslan Atualmente pesquisa a imagem visual e audiovisual tratando o discurso no doutorado em Comunicação Social pela PUC-RS. Professora, pesquisadora e orientadora na UEMG. Como coordenadora do NIQ - Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos -, realiza seminários e pesquisas sobre quadrinhos dentro da análise da imagem e seus meios de animação.


ANAIS DO SEMINÁRIO

SOBRE OS AUTORES Ivone Gomes da Silva

Especialização em Gestão de Projeto em Design (em andamento). Participou do Centro de Estudos em Design da Imagem como professora orientadora de projetos e pesquisas do Núcleo de Ilustração e Quadrinhos (NIQ) da ED/ UEMG e como professora colaboradora do Núcleo de Tipografia (NUTI) do Centro de Estudo em Desenvolvimento de Projetos em Design.

Ana Luiza Pereira Guimarães Estudante do curso de Design Gráfico da UEMG. Aluna voluntária do projeto de pesquisa: A imagem das histórias em quadrinhos e suas repercussões no Brasil, do centro de pesquisa do NIQ da UEMG no ano de 2012.

Carina Ribeiro Cardoso Carina Ribeiro Cardoso. Estudante de Design Gráfico da UEMG. Aluna voluntária do Projeto de Extensão: Imagem e comunicação popular com os quadrinhos no centro de pesquisa do NIQ da UEMG.

Ludimila Vitoriano de Castro Martins Estudante de Design Gráfico da UEMG. Aluna voluntária do Projeto de Extensão: Imagem e comunicação popular com os quadrinhos no centro de pesquisa do NIQ da UEMG.

Lucas Marques Lomasso Costa Estudante do curso de Design Gráfico da UEMG. Aluno voluntário no centro de pesquisa do NIQ da UEMG no ano de 2012.

Adalfan da Silva Bessa Estudante do curso de especialização em Design de móveis da UEMG. Aluno voluntário do Projeto de Extensão: Imagem e comunicação popular com os quadrinhos, no centro de pesquisa do NIQ da UEMG.


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