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POR FAVOR: SENTEM-SE… E OUÇAM
O «Ti Labareda» fez parte do meu imaginário de garoto. É, pois, chegada a hora de o trazer à boca de cena. Só que de repente, lembrei-me: E se o fizesse perpassar por um filme em que o guião falasse dos dizeres da nossa terra, juntando-lhe personagens (ficcionadas ou verdadeiras), aproveitando o ensejo para contar um pouco daqueles tempos, em que a barca da passagem para a Costa Nova era intervalo às agruras da vida, um momento único de galrear na galhofa, de um modo descontraído?
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E nele recordar a «Bruxa», ponto de começo ou fim de jorna suada, mas sempre local acolhedor na figura da velhinha, a « ti Norta»? E se no «guião» incluísse a Joana «Maluca», a matriarca deste povoado que mais tarde se tornou a Gafanha da Encarnação, bonita urbe à beira ria prantada, e lhe pintasse uns tiques que a relevaram no seu tempo, como uma mulher diferente, e, por isso, alcunhada de «Maluca»? Claro que para toda esta «aventura», teria de lá meter uns olhos de morrer. E ressalvar numa só figurante, a «filha» extremosa, a irmã carinhosa, sublimes na ternura e carinho pelos seus – afinal ! - Todos os que o destino, com particular incidência, o mar - esse cão! - tinha feito recair sob seu encargo. Uma igual a tantas outras – mulheres d’Ílhavo! - símbolo de sacrifício, denodo e perseverança, mulher de trabalho, à volta da qual cirandava todo o agregado familiar, girando em torno dos seus desejos, das suas aspirações e da sua indomável vontade. «Mulher» que chegada a altura, sabia (ainda!), ser melhor do que todas na arte de amar. Inigualáveis mulheres de então, de quem guardo memórias inesquecíveis que me acompanharam vida fora.
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Conheci muitas «Marias da Anunciação». Como não as conhecer, se elas povoavam os becos da minha terra por onde me fiz menino, e por onde, tantas vezes, me encontrei, mais tarde, a atirar-lhes dardos de um cupido apaixonado? Quereis que vos conte o «filme» a que corresponde o propósito, aqui anunciado? Aos vossos lugares. Era uma vez … SENOS DA FONSECA 2007
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O «LABAREDA»
Maria da Anunciação, a «Pederneira», estugou o passo para tentar fugir àquela «zanga» da natureza. Chovia copiosamente. Parecia que no céu se tinham partido todas as bilhas, despejando cá para baixo o conteúdo, guardado, havia meses. Ainda por cima, a sulada enrolava-se nos bagos da chuva, transformando-os em cordas a fustigarem a pobre Maria, que um atraso tinha feito perder a companhia das colegas pescadeiras1, na viaje2 para a Costa Nova.
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Mulheres da beira- mar Viagem
Dobra que dobra, passo de gaivina estugado afugentando alguns cães que saltavam ao caminho, únicos colegas de jorna que indiferentes ao temporal procuravam sobejo que lhes matasse a fome, a Maria afoitara-se, maneando as ancas num passo lépido e balanceado, com o que pretendeu recuperar o atraso. O tempo prenunciara a trasmontana; mas prenúncio não é certeza, e a necessidade de prover às bocas dos irmãozitos que lá tinham ficado em casa, levou-a a meter-se ao caminho, apesar do desaforo entrevisto. No Juncal Ancho o vento açoitava já as águas, que encaracolavam e levantavam farfalho, na proa das vagalhóças3. Os enfezados pinheiros que logo adiante bordejavam o carreiro, pareciam guardar dentro de si todo o rumor vivente. O céu estava mais tapado que gabão varino, de abotoadura de cima a baixo, e de capuz alto. O «cão» do vento rodopiava esfrangalhando as bichaneiras4, atirando a ramagem sobre os passantes, com o que lhes embaraçava as
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Pequenas vagas, fortes e intensas Flores das acácias,muito vulgares nos caminhos das Gafanhas
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passadas. Não se ouvia pio de avezita grazina, e muito menos, choro de pato alapado, incomodado pelo bufar do vento. - Raios partam o ladrão do tempo – esconjurado5! - que me empata a vida - ia dizendo de si para si, a Maria, encharcada até aos ossos, engaranhida6 pelo frio. Com uma mão lá ia segurando o canastro, enquanto que com a outra se afadigava no desbravar das contas da reza, invocando a Senhora dos Aflitos e a protectora, a Santa Bárbara, para a livrarem dos raios medonhos que riscavam em zigue zagues o céu chumbeiro, logo seguidos do ribombar assustador da trovoada que parecia capaz de esfanicar7, tud’òmenos8, o que tivesse forma ou expressão material na natureza.
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Amaldiçoado Tolhida 7 Fazer em bocadinhos 8 Tudo 6
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Certo é que Maria não se preocupava demasiado com o estramboto9 do temporal, que a rapariga não se enleava 10 com tão pouca coisa. Preocupava-a, isso sim, ter deixado para trás o irmãozito mais novo, que uma tosse mais parecendo esgana dos bofes, atacara. Tinha-o levado à botica do «ti Manuel Cunha», para que este lhe desse um xarope melaço e um cáustico, capazes de afadigar o malzinho11, ao garoto. Antes de se pôr a caminho, a Maria agasalhou o Luisito que ficou bem aconchegado, e tratou, ainda, de deixar um «caldito de conduto» na lareira, e a traganeira12 de milho, com que os restantes irmãos, e a mãe, a Efigénea, a «Pederneira», pudessem aconchegar o encostado13 do estômago. 9
Extravagância Atrapalhava 11 Maleita 12 Pedaço de broa 13 Vazio 10
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Tudo isto fora a causa de faltar à hora combinada, para, em grupo – o que sempre era mais prazenteiro, e naquele dia, até aconselhável – demandar o caminho da Maluca. Afadigou-se, por isso, a aligeirar o passo, mas o certo é que, nem ao longe, olhar atirado lá para as funduras do caminho, divisou as colegas. E nem sequer outra alma penada se divisava por aqueles endireitos14, que naquele dia – pensava – mais pareciam os caminhos do purgatório. Ninguém com canastra de venda à cabeça, ou burricos carregados, ajoujados de lenha, sal ou outra mercancia, acartadas para a vila, se avistava. Ninguém se afoitara ao caminho com aquela trabuzana15 medonha, que parecia imprópria para seres vivos. A Maria da Anunciação não era mulher de desistir. Era uma mulher de còrage16. E, mesmo só, não hesitou em atirar-se ao caminho, e atravessar aquele deserto de areias maninhas, onde aqui e ali se distinguiam tufos raquíticos de vergônteas enfezadas, 14
Paragens Temporal 16 Coragem 15
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castras gafadas17, povoadas por vezes (já) por uns enfezados milheirais. Os tinhosos pinheiros com que se pensava fixar as areias, e desse modo proteger os aluviões, que se acreditava poderiam vir a ser a terra prometida, separavam os prados arenosos para onde o esfalfado colono cachiava18 carradas de pilados e outro escasso, e muito moliço, com que ousava esfalfadamente cumprir o desígnio de «agarrar um povo», àquele deserto nascido do mar. Quando desembocou no prado da Maluca, terra já verdenta, e avistou ao longe a torre da Capela da Srª da Encarnação. Maria «Pederneira» pensou com os seus botões que não levaria mais de meia hora para que o sol descesse ao nível do mar. Tempo suficiente que lhe seria necessário para chegar ao cais da passage19. Parecia-lhe ter ouvido o longínquo ressoar do búzio20que assinalava a partida da carreira, o que sendo 17
Tifosas Acarretava 19 Passagem para a outra banda ; carreira da barca 20 O sopro do búzio era o sinal de chamada para a largada da barca 18
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improvável, dada a distância a que se encontrava, inté21 podia acontecer com o escarampêto22 do tempo. Já não tinha ideias de apanhar a última barca. Com este temporal desfeito, era até provável que não houvesse carreira. Se calhar, nem o Tóino «Murtoseiro», o mais atrevido e esturto23 barqueiro da carreira do Ti Ambrósio, se astreveria 24a tal escaramuça. Por pensar no Tóino …, acudiu à Maria, um sorriso maroto: A passage25 para a outra banda servia para raparigas e rapazes daquele tempo descontraírem do fardo que é a vida, e se entreterem ao jogo do beliscão, ousio que para os tempos era a antecâmara de outros atrevimentos, a sós.
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Até Escarampanteado 23 Teso, valente 24 Atreveria 25 Vide 19) 22
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Sola, sapato, rei rainha Foi ao mar buscar sardinha Põe o pé na pamplina O rapaz que jogo faz? Faz o jogo do capão Diz à velha do condão Que arrecade o seu pezinho Que arrecade o seu pézão
Salta a pulga da balança Os cavalos a correr As meninas a aprender Diz-me lá minha menina Qual será a mais bonita Que se há-de recolher?
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Acudiu, pois, à Maria, que o rapaz pouco falante e até parecendo um pouco macambúzio·, lhe deitava uns olhos gulosos, na altura em que o verso chegava à parte de «qual será a mais bonita?» E quem os não poria em coisa tão extravagante, tão exótica?! A Maria era de uma beleza estonteante. Ainda por cima, coisa esquisita: o corpo – notava-se mal se lhe pousava o olhar em cima – era longo e flexível, mas bem provido de enfeites. O avental cingido na cintura revelava curvas esguias mas doces, empertigadas e desafiadoras, sugerindo o alevantado26 da proa do xávega27. O porte advindo das longas caminhadas com a canastra encarrapitada na cabeça, era completado pela notória beleza de um rosto tão escuro, que só em contraluz se poderia, melhor, admirar. Nele se incrustavam uns olhos de amêndoa, cor de água verde safira, tão doces de fruir que dava gréu28 de neles repousar. Olhos de um verde aquoso, sublinhados por longas e negras pestanas, olhos 26
Erguido Barco da arte xávega (meia-lua) 28 Vontade, gozo 27
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sedutores, de um fascínio duradouro que não deixava ninguém as sossegado29, ao fixálos. Que se completavam por uns lábios carnudos, nus, secos pelo vento e pela longa caminhada feita a pé, mas sempre desafiadores, tentadores para mordiscadelas fugidias no desamoçar30 de cachopa, erguendo-a à condição de mulher. Só que a Maria jamais consentira semelhantes interlúdios. Hóme31que a mordesse teria de engolir o anzol, embuchado 32 para sempre. Sabia fugir ao rapapé, e pôr em ordem os atrevidos. Ai do caminé33 capaz de se astrigar34, e ousasse passar a fronteira da intenção: o canivete bem afiado com que Maria amanhava as enguias era capaz de pelar o mais atrevido. Pois que a Maria não era rapariga de dar cúnfia 35, ou creto, a qualquer mancatrefe 36 lancão37. 29
Indiferente ; sossegado Espevitar 31 Homem 32 Anzol engolido até ao bucho 33 Infeliz 34 Atrever 35 Confiança ; atenção 30
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Aviso mais do que sério, de que o Manuel «Charrua» - um bardáu38 lá do Urjal - já experimentara, quando astrevido39, viu os seus ímpetos não correspondidos, asfixiados pelo canivete que se encostara aos seus «baixios»40, e que, de repente, aparecera frio, afiado e decidido, nas mãos da moçoila. - Que é lá isso ?! Astão crendas41 lá ver que queras 42 ser capado… p’rá engorda… Hás-de chari-lo43 – advertiu a Maria com cara de que não hesitaria em cumprir a ameaça, caso o rapaz insistisse no desinquietamento.
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Magarefe ; biltre;patife Pulha 38 Toleirão 39 Atrevido 40 Partes baixas 41 Então crês;acreditas 42 Queres 43 Estás livre disso 37
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Era-lhe pois, habitual, sentir-se olhada. Nada que a impressionasse, nem a que ligasse grande importância, pois tinha mais que fazer e em quem pensar. A Maria «Pederneira», tinha a seu cargo a mãe prostrada na cama por uma maleita crescida44, desde que o seu hóme45 – o José Camarinha – desaparecera lá para os mares de Inglaterra, no naufrágio do «Social», deixando-lhe toda a catrefa46 de filhos – a Maria e mais três rapazes – a seu encargo. Pobre mulher desamparada; e não fora a contribuição da filha, com o seu admirável espírito de sacrifício e a sua desmesurada abnegação aos irmãos, o que haveria de ser daquela gente, posta perante infortúnio tão doloroso? Voltando ao Tóino «Murtoseiro». Está já dito que a Maria teria (já) notado que a criatura lhe dedicava particular atenção. Quando chegada à barca da passagem com o canastro atafulhado da sardinha prateada, o Tóino colocava-se à sua frente, quase a tocando, e com as possantes 44
Desenvolvida Vide 33) 46 Caterva ;grande quantidade 45
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mãozorras, retirava-lhe o peso da cabeça, pousando-o no quête 47 da proa. Naqueles breves instantes de proximidade, o Tóino achegava-se tanto, que a Maria sentiu, por mais de uma vez, que os seus seios quase roçavam naquele peito afiançado de rapagão marinheiro. E toda ela, naqueles momentos, sentia a perturbação de uma sudação interior, misturada com tremeliqueira48 que a percorria dos pés à cabeça. A Zefa Tarrinca, olhuda 49 e talvez desvalida, já o notara, e até já lho insinuara. E esmorcegavase50 toda por não ser ela a eleita daqueles olhares: - É chópa51… a nós o Tóino dá uma mãozinha no descarrego, por fastio; a ti, intèp’réce52 que te quer pegar ao colo… E olha que tu, tão esquisita nessas manobras de 47
Compartimento criado para depositar bacalhau e outros peixes, ou materiais Tremura 49 Interessada 50 Amofinava-se ; aborrecia-se 51 Rapariga 52 Até parece chuva batida por vento forte do sul 48
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atracação, p’réces53 não te amofinar com as lambidelas – dizia-lhe maldosa e desquitada, a Zefa, inquisilando54 com a Maria. - Catás55 tu p’rài56 a dizer, delambida57?... Que da Murtosa bom é o vento, mas mau o casamento – retorque a «Pederneira» com um sorriso ao de labaró58, onde se podia ler não querer…mas até querer. A «TI NORTA»
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Pareces Pegando ; implicando 55 Que estás tu 56 Para aí 57 Mimada 58 Ao de levezinho 54
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Truca… truca… bole que bole… enregelada e encharcada pela surriada59 que a açoitava, a Maria resolve, como tantas vezes acontecera, bater à porta da «ti Norta da Bruxa», habitual pousio dos grupos das companhas e viandantes, em cuja varanda60 da taberna escorropichavam 61 um copo de três62, último alento para a caminhada até à vila. Ela, a simpática «ti Norta», nem era lá, nada disso, de bruxedos. A rapaziada d’ ibalho – o Mano, o Sacramento, o Saguncho64 & companhia – é que vinham com as 63
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Chuva atirada com o vento Balcão 61 Bebiam até ao fim ; vazavam 62 Copo de três coroas 63 De Ílhavo 64 Alga lagunar , tomada como pseudónimo por João P.Teles com que assinava as muito interessantes crónicas, e os «postais», da Costa Nova 60
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fidalgotas 65da Costa Nova, e com o intuito de as amolecer e tornar navegáveis66, lhes diziam para tomarem da sua jeropiga, que garantiam a pés juntos, tinha bruxedo de amor67. - Era bruxedo era!... Era mas é para as chicharem68 ao colo, as boquilhas·, que p’reciam69 umas augadas70 - ia pensando a «ti Norta» enquanto enchia os copitos postos em fila, em cima do tampo. Era mas é p’rás engrominharem71, assegurava. Já noite, a barca partira. A «ti Norta» não esperava alma penada saída daquele iroso72 tempo, pelo que a simpática velhinha fechara a porta da venda. 65
Raparigas da alta sociedade ; burguesas Acessíveis aos jogos de sedução ; mais colaborantes 67 Mezinha, para curar males de sedução 68 Assentarem 69 Pareciam 70 Desejosas 71 Enrolarem com a conversa 72 Irado 66
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Que logo se apressou a escancarar, quando sentiu o chamamento da Maria. Aberta a porta, do escuro, recortou-se a «ti Norta» segurando o candeeiro a petróleo, que esparralhava73 uma luz mortiça, bruxuleante e enfezada, mas suficiente, contudo, para se ver na sua cara um sorriso acolhedor. Um andar ainda desembaraçado, embora aqui e ali uma ou outra tropeçadela com os tamancos ferrados. Cabelos de um branco intenso, prateado, aparecendo por debaixo de um lenço preto, de ramagens amareladas, amarrado em volta de um rosto redondo, tisnado pelo sol e pela salsugem, onde sobressaíam duas maçãs rosadas. Deixando aparecer duas covitas, quando sorria, prazenteira e bem disposta. Era assim a boa mulher, sempre de serviço, para os arrastados74.
73 74
Espalhava Atrasados
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- Ah! criatura que inté p’réces - amode75 - vir lá dos infernos ! Entra alma penada. C’a ta deu76(?!), p’ra vires com esta trabuzana desarcada. P’réces fugida a lobisome, c’um raio ! Aviste algum ? - Cal-se aí, «ti Norta». Astrazei-me77 por mor do meu Miguelito benza-o Deus e lhe acuda o S. Geraldo que nunca pensei que nosso Senhor me castigasse tanto, pelos pecados que vou fazendo na vida – t’a renego, mafarrico78 ! - disse a Maria enquanto se benzia três vezes. - Entra lá cachopa. Tira um púcaro de água quentinha do panelo79, e vai-ta tomar um banho. Leva este camisote de dormir e, óspois 80, vem p’ró borralho prantar-te81, 75
A modo Que te deu ; que te aconteceu 77 Atrasei-me 78 Repudio-te diabo 79 Panela de ferro, de três pés ; panela da sopa 80 Depois 81 Colocar-te ; sentar-te 76
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25 que tenho lรก
um «caldo de conduto» com que te aqueço as entranhas, e engano a fome. Vá, maneiate 82 que eu estou esgalfa 83, e vou andando c’uns jaquinzinhos84 de escabeche85, que óscreceram 86 d’onte87. Tomado o banhito na celha, a Maria atou uma corda ao camisote que lhe assentava compridote88, apressada a sentar-se no mocho, perto da lareira, onde uns cavaquitos ardiam, fagulhosos89, aquecendo a casinha90, ao mesmo tempo que distraíam
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Mexe-te ; apressa-te Cheia de fome 84 Carapaus pequeninos da costa 85 Molho de vinagrete fervido, que servia para conservar o peixe por longos dias 86 Cresceram;sobejaram 87 De ontem 88 Comprido 89 Que faziam faúlhas, quando a lenha (pinheiro) estourava 90 Local do borralho e forno, servindo de cozinha e sala 83
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o olhar. Enquanto isso, a «ti Norta» limpava com o sorrascadoiro91 a cinza do borralho, juntando-a num montinho, para ao outro dia a despejar no quintal, na horta dos alhos. Retirado da trempe e destapado o panelo de onde fluía um odor que pareceu à Maria descido das alturas, com a cônchara, a «Velhinha», boa acolhedeira92, retirou um atafulhado caldo de sustância 93. Uns feijões vermelhos serviam de lastro a um naco de toucinho entremeado94, escondido no meio de umas couves tronchudas, a que se juntavam umas rodelas de linguiça95 que conferiam ao caldo, sabor divino. Finda a vitualha - o caldo bem aviado - que teve o condão de retemperar forças, a «Norta» retirou do lume uma cafeteira enegrecida onde bolhava um café misturado com cevada. Que verteu para uma meia, para assim coar o trote, despejando-o em duas 91
Vassoura de limpar o borralho e ou o forno Acolhedora ; que recebia bem ; boa anfitriã 93 Caldo forte, rico em carnes salgadas (chouriço e toucinho) 94 Toucinho com carne em camadas 95 Enchido de carne que esteve em vinha-d’alhos, e depois posta ao fumeiro. 92
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malgas de «cavalinho»96, botando-lhes 97 lá para dentro pedaços de pão de centeio, que embebidos na mistura líquida, negra, tinham o dom de espevitar o bebericador, criando disposição para um dedo de conversa, ao caso, entre duas falastroas98, daquelas de, morrendes s’a não falendes99.
96
A louça de cavalinho da V.A., muito divulgada no Séc. XIX tinha como enfeite um cavaleiro montado, empertigando o cavalo 97 Colocando-lhes; pondo-lhes 98 Falantes 99 Faladeiras inveteradas
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- Atão nobedades100 lá da bila101? Disqu’102 «Afecta» está outra vez pranhuda103 do Padre Jordão. Raios!... de cadela aciada104… q’apréce uma simprinhas105, a beata. Sempre com o pé a puxar p’rá trízia106. E o zarampilha107 sacripanta108, invez109 de
100
Novas Vila 102 Diz que 103 Prenha ; grávida 104 Que anda com cio 105 Simplória ; sem graça 106 Brincadeira ; rapola 107 Desajeitado 108 Miserável ; bandalho 109 Em vez 101
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guardar respeito à nossa Senhora, com quem diz «casara», anda é a embarrigar 110a eito111, tudo o que tenha saiote d’alevantar112. Por falar em embarrigar ; aqui òstrasado113, a Rosa «Gueira», contou aqui na venda que o Balacó esfanicou a cancela114 à Amélia «Cachina», e iu-se115 lá p’ró sule116, sem dar òstifação117, deixando a pobrezinha esculhanvada118, p’rali119
110
Emprenhar De seguida 112 De alevantar ;de erguer facilmente 113 Há tempos 114 Sentido figurado de virgindade 115 Foi-se ; fugiu 116 Sul 117 Satisfação 118 (Esculhambada). Escangalhada 119 Para ali 111
31
inxerida120, a oivir121 as marmurações 122 - sua esta sua aquela123 - à espera de um esgalhudo124 que a queira naquele estado, fora dos conformes. - É, pois astão125 …e não foi tómorólha126 nenhuma, «ti Norta». Estava mesmo a ver-se que tal assucedia. Ele era um taralhão 127 ; p’racia128 pião a dar rapóla129 . - E por cá ? - deu de perguntar a Maria, sabe-se lá porquê. Ou já vai saber-se. Esperem, que neste mundo tudo tem explicação. 120
Triste ; deprimida ; enrolada sobre si mesma Ouvir 122 Murmúrios 123 Fraca ; mulher pouco séria 124 Cornudo ; chifrudo 125 Pois então 126 Espanto ; nova 127 Estouvado 128 Parecia 129 Movimento desordenado do pião 121
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- P’orqui130 nada òsdenovo131. O Tóino vindo lá do norte, inté p’réce que pensa ficar. Mas inda 132 não arranjou testo para a panela133. - Ora vai daí. «Testos» é o que há mais p’rài134 - diz a Maria parecendo desinteressada da novidade. - Pois é …rapariga, e às vezes as que mais desdenham são as que mais querem comprar - responde a velhota deitando um olhar malicioso e inquiridor ao sorriso bonito que tinha surgido na carinha laroca135 da Maria - para logo acrescentar : - Sabas o c’a te digo136 : o rapaz não é mancatufe137 nenhum, e inté p’réce 138que teve mãe fidalga. Poucos andam por aí da sua ogalha 139, oiviste 140?! Não é 130
Por aqui ; por cá De novo;de novidades 132 Ainda 133 Há sempre uma mulher para casar com homem 134 Para 135 Bonita e fresca 131
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despescado141 nenhum ! Bota142 olho p’ràs tainhas a fazer borlido 143, à tona d’auga, mas só p’réce que procura peixe lá do fundo, peixe branco, como virgem. E mofa c’uas chaputas144. Que não são p’ró seu tempero, como fez à Rosa «Delambida», doidinha d’astrepar145 por ele acima, como se o rapaz fosse uma enxárcia p’ra todas assuvirem146ao mastaréu. 136
Sabes o que te digo Maucatufe ; bandalho; tipo sem carácter 138 Até parece 139 Igualha 140 Tomaste nota ; ouviste 141 Teso ; pobretana 142 Põe 143 A abrir a boca à superfície 144 Tipo de peixe pouco apreciado 145 Subir ; trepar 146 Subirem 137
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Os olhos de Maria faiscaram, desprendendo um fulgor de desejo vindo lá do íntimo do seu ser, como que dizendo : «aqui estou !».
A JOANA «MALUCA»
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- Mas, cachopa : nem queiras saber. Bai 147 p’raí uma restolhada148 na quinta da Senhora Joana, «a Maluca». Aquela é que é mulher atrasfegada149. O senhor Estêvão, da cidade, tem trazido uns graúdos com ele. Dizem que dos maiores, e a Joana «Maluca» tem-lhes dado jantaradas de assobio. Uma restomenga150 de encher o galricho151. Acabada a janta, é vê-la de charuto na boca. Inté p’réce152 chaminé de lareira afanicada153. Bem lastrados, às vezes com uma boa nassada 154, os fidalgotes mais carregados que a chincha 155 do «ti Chambre - abusacam-se156 no pátio a ver o sol 147
Vai Barulho ; banzé 149 Que anda de um lado para o outro ; mexida 150 Gozo 151 Arte fixa de pesca, em funil 152 Vide 54) 153 Fraca ; a apagar-se 154 Piela 155 Bateira da pesca à chincha 148
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a esconder-se atrás dos palheiros, lá na outra banda. C’ óspois157 de uma boa carraspana, inté deve ser, ainda, mais lindo dausservar158. Ferram ali cada galhoça159 ; mulher dum raio, aquela!... De barba rija, pois então. Tem mais barba na cara, a Joana, c’a pintelhos 160 tem o macho do «Biqueirão». E o sr. José Estêvão c’à dias aqui beio antes de embarcar na carreira, com uns grandes, que dizem, ser letrados esmerados161, gentes que estão cá de férias no seu Palheiro, na praia, a banhos - já prometeu estrada p’rá cidade. - Isso é que vai ser, mulher !..., óspois inté162 podemos ir a pé à Senhora da Alegria, aquela santa milagreira - remata a «Norta». 156
Sentam-se relaxadamente Vide 81) 158 De observar 159 Fazem uma soneca 160 Cabelos em redor do sexo 161 Que se esmera 162 Depois até 157
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Toca que toca… vira para ali… rapa… põe, o tempo ia passando e o candeeiro esmorecendo por falta de pitrol163. De repente, soam pesadas pancadas na porta da casinha.
163
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Petróleo
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O TÓINO «LABAREDA»
- Quem será o pelingrino164a estas horas ?… Crendas165 ver que temos pedincheiro 166 à porta - foi dizendo a «ti Norta», enquanto pedia «ajuda» à trave da lareira, estendendo-lhe uma mão, para se erguer. E agarrando no candeeiro dirigiu-se para a porta que fez uma chinfrineira desbocada 167 a abrir-se, a correr nos gonzos.
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Peregrino Quereis 166 Pedinte 167 Muito barulhenta 165
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A Maria não via, dada a obstrução da porta, quem era o inqu’ètado168, nem este fosse quem fosse - a via a ela. Mas sentiu um estremeção quando lhe reconheceu a voz: - Boa noite «avó Norta». Vim ver se m’ avia duas coroas de mata-bicho169, p’rá viaje ? - disse o arribado170, sem contudo fazer tenção de entrar, como que indicando que está com pressas, ansioso de começar viagem. - É ! Tóino… que t’ assoçadeu171alma desinq’uètada172 ? Então porque não fizeste poisio do lado de lá, e não foste escorropichar173 uns canecos com os camaradas da companha, em vez de estares aí tão enxògalhado174 ?!
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Alma inquieta Bebida forte (aguardente) 170 Chegado 171 Sucedeu 172 Inquietada 173 Beber até às últimas gotas 174 Agitado 169
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- O tempo n’u175 me mete medo, «ti Norta», que o vento é menino p’rá minha mão. Foi uma astrevessia176 dum carago177 - lá isso foi - pá178 metida na borda, embarcando água até à draga,com a vagalhoça179 atrevida a desfazer-se contra o costado da barca, misturando-se com a água que caía do céu. Ora isso num me inquetou180, c’redite181. O que me tormenta182 é saber pela Efigénia do Arnal, que a Anunciação se
175
Não Travessia da ria 177 Dificultosa 178 Pá da borda, que evita que a embarcação arrole 179 Vaga pequena e curta, mas intensa 180 Inquietou ; afligiu 181 Dê crédito ; acredite 182 Preocupa ; atormenta 176
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atrasou e que, apesar da passada mais lenta das companheiras, ela não s’achegou 183 ao grupo. Voltei para me pôr ao caminho, não vá a rapariga ter tido mau encontro. Vossemecê sabe, «avó Norta» - só vossemecê o sabe porque é um cofre de segredos ! o que sinto pela cachopa. A Maria lá dentro corou mais que as brasas que ardiam no lume. E como as ditas, afogueada por fora e a arder por dentro. Então (?!) aquela atenção do Tóino quando a ajudava a libertar-se do carrego, não era fingida. Nem ó vida… p’rercia 184 ; aquilo era mesmo a sério. - Deixa lá a inquetação e entra, rapaz. Leva auga185 p’rá celha e veste estas manais do meu falecido, põe este camisote ós de cima186. E toca a andar a matar a fome
183
Se aproximou Longe de parecer 185 Água 186 Por cima 184
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que deves estar esgalfo187. Qu’ inda188 sobraram uns feijões e uns nacos de conduto. A Anunciação não teve um mau encontro, descansa. Ela vai ter é um bom encontro. Anda, despacha-te, rala-te189, antes que o caldo arrefeça, não sejas um arrastado190. Franqueada a porta, o Tóino dá, estupefacto, com os belos olhos da Maria. Teria atravessado o mar até aos confins do mundo, em procura daquele olhar doce e meigo, que agora, notava, tinha brilho mais esquisito, parecendo aceitar a partilha de segredos íntimos, escondidos, de repente arremessados e expostos, tocados por qualquer força vinda lá de muito fundo. - Maria ! Tu aqui …?! E eu que te julgava perdida. - Eu mesma Tóino, e descansa. Para me perder, só se fosse por uma coisa boa. E coisa boa não mereço, que a minha vida não é de andar à procura. 187
Cheio de fome Que ainda 189 Apressa-te 190 Atrasado 188
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Lesto, não desejando perder mais tempo, o Tóino «Murtoseiro» escapuliu-se, levando o caneco de água a ferver, para voltar, minutos depois, manaias vestidas e camisote cingido ao tronco. A Maria não deixou de repousar o olhar sobre tão garbosa figura. Um estadão de homem, perfeito, pensou. Naquele dia, descobrindo-lhe toda a harmonia das linhas do seu avantajado tronco, julgava, mesmo, não ser possível existir, outro qualquer, que ombreasse com ele. - Ele amercia191 uma boa mulher, n’ádúveda192! - pensou a Maria. Sentado ao borralho, o Tóino aceitou a malga e entrou, despachado, no manjar.
191 192
Merecia Não há dúvida
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O NAMORO DO «LABAREDA» COM A «PEDERNEIRA»
Recomposto, escorropichando193 os restos dum copito de três de tinto bairradino - mas do especial ! - daquele que a «ti Norta» guardava antes de proceder ao sacrossanto baptismo para melhor renda na venda, o Tóino - especado com a visão da Maria a quem 193
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Vide 176)
a luz desprendida da lareira tangia194 a bonita face, reflectindo-se no seu olhar - deu consigo a dizer coisas à Maria de que nunca sonhara ousar. Da sua boca - por natureza mais afeita a imprecações do que a rodriguinhos195 - borbotaram palavras doces que a Maria, sôfrega, emborcou196 fascinada, olhos pendentes naquela bela figura de rapagão, ouvidos atentos ao marulhar daquela voz, de repente virada meiga, de onde soavam coisas que lhe pareciam serem as mais lindas que ouvira. Incluindo as do pregador Frei Pachão «dos Jerónimos», em sermonário197 da Pascoela. A Ti «Norta», saber de experiência vivida, conhecedora dos afectos e desafectos, julgou chegada a hora de uma retirada estratégica para não emboitar 198 a cena.
194
Tingia Coisas bonitas 196 Bebeu sofregamente 197 Sermão 198 Estragar 195
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- Boa noite vos dê Cristo, nosso Senhor, que são horas de uma pobre velha ir fazer uma reza para se encomendar, a Deus e aos Anjos, antes de cair na enxerga para dar descanso ao cansado corpo, que já mal pode com os ossos, quanto mais com a alma, bem pesada do carrego de pecados : - nosso Senhor mos perdoe e me leve, quando tiver de ser, p’rà sua beira.199 - despediu-se a «Norta». A Maria e o Tóino ficaram, sós, lado a lado em frente do borralho, conversando, olhos nos olhos, desbravando caminho para chegar na emposta200 ao ancoradouro201 pretendido. Pareciam muito mais interessados em auscultar-se mutuamente, do que chegar depressa aos «finalmentes»202.
199
Para junto de si Demanda de novo pesqueiro 201 Local para largar a âncora 202 Ao assunto importante 200
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- Olha Maria ; se me tens afecto e me julgas merecedor, aceita esta perdição por ti, e vamos ao Prior Bernardo para dar o nó. Não, nó de correr203, mas um lais 204 p’rá vida inteira, mulher dos meus olhos. - Ah Tóino, se aí achegados, eles não t’a faltavam. Credita 205meu home!... Q’antas206 de vir a ser, já o és. Mas alembra-te207 que tenho lá os irmãozitos que ainda precisam de mim. Embora o Beto já ande na chincha do Ti Carrancho. Mas é muita trouxa208, p’rá tua barca, home bô209 ! E depois dizas210 que querias afectos, mas
203
Nó de laço Nó lais de guia (que não corre) 205 Acredita ; dá crédito 206 Que antes 207 Lembra-te 208 Encargo 209 Homem bom 210 Dizes 204
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chegada a maré, eras como os outros malinos211. Ao fim duns tempos fartavas-te deles e ias p’ró mar, p’ra longe, deixando-me só, na angústia de não voltares. Ou astão212, ap’racia-te 213 uma lambisgóia214 desavergonhada, e tu mudavas de aviamento dos ditos - dizia a Maria, sagaz, no desejo de provocar uma resposta que a descansasse. - Cal-te215! raios. Fecha essa boca que me tenta, que eu não sou dos teus lá d’íbalho216, que andam sempre inquietos a olhar lá p’ró longes217do mar. Eu gosto do mar, mas do desafio à borda. Não gosto das lonjuras. Não sou home c’òguente218 com as 211
Maus Então 213 Aparecia-te 214 Rapariga insinuante desavergonhada 215 Cala-te (já) 216 Não sou dos da tua terra 217 Fim 218 Homem que suporte 212
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saudades, como os da tua Terra. Eu gosto do vento na ria a bater-me na vela, e eu a trapaçeá-lo219. Gosto de ser o senhor do meu barco, como quero ser senhor de ti, para m’atracar a ti como o atraco ao moirão220, e à noite, dormir sossegado, não aos baldões. Esses alavantados221 parecem não ter coração nem alma. Só querem ir longe, mais longe, como se o mundo não tivesse fim. Estipores222dum raio, altieiros sem ògalho223. Valentes lá isso são ! Mas um home lá por não gostar, não é cobarde nenhum. Oivistas224, chopa?!… Medo do mar ? Eu!... quinté 225 lhe escupo - remata o Tóino cuspindo p’ró lado, ao mesmo vagar que entesava226 um esgar de desprezo. 219
Fazer trapaça ; enganá-lo Estaca onde se amarra o barco 221 Inquietos 222 Estupores 223 Sem igual 224 Ouviste 225 Que até 226 Assumia 220
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- Ah rico, que me dizes coisas quinté227 me fazem astremecer228 e… enlear229. Bota que bota, juras que juras, convence que vences, e o lume quase esfalfado. Maria levantou-se do mocho para lhe dar uma volta e o atiçar. Fê-lo contudo um pouco desequilibrada, e ia a cair para cima dos cavaquitos esmorecidos, quando se sentiu sustida por fortes mãozorras que lhe pegaram, e logo a puseram de pé. No estramboto230 do movimento, o Tóino acabou por a envolver em forte abraço e puxá-la para junto de si. A outra mão, em concha, pousava sobre o túmido peito da moçoila, quase (?!) que por acaso, exercendo aconchegado e tolerado aperto. Apenas a felpa do camisote separava a mão tronchuda231 do Tóino do colo macio da Maria, separação incapaz de
227
Vide 225 Estremecer 229 Atrapalhar 230 Confusão 231 Gorda ; troncuda 228
54
tolher
os 55
sentidos, já que daquele peito ressaía ponteira afiada que parecia querer furar a mão do rapaz, como os cravos fizeram quando pregaram o Cristo na Cruz . As bocas estavam ali à borda232, «à mão» uma da outra. E colaram-se, numa atracação233que desta feita, por perturbação do arrais, não fora bem calculada, o que fez com que as amuras234 abalroassem, forte, uma contra a outra. Tempo de respirar, e oportunidade para o Tóino cravar os olhos no lençol de águas esverdeadas, límpidas até lá ao fundo, que eram os olhos da Maria, e lhe segredar : - Quero-te mais que ao vento, quero-te mais que à vida, quero-te mais do c’amim235. 232
Juntas ; chegadas Encosto 234 Lateral da embarcação (BB ou EB) 235 Que a mim próprio 233
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E não se tolheu, ao tempo236 em que isto dizia, do atrevimento de apertar suave, mas firme, a ponta aguçada do peito da Maria «Pederneira». Foi como se o vento desse a volta do cão237. A «Pederneira» batida no jeito e sítio certo, faiscara, incendiando o rastilho. Como se tamanho revirar escancarasse as portas de par em par, para por elas se escapar a natureza de uma mulher sensual, livre e solta, que endemoninhada voou ao encontro do incêndio, não para o apagar, mas para o atiçar ainda mais. A Maria envolveu o Tóino em tão grande abraço, boca com boca, olhos sôfregos de desejo incendiados, mãos esgueirando-se por entre os grossos cabelos do rapaz, alourados como pez, em tal sufoco que não lhe deixou espaço para «manobra» ponderada. 236 237
Ao mesmo tempo que; enquanto Quando o vento ronda de Norte a Sul, por Leste
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Lá fora pareceu que a ria se endemoninhou ainda mais, ciumenta da Maria, ao pressentir que esta lhe roubara o seu arrais. Todos os peixitos nela adormecidos acordaram, fugindo estremunhados, enxaguando as águas, inquietos ; as tramagueiras, nas margens, baloiçaram numa coreografia tumultuosa, desenfreada, num bailado onde escuros fantasmas batiam de encontro uns aos outros. Os caranguejos, atordoados, tropeçavam no lodo, caminhando às arrecuas, em zig-zags, no pára arranca. Parecia que S. Bartolomeu tinha chegado com antecedência, trazendo com ele o diabo à solta. Que se fora postar no travessão do borralho, sentado, de perna traçada, agarrando com numa das mãos a fisga de ir às enguias, esquecida ali a um canto da casinha, com que parecia querer espicaçar o casal de namorados. Certo é que, a estes, já nem todos os Santos, deste e do outro mundo, juntos, os faria voltar para trás na vertigem do enlace.
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E foi ali ao canto da casinha, no bardal238onde a «Norta» tinha posto uma braçada de palha e sobre ela uma manta de farrapos, que o Tóino resolveu deitar fateixa239 e pousar a Maria. A quem, força alguma do mundo se atreveria a retirar dos seus braços de moçoila pescadeira 240, o home241 que ia ser seu. Os corpos fundiram-se num estendal de sofreguidão sufocante para total e irreprimida entrega. Parecia o «meia-lua» entrando na vaga, ora empinando aos altos, ora afundando na cava da vaga, numa luta a que reçoeiro242 algum conseguiria botar243 mão. A restolhada244 era tão grande que a «ti Norta» julgando ser a mesma provocada pelos animais na abegoaria, medrosos da trovoada, veio dar uma espreitadela ; quando 238
Local plano, tipo eira Tipo de ferro de embarcação de quatro (ou mais) unhas 240 Vide 1 241 Vide 33 242 Cabo da arte xávega, que fica em terra e liga ao calão da rede 243 Dar 244 Confusão 239
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viu aqueles corpos envolvidos, colados, em azáfama que nem a sua aparição sofreou, numa entrega voraz de pertença por inteiro, ficou pespegada no umbral, muda e queda245. Com um sorriso gaiato num rosto cheio de regadeiras246, que não eram, contudo, suficientes, para encobrir adivinhada beleza de outros tempos. Sorrindo com a lembrança desses tempos em que não tinha deixado o «seu quinhão para o gato», pois o Zé Bio, seu home, andava-a sempre a desquietar247, gastando-lho todo. Mas antes de regressar às palhas, ainda teve tempo para oivir248: - Ah Tóino ! : ou foi a minha desgraça, ou a minha felicidade. Escolhe hoje, a que queres, pois nunca mais terás outra oportunidade de o fazer. - Inté p’rèces estouvada Maria ; esta semana vamos tratar da papelada e aprontar tudo para nos recebermos aos pés do altar, da Nª Srª da Saúde . 245
Sem falar e quieta Sulcos na cara 247 Desinquietar ; desafiar 248 Ouvir 246
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Estava a «Norta» a dar volta e aconchegar-se no folhelho249 do colchão, ouve-se a vizinhança, num estendal desgrenhado : - É «ti Norta», sai tanta fumarada pela chaminé que òspensámos250 que vossemecê tivesse adormecido, e pegado fogo à palha da loja251. Vossemecê está bem, santa mulher ? Há para aí fogo? - Não gente inquieta, aforçurada252. O único fogo lá dentro é o do Tóino que está envolto em «labaredas». Mas não vos amofinais253, que o Tóino «Labareda» tem quem lhe apague o fogo. Ide com Deus, à deita.
249
Colchão feito com folha de milho Até pensámos 251 Loja ;venda 252 Que treme por tudo e por nada 253 Inquietais 250
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E foi deste episódio que ficou a alcunha de «Labareda», pois que todo o arrais tem uma alcunha que o distingue dos demais, e esta era bem adequada, tendo-o acompanhado vida fora. E mais : - restado para a história. Era destes simples e marcantes episódios que nasciam as alcunhas que baptizavam as diversas personagens da vila : «Mazôrro», «Tróloró», «Gaivotinha», «Calatró», «Palão», «Tarrinca», «Furôa» etc. etc. - «ti Norta» ! : O Tóino quer que eu seja mulher dele ; nós vamos casar, e você vai ser a madrinha ; e há-de ser a madrinha do nosso primeiro rebento, que vossemecê sua bisbilhoteira - viu fazer - estardalhava 254a Maria, abalançando a boa velhota onde um pingo de lágrima feliz corria na regadeira da sua face. - Pois atão255 ?! Com todo a chinca256, rapariga.
254
Fazia estardalhaço ; falava com alegria em alta voz Então 256 Honra ;toda a satisfação 255
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OS FRALDOCOS
Ora na semana seguinte, enquanto os papéis não chegavam para os entregar ao frei Pachão, prior na capelinha da Costa Nova, num belo dia, quando a barca ao fim da venda trazia as pescadeiras257 para regresso à vila, o Tóino notou uma tristeza na Maria, e até descobriu umas furtivas lágrimas que enevoavam o seu lindo olhar. E dá de perguntar : - Maria !, c’a tens tu, cachopa, que na te vejo rir ? O que te padece ? Iam já em direcção à Maluca, andados que estavam uns bons cem metros. - Nada Tóino, nada home, deixa lá… num te apoquentes que não é nada.
257
64
Vide 1)
Mas a Zefa «Tarrinca», companheira da Maria, não escondeu a razão da tristeza da Maria, e dá de opinar : - Olhe Vossemecê !, ela está assim porque o Manuel «Charrua», aquele desavergonhado, aperguntou258se ela não queria experimentar o fogo dele, que tem mais labareda que o do Ti «Tóino». Mancatufe ! Pilado seco ! - Quê ?! - grita o Tóino «Labareda», pondo mão ao xarolo, puxando-o todo de bombordo, obrigando a barca a uma viradela em cima do eixo259. E assim dando a volta, caçou a escota fortemente. A barca pareceu querer saltar e chegar mais depressa ao ponto de partida. - Esse porco vai ver. Coso-lhe as tripas e dou-as a comer à canzoada c’anda p’raí esgalfa 260.
258
Perguntou Virar sobre si mesma ; volta apertada 260 Cheia de fome 259
65
E numa orça felina, apertada, para ganhar tempo, mal a barca encosta ao moirões261 (desta feita um pouco mais bruscamente do que o habitual), lépido, o «Labareda» salta para o trapiche enquanto grita : - Passem aí uma laçada ao moirão262, que eu vou ali e já venho. - Ah hóme 263da minha alma, não me aflijas. Pode ser a tua desgraça e a minha implora Maria que faz tenção de agarrar o Tóino . Mas este não deu hipótese, e a correr entrou como um furacão pela taberna da Ti «Moura», adentro, fechando de um sopetão264 a porta, dando-lhe uma volta à chave, guardando-a no bolso. A passo mais repousado foi encostar-se à varanda265 da tasca e pediu um copo de três. A «ti Moura» vendo o alvoroço que lhe ia na cara, interpelou-o: 261
Estacas onde se amarram as embarcações Vide 264 263 Vide 33 264 Num gesto brusco, rápido 265 Vide 62 262
66
- Que foi isso «Labareda» ? O que te fez voltar para trás ? Vens com cara de poucos amigos… - Olhe «ti Moura» : andam p’ra aí uns fraldôcos266 a fazerem de homens, a olhar, gulosos, p’ra aquilo que tem dono. Ora eu quero certificar-me o que valem os valentões. Traga-me aí um alguidar para apanhar as tripas destes badólas267 moinantes268. Maneiese 269… que deixei o «animal» mal amarrado. A um canto, numa mesa, em frente de três copos meio «entornados», estava o «Charrua», acompanhado pelo Xico da «Engrásia», mai-lo Pinto «Canastrão».
266
Gente que não vale nada ; que ainda usam fraldas Lorpas 268 Malandros 269 Mexa-se 267
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Deveriam estar a falar dos dixotes270, pois logo que viram o Tóino com cara furibunda, calaram-se, e abotoaram no semblante a mais séria preocupação. - Vá!... disse o Tóino, ao Xico e ao Pinto ; lá p’ra fora. E já!... Se não querem que vos cape, também . E sugigando-os 271pelo camisete arrancou-os do chão, levando-os suspensos nas mãozorras. E enquanto a «Moura» abria a porta, o Tóino atirou borda fora os franganotes que foram mergulhar no areal em frente da tasca, para espanto dos passantes. Voltando atrás, o Tóino agarrou na mesa avantajada, erguendo-a acima da cabeça, lançando-a sobre o «Charrua» que ficou atrunchado272 contra a parede, atordoado. O Tóino agarrou-o pelos gorgomilhos 273 arrastando-o para a porta : 270
Ditos maldosos Agarrando-os ; subjugando-os 272 Apertado ; Entalado 273 Garganta 271
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- Já que te andas a armar em olhudo, vou-te pôr como a tua mãe te trouxe ao mundo, para todos verem o pilado tísico que és. E se tu, ou outro, voltarem a poisar os olhos na minha Maria, faço-vos para morcelas. E num repente puxou do navalhão e, num golpe fulminante e certeiro, cortou os atilhos dos calções do «Charrua», que lhe caíram pernas abaixo, deixando à mostra as suas partes íntimas, de facto, pouco invejáveis. Viu-se! - Vá !...- diz-lhe o «Labareda», vai à tenda da Henriqueta «Pardala» e traz-me um copo de três, se não queres que eu te amanhe. O Manel, a tremer, lá foi naquela triste figura para gáudio de graúdos e chocarrice dos miúdos, que gritavam atrás : - Olha o «Pilado triste». Alcunha de que o «Charrua» nunca mais se libertou. E que o obrigou a pôr os pés, areia fora, na procura de paragens onde a novidade se não soubesse. Mas a mesma correu na proa das enviadas com o vento, e o «Pilado triste» só parou, onde Portugal findava. Em Olhão, nas artes do atum.
69
70
Encerrada
a
questão, o Tóino voltou à barca da passage274, agora crismada de Srª da Anunciação, e metendo a proa à Maluca, ali chegou num ápice, que o vento era frescóte275. A lição iria servir para que todo o mundo das companhas olhasse para a Maria com um respeito que levava alguns, mais medrosos, até - e à cautela - a baixarem os olhos, só para os não cruzarem com os da Anunciação «Labareda».
274 275
Vide 19) Fresco mas não muito
71
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A BARCA DA “PASSAGE”
A barca da passage276 era o único meio de acesso àquele areal na beira-mar desde os primeiros tempos em que as xávegas vindas da Costa Velha, em S. Jacinto, aportaram à Costa Nova, ali na primeira década de oitocentos. Local para onde se tinham vindo postar as companhas da pesca, atraindo, diariamente, os muitos pescadores empregues nas mesmas, mais o mulherio que ajudava no desembaraço e na
276
Vide 19
73
escolha do peixe, bem como os mercantéis277 e os muitos almocreves que pela noitinha, burricos carregados, se embrenhavam por esses caminhos perdidos da serra, ladeando vales e barrancos, para ao outro dia, logo de manhã, não faltarem com a venda da prateada sardinha, lá para as Beiras interiores e Bairrada. No início, ainda as companhas usaram enviadas para facilitar o transporte ao seu pessoal. Mas a confusão gerada, cedo indicou que o bom sentido era o da privatização (?!) daquele meio de transporte, deixando-o nas mãos de barqueiro, que dono da sua própria embarcação, estava sempre disponível para fazer várias vezes ao dia - e até de noite - o transporte, de pessoal e material. A largada da barca, sem hora marcada, rigorosa, era anunciada por um toque singular, roufenho, de um búzio que se ouvia - nesses tempos isentos de outros arruídos278 incómodos - a um bom quarto de légua de distância.
277 278
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Negociantes de peixe Barulhos
Antes de largar dos moirões279, o arrais dava uma olhadela lá para o fundo do caminho a ver se divisava alguma alma atrasada. E quando tal sucedia, se a distância a percorrer não demorasse mais do que escassos cinco minutos - pelo cálculo do arrais, entendido nesse assunto! - adiava-se a partida. Certo é que tal adiamento gerava, de imediato, uma zanguizarra280 dos diabos, com os passantes já embarcados, escalabrados pela demora: - Eh «ti Norte». Astão281 vossomecê quer-nos fazer perder a maré?!... estipôr… Por causa duma marafona atrasada, que esteve, foi, entre pernas mais tempo còdebido282, e agora nos faz esperar ?! Largue mas é… homem dum raio! Largue que temos freima 283de chegar à outrabanda284. 279
Vide 264 Barulheira; algazarra 281 Vide 215 282 Do que o devido 283 Consumição 284 Outro lado 280
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-Calende-vos285 ou ides a nado, que ides mais depressa - respondia o arrais, em voz rouquenha de labrego, moído de tanta algarviada. Chegada a Rosinha Escudeira, a conversa mudava de tom e forma, era imediatamente outra. Aquela gente era muito sabida, e então no fingimento, umas doitoras:286 -Ah Rosinha, q’uim fim q’ue sempre achegastas287 filha ! Se não fôssamos288 nós, o raio do «Labareda» não esp’rava289 por ti. Raios do home, c’anda sempre com o fogo entre pernas. E não há quem lho acalme.
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Calem-se Doutoras 287 Até que enfim que chegaste 288 Fossemos 289 Esperava 286
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- Credo!...fosse eu nova e, cachopas (!), o pavio do Tóino derreava - faiscava a Alzira «Saltoa», mulheraça já cansada dos anos, lá dos Sete Carris, só para adiantar conversa para a galhofa. O «Labareda» ria-se com tal desfaçatez. Ele sabia que era tudo gente boa. Aquilo era tudo facécias. Pois numa astrapalhação290, num momento mais doloroso, eram bem capazes de despir a roupa, para com ela agasalharem uma delas. Gente de acudir, solidária e amiga, mas gente simultaneamente brincalhona, ladina, tarrinca, naqueles momentos de descontracção em grupo. Ordem de largar. O ajudante à proa enterrava a vara no ombro para aproar a barca a oeste. O arrais deixava-a descair um pouco, para logo dar ordem de meter a pá da borda. Leme a meio, caçava a escota retesando a vela com a dupla laçada na draga, fixando a mareação numa
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Atrapalhação ; num momento difícil
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proa apontada ao trapiche291 da outra banda, ali ao lado do Salão do Arrais que, se o noroeste ajudava, poderia ser alcançado em dois bordos. Já por diversas vezes, o «Labareda» chamara a atenção, ao regedor de que a mota devia ser deslocada para sul, aí uns cem passos, pois, se assim fosse, num só bordo, fazia-se a travessia. Se o vento era frescote - e quase sempre o era, bufando lá do noroeste - cinco a dez minutos eram mais que suficientes para laçar moirão na Costa Nova. Durante a travessia era uma algazarra ; a miudagem corria a sentar-se no bico da proa, sonhando com o dia em que se sentasse ao leme, a retesar a escota, e rumar, ponteiro, ao outro lado. Os almocreves que tinham deixado os burricos a descansarem na estrebaria da «ti Norta», a recomporem-se da jorna, com palha fresca - pois que para cá tinham vindo carregados de azeite lá das serranias, o melhor ! - deitavam contas à vida na tentativa de ler o tempo. Imaginando como seria a noite, em que serra acima, ladeando a ravina, 291
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Cais de madeira para atracação das embarcações
atravessando o riacho, metendo à desbanda por um atalho conhecido… toque… toque…, lá iam por entre pinheirais a zangalhar, assanhados com a ventania da noite a facilitar que por ali surgisse algum marmanjo da rapina, percorrendo ligeiros os caminhos lá para o interior, para que as gentes lá de longe, pudessem ter acesso ao peixe da borda do mar. Por isso, e porque amanhecido o sol era tempo de entregar o carrego lá para as bandas de Viseu, havia que dar ao pé. Burro e pimpão almocreve. Por vezes aparecia para atravessar, na barca, o João «Ruço», exímio tocador da concertina que fazia as delícias dos embarcadiços ; encostado à barra da escota, atiravase ao «vira que vira», esbofando a sanfona, enquanto com dedos ágeis percorria os botões das notas. E logo duas pescadeiras saltavam lestas para o centro, saltitando e rodopiando, pés descalços «sapateando» nos paneiros, enquanto a voz fina, mas timbrada e maviosa da Joaninha «Cantadeira», se fazia ouvir : Lá bem na viração Meninas bamos ao bira, Que lá no bira ‘tá tudo. Ó real das canas !
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Que lá no bira ‘tá tudo. E a água do Bota Fora É a cum’ò binho maduro
Enquanto isso, as cachopas, num falazar grazina, aproveitando o ripanço daqueles breves momentos, lá iam em conversa onzeneira : - Astão Rosinha? foste a última a vir lá da vila, deves saber novidades. Contanos lá, chopa !... - Novas, só que entrou na barra o iate do Ti Cachina, vindo lá da estranja. A Ana «Fradoca» foi esperar o homem, o Armando Ramízio. Logo à noite, lá p’ró Arnal vai ser uma zanguizarra dos diabos. Sete meses de fastio, gentes !..., nem as pulgas incomodam. Chegada a hora, vai ser tempo de medrar menino. Idas ver 292 - ia dizendo a Rosinha. 292
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Ireis ver
- E olha c’os tempos não estão nada p’ra isso, rapariga. Só vejo fidalgotas a cheirar o frescal, e a desdenharem. Que não presta - dizem ! O que essas delambidas querem é «dado». Mas enganam-se. Que cá a Zefa, dado, só ó meu home. E num é sempre ! C’às vezes lá lhe caço umas felpas, a troco do festim. Que não é para o gabar q’inté é p’rigoso293com tanta serigaita a q’rer pastar - mas cá o meu Zé é danado p’rá brincadeira. - Ah!... Zefa, c’alte294… Tu sabes q’ué bom, porque nunca comeste doutra malga. Amorna-te aí… raios ! Tem relego295 nessa língua e não nos desinquetes296, com essas toleimas. Outra figura que era habitual, de tempos a tempos, aparecer a tomar o seu lugar na passagem, era o «amolador». Carrinho de roda com os apetrechos para colocar a 293
Que até é perigoso Cala-te 295 Comedimento 296 Desinquietes 294
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gataria297 nos barros esfanicados, ou esmeril aconchegado, pronto para afiar os navalhões da trupe das campanhas, ferramental indispensável ao exercício diário daquelas gentes, precisando do gume bem afiado, capaz de cortar papel em tiras de enfeitar. O ti Francisco da «Gaita», assim chamado por anunciar a sua presença, de porta em porta, por uma gaita de beiços, com sonoridade distinta e singular, o aviso para se ajuntar todo o material a necessitar de reparo, à porta dos palheiros, onde exercia o seu mister. - Oh «ti Gaita» - dizia maldosa a Berta «Lamaroa» - vossemecê não é capaz de me pôr três gatos numa racha, p’ra a aviar como nova ? - Asponho 298, pois então. Cuida-te, ósdepois299, porque os gatos miam de noite, se incomodados, e gostam de tripa miúda - respondia sisudo o «Gaita», homem de
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Agrafos usados para juntar peças de barro Ponho 299 Depois 298
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pouca conversa fiada. Que fiado só os muitos calotes por trabalhos feitos àquela gente, a aguardar paga, à espera de melhor maré. Tempo de chegar. O arrais media a distância, e, chegado o momento, orçava, apontando a proa ao vento. Folgada a escota, recolhida a pá da borda para cima do traste300, o vento e a corrente levavam a borda da embarcação a beijar, suave, o trapiche301a que acostavam, para descarrego das gentes. Era um desaforo. Uma restolhada dos demónios. Todas queriam ser a primeira a colocar o pé descalço no tabuado da mota, lestas para chegarem à escolha e venda do peixe. Se o não havia fresco, porque o mar não tinha permitido lanço ao meia-lua, carregava-se do escorchado302, que à falta de melhor, também tinha clientela. À volta, no regresso, ao fim da jorna, era um queixumar303 de arrenega. 300
Travessão onde passa o mastro Cais de madeira para atracação de barcos 302 Peixe salgado em dornas depois de estripado 303 Fazer queixa 301
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- Danado do mar ! Aquele cão anda mais «seco» que trimbaldes de porco capado; o peixe branco está pela hora de morte, não se lha304 pode achegar. Mais caro c’ós pozinhos de Maio milagreiros, da botica do «ti Cunha» - queixava-se a Ana «Espadela» maneando a cabeça num esgar de nojo, ascupindo305 para a borda.. Mal, acomparado,306 - que comparações só se podem fazer com os santos - era assim : À ida : - Maria, para onde vais tão pimpona ?! - Para a «festa!!!» À vinda : - Maria ? : - de onde vens, cachopa triste? - Da… «festa…» 304
Lhe Cuspindo 306 Comparado 305
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A MURTOSEIRA
Ora, numa maré favorável, o Tóino levou a Maria à Murtosa, para mostrar a sua prometida à Mãe, que lá ficara a fazer umas leiras. A Anunciação aperaltara-se. Chinelo no pé, agasalhado por meia branca rendada, avental florido debruado sobre saia de serguilha (fraldilha) de roda grande, blusa garrida de cabeção, sobre o qual amarrava bonito lenço azul, de barras amarelas. Não lhe faltavam as arrecadas e dois cordões que pedira emprestados a Amélia «Cachina», sempre disponível para um empréstimo, como era hábito nestas gentes da borda. Um capote azul fazendo contraste intenso com o verde dos seus olhos amendoados, protegeu-a do vento durante a viagem, vindo lá do norte. Uma relíquia de mulher, um pedação de lindeza, que o Tóino, cheio de chança307, 307
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Importância
mostrou às suas gentes, que, sabedoras da beleza ímpar da mulher d’Ílhavo, não sabiam, contudo, pudesse ser tanta. A «Murtoseira» abençoou-os e na hora de partida lá foi ao arcaz308 onde guardava as roupas de domingo, e, bem lá do fundo, de um lenço tabaqueiro com as quatro pontas atadas em nó cego, retirou umas moedas de prata, entregando-as ao filho, enquanto dizia : - Tomai meus filhos ; que Deus vos ajude e me dê muitos netinhos. Levem estas minhas enconomias309 e comprai uma leirita, onde possais construir o vosso ninho. É pouco, mas é tudo o que eu e o falecido Pai do Tóino tínhamos ajuntado, para comprar uma barca nova para andar no moliço. O danado do malezinho de peito levou-o, e eu agora, velhinha, já não preciso da prata p’ranada310. Tinha-o guardado p’ró Tóino, mas
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Baú Economias ; pé-de-meia 310 Para nada 309
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só lho dava se ele arranjasse cachopa capaz para a vida. E vejo que o rapaz teve olho. Sai ao pai… num é p’ra me gabar! Regressados, contado o arrecadado à Ti «Norta», foi pedida, a esta, que intercedesse junto da Srª Joana «Maluca» a ver se ela lhes vendia um quinhão, lá mais p’ra baixo no caminho d’Ílhavo. Ora a Joana «Maluca» tinha a sua origem em Espinheiro, conhecendo bem a família da «Pederneira». E folgou com a união ao Tóino, rapaz desembaraçado que lhe acarretava, lá do Norte, moliço para as suas terras, antes de ir para a passage311. Não só cedeu a leira como uma madeirita para construírem um palheiro aconchegado. A Maria rejubilou, e, de pronto, trouxe com ela os irmãos e a mãe, que se agasalharam nos três compartimentos do palheiro, num ápice construído. E a vida da família «Labareda», assentou, assim, nestas paragens, em local a nascente da Laguna.
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Vide 19 )
O «Labareda» depressa foi convidado para a Companha do Arrais «Parracho», onde começou como reçoeiro312. Não foi preciso muito tempo para substituir, nas faltas, o arrais. Mais tarde, e para estar mais próximo da Maria, o «Labareda» comprou a sua barca, na qual se tornou o mais afamado homem a vogar sobre o Canal.
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Pescador que na ré do xávega vai largando o reçoeiro
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OS PAINÉIS
E curioso ; a sua barca foi a primeira que deixou de ser preta, cor de breu, como era usual, serem-no as barcas dos «ílhavos». Inspirados no que lá para o norte era costume, na lavra, aquelas gentes da borda d’água, lá da Murtosa, algumas vindas lá do Minho atraídas pelas boas condições destes terrenos da borda da laguna, para a produção de milho, pintavam garridamente os painéis, da proa e popa, dos moliceiros, com que iam ao moliço para fertilizar as suas terras. Tal como o faziam nos cabeções entalhados, que uniam a parelha de bois, em que faziam uso de uma paleta de cores peculiares na feitura de desenhos naifs, cheios de sugestões atrevidas, realçados com dizeres espirituosos e ao mesmo tempo provocatórios, apondo-os em rodapé.
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Na primeira metade do Séc. XIX, a ria viu-se povoada de moliceiros, de cor de mel, do pez louro, decorados a preceito, no bico da proa e da ré. E até no interior, especialmente no painel que dava acesso à proa - e no cagarete313 - por pinturas que eram cobiça dos olhares dos mirones, quando, nas festas ribeirinhas, no S. Paio ou na Srª da Saúde, com propósito, se mostravam em despique. Apenas aqui para as Gafanhas se continuou a usar o barco pintado todo de negro, viúva. Por isso foi apodado de «matola314». O Tóino, na sua barca mercantel315, fê-lo mais discretamente, sem a exuberância usada, habitualmente nos moliceiros. Uma pequena Cruz de Cristo, branca, sobre o «Srª da Anunciação - Balei-me», apostada num azul que quebrava a monotonia do negro do
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Zona onde se senta o arrais Matolas ; assim se designavam os bairradinos que após as vindimas, em Outubro, vinham para a praia 315 Tipo de embarcação para transporte de mercadorias especialmente Sal, peixe, torrão para marinhas, caulino, adobes, etc. 314
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casco. Na bica de proa lá aparecia o ramo florido, por norma oferecido ao arrais, por uma ou outra galante e simpática pescadeira. No tempo delas, um ramo de bichaninhas316, uma cachoeira de redondinhas flores de um amarelo muito vivo, enfeitava a proa da embarcação. E porque um murtoseiro nunca esquece o amanho da terra, nos intervalos da passage, o «Labareda» atirou-se ao amanho de umas leiras, indiferente ao esboroar da terra arenosa. Que bem aviadas de escasso317, acartado pela Maria com o restolho vindo das companhas, depressa botou produção que chegava para sustento das bocas da família (num ápice aumentada com o nascimento de quatro Labaredazinhos). Era um trabalho penoso, mas que prometia. Lá para os fins das tardes, quando o Sol era mais clemente e não esturricava com tanta intensidade os costados do murtoseiro, era vê-lo no intervalo das viages318, com o 316
Vide 4 . Restos de cabeça e tripas do peixe junto com caranguejo pilado 318 Passagens 317
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enxadão cavar fundo no solo arenoso, revolvendo-o até lhe suster a forma do rêgo, para onde atirava o escaço misturado com a terra alevantada, e por onde «escondia» as sementes, que germinadas, haveriam de transformar aqueles areais inóspito, em terra de pão. Ao princípio o milho não medrava e nem uma raquítica bandeirola exibia ; sempre era uma palhita para a bezerrita, criada no estábulo improvisado. Mas o Tóino voltava, uma…, duas…, quantas vezes as necessárias, a afundar, a revolver as entranhas e a encharcar a terra de húmus, a surribá-la, com vontade e paciência, obstinado - como tantos outros a seu lado - até que o verde intenso dos milheirais transformou aquelas envergonhadas dunas, em prado de regalar a vista. Por entre eles iam surgindo as casitas de telha (de canudo) avermelhada, transformadas em colmeias coalhadas de gentes decididas a ficar, e a fazer uma terra e um povo. Os foreiros vindos lá das Gândaras, que em fins do Séc. XVII, ali chegaram, juntamente com outras gentes da borda-d’água, para arrotear as dunas, vieram fazer as Galefenhas319. Foi um trabalho porfiado, pago com o suor da sua fronte e a força dos seus braços, numa exemplar humanização do 319
Gafanhas (ver Ílhavo - Ensaio Monográfico pp.214)
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escalavro inicial da paisagem, ajudados por muitos que da borda d’água se achegaram para participar nesse trabalho épico de mudança da paisagem geográfica, tornando-a acolhedora. A Maria não faltava com o seu contributo, neste trabalho de arrancar da terra sustento para a família. Mal pousava a canastra da venda, aviados os seus, acorria a acarretar uns baldes de água, ou de sachola na mão, empenhava-se em mondar as plantas bravias, para que não roubassem o alimento às que haveriam de produzir sustento.
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AO LEME COM O «LABAREDA»
- Eh arrais ; vossomecê não me leva e me ensina a lemar320, na sua barca ? - E tu para que o queres saber, rapazelho ; p’rèces321 afidalgado, não queres vir p’ra moço, pois astão ?! E foi assim que começou a lenga-lenga. Eu apostado a aprender a manobra. O arrais «Labareda», desconfiado comigo, ou da minha validade para aprender, negócio tão difícil, o da mareação. Ind’òmenos 322se me conhecesse… 320
Fazer leme Vide 55 322 Ainda ao menos 321
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- Astão 323quem és lá tu? - pergunta-me… - Olhe sou da Ti Eduardinha da botica ; sou dos Roncas, lá do Curtido, e dos Arrombas, lá do Cimo da Vila, respondi. E acertei na mouche. - Dos Ronca, do arrais ?! - pergunta o «Labareda», logo acrescentando - um dos mais famosos e valentes arrais do nosso mar, aquele que dizia : - Um barco é todo feito de tábuas ; as tábuas não vão ao fundo : abóiam ! Logo um barco nunca vai ao fundo, seus medricas ! Oh rapaz tu és mesmo da famelga desse peitudo ? E dos «Arrombas», desses desboqueiros324 incorrigíveis ?! Sabes o que é que estes respondiam, quando os companheiros diziam que o mar estava danado? : - Caguem-lhe… Os «parentes» «Ronca e Arromba» - Deus os tenha em boa memória, que bem me moldaram o jeito, forma e o carácter - abriram-me as portas do «Labareda», que logo deu de si. 323 324
Vide 215 Que não controlam a «boca», a palavra
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-
Vรก,
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despacha-te, salta lá, não quero que fiques aí especado a remorder, a arrombar-me325 . - Vá, senta-te aqui no cagarete326, e abota-me327 as mãos a este cordame - ao tempo em que me indicava as driças do charolo. . E a lição começou : eu ao leme, e o arrais na borda, pronto a corrigir a azelhice328. - Aponta à «bruxa» : folga vela que o vento está mareiro329. Isso!... assim… Quando sentires pouca força na escota, acaça-a330 um pouco. E lá arrancámos. Eu, impante de orgulho. O arrais, desconfiado. - Olha : ao largo folga-se o calcador331 e o bolinão 332, p’rá vela encher melhor. A vela é como a sardinha ; só é boa quando bem cheiinha. 325
A dizer mal Onde se senta o arrais, ao leme 327 Põe 328 Que não faz nada direito 329 Sopra do Oeste, da banda do mar 330 Puxa-a 326
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E há oitros trucas333 ; mas isso é para professor não é para pixotes334. A valuma335 quer-se solta e a esteira336 folgada p’ra fazer saco. Já com bolina devem-se tender, apertar, p’ra fazer da vela, uma lâmina. E, continua o arrais, bom mestre : - Olha! vou meter a pá à borda, mas só um chinquilho337 p’ra não se arrolar. Quer-se a descair um pouco para trás e pouco aguada, p’ra não travar o barco. Entendas?!338, moço ? Aguenta aí o leme ó direito339. Não lhe metas a porta que 331
Estralho que puxa a vela pela testa, esticando-a Cabo que puxa a vela pelo cimo da testa , exercendo acção sobre o envergue 333 Outros truques 334 Fraquitos 335 Lado posterior da vela. 336 Parte inferior da Vela 337 Um bocadinho ; pouco 338 Percebes 339 Na direcção a 332
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astrava340o correr da embarcação. Isso!..., deixa-a correr solta e leve. Aí vai ela ó de laró341. Já tínhamos passado o desertas342, quando o arrais me faz notar : - Olha lá tu! que vais ao leme : tens na proa um saltadouro343. Orça344, p’ra lhe passares por barlavento345 diz o arrais. - É mestre o que é lá isso, de barlavento ? - inquiri eu, que nunca tinha ouvido tal palavrão. - Astão346 tu queres ser arrais e não sabes que barlavento é pelo lado que ele assopra. A outra amura, é Sotavento - remata professoral o arrais. 340
Trava A deslizar leve 342 O canal feito para passar o «Desertas» 343 Rede colocada em caracol para as tainhas 344 Vira ao vento 345 Amura de onde sopra o vento 346 Vide 341
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E estávamos quase chegados, eis que estremeço com o «ronco» do Ti «Labareda» : - Ó!.. zarro347 ! : onde é que vais, que perdeste o rumo, astipôr348. Deixa a rapariga em paz, que não é p’ró teu pé, fioco349. E era verdade. Eu bem ia de rumo fixo ; mas os meus olhos deram de bater numa raparigota, sentada a sotavento, e logo fiquei babado de perder o norte. A moçoila era linda de morrer. Cabelo puxado e apanhado, atrás, que fazia surgir, caídos sobre a testa alta e desafogada, uns caracóis doirados pelo sol e peito bujarrão a espigar na camiseta aberta que deixava divisar um colo de garça, gracioso e tentador. Mas, suprema fixação de endemoninhar : uns olhos verdes, marotos e bailarinos, ternurentos, encalhados numa face onde duas covitas surgiam no sorriso maroto de quem se sente olhada, e requestada. 347
Fraco Estupor; danado 349 Que não presta 348
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- Desculpe lá mestre Tóino ; eu já voltei… Já aqui vou… respondi atrapalhado, a lembrar-me da história do «Charrua», que me fora contada. - Ah voltaste… voltaste. Senão fazia-te eu voltar com duas lambadas. Que a Amélia «Labareda» não é prós teus beiços de bácoro bem criado - avisou o arrais, meio a sério meio a brincar, descansando-me do meu atrevimento. - Eh arrais ; guarde-a que coisa como ela, bem merece uma redoma. Mas a ti Maria não tinha cabelo negro de azeviche? Não me diga que (?!)… atirei eu,… desafiador - Q’ué lá isso pindérico, galicóte350 miúdo. N’a sabes q’eu sou descendente lá dos «armandos», ou é lá isso… - Dos normandos, quer vossemecê dizer. Gente loura… Ah! entendo agora, porque vossemecê é único - corrigi eu o Ti Tóino, que se sorriu face ao meu entendimento de tal ascendência daqueles povos lá do norte.
350
Gálico
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- Atenção rapaz!... quando estiveres a uma barca do trapiche, orça… orça já, ladrão!... que me astiporas351 o barco. Até gelei. O «Labareda», salta, engolfa o punho na driça de bombordo, enquanto com a outra liberta a escota. A barca trava como se anjo lhe deitasse mão, mas não a tempo de evitar uma batidela forte no trapiche. Desta vez, por culpa minha, não tinha sido exactamente uma atracação à «Labareda».
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Rebentas
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AMÉLIA DOS OLHOS DOCES
Com o estremeção, acordo estremunhado : Zangalho a cabeça e pouso-a, cansado mas feliz, na almofada. E dou por mim, esfalfado de tanto viver sonhado… O filme acabara. «Labaredas», Marias, «Nortas» e «Zefas», faladeiras, pareciam ainda brincar, saltitando aos pés da minha cama. Que emposta esta, navegada com a minha gente que me baila continuadamente no espírito, que me aconchega, me embala e adormece. Figuras reais, umas ; inventadas no sonho, outras. E tu Amélia dos olhos doces, onde paras ? Terás sido sonho, ou exististes mesmo de verdade ?
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Inventei-te, ou vi-te noutro dia, Amélia Maria ?Ou, Fugiste pr’a longe c’os ventos Só ficou a calmaria Mas olha que o meu coração Ainda, bate por Ti, Maria…
A ATRACAÇÃO À «LABAREDA»
As atracações à«LABAREDA», que todos pretenderam - mesmo depois da sua morte - imitar, ficaram na história da Laguna. Ninguém as conseguiu igualar. Tornaramse lenda na história da Costa Nova no dealbar do Séc. XX, e ainda hoje perdura na
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rapaziada, o hábito de gabar uma ousada manobra de embarcação, pronunciando : essa foi «à Labareda». Tentei-as diversas vezes. Muitas vezes o costado do barco foi quem pagou o meu atrevimento. Mas falhada uma, logo repetia outra : - Eh «Labareda»… o que um homem sofre p’ra ser ogalho352 a Ti.
Senos da Fonseca Setembro 2007
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Igual
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INDICE : POR FAVOR :SENTEM-SE... E OUÇAM O «LABAREDA» A TI «NORTA» A JOANA «MALUCA» O TÓINO «LABAREDA» O NAMORO DO «LABAREDA» COM A «PEDERNEIRA» OS FRALDOCOS A BARCA DA «PASSAGE» A MURTOSEIRA OS PAINÉIS AO LEME COM O «LABAREDA» AMÉLIA DOS OLHOS DOCES A ATRACAÇÃO À «LABAREDA»
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OUTROS TITULOS DO AUTOR: NAS ROTAS DOS BACALHAUS ÍLHAVO ENSAIO MONOGRAFICO SÈC.X-SÈC XX ALEXANDRE DA CONCEIÇÂO –POETA DA TERRA ABSURDA GUILHERMINO RAMALHEIRA –DISCURSO DA PAIXÂO TERRA DA LAMPADA –«BLOG» VOL I,II,III,IV e V
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