Angelo ramalheira ,ilhavo sec xx clubedoc

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Ângelo Ramalheira o rigor cientifico numa personalidade de eleição

SENOS DA FONSECA

2007

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… um homem só tem um direito, o de cumprir o seu dever…

Prefácio Numa terra sem critérios, e mais grave, sem sentimentos de gratidão, desinteressada do merecimento do passado, obliterada por minudências de chocalho, será estulto trazer ao de cima, e comparar, valores que ultrapassaram por obras e feitos, mais do que é vulgo, o simples humano conseguir. É um fenómeno que vem detrás, um deplorável anátema que nos limita e reduz. O opróbrio à mudança comportamental é tão absurdo, cego e surdo, que só um maniqueísmo hiperbolizado, profundamente instalado numa sociedade ancestralmente individualista, explica. Mas não desculpa. O engº Ângelo Ramalheira é uma dessas figuras, hoje já quase esquecida na sua terra natal. Facto imperdoável, imerecido, que culpabiliza tão só uma comunidade inerte que atassalha a memória dos que se distinguiram, enquanto limpa os beiços ao guardanapo dos enfastiados, e passeia de boca aberta ,braços caídos, olhar embotado, perdida a vontade de tudo ,até a de se lembrar. Figura ímpar, referencial do espírito científico da sua época, senhor de um saber feito - fazendo - figura de universal contacto, desempoeirada, viva e alegre - mesmo quando o acaso do infortúnio 2


investiu, malévolo e ingrato, contra si - parece sujeito ao contrasenso dos seus conterrâneos. Não lhe escapou … apesar de … Devo-lhe imenso «saber»; que me foi dado da maneira mais inteligente: desafiando-me, ao tempo que me ia amparando no esforço de aprender. Mas… (e porque já não era pouco…) Mais do que saber técnico que me foi precioso, deu-me verdadeiras lições de solidariedade, de amizade e de curioso desvelo. Isto é, deu contributo válido para me ajudar na formação de uma personalidade inquieta, porque sempre disponível. Mais para os outros do que para mim mesmo. Orgulho-me de ser um dos seus conterrâneos ; o seu exemplo serviu-me - sempre! - para me desafiar e me incentivar. Nunca para me diminuir. Ora, é a estas comparações que os farfalhos temem sujeitar-se, preferindo deixar os exemplos fechados nos arcazes onde repousam memórias, que não querem recordar .Débeis, temem as comparações. Vivem do escalracho poluído da retórica balofa. E isso lhes basta. Pobres de espírito… Foi com muito carinho e muito desvelo que usei a minha pouca e sombria destreza, para Lhe recuperar a imagem. Se em vez de palavras lhe pudesse ter traçado o perfil, a régua e esquadro, ficaria talvez, mais escorreita a imagem; mas claramente menos humanizada, menos quente, menos ofegante, mais anémica. Antecipando-me um ano ao Centenário do seu nascimento, deixo este contributo para recordar o Engº Ângelo Ramalheira, na grandeza de um «ílhavo» singularmente exemplar na fidelidade expressiva às suas raízes. 3


S.F.

Ă‚ngelo Ramalheira (1908 - 1975)

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Decorria o mês de Julho em 1908 O século que então se iniciava vinha cheio de interrogações, com a Europa a ser percorrida por uma instabilidade política e social que a haveria de conduzir, meia dúzia de anos mais tarde, à 1ª Grande Guerra Mundial. Em Portugal a monarquia consumia-se nos seus últimos estertores. O ano iniciara-se com a prisão indiscriminada dos vários chefes Republicanos (António José de Almeida, Afonso Costa etc.). A agitação era difícil de circunscrever, pois a ditadura de João Franco continuava a ter como resposta, só e apenas, a repressão. E o que há muito se esperava, deu-se, com o regicídio, em 1 de Fevereiro daquele ano, do Rei D. Carlos e do seu filho herdeiro, D. Luís, levado a cabo pelo Buiça e seu companheiro Costa. Restou D. Manuel como remedeio, que pouco ou nada iria trazer ao conturbado País. Os tempos eram preocupantes ; e na convulsão quase permanente em que então se vivia, procurava-se nova ordem capaz de dar rumo aos anseios do povo português ansioso por uma aproximação às liberdades democráticas e ao maior desenvolvimento dos países do centro da Europa. Na Velhice do Padre Eterno, Junqueiro glorificava : Homens, dizei…(…) Tirano vai-te embora daqui ! Construímos de novo o paraíso humano; Fizemo-lo sem Ti…

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A Monarquia iria, inexoravelmente, afundar-se. No estreloiçar que percorria o País do Minho ao Algarve, nuvens negras, túmidas e agoirentas, geradas no confronto de ideias, pressagiavam tempos difíceis de incerteza mas, também, de afirmação, na construção de uma nova Pátria. Em Ìlhavo, recanto esconso à beira mar postado, ocupado por gentes que mais gostavam de fazer do que falar - muito embora não descuidadas de intervenção - um azul longínquo, lascivo e impúdico, oferecia-se vindo das profundezas de um mar distante aos longes da vista. Que acenava, instigador, com promessas que alijavam ou aligeiravam a inquietação, pois que Ílhavo vivia como todo o país, as peripécias desse novo tempo. Grupos locais digladiavam-se na terra, procurando impor os seus ideais. Novo desafio tinha, contudo, surgido, deixando pouco tempo, espaço e disponibilidade, para envolvimento na politica : de novo «o ílhavo» pretendia assumir o desígnio altieiro, chamamento vindo já de longe, desde os tempos longínquos de quinhentos, quando em aventura prodigiosa por lá tinha, então, navegado, emparentado com tais lonjuras. O fascínio daquele mar era sereia de encantos mil, e as suas promessas, aceno para envolvimento que parecia provir de longa soada de búzio longínquo, mais parecendo um toque aos louvados para a grande faina, que apelo atrevido. Nesse ano de 1908, a 27 do mês de Julho, na família de João Ramalheira - um dos primeiros a aceitar o desafio da Terra Nova e então já embrenhado por aquelas bandas -arquétipo com origens vindas de longe, dos primórdios, gentes da lavra lá do Cimo da Uilla que teriam descido para a vida salgada, feitos pescadores da laguna e/ou da xávega, da beira mar, «virando» depois gente da cabotagem, fixada ali para os lados de Espynheiro - irá nascer o filho Ângelo.

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Dele, dirá companheiro dos tempos em que lado a lado poliram a duo, as carteiras na escola primária, que o Ângelo sempre teria demonstrado especial queda para essa ciência, a Matemática. Que, parecendo dádiva caída do céu e não ciência de criação contínua, terá nascido da necessidade humana em resolver o acaso. E se o acaso não deixou de se prolongar ao longo da vida de Ângelo como sucede invariavelmente com todos, e uma ou outra vez de maneira madrasta - certo é, porém, que nele, o espírito cientifico advindo desde as primeiras observações onde procurou activamente resposta a todas as provocações, sobretudo a da criação pela invenção, irá manter-se e tornar-se circunstância de escolha para vida. O Ângelo da Graça Ramalheira, de seu nome baptismal, foi o sexto, dos doze filhos que o casal João Ramalheira e Vitorina trouxe ao mundo, de que, contudo metade, não conseguirá sobreviver para lá da tenra idade. O Pai, João Ramalheira, era um dos muitos rapazes de Ílhavo, filho de patrão e mestre de hiate (ou chalupa), daqueles que faziam cabotagem entre os portos do norte e sul, do país : de tenra idade fez o seu primeiro embarque na chalupa «Bacarat», propriedade de seu pai, tendo tido o seu baptismo de mar, em viagem, feita de Viana para o Porto. Cumprido o tirocínio de moço – que a bordo era pau para toda a obra, com estatuto abaixo de cão – apressou-se a entrar para a «aula» do Sr. Moraes com o fim de adquirir uns conhecimentos básicos e rudimentares - os mínimos necessários - para se alcandorar ao desempenho de piloto. Em 1906 é já ele que comandará o «Razoilo», aquele lugre construído na Malhada pelo M. Mónica, em 1889, que irá ser um dos primeiros navios juntamente com o «Atlântico» - a largar de Aveiro para a Terra Nova, na segunda investida aos bacalhaus, na «Faina Maior». 8


Homem envolvido numa vida dura e de ausência, J. Ramalheira irá mostrar-se - apesar disso - um Pai extremamente atento e comparticipativo nas tarefas de educação de seus filhos ; ao princípio, ainda consciente das dificuldades da família, permitirá dum modo magoado - registando no «Livro de Família» o auto flagelo da decisão - que o filho mais velho emigre para o Brasil ; anos volvidos, quando do fruto do seu trabalho e da real aptidão como exímio conhecedor de todos os segredos da recolha do fiel amigo, é já, reputado capitão bacalhoeiro, economicamente desafogado, será ele que pressionará os seus filhos para se embrenharem nos estudos médios e superiores. Não regateando antes bem pelo contrário, incitando-os, quando não pressionando-os - a frequentarem as melhores escolas, dando-lhe asas para voos largos, tão largos quanto o sonho e as reais capacidades de cada um, o permitissem. E capacidades potencialmente raras, era o que não faltava nos descendentes. Todos foram brilhantes. Uns distintos capitães : - o João, o Aníbal e o Elmano, todos eles, com lugar no rodapé da «estória» da Faina Maior. O Paulo, esse, foi médico dentista reputado, nele sobrando o talento de artista de apreciáveis recursos e interessante pluralismo, ensaiando-se em variadas intrusões pela gravura, entalhe, e gravação sobre pedra ; e claro, o Ângelo, um notável engenheiro que se afirmará dos mais sólidos e prestigiados de todo o País. Prole pois, interessante, que, diga-se, se mostrou - todos eles se mostraram ! - à altura da dimensão do sonho do progenitor, incluindo as filhas Judite e Zália, mulheres do seu tempo, plenas de vivacidade e simpatia, espíritos vivos, abertos e desempoeirados. O Ângelo e a irmã Judite, irão, já nessa fase da vida do Pai João, frequentar o colégio das Meninas Órfãs e fazer o complementar em Ponte do Lima. Depois, Ângelo, irá para Lisboa, onde frequentará o colégio Francês ponto de partida para uma decisão posterior, 9


quando, incitado por seu Pai, decide ir para a Bélgica, para aí tirar o curso de Engenharia Civil. Terminou os estudos liceais, umas vezes desembaraçando-se aprimoradamente nas matérias escolares, outras menos bem, certamente consequência do seu interesse por «outras matérias» em que ocupava o seu tempo. Desde que, rapazinho ainda, tomou o gosto de bem se «albardar» por fatiota requintada e vistosa apanágio e postura herdados do seu progenitor que fazia gala em se vestir na melhor alfaiataria de então, de Lisboa - com o fito de evidenciar uma verdadeira figura de pinga amor da época de vinte risco ao meio e muita brilhantina - bem apessoada , cativante e notada, pelo porte. A destoar do vulgo, e por tal, merecedora de atenção pelo garrido do «invólucro», mas e também, pela graça distinta que sobressaía da sua figura, já então extrovertida ; um riso largo e caudaloso ressumava-lhe na face, rasgando-a de lado a lado ; o contacto humano, o garrulejar, era feito em abordagem estimulante, em que era fácil vislumbrar, sem esforço, um intenso calor humano. Expressivo no gesto, provocador na toada brincalhona com que se «achegava» em saltitos de aproximação, em permanente «idas e vindas», fugaz nos avanços ou arrecuos acompanhados por gorjeio corporal requebrado, conseguia imprimir vida e afecto, ao contacto. Era um ser penetrante, que exalçava um apego profundo, vivo e contagioso, à vida. Este peralta - sapatinhos bicudos na forma a rebrilhar de lustro, com enfeite de fivela prateada, calça ampla caída sobre os ditos, casaco bem cingido, destacando larga ombreadura que servia de cabide a camisa de colarinho, alvo e alto! - quando em férias na Costa-Nova, não deixava de provocar sérios e mal disfarçados sobressalto. Arritmias galopantes dardejadas em prendadas meninas, que tímidas mas interessadas, passeavam por entre o estendal de pretendentes atrevidos, num bisbilhotar nervoso e esgargalhado, em procura de alma gémea. Salientava-se, então, o 10


jovem Ângelo, requestado e primaz candidato ao lugar de apoderado de corações ardentes que, desertos, de boa vontade se franqueariam se tocados por bom e fino jeito, ou por cortês galanteio. Nas bailações que no Salão «Arrais Ançã» - Assembleia virtuosa e vistosa que reunia a fina flor da praia, salão distinto e aprimorado onde amiúde se dançavam delicodoces «one steps», ou seguidos e mexidos «foxtrotes» embalados no compasso ritmado de afinadas e melodiosas orquestras, o jovem Ângelo exibia - muito embora escorreito de pedantismo ou eufemismo - os tiques cosmopolitas, que naturalmente, já então nele sobressaiam. Qual «Cupido» apontando a corações tão frágeis e desprotegidos, tão mal premunidos para tal ardego, escondidos por detrás dos leques de osso, ou de pano garrido enfeitado ou, mais prosaicamente de papel colorido, nervosamente balanceados. Presumível seria que tanta sobrecarga provocada por bruscas descobertas e variados espasmos de alma amorosa, pingona e ardente, provocasse no jovem delírios fascinantes para os quais os calhamaços da escola não albergariam, certamente - nem lhes competiria tão especifica matéria - adequada e total resposta. Explicados ficam assim – presumimos (?!) - os seus «altos e baixos», académicos. Quando em Lisboa, apressou-se seu Pai, já distinto capitão da Casa Bensaúde a facilitar-lhe a presença junto da roda de amigos e conhecidos - que rapidamente soubera criar e cujo contacto fazia privilégio, manter - e que, sagazmente, facultou a seu filho. De entre tal elite merece especial referência o arquitecto Pardal Monteiro - já então um dos expoentes máximos da arquitectura portuguesa, e que irá ter, proeminente e decisória influência no jovem Ângelo, ao sugerir que, dado o domínio absoluto da língua francesa e a vivacidade do rapaz se justificava que «o moço» fosse fazer o curso de engenharia civil numa das mais afamadas universidades de então, em Gand, na Bélgica. Entusiasmado com a 11


ideia - e a viver, já então, período de um certo desafogo financeiro o Pai não só aceitou a proposta que lhe pareceu desafiadora, como a valorizou e incentivou. Homem de sonho largo, na vida habituado aos longes do mar que desafiam e instigam, já não deseja, tão só, que o filho se acautele para a vida com um curso superior - na altura apenas ao alcance de uns (poucos!) eleitos - como ainda, aceita o desafio de o enviar para um dos mais conceituados centros de saber cientifico, da Europa. No «Livro de Família» de João P. Ramalheira, no capítulo dedicado a seu filho Ângelo, uma observação curiosa dá-nos conta de uma rara sensibilidade em homem do mar, que, embora ausente do convívio diário com a família por vias do cumprimento da agra vida, se mostra, apesar disso, um raro, cauto e atento observador. Mostra-se mesmo, estranhamente dado o pouco contacto, um exímio perscrutador (intimo) das qualidades e defeitos da sua prole, quando, a dado passo afirma não ser o Ângelo custoso de criar - ao contrário da Judite, a filha imediatamente anterior - pois era sossegado e aparatoso ; tinha contudo, a seu ver, um feitio especial que, dizia, o desgosta, o qual seria o acanhamento . Que sublinha, bem lhe poderia ser prejudicial para a sua vida futura. E dá por si a implorar : - Deus permita que mude. Provavelmente a estadia na Bélgica do jovem Ângelo, não deixaria de lhe instigar o fascínio por uma sociedade de bem estar que procurava, já então, resolver o paradigma da sociedade justa e de igualdade, muito mais evoluída e desenvolvida que aquela que aqui deixara. O que certamente lhe incutiria novos parâmetros de exigência para uma formação humanista, perspectivada num maior e mais amplo respeito, pelo outro. Na Universidade, o contacto aberto e intenso com culturas diferentes, não deixaria de enriquecer e influenciar a personalidade do jovem que daqui partira. Mas, certo é que, no fundamental, no essencial do perfil humano, nas traves 12


mestras da condição humana advinda do berço enleada nas raízes que lhe deram vida e sonho, o Ângelo voltaria muito igual ao que partira : uma personalidade rica, no todo simples e despretensiosa, fascinantemente e atraente. Talvez tenha regressado mais cativante, dada a influência positiva dos contactos tidos, dos enlaces com ideias, gentes e culturas tão diferentes da nossa, o que não deixaria de ser coisa de monta no arquétipo que estava em construção. Por isso que mudado - aí sim(!) totalmente mudado - quando chegado ao País, foi tempo de pôr em prática o imenso e ajustado cabedal técnico recolhido lá fora, numa afirmação profissional que não conheceu limites de sacrifício, nem atitude de contemporização com riscos, indo assumindo-os em plenitude. Chegado percebeu que tinha de se ocupar da vida .Não lhe era bastante o existir á sombra do canudo ;viver apenas ,não era conteúdo que lhe chegasse para preencher uma existência .Precisava de a desafiar. Mas não descortinamos - após esta emigração - uma profunda mudança no aspecto estrutural humano, pois que ao longo da vida demonstrou assumir-se um ser de eleição nas atitudes e actos, despido de toda a soberba. Repudiando todo o vedetismo - que a sua notoriedade lhe poderia acarretar ! - em boa verdade um senhor do mundo contido numa preciosa personalidade, paradigma de civismo. Figura insinuante, nela coabitou um ser extremamente sensível, em postura de natural e permanente abertura ao seu interlocutor. Rica nos afectos transformados em azafamada inquietação, desdobrada em gestos de elevado sentido de amizade e afago, profundamente humana. Personagem em que se vislumbrava um olhar extremamente vivo, por alturas felino na procura da descoberta do inconhecido, parecendo-lhe cometimento fácil o retirar das pessoas - ou das coisas - o resultado oculto que se propunha desvendar. Sendo certo que tudo era feito no respeito absoluto pelos que, 13


diligentes e probos, cumpriam, esforçados, a profissão. Nunca, no tempo em que ao seu lado trabalhei, vi dele partir reprovo ou fustigo aos que cumpriam, profícua e empenhadamente, independentemente do brilho com que o faziam. Outrossim, vi-o ser sarcástico - e irónico! - q.b., se e quando, foi necessário fazer desabar embófias empertigadas. E vi-o violento, ao verberar erros irresponsáveis, faltas imperdoáveis ou incúrias, que pusessem em risco o projecto e/ou a segurança dos trabalhos. Conheci-O… Tive o raro privilégio de o conhecer bem em particular, numa tão larga como aprofundada e diversificada - e multímoda - vivência. Fosse humana, e/ou, técnica. Por isso julgo, estar bem posicionado embora me faltem atributos, engenho e méritos - para o retratar de corpo inteiro, para lhe desenhar os contornos de uma personalidade rica onde batia um coração grande - que um dia o atraiçoaria, é certo (!), mas a vida, essa magana, é assim… - e de onde evolava um sentido franco de abertura e disponibilidade para o seu semelhante. Amigo intimo da casa dos meus Pais - seus companheiros desde os primeiros devaneios - encontrei-me com ele quando vim trabalhar na então Companhia Portuguesa de Celulose (C.P.C.), no projecto da sua nova fábrica de Cacia. Trabalhámos, assim, no mesmo gabinete de Projecto (G.E.T.E.). Ele, vindo de Lisboa e por aqui, restando apenas, dois dias por semana. Alimentava uma excelente equipa de desenhadores que ficava empanturrada em trabalho em cada uma das suas visitas, o suficiente para durar, desbravar e aprimorar, até à sua próxima visita ; tempo para novo tsunami desabar, breve mas poderoso, sobre as assoberbadas pranchetas dos profissionais da prancheta. 14


Simplesmente notável, o que semanalmente me era dado assistir. Chegava risonho, carregado de esquiços e papelada que retirava do seu inseparável carro - uma «arrastadeira» Citroen, descapotável, de cor grenat, modelo «pós- guerra». Um lindo carro de colecção, que casava às mil maravilhas com a personagem que transportava, e de que não se separou até ao fim da vida, imagem de marca passasse por onde passasse, móvel de referência para todos os que se cruzavam com tão requintada, singular e atraente beleza auto dos anos trinta. Chegado à sala, postado a um canto, interrogava e dava em simultâneo, despacho a dúvidas. Ou acrescia indicações precisas no sentido de novos caminhos para o projecto (Se de Napoleão se disse “ditar sete cartas ao mesmo tempo”, o engenheiro Ramalheira ditava trabalho conjunto, a “doze” !). O projecto englobava uma boa meia dúzia de complexas instalações, atribuídas, cada uma delas em particular, a um grupo de dois desenhadores. Nunca!… mas nunca!, o vi hesitar uma fracção de segundo que fosse para solucionar um caso, por difícil e intricado que se enroupasse ; a produtividade do seu trabalho e a dos que dele dependiam, era, por isso, notável e vertiginosa. Espantosa! O ímpeto com que defrontava o trabalho era prodigioso, no élan expressivo da forma e na força segura, demonstradas, e no ajustado envolvimento humano sabiamente utilizado para confrontar dificuldades. E foi motivados por esse ímpeto contagioso que nos empenhámos (e nos deixámos envolver com o mesmo espírito) em projecto, tão complexo como arrojado e ambicioso era, o da Companhia Portuguesa de Celulose (C.P.C.). O engº. Ramalheira pretendia, na mor das vezes utilizar o betão - que dominava como poucos - em troca da utilização das custosas estruturas metálicas que as firmas 15


produtoras dos pesados e complexos equipamentos, naturalmente, pretendiam impor. Isso obrigava a complexas soluções e a acaloradas e tortuosas discussões, no sentido de as levar a aceitar as propostas de utilização de outras técnicas e materiais, que não as habituais, impraticáveis ainda então, no nosso País. Recordo-me em particular de um caso paradigmático, bem elucidativo de tal complexidade, e do modo como persistente e determinado, o engenheiro lhe deu volta. Para um dos mais pesados e volumosos equipamentos, a «Caldeira de Lixívia», o coração energético de todo o complexo fabril, a americana «Babcock» exigia que o edifício que a iria albergar, fosse integralmente construído em aço, o que significava, a preços de então, um custo imensamente superior, supostamente insuportável. O engº Ramalheira tudo fez para provar que, ao contrário e mais vantajoso,era possível efectuar a construção do mesmo em betão, sendo apenas a estrutura nervosa central, essa sim, feita em aço de construção. Nada parecia fazer demover os teimosos e fundamentalistas americanos, obnubilados a tudo o que não constasse da bíblia de procedimentos interna, avessos que eram - e são! - a ousadias que consideravam perigosas. Ao fim de porfiados esforços lá aceitaram a ida de uma delegação aos EUA, provavelmente mais para a dissuadir, do que para a ouvir. A delegação - chefiada pelo chefe de projecto engº R.R. - incluiu, entre outros, o engº. Ramalheira, que sábia e convincentemente se propôs desatar os nós das dúvidas, e dar conta, pormenorizadamente, da bondade e das virtualidades da sua solução, pois - insinuava com matreirice - ela (até) poderia vir a ser interessante, no futuro, para a Babcok. Perante o olhar atento, mas desconfiado e algo espantado dos técnicos americanos, rebateu ponto por ponto as interrogações que lhe foram sendo, sucessivamente, colocadas. Água mole em pedra dura… é bem certo… pois que ao fim de duas jornadas os yankies - até ali incréus 16


e irredutíveis - mostravam-se já permeáveis aos argumentos, parecendo, finalmente, convencidos a dar luz verde ao «atrevido» projecto português. Para encerrar a visita convidaram a delegação portuguesa para um jantar de despedida, o que era lido como acordo tácito às propostas apresentadas. Ora, quando a mesma, bem disposta, se sentou à mesa, ouviu, espantada e incrédula, da boca do «chairman» da Babcock - que sim …,tudo bem, mas que os técnicos das estruturas…(reputados professores universitários americanos, conselheiros daquela firma) teriam ainda algumas dúvidas,…e que o melhor,… ia a continuar o Senhor… - O melhor, corta cerce, célere e de supetão, o engº Ramalheira, é os meus colegas que porventura tenham, ainda dúvidas, virem comigo para a sala de trabalho, para eles e eu, nos inteirarmos do que (ainda) não está completamente claro. Assim sucedeu. Lá se levantaram os especialistas da matéria, e lá foram de novo para o work room. Ao fim de umas horas, estava o jantar praticamente terminado, sendo notório um nervosismo e inquietação nos presentes - especialmente da parte portuguesa - eis que surgiu sorridente, hilariante e exuberante o engº. Ramalheira, seguido «dos mestres», que agora… sim !, estavam plenamente convencidos a dar o seu definitivo agrèement à delegação portuguesa da Companhia Portuguesa de Celulose. Tempo houve, ainda, para o nosso engenheiro mostrar aos espantados Yankies que era tão bom a projectar, como era, um excelente garfo. De eleição!... Exigindo acompanhar as vitualhas - que embora frias lhe deveriam ter sabido a manjar dos céus ! - a champanhe, e claro, francês «D.Perignon» ou «Moet et Chandon» (?!), não sei ao certo ; mas um deles seria, pois era escolha de que fazia gala servir-se nos grandes momentos, habituado que estavam os beiços a tão preciosa iguaria. O momento justificava-o. Tinha sido uma das vitórias mais suadas, mas ao mesmo tempo das mais saborosas, do seu (extenso e bem recheado) cardápio, prenhe de êxitos profissionais. 17


Sucedeu que me competiu, depois a mim, dirigir os trabalhos de montagem da Caldeira, um monstro de 35 metros de altura pendurada do tecto, suspenso, apenas encostando lateralmente, e em baixo, correndo em guias de modo a permitir a sua total liberdade de dilatação. Ora, no dia em que pela primeira vez se acendeu a mesma, por razões de excessiva condensação ou devido a uma ligeira fuga de água, esta, caindo sobre a lixívia incandescente que alimentava a queima, provocou uma série de explosões internas, brutais, verdadeiramente aterradoras. Uns fugiam lestos afastandose de algo mais grave que por vezes - e não poucas - tragicamente sucedia em situações semelhantes; outros aproximavam-se, «obrigados» pela responsabilidade técnica em resolver o assunto, pois não se sabia exactamente como se iria comportar o edifício inovador. Lembro-me de estar ao lado do inspector americano - o engº McQueen - e recordo-me de ver a sua cara, já de si branca, então ainda mais pálida, enxuta, percorrida por um misto de preocupação e ansiedade. Tudo demorou uns dez minutos, até o caos ser controlado. No final, já com a presença do engº Ramalheira - que não tinha mostrado uma excessiva preocupação com o facto passámos revista a tudo. O edifício lá estava impecável, sem uma racha ou outra mossa, visíveis. Ainda hoje lá está em perfeitíssimas condições. E a Babcock, perante a experiência que serviu de «prova dos nove» à estrutura, passou a usar a técnica da construção mista em projectos ulteriores, fora da América, especificamente por razões de sensível economia no investimento, pois, quanto a segurança, tudo tinha sido provado. Já não restavam dúvidas nem cepticismos, nem se justificavam fundamentalismos. Só e apenas, pragmatismo, matéria em que os «boys», são exímios. Na altura em que o conheci em profundidade, e com ele trabalhei, o engenheiro Ramalheira tinha já uma auréola inegável, provinda do 18


reconhecimento unânime dos seus pares, sendo universalmente considerado como dos mais capazes e brilhantes, um engenheiro de sólida formação, de sagaz capacidade para conceber e dar forma ao sonho, «modelando» a arte contida no projecto. Ao (engenheiro) teórico viria juntar-se uma acrescida experiência prática, provinda de uma actividade como empreiteiro - a que, laboriosa e empenhadamente se dedicou - tendo sido o construtor de algumas das maiores e mais simbólicas obras da engenharia portuguesa, da altura. Vindo de Gand, quando chegado a Portugal, o País vivia uma mudança profunda na filosofia arquitectural ; a partir de meados dos anos vinte surgiria a técnica do betão armado, introduzido, ainda que tardiamente, para dar resposta ao ciclo modernista que se começava a perfilar no urbanismo das cidades, consequência das possibilidades estruturais e plásticas que a sua utilização permitia. Os Arquitectos introduziram esta nova técnica no início do Séc.XX, associando para tal desígnio aos seus gabinetes, a figura do engenheiro, compreendendo a necessidade da sua colaboração com a finalidade de criar espaços amplos com as coberturas de grandes vãos, a edificação dos terraços que caracterizaram os volumes cúbicos puros, que a modernidade urbana exigia, à época. Aluno do Prof. Magnel - uma autoridade Europeia na matéria, um investigador da ciência aplicada à engenharia Civil, cujas teorias correram mundo e permitiram abrir novos e importantíssimos horizontes para as aparecidas técnicas do betão armado e do préesforçado, aplicadas na construção em geral, Ângelo Ramalheira trouxe os conhecimentos e a vontade de inovar em Portugal apressando-se a aplicá-los, cremos que de um modo pioneiro - ou pelo menos acompanhando os primeiros passos então ensaiados em Portugal - num dos edifícios mais emblemáticos da capital, naquele que é, ainda hoje, a sede do jornal «O Diário de Noticias», na Av. da Liberdade. 19


Não lhe foi difícil captar a atenção dos mais reputados arquitectos da época, entre os quais se salientaria - como não poderia deixar de ser - o «seu amigo» arquitecto Pardal Monteiro, que desde logo lhe entregará, para cálculo, grandes obras encomendadas ao seu gabinete. E a concretização de notáveis e arrojados projectos começa a tomar forma : - Os Hospitais, o de Oncologia e o Escolar do Porto (S. João); os Hotéis, Atlântico (Cascais) e Ritz (Lisboa); os Teatros, Cinearte e o Monumental (Lisboa) e o Cine-Avenida em Aveiro, são de entre outros, marcos salientes que referem a mudança intentada no panorama arquitectónico, em meados do Séc. XX. As potencialidades do betão armado passariam a ser exploradas e aprofundadas, quer para construir edifícios em altura, quer aplicando-as em grande escala : a cereja que «se irá apor no cimo do bolo», surgirá com o notável trabalho da construção do Pavilhão de Desportos do Porto, de que foi o empreiteiro e responsável pela concretização (hoje Pavilhão Rosa Mota calculado pelo engº António Augusto Santo que encontrou em Ângelo Ramalheira um apoio que permitiu ultrapassar, com êxito, alguns dos momentos mais críticos de tão arrojado projecto). A obra, reconhecida como uma das mais revolucionárias levada a concretização na época, mereceu inusitada exposição nos meios técnicos e da comunicação social, pois foi palco, na sua inauguração, do Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins, onde éramos então, reis e senhores. De imediato, Ângelo Ramalheira distinguiu-se pelo arrojo (singular) das soluções, e pela segurança e mestria da sua concretização, proporcionando aos grandes Arquitectos do tempo inovarem nos projectos. Impressionou desde logo, o excepcional sentido prático das suas propostas, com especial relevo para o emprego de novas técnicas até então desconhecidas - ou pouco utilizadas - e que permitiram resolver, quase que por simples golpe de mágica do seu 20


lápis, dificuldades que pareciam insuperáveis. Soluções que, se era verdade estarem contidas na súmula dos notáveis conhecimentos adquiridos na Escola de Magnel, exprimiam já, muito de uma personalidade preocupada com a descoberta de novos caminhos através de uma síntese criativa, própria e personalizada, na fase que antecede a formulação do cálculo. Por definição «engenheiro» não é um simples aplicador de ciência exacta ; mas um recriador de ciência apreendida, interiorizando-a, experimentando-a, ensaiando-a em novos patamares de dificuldade e dimensão, afim de dar resposta a novas questões, no desbravar dos caminhos do saber. Perspicaz no engendrar de soluções expeditas, persistente na procura de novas virtualidades, arrojado em ir até limites impensáveis, só permitidos e aceitáveis a técnicos de gabarito incomum, assim o foi o engenheiro Ramalheira. Demonstrando de um modo categórico que o saber é uma das muitas ferramentas sem dúvida a mais importante - ao dispor, para dar corpo ao acto de sobrelevar a mediania e atingir outros níveis de satisfação pessoal, numa exegese de permanente desafio. No caminhar imparável do conhecimento cientifico, na ciência, o que ontem era mero objecto de estudo, passa a ser, hoje, conhecimento familiar. Mas isso não obsta a que esse conhecimento não se mostre incentivador de posteriores investigações e de novas descobertas. Ângelo Ramalheira consolidou na Escola novos conhecimentos ; munido desse saber «anterior», desbravou novos caminhos, partindo para novas descobertas, fruto de uma irrequieta natureza, simultaneamente exploratória e perspicaz, excepcionalmente criativa. Ângelo Ramalheira privilegiará um permanente e continuado contacto com o estrangeiro, atento a toda a evolução de uma técnica 21


que não parou de se desenvolver, absorvendo-a à medida que foi colhendo experiência, apostando e arquivando novos ensinamentos, sedimentando novos procedimentos, que lhe permitiram, como é das regras, descortinar novas perspectivas. Ávido de novos conhecimentos, actualizou-se em permanente esforço, não hesitando, quando interiorizadas novas técnicas, as aplicar em novos desafios, num afã vanguardista, muito pessoal e sempre presente numa atitude de pioneirismo que lhe era peculiar. E assim, a determinado passo da sua carreira, julgou reunidas as condições de evoluir e descobrir as virtualidades da aplicação do novo sistema de pré-esforçado, que vai utilizar pela primeira vez na Península, numa estrutura da Companhia Portuguesa de Siderurgia, em Leça do Balio e que, mais tarde, utilizará em profusão, no complexo Fabril de Cacia, acima referido. E que vai ter uma importância relevante nos trabalhos de construção dos Silos da “Portugal e Colónias”, onde emprega de um modo totalmente pioneiro, em Portugal, a técnica dos moldes deslizantes, numa execução e dimensão marcadas por extremas dificuldades que lhe exigiram superior, atenta e constante direcção, e inquieta assistência. As suas obras entraram então - e por mérito próprio - no domínio das visitas obrigatórias patrocinadas pela Ordem dos Engenheiros, que integravam, por sistema e com rara assiduidade, técnicos nacionais mas e também estrangeiros, a quem o arrojo das soluções impressionava e despertava, curiosa atenção. Porque - sublinhavam os colegas de então - nelas havia sempre algo de diferente, de inovador e de arrojado, para apreciar e interiorizar. Que dito de uma maneira mais pragmática ,significava ,tão só ,aprender. Em 1950, o Governo, a convite da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) solicita-lhe que represente o País no centenário da Associação dos Engenheiros Civis dos EUA. 22


Ficou célebre o edifício do cinema Monumental, onde os balcões suspensos executados em concreto armado, numa obra que foi por largos tempos um referencial da engenharia civil portuguesa, depois de descofrados, indiciarem oscilações sensíveis, o que colocou alguns temores aos donos da obra, que preocupados, chamaram o engenheiro. Este chegou bem disposto e exuberante, sorridente e brincalhão - como era seu hábito - o que causaria estranheza nos circunstantes por quem teria perpassado, certamente, algum pensamento próximo de uma putativa irresponsabilidade do calculista. Ficaram contudo pasmados quando ouviram : o acabar com a «tremeliqueira» sucede quando puserem as cadeiras em cima da placa. E menos tremerá, com quanto mais gente se lhe puser em cima. E no dia da inauguração, todos, espantados, verificaram como era correcto o augúrio do risonho, mas não menos, seguro e convicto, engenheiro. Se contudo alguém for induzido em erro e levado a pensar que esta personalidade cheia de saber, um técnico reputado e requestado, era um ser afastado, e/ou, distante, equivoca-se. Bem ao contrário, era um ser profundamente acessível, aplainando dificuldades, franqueando as portas do (seu) saber de um modo escancarado, (sempre) predisposto a reparti-lo com quem desejasse aprender ; em permanente abertura a sugestões (desde que lúcidas e idóneas), liberto de todo e qualquer pedantismo ou alarde de superioridade. Ele era dos que, tendo a certeza que não sabia tudo, sabia, contudo, que sabia coisas novas que importava transmitir ; isso lhe conferia uma postura de plena abertura à divulgação da cultura técnica que possuía. «O saber» era para ele, um bem em si mesmo, um instrumento para pesquisar «o novo» em prática admirável, compulsiva e persistente. Por vezes simples actor - no cálculo outras, actor e realizador - edificador - resolvendo o paradigma de não falhar em cada uma das diferentes posturas (encarnações) técnicas avocadas. 23


Seja o que for que o pensamento cientifico descubra, isso só terá interesse, se partilhado, desmontado e servido, em linguagem a mais comum e acessível. Ora, Ângelo Ramalheira tinha o dom - raro ! de explicar o difícil de um modo que parecia muito fácil, propondose partilhar as experiências sugeridas ou provocadas, sendo muito generoso para com os outros, de modo a que pudessem usufruir o seu apreciado saber. Retenho dele um facto notável, que muito me marcou vida fora na minha actividade profissional. Como acima refiro o engenheiro Ramalheira tinha a seu cargo todo projecto de construção civil da nova fábrica da Celulose. No projecto existiam diversas estruturas metálicas, «coisa» relativamente simples, mas que, naturalmente, lhe roubava tempo precioso para outras coisas, mais arredias ao vulgo. E um dia, fez-me um desafio : - Oh João tu é que te podias «entreter» com estes cálculos. . -Nem me importava - retorqui - só que em Engenharia Mecânica nada demos de cálculo estrutural metálico. ZERO!. Pareceu espantado. Eu também ainda hoje não percebo tal ausência nos programas de então - e suponho que de hoje, ainda. Em Coimbra, aquando da passagem pela regência da Cadeira de Projecto, tentei inverter este facto, consciente da lacuna. -Não te preocupes, atirou-me. Eu trago-te os livros da Universidade de Gand. Tu estudas, e eu ajudo. A proposta foi irrecusável. Trouxe-me os calhamaços que ainda hoje, guardo religiosamente, e que eu - é certo - ávido aviei, célere ; 24


porque o desejo de saber coisas novas obcecava-me. E obceca-me, felizmente, hoje ainda. Passado pouco tempo meteu-me «a primeira estrutura nas mãos» para espanto daquela gente toda. A minha bonita aventura tinha começado aí, e a esse «puxão» devo muito da consideração que sempre me foi demonstrada - talvez imerecida, talvez!... - por todos os que ali trabalharam comigo. Mas que eu fiz por merecer, digase… Ora um dia, quando assistia «à carga» de uma dessas estruturas, por mim calculadas, e já algo bem complicada - pelo menos para mim, pobre aprendiz! - ansioso, com as pernas a tremer e o estômago esmagado, a olhá-la nos minutos que antecedem o momento decisivo para procurar descortinar -in extremis - algo de errado, o engenheiro Ramalheira, ao meu lado, cara séria sem ponta do sorriso habitual, dispara secamente : -Oh! João isto parece-me um pouco fraco demais. Eu nem sei como não caí fulminado, esmagado por tamanho «puxão de orelhas», em que acreditei, pia e santo mártir, duvidando já do meu estro para a matéria . O engº Ramalheira deve ter reparado na minha cara por onde perpassaria, certamente, sofrimento atroz em agonia infinda. Porque logo desata em altas gargalhadas: - Oh pá! estou a brincar ! tu usaste foi um coeficiente de «cagaço», que dava para aguentar com um comboio. E tinha sido verdade ! O «CCE» - coeficiente de cagaço do engenheiro - diminui na razão inversa do saber e prática adquiridos, e na altura, eu não tinha um nem outra ; mas tinha vontade de aprender. E ele percebeu-o, instintivamente.

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Aproveitou o momento de descontracção para, em jeito brincalhão que lhe era inerente e em que era prodigioso, no modo e no mote, e pródigo na intenção - me dar dois princípios, dois axiomas liminares que, bem se pode dizer, contêm toda a grande «verdade» de um projecto. «Verdade» que guardei, repeti - e ensinei assiduamente - vida fora : 1º - Pau em pé e mulher deitada, aguentam muita carga 2º - O que está bem à vista, está bem ao cálculo, e vice-versa. Irrefutáveis verdades de técnico experiente. Contendo tamanha verdade e acuidade ,que vida fora fui constatando –e retendo - à medida que a experiência aumentava, e me conduzia com um simples olhar em presença da obra erguida, a ter a percepção nítida da virtualidade e validade do cálculo matemático. Adquirida confiança (mínima, certamente) no neófito colega (?!), aguçou-me o apetite e captou o interesse desafiando-me para mais, sempre mais, difícil ; sempre que tinha obra do género entre mãos, trazia-ma e punha-me a calculá-la. Depois, permitia-me comparar o meu cálculo com o dele ; e quando desapontado se queixava do meu C.C.E., logo atirava : deixa que ele vai diminuindo à medida da confiança que fores adquirindo. Ora, comparar os resultados, gerou-me um grau de confiança, doutro modo impossível de interiorizar. Assim se passou com o enorme armazém do Poço de Bispo com vão de 65 metros, onde utilizou o seu notável «truque da pata de galinha», verdadeiro «ovo de Colombo». Simplesmente, patético. Eu com os cinco metros de espaçamento como mandavam os livros ; ele com o dobro. Mas aprendi. Também aquele Armazém dos Oliveira e Irmãos (Cacia) em que participei, com uma cúpula central a absorver todo o esforço das vigas em balanço foi uma obra curiosa pelos ensinamentos que me 26


permitiu recolher, confortavelmente. Mais tarde, já sem ele, fiz por minha conta e risco, coisa parecida no Pavilhão da Feira do Março. Só que na hora de mandar largar a estrutura de montagem, no momento crucial de sentir o estalar do fecho central e ver a sua descida em dois a três centímetros antes de ficar estabilizada, já não o tinha a meu lado para me dar a confiança da primeira vez: O engenheiro, tinha-nos já deixado em 26 de Junho de 1975. Sem ele vivi, então, momentos de angústia que me levaram a compreender o que deveria ter sofrido o mestre Domingos no fecho das Capelas Imperfeitas da Batalha ; certamente qualquer coisa de semelhante… Nesse aspecto, o ter-me tornado calculador de Estruturas em Aço, caso raro em engenheiros mecânicos, tão fora da minha área habitual de especialização - motores - foi uma experiência e um desafio notáveis, só possíveis por ter tido tão enorme provocador, como notável, professor. Regressemos às premonições do Pai J.Ramalheira : - Este filho é muito humilde. Temo que isso lhe seja prejudicial, um dia, na vida, exarava preocupado, no livro dedicado à família. Ao contrário da premonição já anteriormente referida, desta vez o Pai João Ramalheira, se acertou na imputação de um padrão de «humildade» intrínseca ao carácter do filho, não teria, contudo hoje sabemo-lo - de se preocupar com tal, pois podemos supor que a exclusão da soberba em Ângelo Ramalheira lhe não terá sido prejudicial, pelo contrário, ter-lhe-à sido, até, bastante positiva. Desde logo porque essa humildade antevista por seu Pai, nada tinha de apagamento de uma personalidade, já que, bem ao contrário, vida fora, mostraria na práxis uma afirmação muito firme e determinada, um pulso forte e uma vontade exulta. Ângelo Ramalheira assim o 27


foi : - nos êxitos e nas agruras. Que as teve também, por acaso do destino. Não se adulou e muito menos se idolatrou. Ao invés, mostrou-se sempre, tal e qual como era, sujeitando-se, continuamente e até ao fim, a plebiscito exigente, apresentando ao mesmo um cardápio por onde perpassam obras notáveis que foi, dia a dia, concretizando. E se foi um homem do rigor cientifico, foi também um ser solidário, sempre predisposto a dar um pouco de si quando lhe era solicitado. De tal modo que os que dele se aproximaram, ao principio receosos da dimensão da figura a quem batiam à porta, sempre ficaram deslumbrados pela total e fácil adesão do engenheiro, ao que lhe pediam. E saíram vergados a uma bonomia cativante que, pressurosa e disponível, sempre e só, soube dizer… Sim ! Durante os anos de intensa vivência em que enriqueci o meu saber técnico - e humano - pois dele recolhi singular demonstração de inequívoca amizade e afecto, foi para mim gratificante a facilidade com que o engenheiro entrou na roda dos meus amigos (de uma geração longe da sua…), abrindo-se a um contacto que, mais do que aceitar, desejava, e procurava amiúde. Visita obrigatória, semanal, da casa de meus pais, rapidamente entrou em contacto com o meu grupo de amigos que tinha - por bom hábito - habituais e assíduas presenças em volta de mesa onde pontificavam gulosas vitualhas. E o engº Ramalheira era, como já referido, um profundo e palatoso amante da boa mesa, um «garfo» notável, que degustava com intenso e reafirmado prazer as pitosas guloseimas que lhe propúnhamos. Acompanhava-nos galhardamente. E fazia gosto em retribuir. Quando vinha a Ílhavo pernoitava na sua casa, ali no Largo da Srª do Pranto, onde tinha no sótão um acolhedor estúdio; era para aí que nos convidava - a todos sem distinção- para nos oferecer iguarias que o afirmavam um excelente mestre culinário. Recebia-nos com estampada satisfação, com (enorme) gosto que 28


lhe brotava da alma em gestos exuberantes, acompanhados por sonoras e garridas gargalhadas quando contava algumas das muitas e variadas aventuras da sua fase – que nem por ser já longínqua lhe embotava a saudade - de afirmação galã. Foi num desses jantares, e observando o seu à vontade, que o falecido João Carlos Loureiro, amigo sempre presente, lhe solicitou os bons ofícios de engenheiro para o projecto dos Bombeiros da Vista-Alegre, no que teve abertura imediata. Era ver o João Carlos a resumir as dificuldades que iam surgindo, e o engenheiro de uma penada, entre dois espargos e um bife de elaborada confecção, despachar em esboços e números exactos, as fases seguintes da obra. Do mesmo modo o Chico Meneses lhe trouxe a Comissão Fabriqueira. E daí surgiu a obra de remodelação da velhinha Matriz, que com a sua preciosa ajuda e engenho, adquiriu novo fôlego para outros tantos séculos de serviço espiritual. Mas muito antes, muitos anos antes destes episódios, já o Engenheiro se tinha revelado um «ílhavo», que apesar da ausência, mantinha ternurenta paixão pelo seu berço Natal. Eu conto o que talvez pouco saibam. Ìlhavo, então já tocado profundamente pelo entusiasmo da prática do basquetebol, não tinha uma instalação decente para a sua prática, socorrendo-se para a mesma de um campo pelado, mal amanhado, resguardado por tabique de tabuado, sito no local onde hoje está o Jardim Infantil. Ora, dada a circunstância de o Engº Ramalheira estar, então, envolvido nas obras do Palácio de Justiça de Aveiro, uma delegação de Ílhavo encabeçada pela Câmara Municipal da presidência do Prof. Corujo, dele se abeirou para lhe pedir apoio para o sonho da construção de um estádio. O engenheiro respondeu imediatamente, e com entusiasmo, ao desafio. E o projecto iniciouse e viria a concretizar-se sob a égide da Câmara Municipal, mas 29


decididamente pelo empenhamento do Engenheiro Ramalheira que para o mesmo facultou graciosamente muito material, permitindo a sua concretização. Inclusive, naturalmente, assumindo o projecto de estabilidade e a resolução de problemas relacionados com a implantação do mesmo, na baixeira do rio da Vila. Talvez não seja hoje e aqui - a hora certa para dizer que, se o estádio existe, isso se deve ao Engº Ângelo Ramalheira, em grande parte. Nunca, do facto e do seu gesto magnânimo, o vi fazer o mínimo alarde. Nunca ! E isso define a grandeza do seu carácter, e talvez, a exactidão do prognóstico de humildade que seu Pai lhe imputava. Não era de facto sintoma ; era seiva que desde o berço já lhe corria nas veias e lhe definiria, mais tarde, a atitude. Mas na vida dos grandes homens se há momentos de grata e recompensadora lembrança, estes passam bem depressa, porque, vivido hoje um, logo outro desponta no horizonte limitando o tempo para seu usufruto. Mas não sendo a vida despida de espinhos e amargura, é certo estes perdurarem por muito mais tempo, às vezes, em alguns casos irreversivelmente. Os momentos amargos cobrem em intensidade, esbatem, ou até desmoronam, todos os grandes sucessos anteriores. A amargura, com o seu quê de imerecida, produto do desnorte da agulha do destino, é, bem ao contrário dos êxitos, vivida quase sempre em solidão. Sem compartilha ou amparo. Nos momentos fáceis parece que «todos querem estar ao lado do vitorioso» no intuito de apanharem algumas migalhas de vitualha excessiva, por isso sobrante;nos difíceis, a debandada, é geral. Dói por isso - e muito! - a «ingratidão» da vida, e a sujeição, impotente, à aleatoriedade dos seus caprichos, à subordinação do 30


humano ao poder do inconhecido, que quando desaba é ,por norma, devastador. No decurso de uma da obras das mais emblemáticas e complexas com que se defrontou - a da Barragem de Montargil, no Ribatejo - a descomunal força da natureza exaltada - incomumente exaltada feroz e incontrolável, descarregou a sua fúria sobre todo o equipamento, obra, máquinas e bens que a empresa de Ângelo Ramalheira tinha em estaleiro na construção da barragem, tudo arrastando à sua frente, destruindo num ápice tudo quanto encontrou. Num só momento, num fugaz instante, uma virtuosa (e preenchida) vida de um técnico de superior valia, foi destruída. Amalgamada. Destroçada num ápice, como que numa vingança da natureza sobre quem tinha tido, imensas vezes, o desplante de a ousar dominar. Tudo iria mudar. A ruína económica não poderia ser circunscrita, tal o desmando da brutalidade e dimensão do ataque, inexpectável, violento, inusitado, arrasador. Um verdadeiro e total estraçalhar dum mundo, que , esforçadamente construído ,ficou desfeito num só momento de zanga da natureza, Foi tempo então, para o eng. Ramalheira assumir com a mais elevada dignidade, as consequências do infausto acontecimento. E de afirmar que tudo tendo perdido e não podendo responder pela dimensão da tragédia, tal a sua grandeza, mantinha porém intacta toda a sua capacidade de criar e a de muito trabalhar, o que punha ao serviço - em sublime humildade - daqueles que directa ou indirectamente tinham sido atingidos pelo desastre. Muitos compreenderam o drama e elogiaram a inegável e nobre atitude, de quem, se destruído materialmente, mantinha incólume a vontade de dar o melhor que restava de si para minorar( a todos) os efeitos dos estragos de que tinha sido, e só, vitima, e não culpado.

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Os tempos eram então outros, e de pé, com galhardia e frontalidade, assumia-se a palavra e lavava-se a honra. Viveu daí para a frente num afã e dedicado esforço, por vezes desmedido, para produzir sempre, mais e mais. Havia que pôr de lado e ultrapassar, todos os limites aconselháveis. Era vê-lo imparável, dia prolongado nas longas madrugadas, debruçado sobre o que mais gostava de fazer : criar, calcular, riscar, hiperbolizar sugestões, concretizar o sonho que outros ousavam pedir, mas agora em resgate do seu bom nome. Fê-lo sem mostrar amargura exterior, ou até acidez pela vida. Creio mesmo que lhe perdoou, vivendo-a com alguma ansiedade e sempre crescido interesse. Procurou poupar aos seus o dramatismo de cenários que poderiam ter pernicioso efeito sobre a estabilidade da família, não se mostrando vencido nem convencido. Mostrando que há vida para além da amargura. Bendita humildade. Não nasceu embrulhado em garnachas que automaticamente lhe dessem acesso a uma vida fácil. Mas soube munir-se das ferramentas que lhe permitiram, vida fora, impor-se pela verdade do seu mérito - técnico e humano – em que brilhava um fulgor criativo e uma capacidade de assimilação continuada de novos conhecimentos, a que se juntava uma rara capacidade de trabalho, ofegante, rica na forma e no conteúdo. Vicissitudes da acção empresarial, não lhe permitiram ter um fim de vida em pleno conforto material, a todos os títulos merecido. Viveu certamente momentos de amarga solidão. Porque das preocupações sempre fez questão de arredar a família, vivendo-as sozinho, raramente com amigos íntimos, procurando dar-lhes solução material, entregando-se para isso a uma actividade profissional 32


febril, por vezes até violenta, no conteúdo e dimensão, no intuito de nada faltar aos seus. E mesmo em momentos de confidência, mostrava sobre tais imponderáveis uma enorme coragem e, até, um fino humor na sua análise, como que aceitando displicente, que os génios não estão imunes à falta de sorte. Porque permanentemente sobre o fio das navalha, lhes é provável, fortuito escorregamento. Despido por completo de fogachos de soberba, avesso a toda e qualquer exibição desnecessária – e/ou estulta - de vaidade, o engº Ramalheira foi um catedrático sem toga, porque ela seria pequena de mais, para cobrir o saber ; e até sem capelo - trocado pelo democrático e mais comum feltro - pois difícil seria encontrar um que se acomodasse, no jeito e na forma, a tão irrequieta como brilhante «cabeça». E se «usou» borla, essa, só no significado literal da palavra na grandeza humana com que se abriu incondicionalmente a todo o semelhante que dele esperava - e teve solidariedade. Senos da Fonseca Janeiro / 2007

Ficha Técnica : Titulo: Autor: Nº de Exemplares:

Ângelo Ramalheira «O Rigor Científico numa Personalidade de Eleição» Senos da Fonseca 300

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Nºde Edição: Ano: Depósito Legal:

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1ª Edição 2007 257662/07


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