LAGUNA:
PATRIMÓNIO MUNDIAL?
10 razões justificativas
Senos da Fonseca AGOSTO 2013
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Por uma Laguna Património Mundial da Humanidade
Por esse País fora, imitando o que de há muito já se vinha fazendo na Europa, urgem apressados os mais diversificados movimentos cívicos, desencantando valores em «coisa» que nem sempre os possuem (ou sequer merecem), outras vezes – ainda bem! – acertando na justeza valorativa, expondo criteriosamente as razões que sustentam a propositura de um determinado património (material ou imaterial) a Património Propriedade da Humanidade. Um bem irrepetível que urge defender e preservar para memória futura. 2
Tenho participado, umas vezes crente, outras vezes absolutamente descrente, em movimentos deste teor, porque nebulosos os contornos pouco criteriosos afirmados para o fim em vista. Outras vezes considerando ciclópica, inatingível em curto tempo, a tarefa que bem me parece não se compadecer com a pressa, já que, muito diferenciados e dispersos por diversas e variadas disciplinas, bem demoraria, anos e anos, de trabalho especializado para uma análise e justificação assertivas.
Nestas andanças, foi-se arreigando em mim a convicção de que o merecimento da proposta de Elevação da Laguna de Aveiro (e todo o património que lhe é adjacente, material e imaterial) a Património Mundial da Unesco, é um desiderato de absoluta e indiscutível (na minha modesta perspectiva) lucidez. Para além disso premente. Não vou aqui dissertar loas sobre o assunto. Já em outros locais, ou por outros motivos, expressei a convicção de que não seria difícil, de todo, tal tarefa. Certo que o historial lagunar é imenso, e dispersa-se sobre várias áreas. Sendo por isso certo, que a fazer-se, a Candidatura necessitará de uma equipa plurifacetada, integrando vários especialistas, cada um tratando na sua área de especialização os elementos existentes, recolhidos ou a recolher, para a finalidade em vista. Esclarecer o que há a recuperar, quem e como, para avançar com um mínimo de propositura.
Desde logo e sem grandes preocupações de análise intensiva, descortinamos de imediato 10 razões que justificam que a Laguna seja considerada Património Universal:
1- A Laguna foi (e é) um fenómeno natural raro, praticamente único. E de tal modo prodigioso que desde o início captou a atenção do Homem (atraindo-o). Propondo -Lhe um árduo desafio de 3
aproveitamento das imensas potencialidades que desde cedo mostrou conter. O programa de classificação visa catalogar e preservar locais de excepcional importância cultural ou natural, como património comum da humanidade.
A especificidade, a raridade, e a improvável repetição, permitem cumprir, admitimos, os requisitos específicos para a candidatura. Em 23 de Setembro começarão as reuniões visando a protecção preservação e classificação de vários deltas: Veneza, Amsterdão, Camboja etc. Do mesmo modo a zona terminal do rio Loire, está em plena fase de consagração de Património Mundial.
2- A Laguna foi um prodígio de desafios para novas actividades atraindo populações vindas de áreas geográficas muito diferenciadas (norte além Douro, Gândaras, Beira interior, etc.) e que com culturas muito diversas se alaparam em seu redor. Rapidamente essas gentes, ao princípio diferenciadas, unidas na luta do adoçar do meio, foram ganhando um estatuto identificativo comum. Produziu-se durante um determinado ciclo temporal uma profunda mutação cultural. A paisagem, aqui, fez o Homem. E o Homem foi-se a ela com 4
ganas, determinação e teimosia, enfeitando-a com o vidraço dos tabuleiros alvos, defrontando-a, para isso criando os meios mais inventivos para a domesticar. E ainda teve tempo de a pentear catandolhe os moliços com que criou o mais enverdecido rincão pátrio. O Homem lagunar ganhou estatuto próprio, identificador, que mais tarde transportou para outras regiões do País, naquela que foi a maior migração interna do País.
3- A Laguna foi ventre fértil, proporcionando desde logo uma época (séc. XV) de dourada da riqueza (regional e nacional) de exportação salícola. E ligada a essa actividade da Laguna partiram as primeiras embarcações europeias à Terra Nova, para a pesca do bacalhau. O Know-How, nesse tempo primordial, da construção naval, foi desde o alvor da nacionalidade desenvolvido na sua beirada, criando e aperfeiçoando embarcações de alto bordo, que estiveram na génese dos Descobrimentos pátrios. Todo um historial desta saga, que vai desde a instalação dos Estaleiros de S. João, passando pelos estaleiros que no Séc. XIX e XX, se instalaram em Ílhavo, na Calle da Vila, Murtosa e outros, necessita de estudo aprofundado.
4- Na história de dar «novos mundos ao mundo», não só estiveram presentes os navegantes lagunares, mas ainda esteve – e foi primordial – a embarcação que nos estaleiros daquela, foi tomando forma, e aperfeiçoando para a aventura definitiva: a «caravela» que antes de ser a embarcação das descobertas já era a «caravela pescareza», e tinha uma das suas bases de desenvolvimento em Aveiro.
5- Como atrás referido, a Laguna conteve no seu ventre o húmus que permitiu ao lavrador da beirada, transformar num jeito de prestidigitação, areias enlameadas que brotavam das águas nos mais belos e verdejantes campos de fecunda fertilidade. E para se deixar pentear no gadanhar contínuo da recolha da riqueza existente no seu 5
ventre, a Laguna foi palco privilegiado de surgimento nas suas águas de uma série das mais belas e prodigiosas embarcações, nadas e criadas na sua beira, sem recurso a comparações e ou cópias (ou até inspiração) vindas de um outro lado qualquer, pois aqui cada passo tinha a marca de criação para um determinado fim.
Resposta do homem na incessante labuta contra a natureza. As «Embarcações Lagunares» o seu historial, materialização, mas e também o património imaterial que lhe estão subadjacentes, são únicos, e só por si merecedores de passarem a Património Mundial – se recuperados! – a necessitar de evidente preservação para memória futura .
6- A Laguna, «formação geográfica instável», atravessou momentos de portentosa fecundidade, mais parecendo uma dádiva do 6
criador apostado em reeditar um novo paraíso. Mas como o anterior, o paraíso pareceu, também ele, por momentos, ser fértil em descrédito de bondade do dito. Fruto amargo. Mas tal não fez soçobrar, nem sequer dobrar a vontade, «dos que sempre acreditaram» e aqui lançaram ferro, destinados a colher o bom, mas e também a superar o amargo. E se as coisas se toldaram, ei-los, artes às costas, levando as suas alfaias – «bateiras» – litoral «abaixo», na maior migração interna da história deste País.
Gentes de traços físicos peculiares, princípios e culturas singulares, não se deixaram soçobrar: bem pelo contrário o seu tipo humano ganhou alforria para participar, ele só(!), sujeito de um historial de uma dimensão incomparável . O «Varino» agregou, o «ílhavo», o «murtoseiro, e o «ovarino», numa histórica e sofrida aventura, cheia de arrojo. Qual foi levar a arte de Xávega, litoral abaixo ensinando os locais a manobrar tão ensarilhada arte num mar quase sempre inquieto e pouco sossegado; e quando chegado ao Tejo pareceu querer descansar, instalando-se a descrever notáveis páginas do historial daquele rio. Dando até origem a «historial humano de referência», o «avieiro» do Tejo, fruto da gentiaga lagunar que fizeram das suas «labregas» a casa com que se alaparam nas margens: a montante de Vila Franca até ás imediações de Santarém.
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7- Para viver a Laguna e nela desempenhar tão diferentes artes não poderiam estas gentes deixar de serem criativos no trajo. E embora obedecendo a um fio condutor, expressou-se aquele de tantas e tão variadas maneiras – e singularidade! – que a sua riqueza, provinda da veste do ovarino do norte lagunar, até ao «gandarês» do sul, é, em todas as expressões e tipos, de uma riqueza inusitada. Prodigiosa: por vezes no espavento (traje rico festivaleiro), como simples no trajo útil de labuta diária. Existe no trajo lagunar todo um historial cultura singular único, onde se retrata a subadjacente imaterialidade que lhe está ligada e que urge recuperar.
8- A cultura lagunar moldou diferentes tipos humanos, vindos de diversas partes para aqui se fixarem, ainda antes da fundação, numa mistura que suplantou, credos, religiões, e até raças. Pouco a pouco, com naturalidade, com o rodar dos anos, estas gentes começaram a copiar tiques, opções de vida, reacções comuns aos desafios, adaptando-se e criando um linguajar próprio, sui-generis no termo e na expressão fonética. Esse falar foi levado na aventura «varina» para outros locais. Por vezes imitado, mas nunca completamente absorvido. Urge, assim, recuperar esta preciosidade imaterial. Identificá-la, fixá-la, tratá-la foneticamente (a individualidade neste aspecto é para nós de uma riqueza soberana). Recuperá-la para memória futura. Para um enriquecimento nosso, por melhor percebermos o linguajar que foi preciso inventar para designar novas realidades que foram surgindo.
9- A Laguna é um depósito onde co existem habitats naturais, importantes e representativos, para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo aqueles que abrigam espécies ameaçadas que possuem um valor universal excepcional, do ponto de vista da ciência ou da conservação.
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Mas a Laguna tem enterrado no seu ventre um património histórico de que só uma pequena parte é hoje conhecido.Esse património, que não pode deixar de ser contemporâneo com as primeiras grandes viagens marítimas, urge ser avaliado. E só o poderá ser se forem definidos por uma instituição supra nacional a universalidade do mesmo, sem pertença de ninguém.
10- Mas bastaria um ponto com que encerro estas notas para justificar todos os esforços de preservação e que só uma classificação supra nacional será capaz de obviar: a laguna é um fenómeno natural, que esteve já por diversas vezes em risco de extinção. É uma paisagem natural de espanto para o olhar.
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E hoje corre aceleradamente para a morte às mãos dos interesses que se perfilam para lhe dar o golpe final. Façamos pois algo que tente evitar essa morte anunciada. Salvando-a, salvamos a nossa história de gentiaga diferente.
Imagens gentilmente cedidas por Rosa Maria Vital
SF. Julho 2013
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