Obras Abertas: Leituras de Umberto Eco

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MÁRCIA DE OLIVEIRA CASTRO JARDIM DAVID RUIZ TORRES VIVIANA MÓNICA VERMES ELISA RAMALHO ORTIGÃO (Organizadores)

OBRAS ABERTAS: LEITURAS DE UMBERTO ECO

Vitória, ES PROEX/UFES 2017

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade federal do Espírito Santo, ES, Brasil) Bibliotecária: Maria Aparecida da Costa Pereira Akabassi─ CRB-6/ES-43 O13

Obras abertas [recurso eletrônico] : leituras de Umberto Eco / Márcia de Oliveria Castro Jardim (orgs.) [et al]. – Dados eletrônicos. - Edição. - Vitória: UFES. Proex. 2017. 160 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-65276-44-3 Modo de acesso: <https://seminarioumbertoeco.wixsite.com/obrasabertas/publicacoes>

1.Eco. Umberto. 1932-2016. 2. Leitura. 3. Humanidades. 4. Arte. 5. Literatura. I. Jardim. Márica de Oliveria Castro.

CDU: 82.09

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SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 7 1. DESLOCAMENTOS ESTÉTICOS NA CONTEMPORANEIDADE.............. 13 Arte e beleza no congo do Espírito Santo. ....................................................... 15 José Otavio Lobo Name (DDI/UFES) Estranha beleza ............................................................................................... 29 Alexandre Emerick Neves (DTAM/UFES) O problema da formatividade nos trabalhos teóricos de Umberto Eco: origens, posicionamentos, e uma leitura recente no campo da musicologia. ................ 49 Fabiano Araújo Costa (DTAM/UFES) 2. O NOME DA ROSA: TRAMA MEDIEVAL E QUESTÕES DO SÉCULO XXI .................................................................................................................... 61 Márcia Jardim, Mónica Vermes, David Ruiz, Elisa Ramalho Ortigão 3. UMBERTO ECO: PASSADO, PRESENTE E FUTURO .............................. 67 “Como se faz...”: paródia e produção acadêmica. ............................................ 69 Márcia de Oliveira Castro Jardim (DTAM/UFES) Informação, memória e cultura na era digital: considerações a partir da obra de Umberto Eco. ................................................................................................... 83 David Ruiz Torres (PNPD/CAPES - PPGA/UFES) De integrado a apocalíptico: Eco sobre a cultura de massas e sobre a cultura na modernidade líquida. ................................................................................... 97 Viviana Mónica Vermes (DTAM/UFES)

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4. OBRAS ABERTAS, ALGUMAS LEITURAS. ............................................ 111 Obra aberta, arte sem fim............................................................................... 113 Rodrigo Otávio da Silva Paiva (DTAM/UFES) Etcetera: a continuação da leitura além do dado ........................................... 127 Elisa Ramalho Ortigão (FAPES - PPGA/UFES)

ANEXOS

OS LIVROS DE UMBERTO ECO .................................................................. 143

OS AUTORES ................................................................................................ 153

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APRESENTAÇÃO

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O autor italiano, Umberto Eco (1932-2016) é considerado um dos mais influentes teóricos do século XX, um dos pioneiros na abordagem de temas multidisciplinares. Seus inúmeros livros, com edições em variadas línguas, compõem ainda hoje, a bibliografia básica de muitas disciplinas de cursos universitários. A importância de Umberto Eco na vida acadêmica de professores e alunos conduziu à vontade de conceber um projeto dedicado ao autor, ressaltando alguns aspectos de sua obra. Obras abertas: leituras de Umberto Eco é o fruto deste projeto, construído através de etapas consecutivas, inicialmente, realizando exercícios de reflexão multidisciplinar sobre a obra de Umberto Eco, em seguida, apresentando e debatendo os resultados através de um Seminário de Extensão e, finalmente, reunindo em edição digital gratuita os temas tratados no seminário, ampliando o acesso do público em geral à pluralidade do escritor. O projeto começou em 2016, a partir da consulta a professores universitários de diferentes áreas de atuação, sobre a importância da obra de Umberto Eco ao longo de suas formações acadêmicas e profissionais, indagando-os, também, quanto à atualidade das reflexões do autor italiano no século XXI. A receptividade quanto à obra de Umberto Eco conduziu a nova etapa, e os professores foram, então, convidados a escolherem seus

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livros preferidos do autor, elaborando questões com diferentes pontos de vista, a serem apresentadas em comunicações de um seminário de extensão direcionado, principalmente, aos alunos de cursos de graduação. O seminário de extensão gratuito, intitulado Obras abertas: leituras de Umberto Eco, nome homônimo a esta publicação digital, foi realizado em setembro de 2017, na Universidade Federal do Espírito Santo, contando com a participação de dez palestrantes. Ressaltese que a mesma equipe responsável pela realização do seminário são os organizadores desta edição: quatro professores de várias origens e formações acadêmicas, atuantes ao longo do evento como palestrantes, debatedores e moderadores. Na edição digital, a divisão dos capítulos procurou manter a estrutura original das mesas temáticas do seminário, concebidas a partir da junção de diferentes abordagens, fruto da livre escolha e pensamento de cada autor, excetuando-se o capítulo quatro que apresenta uma síntese das questões levantadas no debate ocorrido durante o seminário sobre o filme O nome da rosa, de 1984, baseado no livro do mesmo nome. Os artigos, assim organizados, trazem não só a pluralidade de leituras da obra de Umberto Eco, antecipadas nas comunicações do seminário, como ganharam novos contornos nos textos escritos. Além dos artigos, compõem a presente edição, anexos com a síntese do currículo dos professores, breves comentários sobre os principais livros de Umberto Eco, traduzidos em português, selecionados pelos autores.

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Obras abertas: leituras de Umberto Eco congrega, em resumo, em modesta homenagem ao autor italiano, buscando reforçar a relevância da continuidade de suas ideias na formação de novas gerações.

Vitória, dezembro de 2017 Márcia Jardim

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1. DESLOCAMENTOS ESTÉTICOS NA CONTEMPORANEIDADE

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Arte e beleza no congo do Espírito Santo

José Otavio Lobo Name Departamento de Desenho Industrial jose.name@ufes.br Resumo: Este trabalho se pretende uma breve resenha do livro Arte e beleza na estética medieval (1989), de Umberto Eco, relacionando-o, ao mesmo tempo, a algumas reflexões acerca dos elementos artísticos e religiosos presentes nas manifestações do congo do Espírito Santo, mais especificamente no caso do trabalho de Mestre Ricardo Sales à frente da Banda de Congo Amores da Lua. O artigo procura uma leitura que permita trazer à reflexão atual os temas, paradigmas e processos apontados por Umberto Eco em sua recapitulação do pensamento escolástico sobre arte e beleza, destacando os principais conceitos levantados pelo autor italiano ao longo de seu compêndio. Palavras-chave: arte; beleza; congo; estética; Idade Média Abstract: This text intends to be a brief review of the book Arte e beleza na estética medieval (Art and beauty in medieval aesthetics, 1989), by Umbertto Eco, relating it to some reflections on artistic and religious elements present in the manifestations of the congo from Espírito Santo, Brazil, especifically the case of Master Ricardo Sales' work leading the Banda de Congo Amores da Lua. The article aims a reading of the book that allows bringing to reflectyion the themes, paradigms and processes pointed out by Umberto Eco in his recapitulation of the escolastic thinking about art and beauty, attenting to the principal concepts brought up by the Italian writer throughout his compendium. Keywords: art; beauty; congo; aesthetics; Medieval Age

Neste trabalho faremos um exercício conceitual, como uma forma expandida de resenha, a partir do texto de Umberto Eco Arte e beleza na estética medieval, de 1987, a fim de abordar a seguinte questão: É possível apreciar o congo capixaba sem se engajar em seus valores? A apreciação, aqui, tenta ligar as ideias de deleite com a de apreço: o congo é folclore, expressão ou devoção? Nasce da visão única do criador (arte); é um ritual religioso; ou é uma festiva tradição popular? No livro, Eco procura desfazer a ideia de que a Idade Média fosse desprovida de sensibilidade ou reflexão sobre a estética; e mais além, de que o pensamento medieval fosse unívoco, representado apenas pelos dogmas católicos. A obra de Umberto Eco serve de importante referência a todos que se interessam pelo período, e sobre o pensamento estático em geral. Permite ainda diversas abordagens, como o uso que pretendemos fazer dele,

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aqui. A proposta deste artigo é apresentar uma possibilidade de reflexão que, despertada pela leitura do livro, extrapole um pouco suas premissas, e sirva como base para um olhar sobre o congo, na figura do Mestre Ricardo Sales. Umberto Eco propõe-se realizar um compêndio histórico das teorias estéticas da era medieval, esclarecendo, de saída, que não irá elaborar nenhuma especulação teórica, mas apenas relacionar as principais fontes do pensamento sobre arte e estética do período. Deste modo, ele deixa ao leitor a tarefa de criar algum entendimento sobre os pensamentos estéticos medievais; mas, ao destacar alguns elementos, e delimitar o escopo de suas fontes, acaba por levar às relações entre a produção artística e o pensamento filosófico do período. Seu objeto está delimitado na forma dos textos em latim sobre a beleza, e deste recorte sobressaem-se os principais elementos que acabam por definir a estética medieval: as noções de belo, bom e verdadeiro; de proporção, de cor e de luz; e a simbologia, como forma de compreensão do mundo e ligação com o divino. Por sua vez, o congo do Espírito Santo, definido genericamente como "manifestação cultural", não se oferece como um objeto de estudo tão definido. Para uns, "cultural" é o que se manifesta pelas artes constituídas; e, apesar de haver imagens, música, dança, e poesia no congo, este não é um fazer artístico, tanto na compreensão contemporânea do que é arte; quanto na intencionalidade de seus praticantes. Se é entendido como a tradição do povo, cai, de modo geral, na visão folclorista, que o engessa em formas repetitivas de expressão. Mas, à medida que se convive com as bandas, percebe-se em seus integrantes um conhecimento subjetivo, porém preciso, sobre o que é o congo, que se expressa por meio de palavras, às vezes contraditórias, e principalmente por atitudes e visões de mundo. Vemos, em Umberto Eco, a estética da Idade Média como uma filosofia geral, que irá explicar o conjunto da relação do homem com a criação e com o ideal. A ordem divina, eterna e imutável, não se revela imediatamente nas coisas; é necessário que se observe e se entenda suas leis para reconhecer-lhe a beleza. Na visão medieval, não há uma distinção entre a beleza da natureza e a beleza do que é produzido pelo ser humano; o belo é característico da relação

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entre as qualidades do ser e a percepção educada de que o admira. Não é algo fixo, portanto, mas precisa ser continuamente redescoberto. No exercício filosófico de entender como os fenômenos da natureza se adequariam ao grande plano divino, os pensadores medievais acabaram por produzir uma grande obra conceitual, uma forma de pensamento que se reproduziu em poesia, música, pintura e arquitetura. Antes de continuarmos, cabe aqui uma resenha resumida de "Arte e beleza na estética medieval", destacando os elementos que serão usados neste exercício. Como já dissemos no início, Eco apresenta seu livro como "compêndio histórico", deixando claro que não pretende elaborar ou comentar nenhuma teoria estética; e, mesmo sobre o conceito de estética, parte de suas definições mais amplas, de modo a verificar, na pesquisa, o que pode ser encontrado sobre este tópico. Ainda na introdução, trata de definir, do modo mais sucinto possível, o escopo de seu trabalho: é um compêndio: sem pretensões de originalidade, sistematiza e resume pesquisas anteriores; é histórico, uma "imagem da época" e não uma extrapolação filosófica; e se debruça sobre a Idade Média latina, ou seja, traz a perspectiva do discurso produzido pelos extratos mais nobres da Europa medieval, já que era em latim que se escrevia nos mosteiros e nas universidades. Ele enfatiza que, "Quando se começa a conduzir um discurso teórico em língua vulgar, a despeito das datas, já estamos fora da Idade Média" (ECO, 1989, p. 11), critério de seleção que serve, também, para delimitar o que o livro considera ser o período medieval. Deste modo, é um discurso sobre os valores cultuados nestes meios, e representado por aquelas que seriam as "belas artes"; e tanto a produção intelectual, quanto a produção artística sobre a qual ela se debruça, ignoram os fazeres populares. Os interesses estéticos da Idade Média partem dos problemas estéticos da Antiguidade clássica, ressignificando-os à luz das concepções do homem, do mundo e da divindade típicos da visão cristã. (idem, p.15). A Antiguidade fala de problemas estéticos e propõe regras de produção artística com o olhar voltado à natureza; os medievais, com olhar voltado à Antiguidade. As concepções de tempo e de espaço também serão referência à era greco-romana. Ao lado do culto ao que foi transmitido pelos antigos como depósitos de verdade e

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sabedoria; e ao lado de ver a natureza como reflexo da transcendência, a preocupação crítica medieval tem forte atração pela realidade sensível em todos os seus aspectos, incluindo os estéticos. A beleza não é, para o medieval, um conceito abstrato, mas uma experiência concreta. A beleza é um atributo de Deus. "(...) A experiência da beleza inteligível constituía, antes de tudo, uma realidade moral e psicológica para o homem da Idade Média, e a cultura da época não permaneceria suficientemente iluminada se nos descuidássemos deste fator; em segundo lugar, ampliando o interesse estético para o campo da beleza não sensível, os medievais elaboravam ao mesmo tempo, por analogia, por paralelos explícitos ou implícitos, uma série de opiniões sobre a beleza sensível, a beleza das coisas da natureza e da arte." (idem, p. 16).

Assim, limitar a Idade Média a uma suposta negação moralista do belo sensível é uma concepção superficial. Eco recorre aos místicos e moralistas, como aqueles que mais rejeitam o apelo dos prazeres sensíveis, para referendar sua concepção de que a beleza sensível ocupava um lugar de grande importância no pensamento medieval, ao demonstrar que mesmo aqueles que mais rejeitavam os prazeres terrenos, tinham sensibilidade para descrevê-los minuciosamente. Os rigoristas parecem polemizar exatamente sobre aquilo em que percebem maior atração sensível, aquilo que promete sensações prazerosas. Um reconhecimento da beleza sensível, e seu lugar no mundo, mesmo rejeitando-a no interior dos claustros, ou na realização dos cultos. Seja por uma amorosa adesão à obra divina, ou de um componente neoplatônico, o universo aparece como uma constante irradiação de beleza, manifestação da beleza primeira. (idem, p. 32). Na elaboração de categorias para exprimir filosoficamente a visão estética do cosmo, os medievais rejeitam a posição maniqueísta de que, desde a sua origem, o universo seja formado por dicotomias: bem e mal; luz e trevas, virtude e vício. Em oposição a este dualismo entre bem e mal, das heresias maniqueístas, que viam o mal como originário da criação, as filosofias estéticas medievais apoiavam-se na convicção de que o cosmo constitui-se de uma inesgotável irradiação de beleza: "Na suspeita de que no mundo possa instaurar-se uma dialética de resultado incerto entre o bem e o

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mal, a Escolástica ocupa-se de afirmar a positividade de toda a criação". (idem, p. 34). Outro elemento que Umberto Eco identifica nas concepções medievais de beleza é o "colecionamento", uma atração por tudo que seja múltiplo, elaborado, complexo, e rico: "(...) os medievais convertiam rápido o sentimento do belo em um sentido de comunhão com o divino ou com a pura e simples alegria de viver." (idem, pp. 25-26). Recorre ao exemplo do abade de Saint Denis, Suger, "animador das maiores empresas figurativas e arquitetônicas da Île de France", para quem "a casa de Deus tem de ser um receptáculo de beleza. Seu modelo é Salomão, que construiu o Templo; o sentimento que o guia é o dilectio decoris domus Dei (o amor pela beleza da casa de Deus)." (idem, p. 26). A utilidade da beleza se apoia na convicção de que aquilo que o simples não pode entender pelas escrituras deve ser aprendido pelas figuras. Os ornamentos das igrejas devem atrair as pessoas, inspirando-lhes a admiração pelos refinados desdobramentos da obra divina. Nesta visão neoplatônica de perfeição divina, manifesta em todas as coisas, animais e pessoas do mundo, é que Eco encontra os elementos que iremos aqui destacar, neste nosso experimento conceitual de relacionar a estética medieval com o congo do Espírito Santo: a proporção; a luz e a cor; e os símbolos e alegorias. Nosso ponto de vista é que podemos partir de suas reflexões sobre este tópico para pensar como a Banda de Congo Amores da Lua, eleita como objeto desta análise especulativa, manifesta estes elementos de forma consciente e concreta. O Cânone de Policleto, tratado acerca das proporções do corpo humano escrito no século V A.C. pelo escultor grego que o nomeia, é escolhido por Eco como a definição de beleza que teve mais ênfase na estética medieval. Criado como um guia teórico prático, tornou-se gradativamente um documento de estética dogmática, do qual só sobraram alusões na obra de outros pensadores, como o médico e filósofo Galeno, do século II de nossa era, para quem "a beleza não consiste nos elementos, mas na harmoniosa proporção das partes; de um dedo ao outro, de todos os dedos ao resto da mão... de cada parte à outra, como

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está escrito no Cânone de Policleto". (idem, pp. 45-46). Apesar de ser um conceito que se exprime em números, seu princípio busca harmonias concretas e orgânicas, irreduzíveis a fórmulas de números abstratos. A geometria de Pitágoras, vista como uma concepção de universo que se manifesta na criação divina, é a base para as regras das artes plásticas e de composição musical: ao perceber que o ferreiro produz na bigorna sons diferentes, de acordo com o peso do martelo, Pitágoras teria concluído que o número rege o universo sonoro em sua razão física. Para Eco, o ser humano reage à música de forma igualmente proporcional: é natural "enrijecer diante de modos musicais contrários e abandonar-se aos agradáveis". (idem, p.48). Assim, a concepção de que a criação divina é baseada na medida precisa entre as coisas, o cosmo aparece como um sofisticado arranjo, que se desdobra em uma infinitude de elementos. E, paralelamente a uma ideia de "geometria natural", ou de "natureza geométrica", surge uma espécie de culto aos arranjos humanos que exprimem tais proporções, como o círculo e o quadrado, bases de um fazer artístico que expresse ordem, disposição, simetria, ritmo e, com isso, beleza. Uma teoria metafísica do belo em que a proporção, não exprimível em uma única fórmula, contribui à sua transcendência. Antes de prosseguirmos neste resumo, convém lembrar um pensamento que Umberto Eco manifesta ainda na introdução: a estética medieval não distingue as concepções de beleza da natureza e do fazer artístico, criando, a partir daí, uma vasta obra teórica; ao contrário da modernidade que, ao tomar a beleza em si como um tópico indiscutível, e tornar a estética um pensamento exclusivamente sobre a arte, deixa de lado, em suas especulações, as diversas reações humanas ao "belo". O jovem Ricardo Sales é o Mestre da Banda de Congo Amores da Lua, do bairro de Santa Martha, em Vitória, desde 2013. Desde muito cedo, Ricardo já vinha criando as vestes e estandartes da banda; mas, a partir do momento em que se tornou mestre, sua criação tem mostrado uma elaboração, que une a sua devoção a São Benedito e aos orixás, a elementos visuais requintados, que, segundo ele, "vêm de meu imaginário e do meu além" (SALES, 2015). Ricardo não teve educação artística formal, e percebe-se em seu trabalho uma forte

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espiritualidade; mas sua concepção de banda é um arranjo delicado de seus elementos, dos quais ele cuida pessoalmente, toda e cada vez que a banda sai. Este arranjo inclui, além da confecção das vestes e da criação dos estandartes, a disposição das Princesas em torno da Rainha, sua mãe; o lugar de cada dançarina; e a arrumação dos conguistas segundo seus instrumentos musicais. O resultado almejado por Mestre Ricardo é, justamente, a razão de a Amores da Lua figurar aqui neste exercício: ela se destaca dentre as demais bandas como aquela que apresenta, a nosso ver, o conjunto mais harmonioso, produzindo um encanto visual a partir da organização de elementos visuais ricamente detalhados: à frente vêm a Rainha e suas Princesas, portando orgulhosamente seus estandartes e a bandeira azul e branca, cujas evoluções causam um grande efeito; a seguir, as dançarinas, cujos volteios reforçam os refrões das toadas; ao centro, à frente dos conguistas, a imponente figura de Ricardo, com sua voz poderosa e o vigor com que toca a casaca. A predominância do azul e do branco, que são as cores da banda, apenas levemente acompanhados pelo dourado, o verde, o vermelho e o amarelo, que aparecem nos estandartes e, por vezes, nas vestes da Rainha, produzem, principalmente, efeitos de brilho e luminosidade, enfatizados pelos movimentos das dançarinas e dos conguistas. Vemos aqui, mais uma vez, um elemento que referenda a percepção de que esta é a banda que apresenta o conjunto mais harmônico. Para Umberto Eco, ao lado da perfeição das formas geométricas, cujas proporções refletiriam a identidade de Deus, os pensadores da Idade Média sentiam uma inescapável atração pela cor e pela luz, de um modo que pode parecer, à primeira vista, contraditório. Pois, diferente do rigor matemático com que a divindade é percebida nas proporções geométricas, o gosto pela luz e pela cor aparece, nos escritos medievais, como uma atração "muito vivaz pelos aspectos sensíveis da realidade. O gosto pelas proporções chega já como tema doutrinal e só gradativamente transfere-se para o terreno da constatação prática e do preceito produtivo" (ECO, 1989, p. 62), ou seja, a geometria é uma herança racional dos maiores dos pensadores da Antiguidade; já a reação à luminosidade e suas modulações é espontaneamente despertada, para somente depois ser objeto de especulação científica ou metafísica. Este

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imediatismo se reflete nas cores vivas e "chapadas" da arte figurativa da época, e somente no Renascimento é que surgirão o cromatismo e o esfumado, as gradações da luz e da cor. As miniaturas dos livros refletem esta alegria pela cor íntegra, em que os contrastes cromáticos são conseguidos através da combinação de cores bem distintas; e estas, com o dourado, a conferir brilho e resplendor. As descrições poéticas referendam esta ideia, com exemplos que exageram a sensação cromática através de adjetivos superlativos, em que as cores são sempre vivas e o brilho é sempre intenso. A luminosidade em si entusiasma ainda mais: "A literatura da época é cheia de exclamações de gozo diante dos fulgores do dia ou das chamas do fogo. A igreja gótica, no fundo, é construída em função de um irromper da luz através de uma abertura de estruturas (...)." (idem, p. 64). Umberto Eco cita, ainda, o Bispo de Lincoln, para quem a luz é bela por si "já que sua natureza é simples e compreende em si todas as coisas juntas" (idem, p. 67), em um conceito que une o imediatismo da sensação luminosa ao racionalismo dos ideais de proporção. O universo do congo une a devoção aos Santos a uma prática que a liga aos elementos da natureza e da vida cotidiana, o que pode ser percebido mais facilmente nas toadas. As plantas e os animais; o amor e o trabalho; o tempo, os lugares e as pessoas estão ligados ao espiritual e são a sua manifestação. Aqui, estes elementos se apresentam em alegorias, através das toadas, dos ritmos musicais e das danças; e também atuam como símbolos do poder da criação, da fé e da devoção, e do milagre transformador. Na concepção medieval, a beleza tem base aristotélica, em que tudo que existe tem matéria e forma, essência e aparência. Eco recorre a Huizinga, que cita a carta de São Paulo aos Coríntios: "agora vemos obscuramente, como através de um espelho; depois veremos diretamente". (idem, p. 71). O homem medieval vivia (e eu arrisco dizer que assim vive o Mestre Ricardo) em um mundo povoado de significados, referências, suprasentidos, manifestação de Deus nas coisas, em uma natureza que falava continuamente uma linguagem heráldica, na qual um leão não era só um leão, uma noz não era só uma noz, um hipogrifo era igual a um leão porque, como este, era signo (...) de uma realidade superior. (idem, p.72).

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A natureza, por meio do que é dadivoso ou temível, é a forma como a divindade expressa a ordem do mundo, dos bens sobrenaturais, da forma como os seres humanos devem se portar para fazer jus às benesses da eternidade. Mesmo o que, na criação, parece hostil, é o signo de algo diverso; é o discurso de Deus, apesar de não ser imediatamente compreensível, e deve servir de guia para a compreensão de sua obra. Umberto Eco faz referência aos aforismos de Goethe: alegoria e simbolismo se distinguem na forma como se exprimem nas imagens: na alegoria, as imagens refletem permanentemente seus conceitos, oriundos dos fenômenos; no simbolismo, as ideias (o ideal) oriundas dos fenômenos apenas se deixam vislumbrar, permanecendo, no entanto, inexprimíveis, como uma razão da criação. E cita o romântico alemão: (...) É muito diferente que o poeta procure o particular em função do universal ou veja no particular o universal. No primeiro caso, tem-se a alegoria, na qual o particular vale só como exemplo, como emblema do universal; no segundo caso, revela-se a verdadeira natureza da poesia: exprime-se o caso particular sem pensar no universal e sem aludir a ele. Quem capta este particular vivente, capta, ao mesmo tempo, o universal sem ter consciência disto, ou conscientizando-se só mais tarde. (GOETHE, apud ECO, 1989, p. 76)

Esta ideia se desdobra em outra, ao se observar a dualidade do mundo em que Mestre Ricardo tem que transitar: seu universo simbólico próprio, que ele tão cuidadosamente reflete em suas criações, nem sempre é compreendido pelo público em geral, que, muitas vezes, busca no congo as diversões de uma festa carnavalesca. Ainda mais grave é uma percepção presente em alguns agentes daquilo que se convencionou chamar de cultura: os órgãos públicos, as entidades culturais, a imprensa e até a academia, que irão limitar o congo à sua manifestação. Obviamente, não se pode exigir de ninguém uma completa compreensão, e muito menos adoção, dos elementos mais profundos do universo do congo; mas, se na apreciação do fazer artístico contemporâneo tanto o público, quanto produtores e críticos são compelidos a compreender conceitualmente a obra, para além de sua imediata percepção, porque tal

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esforço intelectual é negado a uma manifestação tão rica de possibilidades interpretativas? É necessário ressaltar que, apesar de não haver uma clara distinção entre a beleza da criação divina e a beleza das obras de arte, como expressão do divino, o fazer artístico se encontrava em um plano inferior em comparação ao puro conhecer da filosofia ou da teologia, capazes de interpretar a mensagem divina oculta na beleza das coisas. A poesia (o fazer artístico), é um artifício, um meio de comparação para se chegar ao conhecimento do divino; não é um fim, em si. Citando Tomás de Aquino: "Chamamos sentido espiritual aquele sentido que é expresso pelas coisas significadas pela linguagem, cujas coisas significam outras. Este sentido espiritual funda-se no sentido literal e o pressupõe." (AQUINO, apud ECO, 1989, p. 96). A criação só é compreensível, aos humanos, por meio do que é sensível, que mostra o que não é, ou o que também é. Neste sentido, a arte não é desvalorizada como expressão, e sim, como fazer. A arte lança mão de metáforas que, do ponto de vista lógico, são falsidades; constrói imagens, que são agradáveis aos homens. Um mentira agradável é oposto do pensamento racional. Há, assim, um desinteresse pela arte como forma de se chegar à compreensão do divino. Somente na modernidade é que o artista será considerado um intérprete "confiável" do mundo. Deve-se perceber a distinção entre a concepção de artista como um instrumento da obra divina (o monge virtuoso, dedicado ao aprendizado, fluente nas línguas e linguagens da arte) e o artista moderno, o autor, referência de si mesmo e do mundo. Não é à toa que Eco faz menção a Dante como um divisor de águas na percepção medieval de artista. Oferecendo uma chave para a leitura de um de seus poemas, Dante afirma que sua obra não encerra um único significado: "(...) O primeiro é chamado literal, o segundo, ao contrário, significado alegórico ou moral ou anagógico" (ALIGHIERI apud ECO, 1989, p. 155). Ou seja, Dante, ao lançar mão do mesmo tipo de exercício teórico-racional de exprimir-se em alegorias, o faz com a consciência "construtiva" do texto, não como uma expressão do ideal, mas como uma obra da razão humana. Dante considera que a poesia tem dignidade filosófica, não inferior à teologia.

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O fazer artístico não é a razão última do trabalho de Mestre Ricardo Sales à frente da banda; não é, em si, a sua obra. Diferentemente das concepções moderna e contemporânea de artista, o trabalho de Ricardo é guiado por sua espiritualidade, à qual ele procura materializar nas vestimentas e nos estandartes, e na performance. Não é um discurso pessoal, nem criativo, no sentido de ser inédito ou único. Mestre Ricardo busca a beleza como um meio de manifestar sua devoção, e não um fim em si mesmo. Para isso ele, sem dúvida, demonstra grande talento na manipulação dos artifícios, no fazer artístico, como os copistas medievais que se destacaram na reprodução e interpretação dos textos sagrados. Seu trabalho se manifesta de forma cíclica, repetindo-se a cada ano, seguindo a liturgia do calendário festivo do congo: Cortada do Mastro no dia de Nossa Senhora Conceição; Puxada e Fincada do Mastro no Natal; e Derrubada do Mastro no domingo de Páscoa. Emula os ciclos da natureza, que lhe conferem sentido, pois que do trabalho na terra se extrai e se erige o seu elemento de ligação com o divino (o mastro), cuja derrubada, ao fim do ciclo, significa a distribuição, por entre os devotos, das graças do Santo. Mestre Ricardo une suas obrigações de mestre, no sentido de ser um sacerdote a conduzir a liturgia, com a de intérprete dos significados quie estão por detrás dela. Ao final do livro, Eco afirma que seria discutível estudar a Idade Média apenas como forma de demonstrar a sua suposta "superação" pelas eras posteriores. Ou, ainda, como referência invertida, como negação das formas de pensar medievais, não somente sobre a arte e a beleza, mas sobre o mundo. Em oposição à uma visão positivista da ciência, que se superaria continuamente, largando para trás os conceitos anteriormente utilizados, vemos que a estética medieval se apresenta como um pensamento próprio sobre arte e beleza, que pode iluminar a compressão daquela época, e também a compreensão dos sentidos da arte para o ocidente. Uma recapitulação da estética da Idade Média deve, antes mais nada, iluminar aquela época. Deve nos ajudar a compreender como pensavam os medievais, e não como nós pensamos, ou deveríamos pensar. (ECO, 1989, p. 189). Mas pode, igualmente, servir de referência teóricoconceitual para a observação de manifestações contemporâneas, como o congo.

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Como poderia haver uma noção tão perfeita de beleza, em um mundo tão tenebroso como o da Europa medieval, povoado por carestias, guerras, pestes e outras ameaças? Como se poderia pensar na criação como fruto da perfeição divina, em um mundo tão conturbado? Como se pode atribuir ao congo um sentido divinatório, se muitas vezes o que se vê é a dissolução da bebedeira? Para Eco, o pensamento estético medieval não procura esconder, ou negar, os horrores da realidade, mas oferecer um caminho de compreensão que não se limite à percepção dos sentidos. Os significados que o congo propõe, em suas manifestações sensíveis, somente são minimamente compreensíveis àqueles que mergulham em seu universo conceitual, "traduzindo" suas alegorias e símbolos, compartilhando os sentidos da festa. Mesmo atuando em um contexto urbano, cercados pelas contradições da modernidade (e, principalmente, do capitalismo), ou ainda, apesar mesmo deste contexto, Mestre Ricardo busca dar continuidade à sua missão. É neste ponto que retornamos às questões propostas por este exercício, sobre ser possível, ou não, apreciar o congo sem se engajar em seus valores. A resposta poderia ser outra questão: quais são as nossas reações aos exemplos da arte medieval, sem conhecermos o rico pensamento que a concebe? Sem a luz da complexa filosofia que conduz a produção artística do período, talvez o chamemos sempre, erroneamente, de "idade das trevas".

Referências bibliográficas ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989. SALES, Ricardo. Depoimento a José Otavio Lobo Name. Vitória: 23 de março de 2015.

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Estranha beleza

Alexandre Emerick Neves Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música Universidade Federal do Espírito Santo alexandreemerick@gmail.com

Resumo: A partir da História da feiura de Umberto Eco, apresento o que para muitos pareceu configurar o triunfo do feio na arte do século XX. Para perscrutar a subversão da histórica identificação da figura feminina com a beleza, analizo obras como as de Monica Piloni e Elisa Queiroz segundo a ideia de uso do corpo de Giorgio Agamben e o conceito de estranhamento na fruição estética defendido por Ernest Bloch. Portanto, em meio à tensão entre os juízos de beleza e feiura, sugiro a aparição daquilo que preferiro entender como estranha beleza. Palavras-chave: estética; arte contemporânea; estranha beleza.

Abstract: From Umberto Eco's book On ugliness, I present what for many seemed to shape the triumph of the ugly in the art of the twentieth century. To examine the subversion of the historical identification of the female figure with beauty, works such as from Monica Piloni and Elisa Queiroz are analyzed according to the idea of the use of the body of Giorgio Agamben and the concept of estrangness in the aesthetic fruition defended by Ernest Bloch. Therefore, amid the tension between the judgments of beauty and ugliness, I suggest the emergence of what I prefer to understand as strange beauty. Keywords: aesthetics; contemporary art; strange beauty.

Diante da vasta e eclética contribuição intelectual de Umberto Eco, meu atual interesse recai sobre sua instigante série de histórias compiladas entre 2004 e 2013. Com títulos atraentes que contemplam assuntos instigantes, como a História das terras e lugares lendários, neste conjunto de obras esse exímio romancista, historiador, teórico e professor demonstra toda a sua erudição na cuidadosa seleção de fontes. Seu louvável empenho desponta na cobertura de um extenso panorama histórico e de uma ampla diversidade cultural a cada tema abordado, assim como na imparcial relação com autores das mais distintas épocas e tendências. Mas é com a incisiva acuidade na apresentação dos

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tópicos que Eco desenvolve na introdução de cada capítulo que se torna ainda mais notável sua habilidade na articulação dos conceitos, sobretudo na severa observância dos contraditórios. Com características tão significativas, essa série exemplar de títulos, por vezes inusitados, nos proporciona aberturas profícuas para as discussões nela suscitadas. Para o diagnóstico daquilo que aqui é conceituado como estranha beleza, tomarei como base a interessante compilação que Eco realizou em História da feiura. Trata-se do segundo passo desse projeto editorial despojado do rigor formal dos ensaios acadêmicos, cuja leveza conduz o leitor por um itinerário sinuoso e envolvente, sem jamais perder a erudição. Entretanto, minha escolha pela História da feiura deu-se principalmente pela relação com o estado atual da minha pesquisa intitulada Corpo, caminhos e lugares, principalmente a partir da minha tese central que vê a História da Arte como a História dos modos de figurar o corpo, tomando como base a hipótese de um modelo antropomórfico de pensamento ocidental. Isso se justifica porque, logo no início da História da feiura, Eco assinala um tom narcisicamente antropomórfico na argumentação de Nietzsche, justamente quando o filósofo alemão nos lembra que a beleza e a feiura são definidas segundo um modelo específico (Nietzsche, apud Eco, 2007, p. 15). A partir da especificidade de tal modelo, o homem “considera belo tudo o que lhe devolve a imagem” e, mais que isso, o feio como juízo de valor é “entendido como sinal e sintoma de degenerescência” (Nietzsche, apud Eco, 2007, p. 15). Esse tom profundamente antropomórfico, assim como sua indissociável relação com as ideias de beleza e feiura, leva ao inevitável questionamento sobre “o que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo” (Nietzsche, apud Eco, 2007, p. 15). A questão posta aqui tem o intuito de analisar o processo no qual a humanidade deixou de conseguir - ou desejar - como devolução uma imagem artística bela, pelo menos não no sentido tradicional do termo, segundo as especificidades dos modelos históricos. O suposto declínio do dever histórico da arte em ralação à beleza, um desvio recebido tanto pelos acadêmicos quanto por alguns formalistas como omissão, teria levado a produção artística desde meados do século XIX a certo triunfo da feiura. As mentalidades mais ortodoxas receberam

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a ascensão “da vulgaridade como traição por parte daqueles que tinham a obrigação de estar acima dela” (Clark, 2007, p. 14.). Para alguns, especialmente os evolucionistas, trata-se de um processo interno de degenerescência do campo da arte, mas em consonância com a decadência da sociedade moderna que teria desviado o projeto civilizatório ocidental, até então baseado no pensamento metafísico e sustentado pelo racionalismo cientificista, culminando com o desencadeamento dos grandes conflitos mundiais. Em decorrência de tal processo acompanhamos, no transcorrer do século XX, uma pluralidade de movimentos artísticos de vanguarda, ativismos culturais e sociais como a contracultura, as críticas da diferença como o feminismo, a renovação dos pressupostos teóricos como os discursos sobre morte – até mesmo da própria arte -, e tantos outros movimentos, ativismos, críticas e teorias. Sem a pretensão de oferecer um escrutínio dos diversos motivos envolvidos numa afirmação ampla como essa, de um modo geral proponho apresentar e discutir alguns problemas que tomo como fundamentais para o entendimento da relação do campo da arte com os conceitos e os valoras de beleza e feiura, e de um modo mais específico me atenho às implicações recorrentes na arte contemporânea que me permitem atribuir-lhes o conceito de estranha beleza. Para a condução desse propósito eu selecionei algumas imagens que são acréscimos ao apropriado escopo oferecido por Eco, o que me pareceu necessário para responder à proposta do evento motivador desse texto 1. Assim, pretendo não apenas apresentar uma das obras dentre tantas importantes contribuições do autor, mas oferecer-lhe um verdadeiro elogio, o que somente se dá quando seus ricos esforços alcançam êxito, ou seja, quando a apreciação de sua obra resulta na fomentação de conhecimento a partir dos instigantes pressupostos por ela estabelecidos. Isso se torna ainda mais evidente diante da obra escolhida, por tratar-se de uma compilação de referências paradigmáticas para a discussão do tema proposto.

1

Este texto foi elaborado a partir da minha participação no Seminário Obras abertas: leituras de Umberto Eco, organizado pelo Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM) do Centro de Artes da UFES.

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Devo também destacar que não é sem motivo que Eco, para amenizar o risco de ser acusado de relativismo, admite já no início da sua História da beleza que aquilo que se considera belo é absolutamente dependente de sua época e circunscrito à sua cultura (ECO, 2012, p. 14). E assim, certamente, cada modelo herdará as especificidades advindas de seu criador, assim como de seu pertencimento histórico, social e cultural. Acontece que nenhum modelo jamais alcançou a almejada universalidade, e modelo algum se apresenta como algo absolutamente suficiente. A parcialidade dos modelos de beleza sobressaiu sobretudo quando a arte precisou dar conta da representação do Cristo flagelado. Foi em momentos como esse que se buscou argumentações suficientemente coerentes para sustentar a ascensão da iconografia cristã. Nesse ponto, basta lembrar-mos de uma obra emblemática como o Retábulo de Issenheim, de 1512-16, de Mathias Grunewald (Figura 1), para percebermos claramente a distinção entre o belo natural e o belo artístico, pois a arte seria capaz de representar de um modo belo algo entendido como naturalmente feio.

Figura 1. Matthias Grünewald, Retábulo de Isenheim, 1512 e 1516. Fonte: http://www.museeunterlinden.com/en/en-news/the-isenheim-altarpiece-2/

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A partir do pressuposto da encarnação do verbo divino, a relação da arte com a cristandade levantou o questionamento sobre “o que será a carne de nossas imagens” (MONDZAIN, 2013, p. 119). A procura de respostas para uma questão como essa não fixa o debate na esfera do discurso religioso, mas tem o intuito de fundar de um modo mais abrangente certa “verdade da imagem” (MONDZAIN, 2013, p. 231). Muitas questões relativas a tais buscas por verdades, paradoxalmente, parecem advir do corpo destituído de um modelo apriorístico, basta lembrar como “a destruição do corpo cristão martirizado nos deixou ver toda a sua economia” (MONDZAIN, 2013, p. 241). Portanto, o que aponto aqui é mais que a possibilidade de ruptura com modelos estabelecidos ou a necessidade de instituição de novos modelos, mas a essencial riqueza da economia do corpo figurado como algo capaz de dar acolhimento a uma infinidade de valores, de tal modo que a representação do corpo através de sua figura se dispõe a inclinar-se para além de toda representatividade apriorística. De certa forma em contradição com a cultura grega, que resguardava uma beleza suprema à estatuária dedicada à representação dos habitantes do Olimpo, a ênfase na humanidade do corpo de Cristo levou a iconografia ocidental a dignificar seu gesto, ainda que resultasse em prejuízo de sua aparência. Quanto a isso, a estética é lembrada por Eco, justamente quando afirma que “não se pode representar o Cristo flagelado, coroado de espinhos, cruxificado, agonizante, nas formas da beleza grega” (HEGEL, apud ECO, 2007, p. 49). Em consonância com o trecho de Isaías no qual aparece a única referência à aparência do Cristo na Bíblia2, na qual verificamos que o esperado messias seria desprovido de beleza, Agostinho resolveu a questão declarando que a deformidade exterior de Jesus exprimia a beleza interior de seu sacrifício. Com isso a beleza ainda permaneceria vinculada a um valor moral, mas agora desvinculada de uma bela aparência exterior. De fato, estou me referindo à consolidação da autonomia do belo na arte, da qualificação de suas especificidades e com elas o preciso delineamento da diferenciação entre o belo natural e o belo artístico, ou seja, do reconhecimento de uma beleza genuinamente artística e de sua legitimidade para estabelecer rigorosamente 2

Bíblia Sagrada, Isaías 53:27.

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sua independência diante da beleza da natureza. Assim, a beleza na arte não dependeria tão somente das qualidades naturais do objeto, mas sobretudo do domínio da forma artística e de seus atributos de representação. Portanto, a partir de tais hipóteses, algo tido como naturalmente feio – um cadáver pendente ou levado ao túmulo – pode ser motivo para uma bela representação artística. Para conduzir um ligeiro traspassamento histórico que perpasse algumas das especificidades na adoção, rejeição ou retomada de alguns dos modelos de beleza mais evidentes na História da Arte, adoto nesta discussão a recorrente personificação da beleza na figura da Vênus, seja de modo mais direto ou por analogia. Como ponto de partida, apresento duas figuras distintas, ambas da primeira metade do século XVI. Apesar da proximidade da época, podemos observar suas diferenças em relação às proporções, às poses, assim como em suas atitudes. Em primeiro lugar, vejamos como o descanso da Vênus adormecida de Giorgione (Figura 2), de 1509, é ambientado numa atmosfera amena, na qual sua plácida nudez exibe sua voluptuosa corpulência banhada por uma sensual luminosidade colorida. Por outro lado, a insinuante nudez da Vênus de Lucas Cranach (Figura 3), de 1532, é pintada de um modo contrastante diante de um fundo escuro e abstrato, o que lhe acentua a sinuosidade quase excessiva dos contornos sensuais que delineiam sua figura esguia. Parece evidente que o pintor veneziano concentra-se na maciez e na suavidade das massas que compõem os relevos do corpo de uma mulher, enquanto o artista nórdico prefere conduzir nosso olhar por um itinerário serpejante, pois enfatiza os contornos no percorrimento das linhas que salientam as curvas acentuadamente femininas. Mesmo uma apreciação ligeira como essa parece suficiente para ressaltar como a ideia de um modelo universal de beleza de fato jamais se consolidou. Os diferenciados padrões de intenção associados às demandas sócio-culturais, além das implicações políticas e ideológicas, sempre atuaram junto à criação artística de modo a acentuar as peculiaridades na diferenciação do uso de tais modelos. Porém, e acima de tudo, minha intenção é destacar como a adoção da Vênus como elemento axial do discurso me permite trabalhar dois pontos recorrentes e extremamente importantes para a discussão da estética na arte moderna e contemporânea: o dever histórico da

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arte em relação à expressão do belo, e o uso da figura feminina tomada historicamente como condutora exemplar da expressão da beleza.

Figura 2. Giorgione, A Vênus adormecida, 1509. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giorgione_-_Sleeping_Venus_-

_Google_Art_Project.jpg

Figura 3. Lucas Cranach (o velho), Vênus, 1532. Fonte: http://www.staedelmuseum.de/en/collection/venus-1532

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Diante do exposto, proponho um significativo salto até a arte contemporânea, pois o título de uma obra da artista sérvia Marina Abramovic ressalta essa dupla razão, tanto da arte quanto da mulher em dar conta de manifestar a beleza. Trata-se de Art must be beautiful, artist must be beautiful, de 1975 (Figura 4). Nessa videoperformance a artista se penteia durante quinze minutos de um modo insistente e exaustivo, enquanto repete as palavras que dão nome à obra. A entonação altera-se gradativamente da resignação ao repúdio, em correspondência direta com a expressividade de suas feições. Posicionada diante da câmera como se estivesse olhando-se num espelho, o gesto contundente de Abramovic soa como uma resposta crítica às exigentes demandas socioculturais que lhe são atribuídas como artista e como mulher, como alguém duplamente responsabilizada por acrescentar beleza ao mundo.

Figura 4. Marina Abramovic, Art must be beautiful, artist must be beautiful, 1975, videoperformance, 15 min. Fonte: https://www.moma.org/explore/inside_out/2010/04/06/listening-to-marina-abramovic-art-mustbe-beautiful-artist-must-be-beautiful/

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Não foi em vão que as performances de Abramovic repercutiram nas gerações de artistas do leste europeu que a seguiram, como na obra da artista moldava Tatiana Fiodorova, nascida um ano após a apresentação de Art must be beautiful, artist must be beautiful. Em The world is dirty, the artist must be dirty, de 2012 (Figura 5), Fiodorova ambienta sua ação com o uso de típicas sacolas de carregar compras, como referência tanto ao mercado da arte quanto às tarefas corriqueiras atribuídas ao universo feminino. Ao sentar-se diante da câmera, retira de uma das sacolas um pote de lama com a qual passa a cobrir seu corpo. Sua mestra já havia questionado o uso histórico da imagem da mulher na fase inaugural da arte da performance, assim como a dívida lançada sobre a mulher na sociedade em relação à beleza. Por isso, a ênfase do gesto da jovem artista recai sobre as regras do jogo no campo da arte e sobre o ardiloso elenco de papéis socioculturais atribuídos às mulheres. Livre para abdicar de qualquer compromisso com a beleza, Fiodorova corrobora a ideia de que, mais que a criação de belas imagens, a arte “deve lidar com questões conceituais e problemas na sociedade contemporânea, como a jovem Abramovic pensou" (BRYZGEL, 2017, p. 322).

Figura 5. Tatiana Fiodorova, The world is dirty, the artist must be dirty, 2012, videoperformance. Fonte: Maydanchik, M. Performance Art in Eastern Europe since 1960, MManchester: University Press, 2017, p. 322.

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Vinte e quatro anos após Art must be beautiful, artist must be beautiful, Abramovic admite que "naquela época, pensei que a arte deveria ser perturbadora e não bela. Mas na minha idade agora, comecei a pensar que a beleza não é tão ruim” (BRYZGEL, 2017, p. 322). A ponderação da artista me leva a acolher minha suspeição, de que o descontentamento, antes atribuído diretamente à beleza, de fato residia no tipo de demanda exigida diante dela. Aproveito para tratar de um elemento de tal demanda: Fiodorova tinha 36 anos em The world is dirty, the artist must be dirty, e Abramovic era ainda mais jovem em Art must be beautiful, artist must be beautiful, com apenas 29 anos de idade. Quero com isso ressaltar o uso histórico da jovialidade feminina como atributo de beleza e, em contrapartida, o uso da imagem do corpo envelhecido da mulher como representação da feiura. Eco destaca o trabalho de Patrizia Bettella em seu livro The ugly woman: Transgressive aesthetic models in Italian poetry from the Middle Ages to the Baroque, principalmente quanto à representação da velha como símbolo de decadência física e moral na Idade Média. De modo semelhante, cabe lembrar como a iconologia de Cesare Ripa apresenta várias imagens alegóricas nas quais a aparência da mulher velha está relacionada ao mundano e às paixões mais deploráveis, como na representação da Heresia (Figura 6), por exemplo, que “foi retratada como uma velha bruxa, de traços horripilantes destilando mentiras pela boca, liberando inúmeras serpentes, símbolos de astúcia e malícia” (NEVES; LITTIG, 2015, p. 192). Entretanto, quero chamar a atenção para o fato da convergência da velhice com a decadência ser posta sempre "em oposição ao elogio canônico da juventude como símbolo de beleza e pureza" (ECO, 2007, p. 159).

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Figura 6. Cesare Ripa, Della novissima iconologia, 1625, Herefia (pièce ou n° 151 / 352), xilogravura. Fonte: http://utpictura18.univ-montp3.fr/GenerateurNotice.php?numnotice=B0086

Junto ao apoio da beleza na juventude, quero observar um elemento que tradicionalmente corrobora a ideia de autonomia do belo artístico, pois Eco resssalta também que “é bom lembrar que quase todas as teorias estéticas, pelo menos da Grécia aos nossos dias, tem reconhecido que qualquer forma de feiura pode ser redimido por uma representação artística fiel e eficaz” (ECO, 2007, p. 20). Portanto, um dos aspectos primordiais do belo artístico diz respeito à maestria do artista em imitar aquilo que vê, ainda que esteja diante de algo naturalmente feio. É a partir desse argumento que o retrato que Albrecht Dürer fez de sua mãe pode nos parecer um belo desenho de uma mulher envelhecida (Figura 7). Além da fidelidade em relação ao seu modelo e do preciosismo nos detalhes, outro aspecto que atribui valor estético à imagem é a eficácia no uso dos elementos constitutivos da linguagem do desenho: os traços, as sombras, o domínio das proporções, o desafio de representar um rosto em um terço de perfil; em termos mais diretos, a arte seria capaz de redimir a feiura do modelo representado a partir do pleno domínio dos elementos constituintes da representação. Portanto, o campo da arte instituiu que, ainda que o modelo carregasse um aspecto de decadência do corpo, o bom uso da linguagem artística seria capaz e restituir-lhe certo frescor a partir das qualidades artísticas

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do corpo figurado. Ainda que não recebamos de volta uma bela imagem de nós mesmos diante do retrato de uma mulher velha, identificamos as qualidades humanas a partir do domínio técnico, material e formal na construção da imagem. De fato, não vemos ali tão somente a degenerescência da velhice, mas o vigor, a potência e a capacidade artística de figurar de um modo exemplar qualquer aspecto da nossa existência. A partir do domínio da mão e da mente, como convergência das ideias gregas de tekné, poiésis e mimesis, a arte ocidental alcançou certa elevação material, técnica e conceitual da forma como um tipo de conhecimento que pode ser assimilado e ensinado, constituindo um campo autônomo do saber.

Figura 7. Albrecht Dürer, Retrato de sua mãe, 1514, 42,1 x 30,3 cm. Fonte: Gombrich, E. H. História da arte. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999, p. 17.

Vem de longa data tal relação da beleza com a juventude, assim como a busca de uma perfeição de beleza que, de fato, somente poderia ser alcançada pela idealização artística. Lembremos que Zêuxis, um dos mais renomados pintores da Grécia antiga, era um artista extremamente meticuloso que, para a elaboração de uma pintura encomendada pelos agrigentinos para o templo de Juno Licínia, “examinou suas jovens nuas e escolheu cinco para reproduzir na pintura o mais admirável de cada uma delas” (PLINIO, O VELHO; in: LICHTENSTEIN, 2004, p. 75). Apesar da proximidade entre juventude e beleza,

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parece claro que, para o pintor clássico, jovem alguma ostentaria uma perfeição de beleza em toda a sua aparência, possibilidade aberta somente aos deuses, e dada aos olhos somente pela arte. Não obstante as eloquentes e por vezes estridentes vozes libertárias, a ânsia por responder às expectativas dos modelos específicos de beleza pode chegar às vias da escravidão ainda hoje. Com a superlativa realidade imagética contemporânea, tal risco torna-se ainda mais eminente, é o que demonstram algumas obras do fotógrafo polonês Andrzej Dragan. Ele trabalha digitalmente seus retratos para que atinjam uma qualidade pictórica de beleza, como num resgate do belo artístico autônomo comentado acima, capaz de impor-se como uma qualidade intrínseca ao meio a despeito da aparência do modelo. Nesse retrato em particular, Marta, de 2005 (Figura 8), o artista conjuga de modo ambíguo a beleza e a feiura, o fotográfico e o pictórico, o realismo e a ficção, o sacrifício e o flagelo, e, acima de tudo, a vitalidade juvenil com a decadência senil. Mais uma vez o aporte aqui vem do argumento antropomórfico de Nietzsche, quando o ser humano se coloca como medida da perfeição e é levado a considerar belo aquilo que devolve a ele a sua imagem pretendida, o que, em contrapartida, o induz a ver como feio seu próprio declínio, justamente quando não lhe é devolvida a tão desejada, talvez impossível, perfeição. A ambiguidade e a incerteza parecem permear tanto a busca quanto a expressão da beleza no decorrer das épocas, perpassando o desenvolvimento dos meios de produção e recepção imagéticos.

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Figura 8. Andrzej Dragan, Marta, 2005, fotografia digital. Fonte: http://andrzejdragan.com/

Como vimos, a busca de perfeição na produção artística a partir de um virtuosismo técnico e de um realismo ilusionista ganhou contornos inusitados na arte contemporânea. A instigante relação entre fotografia e escultura pode ser comentada na obra da artista curitibana Monica Piloni. Trata-se do esforço de uma artista que apresenta como mulher as características hoje atribuídas a uma beleza referencial, por vezes buscada de modo doentio, como vimos na obra de Dragan: cabelos loiros, pele clara e corpo longilíneo. Com

autorretratos

compostos

por

esculturas

hiperrealistas

confeccionadas a partir de moldes tirados do próprio corpo, Piloni parece se desvencilhar das armadilhas da sujeição da mulher à beleza estereotipada. Os moldes a princípio foram confeccionados para compor uma bailarina, mas mostraram-se interessantes quando foram dispostos de maneiras diversas sobre uma cama. Fragmentado, desconjuntado e estranhamente sensual, na obra E por que haverias de querer minha alma na sua cama?, de 2014 (Figura 9), o corpo encontra-se disposto numa configuração inusitada. A instalação foi fotografada para gerar um autorretrato tão atrativo quanto repulsivo, sobretudo pela exploração das questões relativas à identidade envoltas em fetiche e

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beleza, afetividade e perversidade. E, de fato, o uso da fotografia justifica-se por não se tratar de uma obra escultórica, mas de uma situação instaurada a partir de elementos escultóricos. Mas a fotografia é também usada como expressão de certo poder da artista sobre a figuração de seu corpo, como um modo de condicionar o olhar do espectador a um ponto de vista por ela privilegiado. Como revela a própria artista3, a estranheza advém - eu diria parte dela - da eliminação do tronco da figura. Uma ausência ainda mais significativa quando faz alusão à masturbação em Minha alma sob a cama, de 2014 (Figura 10), pois a expressão de indiferença de seu rosto contrasta com seu olhar fixo para fora do plano de figuração. Neste caso, o uso da fotografia como condutora do olhar para seu retrato faz com que a suposta exploração solitária do autoprazer seja dividido de modo incerto com o espectador.

Figura 9. Monica Piloni, E por que haverias de querer minha alma na sua cama?, 2014, escultura e fotografia, pigmento sobre papel, edição de 13, 66 x 99 cm. Fonte: http://www.monicapiloni.com/E-por-que-haverias-de-querer-minha-alma-na-sua-cama

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Entrevista da artista Monica Piloni para a revista Bravo!, publicada em 8 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kTWQhFV9eaI

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Figura 10. Monica Piloni, Minha alma sob a cama, 2014, escultura e fotografia, pigmento sobre papel, edição de 13, 66 x 99 cm. Fonte: http://www.monicapiloni.com/Minha-alma-sob-a-cama

Ainda sobre tais armadilhas ligadas à aparência do corpo, sobretudo a respeito do condicionamento do lhar, eu lembro de uma cena de Ensaio sobre a cegueira, filme de 2008 baseado no livro homônimo de José Saramago, na qual aparece uma mulher nua desleixadamente deitada numa cama, vista de um ângulo inusitado (Figura 11). Trata-se de uma referência ao quadro Retrato noturno de cabeça para baixo, pintado por Lucian Freud em 2000 (Figura 12). A citação do pintor realista no filme de Fernando Meirelles parece significativa, principalmente se lembrarmos que o enredo do filme, e do livro, trata de uma epidemia de cegueira que atinge quase toda a população da terra. Com isso, como acontece na cena aqui referenciada, muitas pessoas deixam de se preocupar com a nudez, e consequentemente com a aparência do seu corpo. A citação do artista inglês é expressiva porque esse quadro faz parte de uma série de pinturas que toma como modelo mulheres gordas, cujos corpos geralmente não são usados em cenas de nudez no cinema, somente em ocasiões com conotações bem específicas, senão cômicas.

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Figura 11. Cena do filme Ensaio sobre a cegueira, de 2008, dirigido por Fernando Meirelles e baseado no livro homônimo de José Saramago.

Figura 12. Lucian Freud, Retrato noturno de cabeça para baixo, ost, 2000. Fonte: https://www.wikiart.org/en/lucian-freud/night-portrait-face-down-2000

Não são poucos os artistas que adotam modelos que fogem aos padrões específicos de beleza vigentes. Devedora da expressividade e da robustez das pinturas de Lucian Freud e Francis Bacon, a britânica Jenny Saville é uma artista

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que me parece ter uma obra bastante propícia para essa discussão, particularmente no quadro Juncture, de 1994 (Figura 13). Pelo modo dificultoso como o corpo figurado se acomoda no plano pictórico, apesar de sua dimensão elevada, a superfície do quadro não parece ser suficiente para acomodar a figura de maneira adequada. A imagem se comporta por vezes como uma fotografia sangrada ao sofrer cortes abruptos, como no topo da cabeça da mulher, enquanto seu nariz amassado na borda do quadro e seu braço espremido no canto inferior denotam um esforço considerável para seu corpo entrar na história da arte como um ícone pictórico aceitável, ainda que estranho.

Figura 13. Jenny Saville, Juncture, 1994, ost, 304,8 x 167,6 cm. https://br.pinterest.com/dickmannl/contemporary-art-figuration/

Mas é com a obra de Elisa Queiroz que pretendo concluir minha reflexão sobre a manifestação de uma estranha beleza na tensão entre beleza e feiura na arte contemporânea. A artista capixaba fez uma série de autorretratos em que o uso livre do seu corpo obeso aparece como o elemento conceitual de sua obra. De certa forma parece acenar para o como não paulino4 como a “capacidade de “usar” a condição factícia em que cada um se encontra” para atuar “na desativação e na desapropriação da condição factícia, que, dessa forma, se abre 4

Apóstolo Paulo, 1 Coríntios 7:29-32.

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para um novo uso possível” (AGAMBEN, 2017, p. 78). É exatmente no uso de seu corpo como um elemento relacional que a artista se insere no campo da arte e se integra ao corpo social. Como a diversidade de possibilidades abertas com a arte moderna e expandida com a arte contemporânea torna desconfortável a subserviência a um modelo específico de beleza, a artista parece sentir-se livre para usar com dignidade a imagem de seu corpo, figurando-o com referências a imagens paradigmáticas da História da Arte e com elementos vulgares da cultura popular e midiática. Como Monica Piloni, Eliza Queiroz recorre à fotografia para registrar as situações instauradas a partir da imagem de seu corpo, mas prefere a encenação de momentos lúdicos, como na referência que faz à paradigmática pintura de Manet na obra Piquenique na relva com formigas, de 2004 (Figura 14), um quadro elaborado a partir da impressão em papel de arroz sobre biscoitos. Com a artista fazendo figuras de si, pode-se admitir a máxima acepção do conceito de reciprocidade, pois deve-se observar que “ocupar-se consigo mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é sujeito de relações com outro sujeito, é ser sempre esse sujeito que se serve e que é servido” (AGAMBEN, 2017, p. 52). Sirva-se, de 2002 (Figura 15), é um autorretrato que demonstra como o uso do seu corpo estabelece de modo exemplar essa relação de reciprocidade. Agora numa imagem impressa em saquinhos de chá, Elisa cria uma atmosfera intimista com o espectador, ambientação aproximada às imagens autorreferenciais de Piloni. A artista aparece deitada sozinha e vestida de modo insinuante numa cama rodeada de frutas. Também encara de modo direto o espectador, mas dirige-lhe junto ao olhar um prazeroso sorriso. Assim, a artista parece sentir-se livre para figurar-se de modo irônico em meio aos elementos que são associados de modo banal à obesidade, presentes também nos inusitados suportes adotados, numa relação ambígua de prazer ofertado ao espectador. A relação com o prazer me fez lembrar de ter assistido, num conhecido programa televisivo dedicado à educação, o relato de uma experiência de aula com o uso das figuras arredondadas do pintor colombiano Fernando Botero. Após a apresentação de algumas obras de Botero, a turma recebeu uma séria de desenhos parciais de traços similares ao do artista modernista. Foi-lhes pedido que desenhassem as

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comidas que gostavam nas folhas que receberam. A princípio me pareceu que o alunado seria provocado de modo a lidar com inquietações que os levariam ao autorreconhecimento de suas características físicas e de suas famílias, com alguma reflexão sobre as diferenças, a diversidade, e tantas outras que poderiam enriquecer a tarefa de aula. Contudo, ao final do exercício supostamente didático, as guloseimas desenhadas pelas crianças foram agrupadas pela professora e preencheram a barriga de uma grande figura de Botero que se formou pela justaposição dos trabalhos no chão. Vê-se, a partir de um exemplo como esse, que a atitude de Eliza não é infundada, e que a performatividade de sua autofiguração constitui-se como um embate mais amplo com a questão da beleza, com a convergência de valores artísticos e sociais.

Figura 14. Elisa Queiroz, Piquenique na relva com formigas, 2004, impressão em papel de arroz sobre biscoito, 170 x 87 x 10 cm. Fonte: https://www.overmundo.com.br/overblog/artepara-degustar

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Figura 15. Elisa Queiroz, Sirva-se, 2002, impressão em saquinhos de chá e caixa de acrílico, 160 x 160 x 40 cm. Fonte: https://www.overmundo.com.br/overblog/arte-para-degustar

Portanto, a partir da análise da História da feiura de Umberto Eco, assim como de sua inevitável relação com a sua precedente História da beleza, adoto o estranhamento como o despertar de possibilidades antes ocultadas ou esmaecidas pela subserviente observação dos modelos específicos de beleza. Tomado por essa perspectiva, o “estranhamento é neste ponto o oposto exato da alienação” (BLOCH, 2005, p. 361). Proponho que a feiura seja aqui admitida não somente como uma antítese à beleza, senão como uma estranha beleza, um estranhamento diante daquela beleza que se libertou dos ditames identitários de seu tempo e lugar, ou ainda que subverteu de algum modo certos modelos específicos de beleza em determinadas instâncias culturais. Uma estranheza que nos liberta de “um embotamento em relação ao cotidiano” e que nos faz “ver nos objetos ocasionalmente significados que, no cotidiano, apenas um pintor competente descobriria” (BLOCH, 2005, p. 361). Portanto, mais que um fechamento, proponho uma provocação, com o intuito de demonstrar a diversidade de caminhos para figurar o corpo, e como qualquer um desses itinerários podem ser tomados para demonstrar a pulverização de qualquer possibilidade

de

sujeição

da

beleza

a

um

modelo

específico

na

contemporaneidade. É o que uma obra como a de Eliza Queiroz pode nos revelar, sobretudo pelo sincero enfrentamento do uso de si, por não esperar que

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o mundo lhe devolva uma bela imagem, mas por figurar-se de modo a gozar da reciprocidade e devolver ao mundo uma bela imagem, ainda que nos restem motivos para estranhamento.

Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017. BLOCH, Ernest. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. BRYZGEL, Amy. Performance art in eastern Europe since 1960. Manchester: Manchester University Press, 2017. CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. São Paulo: Cosac Naift, 2007. ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007. ____________ História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2012. MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. NEVES, Alexandre Emerick; LITTIG, Sabrina Vieira. A representação alegórica na obra Mulher má de Francisco de Goya (1746-1828): análise narrativa e iconológica. In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20, 2015. PLÍNIO, O VELHO. História natural. (Livro 35). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.) A pintura. Vol. I. O mito da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 73-86.

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O problema da formatividade nos trabalhos teóricos de Umberto Eco: origens, posicionamentos, e uma leitura recente no campo da musicologia Fabiano Araújo Costa DTAM / Professor Adjunto fabiano.costa@ufes.br

Resumo: No presente ensaio buscamos as principais referências ao conceito de formatividade de Luigi Pareyson, no pensamento de Umberto Eco, procurando identificar e contextualizar as formas que essa noção assumiu ao longo do projeto teórico do autor, notadamente nas obras A definição da arte (1968 [1955-1963]); Obra aberta (1962); A estrutura ausente (1968), e Tratado geral de semiótica (1975). Em seguida, veremos como este debate contribuiu para a formalização teórica de uma recente abordagem inter e transdisciplinar no campo da musicologia, a saber, a Teoria da formatividade audiotátil, de Vincenzo Caporaletti, que tematiza problemáticas relativas à “maneira de formar música” nas culturas. Palavras-chave: formatividade; estética; cultura; musicologia; audiotátil. Abstract: The present study represents a search for the main references regarding Luigi Pareyson's concept of formativity in Umberto Eco’s work, aiming to identify and contextualize the forms this notion has embodied throughout the author's theoretical project, namely: A definição da arte (1968 [1955-1963]); The Open Work (1962); La struttura assente (1968), and A Theory of Semiotics (1976). Subsequently, we will see how this debate has contributed to the theoretical formalization of a recent interdisciplinary and transdisciplinary approach in the field of musicology, i.e., the Audiotactile Formativity Theory, by Vincenzo Caporaletti, which thematizes problems related to the “way of forming music” in cultures. Keywords: formativity; aesthetic; culture; musicology; audiotactile.

Introdução Em 1954, Umberto Eco laureou-se em filosofia na Universidade de Turim com uma tese dirigida por Luigi Pareyson, precursor da hermenêutica moderna, e autor da obra Estetica: teoria della formatività5, publicada nesse mesmo ano. A leitura de Eco sobre essa obra de Pareyson é complexa, e a influência deste último em seu trabalho teórico não é um mero fator biográfico. Ao contrário, seus

Em função da relevância das particularidades das edições das obras que serão aqui apresentadas, adotaremos o critério da referência a título correspondente à edição em questão. Quando nos referirmos à obra contemplando todas as suas edições, usaremos o título em português. 5

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primeiros ensaios de estética, escritos entre 1955 e 1963 – que foram recolhidos e republicados posteriormente em La definizione dell’arte (1968) – mostram em que medida seu projeto teórico é fundado sobre uma reflexão sobre o problema da formatividade. Essa referência é citada na “nota introdutória” da antologia de ensaios de 1968: Não é por acaso que o volume se inicia com um exame da estética de Luigi Pareyson (ou, pelo menos, da fase do seu pensamento que culmina em Estetica – teoria della formatività): na realidade, todos os estudos deste livro estão marcados pelo clima de investigação em que me formei, na Faculdade de Estética de Turim, e documentam de várias formas o modo como assimilei, através de inevitáveis acentos pessoais, os temas da estética da formatividade (ECO, 2011 [1968], p. 8).

Nessa passagem, Eco refere-se ao seu ensaio A Estética da Formatividade e o Conceito de interpretação (ECO, 2011, p. 11-32) que consiste na reunião da sua resenha sobre a Estetica (1954) de Pareyson, já publicada em julho de 1955 na revista Lettere Italiane; e da sua resenha sobre a comunicação L’interpretazione dell’opera d’arte (apresentada por Pareyson em 1957, no III Congresso Internazionale di Estetica, Turim)6, que havia sido publicada em 1958, no primeiro volume na revista Il Verri. É também de 1958 – e presente em La definizione dell’arte – o texto seminal Il problema dell’opera aperta (apresentado no XII Congresso Internazionale di Filosofia, Veneza, 1958)7 a partir do qual Eco redigiu o ensaio L’opera in movimento e la coscienza dell’epoca (1959) para a revista Incontri Musicali – dirigida por Luciano Berio – antecipando o texto La poetica dell’opera aperta8, que inaugura seu livro Opera aperta, publicado em 1962. Nas três principais versões de Obra aberta, Eco fará referências explícitas à Pareyson e à noção de formatividade, como na Introdução da 1ª edição italiana, de 1962, onde o autor adverte sobre as consequências de sua posição crítica em relação à formulação original desta noção: Enfim o leitor perceberá, seja através das citações diretas ou das indiretas, a dívida intelectual que contraí de Luigi Pareyson. A Cf. AA.VV., Atti del III Congresso Internazionale di Estetica, Edizioni della Rivista di estetica, Torino: 1957, p. 183-189. 7 Cf. Publicado em Atti del Congresso, vol. VII, Firenze: Sansoni, 1961, p. 139. 8 Cf. ECO, 1997, p. v-vi. 6

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pesquisa sobre as estruturas das formas contemporâneas é conduzida sempre referindo-se à noção de “formatividade” sobre a qual trabalha a Escola de Estética de Turim. No entanto, como é mérito do diálogo filosófico, as respostas formadas podem ter encontrado inquietudes pessoais e sido integradas a um horizonte de problemas dos quais apenas o autor pode assumir a responsabilidade9 (ECO, 1997, p. 14).

No Apêndice da edição francesa, de 1965, a referência ao problema da formatividade aparece mais diluída10: Quanto às relações entre a forma e o processo de sua interpretação, tema central para minha pesquisa, devo muito à escola de estética da Universidade de Turim, isto é, ao pensamento de Luigi Pareyson (ECO, 1965, p. 314). 11

Finalmente, na introdução à 2ª edição italiana, de 1968 – versão utilizada como base para a edição brasileira – a referência é endereçada à teoria da formatividade como um todo, enfatizando sua relação com o problema da interpretação: Enfim, das citações e das referências indiretas, o leitor depreenderá a dívida que contraí da teoria da formatividade de Luigi Pareyson; eu não teria chegado ao conceito de “obra aberta” sem a análise que ele fez do conceito de interpretação, embora o quadro filosófico, onde depois inseri tais contribuições, seja de minha inteira responsabilidade (ECO 1991 [1968], p. 36).12

A próxima referência direta aparecerá em uma nota no Tratado geral de semiótica, de 1975, que comenta e coloca em perspectiva sua tese sobre o texto estético como ato comunicativo: “Infine il lettore si renderà conto, sia attraverso i riferimenti diretti che quelli indiretti, del debito intellettuale che ho contratto con Luigi Pareyson. La ricerca sulle strutture delle forme contemporanee è condotta sempre in riferimento a quella nozione di “formatività” intorno alla quale lavora la Scuola di Estetica di Torino. Anche se, come è merito del dialogo filosofico, le risposte che ci hanno formato possono avere incontrato inquietudini personali ed essersi integrate in un orizzonte di problemi di cui solo l’autore può assumersi la responsabilità” (ECO, 1997, p. 14). 10 Deve-se considerar que embora o termo “formatividade” fosse conhecido dos estudiosos de filosofia na Itália desde a época de seu surgimento, 1954, a Teoria da formatividade recebeu sua primeira tradução para o francês apenas em 2007, por Gilles A. Tiberghien. Antes disso, o único texto de Pareyson, em francês, que tratava do problema da formatividade encontrava-se em Conversations sur l’esthétique, publicado em 1992, pela Gallimard, e também traduzido por Tiberghien. 11 “Quant au thème des rapports entre la forme et le processus de son interprétation, thème central pour ma recherche, je le dois pour beaucoup à l’école d’esthétique de l’Université de Turin, c’est-à-dire à la pensée de Luigi Pareyson” (ECO, 1965, p. 314) 12 “Infine, dalle citazioni e dai riferimenti indiretti, il lettore si renderà conto del debito che ho contratto con la teoria della formatività di Luigi Pareyson; e non sarei arrivato al concetto di “opera aperta” senza l’analisi che egli ha condotto del concetto di interpretazione, anche se il quadro filosofico in cui ho poi inserito questi apporti coinvolge soltanto la mia responsabilità” (ECO, 1997, p. 28). 9

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O texto estético torna-se assim fonte de um ato comunicativo imprevisível, cujo autor permanece indeterminado, ora sendo o emitente, ora o destinatário que colabora com sua expansão semiósica (ECO, 2002 [1975], p. 233). Seria útil, portanto, tentar retraduzir em termos de interação estética todos os aportes de uma teoria dos ‘speech acts’, por exemplo Searle (1969) – de um lado – e as estéticas da interpretação, de outro (cf. Luigi Pareyson, Estetica - Teoria della formatività) […] particularmente, o capítulo sobre a interpretação), pondo-os em contato, com as atuais estéticas da ‘textualidade’, que no fundo, se originam da entrevista de Barthes (1963) à Tel Quel, para quem a obra de arte é uma forma que a história passa o tempo a preencher. Corrigiremos esta última afirmação assim: a obra de arte é um texto que é adaptado por seus destinatários de modo a satisfazer vários tipos de atos comunicativos em diversas circunstâncias históricas e psicológicas, sem nunca perder de vista a regra idioletal que a rege. o que vem a ser a tese exposta, em forma ainda pré-semiótica, em Opera Aperta (idem, p. 233, n. 63).

De posse deste quadro contextual, propomos uma análise mais detalhada sobre o problema da formatividade em si, em sua forma original; e em seguida, sobre os posicionamentos críticos de Eco, e as formas deste posicionamento ao longo das versões das obras Obra aberta (1962); A estrutura ausente (1968), e Tratado geral de semiótica (1975). Finalmente, apresentaremos um desdobramento atual desta discussão teórica, que produziu a especificação da formatividade em perspectiva mediológica e cognitiva, com implicações epistemológicas no campo da musicologia.

1. Origens: Luigi Pareyson e a Estética da formatividade Para tentar compreender a perspectiva de Eco sobre a Estética da formatividade, devemos retomar as motivações que levaram Pareyson a produzir, nos anos 1950, a teoria da formatividade, em particular, sua crítica e atualização da estética de Benedetto Croce13. Para Croce, que era um filósofo idealista, a materialização da arte não era importante, e a ideia criativa era uma coisa independente da sua realização, que por sua vez era considerada uma mera “manifestação objetiva” (estrinsecazione) da ideia.

Ver ao menos CROCE, B., Essais d’esthétique, traduit par Gilles Tiberghien, Paris, Gallimard “Tel”, 1991; e Id., Bréviaire d’esthétique, tr. par Georges Bourgin, Paris, Éditions du Félin, 2005 [1923]. 13

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A posição de Pareyson, ao contrário, é de que a realização da obra é da mais alta importância porque a realização depende da interpretação, que é, por sua vez, conexa à pessoa. Para Pareyson, a realização de formas é um ato essencialmente interpretativo na medida em que uma forma só pode ser interpretada por uma pessoa, e que a pessoa é um ser essencialmente interpretante de formas (pensamento compartilhado também por Heidegger). Pareyson entende, portanto, que a pessoa que interpreta é a pessoa de cria recriando uma forma, o que em Umberto Eco será entendido como semiose ilimitada14. Pareyson fala da formatividade como uma especificidade da operatividade humana, onde há também a dimensão prática. Na sua Estética, no entanto, este conceito assume uma dimensão especializada, tornando-se formatividade artística. Como operação própria dos artistas a arte não pode resultar senão da ênfase intencional e programática sobre uma atividade que se acha presente em toda a experiência humana e acompanha, ou melhor, que constitui toda manifestação da atividade do homem. Essa atividade, que de modo genérico é inerente a toda a experiência, e se oportunamente especificada, constitui isto que propriamente denominamos arte, é a “formatividade”, um certo modo de “fazer” que, enquanto faz, vai inventando o “modo” de fazer: produção que é, ao mesmo tempo e indissoluvelmente, invenção. Todos os aspectos da operatividade humana, desde os mais simples aos mais articulados, têm um caráter, ineliminável e essencial, de formatividade. As atividades humanas não podem ser exercidas a não ser concretizando-se em operações, i.e, em movimentos destinados a culminar em obras. Mas só fazendo-se forma é que a obra chega a ser tal, em sua indivídua e irrepetível realidade, enfim separada de seu autor e vivendo vida própria, concluída na indivisível unidade de sua coerência, aberta ao reconhecimento de seu valor e capaz de exigi-lo e obtê-lo. Nenhuma atividade é operar se não for também formar, e não há obra acabada que não seja forma (PAREYSON, 1993, p. 20).

A formatividade deve ser entendida antes de tudo como uma atitude geral da operatividade humana, onde se aplica o caráter de “unitotalidade”15 da pessoa. Nessa concepção, o obrar humano constitui-se em três dimensões: a dimensão Cf. ECO (2002, p. 60). Conceito recorrente em todo o pensamento de Pareyson, segundo o qual graças à essência unitária da experiência humana da pessoa, esta pode se especificar em dimensões diferentes e autônomas. 14 15

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teórica (o pensamento), a dimensão prática (a moral), e a dimensão artística (a estética, definida como formatividade). Na formatividade geral predomina a função prática do formar, que é uma função transitiva (uma função prática, portanto, para fazer alguma coisa, por exemplo: utilizamos um certo material para uma determinada finalidade, como assinar, apagar, ou cavar). Na formatividade artística, por sua vez, predomina a função estética, que é intransitiva, no sentido que ela não é funcional à outra dimensão, mas uma função em si é por si mesma. A formatividade que se especifica na arte forma algo que não tem uma função transitiva e é por isso que Pareyson criou dois argumentos: a formatividade é ao mesmo tempo (1) a energia que forma e (2) interpretação. No plano teórico, Pareyson estabelece uma dupla caracterização da forma com o par conceitual forma formante/ forma formada, onde a forma formante é o princípio de organização imanente da obra em consonância com a maneira de formar do artista ; e a forma formada é a imagem estética da obra finalizada.

2. Posicionamentos: A perspectiva de Umberto Eco sobre a formatividade. De uma teoria da forma a uma teoria das formas da cultura Na já mencionada resenha de 1958, publicada 10 anos depois na antologia de ensaios de estética A definição da arte, o argumento central de Eco se apresenta como uma objeção à tese pareysoniana da metafísica da figuração16 onde Pareyson “pressupõe a presença de um Figurador que constitui as formas naturais inteiramente como pontos de partida de possíveis interpretações [spuntos]17, não pontos de partida amorfos e casuais, mas densos de intenção” (ECO, 2011, p. 23); e sobretudo a tese segundo a qual [...] A metafísica da figuração e a estética da forma estão [...] essencialmente ligadas, porque somente uma metafísica da figuração é capaz de fundar e justificar aquele incindível nexo de produção, contemplação e contemplabilidade que o conceito de forma implica (idem, p. 26).

16 17

Cf. PAREYSON (1965, p. 59); PAREYSON (1993 , p. 266-267) e ECO (2011, p. 25). Cf. ARAUJ COSTA (2015).

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Como nota Eco, este argumento ocupa uma posição especial na estética de Pareyson e é articulado justamente na dialética entre o spunto e a interpretação (cf. idem, p. 21-22). Recusando, porém, esta relação, Eco propõe uma leitura alternativa da Teoria da formatividade atendo-se apenas ao aspecto fenomenológico do sistema pareysoniano, entendido como “teoria das formas como produtos da cultura”. Assim, aquele que se volta para esta estética para nela encontrar a descrição dos processos de formação e a interpretação das formas no âmbito da intersubjetividade humana, encontra-se (por assim dizer), livre do compromisso metafísico, que o autor [Pareyson] assume pessoalmente a um nível ulterior da sua investigação; e este facto explica a influência exercida pela estética de Pareyson, inclusivamente naqueles que apenas estavam interessados numa teoria das formas vistas como produtos da cultura. Quer dizer: esta estética que, nos seus limites, põe por conta própria o problema da fundamentação “natural” de uma experiência “cultural” funciona também como guia para quem quiser mover-se simplesmente ao nível das relações culturais (idem, p. 26).

Deve-se reter desta passagem que Eco assume se guiar pela ideia da formatividade passando por cima do postulado da “fundação natural da experiência cultural”, marcando assim a passagem do entendimento da teoria da formatividade como uma teoria das formas como produto da cultura. Logo em seguida, Eco desenvolverá sua crítica em direção à teoria da interpretação de Pareyson, a qual, como já dito, é conexa à noção de pessoa. Na verdade, como remarca Thorsten Gubatz, com essa posição de abstenção metafísica, Eco se distancia do personalismo ontológico de Pareyson – que postulava que a pessoa é relação com o ser em virtude da revelação ou da ocultação da verdade da parte da própria pessoa – para se ocupar apenas do ser “ôntico”, isto é, da interpretação da realidade da pessoa, sem considerar questões sobre a “realidade de si mesmo” (cf. GUBATZ, 2007, p.71). Em seu primeiro livro Obra aberta, publicado em 1962, Eco concretiza sua perspectiva da formatividade como uma teoria das formas nas culturas, resultando em uma concepção de cultura baseada na reflexão estética, isto é na produção e interpretação de obras de arte:

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Em fenômenos complexos como a compreensão de uma forma estética, onde interagem fatores materiais e convenções semânticas, referências linguísticas e culturais, aptidões da sensibilidade e decisões da inteligência […] [t]rata-se, na realidade, de fenômenos estéticos que a estética – embora possa estabelecer suas possibilidades em geral – não pode explicar na sua particularidade. É tarefa que cabe à psicologia, à antropologia, à economia e às outras ciências que estudam justamente as mudanças verificadas no interior das várias culturas. (ECO, 1991 [1962], p. 88)

Eco sustenta essa tese opondo a fundamentação do personalismo ontológico de Pareyson ao argumento da metaforologia da forma artística (cf. idem, p. 56 et sq). Em outras palavras, enquanto Pareyson funda ontologicamente a definição de formatividade sobre a estrutura da realização de formas pela pessoa (cf. idem, p. 151 et sq) – isto é, como uma teoria da realização de objetos, por excelência –, Eco transforma esse paradigma na perspectiva cultural, onde o sentido especulativo da obra de arte se orienta em conformidade com o paradigma das “metáforas epistemológicas”18. A premissa geral dessa argumentação assume que a obra de arte reflete a cultura de seu tempo: Entretanto, toda forma artística pode perfeitamente ser encarada, se não como substituto do conhecimento científico, como metáfora epistemológica: isso significa que, em cada século, o modo pelo qual as formas da arte se estruturam reflete – à guisa de similitude de metaforização, resolução, justamente, do conceito em figura – o modo pelo qual a ciência ou, seja como for, a cultura da época vêem a realidade (ECO, 1991 [1965], p. 54-55).

Em consequência disso surge a concepção de que o papel do artista é o de ser consciente e portador da visão de mundo de sua época (no contexto contemporâneo da segunda metade do séc. XX, portanto, a ambiguidade da comunicação, as infinitas possibilidades da forma, e a completa liberdade de interpretação) enquanto o papel do intérprete (Eco prefere o termo “fruidor”) é o de recriar a seu modo, o produto indefinido e aberto proposto pelo artista. Daí a função de uma arte aberta como metáfora epistemológica: num mundo em que a descontinuidade dos fenômenos pôs em crise a possibilidade de uma imagem unitária e definitiva, esta sugere um modo de ver aquilo que se vive, e vendo-o, aceitá-lo, Cf. Idem., p. 56; O personalismo ontológico de Pareyson considera incontestável a diferença entre ontologia e epistemologia. 18

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integrá-lo em nossa sensibilidade (idem, p. 158).

Nas obras A estrutura ausente, de 1968, e Tratado geral de semiótica, de 1975, Eco volta seu olhar em direção à perspectiva da cultura como processo e sistema semiótico. Ao retraçarmos o itinerário teórico do autor percebemos como o problema da formatividade e da interpretação é transformado afastando-se do personalismo ontológico de Pareyson para uma teoria das formas nas culturas, até assumir a configuração de estruturalismo ontológico, com seu projeto semiótico. Neste sentido, é possível compreender tanto a ideia de idioleto estético quanto a de semiose ilimitada como derivações e distanciamentos da raiz pareysoniana. O idioleto estético, por exemplo, é definido desde A estrutura ausente como a regra (pessoal/idiossincrática) que governa todo desvio da estrutura do texto (preservando, todavia, a funcionalidade deste último). É essa noção que substituirá o princípio do personalismo na reconfiguração da formatividade em Eco. A ideia da semiose ilimitada, que foi explicitada apenas no Tratado de semiótica, postula que quando se investiga a fundo um fenômeno, nós interpretamos como acreditamos que este deva ser interpretado, e nesse caso, Eco refere-se ao encadeamento dos interpretantes, conceito que ele retoma de Pierce, para o qual uma ação individual sobre um objeto é o interpretante deste objeto, e todo signo que nos leva a outro signo é igualmente um interpretante. Nessa linha, Eco considera que o encadeamento dos interpretantes é o encadeamento da semiose, e esta concepção tem uma origem na relação pareysoniana entre pessoa, forma e interpretação. Basta lembrar que para Pareyson, a interpretação deve ser entendida como uma forma de conhecimento que é necessariamente e constitutivamente múltipla e infinita (cf. PAREYSON, 1993, p. 14). Francesco Ciglia descreve em detalhe essa tese pareysoniana: uma mesma forma é constitutivamente susceptível de uma infinidade de interpretações diferentes, seja por uma mesma pessoa, que pode se posicionar em uma infinidade de perspectivas diferentes ; seja por uma infinidade de pessoas diferentes, que podem igualmente se posicionar, cada uma, em uma infinidade de perspectivas diferentes (CIGLIA, 1995, p. 153

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[Nossa tradução])19.

Em suma, a noção de formatividade foi concebida teoricamente por Pareyson nos anos 1950, com um carácter existencialista e singularizante assumindo aportes de seu personalismo ontológico e hermenêutico. Esta noção foi reinterpretada por Eco no anos 1960, assumindo a perspectiva de uma teoria das formas de cultura com um impostação estruturalista e generalizante.

3. Uma leitura no campo da musicologia: a especificação em chave mediológica da “formatividade audiotátil” de Vincenzo Caporaletti No início dos anos 1970 na Universidade de Bolonha, Vincenzo Caporaletti, então discípulo de Umberto Eco, começa a desenvolver um estudo sobre a natureza da experiência formativa musical concentrando-se sobre o fenômeno do swing. A base especulativa desse estudo foi precisamente a teoria da formatividade, em uma leitura influenciada pela perspectiva semiótica de Eco. Seu primeiro tratado La definizione dello swing é publicado em 2000, e neste o termo formatividade é apresentado ao fundo de uma articulação conceitual entre o problema da intencionalidade formativa geral e suas dimensões mais específicas, particularmente aquelas ligadas à cognição e à corporalidade. Essa articulação é formalizada em um primeiro momento com as categorias como “swing-idioleto” e “swing-estrutura”, herdados da concepção estruturalista de Umberto Eco de idioleto estético20 como a declinação normativa pessoal/criativa e a estrutura como a dimensão normativa geral do fenômeno. Embora esse modelo tenha se apresentado funcional para a compreensão da dimensão estética, permanecia a necessidade de um princípio que explicasse a natureza fenomenológica do swing. Surge nesse momento a problematização de um ponto específico da leitura de Eco sobre a formatividade: o conceito de “canal” comunicativo em sua qualidade de medium21. Ora, Eco interpreta o problema do medium com o esquema conceitual da linguística, onde há um “[...] una stessa forma è costitivamente suscettibile di un’infinità di interpretazioni differenti, sia ad opera di una medesima persona, che può collocarsi in un’infinità di prospettive differenti, sia ad opera di un’ infinità di persona diferenti, le quali, a loro volta, possono ben collocarsi ciascuna in un’ infinità di prospettive personali differenti.” 20 Cf. ECO (1997, p. 57 et seq); ECO (2011). 21 Convencionamos o uso da forma em latim medium para o singular e media para o plural. 19

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“emitente”, um “destinatário” e um “canal”. Isto é, onde o emitente produz a mensagem, o destinatário recebe a mensagem que irá se individualizar em um “canal”. Caporaletti irá buscar uma atualização deste modelo à luz das teorias da comunicação da Escola de Toronto. Partindo do argumento do paradoxo macluhiano “the medium is the message” (MCLUHAN, 1964, p. 7), segundo o qual o fator primordial da comunicação é o medium e não o conteúdo, Caporaletti pondera que o canal comunicativo influencia substancialmente a mensagem e por isso não pode ser considerado como elemento neutro. De posse desse argumento, o autor passa a considerar mais detidamente o fato que o canal comunicativo da música de tradição escrita é distinto do canal comunicativo da música de tradição oral. No entanto, atentando não apenas à dimensão mediológica da comunicação, mas também à dimensão cognitiva, o autor passa a considerar a distinção mcluhiana entre as culturas (os media) “visual” e “audio-tátil”22. A crítica caporaletiana consistirá, a partir de então, na categorização em chave antropológica e mediológico-cognitva dos media implicados nas fases produtiva (poiética) e receptiva (estésica) das experiências musicais nas culturas identificando seus respectivos princípios epistêmicos23. Com esta chave metodológica o autor define o princípio audiotátil como medium cognitivo, realizando com isso uma passagem da pertinência do medium comunicativo (oral/escrito) para aquela do medium formador da experiência24, onde a mediação se desvincula do horizonte comunicacional do modelo linguístico, para um horizonte mais amplo da factualidade poiética, de natureza não verbal, assumindo um papel formativo-estruturante-contextual. Nesse quadro, o princípio audiotátil surge como medium conceitual que define a natureza psico-cinética do swing e como fundamento estético do swing. Não avançaremos maiores especificidades deste conceito, e nos contentaremos em

Inicialmente, McLuhan distingue a cultura “visual” fundada nos princípios epistêmicos da escrita da cultura “acústica” transformada pelos princípios epistêmicos da eletrônica. Mais tarde, em The Global Village (1989), o autor irá aprimora a ideia de “Audio-tactile space”. 23 A linearidade, a construção sequencial, a segmentação da experiência, etc., no caso da função visualescrita; e em relação à função perceptiva/produtiva audiotátil: a preeminência de fatores ligados à energia corpórea, como a produção de timbre, dinâmicas ritmico-fônicas, improvisadas, o swing, o groove, etc. 24 Cf. BARILLI (1974, p. 47). 22

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evidenciar que neste movimento Caporaletti retoma aspectos da concepção original da formatividade pareysoniana, partindo da perspectiva cultural da formatividade de Eco. De certo modo, ao tratar da experiência estética do swing (e posteriormente da improvisação e do groove) como formatividade, Caporaletti considerou em sua pesquisa a emotividade e a singularidade, e a semiótica apresentava neste sentido uma lógica com tendência mais racionalista e esquemática. Em relação ao problema da formatividade, portanto, enquanto a semiótica e a semiótica musical buscam a estrutura em uma direção generalizante, a audiotatilidade volta-se, com Pareyson, em direção à singularização da pessoa. O delicado equilíbrio entre essas orientações epistemológicas pode ser sintetizado da seguinte maneira: de um lado a formatividade audiotátil retém de Eco a visão da formatividade como produto da cultura, especificando os efeitos das mediações culturais sobre a maneira de formar de diferentes culturas musicais, e neste sentido, a maneira como as culturas se representam artisticamente. De outro lado, a formatividade audiotátil retém a visão pareysoniana de formatividade pessoal, especificando a ideia de forma formante em perspectiva mediológico-cognitiva. Esse passo foi fundamental para a configuração dos pressupostos teóricos da formatividade audiotátil onde encontramos uma leitura que equilibra os aspectos “existencialistas” do “personalismo” pareysoniano, o plano formal da estrutura do swing, e também as implicações das mediações culturais e tecnológicas sobre a maneira de formar (ou, sobre a formatividade das) músicas nas culturas da era eletrônica: Se a inspiração da primeira redação de La definizione dello swing [2000], ainda fortemente estruturalista, era impregnada daquele clima dos anos setenta onde a tese foi concebida, o presente volume [Swing e Groove (2014a)] se propõe a uma inspiração pós-pós estruturalista, com um interessante retorno à origem (CAPORALETTI, 2014a, p. ix [Nossa tradução]).25

“Se l’impostazione della prima stesura de La definizione dello swing, ancora fortemente strutturalista, risentiva del clima degli anni settanta in cui fu concepita, ho fatto in tempo per questo volume ad attingerne un post-post-strutturalista, con curioso ritorno all’origine”. (CAPORALETTI, 2014a, p. ix). 25

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Considerações finais Vale notar que as reflexões do ensaio A poética da obra aberta de Eco são suscitadas pela observação do autor sobre as poéticas de compositores da vanguarda do final dos anos 1950 como Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Henri Pousseur e Pierre Boulez; enquanto as reflexões da formatividade audiotátil são suscitadas pela observação do jazz, do rock e do pop. Isto é, de um lado, pela “música contemporânea” ou de tradição ocidental, ou Contemporary Art Music; e do outro lado, por músicas academicamente identificadas pela etiqueta Popular music. Há nesses dois polos o fator comum da abertura que se confunde com a improvisação, sobretudo no que diz respeito a certas expressões artísticas que derivaram de um lado e de outro, respectivamente, como free music e free jazz, no final dos anos 50 e durante os anos 60 e 70. Sobre esse tema Denis Levaillant, em seu L’improvisation musicale: essai sur la puissance du jeu fornece diversos exemplos de debates com depoimentos de artistas das duas referidas escolas (ou microculturas) que exibem seus respectivos pontos de vista sobre os critérios de autenticidade da improvisação, e mesmo suas reivindicações de paternidade da linguagem “free” (até o desdém da maneira de formar alheia). A era eletrônica e digital abriu uma nova dimensão de dinâmicas inter e transculturais na produção e recepção da música. Os fenômenos de “globalização” e “glocalização” produziram um tipo realidade musical que não se encaixa nas categorias (1) savante-erudita-Art Music, (2) Oral-Étnico, (3) Popular. Há que se considerar, alternativamente, a realidade de uma música de formatividade audiotátil, fruto de processos complexos de interação e transculturação, onde o medium formante se identifica com as músicas de tradição oral, e com o intérprete (ou performer) da música de tradição escrita ocidental; e a representação estética da forma formada se identifica como objeto artístico, graças ao medium da gravação musical, que alcança estatuto textual e pertinência estética semelhante, em grau, à partitura, e distinta em substância.

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Referências bibliográficas ARAÚJO COSTA, F. Pluralité de ‘spuntos’ et formativité audiotactile: un nouveau regard sur l’improvisation musicale collective. Itinera: Rivista di filosofia e teoria delle arti, Nuova serie, nº 10, p.216-233. Disponível em: Doi :<http://dx.doi.org/10.13130/2039-9251/6661>. BARILLI, R. “L’estetica tecnologica di Marshal MacLuhan”, in: Tra presenza e assenza: due modelli culturali in conflito. Milano: Bompiani, 1974, p. 45-85). CAPORALETTI, V. Swing e groove: sui fondamenti estetici delle musiche audiotattile. Lucca: LIM, 2014. CIGLIA, F. Ermeneutica e libertà: l'itinerario filosofico di Luigi Pareyson, Roma: Bulzoni Editore, 1995. ECO, U. A Definição da Arte. Lisboa: Ed. 70, 2011 [1968]. _______. La definizione dell’arte. Milano: Mursia, col. “GUM”, 1985 [1968]. _______. Opera aperta. 4ª edizione, Milano: Bompiani, col. “Saggi Tascabili”, 1977 [1962]. _______. L’œuvre ouverte. traduit par Chantal Roux de Bézieux , Paris: Seuil, col. “Points”, 1965 [1962]. _______. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, col. “Debates”, 1991 [1962]. _______. La strutura assente. Milano: Bompiani, 1968. _______. La structure absente: introduction à la recherche sémiotique. Traduit de l’italien par Uccio Esposito-Torrigiani, Paris: Mercure de France, 1972 [1968]. _______. A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva, col. “Estudos”, 1997 [1968]. _______. Trattato di semiotica generale. 1ª edizione digitale (Kindle) da 19ª edizione Studi Bompiani 2008. Milano: Studi Bompiani, 2011 [2008 ; 1975]. _______. Tratado geral de semiótica. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002 [1975]. GUBATZ, Th. Umberto Eco und sein Leher Luigi Pareyson. Vom ontologischen Personalismus zur Semiotik. Berlin: LIT, col. “Pontes”, 2007. LEVAILLANT, D. L’improvisation musicale: essai sur la puissance du jeu. Paris: Actes Sud, 1998 [1981]. MCLUHAN, M. Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw Hill, 1964. MCLUHAN, M. & POWERS, B. The Global Village: Transformation in World Life and Media in the 21st Century. Oxford: Oxford University Press, 1992 [1986]. PAREYSON, L. Teoria dell’arte. Saggi di estetica. Milano: Marzorati, 1965 [1950]. _______. Estetica. Teoria della formatività. Milano: Tascabili Bompiani, 1991 [1954]. _______. Estética. Teoria da formatividade, tradução de Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis: Editora Vozes, 1993 [1954]. _______. Esthétique. Théorie de la formativité, tradução Gilles A. Tiberghien. Paris: Editions Rue d’Ulm, 2007 [1954].

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2. O NOME DA ROSA: TRAMA MEDIEVAL E QUESTÕES DO SÉCULO XXI 63


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A QUEIMA DE LIVROS DURANTE A HISTÓRIA DA HUMANIDADE

Fotograma do filme “O Nome da Rosa” durante a cena da queima da biblioteca do mosteiro.

Fotograma do filme “O Nome da Rosa” durante a cena da queima da biblioteca do mosteiro.

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Assedio da cidade de Alexandria, 47 a. C.

Queima de livros pelo padre Savonarola, Florencia, 1497.

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3. UMBERTO ECO: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

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Informação, memória e cultura na era digital: considerações a partir da obra de Umberto Eco David Ruiz Torres PNPD/CAPES – PPGA UFES druiztorres@ugr.es

Resumo: A partir do diálogo que tanto Umberto Eco como Jean-Claude Carrièrre mantêm na publicação "_não contem como o fim do livro" (2009), trataremos várias abordagens sobre a cultura cibernética destacando o papel do livro frente a sua mais recente versão digital. No colóquio que se estabelece, enfatizaremos o amplo conceito de memória que aparece como um eixo fundamental dos questionamentos de ambos personagens, dada a importância informacional do livro durante vários séculos. Este conceito de memória parece relevante já que foi considerado como importante para a transmissão da cultura na chamada sociedade digital por vários autores que serão protagonistas indiretos no presente texto. As ideias contidas no diálogo de Umberto Eco e Jean-Claude Carrièrre servirão de pretexto para enfrentar ou aproximar posições relacionadas ao livro, o qual consideram como uma das invenções da humanidade mais consolidada contra o advento dos e-books e as novas gerações de leitores digitais. Palavras Chave: sociedade digital; livro; memória; cultura; informação.

Abstract: From the dialogue that both Umberto Eco and Jean-Claude Carrièrre maintain in the publication Non sperate di liberarvi dei libri (2009), several approaches will be addressed on cybernetic culture, highlighting the paper's role in front of its latest digital version. In the colloquium that is established, it will be emphasized the broad concept of memory that appears as a fundamental axis of the questionings of both characters, given the informational importance of the book during several centuries. This concept of memory seems relevant since it was considered as important for the transmission of culture in the so-called digital society by several authors who will be indirect protagonists in this text. The ideas contained in the dialogue of Umberto Eco and Jean-Claude Carrièrre will serve as a pretext to confront or approximate positions related to the book, which consider as one of the inventions of humanity more consolidated against the advent of e-books and the new generations of digital readers. Keywords: digital society; book; memory; culture; information

Cibercultura e informação A sociedade do início do século XXI experimenta uma época de mudanças sem precedentes causadas pela presença da tecnologia digital e computacional em todas as esferas de nossa vida cotidiana. Isso é algo perceptível desde a última década do século passado que continua se produzindo como um processo

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progressivo o qual supõe o aparecimento de uma nova época, que tem recebido o nome de cibercultura por vários autores contemporâneos. Por exemplo, esse termo de cibercultura seria tomado pelo autor francês Pierre Lèvy para definir “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Assim, a cibercultura não estaria determinada unicamente pela presença dos dispositivos informacionais, mas também pelos usuários desse ciberespaço, presentes como parte constituinte do universo computacional. Uma definição mais completa e abrangente estaria nas palavras de Lucia Leão, quando afirma que o ciberespaço: engloba as redes de computadores interligadas no planeta (incluindo seus documentos, programas e dados); as pessoas, grupos e instituições que participam dessa interconectividade e, finalmente, o espaço (virtual, social, informacional, cultural e comunitário) que emerge das inter-relações homensdocumentos-máquinas (2004, p. 9).

Portanto, quando nos referimos aos conceitos de cibercultura ou ciberespaço, devemos ter presente a configuração da natureza do universo ao qual pertence nossa sociedade e que afetam, necessariamente, ao nosso pensamento e à maneira de como enfrentar a realidade. Nessa etapa da história recente, denominada como cibercultura, se produz uma mudança na distribuição dos produtos e serviços culturais, educativos e de informação.

Diferentemente

dos

períodos

anteriores,

não

apenas

se

condicionam a uma mediação tecnológica, tendo em vista o aparecimento de novas práticas e necessidades derivadas da sociedade digital. E, talvez, quando nos referimos às novas formas de distribuição da informação, estamos aludindo à mudança mais significativa nesta etapa que tem levado a cunhar o termo "era da informação". Esse termo se referiria ao período em que o fluxo de informações tornou-se mais rápido do que o movimento físico, e começou a ser usado a partir de 1990. Assim, ainda que a era da informação teve início na segunda metade do século XIX, com a invenção do telefone e da telegrafia, apenas poderíamos falar pertinentemente de “era da informação” a partir da expansão da Internet global e do meio digital.

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Destacaria-se, deste modo, a primazia da informação e como se transmite, constituindo eminentemente um determinante socioeconômico em nossa sociedade. Isso é algo que podemos confirmar quando, no ranking das grandes fortunas do mundo, segundo a revista Forbes 2017, aparecem nomes como o co-fundador da rede social Facebook, Mark Zuckerberg, ou o co-fundador da empresa de software Microsoft, Bill Gates (Dolan e Kroll, 2017). Falamos de formas de transmissão da informação e, neste contexto, o livro, como detentor das informações por vários séculos, também se viu alterado com o surgimento dos suportes digitais que apresentam suas atribuições e funções, abrindo um leque de novas possibilidades ou potencialidades exploradas neste início de século. Um tema tão relevante que será analisado por vários autores, como veremos a seguir, manifesto no diálogo de Umberto Eco e Jean-Claude Carrièrre na publicação "_não contem como o fim do livro" (2009) na qual, em seu papel como grandes bibliófilos, trataram várias abordagens destacando o papel do livro frente a sua mais recente versão digital. Certamente, a dualidade do debate entre o livro tradicional e o livro digital ou ebook será a principal questão a ocupar uma grande parte dos comentários dos autores contemporâneos que analisam o futuro do livro como era conhecido tradicionalmente. Para o autor italiano, esta problemática não teria grandes discussões como nos mostrará na veemente afirmação “o livro não morrerá”, presente no início do debate entre ele e o cineasta francês. E, para argumentar este convencimento, Eco nos levará a uma serie de comparações entre o livro e outras invenções da humanidade que existem inalteradas até nosso presente. Assim, o autor italiano afirmará que “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados” (Eco; Carrière, 2010, p. 17). Assim, o livro tem se mostrado inalterado desde sua aparição por vários séculos e isso é algo que merece ser considerado previamente às teorias mais apocalípticas sobre a imposição do e-book como único médio de leitura e, em definitiva, de acesso à informação. Isso nos refere uma das constantes na teorização do que realmente sugere o aparecimento da cibercultura na nossa sociedade, pois mais que uma

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substituição dos elementos da cultura material que até agora existiam por outros de natureza digital, o que aconteceria de fato é que estes acrescentam novas potencialidades aos já existentes. Lucia Santaella será uma das autoras que apresentará este grau de superposição de culturas, realizando uma progressão desde as primeiras manifestações até a mais recente cibercultura. Ela menciona como “substratos da cibercultura” outras cinco eras culturais anteriores que identifica com a oral, a escrita, a impressa, de massas e das mídias, sendo a sexta e a última era a chamada como “digital”, na qual o ciberespaço se constitui como eixo fundamental. Para a autora, o mais importante é que estas formações culturais convivem simultaneamente na nossa contemporaneidade e, mais que o desaparecimento da era anterior, assistimos a um reajustamento do já existente (Santaella, 2003, p. 77-78). Portanto, a cibercultura se apresenta como um leque de novas possiblidades para a transmissão da informação, uma função primordial no advento do livro, e que as novas tecnologias digitais favorecem com um potente efeito multiplicador. Assim, Heloísa Buarque, compartilhando as ideias de Eco e de Santaella, afirma sem nenhuma dúvida que: “...se a história continuar se repetindo, tudo indica que bons ventos devem soprar a favor do livro impresso: uma vez liberado de sua responsabilidade enquanto veículo na transmissão da informação e da referência, o livro não tem porque não potencializar positivamente as enormes perspectivas abertas para a criatividade editorial, que a entrada das linguagens digitais e que as novas tecnologias de armazenamento desenvolvidas pelos bancos de dados virtuais permitem. Portanto, ao contrário das previsões pessimistas, esse momento deve ser o momento do livro” (s/d).

Eis, então, como o livro no contexto da cibercultura aumenta suas possiblidades sem deteriorar sua essência mais primitiva como detentor e, principalmente, transmissor de informações. Este ultimo seria de grande importância, pois o surgimento do livro supôs o aparecimento da divulgação massiva e, com ele, a democratização do conhecimento e da cultura em níveis superiores aos anteriores séculos. Se pensamos nos conceitos de transmissão de informações, divulgação massiva, democratização do conhecimento, pensaríamos também

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em uma realidade recente que possui as mesmas caraterísticas e que no contexto da cibercultura recebe o nome de ciberespaço. Sobre o ciberespaço, Pierre Lèvy definirá este como um "espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores" (2010, p. 94), referindo-se ao novo meio como um cenário global configurado por uma série de redes computacionais que aparecem conectadas e interligadas entre si. Quando nos referimos ao ciberespaço, não devemos considerar unicamente os componentes tecnológicos, mas que sua configuração se efetiva mediante vários atores que participam desse novo cenário. Assim, seria necessário considerar uma definição mais abrangente do ciberespaço, como a de Lucia Leão, para quem este: engloba as redes de computadores interligadas no planeta (incluindo seus documentos, programas e dados); as pessoas, grupos e instituições que participam dessa interconectividade e, finalmente, o espaço (virtual, social, informacional, cultural e comunitário) que emerge das interrelações homens-documentos-máquinas (2004, p. 9).

Todas as definições de ciberespaço materializaram-se com o aparecimento da Internet que, ainda representando uma parte deste, conseguiu reunir todas as possibilidades do meio digital e do ciberespaço, especialmente com sua liberação para o conjunto da sociedade na década de 1990. A Internet viabilizou uma rede de dimensões globais cujo acesso à informação se realiza de maneira democrática, embora sejamos cientes das limitações recentes que impossibilitam o potencial original da rede. Mesmo assim, a Internet tem se constituído como um espaço para a comunicação científica e acadêmica desde seu aparecimento, sendo uma das ferramentas essenciais para qualquer pesquisa. Evidenciando o potencial do meio digital, tem se convertido em um espaço para o ócio, a cultura e o comercio, um espaço para multitarefas, no qual podemos administrar vários âmbitos do nosso cotidiano. Em qualquer caso, podemos considerar que a tela do computador se vê como uma janela à informação, mais ainda quando já não está limitada ao dispositivo desktop, e sim disponível por

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meio dos dispositivos móveis, que têm possibilitado uma ubiquidade sem limitações físicas no acesso, nos convertendo em escritores/leitores nômades. O acesso à informação no meio digital se apresenta de uma nova forma além da disponibilidade, pois a maneira como se produz a leitura dessas informações no meio digital nos oferece grandes possiblidades, aproveitando a flexibilidade do meio e diversidade de formatos - textuais ou multimídia. Assim, comparada ao livro como detentor da informação, a Internet facilitou um tipo de acesso às informações não lineares, isto é, que o modo como se produzem as leituras de um texto não tem uma sequência das informações como acontece com as páginas de um livro. Realiza-se, portanto, a leitura por associação de ideias ou conteúdos graças ao que se denomina como o hipertexto. Esse hipertexto estabelece o elo entre os diferentes conteúdos que levariam a leitura através de um percurso que se determina em função dos interesses do usuário. Arlindo Machado se refere ao hipertexto e a essa maneira de interconexão dos conteúdos, que: [...] não se trata mais de um texto, mas de uma imensa superposição de textos, que se pode ler na direção do paradigma, como alternativas virtuais da mesma escritura, ou na direção do sintagma, como textos que correm paralelamente ou que se tangenciam em determinados pontos, permitindo optar entre prosseguir na mesma linha ou enveredar por um caminho novo (1997b, p. 183).

Eis, que o hipertexto oferece uma nova configuração no acesso à informação que mudaria substancialmente o modo como se gera e se transmite o conhecimento. Se nos referimos aos sistemas tanto de escrita como de leitura tradicionais, aqui surgem novas possibilidades como já foi apontado no texto de Arlindo Machado: É possível que o livro do futuro [...] não seja mais um objeto que se possa ter à mão. É possível que ele chegue até nós através da linha telefónica ou por cabos de fibra óptica, depois de circular em redes telemática tipo Internet, e que o leiamos e o vejamos numa tela eletrônica sobre a qual podemos também escrever e desenhar, de modo a devolver à circulação o nosso texto, superposto àquele que recebemos (1997, p. 147).

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A novidade do novo meio, o digital, em muitos casos, permitirá uma sucessão de variantes e combinatórias no ato da escrita, no qual não somente teremos um autor, mas outros autores que acrescentariam os conteúdos do texto inicial. Da mesma forma, o ato da leitura também tem se visto alterado e aqui já não devemos falar como leitura propriamente senão de “navegação”, atendendo à forma de transitar de umas informações para outras. Entretanto, esse potencial oferecido pelo meio digital e o hipertexto não devem substituir o livro como meio de informação, pois este tem albergado durante séculos esta função. Deveríamos considerar, dessa forma, a partir da ideia de substratos da cultura que comentávamos anteriormente, que dispomos de uma facilidade relacionada à produção e circulação das informações e, em definitiva, uma melhora na capacidade de aquisição do conhecimento. As potencialidades que o novo meio, representado pela Internet, oferece para o acesso à informação e ao conhecimento foram também destacas por Umberto Eco, em _não contem com o fim do livro. O autor considera a capacidade da Internet de nos devolver à era alfabética de escritores e leitores, após a cultura dos mass mídia ter predestinado o audiovisual como meio de comunicação essencial na sociedade do século XX: Com a Internet, voltamos à era alfabética. Se um dia acreditamos ter entrado na civilização das imagens, eis que o computador nos reintroduz na galáxia de Gutenberg, e doravante todo mundo vê-se obrigado a ler. Para ler é preciso um suporte. Esse suporte não pode ser apenas o computador (2010, p. 17).

Se prestamos atenção às últimas palavras, o autor coloca uma crítica importante com a questão da chegada das tecnologias digitais como substituição de todos os elementos ou dispositivos presentes na anterior era analógica. Um pensamento frequente e que, como temos já mencionado, não se corresponde com a sequência das diferentes culturas até nosso presente. Apesar desta crítica, o autor considera também este convívio entre as duas culturas, a da escrita e a digital, como perfeitos aliados no acesso e transmissão de informações que não se excluem mutuamente, mas geram um cosmos informacional sem precedentes.

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Do mesmo modo, seria pertinente resgatar aqui também as palavras de Giselle Beiguelman na obra O livro depois do livro, que também considerava esta conjunção de suportes informacionais como um dos paradigmas mais importantes alcançados em nossa sociedade atual: São as zonas de fricção entre as culturas impressas e digitais o que interessa, as operações combinatórias capazes de engendrar uma outra constelação epistemológica e um outro universo de leitura correspondentes às transformações que se processam hoje nas formas de produção e transmissão dos textos, dos sons e das imagens (2003, p. 13).

Portanto, graças à conjunção do meio digital com o meio impresso, as possibilidades informacionais são enormemente diversas, pois os textos se acompanham de conteúdos multimídia e vice-versa, ampliando, assim, as capacidades cognitivas no contexto da leitura e aquisição do saber do leitor/usuário.

E-memoria e e-cultura Ao longo do presente texto, deparamo-nos com um conceito que se encontra estreitamente relacionado à transmissão e à gestão de informações, como o de memória. Desde a tradição oral, passando pela escrita, até a digital, a preservação da memória tem sido uma das constantes na história da Humanidade, como um projeto inato na nossa natureza para conservar e preservar a cultura para gerações futuras. Nesse contexto, o livro também tem desempenhado seu papel como instrumento preservador da memória e da cultura desde sua aparição no século XV. Essa função do livro se viu ampliada pelo aparecimento de outros instrumentos que se constituíram como principais complementares desse importante labor da conservação da memória. Especialmente, podemos falar dos formatos analógicos surgidos na era dos mass mídia como o vídeo, a rádio, a TV..., que supuseram também outros suportes e formas de comunicar e conservar a informação. Com a cibercultura, o meio digital tem oferecido uma grande quantidade de suportes, muitos destes seriam uma versão digital dos formatos já conhecidos com novas propriedades,

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e outros seriam suportes totalmente novos, como os grandes arquivos digitais hospedados na Internet e chamados popularmente como “nuvem”. As possibilidades dos novos suportes têm ocasionado uma drástica transição do formato analógico ao digital em vários âmbitos, por exemplo, na indústria musical, no jornalismo, na produção cinematográfica ou no processo de editoração. Nesses casos, os sistemas de produção tradicionais têm sido substituídos pela versão digital de forma progressiva, devido, principalmente, a uma série de vantagens que se correspondem com as demandas de nossa sociedade atual. Mas, quando nos referimos às possibilidades do livro, seu homólogo digital, o ebook, tem sido questionado inúmeras vezes e, na prática, o novo formato tem se mostrado muito menos valorizado que nos outros setores mencionados. Isso se dá pelo fato de que o livro ainda é considerado o suporte mais apropriado para a leitura, e não é algo que podamos discutir, pois nos encontramos ante uma invenção de cinco séculos de história, nos quais tem se mostrado invariável como detentor e transmissor das informações. Uma das maiores críticas tem sido a incessante obsolescência dos suportes digitais em um espaço de tempo muito curto, apenas três décadas, nas quais alguns desses suportes têm desaparecido e, consequentemente, as informações neles gravadas. Esse fato tem gerado certas dúvidas na perenidade das informações hospedadas em suportes digitais, entenda-se, os disquetes, CDROMs, DVDs, HDs, e recentemente a chamada nuvem digital instalada na Internet. Muitos desses suportes já entraram em desuso, sendo uma tarefa quase impossível encontrar algum dispositivo leitor de algum desses formatos de armazenamento de dados. Uma situação que levaria a cunhar a frase de que não existe “nada mais efêmero do que os suportes duráveis” para um dos temas de debate entre Umberto Eco e o cineasta Jean-Claude Carrièrre, recolhendo uma contradição que se produz em nossa sociedade digital atual. Desse modo, desde o aparecimento dos novos suportes digitais, existe um processo incessante de digitalização de tudo o que existe, tanto das culturas dos passado como da mais recente, realizando uma cópia digital que permite

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maiores possibilidade de edição, reprodução e divulgação que o original. Mas também encontramos um outro fato contraproducente, já que, ao mesmo tempo, estamos constantemente atualizando de um suporte para outro mais recente no intuito de não perder as informações que já foram digitalizadas. A pesquisadora Giselle Beiguelman se pergunta pertinentemente sobre as vantagens reais de preservar nossa memória e nossa cultura mediante um processo de digitalização, exposto constantemente a numerosas falhas: Como lidar com memorias tão instáveis, que se esgotam juntamente com a duração dos equipamentos e cujas tipologias não correspondem aos modelos de catalogação das coleções de museus e arquivos? Que memoria estamos construindo nas redes, onde o presente mais que imediato parece ser o tempo essencial? (2014, p. 12).

Assim, ainda que muitos elementos de nossa cultura material possuam uma cópia digital atualmente, ainda vivemos uma incipiente cibercultura, na qual convivemos inexperientemente com o novo meio. Como em qualquer outra cultura do passado, os avanços e retrocessos são próprios do aprendizado e da consolidação da e-cultura, que se apresenta com inúmeras luzes e, como é lógico, algumas sombras as quais devemos enfrentar. As vantagens dos meios digitais são importantes para a transmissão e preservação da memória e da cultura. Esses meios, no entanto, devem ser vistos em convivência com todas as formas de preservação da memória, entre as quais destacamos o livro como objeto essencial desde sua criação para a história da humanidade. Umberto Eco também participaria desse debate e questionaria do seguinte modo: “...vimos que os suportes modernos tornam-se rapidamente obsoletos. Porque correr o risco de nos atulharmos com objetos que correriam o risco de permanecer mudos, ilegíveis?” (2010, p. 36). Desse modo, o autor italiano reflete sobre o erro de conceder uma confiança exclusiva aos novos meios digitais nesse labor da preservação da memória, em detrimento dos suportes mais tradicionais, pois, no final das contas, sabemos que o livro tem sido conservado por mais de cinco séculos, uma evidência de que ainda não poderíamos aventurar-nos nem minimamente com os novos suportes digitais.

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Em relação ainda às possiblidades do livro e do meio digital, como sistemas vigentes para a transmissão e preservação da memória, deveríamos considerar a funcionalidade que esses nos permitem, combinados ou não, quando nos referimos aos novos horizontes informacionais que nos oferecem. Assim, Arlindo Machado considerará o livro como um dispositivo como uma extensão da mente humana, sobre o qual, o que mais importa é sua constituição enquanto arquivo da memória humana. Para o autor, o livro é: todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação (1994, p. 204).

A partir dessa afirmação, Machado nos descreve o livro não apenas limitado pelo seu formato material, mas considera, além disso, sua ambiguidade e universalidade. Qualquer dispositivo que cumpra com as mencionadas funções do livro, isto é, transmissor e preservador da informação, será válido também como livro. Aqui, nos encontraríamos com o meio digital que, como já temos comentado, ao referirmo-nos à Internet, possibilita todas essas atribuições com um efeito multiplicador do que representava o livro. Devemos considerar, portanto, que o meio digital representa uma nova versão do livro. Essa associação entre arquivo e memória, então, não é tão estranha ao meio digital, pois no mesmo surgimento da Internet, baseada no hipertexto como uma nova maneira de administrar e organizar a informação, se utilizou o termo Memex (MEMory EXtender) para se referir à nova forma de navegação pelo ciberespaço; relacionando-o com a maneira de funcionamento do cérebro, por associação, estabelecendo um paralelo para descrever tal extensão da memória humana. Desse modo, e como bem as denominaria Pierre Lévy, "as tecnologias da memória" nos possibilitaram o acesso a um grande arquivo, no qual se reúnem e se interligam os saberes da cultura. Sem dúvida, o meio digital oferece muito mais flexibilidade no tratamento das informações que armazena, sendo mais do que um mero dispositivo coletor de dados, pois aqui, como essa extensão da memória humana, as informações se encontram interconectadas, favorecendo uma sinapse digital instantânea que acrescenta as possibilidades de qualquer outro dispositivo conhecido anterior.

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Recolhendo as palavras de José Luis Brea, com a metáfora da cultura-RAM, nos dirá que "o tipo de memória que produz a cultura não é tanto uma de arquivo [...], mas, sobretudo, uma memória do processo, de interconexão ativa e produtiva dos dados” (2007, p. 13, tradução nossa). Certamente, o meio digital -e considerando a Internet como paradigma deste-, tem se convertido em um grande repositório de informações nunca imaginado, no qual, o usuário pode navegar por uma grande enciclopédia do saber. A existência de um arquivo digital global e a facilidade de transmissão de informações entre os diferentes usuários são fatores que determinam nossa sociedade e que incidem substancialmente em temas como a manipulação dos dados, a perda de informação, ou a censura. Para Umberto Eco, esse grande arquivo digital supõe vantagens referentes ao uso de procedimentos de perda ou esquecimento da informação, assim como da censura. Enquanto isso, Eco comparará a Internet como a impossibilidade da damnatio memoriae, pois considera que “na sociedade da globalização, somos informados de tudo e podemos agir consequentemente” (2010, p. 190). Ainda que sejamos cientes da censura na Internet (basta citar o exemplo da China e a censura de certas informações no meio digital), devemos considerar que, em comparação com os sistemas de censura anteriores, a Internet se configura como um meio pelo qual as informações são suscetíveis a recuperação com os instrumentos adequados. Nesse contexto, podemos destacar o caso de Geocities, um serviço gratuito de hospedagem de sites do portal Starmedia, que apareceu em 1994, no qual foram registrados uma grande quantidade de usuários que criaram seu espaço pessoal na Internet, com uma variada quantidade de temáticas agrupadas como “bairros” para diferenciar diferentes subdomínios. Ainda que em 1999 Geocities tenha sido comprado pelo portal Yahoo!, mudando algumas de suas características originais, o serviço se manteve por mais uma década, até que em 2009 foram canceladas as novas subscrições e, finalmente, o servidor foi zerado completamente em outubro do mesmo ano. A desaparição do serviço no qual estavam registados milhares de usuários, com a conseguinte perda de uma grande quantidade de informações e repertórios de

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links únicos, foi motivo suficiente para comover à comunidade de usuários com algumas práticas que pretendiam resgatar parte do legado deixado por Geocities. Uma delas foi a inciativa realizada pela artista russa Olia Lialina, pionera da webarte, junto com o artista Dragan Espenschied, que começaram a administrar a informação contida no backup realizado por The Archive Team e disponibilizada num arquivo torrent com o tamanho de quase 1 Terabyte. O projeto intitulado como One Terabyte of Kilobyte Age (Um terabyte da era do kilobyte) pretendia resgatar os sites pessoais, como vestígios de uma web que agora nos é desconhecida tanto na configuração como na estética. Os artistas disponibilizaram, em 2012, um novo arquivo torrent melhorando o anterior que apresentava algumas informações do serviço desnecessárias e se acompanhou com um ensaio Ruins and Templates of Geocities, no qual analisava as características dessa primeira etapa web (Fischer, 2016). A experiência realizada pelos artistas Olia Lialina e Dragan Espenschied mostrava a necessidade de conservar a memória digital que, cada vez, aumenta em uma progressão exponencial e que mostra fragilidades do sistema que não dependem da comunidade de usuários, mas de megacorporações que decidem apagar uma boa parte da e-cultura. Dessa forma, contradiz-se a crença inicial da damnatio memoriae da Internet, sobre a qual nos falava Umberto Eco, pois, talvez, assistimos a uma outra forma de perda da informação não premeditada, que nos mostraria a volatilidade do meio digital exposto a seu desparecimento parcial ao igual que outros detentores da informação como o livro. O autor, em contrapartida, nos dirá que “...a cultura é um cemitério de livros e outros objetos desaparecidos para sempre” (2010, p. 35), atento a uma dinâmica que se repete de forma continuada nas diferentes sociedades e que atinge, como era de esperar, a nossa sociedade digital. A importância de estabelecer esses arquivos digitais abrange outras possibilidades que estão, da mesma forma, em relação à salvaguarda da memória, um labor em que as novas tecnologias digitais têm sido verdadeiras

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aliadas do objeto cultural, procurando a sobrevivência desses com sua cópia digitalizada na Rede. Assim, as destruições massivas do patrimônio cultural durante a última década na região da Síria pelo Estado Islâmico têm provocado uma resposta massiva por parte do meio digital, no intuito de alongar a memória deste importante patrimônio perdido e impossível de recuperar. Diversos projetos tentaram resgatar os monumentos destruídos ou documentar propriamente aqueles que eram alvo de ato terrorista, especialmente os que se encontravam na cidade de Palmira. Por exemplo, o Arc/k Project26 utilizou tudo o material gráfico disponível na rede sobre os principais monumentos da cidade de Palmira para realizar uns modelos de 360º que permitiam visitar virtualmente o arco de triunfo, já desaparecido, ou o teatro romano, destruído parcialmente, entre outros monumentos do passado histórico da cidade. De maneira similar, uma inciativa colaborativa com o hashtag #newpalmyra27 realizou um chamamento à comunidade de usuários para recopilar toda a informação existente nos arquivos digitais domésticos para que fossem compartilhados no site do projeto. Esse grande arquivo, compartilhado com uma licença livre, serviria como uma grande base de dados para ser usado na realização de reconstruções 3D, passeios 360º ou arquivos fotográficos digitais, que nos aproximem de forma fidedigna ao esplendor de todo o patrimônio da cidade de Palmira antes da destruição bélica. Outra das iniciativas mais interessantes foi realizada em The Institute for Digital Archeology28 que, mediante o uso de uma impressora 3D, realizaram uma réplica em mármore do desparecido arco romano de Palmira em uma escala de 2:3 a partir das fotografias conservadas. A cópia resultante realizou um percorrido por várias cidades do mundo como Nova Iorque, Londres ou Dubai, resgatando internacionalmente a memória perdida do povo sírio.

26

http://arck-project.org/

27

http://www.newpalmyra.org/

28

http://digitalarchaeology.org.uk/building-the-arch/

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Esse último projeto, junto com os anteriores, mostraria em grande medida a potencialidade das novas tecnologias digitais para a preservação da memória e da cultura, na constituição de um grande arquivo digital da cultura material do passado. Embora que em alguns casos de modo paliativo, as tecnologias digitais poderiam conservar o já não existente, contribuindo efetivamente na missão de transmitir a cultura material da humanidade. Seria conveniente finalizar com as palavras de Pierre Lévy, quando menciona que: ...é a partir do desenvolvimento das tecnologias da inteligência (a linguagem, a construção dos artefatos, a escrita, a impressão de textos, a criação de computadores etc.) que chegamos hoje à cultura digital, e que esta não é apenas uma evolução das máquinas, mas antes, uma evolução humana (1999).

As referidas tecnologias e o meio digital, portanto, não supõem outra coisa que não seja uma melhora em nossa forma de enfrentamento com o mundo conhecido e a sociedade de nosso tempo, sendo participantes do processo de evolução natural da humanidade e, em nenhum caso, representando um passo atrás na construção da memória e da cultura.

Referências bibliográficas BEIGUELMAN, Giselle. Arte pós-virtual: Criação e agenciamento no tempo da Internet das Coisas e da próxima natureza. In: PESSOA, Fernando. Cyber-artecultura – A trama das redes. Seminários Internacionais Museu Vale 2013. Vila Velha: Museu Vale, 2013, p. 147 - 171. BEIGUELMAN, Giselle. O livro depois do livro. Editora Peirópolis, 2003. BREA, José Luis. Cultura_RAM. Mutaciones de la cultura en la era de su distribución electrónica. Barcelona: Gedisa, 2007. BUARQUE, Heloísa. Quem tem medo da tecnologia?. s/d. Disponível em: http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/quem-tem-medo-da-tecnologia/. Acesso em: 25/10/2017 CARRIERE, Jean-Claude; ECO, Umberto; DE TONNAC, Jean-Philippe. _não contem com o fim do livro. Editora Record, 2010.

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DOLAN, Kerry A., e KROLl, Luisa. 20 maiores bilionários do mundo em 2017. Forbes Brasil. 2017. Disponível em: http://forbes.uol.com.br/listas/2017/03/20maiores-bilionarios-do-mundo-em-2017/ . Acesso em: 12/10/2017 DOMINGUES, Diana. Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. Unesp, 2003. LEÃO, Lúcia. Derivas: cartografias do ciberespaço. AnnaBlume, 2004, p. 9. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. MACHADO, Arlindo. Fim do livro?. Estudos avançados, 1994, vol. 8, no 21, p. 201-214. MACHADO, Arlindo. Hipermídia: o labirinto como metáfora. DOMINGUES, Diana (Ed.) A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, pp. 144-154. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Papirus Editora, 1997b, p. 183. PIERRE LEVY. Cibercultura. Editora 34, 2010.

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4. OBRAS ABERTAS, ALGUMAS LEITURAS

111


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Obra aberta, arte sem fim... Rodrigo Otávio da Silva Paiva Departamento de Teoria da Arte e Música / Professor Adjunto II rodrigo.paiva@ufes.br Resumo: Análise comparativa entre a compreensão da obra de arte, exposta por U. Eco em Opera aperta (1962), e dois posicionamentos canônicos da filosofia da arte no século XX: 1) Aquele inspirado na filosofia dialética de Hegel e na teoria crítica de Marx (Bloch, Adorno, Lukács, Bourdieu); 2) Aquele associado a uma filosofia da linguagem e à teoria da transfiguração (Danto). O conceito de obra aberta será ainda observado em relação às obras de Josef Kosuth e Cindy Sherman. O distanciamento das obras escolhidas por Eco, permitirá observar a autonomia estética do conceito, além de mostrar seus dois sentidos fundamentais: 1) Como poética crítica das obras de arte na história e 2) Como método interpretativo das obras contemporâneas, através da ideia de obra como processo (criativo-comunicativo). Palavras-chave: obra de arte, aparência sensível, interpretação, metáfora Abstract: Comparative analysis between the understanding of the work of art, conceived by U. Eco in "Opera aperta" (1962), and two canonical positions of 20th century philosophy of art: 1) One inspired by Hegel's dialectical philosophy and theory Marx's criticism (Bloch, Adorno, Lukács, Bourdieu); 2) One associated with a philosophy of language and theory of transfiguration (Danto). The concept of open work will still be observed in relation to the works of Josef Kosuth and Cindy Sherman. The distancing of the works chosen by Eco, will allow to observe the aesthetic autonomy of the concept, besides showing its two fundamental senses: 1) As a critical poetics of works of art in history and 2) As an interpretive method of contemporary art, through the idea of work as process (creative-communicative). Keywords: work of art, appearance, interpretation, metapher.

Poética da Obra Aberta: uma introdução

A poética da obra aberta parte basicamente da arte informal para sua constituição29. Informal é entendido aqui em dois sentidos: 1) como arte “antiformalista”, estas seriam a “action painting” (Pollock), o tachismo (Wols, Mathieu), a arte bruta (Dubuffet); 2) como arte da informação, assim como a arte cinética, a arte programada, a estética generativa, a poesia estocástica. Na 29

ECO, U.. Obra aberta: Forma e Indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8ª Ed. Trad.: Giovanni

Cutolo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 149-177.

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construção da poética desta arte científica, Eco formula o importante conceito de metáfora epistemológica e, assim, ele se distancia das estéticas positivistas de Max Bense e Abraham Moles, professores da Escola Superior de Design de Ulm e influentes pensadores da Estética nas décadas de 1950 e 1960. Assim, ao compreender a instância metafórica da arte como ato interpretativo e lúdico de um devir cibernético do mundo, Eco prioriza mais a condição artística, que o aparato técnico-científico das obras dos grupos T (Milão), N (Padova), Zero (Düsserldorf) e GRAV (Paris). Além disso, importância estratégica da obra de Eco é a de enfrentar os desafios exigidos pelas próprias obras de arte, sem teorias, sistemas ou modelos prévios.

A dialética forma-conteúdo como ideologia estética (1958)

A primeira razão histórica da comparação aqui proposta se encontra na discussão contida em dois textos de 1958; o primeiro, de autoria de Lukács “Wider den Missverstanden Realismus”30 (Mais uma vez o Realismo mal compreendido), o segundo, uma reação a este, publicada por Adorno, “Erpresste Versöhnung” (Conciliação coercitiva)31. Trata-se aqui, da continuidade da polêmica acerca da conciliação entre forma e conteúdo na arte de vanguarda. O debate crucial que inicia esta polêmica, ocorre por volta de 1937, em Praga, quando Bloch32 e Lukács33 opõem-se, defendendo posições otimistas e pessimistas acerca das possibilidades da vanguarda artística. Neste momento, tratava-se da possibilidade ou impossibilidade das vanguardas de se tornarem formas eficientes de resistência ao fascismo, assim como via possível para uma sociedade mais avançada, isto é, mais igual, livre e fraternal. A questão central aqui consiste e está reduzida à técnica da montagem e da colagem, expressões

30 31

LUKÁCS, György. Wider den Missverstanden Realismus. 1ª ed. Hamburgo: Claassen, 1958. ADORNO, Theodor W.: Erpresste Versöhnung. Zu Georg Lukács’ ‚Wider den mißverstandenen

Realismus. In. Adornos, Th. Bd. 2, Noten zur Literatur II. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974. 32

BLOCH, Ernst. Großbürgertum, Sachlichkeit, Montage. In: Bloch, Ernst: Erbschaft dieser Zeit. Band 4, Gesamtausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 214-221. 33

LUKÁCS, G. Es geht um den Realismus. In: Essays über Realismus. Berlin: Aufbau-Verlag. p. 128-170.

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e métodos próprios das vanguardas, assim como do modo de trabalho, organização e produção da sociedade de mercado capitalista. O otimista Bloch compreende a coisificação (estetização), pela qual a vanguarda dos anos de 1930 passava, como uma imposição momentânea e alienante da ordem da grande burguesia aos fenômenos artísticos 34. Esta situação, contudo, poderia ser redirecionada através das transformações sociais para o seu verdadeiro potencial e fim, o objetivo social e econômico. Lukács, o pessimista, mantém, em 1938, assim como em 1958, sua posição: “A superfície do capitalismo parece ‘dilacerada’, devido à estrutura objetiva deste sistema econômico, ela se constitui de seus momentos independentes necessários e objetivos. Naturalmente, isto tem que refletir na consciência das pessoas, que vivem nessa sociedade e também na consciência do poeta e do pensador”35 (LUKÁCS, 1948, p. 133).

Com sua dialética do realismo, em que a forma se dá como reflexividade direta do conteúdo, Lukács se recusa a conceber algo de fundamental e irrecusável na abstração ou dilaceração da arte moderna. Sua estética nega sistematicamente esta realidade histórica, concebendo-a como um momento efêmero e secundário. A vanguarda ocidental exprimiria o caráter da dilaceração da obsoleta sociedade capitalista a ser logo superada. A verdadeira vanguarda, segundo Lukács seria reconhecível apenas no realismo, na literatura de Gorki, Mann36, ou Balzac. O realismo teria a força de reunir arte e sociedade, numa altitude reflexiva segura; pois, em suas obras, os meios expressivos não são autônomos, nem coisificados ou fragmentados, tampouco reduzidos à sua elementaridade, mas acoplados à função e à integralidade do tecido social. O realista integra37, enquanto o vanguardista disassocia, dilacera, corta, destrói. Em 1958, Adorno responde a Lukács, acusando-o de maneira contundente. Às custas de um classicismo à moda hegeliana, adaptado à temática social, Lukács estaria operando um claro discurso ideológico contra o

34

BLOCH, Ibidem, p. 220.

35

Traduzido pelo autor.

36

LUKÁCS, 1948, p. 155.

37

Ibidem, p. 146.

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ocidente, em meio à Guerra Fria. Adorno define a estética de Lukács como opressora e coercitiva. Ela exige uma conciliação sufocante entre os meios expressivos e o conteúdo artístico, que, por motivos históricos, não podem mais se harmonizarem38. Adorno e Lukács, ambos pessimistas, observam na montagem a condição extrema do espírito da arte na ordem capitalista. A precariedade e provisoriedade desta arte é, contudo, em Adorno, insuperável e incontornável. Lukács aponta a solução realista como modo de superação da condição da arte no capitalismo. As possibilidades da obra de arte de vanguarda, em ambos os casos, se encontram fechadas, sem horizonte.

O problema da obra aberta (1958)

Em 1958 surge um breve ensaio de Umberto Eco (26 anos) sob o título “O problema da obra aberta” e proferido num Congresso Internacional de Filosofia, em Veneza. Eco se propõe a pensar problemas de obras de arte e não sistemas estéticos para estas e exige que a observação seja operada no contato com as obras. Ele exige a experiência, isto é, ação, ato de fruição como estrutura ativa psíquica e fisiológica com a obra e julga haver obras fechadas, com alto grau de determinações e obras abertas, com maior grau de indeterminações. Em 1962, no livro “Obra Aberta”, Eco desperta a estrutura do “Geschmacksurteil” (juízo de gosto) kantiano39 em sua definição de obra aberta. Assim, esta concepção estética surge por oposição fundamental às estéticas que buscam pré-determinar as obras através de sistemas dialéticos das relações entre forma e conteúdo. Para Eco, no contexto italiano, era necessário se opor à estética idealista de Benedetto Croce. O conceito de obra aberta pode então, num primeiro momento, ser compreendido pelas qualificantes a ela negativas. O conceito clássico (idealista) ou realista (materialista) de obra fechada, estruturada pela sua finitude, pela perfeição lógica em seu sentido interno, pela completude de suas partes no 38

ADORNO, 1974, p. 278-279.

39

KANT, Immanuel: Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, §1-9 e §15.

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sentido externo, útil em sua forma externa, funcional no sentido da educação da sensibilidade e consonante com a unidade dos ideais de verdade, de beleza e de bondade; enfim, harmônica e perfeitamente acabada no jogo autorreferente de suas regras é, precisamente, o oposto do conceito de obra aberta proposto por Eco. A obra aberta testa a elasticidade dos limites de seus próprios espaços, a forma sem controle se abre como campo de possibilidades de sentidos e metáfora

da

indeterminação

causal-temporal

dos

conteúdos.

Esta

indeterminação, todavia, está fundada num equilíbrio entre “o mínimo de ordem admissível e um máximo de desordem”40. O sentido esparso construído na fruição difusa e múltipla da subjetividade e da coletividade com a obra, faz com que a lógica de seus elementos seja testada e a transgressão da causalidade seja possível. Ao mesmo tempo, ela contesta a distância entre observador e autor. No ensaio de 1958, a obra se encontra num jogo de estímulos e sensações portadores de informações, no qual ocorre uma “dialética”, assim o jovem se expressa, entre determinação (fechamento) e indeterminação (abertura) do sentido e das modulações dos sistemas de significações da obra. Estas modulações emanadas e orientadas pelo próprio sistema emissor da obra se aproximam de modelos “constelares” que favorecem “leituras variáveis”, termos formulados por Eco, já em 1962. A obra se torna sujeito de uma ação comunicativa. De um modo muito didático, o jovem Eco (1958) opõe o conjunto formativo da obra de Dante Alighieri ao de James Joyce, autor antípoda da estética idealista ou realista. Eco escreve: “Dante exige do leitor uma resposta de tipo unívoco: o poeta diz uma coisa e espera que o leitor a apreenda tal como ele pretendeu dizê-la”41. O devir cibernético é interpretado em Joyce e observado em “Finnegans Wake”: “a obra pode, neste caso, ser comparada a um monstruoso 40

ECO, 1991, p. 168.

41

ECO, U.. O problema da Obra Aberta. In: A Definição da Arte. 1ª Ed. Trad.: José Mendes Ferreira. São

Paulo: Editora Martins Fontes, 1972, p. 154.

117


cérebro eletrônico que produz estímulos e respostas em virtude de uma série tão complexa de ligações que torna impossível a verificação de todas as possibilidades” (ECO, 1972, p. 154).

Em 1962, uma comparação similar ocorre entre o Apolo de Belvedere e as esculturas de Brancusi, para o qual Eco introduz ainda uma nota de Ezra Pound, importante intelectual para a cultura italiana neste momento, exímio poeta da montagem e do fragmento e, como Joyce, outro antípoda da estética idealista ou realista. “Brancusi escolheu uma tarefa terrivelmente mais difícil: reunir todas as formas numa só é algo que exige tanto tempo quanto a contemplação do universo para qualquer budista... Poder-se-ia dizer que cada um dos milhares da ângulos sob os quais se considera uma estátua deveria ter vida própria (Brancusi permitir-me-á escrever: vida divina)...” (POUND, E., 1921 apud ECO, op. cit. 152).

No texto de 1958, Eco observa o estranho simbolismo de Kafka, os móbiles arquitetados de Calder e a alográfica “Klavierstück XI” de Stockhausen. Em 1962, Eco amplia o leque de obras abertas e menciona o grupo Cobra (Pol Bury), assim como a Arte Cinética (Grupo T), o Surrealismo (Jean Tinguely), o Tachismo (Wols), além de Monet, Gabo e Pollock. Curiosamente, Eco inclui em sua análise, artistas barrocos como Magnasco e Tintoretto. Assim, do ponto de vista histórico, parece ser na indeterminabilidade das formas barrocas, assim como na formação da subjetividade romântica (pós-kantiana), que Eco observa componentes formativos para o desenvolvimento do conceito de obra aberta na arte contemporânea. Contudo, deve-se ponderar a oposição que Eco faz entre a música de Bach e a música nova “pós-weberiana”. Deste modo, não se trata aqui da simples oposição entre obra fechada (antiga) e obra aberta (moderna). Tudo aqui depende de uma investigação experimental da poética, que transmitiria a magnitude e a força do campo de suas possibilidades interpretativas. Este campo é pensado na forma de um campo magnético (metáfora epistemológica?), no qual a obra é polo de atração e retração das interpretações e estas são constituídas através das experiências de possibilidades sempre indicadas ao observador, através do grau e da estrutura compositiva das descontinuidades sugeridas pelo autor.

118


Obra Aberta na crítica de Bourdieu Não estaria, todavia, a noção de obra aberta fadada a cair na ideia de arte como pura fruição (“arte pela arte”) e assim, a reduzir a vida e o sentido das artes à condição alienante de uma mera experiência de fruição estética? Esta é, em linhas gerais, a suspeita de Pierre Bourdieu àqueles que se orientam pela filosofia da terceira crítica kantiana. Para Bourdieu a arte não se limita à reflexão sobre as condições de seus signos, mas é incondicionalmente parte relacional com o social42. A teoria de Kant é aqui pensada como uma ideologia, na qual a dimensão social é ocultada e os objetos estéticos se determinam pelo prazer desinteressado que proporcionam, ignorando todos seus objetivos práticos e teóricos. Bourdieu compreende o que Kant chama de ausência de interesse, “interesseloses Wohlgefallen”43, e, portanto, de ausência de finalidade na arte, como uma falta de participação (alienação) associada a uma determinada liberdade em relação às necessidades econômicas. Ao se posicionar de maneira pretensamente ingênua, Kant esconderia a constituição que ele mesmo faz do objeto. A observação puramente formal do estético é a ausência de pressupostos, reproduzida como valor de ingenuidade num cenário totalmente social. Ao invés de pretender uma validade geral, esta pureza se põe a serviço de uma distinção da classe dominante, contra todas as outras classes; pois, devido à liberalidade social e econômica é possível afirmar uma estética livre de interesse e necessidade. A crítica de Bourdieu não atinge apenas a estética filosófica, mas também a prática da arte. Este manto de universalidade encobre as contradições sociais; assim, a pureza formalista (universal) não passaria de um instrumento da distinção social de classes. Em “La distinction” (1979)44, Bourdieu interpreta o conceito de obra 42

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: génese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 319-348. 43 44

KANT, I., 1993, §1-9 e §15. BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do Julgamento. Trad. brasileira de Daniele Kern e

Guilherme Teixeira, São Paulo: Edusp, 2006.

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aberta como expressão de um último estágio do processo de domínio e colonização da ideia de autonomia no campo da arte, constituída como um conteúdo vazio de determinações, nos quais cada valor do mundo torna-se irrelevante em relação à forma pura indeterminada. Esta crítica fundamenta-se no entendimento da obra aberta como uma indeterminação semântica, como se a obra fosse livre de significado, o que consiste apenas numa incompreensão da teoria kantiana, pois não se trata aqui da arbitrariedade e indiferença de conteúdos possíveis. Quando se observa os argumentos de Eco45, assim como de Rüdiger Bubner46, que constituem uma interpretação pós-idealista e semiológica da teoria kantiana, a potencialidade semântica da forma só é possível na sua determinação, isto é, no contato, que não é puro, nem arbitrário, mas sempre empírico (a posteriori). Além disso, dever-se-ia ponderar que a “Klavierstück XI” de Stockhausen é mais difícil de ser ouvida internamente, sem contato sonoro empírico, que a Pastoral de Beethoven (Sinfonia n⁰ 6). Assim, inversamente, parece que as obras abertas, possuem maior necessidade presencial e ativa do interpretante. Isso corresponde a uma experiência, não da percepção passiva da forma pura, mas de uma dinâmica de sentidos (semiosis), na qual o sujeito que não é abstrato, nem transcendental, mas empírico e situado, reflete e de modo algum é seu senhor. A esfera do interesse não está caracterizada por nenhuma falta de participação do observador, mas sim por uma variedade de reflexões difusas, mas extremamente positivas para o desenvolvimento da razão, a saber, o exercício da fantasia e da criatividade – a capacidade imaginativa. Nas palavras de Kant esta ausência de interesse é de estrutura (estrutura ausente), sem lógica formal, não de conteúdo, pois o conteúdo possível não é irrelevante, ele entra na consciência e vincula-se com a experiência de horizonte de seu intérprete. Com isso, fundamenta-se também o potencial ético e político do estético, a partir de si mesmo. Esta interpretação segue uma concepção precisa do conceito de forma estética. Ela não é evidência, nem pureza em si, nem pode ser obtida da

45

ECO, 1991, p. 149-177.

46

BUBNER, R. Über einige Bedingungen gegenwärtiger Ästhetik. In: Ästhetische Erfahrung, Frankfurt/M:

Suhrkamp, 1989, p. 7-51.

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forma pura, como as linhas da Geometria. O estético da forma é muito mais a coisificação realizada através da interpretação. O processo desta dinâmica instaura significações possíveis que não são nem casuais, nem concatenadas de maneira causal. Trata-se de uma dinâmica reflexiva destituída de definições redutíveis à lógica de uma unidade conceitual e conclusiva. Aqui se pode completar: “arte sem fim...”. “O leitor se excita, portanto, ante a liberdade da obra, sua infinita proliferabilidade, ante a riqueza de suas adjunções internas, das projeções inconscientes que a acompanham, ante o convite que o quadro lhe faz a não deixar-se determinar por nexos causais e pelas tentações do unívoco, empenhando-se numa transação rica em descobertas cada vez mais imprevisíveis” (ECO, 1991, p. 160).

Josef Kosuth: a obra aberta e a via conceitual Em 1969, o artista Josef Kosuth47 propunha um novo caminho para a arte, a via conceitual, através da qual ele acreditava poder realizar na arte a passagem da experiência sensível para o pensamento, mostrando que o signo sensível seria irrelevante para se atingir a condição de arte. As interpretações de Kosuth, assim como as de Arthur Danto, concluem que a arte, a partir do Readymade, entra num estágio em que ela se encontra livre da tarefa da representação e de outros fins externos, tornando-se assim, ela mesma, sua própria filosofia e linguagem. Isso significa que a arte se torna uma interpretação do mundo. Para Kosuth, decisivo não seria o modo de aparência concreta de cada obra, mas sim o que está colocado no fundamento da ideia ou do próprio conceito de arte, das ações propositivas como estrutura unívoca que pode ser expressa de formas diferentes. De modo análogo, a arte, assim como Kosuth interpreta a lição de Duchamp, deveria concentrar seus esforços não na materialidade específica das formas (técnica/sintática), pois esta constituiria uma contrariedade em relação

47

KOSUTH, J. Art after Philosophy and after. Collected Writings, 1966-1990. Massachussetts e Londres:

The MIT Press Cambridge, 1991, p. 13-33.

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àquilo que a arte realmente deveria expressar, a saber, a ideia de arte (conteúdo/semântica). Kosuth posiciona-se contra a convenção das repartições da arte por artes, que para ele age em nome da singularidade da aparência em oposição à generalidade do conceito. A arte conceitual deveria tornar-se idêntica à generalidade do conceito, ela deveria tornar-se arte analítica, o que a distanciaria da obra aberta. Assim, qual poderia ser uma interpretação possível da obra de Kosuth, seguindo a linha de análise da obra aberta? Na série “Art as Idea as Idea” de 1966 Kosuth realça em grande formato, cópias fotográficas de verbetes e estruturas lexicais como “água”, “ar”, conceitos sensíveis sem objetos concretos, posteriormente, ele expõe substantivos abstratos como “significação”, “nada”, “tempo” e em seguida noções autorreferentes como “definição” e “abstração”. Assim, ele conduz uma estrita determinação da teoria artística, para a qual a essência da arte consiste na sua ideia e a ação decisória artística transforma a ideia abstrata em objeto da arte. O conceito precisa da obra para se manifestar como arte. Esta obra é possível sobretudo como Readymade. A crítica de Martin Seel48 às posições de Kosuth pondera que a forma concreta da apresentação de uma ideia, no aspecto de seu conteúdo possível, não é de nenhum modo aleatória. Os quadros negros ampliados com letras brancas e com inserções lexicais iniciam um processo, não apenas no sentido dos conceitos, em que se dá um jogo de associações de verbetes abstratos. Aqui estão contidos detalhes formais, que ganham importância e que não seriam evidentes na corriqueira ou interessada leitura de um verbete do dicionário. A forma de apresentação, a qualidade gráfica e ornamental do texto, aquilo que se vê e posteriormente se lê, é antes de tudo, uma imagem composta em preto e branco, extremamente ampliada e regular. Letras e palavras aparecem em sua materialidade e emancipam-se de maneira contrária ao conteúdo do texto que elas expressam. O que ocorre aqui, segundo Seel, é uma “comédia do engano” similar ao “ceci n´est pas une pipe” magrittiano, entre a leitura sucessiva e a

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SEEL, M. Antes da aparência vem o aparecer. Notas para uma estética dos meios. In: Inter@ctividades,

artes, tecnologias, saberes, cat. exp., Lisboa: Edição CECL/ FCSH-UNL, e CML Departamento de Cultura, 1997.

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visão simultânea, texto e ornamento, significação e materialidade, abstração do conceito e concreção da imagem escrita. O grande efeito desta comédia é que ela se desdobra com a aparência estética, que o seu criador conscientemente pretendia eliminar. “Antes da obra de arte poder ser entendida como promotora do Ser ou da aparência, antes de lhe poderem ser atribuídos um sentido ou uma função, ela tem de ser percebida no modus do seu aparecer. [...] É decisivo que se entenda este aparecer da obra de arte não como o aparecer de alguma coisa, mas sim como o aparecer de si própria. O aparecer da obra de arte não quer dizer aqui o emergir de uma verdade superior, mas sim, antes de mais nada, unicamente, o modo como a obra de arte se apresenta à faculdade da percepção dos seus observadores. [...] A sua essência não está nem no aparecer de uma essência nem no aparecer de uma aparência,. Está sim para o aparecer para uma percepção [...] O Ser da obra de arte é o seu aparecer.” (SEEL, 1997, p. 58.)

Ao invés de levar a uma troca mediática de imagens para a linguagem acerca de um conteúdo proposicional, os trabalhos de Kosuth levam a linguagem para uma presentificação específica na dimensão do imagético, através do qual a inclusão lexical mais banal, assume uma qualidade de estranheza e surpresa, pela qual se lê e vê muito mais outras coisas do que aquilo que propriamente está exposto. A obra desloca (abre) as expectativas de significações de uma forma muito específica e transporta seus expectadores para uma situação de estranheza, distância e proximidade inéditas, uma abertura através de conceitos tornados sensíveis de um modo muito peculiar.

Arthur Danto: metáfora e interpretação Danto inicia seu livro “The transfiguration of the Commonplace” (1981), com o fenômeno que, para ele, significa o fim de um paradigma histórico da arte, a exposição das “Brillo Boxes” de Andy Warhol (1964). Danto questiona se a razão da separação entre obra de arte e objetos cotidianos comuns fundamentase mesmo numa diferença material49. Resumidamente, Danto interpreta a obra

49

DANTO, Arthur C.: A transfiguração do lugar-comum. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naif, 2005,

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de Warhol com o Readymade de Duchamp. O interesse de Danto não está na encenação que os Readymades propõem a seus observadores, mas sim no modo, pelo qual o Readymade confronta a filosofia com o desafio de ter que explicar a diferença categorial entre arte e não-arte, sem recorrer às propriedades perceptivas50. A conclusão de Danto não é inofensiva, pois se trata da aparência sensível, aspecto essencial da determinação da arte para toda a tradição da estética, inclusive para Eco. O argumento de Danto busca transferir os problemas da arte, da experiência sensível para o pensamento (a linguagem). Esta posição já se pode ver desenvolvida nas ações “anti-retinianas” de Duchamp e Kosuth. Mas se não é a aparência sensível, qual seria então a fonte de determinação do artístico? Para as obras de arte existe algo próprio, que falta às coisas do cotidiano, a saber, sua estrutura metafórica, sua relação semântica com algo, sua “aboutness”51. A conclusão de Danto não se afasta da ideia de obra de arte como metáfora, assim como em Eco. Contudo, para Danto, esta estrutura metafórica não dependeria da obra, mas esta sim de seu contexto no discurso da história da arte, o que condicionaria tanto sua posição, quanto suas potenciais significações. Uma obra de arte vista como tal é como a transposição do reino das coisas banais para o reino das significações52. Para Danto, assim como para Eco, a obra precisa da ação do intérprete para atingir seu completo desdobramento53. Contudo, em Danto, o conceito de interpretação não se relaciona a um processo subjetivo empírico, mas está vinculado a formulações canônicas, relevantes a um hipertexto histórico-artístico. “Na arte, cada nova interpretação é uma revolução copernicana, no sentido de que estabelece uma nova obra, mesmo que o objeto diferentemente interpretado permaneça, como o céu, invariante, sob a transformação” (DANTO, 2005, p. 189-190).

p. 16. 50

DANTO, op. cit., p. 17ss. e p. 99 ss.

51

DANTO, 2005, p. 35-37, p. 182-183.

52

Ibidem, p. 190.

53

Ibidem, p. 183-184.

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A essência da obra (sua ontologia) consiste no ato de interpretar e o mundo da arte é um mundo de coisas interpretadas54. Aqui, o público comum seria apenas o usuário das interpretações canônicas, que condicionariam a possibilidade do sentido (valor) de uma obra de arte, vinculando-a ao contexto histórico de produção (história e sociologia) e às intenções individuais (psicologia) dos artistas. Diferentemente do conceito de “obra aberta” de Eco, em que o ato interpretante ocorre na fruição singular com a obra, iniciando um processo de compreensão, que nunca se conclui e desafia os melhores intérpretes; para Danto, decisivo é o momento lógico, no qual coisas cotidianas são levadas ao reino da arte, como consequência da situação histórica do “ato de identificação do artístico”55. Compreender uma obra de arte é compreender assim, a metáfora estabelecida por ela, isto é identificar (determinar) o artístico, no sentido de reconhecer que, como em toda a metáfora, a representação não substitui aquilo que ela representa e que seu significado se refere a um contexto histórico e cultural específico56, trata-se assim, mais da compreensão correta que da fruição indeterminada. Mas qual destas seria a essência da arte?

Cindy Sherman: Obra aberta e cultura visual Uma conclusiva consideração sobre a exposição “Pictures”, organizada por Douglas Crimp, em 1977, possa talvez, mostrar ainda a possibilidade do conceito de obra aberta nas imagens fotográficas. A exposição “Pictures” mostrava um despojamento dos meios próprios da arte, assim como de seu conteúdo, relacionando-se à realidade da cultura visual de massa. Trata-se aqui de uma decidida emancipação da concepção da autonomia artística modernista dos meios (Greenberg) e de um entendimento muito diferente da lógica de operação da arte. A primeira indicação que Crimp mostra neste aspecto é o da polissemia

54

Ibidem, p. 203.

55

DANTO, 2005, p. 190-191.

56

Ibidem, p. 183 ss.

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da forma do verbo “to picture”57. “To picture something” pode significar retratar, representar ou pintar. Crimp argumenta em dois níveis: no sentido da situação artística frente aos problemas de representação e no sentido da experiência provocada pelas imagens. A compreensão do estético decorre assim, da descrição detalhada do questionamento das imagens e de seus efeitos. Todas as “pictures” colocadas diante do observador iniciam um “processo mental” que, segundo Crimp, nunca é conclusivo. Crimp mostra uma série de exemplos muito convincentes, como a série de fotos de Cindy Sherman intitulada “Untitled Film Stills” (1977-1980). A obra suscita muitos pensamentos que não se concatenam, nem se subordinam a um único conceito. Crimp se baseia na estética simbolista de Mallarmé 58, que, a partir da descrição de Eco, mostra a possibilidade de imbuir as obras de arte com uma aura própria de indeterminação. Assim, Crimp considera as “Pictures” na tradição de uma modernidade que objetiva uma abertura da significação. Todas as imagens que Crimp trata no seu ensaio relacionam-se com o mundo midiático e bem conhecido das imagens. Em parte, elas são uma reflexão artística sobre imagens preexistentes; em parte, citações estilizadas de imagens conhecidas ou retóricas de imagens, metáforas de metáforas. Decisivo para o procedimento destes artistas é a preexistência de imagens que devem ser retrabalhadas de modo que a chave interpretativa, conclusiva, da representação seja desconstruída pelo próprio representado. Os artistas subvertem a função da significação do pressuposto preexistente e assim, desvelam que a significação das imagens nunca está preestabelecida, pois não há relação de significação predeterminada, nem objeto referencial prefixado e tampouco resposta a uma questão de sua própria condição de existência. A operação artística aqui, objetiva claramente o efeito que pode fazer com que toda determinação se torne indeterminável.

57

CRIMP, Douglas: Pictures. Vol. 8. Cambridge, Londres: The MIT Press, Outubro de 1979, p. 75–88. URL:

http://www.jstor.org/stable/778227 (página visitada em Junho de 2016). 58

CRIMP, 1979, p. 86.

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Obra aberta, arte sem fim...: uma conclusão A obra de arte sem fim não tem destino certo para se realizar plenamente e nem esgota seu sentido num determinado momento ou numa interpretação canônica. Sem fim, porque não tem função final objetiva ou utilitária e sem fim, porque não cessa nunca de manifestar possibilidades de novas significações; sem fim, não porque é sem objeto, mas porque como objeto, ela não traduz simetricamente, mas metaforicamente o campo de significações da experiência estética propriamente dita. Sem fim, não por que não tem objetivo, mas porque seus objetivos são difusos e confusos. Aqui, a obra de arte possui um sistema de regras aberto, construído mais para a criação de indeterminações e para não cumprir com uma finalidade – ela é intencionalidade sem intenção determinada. A objetividade de suas regras é sem objeto, esta objetividade sem objeto é a regra de funcionamento da auto-reflexividade da obra de arte, própria da filosofia de Kant e reformulada por Eco, pela qual ele defende um campo experimental (sensível) irredutível da auto-reflexividade (autonomia) da experiência subjetiva com a obra de arte, que, em Eco ocorre pela interpretação como “semiosis” (processo de realização de sentidos de uma especificidade aparente). A teoria de Eco assim, ao reformular o conceito de obra de arte, permite a possibilidade da noção de obra, agora aberta, como processo, na arte da segunda metade do século XX.

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Etcetera: a continuação da leitura em Walter Benjamin e Umberto Eco

Elisa Ramalho Ortigão PPGA/UFES, FAPES/CNPq elisaortigao@gmail.com

Resumo: Em A vertigem das listas, Umberto Eco dá as pistas para uma aproximação com o conceito romântico de crítica de arte tal como Walter Benjamin havia defendido em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. A hermenêutica proposta em ambas as obras pressupõe que a leitura implique em um etcetera, ou seja, ela não se limita ao que é dado e expanda os seus limites para além da obra. As listas de Eco propõem um recorte no apresentado, de modo a indicar não só que está dentro dos limites, mas também o que foi deixado de fora. Na obra benjaminiana, este é sentido dos fragmentos românticos e sua relação com a totalidade: cada fragmento, ainda que seja independente, reflete a totalidade dos fragmentos. Palavras chave: Umberto Eco, Walter Benjamin, hermenêutica, crítica romântica.

Abstract: In The infinity of lists, Umberto Eco lays some clues to na approach to the Romantic conceptin of art criticism as Walter Benjamin had defended in The concept of art criticism in German Romanticism. The hermeneutics proposed in both works presumpts that the reading implies in na etcetera, i. e., it does not limits itself to what is given, and expands its limits to beyond the work. Eco's lists propose a framework to what is presented, as a mean to indicate not only what is within its limits, but also what was left aside. In Benjamin's work, this is the meaning of the Romantic fragments and their relationship to reality: each fragment, although independent, reflects the totality of the fragments. Keywords: Umberto Eco, Walter Benjamin, hermeneutics, Romantic criticism

Ao ser convidada para este colóquio sobre Umberto Eco, estava ministrando um curso no Programa de Pós-Graduação em Artes na UFES sobre o conceito de arte em Walter Benjamin, que nunca abandona as suas origens românticas e cabalísticas, entendendo a obra como a soma de suas diferentes e sucessivas interpretações. A leitura romântica da construção de um sentido ausente que permearia a obra benjaminiana me pareceu o caminho natural para

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abordar a obra do pensador italiano. A hermenêutica proposta por ambos os autores, ou seja, o modo de leitura e interpretação dos textos, têm diversos pontos em comum, e alguns deles serão mencionados neste ensaio. Começaremos o ensaio citando alguns conceitos de Friedrich Schlegel que Walter Benjamin recupera em sua obra O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (2002). Em seguida, exploraremos alguns aspectos que Umberto Eco levanta em uma de suas últimas obras, A origem das listas (2010). Neste jogo de aproximações, poderemos ver como a perspectiva de obra aberta se aproxima do conceito de crítica e de leitura que Benjamin encontra nos seus conterrâneos românticos.

Walter Benjamin e os românticos alemães: Friedrich Schlegel e Novalis

Walter Benjamin, em O conceito de crítica arte no romantismo alemão, se coloca em relação ao romantismo com uma missão que será sempre clara em sua relação com a arte: salvar os conceitos da sua apropriação pelo fascismo. Assim, o filósofo vai pensar sobre os autores românticos Schlegel e Novalis, para resgatando-os da leitura mística regressiva feita pelo nazismo e da primazia do discurso fascista da empatia pura. Para Benjamin, importa definir o conceito de arte como sistema dentro do pensamento romântico alemão. O sistema da arte romântica, construído através do pensamento e da linguagem, apresenta uma filosofia cíclica, que se expande a partir de um epicentro para depois se retrair até ele novamente, oscilando dialeticamente entre o objeto de arte (o centro) e a ideia de arte (a extremidade). Assim, é um pensamento que, ao focar o objeto, se expande, em seguida, até o conceito do ideal, externo ao objeto. Deste modo, segundo Benjamin, o conceito de arte romântico abarca assim o objeto singular, e toda a ideia de arte, que cada objeto remete. O espaço entre o objeto e o conceito é, na verdade, o espaço onde se dá o pensamento sobre a arte. Contido nos limites deste movimento, está o que os românticos chamam de espaço reflexão, e é neste espaço em um movimento

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dialético, que a arte efetivamente realiza sua característica gnosiológica, ou seja, que a arte produz conhecimento. Como os fragmentos de Novalis o insinuam, o conhecimento está ancorado por todos os lados na reflexão: o ser conhecido de uma essência através de uma outra coincide com o auto conhecimento do que se conhece. Esta é a forma mais exata do princípio da teoria romântica do conhecimento do objeto. (BENJAMIN, 2002, p.63)

O conhecimento da arte se dá na observação da própria obra. “Particularmente o conhecer e o perceber devem estar como que relacionados com todas as dimensões da reflexão e estar fundado em todas elas.” (idem, p. 61) Assim, a observação da obra eleva o grau de conhecimento, pois faz pensar sobre a obra. Para descrever o funcionamento deste processo dialético da arte, os românticos criam uma terminologia específica, que ressalta a primazia da linguagem neste sistema: todo o pensamento é feito dentro do campo da linguagem “[...] a reflexão, no sentido dos românticos, é o pensamento que engendra a sua forma” (idem, p.37) e a forma seria “[...] o caráter infinito e puramente metodológico do verdadeiro pensar” (idem, p.37). e este pensar se dá no campo da linguagem conceitual: “o pensamento de Schlegel é absolutamente conceitual, isto é, lingual” (idem, p. 53). Assim, nos debruçaremos sobre alguns pontos da terminologia romântica que encontramos também nas listas de Eco para ressaltar a semelhança entre a forma das listas e a forma do pensamento reflexivo romântico, esses são os conceitos de fragmento e totalidade, de Witz, ou epifania literária, e de ironia e forma. O sistema de infinito que Benjamin observa em Friedrich Schlegel demonstra que cada fragmento é um indivíduo que emana a sua relação com a totalidade dos fragmentos, de modo que fragmento e totalidade são indissociáveis, e neste sentido que Schlegel afirma que o fragmento é um porcoespinho. “A. 206: Um fragmento tem que ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho” (Schlegel, 1997, p. 82)

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O ponto de contato do fragmento com a totalidade é o instante epifânico, a que Schlegel define como o Witz: o instante no qual a imagem da totalidade se revela no fragmento59. Este termo (Witz) é muitas vezes traduzido como chiste ou graça, mas, uma vez que esta tradução enfraquece o conceito, preferimos usar o original, que guarda o sentido do conceito e seu caráter permutatório. Como epifania, cada instante é marcado por um clarão que traz um novo entendimento, formando o par semântico Witz/Blitz. Witz é a iluminação da mente; e Blitz, o raio que ilumina o saber (wissen), lembrando a etimologia do termo alemão: Witz é uma corruptela de wissen, “saber”, e foi usado com este sentido até o século XVIII. O conceito de Witz romântico está na base do conceito posterior de iluminação profana, que Benjamin utiliza para caracterizar a arte surrealista. A iluminação profana pertence à constelação conceitual das imagens benjaminianas: aquilo que é conhecido como o pensamento em imagens, ou pensamento imagético. Benjamin constrói imagens que devem ser seguidas pelo pensamento. Essas imagens formam as alegorias e os cenários que completam o sentido daquilo que é dito, não em uma relação de representação ou ilustração do escrito, mas uma relação de deformidade; como uma imagem decalcada do texto mostrando uma deformidade de perspectiva. Essa imagem mental completa a leitura, conferindo-lhe significados novos que estão ausentes do texto escrito. No Witz convergem dois aspectos: o primeiro liga-se ao conhecimento súbito, a epifania, o segundo se relaciona com a sua forma fragmentária. O fragmento é em si uma totalidade, mas que remete paradoxalmente à totalidade dos fragmentos. Esse paradoxo é característica do fragmentos enquanto gênero para Schlegel. O fragmento de Schlegel é uma totalidade em si, mas que simultaneamente se liga à totalidade dos fragmentos, evidenciando o seu caráter sistemático. Os fragmentos têm uma importância especial para os autores do romantismo alemão, e toda a filosofia cíclica de Schlegel é exposta através de 59

A relação do Witz com a epifania literária foi discutida em minha tese de doutoramento na Universidade Federal Fluminense intitulada “Iluminações profanas: Transformações do Witz romântico em iluminação profana surrealista por Walter Benjamin”, defendida em 2014.

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fragmentos. Cada fragmento, ainda que seja uma unidade acabada, também se relaciona com a totalidade dos fragmentos. Deste modo, o fragmento abarca também a idéia do todo. Schlegel, em A 121, afirma que: Uma ideia é um conceito perfeito e acabado até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância entre dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma [...] especulação en detail é tão rara quanto abstração em gros, e contudo são elas quem engendram toda a matéria do Witz científico, são os princípios da crítica mais elevada, os degraus supremos da formação espiritual ( SCHLEGEL, 1997, p 66-67)

O fragmento se encontra com o Witz na sua conexão com o “mundo circundande” (Schlegel A 116), o contato com a totalidade do sistema filosófico romântico. Para os românticos, conforme a Crítica de arte no romantismo alemão, a arte seria a apresentação (Darstellung) de uma ideia, e não a sua representação. A apresentação é o modo como a ideia é disposta, e é indissociável da ideia da forma, de modo que um objeto artístico apresenta uma idéia em uma determinada forma. Este é o primeiro conceito de forma romântica, mas, como já vimos, a arte não é somente o objeto, mas a reflexão que o pensamento faz sobre o objeto. Os românticos lançam mão de um outro conceito: a ironia da forma. Pois se a arte não está no objeto, mas no pensamento, a forma da arte não é a dada, mas a forma do pensamento que vai além do objeto. “A ironização da forma consiste em sua destruição voluntária, como é demonstrado em sua forma mais extrema” (BENJAMIN, 2002, p.89) A ironia romântica define assim a destruição da forma empírica – a forma do objeto sensível, a forma objetiva – e o surgimento da forma da arte verdadeira: a relação do objeto com os conceitos. [...] neste tipo de ironia, que surge da ligação com o incondicionado, trata-se não de um subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra limitada ao absoluto, de sua completa objetivação que paga com a sua eliminação” (idem, p.90)

Este conceito de arte abarca todas as obras e não se deixa delimitar, sendo assim infinito. A obra de arte vive então neste espaço entre o objeto e o conceito de arte, e este conceito não pode ser delimitado, de modo que a forma

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será aberta e infinita. Na obra do nosso autor italiano, também estão presentes tais aspectos de arte romântica de modo a permitir a aproximação entre eles.

Umberto Eco e enumeração infinita

No prefácio da obra A vertigens das listas, apresentada no Museu do Louvre em Paris, em 2009, Umberto Eco fala de um etcetera como pertencente ao conceito de listas, e traça uma aproximação à epifania literária de James Joyce. Em outro texto de Eco chamado “Sobre uma noção joyceana” (1969), nosso autor afirma que “(...) as epifanias de Joyce são a manifestação sensível de potências intelectuais” (ECO, 1969, p.61). A epifania mostra no texto o não dito, é a imagem mental que emerge da leitura tendo sido somente sugerida por ela, esta imagem completa o sentido do texto. Na fugacidade do acidental, a epifania levanta-se como um retrato – essa curva emocional – daquilo que pode ser já um recusado, um já deixado, que agora ressurge e pode ser retomado na palavra que se calou. Tudo nesse campo é impressão do intervalo, do tempo do êxtase que faz dos objetos uma manifestação estética pelo ofuscamento de outros elementos que possam ser lidos apenas como escuridão e desprezo. (EYBEN, in JOYCE, 2012, p. 17)

A imagem epifânica se sobrepõe à palavra escrita, conectando o texto com algo que o transcende, e evidenciando também, nesta abertura para o externo, que o texto é um recorte. Deste modo, a epifania levaria o leitor a um entendimento que está além do que é dito, uma espécie de luz intelectual que o guia para além do texto. Este caráter epifânico estaria presente também nas listas, pois a enumeração de dados pela arte leva o leitor a completar os dados com o auxílio da imaginação, o que Eco denomina, na Vertigem das listas de “infinito potencial” (ECO, 2010, p. 15). Este infinito só é completado em potência, pois, se podemos reconhecer na descrição de Eco uma forma de pensamento, a sua forma seria a “enumeração” infinita. As listas se apresentam como fragmentos que remetem a uma totalidade externa e infinita, para usar aqui a linguagem romântica. Do

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mesmo modo que os fragmentos de Schlegel, as listas pictórias de Eco, ao definirem o representável, apontam para aquilo que é deixado de lado, a totalidade não representável. Na obra em questão, Umberto eco seleciona uma lista que obras pictóricas, da antiguidade ao século XX, que representam listas, ou seja: recortes de totalidades. Assim nos define o próprio autor: “O artista que tenta elaborar uma lista, mesmo parcial, de todas as estrelas do universo quer de certa forma fazer pensar neste infinito objetivo” (idem, p.17) O infinito, antevisto como objetivo pelo artista, está na obra pelo recorte metonímico: a parte que remeto ao todo. O infinito almejado pelos românticos consiste também em uma leitura do ideal platônico, que se repete no “infinito potencial” de Umberto Eco. Dentro deste conceito de arte, oferece-se uma promessa de felicidade como perspectiva de completude, mas esta completude só surge como efeito no sujeito; o objeto deve manter evidente sua incompletude: O infinito da estética é um sentimento que resulta da finita e perfeita completeza da coisa que se admira, enquanto a outra forma de representação sugere o infinito quase que fisicamente, pois ele, de fato, não acaba. (idem, p. 17)

A obra citada por Eco é A batalha de Alexandre Magno, de 1529, pintada por Altbrecht Altdorfer, na qual se vê o grande exercito que cai das margens do quadro, bandeiras, soldados, tendas não conseguem se retratar, como se uma lente grande angular não fosse capaz de alcançar toda a multidão. No canto esquerdo superior, uma lua crescente quase também transborda, aumentando a sensação de que o cenário visualizado pelo pintor seria bem maior daquele retratado na obra Nessa totalidade infinita, Eco busca explicar o modo literário que fomenta continuamente na imaginação o número incontável, como uma totalidade que excede a fronteira entre o conhecido e o desconhecido: a imagem do desconhecido surgirá daquilo que é conhecido. A literatura clássica, segundo Eco, elenca o indizível como forma de apresentar a totalidade:

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Assim como Homero não consegue nomear todos os guerreiros argivos, Dante não saberá como nomear todos os anjos do céu, porque não conhece, não diríamos seus nomes, mas sequer o seu número. (idem, p.50)

Também a Lista dos Anjos (idem, p.61 e 62) selecionada por Eco afirmaria a existência dos anjos não citados, aqueles de nomes desconhecidos. Não importa quantos nomes forem escritos, nunca abarcarão a totalidade dos nomes. Assim também a ilustração de Gustave Doré que representa os anjos do planeta Mercúrio recebendo a Beatriz de Dante (idem, P.60), os anjos ocupam todo o entorno da heroína e se confundem, na gravura, com os feixes de luz e nuvens, tornando-se indiferenciáveis na multidão iluminada que vaza pelas margens da gravura. Assim, as listas cumprem um papel importante no mito da totalidade, pois o renovam constantemente. A forma de listas pressupõe sempre um recorte que, para se completar precisa incluir mentalmente o que está de fora, pois, só assim a sua forma pode ser interpretada. Da mesma forma que, para os autores do romantismo alemão, a forma da arte se mostra somente neste abarcar o que está fora da obra. A forma da obra transmite a relação da obra com a totalidade. O oitavo capítulo, intitulado “Trocas entre lista e forma” (idem, p. 130), apresenta a ideia de que a forma das listas não é uma forma fechada, mas sim um conjunto ordenado de partes, que resulta em uma forma disforme, que precisa ser completada pelo entendimento do leitor/espectador. A forma das listas não traz consigo a tranqüilidade de uma obra acabada, bastante ao contrário: existe nas listas algo que incomoda, pois o que se busca aqui não é o deleite, mas sim a inquietação que incita o espectador a buscar a totalidade ausente no quadro. A obra escolhida pelo nosso autor é A primavera, de 1573, de Guiuseppe Arcimboldo (idem, p.130) que desenha um rosto com flores e folhagens. Se a obra a distância parece formar um todo, o exame a pouca distância traz uma sensação de grotesco na união de elementos inesperados. O que interessa aqui é o inesperado da poética barroca, a transformação dos elementos que causa a surpresa. Esta permuta da forma leva o espectador a uma nova visão inesperada, mostrando um todo que não poderia ser

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prepresentado pelas partes desconexas, mas somente ordenados de uma certa maneira é que podem fazer surgir a imagem que o artista concebeu. A concepção de arte como modo de apresentação, como a disposição dos objetos no espaço – literário ou pictórico – coloca as listas e as coleções no espaço discursivo da arte. As listas e as coleções são organizadas segundo leis próprias. Eco reconhece, no capítulo da “Retórica da enumeração” (idem, p.132), as diferentes técnicas para construção de uma lista interessante: usando as figuras de linguagem da retórica clássica: a enumeração construída pela analogia e pela alegoria. Esse deslocamento do sentido denotativo para o alegórico leva o leitor à uma participação ativa na ação da leitura para que o sentido da obra seja revelado. A obra escolhida, da escola de Pietro Longhi, O banquete em casa Nani, de cerca 1755, apresenta os convidados sentados à mesa semi oval que ocupa toda a perspectiva do quadro, com seus cães e serviçais que não são mais distinguidos nas linhas de fuga. Abaixo, em lista, estão citados os convivas, presumimos. Essa enumeração exaustiva que pretende listar os nomes dos convivas é uma alegoria que representa uma totalidade não representável: Para Eco “responde ao princípio da amplificação oratória, da qual são exemplos a metábole e a comooratio (comoração ou insistência) e a paráfrase” (idem, p.134). Assim, a aparência do abarcar a representação do todo reafirmaria que esta totalidade, e assim é decodificada pelo espectador, excede ao dado representado, e não pode ser fixada. Estes instrumentos não foram somente válidos para a escolha do grande leque de exemplos literários e pictóricos da cultura barroca, mas transborda, segundo Eco, até o século XX, incluindo, nas listas, a concepção surrealista da arte. Podemos voltar aqui ao autor alemão, que vai demonstrar a semelhança entre o pensamento dos primeiros românticos com o surrealismo. A disposição surrealista para as coleções e as listas se opõe à noção de arte acabada. A busca da sobre-realidade levaria o leitor/espectador a um movimento crítico que leva ao entendimento do conceito político de arte. No capítulo Coleções e tesouros (idem, p.165) Eco se debruça sobre as pinturas que retratam as coleções, em um mise na abyne onde a obra no museu retrata a obra no museu. Para Eco é o “gosto da acumulação e do incremento

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ad infinitum” (idem, p.165) que são retratados nessas obras. Ao lado dos tesouros de pinacotecas retratados em obras como a de David Teniers, A coleção do arquiduque Leopoldo Guilherme de Habsburgo, de cerca de 1650 (idem, p.166-167) que apresenta a cópia dos quadros da coleção, Eco traz a obra de Joseph Cornel, de 1943: uma caixa com coleção de produtos farmacêuticos. Para Benjamin, as coleções promovem uma transposição dos objetos, que são retirados de suas funções práticas e refuncionalizadas em uma nova constelação, seja a coleção dos quadros que ocupa o lugar de um só quadro, ou a coleção de fármacos, que se tornam objetos de exposição. Nessas coleções se encontram também os relicários, coleções de objetos sagrados dispostos em uma determinada maneira. Eco diz que os objetos das coleções, “[...] além de seu valor venal, são signos, portadores de um testemunho e remetem a outra coisa, ao passado de onde provem, a um mundo exótico do qual são os únicos documentos, ao mundo invisível” (idem, p.170). Essas obras, tomadas como listas, evidenciam a escolha arbitrária do recorte, de modo que o que o objeto escolhido não é o que fica em evidência, mas a nova disposição. A enumeração como monólogo interior está contida no capítulo que Eco reserva ao capítulo chamado “excesso coerente”, ainda que essas listas aparentes tratar de enumeração de objetos díspares e caóticos, o autor reconhece uma semelhança rítmica, e que essas listas apresentam uma harmonia no significante: “só se pode concluir que existe método nesta loucura e que a lista, caótica do ponto de vista dos significados, não o é do ponto de vista dos significantes.” (idem, p. 238) Diferentes autores são citados como exemplos desta estranha coletânea: Goethe e descrição a subida da montanha Brocken por Fausto e Mefistófoles, encontrando os estranhos seres que participaram da Noite de Walburga. O próprio Eco em sua obra Baudolino, que cruza, em suas aventuras, com os mais diversos seres mitológicos, e mesmo Roland Barthes, com suas listas de gostos e sabores agradáveis. São poesias ou prosas que se organizam em listas coerentes do ponto de vista da imagem fônica. Fora de qualquer coerência, porém, estão as listas definias como o “enumeração caótica” (idem, p. 321), no qual Eco reúne diversas experiências de poesia e colagens dadaístas e surrealistas. A conexão entre os elementos

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não é pré-existente, e se agora podem ser encontrados em uma mesma coleção, é pelo processo que Eco chama de “enumeração disjuntiva” feita de modo absolutamente arbitrário. Para eco, a “enumeração disjuntiva exprime uma fragmentação, uma esquizofrenia do sujeito que percebe uma seqüência de impressões disparatadas sem conferir nenhuma unidade a elas” (idem, p. 323). A leitura pressupõe algo ausente nela, e a hermenêutica, ou seja, os pressupostos para a leitura do texto, devem abarcar o mundo para fora do recorte. Mas esta percepção daquilo que está ausente só se dá pelo recorte. É o recorte que define o campo semântico daquilo que está ausente. Para Umberto Eco, assim como para Schlegel, a crítica é objetiva, e a leitura parte do objeto. Ainda que o processo hermenêutico se conclua no sujeito, a ação da crítica parte da definição do recorte provocado pelo objeto. A ideia da literatura e da arte como recortes de uma totalidade e de que o papel do leitor ou espectador é reconstruir essa totalidade, lendo aquilo que está ausente no texto para poder entendê-lo, levou-me a aproximação desses dois autores: Umberto Eco e Walter Benjamin. O exercício hermenêutico da leitura proposta por ambos demonstra a importância do exercício mental para a interpretação. A arte não se sustenta na mera visualidade externa, no agradável ou no fácil. Para entender um objeto é necessário ver o que está fora dele; de qual a totalidade ele é o recorte; se o pensamento pode ser estimulado até o infinito, até o conceito. Esta concepção de arte se mantém desde a antiguidade, e o modo de abordagem proposto por ambos os autores pode ser aplicado até os nossos dias. O belo, como simplicidade harmônica, não tem aqui valor em si, mas sim como objeto que instiga o pensamento. Walter Benjamin diferencia-se porém de eco por buscar, neste significado da leitura além do texto, um efeito político de esclarecimento, ou aquilo que o autor alemão chama de iluminação profana do pensamento. Umberto Eco, assim como Schlegel, constroem o seu pensamento todo no âmbito da estética, que não necessariamente traz consigo a missão revolucionária.

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Referências bibliográficas

Eco, Umberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2010 _______ et al. Joyce e o romance moderno. São Paulo: Documento, 1969 JOYCE, James. Epifanias. Tradução e comentários de Piero Eyben. São Paulo: Iluminuras, 2012 SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Friedrich Schlegel Ausgabe. Munique e Padeborn: Ferdinand Schöningh, 1967 _______. O dialeto dos fragmentos. Trad. Marcio Suzuki. São Paulo: 1997, p. 82)

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ANEXOS

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OS LIVROS DE UMBERTO ECO

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_não contem com o fim do livro Título original: Non sperate di liberarvi dei libri Ano da 1ª edição: 2009

Fonte: web Grupo Editorial Record

Do papiro ao arquivo eletrônico, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière atravessam 5 mil anos de história do livro em uma discussão erudita e bem-humorada, sábia e subjetiva, dialética e anedótica, curiosa e de bom gosto. Na conversa entre os autores, intermediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac, a intenção não é apenas entender as transformações anunciadas pela adoção do livro eletrônico, mas dar início a um debate instigante e atual a partir da premissa de que e a história dos livros e o amor a eles os salvarão do desaparecimento. A experiência de bibliófilos, colecionadores de exemplares antigos e raros, pesquisadores e farejadores de incunábulos, os faz considerar o livro, como a roda, uma invenção perfeita e insuperável. O livro aparece aqui como uma instituição sólida, anatômica e funcionalmente adequada que as revoluções tecnológicas, anunciadas ou temidas, não exterminarão. Os autores se divertem mostrando como o livro atravessou a história da humanidade, para o melhor e às vezes para o pior — Eco reuniu uma coleção de livros raríssimos sobre o erro humano, na medida em que, para ele, eles condicionam toda tentativa de fundar uma teoria da verdade. Diante do desafio representado pela digitalização universal dos escritos e da adoção das novas ferramentas de leitura eletrônica, essa evocação de venturas e desventuras do livro permite relativizar as mudanças que estão por vir. Homenagem divertida a Gutenberg, essas conversas irão arrebatar todos os leitores e apaixonados pelo objeto livro. E não é impossível que também alimentem a nostalgia dos detentores de e-books. CONSEGUIR

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Obra Aberta Título original: Opera Aperta Ano da 1ª edição: 1962

Fonte: web Editora Perspectiva

Enfoque revolucionário e atual dos problemas da estética e da teoria da informação, este livro é uma leitura obrigatória para todo aquele que, de algum modo, se ocupa da literatura, do teatro, da crítica, da publicidade, do design industrial e das artes plásticas, entre outras áreas. - As sucessivas reedições e o papel que desempenharam na formação e no debate de ideias, bem como na visão e na escritura de mundo que a antropologia, a semiótica e a tecnologia instituíram no Brasil como marcos e critérios de contemporaneidade, subscrevem em sua totalidade a leitura desta Obra Aberta que a editora Perspectiva fez e cuja validade esta nova edição, revista e ampliada, confirma plenamente. CONSEGUIR

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O Nome da Rosa Título original: Il Nome della Rosa Ano da 1ª edição: 1980

Fonte: web Grupo Editorial Record

Mais importante romance de Umberto Eco, O nome da rosa chega em nova edição. É o relançamento do famoso suspense policial de Eco, com um roteiro no estilo das histórias de Cona Doyle, e que alcançou sucesso mundial em desde sua primeira publicação, em 1980. O livro também originou o filme homônimo, estrelado por Sean Connery, em 1986.A nova edição conta com tradução revista, novo projeto gráfico, prefácio do escritor inglês David Lodge e biobibliografia.Neste livro, durante a última semana de novembro de 1327, em um mosteiro franciscano italiano, paira a suspeita de que os monges estejam cometendo heresias. O frei Guilherme de Baskerville é, então, enviado para investigar o caso, mas tem sua missão interrompida por excêntricos assassinatos. A morte, em circunstâncias insólitas, de sete monges em sete dias, conduz uma narrativa violenta, que atrai por seu humor, crueldade e sedução erótica.Não apenas uma narrativa sobre investigação de crimes, O nome da rosa também é uma extraordinária crônica sobre a Idade Média. CONSEGUIR

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Pape Stàn Aleppe Título original: Pape Satàn Aleppe Ano da 1ª edição: 2016

Fonte: web Grupo Editorial Record

O último livro escrito por Umberto Eco, uma visão inteligente e atual sobre o mundo de hoje Crises ideológicas, econômicas e políticas, individualismo desenfreado e uma relação simbiótica com nossos celulares são alguns dos elementos que compõem o ambiente em que vivemos: o de uma sociedade líquida, onde nada parece fazer sentido ou ter sequer algum significado. Neste que é seu derradeiro livro, a fim de tornar mais fácil a compreensão de nossa sociedade desnorteada, Umberto Eco nos presenteia com uma coleção de ensaios sobre tudo: de Harry Potter ao 11 de Setembro, passando pelo Twitter, os templários e questões de caligrafia. “Pape Satàn, pape Satàn aleppe”, disse Plutão no Inferno de Dante, com espanto, tristeza, ameaça ou talvez ironia. O significado do verso, ainda um mistério para nós, líquido demais, é perfeito, portanto, para caracterizar a confusão de nosso tempo e intitular esta obra. CONSEGUIR

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A Vertigem das Listas Título original: Vertigine della lista Ano da 1ª edição: 2009

Fonte: web Grupo Editorial Record

As listas são a forma primeira e mais fundamental de organização da informação. Mas, paradoxalmente, também a maneira pela qual até mesmo as formas mais complexas de classificação são apresentadas. Menus, sites, catálogos ou outros arquivos regem a cultura ocidental. Há tabelas de santos, enumerações de criaturas fabulosas, inventários de plantas medicinais, relações de tesouros. Existem listas práticas, que são finitas, como os catálogos de livros em uma biblioteca; Outras sugerem incontáveis magnitudes e, portanto, um perturbador senso de infinitude. Em A vertigem das listas, Umberto Eco, um dos mais incensados intelectuais da atualidade, explora questões-chave de cada classificação, oferecendo uma lição importante para a arquitetura da informação. Como criar uma classificação rigorosa? Há apenas um critério para classificar? E, se mais de um, qual escolher? Eco nos lembra, ainda, que o sonho de toda ciência e toda a filosofia, desde as origens gregas, foi conhecer e definir a essência das coisas. Lista-las. A estética das listas passa pela história da arte e da literatura. Mas A vertigem das listas não analisa apenas uma forma literária raramente investigada. Mostra, sobretudo, como as artes são capazes de sugerir listas infinitas, mesmo quando a representação aparece severamente limitada pela moldura. Umberto Eco reflete, nesta bela edição ilustrada, sobre como a idéia dos catálogos mudou através dos séculos. E como, de um período a outro, expressou o espírito de cada era. Com a perspicácia e erudição de sempre, Umberto Eco propõe essas e outras indagações. E, a reboque, tanto os textos antológicos quanto as extraordinárias ilustrações deste livro, nos faz percorrer um surpreendente itinerário. Este ensaio é acompanhado de uma antologia literária e uma vasta seleção de trabalhos arte, ilustrando e analisando os textos apresentados. Uma apaixonante aventura intelectual e sensorial, este volume dá continuidade ao projeto editorial dos livros História da beleza e História da feiúra. CONSEGUIR

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Arte e Beleza na Estética Medieval Título original: Arte e bellezza nell'estetica medievale Ano da 1ª edição: 1987

Fonte: web Grupo Editorial Record

Idade Média, idade de trevas? Segundo Umberto Eco, um dos mais importantes intelectuais contemporâneos, a resposta é simples: uma era de contrastes. De um lado, crises políticas, religiosas, demográficas e até lingüísticas. De outro, os séculos de renascença, quando nascem as nações modernas, se revolucionam os transportes marítimos, as técnicas agrícolas, os procedimentos artesanais. Uma época sedutora por seus ideais sociológicos, filosóficos, religiosos e psicológicos. É desse trampolim do qual mergulha Eco. Ponto de partida de uma reflexão sobre a estética por trás de todo um milênio — do século VI ao século XV. Não apenas no mundo das artes, como no âmbito da ciência e da teologia. Com a perspicácia e erudição de sempre, mais a ajuda de textos filosóficos e literários, Eco analisa como o mundo medieval respondia às interrogações sobre os fenômenos estéticos, no âmbito da própria cultura e visão de mundo. Como os medievais convertiam o belo em um valor: a beleza devia coincidir com a bondade e o divino. Eco corrige, ainda, a falsa noção de ausência de sensibilidade estética no universo medieval e traça o retrato de uma época. A beleza, a arte, as relações entre arte e moral, a função do artista, as noções do agradável, de ornamentos, de estilos, os juízos de gosto. Nada escapa ao olhar arguto de Eco. De Boécio a Eckhart, de sutis distinções conceituais a sínteses sociológicas e históricas, aqui estão as considerações de Eco sobre as ideias estéticas medievais. As diferentes formas de entender arte, beleza, apreciação da obra de arte e moral. Publicado originalmente em 1959, como parte de uma tetralogia sobre a história da estética, ainda se mantém atual e uma das únicas obras a conectar noções metafísicas de beleza a técnicas artísticas. Denso e elegante, nos remete a um mundo e uma civilização muito próximos e, ao mesmo tempo, muito longínquos: vários dos conceitos fundamentais elaborados pela estética medieval chegaram até nossos dias. Reafirmados, travestidos, ainda que inseridos em outros contextos e alterados. E Eco — guia envolvente e inspirado — passeia por eles, sem querer defini-los ou engessa-los.

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História da Feiúra Título original: Storia della bruttezza Ano da 1ª edição: 2007

Fonte: web Grupo Editorial Record Quem ama o feio, bonito lhe parece. Mas a idéia da feiura é muito mais complexa de definir do que a da beleza. O conceito de grotesco foi, ao longo dos séculos, vinculado ao da graça e formosura. O feio, o cruel e o demoníaco são os parâmetros para a existência do belo. Mas nem sempre considerados o seu oposto. Uma história da beleza conta com uma ampla série de testemunhos teóricos capazes, ao mesmo tempo, de delimitar o gosto de determinada época. Já a trajetória da feiura, ao contrário, terá de buscar seus próprios documentos nas representações visuais ou verbais de coisas ou pessoas consideradas feias. Mas gosto se discute? Como mensurar a ausência da perfeição? Com a perspicácia e erudição de sempre, Umberto Eco propõe essas indagações em História da feiura, um ensaio sobre as transformações deste conceito através dos tempos. Depois de registrar, em História da beleza, o curso do belo na civilização ocidental, Eco se volta para a feiura e nos faz refletir: se beleza ou feiura estão nos olhos de quem vê, também é certo lembrar que esse olhar é influenciado pelos padrões culturais de quem observa. Para um ocidental, uma máscara ritual africana pode causar estranhamento, terror, ao passo que para o nativo pode representar uma divindade benévola. Dizer que belo e feio são relativos aos tempos e às culturas não significa, porém, que não se tentou, desde sempre, vê-los como padrões definidos em relação a um modelo estável. Nos quinze capítulos deste livro, Umberto Eco reflete sobre as diversas transformações do conceito de feiura não apenas no mundo das artes, como em diversas áreas do conhecimento, como a filosofia, a teologia, a ciência, a política e a economia. História da feiura não é uma história da arte nem um estudo de estética, mas valese de ambos para delinear a idéia de feiura desde a Antigüidade Clássica até os dias de hoje. E assim, tanto os textos antológicos quanto as extraordinárias ilustrações deste livro nos fazem percorrer um surpreendente itinerário, entre pesadelos, terrores e amores de quase três mil anos, onde movimentos de repúdio seguem par e passo com tocantes gestos de compaixão e a rejeição da deformidade se faz acompanhar de êxtases decadentes com as mais sedutoras violações de qualquer cânone clássico. Entre demônios, loucos, inimigos horrendos e presenças perturbantes, entre abismos medonhos e deformidades que esfloram o sublime, entre freaks e mortos vivos, descobre-se uma veia iconográfica vastíssima e muitas vezes insuspeitada. Belissimamente ilustrado, História da feiura é uma apaixonante aventura intelectual e sensorial. Amante das palavras tanto quanto das imagens, Umberto Eco acabou por transformar essa obra sofisticada, e ao mesmo tempo emocionante, num convite sedutor e irresistível a um passeio pelo reino do grotesco.

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Como se Faz uma Tese Título original: Come si fa una tesi di laurea Ano da 1ª edição: 1977

Fonte: web Editora Perspectiva

"Fazer uma tese, significa divertir-se, e a tese é como um porco: nada se desperdiça". Reunindo uma sólida erudição, exposta de maneira didática, a um senso de humor que tudo ilumina, Umberto Eco é o autor mais indicado para a árdua e indispensável tarefa de ensinar como se faz uma tese. Neste manual prático, Eco vale-se de sua enorme experiência acadêmica para esquadrinhar desde os aspectos básicos de uma tese (a escolha do tema e do orientador, as técnicas de pesquisa e fichamento) até as regras de sua redação (chegando mesmo a minúcias de diagramação). Como se Faz uma Tese tornou-se, no correr dos anos, um “clássico” da nossa cultura acadêmica e a validade de sua permanência nos levou a adequá-lo ao Novo Acordo Ortográfico, bem como a modernizar opções de tradução que o atualizam para a leitura do estudante e do público de nossos dias. "O livro de Umberto Eco, Como se faz uma tese, não apenas é de uma extrema utilidade para quem está a perigo nesse departamento como também diverte, educa e instrui" - Ruy Castro CONSEGUIR

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OS AUTORES

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Alexandre Emerick Neves Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV - EBA/UFRJ, Mestre em História da Arte pelo PPGAV - EBA/UFRJ, Graduado em Pintura pela EBA/UFRJ. Professor Adjunto de História e Teoria da Arte da UFES. Professor do Programa de PósGraduação em Artes da UFES. Experiência na área de Artes, com ênfase em História e Teoria da Arte, exposições como artista plástico e atuação como restaurador de obras de arte.

David Ruiz Torres Doutor em Arte pela Universidade de Granada (Espanha, 2013) e formado em História da Arte e museologia pela mesma universidade. Atualmente é bolsista do Programa Nacional de Pós-doutorado da CAPES (PNPD/CAPES) no PPGArtes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do grupo de pesquisa da Universidad de Granada "Andalucía-América: patrimonio y relaciones artísticas" (2011 - ). Suas linhas de pesquisa estão relacionadas com as mediações tecnológicas na arte e nos espaços expositivos, tendo realizado várias colaborações em exposições do Estado.

Elisa Ramalho Ortigão Pós doutoranda do PPGArtes/UFES e pesquisadora DCR Fapes/CNPq. Doutora em Literatura Comparada (UFF). Mestre em Ciência da Literatura (UFRJ) e graduada em Literatura Portuguesa e Alemã (Universidade Nova de Lisboa). Atua nas áreas de tradução alemão-português, teoria literária, literatura, cultura judaico-européia, culturas tradicionais e antropologia visual.

Fabiano Araújo Costa Doutor em Musicologia (Paris-Sorbonne, 2016); Mestre em Música (UFMG, 2006) e Bacharel em Música Popular (Unicamp, 2000). Professor do Dpto. de Teoria da Arte e Música, UFES. Pesquisador Associado do Institute de Recherche en Musicologie (IReMus/ Paris-Sorbonne). Coordenador do Núcleo de Estudos em Música e Musicologia Audiotátil [eMMa/ UFES].

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José Otavio Lobo Name Professor de fotografia, vídeo e antropologia visual do Departamento de Desenho Industrial do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Graduado em Cinema (Universidade Federal Fluminense, 1990); Mestre em Artes (Studio Art, New York University, 1996), e atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Desde 2014 realiza a documentação audiovisual do congo capixaba por meio da plataforma O Congueiro.

Mónica Vermes Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (2003), atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Espírito Santo, onde leciona as disciplinas de história da música na graduação e atua nos programas de pósgraduação em Letras (PPGL) e em Comunicação e Territorialidades (PÓSCOM). Musicóloga, dedica-se principalmente aos seguintes temas: música brasileira dos séculos XIX e XX, romantismo musical, circuitos musicais no Rio de Janeiro da Belle Époque, crítica musical, cenário musical de Vitória - ES nos séculos XX e XXI.

Rodrigo Otávio da Silva Paiva Professor de História da Arte do Departamento de Teoria da Arte e Música da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Formado em Filosofia com Mestrado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorado pela “Universität der Künste Berlin” (UdK). Pósdoutorado também pela UNICAMP.

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Prof. David Ruiz Torres, Profª. Mónica Vermes, Profª. Márcia Jardim e Profª. Elisa Ramalho Ortigão na apresentação no Seminário Obras Abertas: Leituras de Umberto Eco.

Comissão organizadora na sessão de abertura do Seminário “Obras Abertas: leituras de Umberto Eco”.

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Dr. David Ruiz Torres no debate “O nome da Rosa: trama medieval e questões do século XXI”.

Professor José Otavio Lobo Name e o Professor Fabiano Araújo na Mesa “Deslocamentos estéticos na contemporaneidade”.

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Professora Vera Simões na palestra “O nome da rosa... Ficção ou Realidade? ”

Dra. Elisa Ramalho Ortigão e o Professor Rodrigo Paiva na Mesa “Obras abertas, algumas leituras”.

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