O naufrágio da barca da «passage» A passagem da barca da carreira, habitual desde os primeiros passos das gentes sobre o areal da Costa-Nova, e que se prolongaria até ao ultimo quartel do séc. era na mor das vezes um momento de descontracção que servia para galhofar, cantar e até dançar, aos passantes, se animados com a prodigalidade da natureza a proporcionar reconfortante sustento.
A Barca amoiroada na 1ª mota(1907)
A Barca da Passagem Mas certo é que por vezes as coisas não corriam, bem assim. E dias houve em que a travessia , perante a necessidade inadiável de a levar a efeito, era feita em condições adversas de tempo, exigindo aos arrais das barcas, muito saber, destreza e arte e afoiteza..
A Barca atracada na 2ª Mota (1936)
Em Agosto de 1907 a tragédia esteve à beira de suceder, quando perante um desbragado e não esperado temporal (pelo menos com tanta intensidade) se abateu por toda a região de Ílhavo, e em particular sobre a Costa – Nova. Era a tarde do dia 12 de Agosto do referido ano. O céu mostrava-se escuro, as nuvens toldadas por um cinzento enfarruscado, empurradas por forte sulada, revolviam-se endoidadas, fazendo prever condições pouco apetecíveis para atravessar da Maluca para a Costa – Nova.Sobre a ria descarregava uma forte trovoada, pré anunciada por raios que rasgavam em zig-zags caprichosos e fantásticos, o céu, iluminando a superfície da laguna, que surgia revolta, com farfalho a galopar, quebrado, a crista das ondulação que teriam mais de um metro de cava. Dir-se-ia que o diabo andava à solta, a brincar com a natureza assarapalhada com tanto barulhar, por vezes aterrador. As barcas tinham encostado á mota, e depois de bem amoiroadas, os arrais refugiados na tasca da Ti Norta iam matando o tempo escorropichando uns copitos de bagaceira, que lhes matava a inquietação. Entre eles o António Roquete, colega do Labareda, gafanhão de tempera rija, resistia aos apelos da Ti Cacheira, que desesperada, tinha ao colo uma filhita de um ano, tanto quanto o tempo da sua viuvez, e, agarradas ao saiote, uma sobrinha de 4 anitos e uma filha da Júlia Rainha, peixeira como ela, lá dos sete carris, que teria pouco maisque os dez anos. A Cacheira bem moía o Roquete, pedindo-lhe pelas alminhas que a levasse ao outro lado, pois, tinha lá todo o rapazio, uma leva de filhos tidos do seu defunto, à espera, esgalmidos com fome, pois que desde o dia anterior apenas deixara aos seus meninos um caldito com um cheiro de conduto. Coitaditos, os orfãos de pai, a chorarem pela mãe, seu único amparo.: - ia dizendo ao Roquete, no sentido de lhe amolecer a hesitação.
O Arrais
O Roquete bem hesitou. Que o tempo não aconselhava a mareação à Senhora da Saúde mesmo que esta desse prometesse dar uma olhadela por aquelas almas penadas. Mas a Cacheira tanto insiste, que o Roquete dando uma última olhadela ao tempo, decide embarcar a pobre viúva e largar amarras. Até meio da ria, a viagem é feita com a toste bem metida, pano folgado a um largo, calcador solto, como solto ia o bolinão para que o mastro não fosse muito castigado. A borda entrava na cava da onda permitindo que a seguinte lhe entrasse aos golfões, fazendo boiar os paneiros.Nada contudo, que fizesse temor ao Roquete, mão segura na escota para, em caso de necessidade, a soltar de um sopetão; o leme ia caído um pouco a barlavento para que a barca recebesse a vagalhoça pela alheta de proa. A maré que já enchia ia de encontro á ventania, encrespando e enrolando, desfazendo-se em linhas espuma alva correndo para o norte, velozes. Mas o inesperado surgiu. Um violento golpe de vento do SW, apesar do arrais soltar de imediato toda a escota, envolveu a barca, atravessandoa à vaga, virando-a de borco. Gritos lancinantes desprendem-se do peito daquelas desgraçadas, que vêm a morte, ali, preste a levá-las consigo.
Roquete dá a mão á Cachina e coloca-a na borda agarrada ao mastro. Com o pequerrucho preso nos dentes, mergulha e consegue alcançar as outras duas crianças, trazendo-as para que se agarrem à borda da barca, que flutua qual estranha baleia boiando sobre as águas. Revoltas. Com o bebé preso nos dentes, o Roquete tem ainda, uma e outra vez, de ir recuperar uma das crianças que exausta não aguentara as batidelas da vaga e o frio da água, mãozitas hirtas, enregeladas. Só um milagre poderia salvar aqueles infelizes. Eis que da Costa-Nova os banheiros ti Pardal e o Ti Ricóca, com mais três camaradas se metem numa caçadeira, daquela de nove cavernas, e tentam defrontar o turbilhão das águas. Impossível, contudo, que uma bateirinha rompesse com aquela desarcada tempestade. Impotentes não têm outo remédio que o de se deixar descair para o Bico, onde aterram. A esperança parecia perdida. Mas.. Eis que do sul o Arrais Serino, o Agostinho Pataneca, o José Agualusa, o Gordinho e o António Russo, se metem numa chincha e, remando forte, homens conhecedores e afoitos, lá conseguem chegar junto da barca e recolher os náufragos. Iam já três quartos de hora que aquela gente enregelava nas águas batidas pela sulada, prestes a desistir da vida ,exaustas ,enregeladas.. O António Roquete pelo seu feito mereceu a distinção de El-Rei que lhe concedeu a medalha de Mérito.
A lancha (1960)
Pretendeu-se ainda que todos aqueles que se tinham atirado ĂĄs aguas na tentativa de salvar aqueles infelizes, fossem, eles tambĂŠm, agraciados pelas autoridades concelhias. Senos da Fonseca Julho 2008