Ilhava p brochura

Page 1

A «ílhava»

Sob o ponto de vista histórico, a «ílhava» – também apelidada de «ilho» – foi a embarcação que serviu ao pescador de Ílhavo para satisfazer uma irrequietude sôfrega. A de dar resposta a um desassossego permanente, numa ânsia de aventura em procura de locais onde pudesse fainar no mar, já que a laguna – a circunstância destas gentes diferentes – a partir de certa altura já pouco lhe poderia proporcionar. Como já referido, a partir de meados do Séc.XVIII 1, a contaminação das águas advinda da deficiente comunicação da laguna com o mar impedindo a sua renovação, trouxe como consequência, não só o desaparecimento da fauna piscícola, como a interrupção da produção salina. Que eram até ali – conjuntamente com o bacalhau – as maiores fontes de onde provinha o sustento das gentes de uma região que teimava em afirmar-se no panorama económico-social do país. Num curto período subverteram-se e ensombraram-se todas as promessas que o período áureo do Séc. XV (e princípio do Séc. XVI) parecia conter em que a prosperidade alcançada excedeu todo o sonho que ao princípio era lícito esperar de um panorama geográfico à partida tão inóspito e desinteressante. Perante a situação generalizada de penúria que se fez sentir em meados de setecentos, a que acrescia o espectro da morte provindo das pestilências que o inquinamento das águas2 provocava3, e se teria abatido com brutalidade inusitada sobre as populações indefesas, foi tempo de migrar em procura de desafios mais recompensadores ainda que mais arriscados. Num primeiro impulso saltaram da laguna com a «ílhava» abandonando

1 Rocha e Cunha, ant.cit. define mesmo a data de 1750 para o início da grande crise. 2 Luís Cipriano (pai de José Estêvão) escreveria (…) remover a estagnação que entretendo a humidade e fornecendo eflúvios deletérios na origem da insalubridade (…) fez morrer um considerável número de humanos. 3 Nas «Memórias Sobre a Vila de Aveiro», em 1687 já se lia: esta villa padece o achaque das maleitas que na quadra da primavera e o Outono, fazem adoecer muita gente e em alguns anos morrem muitas pessoas, o que é atribuído às águas encharcadas (…) que produzem exalações nocivas.


Fig. 49 – Os «bateirões» na borda do mar.

a pesca interior e ou a apanha do moliço, e trouxeram-na para a borda do mar, varandoa no areal que estava ali (mais) à mão – em S. Jacinto – , perto da Srª das Areias. Nessa primeira investida meteram-lhe a bordo a arte do chinchorro4, já então conhecida e praticada nas águas interiores. Tratava-se de uma técnica piscatória de cerco e arrasto que vinha de longe no tempo, e mostrara ser uma das mais aptas para a apanha generalizada das espécies lagunares. Mas cedo se constatou que o chinchorro na borda do mar não tinha dimensão que permitisse fazer o lanço lá mais para fora, nos longes, em águas onde o mar parecia coalhado de uma espécie – a sardinha5 – que se viria a tornar um dos principais elementos da dieta alimentar das camadas economicamente mais débeis do país. São conhecidas desde 1600 notícias6 de que, pelo menos os ovarinos, já pescavam na borda do mar alando o chinchorro atado à cinta, sendo referenciadas companhas rudimentares constituídas por mais de 200 pescadores para esse desígnio. Desde logo esta faina na beira-mar se deparou com um problema que foi, necessário e urgente, resolver. A utilização de bateiras (muito embora de dimensão apreciável) levantava toda uma série de limitações que o incremento deste tipo de pesca, na beiramar, vinha pôr a nu: – as embarcações usadas não reuniam as condições ideais (segurança e capacidade) para um desempenho eficaz. Com elas, o dar o lanço, só poderia ser praticado quando o mar estivesse sossegado7, aquietado, mansarrão, o que restringia a intensidade da faina. A quantidade de peixe recolhido com estas artes reduzidas estava longe das potencialidades que se anteviam perante os cardumes que povoavam o mar.

4 Chinchorro – ver Lopes, Ana Maria, in «O vocabulário Marítimo Português», ed.Coimbra, 1975, p. 217. 5 No séc. XIV o clima da Europa sentiu uma mudança radical.Se os terrenos cultiváveis se reduziram a um terço pela impractabilidade de os trabalhar, no mar verificaram-se migrações das espécies em procura de águas mais quentes.Terá sido esse esfriamento das águas dos mares do norte que conduziriam a sardinha até latitudes tão baixas, no caso o litoral atlântico português, séculos depois (XV/XVI). 6 Desde o Séc. XVII que se fala das companhas de chinchorros na zona de S.Jacinto/Espinho – Pe. Aires de Amorim, in «Da Arte de Xávega de Espinho a Ovar», ed. C.M.O. 1999, p.21. 7 Sousa, João Leite, vigário de Ovar, em 30 de Abril de 1758 dá-nos conta dessa dificuldade.


Na costa de S. Jacinto, datam de 17558, as referências às primeiras «companhas» ali fixadas9. Tudo leva a supor que teriam utilizado, já então, um outro tipo de embarcação, entretanto criado e aqui desenvolvido – o «Meia-Lua» –, embarcação com uma forma singular que abordaremos adiante (Cap. 6). Perante estas indiciações, e não havendo prova documental que o prove em absoluto, somos levados a concluir que a utilização da «ílhava» com o chinchorro10 – uma arte menor – teria sido certamente anterior à data atrás referida11, em que se teria consumado o aparecimento do, por muitos designado – em nosso entender não rigorosamente – barco da xávega. Depressa teriam os pescadores da borda concluído que o «bateirão de mar» não respondia eficazmente às exigências de uma pesca intensiva. Este tipo de embarcação só se poderia fazer ao mar em condições muito especiais, quando não se verificasse quebra (pancada) da vaga, significativa, de modo a permitir lançar as redes nas águas, entre a rebentação e o mar12. Redes varredouras13 que seriam de reduzida dimensão para pesca, à borda, num tempo em que só o trabalho braçal era utilizado para sua recolha. Antecipando em muito, o momento em que se passou a usar a tracção animal – o que viria a acontecer na Companha de Manuel Firmino, na Costa de S. Jacinto, em 188714. Mas se ali, na borda, os atributos das bateiras não eram os ideais, cedo se descortinou que com uma derivação inspirada nas suas linhas, embora reduzindo-lhe as suas dimensões, o Douro15 oferecia, sazonalmente, as safras do sável e da lampreia. E aí, as bateiras lagunares tinham as características certas para cabal desempenho do pretendido. Era apenas «coisa» de mudar para lá as mesmas, levando tralhas e fatico, suficientes, para a safra. Deslocaram-nas desde logo para a Afurada 16 onde se fixavam durante as épocas de pesca, aí constituindo colónias de dimensão assinalável, profusamente referenciadas ao longo dos séculos XVIII e XIX. 8 Ver Cap.6 – O «Barco do Mar». 9 Ver Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant.cit., p. 242. 10 Ver Memórias Paroquiais de Paramos, 1758, citadas por Sá, Pe. Manuel, in «Monografia de Paramos», p. 123. 11 Pinho, D. João Frederico Teixeira de, in «Memórias e Datas para a História da Vila de Ovar», refere que no ano de 1600 já os pescadores andavam constituindo como agora em companhas, com os seus capelães, com a diferença de pescarem com as artes pequenas a que se chamavam chinchorros. 12 A palavra mar tinha aqui um significado de águas depois da rebentação. 13 Artes que percorriam com o saco o fundo arenoso, puxadas para terra, pelos càlões das mangas. 14 A companha de Manuel Firmino resultou da fusão das companhas a Enxada e a Canária, que teriam ficado em S. Jacinto (ver Fonseca, Senos da, in «Costa-Nova-do-Prado – 200 de História e Tradição», 2009). 15 Rezende, Pe. João Vieira, in «Monografia da Gafanha», 2ª ed., 1944, p. 195. 16 Em 1725 e 1759 pescavam sáveis e lampreias, no rio Douro e sua foz, 262 indivíduos. Amorim, Inês, in «Aveiro e Sua Provedoria, no Séc. XVIII».


Fig. 50 – «ílhavas» e «chincorros»17 na Afurada.

Teria sido dessa sua fixação na referida zona, e da sua utilização na captura do sável, que adviria a confusão de, muitas vezes, a «ílhava» ter sido identificada com a designação de «Saveiro»18, hábito que mais tarde se estendeu a outras embarcações, como foi o caso do «Saveiro»19 ( «Meia-Lua»), da Caparica, que pescava na borda do mar. Tomando outros rumos, desta vez para sul, para mais longe, os ílhavos da laguna levaram a sua bateira, instrumento precioso de trabalho, para a beira da embocadura do Tejo20 onde assentaram arraiais, muitas das vezes acompanhados pelas famílias que assim

17 «Chinchorro» foi, também, a designação dada a uma das bateiras lagunares, com comprimento que atinge os 9 m, que por utilizarem essa arte, dela tomaram o nome. 18 Saveiro foi designação generalizada dada às embarcações de bicas curvas, e fundo plano. 19 Lopes, Ana Maria, in «Vocabulário Marítimo Português», Coimbra, 1975, p. 148. 20 Ver Cap.7 – O «Varino».


Fig. 51 – Gentes da laguna na faina em Peniche (inícios Séc. XX)21.

participaram, elas também, nessa aventura migratória a que já se designou como a diáspora dos «ílhavos», e que nós julgamos mais correcto designar por diáspora das gentes da Laguna. Chegados logo se dispersaram pelas praias ribeirinhas onde vieram a constituir singulares colónias, deixando um referencial no cardápio das actividades piscatória centradas naquele rio, capítulo importante com direito a página própria no historial das actividades Tejo, tamanha foi a sua dimensão identitária e tão significativa se veio a mostrar a sua influência sobre os restantes comparsas. Ali chegados, embarcaram na «ílhava» a rede da tarrafa22. Tratava-se de uma arte de pesca utilizada por uma parelha de embarcações que varria, à superfície, o cardume da sardinha, recolhida para uma delas. Com a referida arte conseguiam-se assinaláveis e copiosas capturas, tornando possível o acesso da sardinha a todos os bolsos, mesmo das populações de menores recursos. E dada a boa resposta da espécie ao suporte da salga, suportando períodos longos de conservação, a sardinha viria a tornar-se hábito alimentar por excelência, da dieta alimentar das camadas populares, chegando ao interior do país para onde era conduzida pelos mercantis23, num historial preenchido por uma infindável série de malhadinhas, tep-tep com os seus burricos por caminhos excomungados, roçando os pedregulhos, cruzando riachos atrevidos, em recovagem nocturna para que de manhã, ao canto da cotovia, mesmo antes do sol se alevantar para correr com o negrume da noite, a bela e gorda sardinha da nossa costa se apresentasse às gentes da serrania augadas da iguaria.

Fig. 52 – «ílhavas» na tarrafa24.

Os «ílhavos» chegados a Belém e ou a Paço d’Arcos, cedo se estenderam pelos espraiados que iam até Cascais. E saltando para a outra banda, fixaram-se na Trafaria. Em todos estes locais edificaram agregados piscatórios (colónias) de apreciável dimensão, muito característicos nos usos e costumes, trancados à aculturação com o 21 Fotografia extraída do livro de Rocha Peixoto. 22 Tarrafa – ver Branco, D. Manuel de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», Lisboa, 1981. 23 Mercantis eram negociantes de peixe que o enviavam para o interior do País, utilizando para o efeito o serviço dos almocreves. 24 Branco, D. Manuel de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», Lisboa, 1981.


exterior. Esta singular preservação de usos, trajes, falas e costumes, foi característica e especificidade mantidas pelo longo período de quase dois séculos, em que varinos25 daqui saídos e seus descendentes26, permaneceram por aquelas bandas.

. Fig. 53 – ílhavos no Tejo.

4-1 Chegada ao Tejo Em 1770 os ílhavos já tinham construído uma «capela» na Costa da Caparica, edificada como habitualmente, em tábuas e colmo27. Sendo referida a chegada dos mestres Joaquim Pedro e José Rapaz, os demiurgos do povoamento daquela praia. Facto reconhecido pela Câmara de Almada que viria a atribuir a duas ruas da localidade os seus nomes. Em 1870 haveria já 307 famílias ali instaladas, a grande maioria idas da Laguna. No processo movido pela Inquisição, a Filinto Elísio, iniciado em 1778, pode ler-se ser este notável poeta28 filho de um casal de pescadores29, ido de Ílhavo. Daqui se pode concluir, sem margens para qualquer dúvida, que em meados do século XVIII já essas gentes se tinham fixado por aquelas bandas. Esta referência documental, se outras não houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho – a «ílhava» – num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga. Mas certo é que existem muitas outras referências. 25 Varino era a identificação pela qual se conheciam as gentes idas da Laguna, de singular vivência mesmo quando deslocadas, perfeitamente distinguíveis, na fala e no trajo.Ver Cap.9 – O «Varino». 26 Uma característica destas gentes era a enorme prole que geravam: um a mamar e outro já no ventre. 27 Arcos, Conde dos, in «Caparica Através dos Séculos», 1972. 28 Filinto Elísio (Pe. Francisco Manuel do Nascimento) foi um notável poeta – um dos maiores poetas do Séc. XVII na opinião da Alexandre Sanè, um verdadeiro renovador da língua portuguesa – que teve de se exilar em Paris perseguido pela Inquisição, depois da «Viradeira» – queda do Marquês de Pombal –. 29 Filinto era filho de Manuel Simões, fragateiro real e da pescadeira Maria Manuel, naturais de Ílhavo.


Por exemplo, Baldaque da Silva30 no seu livro «Estado Actual das Pescas em Portugal» escrito em 1891, salientava que no século passado – portanto Séc. XVIII – a emigração de gentes da Laguna de Aveiro para Lisboa, era já consistente. Do terramoto de 1755 são referidos trabalharem nessa data, em Lisboa, 200 pescadores da laguna, sendo certo de que haveria notícias de que nenhum teria morrido no infausto acontecimento. Uma «guerra» entre varinos e pescadores de Alverca e Alhandra, em 1819, teria merecido do rei D. João VI a ordenança para apreensão, aos prevaricadores, das suas redes, quando aqueles entrassem na barra do Tejo 31. De 1833 pode consultarse o registo de, no Tejo, se encontrarem a pescar no saveiro «Rio Tejo», na referida data, os ílhavos Francisco Bichão e Joaquim Fernandes Matias32. Em 1855 escrevia-se33 que muitos ilhavenses, murtoseiros e vareiros, tinham tido uma safra abundante em Lisboa e, por isso, se anunciava que no referido ano vêm para Ílhavo, Murtosa e Ovar, muitos contos de réis. Por estas e outras razões (inseridas com mais prolixidade no Cap. 7 – O «Varino»34), poderemos fixar os meados do referido Séc. XVIII como data provável para a chegada dos ílhavos ao Tejo. A partir daí verificar-se-ia um notável crescimento das colónias então constituídas, que se reforçaram durante o Séc. XIX, por lá se mantendo (em número assinalável) até à primeira/segunda década do Séc. XX. Altura em que o desafio da pesca nos mares do Norte, de novo, os veio inquietar, lançando-lhes irrecusável repto, altieiro. Para uma significativa parte dos migrantes a ida para Lisboa era sazonal. Deslocavamse na devida altura, no Outono, depois de terminada a safra na beira-mar, chamados pelos contratantes, os mercantis. Eram estes que adiantavam a soldada e lhes facilitavam telhado e sustento. Apresentavam-se em data combinada em Lisboa, para isso seguindo a pé pela beira-mar, que era o caminho mais curto, mas e também, o mais seguro. A temporada terminava depois do Entrudo. Dependendo do resultado da pesca, o que sobrava depois de reembolsado o abonador das despesas, era dividido em quinhões. O arrais era o responsável, e, por isso, quando a sorte era arredia, por lá ficavam de penhor a embarcação e as artes. Muitos pescadores optavam, então, por restar por aquelas bandas – principalmente se a safra não tivesse sido farta – embarcando noutras companhas. Uns aproveitavam a safra do sável; outros empregavam-se no tráfego marítimo local. E assim foram surgindo as colónias de ílhavos, gente endurenta, de trabalho e sacrifício, afoutada, em que a rudeza dos gestos e palavras contrastava com a agilidade felina dos corpos fluidos. Filhos da onda, gentes de energia sem limites, obstinados no olhar desafiador às profundezas do mar que os parecia endrominar num chamamento patético em batidela continuada à aldraba da porta descaída do seu palheirito de abrigo, sortilégio inquietado. 30 Silva, A. Baldaque da, in «Estado Actual das Pescas em Portugal», editado em 1892. 31 Amorim, Pe. Aires, ant. cit., p. 94. 32 Arquivo Geral da Marinha exemplar nº 718 citado por Aires Amorim. 33 Amorim, Pe.Aires, ant.cit. 34 Ver Capítulo 7 – O «Varino».


Fig. 54 – Palheiros típicos da gente da borda.

Em alguns casos levavam consigo a família, entregando às mulheres a escolha e venda do peixe capturado. Uma vez sedimentados na beirada ribeirinha, constituíam grupos muito avessos a influências, misturas, e ou a hábitos, e costumes, estranhos. Estes agregados, verdadeiras colónias de deslocados, faziam alarde de uma cultura específica, peculiar e muito singular, muito diferente da dos grupos circundantes acolhedores, com os quais, verdadeiramente se não integravam, de todo. Muitos dos seus filhos, já nascidos pelas freguesias ribeirinhas lisboetas, foram registados na freguesia de Stª. Maria de Belém. E em outras (Vila Franca, Oeiras, etc.), pela impraticabilidade de virem à terra mãe fazê-lo, pois era tradição, cumprida por muitos daqueles migrantes, virem apenas a Ílhavo, uma vez por ano, precisamente por altura da festa erecta ao orago S. Pedro (no mês de Junho de cada ano), padroeiro do pescador da borda, «olheiro» que os seguiu litoral abaixo. Que era o primeiro símbolo a assinalar a chegada destas gentes, pois mal arribados logo se apressavam a erguer-lhe altar para o colocar aonde compareciam, diariamente, ainda o sol não despertara, para recolhida veneração. Eram «templos» muito toscos e simples, barraquitos escorreitos de tabuado encostado por cujas frinchas entrava e assobiava o vento, quando indisposto, tão só resguardo bastante para acolher o orago – que se queria recolhido mas não alheado dos temporais que se faziam sentir no exterior. A sua dimensão importava pouco já que a fé daquelas gentes manifestava-se mais no mar aberto, olhos e preces postos no céu – que entre paredes de desobriga35. Certo é não se ficaram por perto da barra do rio, pois logo nele se embrenharam, subindo-o à procura de novos pousios, locais adequados para a safra do sável, espécie piscícola muito apreciada que por isso justificava empenho no emprego de novas artes. Porque embora pescado também na borda do mar, era de melhor qualidade quando capturado no interior dos rios, na época da desova. Assim, há notícia de colónias fixadas lá para os lados da ribeira da Azambuja, pescando nos baixios postos a descoberto pelas marés. E indo mais a montante atingiriam Vila Franca de Xira em 1825, tendo por ali deixado marcas indisfarçáveis (nos costumes e nos registos) da sua presença. De que é exemplo a Rua dos Varinos. Mas e também no legado de técnicas da construção de embarcações fluviais, facilmente identificáveis nas formas das ainda hoje usadas pelos 35 Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», p. 295.


derradeiros avieiros36, últimos «borda d’água» que ainda espalham as suas artes de pesca pelos canais do Tejo, na região de Vila Franca.

Fig. 55 – Avieiro.

Em 1880 Baldaque da Silva37 afirmava (já) a presença de 30 «ílhavas» a pescar na embocadura do Tejo, embarcando 450 tripulantes, representando colónias de mais 2.000 habitantes. Número significativo, se tivermos em conta a densidade demográfica (activa) da sua região de origem.

4-2 A «ílhava», embarcação do Séc. XVII/XVIII ao Séc. XX Não existe nenhum exemplar da «ílhava» que tenha resistido ao tempo. Nem existem registos que permitam, com total segurança, fazer a sua reconstituição. De uma maneira mais ou menos correcta, ultimamente, têm sido feitos esforços, que justificam referência e registo38. No modelo, por nós assumido, baseámo-nos no seguinte material informativo: 1- Documentos fotográficos (fig.53 e fig.56), escolhidos entre vários, como aqueles que melhor mostram a embarcação de perfil.

36 Gentes da praia de Vieira de Leiria que no início do Séc. XX se fixaram no rio Tejo.

37 Silva, A. Baldaque da, in «Estado Actual das Pescas em Portugal», 1892, p. 132. 38 Existe um modelo «Saveiro» no Museu da Marinha, que visa reproduzir a «ílhava». O Cap. Marques da Silva produziu um modelo para a Diáspora dos «íhavos», de muito interesse e fidedignidade. O autor tinha, também, construído um modelo (fig.63). As diferenças maiores entre estas versões foram comentadas em http://terralampada.blogspot.com/ do dia 12.08.2007.


Fig. 56 – «ílhavas» varadas em Cascais.

É este, em nossa opinião, o documento de onde melhor se podem retirar os pormenores que ajudam a definir, com algum rigor, as suas formas geométricas. Pelo menos, de um modo muito aproximado. 2- Outras informações – talvez as mais elucidativas 39 – sobre este tipo de barco podem ser recolhidas em Manuel de Castello Branco 40 que fala das embarcações que todos os anos vinham daquelas paragens – da região de Aveiro – fazer temporadas de Pesca nas águas de Cascais.

Fig. 57 – Ílhavos no Tejo.

Verificamos – sem margem para dúvida, se ainda a tivéssemos – que a embarcação é idêntica às das fotografias anteriormente reproduzidas. Esta embarcação era movimentada:

39 De meu pai recebi toda uma quantidade de informação sobre o hábito de meu avô alugar uma «ílhava» para ir com a família ao S. Paio. A sua descrição sobre o tipo de barco foi perfeita, elucidativa. 40 Branco, D. M. de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», pp. 41 e 42, Lisboa.


Fig. 58 – Disposição da tripulação na «ílhava».

– Ora por dois remos a que davam braço seis homens, em cada um: três remadores de pé, ao punho, virados para vante a jeito de empurrar; e três, também à proa, virados para ré a alarem pelo cambão (cabo que para o efeito anda amarrado ao punho do remo). – Ora através de uma vela de pendão41, amurada no mastro ou à borda42. Esta vela de pendão teria sido, admitimos, a precursora da vela de amurar à proa com bolinão, utilizada já em fins de oitocentos, pelos «Moliceiros»43.

Fig. 59 – «ílhava» navegando à vela e a remos.

41 Este tipo de vela quadrada vinha de tempos remotos e teria sido usada, provavelmente nas embarcações chinesas. Tratava-se de uma vela que veio substituir os remos, envergada por meio de envergues de uma só volta, numa verga cruzada horizontalmente, de bombordo a estibordo, com as escotas presas à amura e a adriça (que a levantava) à bancada. 42 As velas de pendão amuravam ora à proa; ao mastro; ou à borda, de acordo com os ventos dominantes. 43 A vela do «Moliceiro» foi desenvolvida tendo por missão permitir excelentes condições de bolina, em ventos fortes.


A «ílhava» era tripulada pelos já referidos remeiros (12), embarcando mais três homens (e o arrais) para a rede, num total de quinze/dezasseis, tripulantes.

Fig. 60 – «ílhava» a remos 44.

Fig. 61 – «ílhava» navegando à vela na Ria de Aveiro45.

Fig. 62 – «ílhava» preparando-se para a faina46.

Em 1890 uma bateira deste tipo custaria 20$000 réis. Em Ílhavo o preço indicado, em 1864, para uma bateira de mar era de 15$000 réis. 44 Note-se o remo ao «cambão» e a disposição da tripulação, no total de quinze. 45 Nota-se a evolução da vela, que nesta embarcação amura (já) à proa, e calca ao pé do mastro. 46 Notar o aumento do pontal por intermédio de uma falca (fixa).


Destas informações, elaborámos a reprodução à escala desta embarcação de largo historial, para uma eventual recuperação museológica. Toda negra embreada a pez negro, ela foi o instrumento dDestas informações tentámos a reprodução à escala ,para uma eventual recuperação museológica desta embarcação histórica certamente a mais históricaa diáspora dos os ílhavoslhavos fora de portas, na grande safra no Tejo.grande faina Tomámos como base as dimensões principais, que Castello Branco nos indica:

Comprimento

---------------

13,75m

Boca

---------------

2,50m

Pontal

---------------

0,60m

Remos

----------------

2

Cor

----------------

Preta

4-3 Sugestões recolhidas do modelo

Fig. 63 – Modelo «ílhava» à escala 1/27.

A visualização material do modelo à escala, da bateira, dá-nos um manancial de sugestões. Pensamos ser interessante, sobre as mesmas, exercer algumas reflexões: 1- A embarcação induz desde logo a ideia de ter estado na base de inspiração da criação do «Moliceiro» (Cap. 5). 2- A confirmar esta ideia existem diversas referências de, a «ílhava», ter sido, não só utilizada nas actividades da pesca, mas também, vulgarmente (muito) utilizada, na recolha de moliços na laguna47. Não lhe faltam características fundamentais para o bom desempenho de tal tarefa: cala muito pouca água 47 Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».


(cerca de 20/30 cm), tem o bordo baixo, e é dotada de vela auxiliar, fundamental para ajudar no arrasto das ervagens lagunares. 3- A sua borda baixa (pontal 0,60 m) poderia, nessa actividade, ser ainda mais baixa, pois a falca fixa, exibida no modelo, apropriada para a pesca no mar, poderia ser falsa em certas utilizações específicas (por exemplo na apanha de moliço). Na «ílhava», a vela era apenas utilizada para as popas (ventos pela ré). Na utilização da apanha do moliço (Séc. XVII/XVIII) feita em locais próximos da margem, ao arrolado, na borda (e não ainda para os grandes transportes, norte-sul, na laguna), era perfeitamente satisfatória a vela de pendão ao mastro ou à borda. Na arte da tarrafa, tal vela era apenas um auxiliar para chegar, ou regressar, ao local de pesca. A «ílhava» usava seis remadores ao remo: três ao punho e três ao cambão. Isso exigiria uma posição de remar muito típica que mais tarde foi utilizada nos «Meia-luas», da xávega. Por isso o seu interior teria que ter uma lógica funcional especial, dada a dimensão da boca, incluindo para isso as estribeiras para posicionamento (fincamento) dos remadores de pé. O velame de pendão, servia, como já referimos, apenas para as popas. Era por isso baixo o seu mastro (2,5 – 3 vezes, a boca); a verga (também conhecida por invergue) era muito longa (3,5 vezes a boca). Prendia à amura de barlavento aquando da popada cheia, oferecendo a maior superfície possível à acção do vento. O encosto da verga ao mastro (pela troça48) era feito a 1/3 do extremo anterior daquele, o que permitiria uma armação (quase) como se tratasse dum pano redondo. Sem valuma, bolinão ou esteira49 – para afinação – mas com rizos50, a vela incipiente da «ílhava» foi – tudo o indica – a clara inspiradora da vela do «Moliceiro». Neste, havendo necessidade de uma performance vélica já evoluída de modo a permitir a adaptação da embarcação às bolinas cerradas, foram sendo introduzidos novos aspectos de ajustes permanentes da vela às amuras de navegação. Necessidade que se veio impor pela intensa procura do moliço na região dos lagos das gafanhas, pródiga nos herbáceos lagunares e cuja apanha obrigaria a longos percursos. A borda da «ílhava» era certamente suficientemente forte para fixar o cabo ao calão da arte, quando utilizada na tarrafa. Teria por isso, certamente, draga interior de reforço à borda, embora não constituindo, ainda, borda de correr. A «ílhava» foi usada como bateira do mar, tendo trabalhado na sua pancada, antecedendo nesse labor o «Barco do Mar» das artes grandes. Para isso, a «ílhava», tinha de ser forte de estrutura, com pontal superior ao actual «Moliceiro». Neste, a especificidade da sua missão obrigou a limitar a altura do bordo tendo em vista reduzir o esforço no acto de levantamento do ancinho carregado, a fim de o meter dentro da embarcação. Na «ílhava» o problema era diferente. Nesta embarcação existiria, pois, uma borda falsa51 fixa, sobreposta sobre o bordo, aumentando-lhe o pontal. Poderia, em alguns casos, ser sobre esta colocada uma falca móvel. 48 Ver Cap. 5 – O «Moliceiro». 49 Ver Cap. 5 – O «Moliceiro». 50 Ver Cap. 5 – O «Moliceiro». 51 Falca é uma tábua, menos espessa, móvel ou fixa, destinada a permitir uma melhor defesa à vaga.


A vela da «ílhava» não teria calcadeira. Ou pelo menos um verdadeiro calcador, pois que o ponto de amura, na esteira, a vante, seria móvel. O bolinão, pouco necessário já que não se bolinava no sentido exacto do termo era muito empírico e fixado muito a meio da testa52 da vela, servindo quase que exclusivamente para a puxar para vante. Os remos com cerca de 10 m de comprimento, tinham a particularidade de ser do tipo cágado: – a pá era direita, aposta e pregada sobre a vara (de eucalipto) que terminava no punho. Podiam ser accionados53 pelo punho, ou pelo cambão. Existia um outro cabo – a soca – ligada (para ré) à estribeira mais próxima, com o fim de evitar que o remo fosse impelido para vante, demasiada e inesperadamente (por efeito de uma vaga) e fosse bater no peito do remador sentado. Como referimos anteriormente, a «ílhava» utilizava já as estribeiras para que os remadores de pé (de frente para a proa) fincarem os pés. Na borda da embarcação existiam uns cabeços, nas amuras a ré, destinados a passar laçada dos cabos de alar a rede da tarrafa. O leme era de xarolo. A sua forma exacta – se acompanhava a curva da popa, ou abria na porta mergulhando mais para atrás – é difícil de conjecturar. Pois que sendo só utilizado nas navegações à popa, a sua acção era muito menos decisiva para o governo da embarcação. E por isso seria muito mais reduzido que o depois utilizado no «Moliceiro». A estrutura resistente da embarcação era constituída por cavernas e braços de cavernas. O castelo de proa era de pequenas dimensões, bem diferente do que iria aparecer no «Moliceiro» que servia para dormitório da tripulação. Na «ílhava», a parte da proa coberta tinha apenas a utilidade para recolha de roupas e outros acessórios, não para pernoita. Claramente, a «ílhava» era uma verdadeira bateira de mar. De dimensão muito apreciável (13,75 m) e bordo relativamente elevado (0,6 m)54, era substancialmente poderosa se comparada com as que mais tarde (Séc. XX) foram referidas como «bateiras interiores». Que não eram mais do que embarcações da laguna, não ultrapassando os 8 – 9 m, apenas em alguns pontos da costa deslocadas para a borda do mar (Torreira, Mira, Buarcos e Cova) para aí serem utilizadas como «robaleiras». As designações dos componentes estruturais da «ílhava» não diferem das utilizadas no «Moliceiro», e têm uma forte componente de influência normanda 55: mastro, leme, bordo, carlinga, ostague, escota, rise, içar, bolina, etc.

52 A testa é a face trapezoidal da frente da vela. 53 Nestas bateiras de mar, o tipo de accionamento dos remos, foi um precursor do mais tarde utilizado no «Meia-Lua». 54Esta questão do pontal relativamente alto foi resolvida com a concepção do «Moliceiro», em que a actividade de levantamento e da recolha dos ancinhos era mais intensa, obrigando a uma diminuição do pontal para 0,45 m. 55Cortesão, Jaime, in «Descobrimentos Portugueses», Vol. I, p. 182, ed. Imprensa Casa Moeda – Lisboa.


Dado o «Moliceiro» ser, em nossa opinião, uma evolução da «ílhava», optámos por no capítulo dedicado àquele (Cap. 5), nele indicar com mais pormenor a funcionalidade dos referidos componentes. A designação de «Saveiro» (do salaveiro, árabe), adveio, como acima dito, da utilização de uma embarcação similar, mas de menor dimensão, na safra daquela espécie piscícola, no Douro, Tejo e Sado. Uma outra embarcação muito semelhante à «ílhava» – usando uma falca alta, postiça – foi a «Esguicha»56.

Fig. 64 – «Esguicha» no areal.

4-4 Planos Geométricos (2D)57 Das considerações anteriores, resultou o plano geométrico de formas, que se pode visualizar, na escala 1/30, do anexo.

56 A «Esguicha» tem na Barrinha de Mira umas réplicas muito semelhantes, mas de menor dimensão. Variando entre os 4 e os 6,5 m. 57 Ver DVD anexo.



4-5 Planos GeomĂŠtricos (3D)58

58Ver DVD anexo.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.