Boletim do IRIB em revista 362 - dezembro de 2020

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E M R E V I S TA Nº 362 Dezembro 2020 ISSN 1677-437X Publicação do Instituto de Registro Imobliário do Brasil

LGPD:

PARECER, PROVIMENTO CGJSP E PORTARIA CNJ XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil BOLETIM 362

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EDITORIAL ÍNDICE 4 Proteção de Dados e Registro Imobiliário Parecer - Juliano Souza de Albuquerque Maranhão 46 Tratamento e proteção de dados pessoais nas serventias extrajudiciais Provimento da CGJSP - Ricardo Mair Anafe 54 Portaria nº 213, de 15 de outubro de 2020 58 Metas e diretrizes estratégicas da Corregedoria Nacional de Justiça para 2021 62 LGPDP e os Registros Públicos Entrevista com Antônio Carlos Alves Braga Junior 64 Proteção de dados e os Registros Públicos Entrevista com Madalena Teixeira 66 LGPD e do direito ao esquecimento Flauzilino Araújo dos Santos 68 LGPD – a estática e a dinâmica do Registro Sérgio Jacomino 74 Passado e futuro se ligam numa grande ponte geracional Sérgio Jacomino 80 A função social do registro imobiliário Celso Fernandes Campilongo 88 Construindo o SREI –do ideal ao real Adriana Jacoto Unger e Nataly Cruz 98 Panorama atual do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico Flauzilino Araújo dos Santos 104 Coordinación Registro de la Propiedad y Catastro: El principio de especialidad referido al objeto del derecho y el principio de legitimación Jorge Blanco Urzáiz 116 Melhoria do ambiente de negócios. Doing Business – Registro de propriedades Carlos Eduardo de Jesus 122 A Qualificação Registral e a Independência do Registrador − Maxime em Portugal Mónica Jardim 136 Do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público – Lei nº 13.709/2018 Luís Paulo Aliende Ribeiro 146 Desjudicialização: avanços, desafios e novas demandas Rafael Ricardo Gruber 162 Aspectos do Condomínio Edilício e do Condomínio de Lotes na Lei nº 13.465/2017 Marcelo Benacchio e Paulo Cesar Batista dos Santos 174 Publicidade registral das averbações premonitórias, constrições judiciais e institutos assemelhados: efeitos no patrimônio de terceiros Sérgio Neumann Cupolilo e João Pedro Lamana Paiva 208 Consolidação da propriedade: “aspectos polêmicos” Roberto Lúcio de Souza Pereira 216 Regime patrimonial na união estável e no casamento Francisco Eduardo Loureiro 226 O futuro do Registro de Imóveis em tempos de globalização e novas tecnologias Fernando P. Méndez González

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EDITORIAL

Parecer, Provimento CGJSP e Portaria CNJ tratam da LGPD

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ma seção dedicada à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais abre esta edição do Boletim IRIB em revista. O IRIB solicitou parecer do prof. Juliano Maranhão (USP), aqui publicado na íntegra, analisando a adequação da lei às atividades dos serviços do Registro de Imóveis. Também merece atenção especial o Provimento da CGJSP, dispondo sobre o tratamento e a proteção de dados pessoais pelos responsáveis pelas delegações dos Serviços Extrajudiciais. Outros documentos relevantes aqui divulgados são: a Portaria nº 213/2020, instituindo o Comitê Gestor da LGPD no âmbito do CNJ; e as Metas e Diretrizes Estratégicas da Corregedoria Nacional de Justiça para o Extrajudicial em 2021. Em destaque a Diretriz Estratégica nº 3, para assegurar a implementação do SREI em todo o território nacional, pelo ONR, e o seu funcionamento em plataforma única, com acesso universal; e a Diretriz Estratégica nº 4, que visa regulamentar e supervisionar a adequação dos serviços notariais e de registro às disposições contidas na LGPD. E mais: uma entrevista com o desembargador Antônio Carlos Alves Braga Jr. sobre o impacto das novas tecnologias nos Registros Públicos; e uma entrevista com a registradora portuguesa Madalena Teixeira, alertando para a importância da LGPD e para o cumprimento de regras voltadas à segurança e à integridade da informação. Um artigo do registrador Flauzilino Araújo dos Santos focaliza a Incidência da LGPD e do direito ao esquecimento. Finalmente, um artigo do presidente Sérgio Jacomino, com reflexões sobre a estática e a dinâmica do registro, encerra a seção LGPD.

Palestras do XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil Na segunda parte, a revista traz a íntegra das palestras do XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Florianópolis (SC), pelo IRIB, com apoio do Colégio Registral Imobiliário de Santa Catarina, para cerca de 300 participantes. No discurso de abertura o presidente Sérgio Jacomino abordou a mais contemporânea das questões do Registro

de Imóveis, ou seja, os desafios postos à atividade numa época de grandes mudanças e transformações em que muitas vezes “as novas tecnologias nos são apresentadas como um meio de recondução à racionalidade perdida do próprio sistema jurídico”. No entanto, “a máquina não pode ir além de algoritmos e de estritas relações lógico-formais. Não pode pretender ser mais do que a régua e o compasso nas mãos de um bom artífice, provado na prática de sua atuação profissional.” Para o presidente do IRIB, o desafio dos registradores se traduz na capacidade e na aptidão para assimilar as novas tecnologias e dar-lhes a importância relativa que merecem na estrutura de um bom Ofício de Registro de Imóveis. O prof. Celso Campilongo proferiu a palestra magna sobre a função social do registro imobiliário. Ele entende que há uma função latente do registro imobiliário enquanto facilitador do ambiente de negócios. “Por isso a função social do registrador, essa de garantir um ambiente de negócios resistente a numerosos contratos, a relações interpessoais, a contratos incompletos, a incertezas nas relações jurídicas é cada vez mais importante, não o inverso.” As demais palestras trataram dos mais variados temas: ONR (Flauzilino Araújo dos Santos); Doing Business (Carlos Eduardo de Jesus); tratamento de dados pessoais (Luís Paulo Aliende Ribeiro); desjudicialização (Rafael Gruber); polêmicas no procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária (Roberto Lúcio Pereira); publicidade registral das averbações premonitórias (Sérgio Cupolilo e João Pedro Lamana Paiva); condomínio edilício e condomínio de lotes na Lei 13.465 (Marcelo Benacchio e Paulo Cesar Batista dos Santos); arbitragem, mediação e conciliação (Paola de Castro Ribeiro Macedo); regime patrimonial na união estável e no casamento (Francisco Eduardo Loureiro). Os palestrantes internacionais enviaram, gentilmente, suas palestras para publicação: o registrador espanhol Jorge Blanco Urzáiz (cadastro e registro); a professora Mónica Jardim, da Universidade de Coimbra (qualificação registral e independência do registrador); e o registrador e professor espanhol Fernando Méndez González (o futuro do RI em tempos de globalização e novas tecnologias). BOLETIM 362

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Proteção de Dados e Registro Imobiliário Parecer elaborado e coordenado pelo Prof. Juliano Souza de Albuquerque Maranhão, em junho de 2020, com reflexão sobre medidas a serem adotadas para adequação das normas de serviços do Registro de Imóveis. Para o professor não existe qualquer conflito entre a publicidade registral e a privacidade ou proteção de dados pessoais.

O presente estudo foi coordenado e elaborado pelo Prof. Juliano Souza de Albuquerque Maranhão, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no âmbito do Instituto Legal Grounds for Privacy Design – LGPD, por solicitação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB e ao Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis Eletrônico – NEAR. Participaram da elaboração do estudo o diretor Ricardo Campos (Docente Assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt) e a pesquisadora Nuria López (Doutora em Direito pela PUC/SP). A discussão do conteúdo do documento contou também com a contribuição de integrantes do IRIB: Sérgio Jacomino, Flauzilino Araújo dos Santos Ivan Jacopetti do Lago, Rafael Ricardo Gruber, Caleb Matheus Ribeiro de Miranda e Nataly Cruz.

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Sumário Executivo análise da atividade registral, inclusive dentro do recente esforço de digitalização de seus serviços, revela não haver qualquer conflito entre a publicidade registral de que se revestem os atos do oficial de registro e a privacidade ou proteção de dados pessoais. Em sentido jurídico estrito, publicidade registral não implica publicação indiscriminada, ou a difusão dos dados registrais imobiliários para efetivamente levar a situação do imóvel ao conhecimento do público em geral, nem mesmo significa disponibilização para livre acesso e consulta pelos interessados, mas apenas diz respeito à fé pública de que se reveste o Registro e à consequente eficácia e oponibilidade perante quaisquer terceiros de boa-fé dos títulos e posições jurídicas inscritas. O acesso público aos dados registrais é realizado pelo mecanismo de cognoscibilidade, que tem também um sentido normativo, traduzido no “dever conhecer”, ou “dever de fazer prova” imposto aos terceiros como condição de eficácia para atos ou negócios jurídicos de seu interesse, no caso, os negócios jurídicos imobiliários. Também a lavratura de certidões, em sentido jurídico estrito, não tem por finalidade veicular informações, mas produzir meio jurídico de prova. Os dados pessoais extraídos dos documentos sob controle das serventias não são públicos no sentido de res nullius, nem são de propriedade do Estado; sua titularidade (direito da personalidade) pertence ao sujeito ao qual a inscrição se refere. Também não há interesse público relativo aos dados pessoais guardados pela serventia; o interesse público reside apenas na atividade registral e no processamento de dados realizado pelo oficial de registro que, por ser dotado de

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autoridade, confere segurança ao tráfico de imóveis e ao crédito imobiliário. Por esse motivo, o oficial de registro tem o dever ético e legal de guardar sigilo profissional sobre as informações a que tem acesso no seu exercício profissional e específico de conservar funcionalmente os documentos físicos ou eletrônicos. A solução constitucional de delegação da função pública registral ao particular, independente em relação ao Poder Estatal, traduz uma garantia republicana que se reforça no contexto de proteção dos dados pessoais sob tutela do oficial de registro, proteção esta que vale, em particular, contra o próprio Estado. Por outro lado, em relação aos fundamentos da proteção de dados, nota-se que privacidade não se reduz a sigilo ou resguardo, ligando-se, antes, ao controle do fluxo adequado de informações pessoais em cada contexto. A proteção de dados funda-se juridicamente no direito individual de autodeterminação informacional, que se estrutura pela atribuição de prerrogativas (poderes) ao indivíduo na esfera pública para controlar o fluxo de dados pessoais em posse de terceiros do qual possam ser extraídas informações a seu respeito. O mecanismo para esse controle está no princípio de finalidade, assegurando que a aplicação de informações fique restrita ao objetivo que justificou a coleta dos dados pessoais. O STF reconheceu o status constitucional do direito fundamental à autodeterminação informacional, dado relevante no cotejo de conflitos entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e outras regras legais. O direito à autodeterminação informacional, em sua faceta democrática, tem como corolário a separação de poderes informacional, que incompatível com a livre BOLETIM 362

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circulação de dados entre órgãos da Administração Pública e circunscreve o poder de processamento de dados por cada órgão aos limites estritos de sua competência. A separação de poderes informacional é particularmente relevante frente à garantia republicana de delegação da função pública registral ao particular, o que traz limites ao compartilhamento de dados registrais com órgãos da Administração Pública. Para assegurar os deveres e o próprio papel republicano dos oficiais de registro em relação à proteção de dados pessoais, a Lei Geral de Proteção de Dados impõe revisão nas práticas registrais para que o processamento de dados pessoais se restrinja ao estritamente necessário para o exercício de suas competências, valendo observar que há limites para as prerrogativas de sujeitos de dados frente à função pública exercida pelos oficiais de registro. Para atingir esse objetivo traçamos as seguintes diretrizes e recomendações: (i) instituir Comitê junto ao ONR para planejamento da uniformização de práticas e estruturação de governança sobre proteção de dados no âmbito registral nacional; (ii) estruturar a governança em privacidade (art. 50 da LGPD), de preferência no âmbito do ONR, em razão de sua competência funcional e da necessidade de universalização das regras constantes em Política de Privacidade, inclusive quanto ao sistema (ambiente lógico dos Registros Imobiliários), para manutenção de nível adequado em proteção de dados em todas as Serventias no País; (iii) revisar a prática de lavratura de certidões por cópia reprográfica de matrícula, estabelecendo diretrizes uniformes sobre o conteúdo mínimo necessário, em diferentes contextos possíveis, para produzir o efeito de segurança e certeza sobre eventual transmissão do bem imóvel e, ao mesmo tempo assegurar a proteção de dados pessoais dos sujeitos com direitos inscritos; (iv) envidar esforços para a adequada regulamentação, junto ao CNJ e junto à Autoridade Nacional de Proteção de Dados, do compartilhamento de dados com o Sinter de modo a assegurar sua compatibilidade com o direito fundamental à autodeterminação informacional e com o princípio de separação de poderes informacional; (v) indicar para cada Serventia, o Encarregado pelo

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Tratamento de Dados Pessoais, ou planejar, junto ao ONR estrutura para que cada Serventia ou Grupos de Serventias possam ter Encarregado responsável por garantir o cumprimento da LGPD, com as atribuições especificadas neste Estudo; (vi) cada Serventia deve elaborar, com apoio e diretrizes firmadas pelo ONR, o registro das atividades de tratamento de dados pessoais (produto de mapeamento das referidas atividades) que permita visualizar o ciclo de vida desses dados, bem como as medidas de segurança técnicas e administrativas adotadas; (vii) O ONR deverá fazer, no âmbito do SREI, o mapeamento do fluxo de dados e informações trocadas entre Serventias e as Centrais Estaduais, de modo a assegurar observância da LGPD nesses fluxos; (viii) elaborar Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais sobre as atividades de tratamento de dados pessoais sensíveis, bem como para fins de avaliação para atividades que possam causar maior risco aos direitos e liberdades dos titulares; (ix) elaborar aviso de privacidade, atendendo aos requisitos dos arts. 9º e 23, I, da LGPD, em todos os canais de comunicação com os usuários, no âmbito das Serventias, das Centrais Estaduais e do ONR (SAEC), para dar transparência às atividades de tratamento de dados pessoais do Registro Imobiliário (em particular deve ser esclarecido em que hipóteses e para quais finalidades ocorre o compartilhamento de dados com órgãos públicos e de informações entre as Serventias, entre estas e as Centrais e o ONR); (x) providenciar canal de atendimento para exercício de direitos dos titulares de dados pessoais, conforme art. 18 da LGPD; (xi) apurar em quais atividades registrais, atuais ou potenciais (projetos futuros), haveria emprego de decisões automatizadas, nos termos da LGPD, de modo a garantir o direito à revisão previsto no art. 20 da LGPD; (xii) refletir e estudar a viabilidade de regulamentação da atividade registral, com a atribuição de novos papéis e competências que permitam aos oficiais de registro contribuir com a segurança e certeza das relações negociais e creditícias imobiliárias na esfera informacional da economia digital.


1. INTRODUÇÃO 2. PUBLICIDADE REGISTRAL 2.1. Caráter sui generis da publicidade registral 2.2. Natureza privada dos interesses e dados objeto de registro 2.3. Publicidade na Lei de Registros Públicos 2.3.1. Atos constitutivos pelo oficial de registro 2.3.2. Publicidade em relação à lavratura de certidões 2.3.3. Dever do oficial de informar as partes 2.4. Conclusões quanto à publicidade registral 3. PRIVACIDADE E FUNDAMENTOS DA PROTEÇÃO DE DADOS 3.1. A autodeterminação informacional 3.1.1. Autodeterminação informacional na Constituição Federal Brasileira 3.2. Separação de Poderes Informacional 3.3. Conclusões sobre fundamentos da proteção de dados 4. O REGISTRO IMOBILIÁRIO NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS 4.1. Enquadramento legal dos registros imobiliários 4.2. Controle de finalidade dos atos registrais 4.2.1. Controle de finalidade na inscrição 4.2.2. Controle de Finalidade na lavratura de certidões 4.3. Compartilhamento de dados com terceiros 4.3.1. Compartilhamento de dados com entidades privadas 4.3.2. Centrais Estaduais e o Operador Nacional de Registro 4.3.3.Compartilhamento de dados registrais com órgãos públicos 4.4. Governança e Privacidade 4.4.1. Encarregado pelo Tratamento de Dados Pessoais 4.4.2. Política de Privacidade 4.4.3. Registro das atividades de tratamento de dados pessoais 4.4.4. Relatórios de impacto à Proteção de Dados 4.4.5. Contratos com terceiros envolvendo tratamento de dados pessoais 4.5. Transparência 4.6. Garantia dos Direitos dos Titulares 4.7. Reflexão sobre o Registro Imobiliário diante da economia digital 5. DIRETRIZES E RECOMENDAÇÕES 5.1. Anexo: Legislação Citada

Direitos autorais e disclaimer O presente documento foi produzido por solicitação e direcionado ao Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB e ao Núcleo de Estudos Avançados sobre Registro de Imóveis Eletrônico – NEAR como material de suporte para reflexão sobre medidas a serem adotadas para adequação das normas de serviços do Registro de Imóveis. O conteúdo do documento é de inteira responsabilidade do Instituto LGPD, as opiniões neles expressas são independentes, podendo ou não serem adotadas pelo IRIB ou NEAR no curso de suas atividades.

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1. INTRODUÇÃO Na última década o sistema registral imobiliário passou por processo de modernização, com a implantação de novas tecnologias, em particular sistema de registro eletrônico, serviços registrais disponíveis online e criação de centrais de informações registrais, ligando diferentes serventias nos estados e no país. O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI, instituído pela Lei 11.977/2009, constitui importante avanço para a eficiência do sistema registral, não só por facilitar a identificação e processamento de matrículas, mas por permitir a realização de serviços e emissão de certidões eletrônicas em âmbito nacional. A digitalização dos serviços, porém traz riscos maiores em caso de vulnerabilidades na segurança do sistema ou caso as práticas dos registradores não sigam regras de governança estritas em relação à proteção de dados. A Lei 13.465/2017, por sua vez, instituiu o Operador Nacional do Registro, responsável pela implantação do SREI em âmbito nacional e pela governança do sistema, conforme Provimento do CNJ 89/19. Com a promulgação, em 2018, da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei 13.709/2018), com entrada em vigor prevista para 2021, os oficiais de registro e o sistema registral enfrentam o desafio de assegurar a proteção dos dados pessoais no processamento dos dados registrais sob sua guarda e no exercício de sua função pública. Nesse desafio surgem algumas questões críticas, que colocam em jogo a própria natureza da atividade registral. Dentre elas: a) haveria conflito entre a publicidade registral e o direito à privacidade dos indivíduos com direitos inscritos? b) a proteção de dados pessoais traria restrições ao compartilhamento de dados registrais com órgãos públicos? c) como lidar com solicitações em massa de certidões por empresas atuantes nos mercados digitais imobiliários? Haveria aqui desvirtuamento da função registral e risco para os direitos dos titulares de dados pessoais? d) a lei geral de proteção de dados traz prerrogativas para as partes com direitos inscritíveis para restringir dados pessoais ou de natureza íntima nas inscrições? e) há necessidade de revisão das práticas típicas dos oficiais de registro, como a emissão de certidões, para resguardar dados pessoais?

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Para enfrentar essas questões é necessário revisitar fundamentos do direito registral, como o significado e alcance da publicidade registral e recolocar qual a relação entre o oficial de registro e as partes com direitos inscritos e qual a relação entre o oficial de registro e o Estado, no contexto da proteção de dados pessoais que estão sob sua guarda. Também é importante aprofundar o entendimento sobre competências típicas dos registradores no exercício de sua função pública, de modo a compreender quais os limites entre a produção dos efeitos dos atos registrais e o resguardo de informações de natureza pessoal. O presente estudo tem por objetivo enfrentar essas questões desafiadoras, além de esclarecer quais seriam as práticas gerais que os oficiais de registro devem adotar para se adequarem à legislação de proteção de dados, na medida em que passam a ser enquadrados por essa legislação como controladores e operadores de dados pessoais. Também será analisado o papel do ONR frente a essas novas exigências trazidas pela LGPD. Ao final, o Estudo apresenta algumas recomendações e diretrizes para oficiais de registro e sugestões sobre o papel do ONR nesse contexto. Veremos que a legislação de proteção de dados pessoais não só é perfeitamente compatível com a leitura estrita da função pública registral, como reforça o papel republicano dos oficiais de registro ao proporcionar a validade e eficácia de direitos individuais, além de garantir a segurança de negócios jurídicos imobiliários privados, atividade na qual processa dados pessoais que devem ser resguardados, não só contra a atuação de terceiros, mas perante a intervenção pelo Estado. Ao final, traremos algumas reflexões sobre o sistema registral perante o novo mercado digital imobiliário, onde o valor está não mais nos bens físicos, mas na informação. Os Registros, detentores de dados fidedignos, teriam papel importante para a segurança das relações informacionais e de crédito que são geradas nesse mercado, mas o desempenho dessa função demandaria uma revisão mais profunda da arquitetura do sistema registral e das atividades do registrador. Este documento deve ser visto como um ponto de partida para iniciativas em diferentes frentes com o objetivo de adequação e revisão da atividade registral, que deverão contar com a participação ativa e a expertise dos próprios oficiais de registro, por meio da elaboração de novos estudos sobre regulamentações específicas, realização de debates e publicações.


O documento está organizado da seguinte forma. Na Seção 2, enfrentaremos as diferentes acepções da publicidade registral. Na Seção 3, examinaremos os fundamentos da proteção de dados pessoais, em particular o direito fundamental à autodeterminação informacional e os princípios de finalidade e de separação de poderes informacional. Na Seção 4, faremos o enquadramento da atividade registral na LGPD e veremos as implicações específicas do controle de finalidade sobre as atividades registrais típicas, bem como as iniciativas de governança, transparência e garantia de direitos dos usuários a serem adotadas pelos oficiais de registro. A Seção 5 sintetiza um conjunto de diretrizes aos oficiais de registro para conformação à LGPD e, ao final, na Seção 6, reproduzimos toda a legislação e atos normativos citados, de modo a convidar o leitor a refletir criticamente sobre as interpretações aqui propostas.

2. PUBLICIDADE REGISTRAL 2.1. Caráter sui generis da publicidade registral A publicidade como princípio de Administração Pública encontra assento na Constituição Federal de 1988 e possui duas acepções. A primeira consiste na “propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes” 1 aos administrados, ou seja, na “transparência dos comportamentos administrativos”2 e tem fundamento no dever de prestação de contas em todas as esferas e manifestações do Poder Público, considerando-se, como valor republicano, que “todo poder emana do povo” (CF 88, art. 1º §1º). Na segunda acepção, publicidade é a “divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos”3, consubstanciada no art. 37 da CF 88 e incs. A publicidade, aqui, tem o sentido de publicação ou de difusão para chegar ao conhecimento do público ato destinado a regular ou gerar efeitos sobre os administrados, não propriamente como obrigação, mas como condição constitutiva de validade e eficácia dos atos administrativos perante a sociedade como um todo. Como dever de transparência, a publicidade traz como reflexo o direito de acesso à informação, que pode 1 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 8a. ed., 1981, p. 76 2 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 30a ed., 2013, p. 117. 3 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 38a. ed., 2012, p. 93.

ser obtido por meio de transparência passiva ou ativa dos órgãos e agentes públicos ou de todos aqueles que atuem no exercício de função pública. A transparência passiva reside na prestação de informações sobre suas atividades, mediante requisição pelo interessado (assim o direito fundamental a receber informações de interesse particular, coletivo ou geral – art. 5º, inc. XXXIII – e de obter certidões para defesa de direitos e esclarecimento de situações, art. 5º, inc. XXXIV, b). Trata-se de uma proibição de manter secreta a ação administrativa, a não ser em hipóteses excepcionais em que o interesse público exigir, como na investigação criminal ou para proteger o sigilo e a privacidade individual. Já a transparência ativa consiste em franquear informações ao público (CF 88, § 2º do art. 216), podendo significar a obrigação de publicar informações sobre comportamentos específicos dos órgãos e agentes públicos (art. 8º da Lei de Acesso à Informação- Lei 12.527/2011). A Lei 6.015/1973 ou Lei de Registros Públicos – LRP estabelece já em seu art. 1º a espécie de publicidade característica das Serventias, que determina a sua finalidade própria, qual seja, conferir autenticidade, segurança e eficácia de atos jurídicos. Fica claro, portanto, que a acepção de publicidade registral é a de produção de efeitos na esfera jurídica, sendo, portanto, de natureza constitutiva. Um dever de natureza obrigacional é aquele derivado de norma que impõe determinado comportamento, cujo descumprimento pode levar a uma sanção. Um dever constitutivo, por sua vez, é derivado de regra que define determinada prática institucional e cujo descumprimento tem por consequência a invalidade ou ineficácia de atos jurídicos. A publicidade como transparência ativa é dada por um dever de natureza obrigacional, ao passo que a publicidade como condição de eficácia resulta de um dever constitutivo. Ainda que o oficial de registro possa estar sujeito a penalidades por omissão em seus deveres funcionais, trata-se de aspecto acessório, voltado para a boa organização e condução do sistema registral. A consequência imediata do descumprimento de seu dever funcional recai intrinsecamente sobre a constituição de validade e eficácia instabilizando relações jurídicas, fulminando a validade ou impedindo a produção de efeitos de atos jurídicos. Em ambas as acepções, como transparência e como condição de eficácia, a publicidade aplicada ao comportamento da Administração ou dos órgãos que compõem os Poderes Públicos tem o conteúdo de um dever de BOLETIM 362

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publicar no sentido de tornar público, i.e. levar ao conhecimento do público.4 Isso porque, como bem nota Carlos Ari Sundfeld, falta à Administração uma vida interior que lhe atribua um interesse próprio, de modo que sua atuação é sempre externa, para a promoção do interesse público.5 Essa consideração de Sundfeld coloca a publicidade registral em posição sui generis. A atividade é pública por consistir em função do Estado. É pública também no sentido de ser disponibilizada à generalidade dos cidadãos. E a publicidade de seus atos diz respeito à condição de eficácia, vale dizer conferir autenticidade, segurança e eficácia a relações jurídicas. Esse efeito da publicidade, porém, versa sobre relações de interesse particular, afeitos à vida privada. A atividade dos tribunais, em sua função judicial, também constitui e declara relações jurídicas particulares, de interesse privado, porém com duas distinções fundamentais em relação aos registros: uma quanto à forma da publicidade; a outra quanto ao agente que exerce a função pública. Quanto à forma da publicidade, tem-se que, na atividade judicial, a publicidade consiste no dever de publicação dos atos dos magistrados, no sentido de divulgação ao público em geral.6 Esse dever de publicidade decorre do comando constitucional da publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX e art. 93, IX da CF 88). Na interpretação ampla conferida pelo STF, 7 essa publicidade abrange todas as ocorrências processuais constantes nos autos, cuja consulta, é livre ao público, com exceção dos casos sob sigilo para proteção da intimidade, sendo, hoje, na maioria dos tribunais, inclusive disponibilizada em arquivos eletrônicos acessíveis online. Somente os atos decisórios, porém, são objeto de divulgação pelos canais oficiais de publicação. Já na atividade extrajudicial, registral, não há propriamente publicação, mas um dever de tornar cognoscível a qualquer interessado a disposição de interesse privado, por meio da emissão de certidões, nas quais os oficiais 4 Sobre a distinção entre deveres obrigacionais ou em sentido estrito e deveres constitutivos, ver von Wright, G.H. Norm and Action: a Logical Inquiry, Routledge, 1971, Cap. I. 5 Sundfeld, Carlos Ari. Princípio da Publicidade Administrativa (Direito de Certidão, Vista e Intimação), in Revista de Direito Administrativo 199:97-110, jan./mar. 1995); no mesmo sentido Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, Atlas, 2002, p. 75. 6 Jurisprudência STF e Lei 2019 acesso aos documentos 7 Voto Min. Luiz Fux na ADI 4414/AL

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de registro examinam os documentos e comprovam ou autenticam a existência de determinadas relações jurídicas privadas. Não há uma consulta livre aos livros ou dados de registro, tal como ocorre no judiciário, onde os autos processuais não sigilosos ficam disponíveis para acesso ao público, inclusive por meio eletrônico. Na distinção precisa de Pugliatti, a publicação, presente na atividade judicial, produz uma condição de difusão fática, da qual decorre o resultado de alcançar o conhecimento de um número indeterminado de pessoas. Já o efeito produzido com os mecanismos organizados pelas Serventias para emissão de certidões, o efeito fático produzido é a “possibilidade permanente e ao máximo generalizada de se procurar o conhecimento da relação jurídica”. Quanto ao agente, na atividade judicial tem-se agentes ou órgãos públicos no exercício das funções do Estado. Já na atividade extrajudicial dos registros, essa função pública é desempenhada por delegação ao particular, profissional de Direito, que é investido na função de oficial de registro. É certo que paira debate doutrinário acerca da figura jurídica do oficial de registro, no seu papel de delegatário de função pública. O debate liga-se à responsabilização por danos causados pela atividade registral. Aqueles que entendem ser o oficial de registro espécie de agente público8 defendem que a responsabilidade recai sobre o Poder Público (com base no art. 37, § 6º da CF 88). Aqueles que enxergam na atividade registral apenas o exercício de uma função pública em caráter e regime privados, defendem a responsabilidade civil do oficial de registro, na estrita leitura do art. 236, caput da CF 88 e do art. 22 da Lei 8.935/94).9 O STJ10 chegou a referendar a posição de Hely Lopes Meirelles11, segundo a qual a responsabilidade originária é do oficial de registro ou notário, respondendo o Estado de modo subsidiário. Mas, recentemente, o STF decidiu pela responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que causarem danos a terceiros no exercício de suas funções.12 Porém, a equiparação para fins de responsabilização 8 Ceneviva, W. op. cit., p. 53 e ss. 9 Afonso da Silva, J. op. cit. p. 898 e ss. 10 Resp 1.163.652-PE, Rel. Min. Herman Benjamin, 01.06.2010. 11 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 29.ed. Malheiros, 2004, p. 222. 12 STF, RE 842.846, Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux, j. em: 27 de fevereiro de 2019.


do Estado, obviamente, não retira o caráter privado dos serviços registrais, nem transforma os oficiais de registro em funcionários ou servidores públicos.13 Sua atividade continua organizada e exercida em caráter privado, remunerada pelos particulares e não pelos cofres públicos, razão pela qual, diferentemente do que ocorre com o Poder Judiciário, não se sujeita aos deveres de transparência ativa decorrentes da Lei de Acesso à informação (art. 1º). A fiscalização da atividade compete apenas ao Poder Judiciário, mas o oficial goza de independência jurídica no seu mister (art. 28 da Lei 8.935/94). Isso porque, por força do art. 236 da CF 88, não pode ser exercido pelo Poder Público, nem direta, nem indiretamente, mas confiada ao profissional de Direito, com outorga pelo Poder Judiciário, por meio de concurso público de provas e títulos (CF 88 art. 236, par. 2º e art. 2º da LRP).14 Com isso, a CF 88 marca a natureza jurídica da atividade registral, distinguindo-a da atividade administrativa e mantendo-a independente, livre de condicionamentos de ordem política, conforme preconizado pelo art. 28 da Lei 8.935/94. Nota importante, pois a função pública exercida pelos oficiais de registro, ao processar dados e interesses de natureza privada, protege tais relações inclusive da ação Estatal, donde sobressai sua natureza republicana e relevância para afirmação da soberania do cidadão. Veremos a seguir que esse aspecto sui generis das Serventias – com sua função pública, mas constitutiva da eficácia de relações privadas e confiada a particular, inclusive contra a atuação do Estado – tem implicações relevantes sobre os deveres relacionados à publicidade registral.

2.2 Natureza privada dos interesses e dados objeto de registro Para a compreensão da publicidade registral, notadamente em confronto com a autodeterminação informacional do cidadão e proteção de seus dados pessoais, é importante afinar o entendimento dessa relação entre o oficial de registro, o Estado e o indivíduo que tem seus dados registrados. A garantia republicana de uma atividade independente dos Poderes do Estado e subordinada apenas à ordem jurídica, começa pelo dever de conservação e segurança dos documentos, mas a ela não se limita, alcançando 13 ADI 2602, Relator Ministro Marco Aurélio. 14 Exceção das Serventias extrajudiciais oficializadas antes da CF88.

também a responsabilidade pelo processamento dos dados que se extraem desses documentos para cumprimento de seus deveres funcionais e o tratamento das informações deles decorrentes. Importante aqui distinguir entre os documentos, dados e informação. Documentos são o suporte físico ou eletrônico dos dados. Os dados, que podem ser definidos como quebras de uniformidade perceptíveis pelo humano ou pela máquina, cuja combinação é capaz de gerar significado (e.g. símbolos em tinta em uma folha em branco, furos em cartões ou sequências de bits).15 Informação é o conteúdo semântico, o significado extraído do processamento dos dados. Os documentos têm sua guarda e conservação confiada às Serventias (art. 24 da LRP, art.30, incs. I e VI do Código Civil e art. 46 da Lei 8.935/94), o que significa não só o dever de guardar os papéis ou suportes físicos dos dados, mas o dever de organização, sistematização e racionalização dos documentos de modo a facilitar sua busca (art. 25 da LRP), o que já implica deveres de segurança em relação ao tratamento de dados.16 Em particular, com a digitalização dos serviços, esse processamento, embora mais eficiente, atendendo ao disposto pelo art. 37 da Lei 11.977/2009, traz riscos adicionais em relação aos direitos dos cidadãos sobre seus dados pessoais. Daí a necessidade de rotinas tecnológicas que propiciem segurança contra riscos de vazamento (segurança de dados), conforme regulamentação própria.17 Assim, resta claro que o dever de tutela não se limita à conservação de documentos ou suportes físicos, mas alcança a guarda dos dados e do conteúdo semântico extraído dos documentos, com cautelas inerentes à criação de procedimentos eficientes e seguros para o acesso à informação pelo oficial de registro no exercício de suas funções. Feitas essas distinções, esclareça-se que os dados guardados pelas Serventias não são públicos no sentido de uma res nullius, de livre acesso ao público, nem no sentido de propriedade Estatal, da qual o Poder Público 15 Floridi, Luciano. Semantic Conceptions of Information. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2019; https://plato.stanford.edu/archives/sum2019/entries/information-semantic/ 16 Walter Ceneviva, p. 50 17 Recomendação CNJ/14 que institui o modelo nacional para criação e implantação do SREI e após a criação do Operador Nacional de Registro- ONR, pela Lei 13.465/2017, o Provimento CNJ 89/2019, que dispõe sobre regulamentação do SREI e ONR, notadamente no art. 8º, §1º, in verbis: “§ 1º O SREI deve garantir a segurança da informação e a continuidade da prestação do serviço público de registro de imóveis, observando os padrões técnicos, critérios legais e regulamentares, promovendo a interconexão das serventias.”

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poderia dispor, conforme interesse público. A Lei Geral de Proteção de Dados veio sedimentar normativamente esse traço, ao referir-se à “titularidade” do sujeito ao qual o dado se refere sobre seus próprios dados. Essa titularidade também não se confunde com propriedade, pois a própria LGPD limita a liberdade de usar fruir e dispor livremente dos dados, uma vez que há diversas condições autorizadoras de sua utilização por terceiros, que independem da manifestação de vontade do titular. Conforme acentua Mota Pinto, a esfera de intimidade e vida privada à qual estão ligados os dados pessoais é melhor caracterizada como direito ao livre desenvolvimento da personalidade, muito embora, em relação a outros direitos da personalidade, haja maior flexibilidade em relação à possibilidade na disposição de dados pessoais, com exercício de autolimitação.18 Portanto, os dados sob guarda dos oficiais de registro concernem a direitos de propriedade e direitos da personalidade dos sujeitos aos quais se referem. São dados individuais privados e versam sobre relações jurídicas de natureza privada. O interesse privado permanece mesmo em se tratando de direitos reais, como no caso dos registros imobiliários. Isso porque, os dados ali guardados não são de interesse imediato e geral do público, mas apenas podem vir a ser objeto de interesse, em contexto particular, para travar relações jurídicas relativas a determinado bem. É de fundamental importância compreender este aspecto. Ele permite compreender a razão da solução constitucional republicana em manter a atividade independente do próprio Estado e também sobre onde recai o interesse público e, consequentemente, o sentido de publicidade no registro de imóveis. O interesse público recai não sobre os documentos ou dados registrais, que estão guardados, mas sobre a garantia que o sistema registral oferece para conferir segurança, certeza e autenticidade sobre a propriedade de imóveis ou existência de ônus ou gravames sobre os mesmos, o que é fundamental para o tráfico de bens e direitos. Portanto o interesse público e o sentido de publicidade estão ligados a um sistema de processamento dos dados pelos oficiais de registro, que é dotado de confiança.

2.3. Publicidade na Lei de Registros Públicos Nos itens anteriores verificou-se que a publicidade re18 Mota Pinto, P. Direitos da Personalidade e Direitos Fundamentais: estudos. GestLegal, 2018, p. 679 e ss.

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gistral tem caráter sui generis e opera sobre dados cuja titularidade não é pública, mas que refletem direitos de propriedade e de personalidade dos indivíduos referidos no registro e versam sobre relações privadas, de interesse privado. Cabe especificar agora onde se localiza o interesse público em relação ao processamento desses dados e, por decorrência, qual o alcance e sentido da publicidade neste ato de processamento necessário ao exercício de suas funções legais. Na LRP, art. 1º, a publicidade vem implícita na própria finalidade da atividade registral em conferir autenticidade, segurança e eficácia a atos jurídicos e é mencionada explicitamente no art. 1º da Lei dos Serviços Notariais e de Registro (Lei 8.935/94). Na verdade, a autenticidade, segurança e eficácia são produzidas perante o público, não pela divulgação dos dados registrais, mas antes pela própria confiança na atividade registral, ou presunção de veracidade dos juízos jurídicos do oficial de registro que constituem e verificam a existência de relações jurídicas. Em outras palavras, a publicidade está exatamente na chamada fé pública, da qual se reveste o Registro. É a fé pública que leva os cidadãos a inscrever o título de aquisição de imóvel no Registro, de modo a tornar a propriedade oponível a terceiros de boa-fé e que também leva o cidadão a conferir a situação jurídica do imóvel para se assegurar da validade do negócio imobiliário que pretende realizar. Assim, o Registro deve dispor de mecanismo para que a situação dos imóveis possa ser conhecida. Esse mecanismo vem descrito nos arts. 16 e 17 da LRP, cujos textos são abaixo transcritos: Art. 16. Os oficiais e os encarregados das repartições em que se façam os registros são obrigados: 1º a lavrar certidão do que lhes for requerido; 2º a fornecer às partes as informações solicitadas. Art. 17. Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. Há nessas regras, três facetas a serem exploradas. Primeiro, o reconhecimento público da constituição de direitos pelos atos dos oficiais de registro. Segundo, o mecanismo pelo qual o Registro dá conhecimento ao público de atos, posições e relações jurídicas. Terceiro a atividade de assessoramento do oficial de registro às partes. A seguir, examinaremos cada uma dessas facetas


para verificar que, em nenhuma delas, há divulgação ao conhecimento público dos dados objeto de registro.

2.3.1 Atos constitutivos pelo oficial de registro Os efeitos constitutivos de direitos, em particular do direito de propriedade, ou das limitações e ônus sobre a propriedade, instituídos pelos atos dos oficiais de registro, tem alcance erga omnes em função da fé pública, da qual o oficial está investido. Essa fé pública não se refere propriamente a um estado mental subjetivo, que possa ser faticamente percebido, de crença ou confiança coletiva dos cidadãos no funcionamento do sistema ou do processamento dos dados pelos registradores, muito menos de conhecimento sobre o conteúdo dos registros. A fé pública tem um sentido estritamente normativo, de presunção validamente gerada por meio de atos dotados de autoridade do oficial de registro, na qual é investido com a outorga pelo Poder Público. Vale um passo atrás para entender o significado de fé pública, onde reside a publicidade registral, e qual o produto desse ato institucionalizado do oficial de registro. Os Registros Públicos são encarregados da configuração da realidade jurídica – o “mundo do dever-ser”, na expressão Kelsen ou o “mundo jurídico” (Rechtswelt) na expressão de von Tur – que é constituída por um complexo de posições e relações jurídicas derivadas de regras. Tais posições, relações jurídicas e direitos possuem uma realidade objetiva, muito embora não se reduzam a qualquer fenômeno físico. Assim, ao afirmarmos que alguém é proprietário, não nos referimos ao domínio de fato sobre um bem, mas a um conjunto de vínculos obrigacionais. De acordo com Searle,19 essa realidade decorre de uma crença coletiva, fruto de uma prática social fundada em regras constitutivas vinculantes, que estipulam o que conta como existente no contexto de uma instituição: são os chamados “fatos institucionais”. Esses fatos, embora não sejam uma realidade física, são objetivos, pois independem de valorações subjetivas. E são objetivos justamente por serem criados por atos dotados de autoridade que instanciam aquelas regras constitutivas objetivamente válidas. Esses atos de oficiais investidos de poder são chamados de “atos performativos”. Por exemplo, o registro de casamento é um ato performativo que constitui o fato institucional, segundo o

qual determinada pessoa muda de status civil, com o efeito, dentre outros, de restringir sua capacidade jurídica de disposição de bens. O registro de nascimento cria a representação de determinado indivíduo como pessoa natural, que passa a ser reconhecido como sujeito de direito. Da mesma forma, a inscrição do título de aquisição na matrícula do imóvel não altera qualquer aspecto físico do bem, apenas a posição jurídica daquele referido na inscrição, que passa, então, a ser seu legítimo proprietário. Desse modo, podemos ver a atividade registral como um conjunto de atos performativos, investidos de autoridade, que criam fatos institucionais e, assim, inscrevem novos dados na realidade jurídica. Esse é seu papel institucional, ao lado de sua responsabilidade por guardar dados jurídicos, materializados em seu suporte físico ou eletrônico. Não é função do registrador divulgar as informações contidas nos dados sob seus cuidados, muito pelo contrário. Sua função pública consiste em emitir juízos jurídicos em sua maioria sobre relações não controvertidas, a partir da verificação de elementos fáticos da análise de dados sob sua curadoria, juízos estes que têm por efeito inscrever novos dados na realidade jurídica, quais sejam, a constituição de direitos ou de meios de prova. Por meio dessa função pública delegada pelo Estado, propicia segurança, autenticidade e eficácia às relações jurídicas. Vale dizer, não é a divulgação fática ou o fato de terceiros tomarem conhecimento de determinado fato ou relação com determinado bem que permite o reconhecimento de efeitos na esfera jurídica. É o ato institucionalizado e formal de registro que gera o efeito normativo de publicidade, tornando o ato jurídico imediatamente oponível a terceiros de boa-fé. Esse efeito jurídico de força probante da formalidade registral é bem-apanhado por Serpa Lopes, quando destaca não ser essencial a publicidade de fato para a inscrição, mas que, ao contrário, a “inscrição é simples forma de publicidade”. Completa a reflexão destacando que, com o registro “é a sociedade juridicamente organizada que, por intermédio do funcionário competente, dá publicidade”.20 A alegoria de Serpa Lopes, que vê o oficial de registro como longa manus da própria sociedade organizada,ilumina tanto o caráter republicano do Registro, quanto a natureza estritamente institucional e jurídica da publicidade registral.

19 Searle, J. R. The Construction of Social Reality, Free Press, 1995.

20 Serpa Lopes, M. M. Tratado dos Registros Públicos, v.1, 1938, pp. 44-45.

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2.3.2. Publicidade em relação à lavratura de certidões O efeito de inserção de novos dados na realidade jurídica, essência da atuação do oficial de registro e da publicidade registral, não se manifesta somente quando o registro é constitutivo de uma posição ou direito, como na inscrição em matrícula de imóvel, mas também quando o registro tem natureza comprobatória de determinado fato ou ato, na lavratura de certidões. A esse respeito, os arts. 16 e 17 da LRP explicitam o dever do registrador, ao lado do correlato21direito do cidadão: (i) obrigam os oficiais encarregados dos Registros a lavrar certidão do que lhes for requerido; (ii) atribuem direito a qualquer cidadão de requerer a certidão, independentemente de comprovação de interesse jurídico no objeto do registro. Pois bem, ao lavrar certidão, o registrador não publica ou informa o conteúdo de dados sobre propriedade, hipoteca, etc., ou ainda, sobre a identidade do proprietário ou regime matrimonial com seu cônjuge. Em primeira linha, o oficial autentica e, assim, cria meio juridicamente válido de prova de determinada situação ou relação22. Apenas por via reflexa informa sobre a situação jurídica, ou seja, traz no conteúdo do ato, informações sobre fatos institucionais e, por vezes, fatos brutos relativos à pessoa (e é por conta dessa informação reflexa que o oficial de Registro, como veremos adiante, deve adotar cautelas diante da Lei Geral de Proteção de Dados). Em todos os seus atos constitutivos e comprobatórios, o oficial do registro emite juízo baseado em técnica jurídica e, investido de fé pública – de autoridade – cria fatos institucionais. Com isso se entende a localização dos Cartórios na esfera do Poder Judiciário, modelo adotado no Brasil, a exemplo do modelo germânico. Na tradição brasileira, as Serventias faziam parte da organização interna do Judiciário. Com o fim da oficialização, pela CF 88, art. 236, embora a atividade seja delegada ao oficial concursado para exercê-la em regime privado e independente, sob sua conta e risco, resta o poder normativo e fiscalizador do Poder Judiciário.23 21 Sobre a análise da correlação entre direitos e deveres Hohfeld, Wesley. “Some Fundamental Legal Conceptions as Applied in Legal Reasoning,” 23 Yale Law Journal 16 (1913). 22 Para usar a metáfora de Walter Ceneviva, a autenticação “corresponde ao sopro que lhe dá vida: até que ocorra a certidão é um papel qualquer. Autenticado, o papel que repercute na esfera do direito tem fé pública, resguarda interesse jurídico.” Ceneviva, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada, op. cit. p. 43. 23 Afonso da Silva, José. Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 2014, p. 897 e ss.

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Isso porque tanto os juízes e tribunais, ao emitir juízo sobre litígios, quanto os oficiais de Registro, em sua função extrajudicial e primordialmente não litigiosa, têm o papel de configurar relações jurídicas, constituindo-as ou declarando-as. Aqui reside a diferença fundamental, como destaca Loureiro, entre dados registrais e os dados cadastrais do registro Administrativo (e.g. cadastro de imóveis municipal). Este último tem por objeto a compilação para colocar certos dados a serviço de um órgão público. Mas a Administração apenas informa, não emite juízo: “a atividade é somente de apreciação ou constatação, não há valoração baseada em técnica jurídica”.24 Falta à atividade cadastral a fé pública, o exame de qualificação dos títulos e o juízo técnico, que tornam válidas relações e criam meios de prova. Mais do que isso, a atividade registral não pode ser “administrativizada”, sob pena de se ofender sua forma republicana eleita pela CF 88 (art. 1º e art. 236 da CF 88). Como já destacado acima, o mecanismo de acesso por certidões opõe-se à difusão ou a levar ao conhecimento do público o conteúdo do Registro conhecido por todos. Trata-se do mecanismo chamado pela doutrina de cognoscibilidade, em que se torna de fato possível, ao interessado, conhecer a situação jurídica do bem, por meio da certidão de propriedade e ônus do imóvel. Porém, não é só a diferença fática do mecanismo de publicação o que importa. Como chama a atenção Pugliatti,25 que fala em cognoscibilidade jurídica, o que está em jogo para a produção da publicidade é a contraposição de um conjunto de obrigações. Nesse jogo, o conhecimento efetivo é irrelevante, pondo-se em funcionamento “um procedimento artificial, cuja estrutura e disciplina estão plenamente no domínio do direito” (p. 401). No termo “cognoscibilidade jurídica” reside a presunção jurídica que torna oponível a terceiros de boa-fé o conteúdo do registro. Ela é formada por um conjunto de vínculos. De um lado, a obrigação do oficial de registro em lavrar certidão requerida, sob pena de sanção. De outro, e aqui o sentido jurídico da oponibilidade do direito aos terceiros de boa-fé, o dever que recai sobre os terceiros de verificar a situação jurídica das pessoas ou bens de seu interesse, como condição de sua validade 24 Loureiro, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática 5ª ed., Gen, 2014, p. 288. 25 Pugliatti, Salvatore, La trascrizione: la publicità in generale, Giuffré, 1957. Ver também sobre o mecanismo de cognoscibilidade e o sentido de publicidade jurídica. Hernández Gil, F. Introducción al derecho hipotecário, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1963, v. 3.


ou eficácia do negócio imobiliário que pretende realizar (exemplo, a invalidade de aquisição de imóvel sem o consentimento do cônjuge, quando não é verificado o estado civil do proprietário). Ou seja, a cognoscibilidade que traz o efeito de publicidade também não é fática, mas jurídica. Como reza a fórmula na doutrina alemã, o “conhecer” (Kennen) da publicidade registral não se equipara a um “possível conhecer” (Kennenkönnen), mas a um “dever conhecer” (Kennenmüssen). E esse dever é constitutivo, ou seja, não se trata do dever de todos buscarem a informação, mas da invalidade dos negócios individuais praticados para aqueles interessados que não obtiveram a devida prova da situação jurídica do imóvel. Com isso, fica claro que a publicidade registral nada tem a ver com a difusão de informações sobre dados relativos à propriedade ou personalidade das partes de determinado registro. Ela é traduzida na fé pública, na confiança presumida, de que os atos do oficial de registro constroem e refletem a realidade jurídica, razão pela qual os direitos e status e atos jurídicos registrados são oponíveis a todos. Também a certidão lavrada pelo oficial de registro não tem por finalidade a difusão da informação: é um ato performativo que cria um fato institucional, qual seja, um meio válido de prova para aquele interessado em realizar negócio jurídico relativo a determinado bem.

2.3.3. Dever do oficial de informar as partes Resta examinar o dever do oficial de registro de informar as partes. Trata-se aqui da função de assessoramento do oficial de registro. Portanto, ao lado de sua atividade primordial de configurar a realidade jurídica, a legislação registral também impõe obrigações ao oficial de Registro consistentes em fornecer informações. Nos termos do art. 16, inc. II, da Lei de Registros Públicos, o oficial deve fornecer às partes a informação solicitada. Com o termo “partes”, a Lei se refere àqueles que figuram no registro, de modo que a informação e o assessoramento, nesse caso, também não consistem em divulgação ao público ou a terceiros sobre os dados pessoais sob a guarda da Serventia. As partes do registro, aqueles que nele figuram, distinguem-se de “qualquer pessoa”, mencionada no art. 17, que se refere aos usuários, em geral, do serviço registral, e também dos “interessados”, previstos no art. 13, inc. II, art. 212, da LRP e demais regras que se refiram àqueles que podem instar ou provocar a atuação do registrador, mediante

demonstração de interesse específico. Segundo Ceneviva, “parte é a pessoa em nome de quem é feito o registro. Só ela pode ser informada. Informação é simples notícia dada a todo aquele que, tendo interesse no ato jurídico correspondente ao registro, nele figura.” 26 Não poderia ser diversa a interpretação, pois, como visto, não só o mecanismo da publicidade jurídica não se confunde com dar acesso geral e irrestrito a informações,27 como também os dados e interesses objeto do registro são de natureza privada. Já foi visto acima, em relação à Lei de Acesso à Informação, que a privacidade e pessoalidade do interesse é um limite até mesmo ao dever de transparência da Administração Pública. E também foi esclarecido que os dados extraídos dos documentos sob a guarda dos oficiais de registro não são públicos. Pelo contrário, os documentos possuem referências pessoais, cuja “titularidade” pertence aos indivíduos neles referidos. Justamente pelo oficial de registro lidar integralmente com o conteúdo de situações e relações de interesse privado, pessoais e por vezes íntimos e sensíveis – como ocorre no caso de registro em matrícula de imóvel da mudança de nome do titular do bem, por exemplo, em função de mudança de sexo – é que Walter Ceneviva elenca como dever ético geral do oficial a dignidade funcional que “se vincula diretamente ao dever de guardar sigilo sobre a documentação e aos assuntos de natureza reservada, conhecidos no exercício da profissão”.28 Trata-se não apenas de dever ético, mas uma obrigação legal de guardar sigilo sobre o conteúdo da documentação sob sua guarda, conforme art. 30, inc. VI da Lei 8.935/94. Esse sigilo vale para terceiros em geral, que não às partes. Já às pessoas legalmente habilitadas, dentre as quais as partes referidas na inscrição, deve-se facilitar o acesso à documentação, conforme inc. XII do mesmo dispositivo Vale lembrar que, com exceção a esta atividade de assessoramento, necessariamente restrita às partes, não é atividade do registrador informar interessados, pois sua atividade não é cadastral. Transbordar esses limites e oferecer acesso livre aos documentos por terceiros ou informar sobre seu conteúdo sob forma diversa daquelas 26 Ceneviva, W. Lei de Registros Públicos Comentada, Saraiva, 2002, p. 39. 27 “O registro jurídico tem por finalidade conferir publicidade, validade e certeza às relações jurídicas (art. 1o, Lei 8935/94) e, portanto, não se limita a recolher e publicar simples informações, por exemplo, a titularidade de um direito, mas afirma, ou pelo menos faz presumir, que aquele que consta em s us livros como titular do direito assim o é efetivamente” Loureiro, L. G. op cit. p. 288.” 28 Ceneviva, W. Lei de Registros Públicos Comentada, Saraiva, 2002, p.58.

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previstas em lei significa violação pelo oficial de registro ao dever de guarda dos documentos e processamento dos dados para a finalidade específica de sua função pública, que é constituir e produzir meios de prova sobre relações jurídicas, conferindo autenticidade e eficácia às relações jurídicas e viabilizando assim a segurança necessária para as relações negociais. O compartilhamento de dados ou acesso a informações conferido por registradores a órgãos públicos como o IBGE e o INSS, além de outras entidades como o Sistema Integrado de Informações Territoriais será abordado mais adiante, frente às determinações trazidas pela LGPD e aos desdobramentos do direito fundamental à autodeterminação informacional, recentemente referendado pelo Supremo Tribunal Federal.

2.4. Conclusões quanto à publicidade registral As considerações precedentes permitem fixar o seguinte entendimento: (i) em sentido jurídico estrito, publicidade registral não implica publicação indiscriminada, ou a difusão dos dados registrais imobiliários para efetivamente levar a situação do imóvel ao conhecimento do público em geral, nem mesmo significa disponibilização para livre acesso e consulta pelos interessados, mas apenas diz respeito à fé pública de que se reveste o Registro e à consequente eficácia e oponibilidade perante quaisquer terceiros de boa-fé dos títulos e posições jurídicas inscritas. (ii) o acesso público aos dados registrais é realizado pelo mecanismo de cognoscibilidade, que tem também um sentido normativo, traduzido no “dever conhecer”, ou “dever de fazer prova” imposto aos terceiros como condição de eficácia para atos ou negócios jurídicos de seu interesse, no caso, os negócios jurídicos imobiliários; (iii) a lavratura de certidões não tem por finalidade veicular informações, mas produzir meio jurídico de prova; (iv) a atividade dos oficiais de registro não se confunde com atividade administrativa cadastral de sistematização e disponibilização de informações; (v) os dados pessoais extraídos dos documentos sob controle das serventias não são públicos no

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sentido de res nullius, nem são de propriedade do Estado; sua titularidade (direito da personalidade) pertence ao sujeito ao qual inscrição se refere. (vi) também não há interesse público relativo aos dados pessoais guardados pela serventia; o interesse público reside apenas na atividade registral e no processamento de dados realizado pelo oficial de registro que, por ser dotado de autoridade, confere segurança ao tráfico de imóveis e ao crédito imobiliário; (vii) oficial de registro tem o dever ético e legal de guardar sigilo profissional sobre as informações a que tem acesso no seu exercício profissional e específico de conservar funcionalmente os documentos físicos ou eletrônicos; (viii) a solução constitucional de delegação da função pública registral ao particular, independente em relação ao Poder Estatal, traduz uma garantia republicana que se reforça no contexto de proteção dos dados pessoais sob tutela do oficial de registro, proteção esta que vale, em particular, contra o próprio Estado.

3. PRIVACIDADE E FUNDAMENTOS DA PROTEÇÃO DE DADOS No confronto entre publicidade registral e privacidade, já vimos que a primeira não significa dever de difundir informações extraídas de dados pessoais, ou levar ativamente ao conhecimento de terceiros essas informações, nem mesmo disponibilizar os dados para consulta livre e indiscriminada. Pelo contrário, há um dever republicano, que incumbe ao oficial de registro, de guardar esses dados e de processá-los somente para a finalidade legal de constituir direitos e comprovar relações jurídicas, guardando o sigilo profissional sobre essa atividade. Nesta Seção vamos esclarecer que o conceito de privacidade que embasa a legislação de proteção de dados também não se confunde com sigilo ou resguardo de informações.

3.1. A autodeterminação informacional O conceito de privacidade é multifacetado e admite várias acepções ou dimensões, sendo o resguardo pessoal, apenas uma delas. Esse primeiro sentido, ligado à exposição pessoal em publicações na mídia impres-


sa, discutida no célebre texto de Warren e Brandeis29 (“right to be left alone”), evoluiu como reflexo de outras ameaças trazidas pela evolução das comunicações. Assim é que, com o advento do processamento computacional, a proteção à privacidade ultrapassou a dimensão física de não-exposição para alcançar um sentido informacional (privacidade informacional) e reconhecer a necessidade de “controle da informação” contra o cruzamento de dados para inferências sobre indivíduos e a formação de dossiês permanentes nos arquivos computacionais.30 Já com o advento e largo uso da internet (rede mundial de computadores), para a qual se transferiu a esfera pública comunicacional, a identidade individual ganhou uma representação virtual, ou seja, o indivíduo virtual se confunde com o complexo de informações a ele referentes na infosfera.31 Aqui, a privacidade se incorpora ao valor da construção livre da personalidade individual.32 Essa identidade virtual, construída no ambiente informacional, pode implicar restrições a direitos e a acesso a bens e afetar a própria construção interna da identidade, na medida em que a vigília e a circulação de informações sem salvaguardas podem inibir o comportamento na esfera pública e no relacionamento social. Daí o reconhecimento da necessidade de participação ativa do indivíduo na sua própria representação na esfera informacional, ou seja, uma prerrogativa individual em relação a sua auto-apresentação (Selbstdarstellung)33 na sociedade

29 Warren, S.D. e Brandeis, L.D. The Right to Privacy, Harvard Law Review, 4/5, p. 193-200. 30 Westin, A.F. e Solove, D.J. Privacy and Freedom, New York, IG Publishing, 2015. 31 Floridi, L. The 4th Revolution: how the Infosphere is Reshaping Human Reality, Oxford University Presse, 2014. 32 Hildebrandt, M, Claes, E., Duff, A. e Gutwirth, S. Privacy and Identity, In Privacy and the Criminal Law, Antwerp/Oxford, 2006, p. 43-58. 33 Gabriele Britz chama a atenção para a relação entre liberdade de ação exterior e desenvolvimento da personalidade interior. Para ela o art. 2, inciso 1, da Constituição alemã, que fundamenta a informationalle Selbstbestimmung também protegeria a liberdade de desenvolvimento interno da personalidade (Freiheit innerer Selbstentfaltung). Com isso para ela a informationalle Selbstbestimmung também serviria – ao lado de proteger contra discriminações – “como um instrumento de implementação do direito de cada um a sua autoapresentação na esfera pública (Recht auf Selbstdarstellung): “Das Recht auf Selbstdarstellung richtet sich„gegen diejenigen Einschränkungen des inneren Freiraums (…), die aus (der Erwartung von) fremden Identitätserwartungen resultieren.” p. 67 ss. Gabriele Britz, Freie Entfaltung durch Selbstdarstellung, Tübingen 2007. Ver também Gerda Müller, Persönlichkeitsrecht als Schutz vor unerwünschter Berichterstattung? In: Zeitschrift für Rechtspolitik 2009, p. 189 ss.

da informação34. Como coloca Nissembaum,35 o valor percebido na privacidade e na construção da personalidade informacional não está na restrição do fluxo de informações. Esse fluxo é desejado. O valor está na participação individual na determinação do fluxo adequado da informação, que é determinado contextualmente (qual tipo de informação, em relação a qual agente, em qual contexto, pode ser de que forma transmitida). A preocupação que motiva a proteção jurídica abrange, portanto, todas essas dimensões, sendo construída por um conjunto de salvaguardas frente às ameaças e aos desafios colocados pela tecnologia, quais sejam: (a) o elevado volume de informações disponíveis na web; (b) a facilidade de acesso a essas informações; (c) a interoperabilidade e agregação de dados para estabelecer inferências sobre indivíduos, cuja ameaça é maior quando se traduz em interligação entre sistemas de informação; (d) o valor econômico dessas informações com atuação dos data brokers e empresas de big data analysis (e) emprego de modelos de inteligência artificial para tomada de decisões automatizadas, construção de perfis (profiling) e avaliação de risco (scoring) (f) riscos de discriminação em representações informacionais de indivíduos. Por isso, como aponta Solove,36 o cerne do problema está na forma como o controle de dados pode afetar a autonomia individual, primeiro, quando há falta de transparência sobre quais informações pessoais são detidas por terceiros ou como essas informações são utilizadas e, segundo, quando o controle de dados abre espaço para a interferência estatal na formação de decisões individuais. Diante desse quadro, Kai von Lewinski37 chama a atenção para a imprecisão do termo “proteção de dados” para descrever o objeto e alcance da proteção jurídica. Primeiro, porque o que se protege não é o dado, i.e. não se trata de segurança contra “vazamento” de dados. O objeto de proteção é o indivíduo diante do processamento de dados. Também não é do “dado” que parte a ameaça ao indivíduo, mas da aplicação de informações extraídas do processamento dos dados. Daí a relevância, também aqui, em se distinguir dados 34 Sobre o conceito de sociedade da informação, ver Webster, F., The Information Society Reader, Routledge, 2004. 35 Nissenbaum, H. Privacy in Context: Technology, Policy and the Integrity of Social Life, Stanford Law Books, 2010. 36 Solove, D.J. Understanding Privacy, Cambridge, Massachussets- London, England- Harvard University Press, 2009. 37 Von Lewinski, K. Die Matrix des Datenschutz, Tübingen 2014, p. 4-5.

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de informações.38 Como destaca Gabrielle Britz,39 a proteção de dados, não pode ser pensada como um direito de domínio sobre dados pessoais. Tal “propriedade” e “garantia de defesa” do dado seria inútil, pois a ameaça vem da informação e a proteção jurídica deve abranger situações em que o dado está sob domínio de terceiros. Também não pode o direito ser pensado como “domínio da informação”, o que seria impossível, pois estas últimas consistem em construção alheia do significado dos dados40. Assim, o que se impõe como garantia é a participação individual autônoma na esfera pública com prerrogativas especiais para controle do fluxo daquelas informações que lhe digam respeito, em cada contexto, de tal modo que cada um seja capaz de moldar (ou ao menos influenciar a modulação) de sua identidade na infosfera. É essa a raiz do direito de autodeterminação informativa (ou informacional – informationelle Selbstbestimmung), que está no cerne da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18, art. 2, inciso II) e que teve seu marco jurídico fundacional na decisão do Tribunal Constitucional Alemão contrária à Lei do Recenseamento da População de 1983 (“Volkszählungsgesetz”). Já na oportunidade daquela decisão, o Tribunal reconstruiu duas dimensões de afetação do uso das novas tecnologias de processamento de dados: (i) a dimensão democrática e a (ii) dimensão do livre desenvolvimento da personalidade. No que tange à primeira dimensão, a democrática, o tribunal chamou a atenção para o fato de que quem não sabe se e por quem informações sobre a sua pessoa são tratados, perde a oportunidade de avaliar de forma confiável as consequências do seu comportamento,bem como as reações dos seus interlocutores na comunicação, e acaba sofrendo efeito de inibição diante da crescente incerteza. Com isso, a aplicação indiscriminada de informações derivada de seu processamento descontrolado colocaria em risco o funcionamento de “uma

comunidade democrática livre baseada na capacidade dos seus cidadãos de agir e participar”.41 Nesse sentido, a proteção de dados, como veículo para proteção dos direitos fundamentais é a espinha dorsal de qualquer democracia liberal42. Em relação à segunda dimensão, destacou que a armazenagem indefinida de dados que “podem ser recuperados a qualquer momento em questão de segundos, independentemente da distância” e que “podem ser (combinados) com outras recolhas de dados para formar uma imagem pessoal parcial ou amplamente completa sem que o titular dos dados possa controlar suficientemente a sua exatidão e utilização”43, mina a construção da personalidade individual. Assim o direito à autodeterminação informativa44 foi reconhecido e derivado constitucionalmente como pré-requisito básico ou veículo necessário para o livre desenvolvimento da personalidade, dentro de uma esfera pública democrática. Portanto, o conceito de autodeterminação informativa e toda a construção da legislação de proteção de dados não se reduz de forma alguma à noção de sigilo. Possui uma dimensão dinâmica que vai muito além de um direito de defesa, que postularia um espaço privado de informações a não ser invadido pelo Estado ou a ser garantido pelo Estado.45 A proteção de dados consiste, na verdade, em reforçar duas atribuições do indivíduo no novo cenário da sociedade da informação: (i) a transparência por parte da Administração e do setor privado sobre o uso de dados pessoais por eles detidos; (ii) colocar o indivíduo em posição ativa e dinâmica na relação com seus dados e informações perante o Estado e a iniciativa privada.46 E o mecanismo primordial adotado pela legislação de proteção de dados, arraigada no conceito de autodeterminação informacional, está no princípio de finalidade. Trata-se de vincular e restringir a aplicação de qualquer informação 41 BVerfG 65, 1 (43). (Traducão livre)

38 Sobre a diferença entre informação e dados na doutrina jurídica sobre proteção de dados ver Indra Spiecker, Rechtswissenschaft, p. 247 ss. Friedrich Schoch, Öffentlichrechtliche Rahmenbedingungen einer Informationsordnung, In Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer(VVDStRL), 57 (1998), p. 158 ss. Klaus Lenk, Der Staat am Draht 2004, p. 33 ss. E, em especial, Marion Alberns, Informationelle Selbstbestimmung. Baden-Baden 2005, p. 86 ss. 39 Britz, G. Autodeterminação Informativa entre a crítica principiológica dogmática e a permanência do Tribunal Constitucional Alemão, In Ricardo Campos, Nelson Nery Jr., Georges Abboud (orgs.) Proteção de Dados e regulação, RT 2020 (no prelo). Gabriele Britz, Informationelle Selbstbestimmung zwischen rechtswissenschaftlicher Grundsatzkritik und Beharren des Bundesverfassungsgerichts, in: W. Hoffmann-Riem (Hg.), Offene Rechtswissenschaft, Tübingen 2010, p. 561-596. 40 Na literatura alemã esse ponto fica claro com a crítica central de que proteção de dados não seria um regime da salvaguarda de dados, mas da proteção das pessoas contra os efeitos da informação. Para tanto ver Hans Peter Bull, Sinn und Unsinn des Datenschutzes, Tübingen 2015, p. 27 ss.

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42 Indra Spiecker. Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer (VVDStRL) 9 (2018), p. 55. 43 BVerfG 65, 1 (42). 44 BVerfG 65, 1 (43); 45 Para a forma clássica sobre o conceito de direitos de defesa ver Gertrude Lübbe-Wolf, Die Grundrechte als Eingriffsabwehrrechte, Baden-Badenn 1998. Sobre a crítica à concepção de direito fundamental de defesa frente ao Estado na proteção de dados ver Karl-Heinz Ladeur, “Datenschutz - vom Abwehrrecht zur planerischen Optimierung von Wissensnetzwerken. Zur objektiv-rechtlichen Dimension” des Datenschutzes, DuD 2000, p. 12 ss. 46 Conforme anota a decisão, as pessoas têm “o poder, em princípio, de determinar por si próprias a atribuição e a utilização dos seus dados pessoais”. (Tradução livre) BVerfGE 65, 1.”


derivada do processamento de dados pessoais ao objetivo que justificou sua coleta. Reconhece-se, assim, como fundamento legítimo para o tratamento, o consentimento que delimite seu escopo, o exercício de competência legal com objeto determinado, a necessidade para prestação de serviço ou execução de contrato especificado etc. Em todo e qualquer caso, a justificativa original da coleta é que determina os limites do processamento, do emprego e da transmissão de informações dele extraídas. Por conseguinte, o tratamento de dados só pode ter lugar no âmbito de um objetivo definido, claro e legítimo. Em particular, o processamento para fins abertos ou desconhecidos é vedado pelo princípio da finalidade.47

3.1.1. Autodeterminação informacional na Constituição Federal Brasileira A proteção de dados introduzida pela LGPD no ordenamento brasileiro consiste em ramificação de um domínio mais amplo do regime jurídico da informação e das comunicações.48 Não se trata da única forma jurídica de proteção da informação, mas a forma de proteção de informações pessoais extraídas de dados. O regime jurídico da proteção da informação encontra vários pilares dentro da Constituição federal de 1988, pelos quais forma uma infraestrutura de direitos comunicacionais ancorada em diversos direitos fundamentais. Dentre eles os principais são: inviolabilidade da intimidade e da vida privada (Art. 5, inciso X) e sigilo da correspondência e das comunicações (Art. 5 início XII)49. Contudo, como bem nota a lição de Ferraz Jr. sobre o regime jurídico da informação na Constituição de 1988, adotada em diversos julgados pelo Supremo Tribunal Federal50, esse regime jurídico da informação não abarca as questões centrais da proteção de dados em si,51 mas tão somente 47 Sobre o assunto ver os casos elencados de coleta de dados sem finalidade na diretiva europeia RL 2006/24/EG e as decisões do tribunal europeu sobre o assunto EuGH, C-293/12 e C-594/12. Na doutrina, Spiros Simitis: Die Vorratsspeicherung – ein unverändert zweifelhaftes Privileg, In: Neue Juristische Wochenschrift, 2014, p. 2158 ss. 48 Também nesse sentido, Indra Spiecker, Teil-Verfassungsordung Datenschutz, In: Der Eigentwert des Verfassungsrechts, Tübingen 2011, p. 281 ss. 49 Ainda, ao regime jurídico da proteção da informação poderiam ser acrescentados a proteção à livre manifestação do pensamento, o acesso à informação, o direito de resposta, o sigilo da fonte, entre outros. 50 RE 418.416-8, Santa Catarina, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 10.05.2006; HC 91.867, Pará, rel. Min. Gilmar Mendes, 24.04.2012. 51 “Se alguém elabora para si um cadastro sobre certas pessoas, com informações marcadas por avaliações negativas, e o torna público, poderá estar cometendo difamação, mas não quebra de sigilo de dados. Se estes dados, armazena-

aspectos da intervenção não autorizada de terceiros na comunicação (sigilo das comunicações). O direito à autodeterminação informacional encontrou sua primeira expressão no ordenamento jurídico brasileiro no art. 2o, inc. II da Lei 13.853/2019, como um dos fundamentos da proteção de dados pessoais, ao lado do direito à privacidade (inc. I), à liberdade de expressão, de informação e de comunicação (inc. III), à intimidade, honra e imagem (inc. IV), o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania (inc. VII). Sendo todos esses direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988, essa previsão indica menos a estipulação legal de um direito e mais o reconhecimento de norma superior, que confere fundamento de validade material aos direitos dos titulares de dados pessoais previstos na LGPD (art. 18 e incs.), quais sejam, confirmação da existência do tratamento, acesso a dados, retificação, anonimização, bloqueio ou eliminação, revogação do consentimento. Esse reconhecimento legal no País é reflexo de fenômeno de dimensão global, influenciando de forma generalizada a transformação jurídica concreta dos estados nacionais. O arcabouço conceitual do constitucionalismo do Estado nacional vê-se cada vez mais desafiado por dinâmicas globais, como a realidade de sociedades cada vez mais mediadas pela digitalização, as quais, por sua vez, exigem uma resposta interna adequada em termos da tradição concreta de cada país.52 Conforme pontua Wolfgang Hoffmann-Riem, a dependência de vários âmbitos da vida moderna da infraestrutura tecnológico-informacional impõe a reconstrução, no direito constitucional, da proteção jurídica da circulação de dados e informações, como condição necessária para assegurar o exercício de diversas liberdades previstas constitucionalmente. Não apenas a liberdade de expressão passa a ser gerida pelo mundo digital, mas também a liberdade artística, científica, livre exercício profissional, liberdade de locomoção, direitos à igualdade, dentre outras devido ao rápido avanço da digitalização de todos os aspectos da vida.53 dos eletronicamente, são transmitidos privadamente, a um parceiro, em relações mercadológicas, para a defesa do mercado, também não está havendo quebra de sigilo”. Ferraz Jr., Tércio Sampaio. “Sigilo de Dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado”. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, 1992. Esses casos, porém, passarão a ser regulados pela Lei Geral de Proteção de Dados. 52 Dieter Grimm, The Achievement of Constitutionalism and its Prospects in a Changed World, In: Petra Dobner, Martin Loughlin (Orgs.) The Twilight of Constitutionalism? Oxford 2010, p. 322. Charles Fried, Constitucionalism, Privatization and Globalization, in: Cardozo Law Review 21 (2000), p. 1091 - 1094. 53 Wolfgang Hoffmann-Riem, Grundrechts- und Funktionsschutz für elektronisch

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Assim como no caso alemão, não há no catálogo positivo de direitos fundamentais da Constituição brasileira de 1988 um direito expresso de autodeterminação informativa, além dos enunciados do regime geral de proteção da informação e sua comunicação. A ausência na lista de direitos fundamentais, todavia, não impediu o Tribunal Constitucional Alemão de enunciar explicitamente o direito, ao constatar que seu conteúdo seria conditio sine qua non para a realização de liberdades fundamentais constitucionais na era da informação. Da mesma forma, a tradição constitucional brasileira não deixa de reconhecer e explicitar os chamados direitos fundamentais decorrentes, os quais, seguindo a cláusula de abertura do art. 5o, § 2 da CF 88, devem ser derivados do conteúdo de direitos fundamentais explícitos, notadamente quando necessários à proteção de liberdades constitucionalmente asseguradas54. Nessa esteia, diversos direitos fundamentais decorrentes (não explícitos) foram validados pelo Supremo Tribunal Federal como direito à proteção do local de trabalho contra invasões arbitrárias de agentes públicos (decorre do art. 5º, inc. XI, da Constituição de 88), direito ao sigilo bancário55 (decorrente do artigo 5º, inc. X da Constituição de 88), a anterioridade tributária56, direito à união homoafetiva57, direito de pessoas transexuais de alteração de prenome e sexo no registro civil58, direito à identidade genética e filiação59, direito de oposição política,60 direito ao esquecimento,61 dentre outros. Segundo a doutrina, seria possível reconhecer na CF 88 também o

vernetzte Kommunikation, In: Archiv des öffentlichen Rechts 134 (2009) p. 516 ss. 54 “Por força do art. 5º, § 2º, da Constituição de 88, pode-se dizer que existem direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, que são justamente aqueles direitos constitucionais, expressos ou implícitos, que possuem forte vinculação com o princípio da dignidade da pessoa humana ou com a necessidade de limitação do poder. Não é necessário que o direito fundamental esteja expressamente escrito na Constituição. Basta que ele possa ser, de alguma forma, extraído do espírito constitucional.“ MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2018. Ver também nesse sentido, Sarlet, Ingo, A eficácia dos direitos fundamentais, 12ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012 55 STF, MS 23.851/DF, rel. Min. Celso de Mello, Plenário, j. 26.9.2001 56 STF, ADI n. 939-7, Rel. Min. Sydney Sanches, Plenário, j. 15.12.1993 57 STF, ADI 4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, j. 05.05.2011 58 STF, ADI 4.275/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário j. 01.03.2018 59 STF, RE 363.889/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, j. 02.06.2011 60 STF, MS 24.831/DF, rel. Min. Celso de Mello, Plenário, j. 22.6.2005 61 RE 810321/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, j. 17.06.2016

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direito à autodeterminação informacional. 62 Em decisão recente, o STF63 referendou a medida cautelar deferida para suspender os efeitos da Medida Provisória nº 954/20, reconhecendo que a Constituição Federal de 1988 sedia elementos basilares da proteção de dados e pronunciou explicitamente o princípio de autodeterminação informacional, como um direito albergado pela lei fundamental. Segundo a Relatora Ministra Rosa Weber, no contexto tecnológico atual, os direitos da personalidade previstos na CF 88 (direito à intimidade, honra, imagem, dignidade e vida privada) impõem que controladores e operadores de dados pessoais sejam transparentes quanto à finalidade da coleta, bem como assegurem o seu tratamento de modo proporcional ao fim declarado. A referida Medida Provisória determinava a transferência ao IBGE, pelas empresas de telefonia, do nome, telefone e endereço de todos os seus clientes, sem que estivesse clara a finalidade do estudo, de modo que o STF entendeu serdesproporcional a coleta de dados de milhões de brasileiros (todos os clientes) para procedimentos do IBGE que, usualmente, são amostrais. Citando explicitamente a decisão do Tribunal Constitucional Alemão no caso do censo, o STF identificou os riscos que a atual tecnologia de análise de dados traz à autonomia e liberdade individual, em função das informações e perfis pessoais que podem ser inferidos a partir do cruzamento e processamento computacional. O reconhecimento pelo STF do direito fundamental à autodeterminação informativa estabelece parâmetro fundamental no cotejo de possíveis conflitos entre a lei de proteção de dados pessoais e normas legais de outros documentos legislativos. Caso determinada regra legal importe violação à autodeterminação informacional e não haja outro direito fundamental que a suporte em juízo de proporcionalidade, cabe o questionamento de sua constitucionalidade.

62 Para uma posição que não distingue os ramos do regime geral da proteção da informação e infere o tratamento constitucional da proteção de dados do sigilo e da privacidade ver Laura Mendes, Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor. Linhas gerais de um novo direito fundamental, Sao Paulo 2014, p. 170 - 171. “…entendemos que hoje é possível reconhecer um direito fundamental à proteção de dados pessoais, como uma dimensão da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, nos termos da constituição.” Também Danilo Doneda deriva um direito a proteção da dados da privacidade. Para tanto, ver Doneda, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 12, n. 2, p. 91-108, 2011. 63 Julgamento conjunto das ADI 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393, sob a Relatoria da Ministra Rosa Weber, em 07/05/2020.


3.2. Separação de Poderes Informacional A proteção de dados naturalmente deve seguir os ditames basilares da estruturação do Estado de Direito, o que implica a incorporação dessa proteção à estrutura essencial das constituições liberais democráticas, organizada em dois pilares: a) um regime de liberdades fundamentais do indivíduo asseguradas por direitos fundamentais explícitos ou decorrentes e b) um regime organizacional centrado na divisão por competências de atribuições, evitando a concentração de poder (divisão de poderes).64 O primeiro pilar dá-se com o reconhecimento da autodeterminação informacional como veículo necessário à garantia de liberdades fundamentais constitucionais na era digital. No entanto, a proteção de dados nele não se exaure. De nada adiantaria garantir posições jurídicas subjetivas ao indivíduo no domínio de seus dados e informações pessoais, se também o outro pilar das constituições liberais modernas, o da divisão de poderes, não fosse abrangido, diante dos desafios colocados pela esfera informacional contemporânea. O novo direito fundamental perderia efeito prático caso se permitisse ao Estado o acúmulo indiscriminado de informações pessoais. Para refletir também a salvaguarda da autodeterminação informacional dentro da dimensão organizacional do Estado, foi cunhado no caso alemão do censo, anteriormente mencionado, o conceito de divisão de poderes informacional ou separação informacional de poderes 65. Importante notar que aquele precedente, no qual se baseou o STF no caso de compartilhamento de dados com o IBGE, tinha em seu cerne justamente a vedação à transferência de dados para órgãos com exercício de função executiva. Vale retomar essa distinção feita pelo precedente alemão. A lei questionada perante o tribunal previa a coleta de uma série de dados sensíveis para uso estatístico, como telefone, endereço, data de nascimento, grau de escolaridade, religião, fonte de sustento doméstico, ocupação profissional, condições de moradia, salários e rendimentos, etc. A coleta e uso dos dados para fins estatísticos pelo órgão censitário alemão foi considerada proporcional pelo Tribunal alemão. O problema recaiu apenas sobre um

dispositivo, o art. 9º incisos 1, 2 e 3 da lei combatida, que previa o compartilhamento dos dados coletados pelo órgão estatístico com outros órgãos da administração pública para finalidades não estatísticas, de gestão administrativa, que não foram especificadas previamente. Naquela oportunidade, antecipou-se uma tendência das legislações contemporâneas de proteção de dados (inclusive a brasileira), ao considerar constitucional o uso estatístico por órgãos de pesquisa como uma base legal de tratamento, independentemente de consentimento e de detalhamento a priori da finalidade.66 Portanto, o vício de constitucionalidade estava apenas na transferência do dado pessoal do órgão estatístico para órgãos de execução administrativa e seu emprego ou cruzamento para o embasamento de decisões de gestão, que poderiam levar em consideração perfis pessoais e aspectos da personalidade pelo Estado na sua atuação executiva, sem o conhecimento e possibilidade de controle pelo sujeito do dado.67 Spiros Simitis chamou atenção para esse ponto, afirmando que a decisão do censo de 1983 tinha justamente como intuito estabelecer uma nova divisão de poderes dentro do Estado, a divisão de poderes informacional, na medida em que postulava ser incompatível com a proteção de dados a possibilidade de administração pública e o Estado serem concebidos como uma unidade informacional.68 Para se atingir tal objetivo, impedindo a cristalização da unidade informacional como poder fático, atrela-se o princípio da finalidade à estrita definição de competências de cada órgão público.69 Do ponto

64 Essa distinção entre dois âmbitos da constituição moderna, direitos fundamentais e organização estatal guiado pela divisão de poderes conforma o direito público contemporâneo. Para tanto ver Eberhard Schmidt-Aßmann, Der Rechtsstaat, Em:Josef Isensee, Paul Kirchhof (Orgs.) Handbuch des Staatsrechts, der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg 2004, P. 565. Hans Fenske, Art. Gewaltenteilung, In: Brunner, Conze, Kosellek (Orgs.) tomo III 1982, p. 823 ss. Ver também Carl Schmitt, Verfassungslehre, 7 Ed., Berlim 1993, p. 126 - 127.

68 Spiros Simitis: Die informationelle Selbstbestimmung - Grundbedingung einer verfassungskonformen Informationsordnung (NJW 1984, 398), p. 403.

65 BVerfGE 65, 1 (69)

66 “Faz parte da própria natureza das estatísticas que, uma vez que os dados tenham sido processados estatisticamente, devem ser utilizados para uma grande variedade de finalidades que não podem ser determinadas a priori; consequentemente, há também a necessidade de armazenamento de dados. A exigência de uma definição concreta da finalidade e a proibição estrita da coleta de dados pessoais sobre a conservação só se pode aplicar à coleta de dados para fins não estatísticos, mas não a um censo, que se destina a fornecer uma base de dados segura para estudos estatísticos futuros, bem como para o processo de planejamento político, determinando de forma fiável o número e a estrutura social da população.” 67 BVerfG, Decisão de 15 de dezembro de 1983 - 1 BvR 209/83 -, notas marginais de (1-215), aqui nota marginal 159. “(…) porque um registo abrangente e catalogação da personalidade através da combinação de dados da vida individual para criar perfis de personalidade dos cidadãos é também inadmissível no anonimato das pesquisas estatísticas.

69 Na tradição europeia, o princípio da finalidade não é absoluto. Os dados pessoais recolhidos uma vez para determinados fins podem, sob certas condições, ser (posteriormente) processados para outros fins. O critério decisivo é a compatibilidade. A finalidade original e a nova finalidade não devem ser incompatíveis. Para tanto ver Manfred Monreal: Weiterverarbeitung nach einer Zweckänderung in der DS-GVO, In: Zeitschrift für Datenschutz 2016, p. 507ss.

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de vista da divisão constitucional de competências, somente se justifica o tratamento de dados por uma unidade da administração pública, na medida em que este se insira no âmbito das atribuições específicas dos órgãos ou entidades que exerçam funções públicas70. A competência determina previamente a finalidade claramente identificável, a qual restringe não apenas as transferências para particulares, mas também e precisamente a transferência de dados pessoais no próprio seio da Administração Pública.71 A transferência não pode comprometer o objetivo ou finalidade pública que justificou a coleta do dado. Por conseguinte, a transferência ou compartilhamento de dados só pode ser admitida se essa for exigida para que o órgão ou entidade que os coletou ou os controla se desincumba de sua própria competência, isto é, exerça sua função pública específica.72 Isso não impede que determinado órgão forneça informações extraídas do processamento de dados sob seu controle, desde que previsto em lei e no limite daquilo que for necessário para que o órgão destinatário exerça sua competência. Daí a importância da distinção, primeiro, entre dado e informação e, segundo, entre o dever legal de fornecimento de informações ou de dar acesso a informações e o dever legal de compartilhar ou transferir dados. O fornecimento de informações específicas de um órgão a outro da Administração pode ser autorizado por lei, desde que para o exercício da competência legal do órgão que a requer. Ou seja, o órgão de destino pode acessar as informações para exercer sua competência legal. Já o compartilhamento ou transferência de dados (entre órgãos públicos, ou entre o órgão público e o particular) somente pode ser autorizado quando necessário ao exercício da competência do órgão controlador daqueles dados, ou seja, do órgão de origem e do órgão de destino. A associação entre o princípio da finalidade da coleta e tratamento dos dados com a divisão da administração pública em competências – que demarca também o poder para seu processamento – consolida o entendimento de que a Administração Pública – tal como as empresas

71 Hans Peter Bull. Datenschutz contra Amtshilfe. In: Die Öffentliche Verwaltung 1979, p. 689-696.

3.3. Conclusões sobre fundamentos da proteção de dados As considerações desenvolvidas nesta Seção permitem alcançar as seguintes conclusões:

72 Spiros Simitis. Die Zäsur: Das Volkszählungsurteil des BVerfG Simitis/Hornung/ Spiecker gen. Döhmann, Datenschutzrecht 1. Edição 2019, notas marginais 37 - 38.

(i) o sentido de privacidade em matéria de pro-

70 Spiros Simitis. Von der Amtshilfe zur Informationshilfe - Informationsaustausch und Datenschutzanforderungen in der öffentlichen Verwaltung,In: Neue Juristische Wochenschrift 1986, 2795

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que se relacionam no setor privado – não é uma unidade de informação dentro da qual os dados pessoais possam ser livremente compartilhados. O legislador e o judiciário devem, por conseguinte, assegurar a proteção contra sua apropriação abusiva e interpretar restritivamente previsões legais de compartilhamento ou transferência, garantindo que estas se coadunem ou sejam necessárias ao exercício da competência do órgão que a controla e decisivo é a compatibilidade. A finalidade original e a nova finalidade não devem ser incompatíveis. Para tanto ver Manfred Monreal: Weiterverarbeitung nach einer Zweckänderung in der DS-GVO, In: Zeitschrift für Datenschutz 2016, p. 507ss. que justificou a coleta do dado pessoal. Isto corresponde à garantia, no setor privado, contra a transferência indiscriminada e violadora do direito individual ao fluxo adequado de dados pessoais. Esse aspecto é particularmente crítico em relação aos dados pessoais sob guarda dos oficiais de registro. Isso porque, como visto acima, sua função pública é exercida por meio de delegação, justamente para proporcionar uma garantia republicana que se reforça diante do reconhecimento do direito fundamental à autodeterminação informacional. Trata-se de proteger o indivíduo, suas relações privadas e status na sociedade civil, inclusive da atuação Estatal, notadamente quanto ao livre acesso e processamento indiscriminado de informações por órgãos da Administração, que possam levar à condição ameaçadora da unidade informacional em mãos do Poder Público. Essa preocupação requer maior atenção em cenário no qual a Administração Pública passa a ser digital (e-Government). É certo que a digitalização dos serviços administrativos traz eficiência, tanto em termos de qualidade, quanto em termos de celeridade e abrangência, o que atende a princípios informadores da Administração Pública, quais sejam, a universalidade e eficiência (art. 37 da CF 88). Mas sua implantação não pode comprometer a autodeterminação informacional, sendo, aliás, com ela compatível, na medida em que se observe a finalidade de coleta e processamento, que, na esfera administrativa, corresponde à separação de poderes (competências).

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teção de dados pessoais não se reduz a sigilo ou resguardo, ligando-se, antes, ao controle do fluxo adequado de informações pessoais em cada contexto; (ii) a proteção de dados funda-se juridicamente no direito individual de autodeterminação informacional, que se estrutura pela atribuição de prerrogativas (poderes) ao indivíduo na esfera pública para controlar o fluxo de dados pessoais em posse de terceiros do qual possam ser extraídas informações a seu respeito; (iii) o mecanismo para esse controle está no princípio de finalidade, assegurando que a aplicação de informações fique restrita ao objetivo que justificou a coleta dos dados pessoais; (iv) o STF reconheceu o status constitucional do direito fundamental à autodeterminação informacional, dado relevante no cotejo de conflitos entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e outras regras legais; (v) O direito à autodeterminação informacional, em sua faceta democrática, tem como corolário a separação de poderes informacional, que incompatível com a livre circulação de dados entre órgãos da Administração Pública e circunscreve o poder de processamento de dados por cada órgão aos limites estritos de sua competência; (vi) A separação de poderes informacional é particularmente relevante frente à garantia republicana de delegação da função pública registral ao particular, o que traz limites ao compartilhamento de dados registrais com órgãos da Administração Pública. (vii) Considerando que a publicidade registral não implica difusão de informações ao público, mas tem o sentido jurídico estrito de exercício pelo oficial de registro de sua função pública de constituir direitos e comprovar relações dentro de sua competência legal e, por outro lado, que a proteção de dados não se reduz a sigilo, mas consiste na garantia ao cidadão do processamento dos seus dados pessoais por terceiros dentro da finalidade que justificou sua coleta, a publicidade registral é plenamente compatível com a proteção de dados pessoais, cabendo ao oficial resguardar o direito à proteção de dados pessoais das partes com direitos inscritos em registro.

4. O REGISTRO IMOBILIÁRIO NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS Feitos os esclarecimentos teóricos, sobre a publicidade registral e a fundamentação da proteção de dados na autodeterminação informativa e na separação de poderes informacional, passemos ao enquadramento da atividade registral no direito positivo nacional e à fundamentação de medidas a serem adotadas pelos oficiais de registro no âmbito das Serventias e do ONR em relação ao controle de finalidade dos atos registrais, o dever de compartilhamento com terceiros, práticas de governança de dados pessoais, transparência e garantias de direitos dos usuários do sistema registral. Ao final fazemos algumas reflexões sobre o papel dos registros de imóveis diante dos mercados digitais.

4.1. Enquadramento legal dos registros imobiliários Os dados tratados pelos oficiais de registro de imóveis, por conterem informação relacionada a pessoa natural determinada, são dados pessoais, nos termos da LGPD (art. 5o, inc. I). Tratando-se de pessoa física aquele que tenha direito inscritível, são requisitos da matrícula e do registro, conforme art. 176 da LRP, o estado civil, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação. Mas não apenas essas referências são de natureza pessoal como a própria condição patrimonial de determinado indivíduo é dado pessoal, nos termos da LGPD. Os dados pessoais processados, inclusive, podem ser sensíveis ou seu processamento pode apurar e cruzar dados que permitem extrair informações sensíveis (art. 5º, inc. II), como a informação acerca de filiação, que podem revelar origem racial ou étnica, ou ainda, vida sexual, como no caso já citado de alteração do registro por mudança de sexo, etc. Desse modo a LGPD considera tais dados pessoais tratados pelos cartórios como extensão da personalidade individual, considerando como seu “titular” o sujeito a quem o dado se refere, (art. 5o, inc. V). Havendo interesse público no seu processamento, os dados pessoais registrais encontram-se sob guarda e processamento dos oficiais de registro, delegados do Poder Público. Considerando que o oficial de registro é investido do poder estatal para conservar os documentos e processar os dados para exercer sua função pública, é, então, ao mesmo tempo, controlador (decide sobre o tratamento dos dados) BOLETIM 362

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e operador (realiza seu tratamento). A LGPD determina que os serviços notariais e de registros exercidos em caráter privado receberão o mesmo tratamento conferido a pessoas jurídicas de direito público (art. 23, § 4o). Com isso, o fundamento que legitima o tratamento de dados pessoais é o cumprimento de obrigação legal (art. 7o, inc. II e art. 11, inc. II, “a”), que deve ser realizado dentro do “atendimento de sua finalidade pública” e “com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir atribuições legais do serviço público” (art. 23, caput). Ou seja, a competência específica dos cartórios de registro é que determina a finalidade do processamento (art. 6o, inc. I), qual seja conferir “autenticidade, segurança e eficácia” a atos jurídicos, ao constituir direitos reais e inscrever validamente limitações ao seu exercício, e ao constituir meios de prova sobre as relações jurídicas inscritas. Como visto, a publicidade registral, em sentido jurídico estrito, consiste na fé pública de seus atos, que confere o efeito de oponibilidade do registro perante terceiros de boa-fé e na emissão de meios jurídicos de prova, com a lavratura de certidões. O exercício da competência legal propriamente dita não é incompatível com a reserva, no sentido de vedação à difusão ou mesmo exposição de informações pessoais ao público de modo indiscriminado. Os principais impactos da LGPD e do direito fundamental à autodeterminação informacional na atividade registral concentram-se nas atividades específicas de sua competência e os dados ou informações pessoais que nela são veiculados. Trata-se de atividade com base legal específica, mas que merece atenção para especificação adequada daquilo que é estritamente necessário para que o oficial se desincumba de sua função pública. Neste aspecto examinaremos (a) o controle de finalidade e necessidade nas inscrições de direitos e na lavratura de certidões e (b) o controle de finalidade e necessidade no compartilhamento de dados com terceiros, primeiro em relação a entidades privadas e em seguida em relação a entidades públicas. Ao lado desses impactos específicos da atividade registral há o de deveres que recaem sobre as serventias em sua posição de agente de tratamento de dados pessoais, são eles: (c) a estruturação de governança em privacidade, com a indicação do encarregado e elaboração de política de privacidade, (d) o registro das atividades de tratamento de dados pessoais, (e) o aviso de privacidade aos usuários do sistema registral, (f) as garantias em relação à contratação com terceiros e a garantia dos direitos dos titulares.

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4.2. Controle de finalidade dos atos registrais Ao comentar a Lei de Registros Públicos, Ceneviva considera que “o serventuário não está impedido de, querendo, e não havendo impedimento legal, dar a qualquer pessoa todas as informações pertinentes ao registro. A tanto, porém não pode ser obrigado”. O limite estaria no sigilo profissional, quanto a aspectos íntimos. Vimos, porém, que, em sua leitura jurídica estrita, o serventuário não tem por finalidade compartilhar informações, mas exercer atos performativos que conferem efeitos jurídicos de constituição de direitos reais, ou de limitações a direitos reais e constituição de meios de prova. A informação ou assessoramento refere-se somente a partes com direitos inscritos ou inscritíveis em matrícula. Nessa leitura, deve ser mínima não só a veiculação de informações, naquilo que for inerente à constituição desses direitos, como também em todo o seu processamento para lavratura de certidões. Mas se havia alguma interpretação diversa sobre a possibilidade do registrador veicular informações pessoais que não estejam estritamente nos limites de sua competência funcional, a vigência da LGPD veio justamente implantar o impedimento legal geral quanto a eventual atividade meramente informativa que não seja inerente e necessária ao exercício de sua função pública. Não há mais qualquer espaço para a inferência de uma permissão para veicular informações pessoais naquilo que não for expressamente proibido. Há, agora, um dever geral de resguardo e controle de finalidade no processamento de dados pessoais. Revelar informações pessoais constantes em dados registrais, fora do estrito exercício de competência legal, viola não só dever ético profissional, como também a lei de proteção de dados pessoais, a partir de sua entrada em vigor. No que se refere ao controle de finalidade, o art. 6o da LGPD exige não só que haja definição de finalidade legítima (inc. I), que não pode ser alterada no curso do processamento, mas também que o tratamento realizado seja adequado àquela finalidade (inc. II) e, sobretudo, que o tratamento se restrinja “ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades” (inc. III). Vejamos como o princípio de finalidade e o controle de necessidade se aplica às diferentes atividades legalmente previstas e que se impõem ao oficial de registro.

4.2.1. Controle de finalidade na inscrição O sistema brasileiro de registros de imóveis, a partir


da Lei de Registros Públicos vigente (Lei 6.015/73), é um sistema de registro de bens e direitos, ordenado por imóveis e não por pessoas. Ou seja, trata-se de registro real que se refere ao objeto físico da inscrição (a área poligonal perfeitamente delineada e referenciada na superfície terrestre, incluindo o subsolo e espaço aéreo até o limite útil ao proprietário). Mas obviamente não é nessa individuação física que reside a propriedade jurídica como direito real. A identidade da propriedade, no aspecto jurídico, reside no conjunto de direitos e ônus reais que sobre ela recai, ou melhor, no histórico de transmissão de domínio, de direitos reais limitados ou gravames que venham a afetar aquele bem. Assim, em relação às inscrições de matrícula, registros e averbações, é na construção desse histórico de transmissões de domínio que aparecem as referências e os dados pessoais, i.e., a propriedade jurídica traduz-se no feixe de relações jurídicas que têm por objeto o bem físico, portanto nas relações entre pessoas físicas ou jurídicas que assumem o papel de proprietário ou gravam a propriedade com ônus reais. Aqui portanto, reside o dever do oficial de registro em individuar aqueles sujeitos de direito e, no caso de pessoas físicas, a identificação pessoal, formada por um conjunto de dados pessoais determinados por lei (art. 176 da LRP). É esta a base legal para a coleta daquele conjunto de dados pessoais para cada registro ou averbação em matrícula. Como a base é legal, independe de consentimento do titular ou sujeito dos dados. São aqueles itens necessários para que a função pública de constituição de direitos ou ônus reais seja exercida, com a produção dos respectivos efeitos. Portanto, o oficial de registro de imóveis não pode coletar nem mais, nem menos dados pessoais para a inscrição em matrícula para a constituição de direitos reais ou averbação de gravame. Embora pareça evidente, essa nota é importante, pois podem surgir, a partir de leitura equivocada da LGPD, demandas de sujeitos de dados em relação a aspectos íntimos que podem ser revelados com o necessário registro em matrícula. É o caso, por exemplo, da mudança de nome, por alteração de sexo ou alteração por afinidade. O sujeito do dado que teve seu nome alterado deve registrar em matrícula sua nova identidade, porém, não pode exigir que seja retificado, ou melhor, que seja excluído da matrícula seu nome anterior. Isso porque afetaria a própria identidade, não do imóvel, mas da propriedade que é dada pelo histórico de transmissões e modificações nas relações jurídicas de domínio das quais o imóvel é

objeto. O resguardo da privacidade, nesse caso, deve ocorrer com a observação do princípio de necessidade no tratamento dos dados no momento da lavratura da certidão, como veremos em seguida.

4.2.2. Controle de Finalidade na lavratura de certidões Por sua vez, em relação à lavratura de certidões as implicações da LGPD devem ser examinadas no que se refere, de um lado, ao acesso e de outro, ao conteúdo das certidões. Sobre o acesso, o primeiro ponto diz respeito à possibilidade de consulta direta dos livros de registro imobiliário, que é admitido por parte da doutrina. Como destaca Guilherme Loureiro, a consulta direta não se coaduna à inteligência do art. 16 da LRP e não é aceita pela jurisprudência paulista, que somente admite a publicidade indireta e acesso ao conteúdo e informações registrais por meio de certidões. Assim, se pairava alguma dúvida doutrinária acerca desse ponto, essa é dirimida diante da exigência de necessidade e minimalidade no tratamento de dados pessoais. A leitura deve ser estrita do art. 16 da LRP. Se o acesso ao conteúdo dos dados registrais é comandado pela lei na forma de lavratura de certidões, não pode o oficial franquear o acesso a todo conteúdo dos livros e da matrícula. Muito embora a emissão de certidão de inteiro teor por cópia reprográfica da matrícula elimine diferenças práticas quanto ao conteúdo acessado, veremos a seguir que tal prática merece revisão para que a lavratura de certidões seja compatível com o princípio de necessidade no tratamento de dados pessoais que rege a LGPD. A segunda questão acerca do acesso é se deve ser contextual o controle da finalidade no âmbito da lavratura de certidões, isto é, se seria necessário exigir, do interessado, esclarecimentos sobre o contexto particular e finalidade pela qual tem interesse na certidão. No regime adotado pela legislação alemã, por exemplo, toda requisição de certidão deve ser acompanhada de demonstração (prova) de legítimo interesse a ser apreciado pelo oficial de registro. Derivar esse regime do princípio de finalidade da LGPD implicaria conflito com o art. 17 da Lei de Registros Públicos, que, como visto, impõe o dever de emitir a certidão independentemente de motivação. Trata-se de conflito de difícil resolução em se tratando de uma lei geral posterior diante de uma lei especial anterior. Segundo Bobbio, o critério de resolução lex posterior BOLETIM 362

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generalis non derrogat lex speciali deve ser tomado com cautela, com observação do contexto e de uma análise casuística.73 Também Serpa Lopes, citando De Ruggiero e Ennecerus-Kipp-Wolf, afirma que “a solução deve ser buscada na pesquisa dos objetivos da lei ou da vontade do legislador, sem se ater, como um axioma, aos pressupostos exarados nos brocardos em foco”.74 Já Beviláqua defende a solução oposta: “Se entre lei geral posterior e lei especial anterior há contradição direta e manifesta, resolve-se o conflito pela revogação da lei anterior”.75 Anna Beerle, ao abordar o regime holandês de registro de propriedade, que, a exemplo do brasileiro, não exige comprovação de interesse para obtenção de certidão, entende que sistemas abertos seriam incompatíveis com a proteção de dados, por implicar tratamento desproporcional.76 Em sua interpretação, a finalidade do requerimento, comprovado o legítimo interesse, é que firmaria os limites de conteúdo constantes na certidão. Não havendo interesse legítimo, o acesso seria desproporcional. Entendemos, porém, que o controle de finalidade possa ser exercido independentemente do contexto dado pelo motivo específico da requisição pelo interessado, desde que se faça o teste de necessidade sob leitura restritiva da competência registral, qual seja, naquilo que for estritamente necessário para produção do meio de prova jurídico a que se destina a certidão.77 Com isso, os oficiais de registro devem cuidar para que as informações refletidas e veiculadas nas certidões atendam 73 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª ed. Brasília: UnB, 1995, p. 57. 74 SERPA LOPES, Miguel Maria. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil, vol. 1, p. 57. 75 BÉVILAQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p. 62. 76 “Where the context requires information to be made available based on interests supported by the publicity principle so as to facilitate legal certainty, then data protection legislation only requires this information to be provided with adequate safeguards. These safeguards require that no more information than necessary is provided and only to those warranted by the purpose for which the information was collected Advancing legal certainty by way of publicity cannot justify an open access regime. Hence, maintaining an open access regime is at odds with the data protection principles, and it is disproportional to the purpose it serves”. Beerle, A. Access to personal data in public land registers (balancing publicity of property rights with rights to privacy and data protection), Maastricht Law Series, Eleven International Publishing, 2018, pp. 385-38. 77 A mesma solução foi encontrada pela Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali, que entende lícita a emissão de certidões e a publicação de proclamas, desde que se siga estritamente a forma legal, e no mínimo necessário para atendimento de sua função: “La legge n. 675/1996 non ha modificato né la normativa concernente la tenuta dei registri dello stato civile, né quella relativa alle anagrafi della popolazione, così come rispettivamente delineate dal r.d. n. 1238/1939, dal codice civile, dalla legge n. 1228/1954, dal d.P.R. n. 223/1989 e dalla legge n. 127/1997. Pertanto, ai sensi dell´art. 27, commi 2 e 3 della legge n. 675/1996, è lecito il rilascio a terzi, da parte del Comune, di certificazioni anagrafiche, purché risultino osservati i limiti stabiliti in materia dagli artt. 33, 34 e 35 del d.P.R. n. 223/1989”. Garante 22 luglio 1997, in Bollettino n. 1, pag. 43.

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ao estritamente necessário para a produção do efeito jurídico específico. Mais do que isso, devem promover revisão, de modo uniforme entre registradores, daquilo que deve ser veiculado no conteúdo de cada tipo de certidão lavrada, de modo a satisfazer o teste de necessidade contido no princípio de finalidade. Essa consideração é importante, pois deve levar à revisão da prática, hoje corrente, em se fornecer cópia reprográfica do inteiro teor da matrícula pelo oficial de registro de imóveis. Mas vale verificar se, aqui, há, efetivamente conflito, entre a LRP e a LGPD para então harmonizar sua convivência. O art. 19, caput, da LRP indica as formas pelas quais a certidão pode ser lavrada, i.e., em inteiro teor, em resumo ou em relatório, ao passo que o parágrafo 1º autoriza o oficial a lavrar a certidão de inteiro teor por cópia reprográfica. E o art. 17 da mesma lei atribui a qualquer cidadão o direito de obter certidão sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. Seria derivável, a partir dessas regras, o direito de qualquer cidadão a requerer a certidão de inteiro teor, correlato ao dever de fornecer o inteiro teor conforme requisitado? Mas a competência do oficial de registro que fixa a finalidade do seu ato está em conferir segurança e eficácia aos negócios imobiliários (LRP) e a Lei 7.433/85, que trata dos requisitos de lavratura de escrituras públicas, indica que apenas são necessárias as certidões de propriedade e de ônus reais. Não é, portanto, necessário, para o terceiro de boa-fé, ter acesso à relação dos negócios ou fatos jurídicos antecedentes àqueles que determinam a condição atual do imóvel. Na verdade, e aqui a razão para a delegação da função pública registral ser delegada a profissional de direito, é o oficial de registro quem deve, ao analisar a matrícula, identificar quais são as inscrições relevantes no momento da solicitação da certidão para que haja segurança no tráfico de imóveis. Se conferir esta segurança é a função pública da lavratura de certidões, então, por força do princípio de necessidade do art. 6º, inc. III, da LGPD, o tratamento dos dados registrais deve ser o mínimo necessário para atender a esta finalidade. Assim, os elementos históricos da matrícula que sejam irrelevantes para garantir a relação jurídica de transmissão do imóvel, não devem constar da certidão a ser lavrada. Desse modo, se o oficial de registro se restringir à sua função pública, não há conflito entre LRP e LGPD. O conflito estaria presente apenas se, em leitura literal do art. 17, entender- se que a mera requisição de inteiro teor do


registro levaria à obrigação de fornecer cópia reprográfica da matrícula, que integra um livro (Livro 2, art. 173 da LRP). Mas essa leitura, que levou a uma prática costumeira de emissão de certidão de inteiro teor da matrícula, por cópia reprográfica, se já era questionável, não pode mais resistir ao reconhecimento, pelo STF, do assento constitucional da autodeterminação informativa, diante da constatação dos riscos que, no estado tecnológico atual, o processamento de dados pessoais pode trazer ao cidadão. Para que se preserve a compatibilidade, deve-se ler a dispensa da motivação ou interesse, do art. 17, como a presunção legal de que o interessado quer ver produzido o efeito próprio do exercício da competência registral. Ou seja, qualquer pessoa, usuária de um serviço universal, tem o direito, sem provar interesse ou trazer motivação, em movimentar o oficial de registro para exercer sua competência. Esse exercício da competência registral não serve aos caprichos do interessado, mas apenas à produção dos efeitos legais. Desse modo, não se pode assumir que o interesse arbitrário do solicitante determinaria a finalidade do processamento dos dados pelo registro. O interesse do solicitante, “qualquer pessoa”, traduz-se no interesse presumido pela ordem jurídica, qual seja, obter a finalidade consistente na função pública exercida pelo registrador. É, portanto, a competência legal registral que determina a finalidade das certidões. Com isso, tem-se que as certidões deverão conter as informações mínimas necessárias para assegurar eventual negócio sobre o bem do qual foi solicitada a certidão. Aspectos pessoais como a mudança de nome do atual proprietário ou de proprietário anterior certamente não são relevantes para esse fim. Também uma penhora já cancelada, a indisponibilidade de bens, hipoteca já quitada ou usufrutos com extinção averbada, elementos dos quais seria possível realizar inferências sobre situação e aspectos da personalidade do proprietário, são todos irrelevantes para a transmissão imobiliária, não devendo constar da matrícula. Há porém uma série de situações mais complexas que merecem análise e padronização de procedimentos, como cancelamentos indiretos de penhora decorrente de arrematação, imóvel adquirido na constância de casamento pelo regime de separação obrigatória, ou quaisquer aspectos que, pelo entendimento vigente da jurisprudência de direito civil, possam instabilizar a segurança a respeito da transmissão do imóvel.78 78 Agradecemos ao registrador Rafael Ricardo Gruber pela indicação das situações mais simples ou mais complexas em relação à lavratura de certidões exemplos de imposição legal de certidão vintenária.

Isso não significa que estaria extinta a certidão de inteiro teor, que continuará a ser lavrada, não em atendimento a solicitações arbitrárias, mas em situações excepcionais como ordem judicial, pelo próprio titular de um direito ou situação jurídica inscrita ou por comprovação de legítimo interesse baseado em lei, como no caso do loteador, que deve, por força do art. 18, II da Lei 6.766/79, submeter o projeto de loteamento ou desmembramento ao registro acompanhado da certidão vintenária, ou ainda do incorporador que, conforme art. 32, “c” da Lei 4.591/64, somente pode negociar unidades autônomas de condomínio após ter arquivado no cartório competente de Registro de Imóveis o histórico de títulos de propriedade dos últimos 20 anos, acompanhado de certidão e dos respectivos registros. Como o direito e a jurisprudência são dinâmicas, não parece ser adequado regramento pelo CNJ para estipular esse conteúdo mínimo. É necessário maior flexibilidade. Considerando que, com a adoção do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, há uma natural e sadia uniformização de práticas para maior eficiência do serviço, seria recomendável que o Operador Nacional de Registro criasse comissão permanente entre os oficiais de registro para formular diretrizes e receber consultas, de modo a que não haja discrepância em relação ao conteúdo de certidões lavradas pelo diferentes cartórios.

4.3. Compartilhamento de dados com terceiros O outro aspecto relevante no confronto entre a LGPD e as obrigações do oficial de registro civil diz respeito ao compartilhamento de dados e informações com terceiros, privados ou entidades públicas. Serão abordados neste item (a) o compartilhamento de dados com entidades privadas, inclusive em seu formato oblíquo pela solicitação em massa de certidões de imóveis de uma determinada região; (b) o compartilhamento de dados entre Serventias, ONR e Centrais Estaduais; (c) o compartilhamento de dados com órgãos públicos por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – Sinter (Decreto 8.764/2016).

4.3.1. Compartilhamento de dados com entidades privadas Considerando que os Registros Públicos foram equiparados pela LGPD a pessoas jurídicas de direito público, o compartilhamento de dados com entidades privadas BOLETIM 362

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é expressamente proibido pelo art. 26, §1o da LGPD, excepcionados os casos de execução por entidade privada de serviço ou atividade pública (inc. I), no caso em que os dados forem acessíveis publicamente (inc. III), quando houver previsão específica em lei, convênios ou contratos (inc. IV), ou na hipótese de transferência de dados para prevenção de fraudes ou para resguardar a segurança e integridade do titular dos dados (inc. V). Como já esclarecido, a publicidade jurídica registral não se confunde com publicação ou divulgação indiscriminada das informações ao público nem mesmo livre acesso ou consulta. O acesso específico, dado pelo mecanismo de cognoscibilidade jurídica, reduz-se no exercício de competência registral para lavrar certidões e assim criar meios jurídicos de prova de relações jurídicas (fatos institucionais). Portanto, é correto que a informação específica sobre determinado imóvel pode ser obtida por meio de requisição de certidão. Aqui há o acesso pelo interessado, franqueado a qualquer interessado que requeira formalmente a certidão. Mas esse mecanismo específico de cognoscibilidade em nada se confunde com o compartilhamento que consiste na transferência ou abertura da base de dados ou de parcela da base para entidade privada. Portanto, não é correto afirmar que os dados registrais seriam de acesso público para fins de compartilhamento da base registral com entidade privada, de modo que não estão presentes quaisquer das exceções previstas nos incisos do art. 26, §1o da LGPD. Interpretar de modo diverso seria fazer tabula rasa de todo o sistema de delegação pública da guarda dos dados registrais aos oficiais de registro. Nesse sentido, a Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali entendeu incompatível com a General Data Protection Regulation79 a prática consistente em fornecer lista de nascimentos e óbitos aos jornais locais, por ser divergente da forma prevista em lei para o acesso a esses dados, consistente na lavratura de certidões: “al contrario, deve ritenersi illegittima la prassi di un Comune di fornire dati ed elenchi a terzi (nel caso di specie i nominativi dei nati e dei deceduti nel territorio comunale alle redazioni dei giornali locali) al di fuori delle modalità previste dalla disciplina dei registri dello stato civile, degli atti anagrafici o di altra normativa”.80 Considerando que os dados registrais não podem ser transferidos, nem ser divulgados publicamente, seja por 79 Regulation (EU) 2016/679. 80 Garante 22 luglio 1997, in Bollettino n. 1, pag. 43.

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força da própria LRP, seja por força da vedação constante no art. 26, §1o da LGPD, não se pode admitir formas sub-reptícias e oblíquas para se obter resultado semelhante por entidades privadas. Reinaldo Velloso dos Santos destaca passagem curiosa a esse respeito em que Carvalho de Mendonça comenta Provimento de 1921, estabelecendo que oficiais de protestos não podiam recusar certidões a agências de informação, que à época, passaram a retirar certidões de modo indiscriminado, com o fim comercial de divulgar listas de protestos: “Instituíram-se agências para a divulgação impressa da lista de protestos, denunciando as firmas dos respectivos títulos. O oficial dos protestos procedeu cautelosamente negando as certidões, que iam ter destino tão vexatório ao comércio (...) Não é esse o fim das agências de informação, cujo ofício não se justificaria senão a título confidencial e a pedido de interessado quanto a determinado comerciante”.81 Embora a repulsa de Carvalho de Mendonça quanto à divulgação de dados notariais, pelo desvio de finalidade e constrangimento a cidadãos, não tenha encontrado guarida nos tribunais, ela é precursora justamente da proteção que a LGPD veio conferir ao sujeito de dados. Isso porque a divulgação se torna mais grave pela capacidade de extrair inferências acerca dos sujeitos referidos e traçar perfis que podem significar lesão a direitos ou impossibilitar o acesso a bens e serviços. Prática semelhante por entidades privadas, sobretudo por agentes de um novo mercado centrado não propriamente na transação de bens imóveis, mas na geração de informações sobre a situação patrimonial de indivíduos ou de regiões, inteligência que hoje, pela capacidade de processamento computacional pode resultar em inferências e dados de elevado valor comercial, tem trazido questões desafiadoras para a concepção tradicional do sistema registral, que via no bem físico, a propriedade, o único objeto de interesse comercial. Deveria o oficial de registro atender à solicitação, simultânea, pelo mesmo agente, da certidão de centenas ou milhares de imóveis, ou a certidão dos imóveis de todo um bairro ou cidade? Certamente o intuito de tal requisição não seria aquele de verificar a situação de cada imóvel para se assegurar da realização de negócio imobiliário em curso, mas o de processar os dados e extrair informações relevantes sobre o mercado ou sobre 81 Carvalho de Mendonça, J.X. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, v. V, parte II, p. 399-400, apud Velloso dos Santos, Reinaldo. Apontamentos sobre o protesto notarial. Dissertação de Mestrado em Direito, FDUSP, 2012, http://www.teses. usp.br/teses/disponiveis/2/2132/tde-20032013-142914/pt-br.php.


indivíduos que tem seus nomes inscritos em matrículas, capacidade inferencial esta, que será ainda maior se as certidões lavradas forem de inteiro teor. Por força do art. 17 da LRP, não cabe condicionar a lavratura de certidão à justificação de motivo ou interesse ou indicação da finalidade, o que, aparentemente, levaria ao dever do registrador de lavrar as certidões solicitadas. Porém, a requisição de volume expressivo de certidões deve ser confrontada com os ditames da LGPD. E uma requisição de certidões em tal volume para processamento tem o mesmo efeito prático e de uma transferência de dados registrais imobiliários para entidade privada, o que contraria o art. 26, §1o da LGPD. Entendimento semelhante foi adotado pela Autorità Garante italiana, que considerou ilegítima a comunicação sobre dados do registro civil a entidades privadas para finalidade comercial.82 A competência do oficial de registro consiste em conferir autenticidade à posição jurídica civil de determinada pessoa, interessada naquela posição em função de relação jurídica que pretende travar. Embora a LRP fale no art. 17 em “qualquer pessoa”, o destinatário da certidão é aquele interessado em travar relação com determinada pessoa, daí a especificidade do documento. Multiplicar certidões para formação de base de dados com interesse comercial seria forma de distorcer a finalidade pública do registro de imóveis, violando, assim, o princípio de finalidade que constrange o tratamento de dados pessoais, nos termos da LGPD. Desse modo, entendemos que o oficial de registro deve recusar pedidos de múltiplas certidões por entidades privadas, que reflitam interesse em elaborar inventários patrimoniais e capturar dados sob a guarda dos registros para fins comerciais.

4.3.2. Centrais Estaduais e o Operador Nacional de Registro O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis-SREI, instituído pela Lei 11.977/2009, constitui importante avanço para a eficiência do sistema registral, não só por facilitar a identificação e processamento de matrículas, em âmbito nacional, mas por permitir a realização de serviços e emissão de certidões eletrônicas em âmbito nacional. A digitalização dos serviços, porém, traz riscos 82 “È illegittima la prassi di un comune di comunicare i dati personali dei cittadini residenti fuori dai casi e dei termini previsti dalla normativa in materia anagrafica (nella specie, all´esito di accertamenti ispettivi l´Autorità ha rilevato, e vietato, la prassi illegittima del comune di consentire l´accesso ai dati a soggetti privati non autorizzati per finalità commerciali)”. Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali 9 luglio 2003 [doc. web n. 1080354]

maiores em caso de vulnerabilidades na segurança do sistema ou caso as práticas dos registradores não sigam regras de governança estritas em relação à proteção de dados. O SREI foi primeiramente implementado pela Associação de Registradores do Estado de São Paulo, cujo protocolo eletrônico foi reconhecido pelo CNJ, conforme Recomendação 14/2014, que, ademais, apontava para a implantação de sistema registral eletrônico em âmbito nacional, ao que se assistiu o surgimento de diferentes unidades de integração eletrônica dos serviços registrais nos Estados e no Distrito Federal, as chamadas Centrais Estaduais. A Lei 13.465/2017, por sua vez, instituiu, em seu art. 76, o Operador Nacional do Registro, responsável pela implantação do SREI em âmbito nacional. O ONR é pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e submete-se ao poder normativo do CNJ. Segundo o mesmo dispositivo legal, as chamadas Centrais Estaduais, passam a estar vinculadas ao ONR. Conforme voto do Presidente do CNJ, Ministro Dias Toffoli, em acórdão do Conselho Nacional de Justiça no Pedido de Providências n. 0003703-65.2020.2.00.0000, de 23.06.2020, o ONR tem a natureza de um serviço social autônomo, refletindo o regime constitucional de delegação.83 Assim, embora não haja referência na LGPD às Centrais Estaduais ou ao ONR, por integrarem o sistema registral e acessarem informações relevantes dos oficiais de registro, é razoável também considerá-los, ao menos quanto ao compartilhamento de dados, como pessoas jurídicas de direito público. Ou seja, a essas entidades é vedado compartilhar dados com entidades privadas, por força do art. 26, §1o da LGPD, e o acesso por órgãos públicos deve ter base legal e ser orientado para a persecução de políticas públicas específicas. Como destaca o referido acórdão, não cabe a cobrança de quaisquer taxas por essas entidades por seus serviços. Em relação a órgãos públicos, o próprio art. 76, §6º e §7º prevê seu compartilhamento com o Poder Executivo e com o Sinter, o que será objeto de análise no item posterior. Nesta Seção ficaremos adstritos à análise da relação das Serventias com as Centrais e o ONR, o que vem regulado pelo Provimento 89/2019 do CNJ. Quanto a esse aspecto, o SREI e o sistema gerido pelo ONR in83 Disponível em https://www.cnj.jus.br/InfojurisI2/Jurisprudencia.seam?jurisprudenciaIdJuris=51708&indiceListaJurisprudencia=0&tipoPesquisa=LUCENE&firstResult=0.

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serem-se no dever de conservação funcional dos dados registrais, que implica sua sistematização eficiente para o provimento do serviço registral, além da obrigação dos notários e registradores de zelar para que seus serviços sejam prestados com rapidez, qualidade e eficiência (arts. 4º, 30, inc. II da Lei 8935/94).84 Segundo o Provimento 89/2019, os oficiais de registro continuam com a obrigação de manter sob sua guarda e conservação os livros classificadores e documentos (art. 11) e de realizar as inscrições e lavratura de certidões. Ou seja, a função pública registral continua a ser exercida nas serventias, disponibilizando-se Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, gerido pelo ONR, responsável por estruturar a interconexão do SREI com o SINTER (vide próxima Seção) e Interoperabilidade com as Centrais Estaduais. O SAEC disponibilizará ao público, em seu sítio eletrônico, um indicador para cartórios, circunscrições e tabelas de custas. Por meio do SAEC, o usuário poderá encaminhar pedido de certidões, porém, seu protocolo e processamento caberá à serventia competente (art. 18, II), além do que o usuário poderá acompanhar o estado do pedido. Portanto o serviço eletrônico gerido pelo ONR informa sobre a atividade de cada cartório de registro, mas não se substitui, nem exerce a função pública delegada ao oficial de registro. Também as Centrais Estaduais, conforme Provimento 89/19, passam a ser coordenadas e monitoradas pelo SAEC, de responsabilidade do ONR (art. 24 par. 3º). Por meio das centrais os oficiais de registro podem intercambiar documentos relevantes para o exercício de suas competências, conforme regulamentação do SREI, destacando-se no art. 25, parágrafo único, que “todas as solicitações feitas por meio das centrais de serviços eletrônicos compartilhados serão enviadas ao ofício de registro de imóveis competente, que é o único responsável pelo processamento e atendimento”. Portanto, as Centrais, integradas ao SAEC, constituem portais que facilitam o acesso do usuário aos serviços registrais, com a função de direcionar a demanda de certidões para o cartório competente e o envio de documentos eletrônicos para o exercício da função pública das Serventias. Sua operação é, em princípio, compatível com a LRP e a LGPD na medida em que, tanto as Centrais, quanto 84 Sobre a constitucionalidade de sistema registral eletrônico de imóveis, interligando as diferentes Serventias para a prestação do serviço e sobre as funções do Operador Nacional de Registro de Imóveis, ver Tavares, A. R. ONR: Resposta à exigência constitucional de um eficiente sistema registral, in Boletim IRIB em Revista, Edição 359, https://www.irib.org.br/publicacoes/boletim-irib-em-revista/boletim-irib-em-revista-edicao-359.

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o ONR, por meio do SAEC, não realizem atribuições de competência exclusiva dos oficiais de registro, não compartilhem com entidades privadas o agregado de informações registrais a que têm acesso, sejam transparentes em relação a quais documentos são trocados por seu intermédio entre os oficiais de registro, indicando a sua necessidade para a operação eficiente dos serviços registrais e especificando a finalidade dessa movimentação de dados. Cabe, de todo modo, realizar o controle de finalidade, garantindo-se o envio e acesso apenas àquilo que for estritamente necessário para o desempenho de suas funções, tendo em vista a preocupação da legislação de proteção de dados, com centros de unidade informacional, públicos ou privados, que as Centrais tem o potencial de agregação de dados, do qual decorre maior poder inferencial.

4.3.3. Compartilhamento de dados registrais com órgãos públicos No que diz respeito a órgãos públicos, a LGPD emprega o termo “uso compartilhado” para se referir a “tratamento compartilhado de bancos de dados pessoais por órgãos e entidades públicos no cumprimento de suas competências legais, ou entre esses e entes privados, reciprocamente, com autorização específica” (art. 5o, inc. XVI, da LGPD). A questão que se coloca é se o compartilhamento ou a integração da própria base de dados poderia ser justificado para o exercício de competências legais dissociadas, para atendimento a políticas públicas distintas, ou se a integração e compartilhamento da base somente estaria justificada para o exercício de competências legais complementares dentro de um mesmo serviço ou política pública. Ao colocar, na definição legal, o compartilhamento entre órgãos públicos no mesmo pé do compartilhamento de órgãos públicos com entes privados, a LGPD dá a entender que se trata da segunda hipótese, a exemplo da administração centralizada, em que a entidade privada coopera com a administração para a execução de determinada política pública. E essa é a melhor interpretação, caso contrário, a interoperabilidade e integração da base de dados em uma unidade informacional sob controle da Administração, para exercício de poderes e competências legais distintas e desvinculadas, violaria o princípio de separação de poderes informacional. Assim, a transferência ou compartilhamento de dados entre órgãos públicos somente se justifica para o exercício de competência do órgão que controla originariamente os


dados ou para o exercício de competências complementares, dentro da mesma política pública com finalidade específica e determinada. Porém, o termo empregado pela LGPD ao se referir aos órgãos notariais e de registro não é nem uso compartilhado, nem transferência de base de dados, mas apenas “fornecer acesso a dados por meio eletrônico” (art. 23, §5o). O fornecimento de acesso a informações ou a dados específicos controlados pelos registradores justifica-se para o exercício de competência distinta e não relacionada à competência registral. A referência a meios eletrônicos liga-se ao interesse em desenvolver a execução eficiente de serviços públicos em ambiente de e-Government, que conforme abordado na introdução, vem sendo implementado pelos registradores conforme estipulado em lei e regulamentado pelo CNJ no âmbito dos Registros de Imóveis. Sobre essas iniciativas, vale, inicialmente, examinar o alerta feito pelo Conselho Europeu, quando examinou o tema, na década de 90, no contexto de digitalização dos serviços públicos e riscos do uso indiscriminado de dados registrais.85 “O fator mais importante a ser levado em conta quando se avaliam os possíveis impactos negativos da digitalização é a proteção de dados. Computadores possibilitam a interligação de registros pessoais criados para propósitos distintos (status civil, seguridade social, tributação, etc.). Essas interligações são propostas sob o argumento de que todos os registros no setor público são de interesse público. Todavia, há vários argumentos contrários à interligação irrestrita de arquivos: os cidadãos precisam saber qual é exatamente o propósito a ser servido por um registrador a quem forneceu informação. Ademais, um órgão particular pode desenvolver com seu cliente uma relação de mútua confiança que não se transfere a outros órgãos 85 “The most important factor to be taken into account when one assesses the possible negative impact of computerisation concerns data protection. Computers enable the linkage of personal records set up for different purposes (civil status, social security, taxation, etc.). Such linkages may be defended by the argument that all records in the public sector are there in the public interest. Yet there are several counter arguments against limitless linking of records: the citizens need to know what exactly is the purpose to be served by a register for which they have furnished information. Moreover, a particular agency may develop with its clients a relationship of mutual trust which does not brook other agencies having automatic access to all information. This principle of confidentiality must certainly be observed in the civil status field when sensitive dada are at stake. Finally, the right of everyone to have certain data corrected or deleted would become illusory if data were allowed to circulate without any restrictions.” Council of Europe, Computerised registers in the public sector (in civil, penal and administrative law). 12th Colloquy on Legal Data Processing in Europe, 1995, p.81.

com acesso automático a toda informação. Esse princípio de confidencialidade certamente deve ser observado no campo do status civil, onde dados sensíveis estão em jogo. Finalmente, o direito de todos a corrigir ou deletar seus dados seria ilusório se fosse permitida uma circulação de dados sem qualquer restrição.” O Conselho Europeu manifesta preocupação particular com o acesso a dados do registro civil por outros órgãos da administração pública. Primeiro, questiona a interoperabilidade quando se trata de uso da base para finalidades distintas pelos diferentes órgãos, para, em seguida, opor-se também ao acesso indiscriminado aos dados. Vale dizer, o acesso não pode abranger todos os dados, mas sofrer restrições, que, a partir da legislação europeia e das leis de proteção de dados dos países membros, são impostas pelo controle de finalidade, conforme a competência de cada ente público. Trata-se de reflexo imediato do princípio de separação de poderes informacional, que, como vimos, também deve pautar a interpretação da LGPD, por ser corolário da autodeterminação informacional. Assim, quando o art. 23, §5o da LGPD fala em fornecer acesso a dados para a administração pública, em primeiro lugar, não se pode com isso entender compartilhar ou transferir bases de dados. Em segundo lugar, nos termos da LGPD, art. 23, caput, esse fornecimento de informação ou acesso deve estar embasado em competência legal específica do órgão da Administração que o receberá, de modo que seja possível realizar o controle de finalidade. É fundamental que a finalidade de uso esteja especificada na legislação de regência que embasa o acesso, ou caso a autorização seja genérica, que o agente público do órgão solicitante especifique a finalidade no ato de solicitação, finalidade que, obviamente, deve ser condizente com sua competência e com os objetivos da lei que autoriza o acesso. Não é o caso do Decreto 8.764/2016, que cria o Sistema Nacional de Informações Territoriais – Sinter, ferramenta de gestão pública que operará sobre banco de dados jurídicos produzidos pelos serviços de registros públicos. Há uma série de elementos que apontam para a ilegalidade e inconstitucionalidade desse decreto. Primeiro, ao criar base de dados própria com os dados que forem produzidos pelos serviços de registros públicos, prever, no art. 5º, a disponibilização dos documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel (portanto incluindo dados BOLETIM 362

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pessoais) e sua atualização a cada ato registral (§1º), o Decreto acaba por determinar transferência integral de dados registrais para base cadastral controlada pelo Poder Executivo. Com isso, além de se violar o disposto no art. 23, §5o da LGPD, desvirtua-se a natureza do dado registral e se contraria o dever de guarda dos dados, inclusive contra o Estado. A constitucionalidade desse modelo já seria questionável pelo fato de retirar da esfera do poder normativo e fiscalizador do P. Judiciário o controle do processamento dos dados registrais (art. 236, §1o da CF 88).86 Em segundo lugar, Decreto não especifica a política pública ou finalidade de uso dos dados, mencionando apenas ser essa uma ferramenta de gestão administrativa (art. 1º, caput), acessível, independentemente de qualquer formalidade ou termo que indique a finalidade, pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, pelos órgãos e as entidades da administração pública federal direta e indireta e pelas Administrações Tributárias dos Estados, Distritos Federais e Municípios, mediante convênio com a Receita Federal (note que o decreto não exige que o convênio especifique finalidade). A utilização de dados do registro de imóveis pela Receita Federal pode ter função relevante no sentido de se identificar fraudes tributárias, mas a finalidade e os limites de utilização dos dados deve ser explicitado, como forma de controle pelo sujeito do dado e de se evitar a condição de incerteza que ameaça a autodeterminação informacional dos cidadãos. Veja que a menção genérica a “políticas públicas” não atende ao quanto exigido pelo art. 23 da LGPD e inviabiliza o controle de finalidade do processamento do dado. Veja, por exemplo, que a LGPD considera nulos consentimentos genéricos para processamento de dados (art. 8o, §4o), que não determinem finalidade específica. Da mesma forma, a competência genérica do órgão que acessa a base registral, como a competência da Receita Federal, não é suficiente. Se isso é verdade, com muito mais razão revela-se a inconstitucionalidade do inc. II do art. 3º que autoriza o acesso por quaisquer entidades da administração pública federal direta e indireta. É a concretização da ameaça da “unidade informacional” na Administração Pública, para a qual alertava Spiros Simitis, que, como visto, inviabiliza a autodeterminação 86 A esse respeito ver Jacomino, Sérgio. O Sinter é um Divisor de águas, In Observatório do Registro, https://cartorios.org/2016/11/04/o-sinter-e-um-divisor-de-aguas/. Ver também Tavares, A.R. Opinião Jurídica: consulta sobre o Decreto Presidencial n. 8764/2016.

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informacional do cidadão perante o Estado, violando o princípio de separação de poderes informacional. Perde-se completamente a noção sobre quem, na Administração Pública, detém e para que fim processa dados pessoais. Lembre-se de que o marco fundacional da proteção de dados, o julgamento do caso do censo pelo Tribunal Constitucional Alemão, afirmou a inconstitucionalidade justamente da transferência de dados para órgãos com função executiva. É justamente o que se observa aqui. Se o STF, em precedente recente, entendeu desproporcional o fornecimento de nome, endereço e telefone por todos os usuários de telefonia a um órgão público com competência para elaboração de estatística, o que dizer do fornecimento de todos os dados registrais imobiliários e todos os atos registrais ao órgão de gestão administrativa, sem qualquer indicação de finalidade? Embora o Decreto 8.764/2016 traga uma base legal que autorizaria o tratamento correspondente pelo oficial de registro, ele significa uma forma de compartilhamento sem especificação de finalidade, o que viola a LGPD. A falta de especificação da finalidade de uso pela Receita, o acesso aos dados franqueado a todos os órgãos públicos da administração federal direta ou indireta e a possibilidade de convênio com administrações de outros entes da federação (art. 3º, incs. II, III) claramente violam o direito fundamental à autodeterminação informacional. O tema merece regulamentação por parte da Autoridade Nacional de Proteção de Dados para proteger os dados pessoais dos sujeitos com direitos reais inscritos nos registros, de modo que haja segurança jurídica para os oficiais de registro em relação a essa forma de compartilhamento. Há formas de compatibilizar o interesse em uma gestão eficiente com o resguardo a dados pessoais, seja pela transparência quanto à finalidade, seja por meio da anonimização, quando possível para atender a finalidade perseguida pela gestão administrativa. Na condição atual, subsiste a possibilidade de questionamento judicial e reconhecimento, pelo STF, da inconstitucionalidade da transferência de dados registrais a órgãos públicos.

4.4 Governança e Privacidade A conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados, como qualquer atividade de compliance, implica providências práticas no cotidiano das Serventias e mudanças na cultura de trabalho estabelecida.87 Elas exigem sempre 87 “Esto es, por Compliance hay que entender aquel conjunto de medidas tenden-


o comprometimento do topo da administração para alcançar a capilaridade de toda a estrutura organizacional. Para construção da estrutura de Governança em Privacidade, a primeira providência a ser tomada é a de estruturar os papéis e as correlatas responsabilidades que devem ser atribuídas. É o que a Lei Geral de Proteção de Dados apresenta, em seu art. 50, como Governança em Privacidade, a partir da qual se estabelecem condições de organização, regime de funcionamento, procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, normas de segurança, padrões técnicos, obrigações específicas para os envolvidos no tratamento, ações educativas, mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais. Apesar da estruturação da Governança não ser obrigatória nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados, que a ela se refere como faculdade do controlador ou operador (art. 50, caput), é importante a criação de protocolos internos na organização para que haja conformidade com a legislação. No caso específico dos Registros Imobiliários, importa ressaltar que o art. 8º do Provimento nº 89/2019, CNJ, estabelece como objetivo do SREI a adoção de governança corporativa das Serventias de Registros de Imóveis, ao passo que o art. 76, Lei nº 13.465/2017, atribui ao ONR a responsabilidade por operar o SREI. Assim, considerando a fragmentação e realidades bastante distintas encontradas em cada Serventia em termos de volume de processamento e estrutura, parece-nos razoável e recomendável que o ONR assuma papel de destaque na estruturação da Governança em Privacidade dos Registros Imobiliários, com a elaboração de diretrizes e modelos a serem adotados pelas diferentes serventias. Em particular, recomendamos a criação de Comitê, no âmbito do ONR, para desenvolvimento de orientações e políticas sobre proteção de dados, governança e organização dos fluxos de dados nas serventias, em particular no que diz respeito ao SREI. tes a garantizar que todos y cada uno de los miembros de una empresa, desde el presidente del consejo de administración hasta el último empleado, cumplan los mandatos y las prohibiciones jurídico-penales, y a que, en caso de infración, sea posible su descubrimiento y adecuada sanción. (…) Tras el Compliance, en realidad lo que se escondería es ‘por primera vez la pretensión sistemática de adoptar reglas y procesos intraempresariales que logren que el cumplimiento del Derecho vigente no obedezca la casualidad, al compromiso individual o a los intereses parciales de un departamento, sino a una arquitectura de Compliance vinculada globalmente con las actividades empresariales tanto internas como externas’” (cf. KLINDT, PELZ, THEUSINGER. Compliance im Spiegel der Rechtsprechung. NJW, (33), 2010, p. 2385). VILA, Ivó Coca. ¿Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In Criminalidad de empresa y Compliance – prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013.

4.4.1. Encarregado pelo Tratamento de Dados Pessoais A Lei Geral de Proteção de Dados impõe a figura do Encarregado pelo Tratamento de Dados Pessoais, que define no art. 5º, VIII, como “a pessoa indicada pelo controlador e operador para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados”. A despeito da definição estreita trazida pela lei, que o reduz a um canal de comunicação, o Encarregado abarca também outras funções, mais técnicas, tais como: (a) a análise de criticidade de atividades de tratamento de dados pessoais, notadamente por meio de avaliação ou elaboração de Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais, (b) atuar na elaboração do plano de resposta a incidentes de privacidade, (c) na avaliação do desenho de privacidade (privacy by design, previsto no art. 46, §2º, da lei brasileira), entre outros. O Encarregado é figura prevista na legislação europeia, com mais força desde o Regulamento Geral sobre Proteção de Dados (GDPR, na sigla inglesa), nos arts. 37º a 39º, e em sua origem, na Lei alemã de Proteção de Dados de 1977, nos §§28 e 29 – neste último, com a definição mais precisa sobre o cargo: o Encarregado implementa a legislação de proteção de dados na organização88. Assim, a indicação do Encarregado é central precisamente porque é ele o ponto focal das providências para a conformidade à legislação de proteção de dados pessoais. A Lei Geral de Proteção de Dados impõe ao controlador de dados pessoais a obrigação de indicar um Encarregado (art. 41) e no caso dos serviços de registro, em razão da aplicação do mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito público, nos termos do art. 23, §4º, subiste a obrigação de indicação ainda quando forem simplesmente operadores de dados pessoais (art. 23, III). Ou seja, em ambos os casos, nas figuras de controlador e/ou de operador de dados pessoais os Registros 88 “§ 29 Aufgaben des Beauftragten für den Datenschutz. Der Beauftragte für den Datenschutz hat die Ausführung dieses Gesetzes sowie anderer Vorschriften über den Datenschutz sicherzustellen. Zu diesem Zweck kann er sich in Zweifelsfällen an die Aufsichtsbehörde (§ 30) wenden. Er hat insbesondere (1) eine Übersicht über die Art der gespeicherten personenbezogenen Daten und über die Geschäftszwecke und Ziele, zu deren Erfüllung die Kenntnis dieser Daten erforderlich ist, über deren regelmäßige Empfänger sowie über die Art der eingesetzten automatisierten Datenverarbeitungsanlagen zu führen, (2) die ordnungsgemäße Anwendung der Datenverarbeitungsprogramme, mit deren Hilfe personenbezogene Daten verarbeitet werden sollen, zu überwachen, (3) die bei der Verarbeitung personenbezogener Daten tätigen Personen durch geeignete Maßnahmen mit den Vorschriften dieses Gesetzes sowie anderen Vorschriften über den Datenschutz, bezogen auf die besonderen Verhältnisse in diesem Geschäftsbereich und die sich daraus ergebenden besonderen Erfordernisse für den Datenschutz, vertraut zu machen, (4) bei der Auswahl der in der Verarbeitung personenbezogener Daten tätigen Personen beratend mitzuwirken.”

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Públicos precisam indicar um Encarregado. A lei brasileira foi sucinta sobre as características e as habilidades que deve ter esse profissional. Contudo, pela legislação e experiência europeias, incluindo as diretrizes estabelecidas pelo Grupo de Trabalho do Artigo 29, atual Comitê Europeu de Proteção de Dados89, temos como reconhecida a importância de se tratar de profissional multidisciplinar, que compreenda a legislação de proteção de dados, seus aspectos técnicos e as peculiaridades da organização. Ademais, exige-se que possua autonomia e que goze da confiança do agente de tratamento que o indicou para o exercício de suas funções. Considerando que há realidades distintas entre as Serventias e que a LGPD abre a possiblidade de que o Encarregado seja externo, é possível pensar em soluções nas quais o ONR estruture grupos de Serventias sob a responsabilidade de um mesmo Encarregado.

4.4.2. Política de Privacidade O documento apto a registrar todas as regras estabelecidas no Programa de Governança em Privacidade é a Política de Privacidade, prevista no art. 50, Lei Geral de Proteção de Dados. É importante que as regras da Governança em Privacidade estejam devidamente documentadas em uma Política de Privacidade, primeiramente em observância ao princípio da responsabilização e prestação de contas (art. 6º, X, LGPD). É por meio da referida documentação que o Registro Público conseguirá comprovar a observância de regras em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados. Em um segundo momento, caso haja violação de dados, a adoção de política de boas práticas e governança é considerada como “parâmetro e critério” na aplicação de sanções administrativas (art. 52, §1º, IX). Deve-se ressaltar nesse ponto, a lógica de que está imbuída a mitigação da penalidade nesse caso. Embora os incidentes que mais obtenham atenção sejam os incidentes de segurança (como invasões de terceiros por vulnerabilidades sistêmicas ou disponibilizações indevidas e massivas de dados pessoais), o que a Lei Geral de Proteção de Dados penaliza não é o incidente em si, mas a violação à lei da qual ele decorre. É nesse sentido que o art. 43, II estabelece que os agentes não serão responsabilizados “embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais 89 Diretrizes sobre Encarregados de Proteção de Dados, Disponível em https:// ec.europa.eu/newsroom/article29/item-detail.cfm?item_id=612048

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que lhes é atribuído, [se] não houve violação à legislação de proteção de dados”. Assim, por um lado, se em caso de dano a outrem, irá se buscar qual norma de proteção de dados possa ter sido descumprida; por outro, a comprovação dos esforços de conformidade e de atuação para conter impactos do incidente de segurança mitiga a responsabilização tanto na esfera administrativa (art. 52, §1º, IX) como na esfera judicial (art. 43, II). A Política de Privacidade deve ser adequada à realidade de cada Registro Público, mas existem alguns parâmetros internacionais que podem auxiliar em sua elaboração, notadamente no que tange às medidas de segurança técnicas e administrativas. Um deles é o da ISO 27701:2019, elaborada para a adequação ao Regulamento Geral sobre Proteção de Dados (GDPR, em inglês) e que pode servir como um início para elaboração de uma Política adequada à Lei Geral de Proteção de Dados, haja vista as diferenças especialmente sobre direitos dos titulares e obrigações contratuais. Importante notar que a referida norma ISO 27701 é estruturada de forma a complementar uma Política de Segurança da Informação já estabelecida, cujas referências são as normas ISO 27001 e 27002. Uma Política de Segurança da Informação tem como objetivo a garantia da disponibilidade, integridade e confidencialidade dos ativos de informação de dada organização. Nesse sentido, ela é mais ampla que a Política de Privacidade, que tem como objetivo essa garantia voltada exclusivamente aos dados pessoais. Assim, enquanto a Política de Segurança da Informação tem como objetivo a proteção dos ativos de informação, genericamente, para preservar a continuidade do negócio, a Política de Privacidade tem como objetivo a garantia da proteção de dados pessoais aos titulares. Evidentemente, essas regras abrangem o ambiente lógico dos Registros de Imóveis e por isso devem ser as mesmas para todos eles, é dizer, devem ser universalizadas tanto em razão de sua interoperabilidade como em razão da manutenção de nível adequado de proteção de dados pessoais em todas as Serventias. Seria recomendável a adoção de uma Política Geral de Proteção de Dados, no âmbito do ONR, aplicável a todas as Serventias, com a possibilidade de adaptações e complementações na política de privacidade em cada Serventia.

4.4.3. Registro das atividades de tratamento de dados pessoais Diferentemente da Política de Privacidade, que embora


central na estruturação da Governança, é uma faculdade, o registro das atividades de tratamento de dados pessoais é uma obrigação imposta pela Lei Geral de Proteção de Dados no art. 37. Trata-se de registro específico (produto de mapeamento das atividades de tratamento de dados pessoais) que permita visualizar o ciclo de vida dos dados pessoais na Serventia. Essa obrigação decorre dos princípios da responsabilização e da prestação de contas (art. 6º, X), pelo que se pode constatar que o registro deve conter os itens necessários para verificação da existência e da eficácia de medidas de proteção de dados pessoais. A lei brasileira não especifica quais seriam esses itens, mas é possível utilizar, como parâmetro, o art. 30º, Regulamento europeu, que estabelece como informações necessárias no registro: i) nome e contatos do controlador, do representante do controlador e do Encarregado pelo tratamento de dados pessoais; ii) as finalidades do tratamento; iii) a descrição das categorias de titulares de dados, a saber se há dados de crianças e adolescentes, que devam ser tratados com disciplina especial, e das categorias de dados pessoais, a saber se dados pessoais simples ou sensíveis; iv) categorias de destinatários a quem os dados são divulgados, incluindo os estabelecidos em países terceiros ou organizações internacionais, a fim de determinar se há incidência das normas de transferências internacionais e de aplicação de legislação estrangeira; v) no caso de transferência internacional, a documentação pertinente; vi) os prazos para exclusão dos dados pessoais (estabelecimento de período de retenção); e vii) descrição geral das medidas técnicas e organizativas. No caso específico dos Registros Públicos, há necessidade de maior transparência na prestação de contas, em razão da natureza do serviço prestado, e é o registro das atividades de tratamento de dados pessoais o documento hábil a comprová-la. Assim, por meio do registro, é possível verificar a observância do princípio da finalidade, segundo o qual o tratamento de dados pessoais deve ser realizado para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular (art. 6º, I) e que são utilizados apenas os dados pessoais necessários e adequados ao atendimento dessa finalidade (art. 6º, II e III). A finalidade pré-estabelecida deve encontrar fundamento em base legal correta. O registro também permite uma visualização mais ampla sobre transferências e compartilhamento de dados pessoais e sobre as correspondentes medidas de segurança técnicas e administrativas adotadas em cada caso, nos termos dos arts. 46 e 47. Por fim, o registro per-

mite traçar o final do ciclo de vida do dado pessoal ao determinar o período específico de retenção do dado, após o qual ele deverá ser descartado, nos termos dos arts. 15 e 16, Lei Geral de Proteção de Dados.

4.4.4. Relatórios de impacto à Proteção de Dados Com a ampla visualização das atividades de tratamento de dados pessoais, ficarão em destaque as atividades que tratem dados pessoais sensíveis, quais sejam, dados pessoais sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, referentes à saúde ou à vida sexual, dados genéticos ou biométricos, quando vinculados a uma pessoa natural (art. 5º, II), bem como atividades que tratem dados pessoais sob a base legal do legítimo interesse (art. 7º, IX). Nesses dois casos a Autoridade Nacional de Proteção de Dados poderá solicitar um Relatório de Impacto à Proteção de Dados (art. 10, §3º e 38) e dos Registros Públicos, que estão sob a disciplina imposta ao Poder Público, também poderá solicitar a publicação desses Relatórios (art.32). O Relatório de Impacto à Proteção de Dados encontra definição na lei brasileira, como a “documentação do controlador que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco” (art. 5º, XVII). Esse Relatório deve conter, no mínimo: (i) a descrição dos tipos de dados coletados; (ii) a metodologia utilizada para a coleta e para a garantia da segurança das informações; (iii) a análise com relação a medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco adotados, nos termos do art. 38, parágrafo único. Essa ferramenta tem como correlata europeia a Avaliação (Assessment) de Impacto à Proteção de Dados, o que dá a medida de sua utilidade não apenas como Relatório, é dizer, como simples descritivo da atual situação de determinada atividade de tratamento de dados pessoais, mas também como ferramenta de avaliação de atividades que possam causar maior impacto aos direitos e liberdades dos titulares de dados. Assim, é possível estabelecer uma metodologia para mensurar os pontos de risco e as medidas de mitigação a fim de viabilizar a atividade de tratamento com a observância das normas de proteção de dados. Por esse motivo, embora haja previsão legal para sua elaboração nas hipóBOLETIM 362

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

teses mencionadas, ele pode ser utilizado em quaisquer hipóteses nas quais o controlador compreenda haver maior risco aos titulares e queira mitigá-los para conformidade à legislação de proteção de dados.

4.4.5. Contratos com terceiros envolvendo tratamento de dados pessoais É importante delimitar contratualmente a responsabilidade com todos os parceiros com os quais se compartilham dados pessoais. Como providência, devem ser incluídas cláusulas de proteção de dados nos contratos a serem celebrados, bem como elaborados aditivos contratuais para os contratos já existentes. Mais uma vez, a legislação brasileira não aborda as cláusulas mínimas sobre proteção de dados que devem constar na providência de revisão contratual e, por essa razão, é possível amparar-se nos critérios estabelecidos pela legislação europeia. O GDPR, em seu art. 28º, 3., estabelece cláusulas mínimas a serem instituídas nas relações entre controlador e operador, que de forma resumida podem ser descritas como (i) cláusulas sobre as instruções documentadas na relação entre controlador e operador; (ii) cláusula de minimização de acesso aos dados pessoais, garantindo que apenas as pessoas que necessitem dos referidos dados para o exercício de suas funções terão acesso a eles e que estão sob compromisso de confidencialidade; (iii) cláusula sobre medidas de segurança técnicas e administrativas; (iv) cláusulas sobre a possibilidade de subcontratação e, em havendo tal possibilidade, em quais condições ela será admitida; (v) cláusula de cooperação e repartição de responsabilidades no que tange à garantia dos direitos dos titulares; (vi) cláusula de cooperação para comprovação de compliance, especialmente importante nos casos de incidentes de segurança e de privacidade que demandem comunicação à Autoridade de Proteção de Dados; e (vii) cláusula de exclusão e/ou devolução de dados pessoais ao término da relação contratual.

4.5. Transparência A transparência, que surge na LGPD como “garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial” (art. 6º, VI), traz requisitos mais específicos no art. 9º, quais sejam: (i) finalidade específica do tratamento; (ii) forma e duração do tratamento, 36

BOLETIM 362

observados os segredos comercial e industrial; (iii) identificação do controlador; (iv) informações de contato do controlador; (v) informações acerca do uso compartilhado de dados pelo controlador e a finalidade; (vi) responsabilidades dos agentes que realizarão o tratamento; e (vii) direitos do titular, com menção explícita aos direitos contidos no art. 18 desta Lei (e complementa-se: não apenas o art. 18, mas também o art. 20, que trata do direito à revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais e é também direito do titular). Além disso, a Lei Geral de Proteção de Dados exige maior clareza dos Registros Públicos que, em obrigação de transparência específica, devem informar “as hipóteses em que, no exercício de suas competências, realizam o tratamento de dados pessoais, fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso, preferencialmente em seus sítios eletrônicos” (art. 23, I). O documento público voltado ao cumprimento da obrigação específica de transparência e que deve conter os requisitos apontados dos arts. 9º e 23, I, é o aviso de privacidade, que deve ser facilmente acessível, inclusive nos sites dos Registros Públicos. Trata-se de documento voltado ao público em geral e por essa razão, deve ser redigido com clareza e simplicidade, para melhor compreensão dos cidadãos. Assim, a importância da transparência é possibilitar a autodeterminação informativa. Se a atividade de tratamento de dados pessoais é opaca ou obscura para o titular, ele terá obstado seus demais direitos enquanto titular. Recomenda-se que os avisos sejam também adotados pelas Centrais Estaduais, pelo ONR e pelo SAEC, indicando de modo claro quais dados são compartilhados entre essas instituições e para qual finalidade.

4.6. Garantia dos Direitos dos Titulares A garantia dos direitos dos titulares, insculpidos nos arts. 18 e 20, Lei Geral de Proteção de Dados, tem caráter diverso no que se refere aos Registros Públicos, uma vez que não são aplicáveis as regras consumeristas. A garantia dos direitos dos titulares é incorporada pelo Poder Público, e pelos Registros Públicos, em razão da natureza da prestação de serviço e por força legal do art. 23, §4º, como uma camada adicional de proteção ao cidadão, somada aos instrumentos do Habeas Data


e da Lei de Acesso à Informação. Os direitos dos titulares estão previstos no art. 18, mas nem todas prerrogativas ali previstas para os titulares de dados se aplicam à atividade registral. Isso porque, como já visto, a base legal para o tratamento de dados pessoais pelos oficiais de registro é a LRP, de modo que prerrogativas como consentimento para processamento ou sua revogação ou, ainda, a exclusão de dados pessoais necessários ao exercício da competência registral, não podem se sobrepor à função pública exercida pelo oficial de registro. Assim, temos os seguintes direitos dos titulares, que podem ser opostos e implicam deveres dos oficiais de registro: a confirmação da existência de tratamento; o acesso aos dados; a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; a anonimização, naquilo que for aplicável, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados e na LRP; a obtenção de informação sobre as entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados. Há, ademais, o direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, previsto no art. 20 da LGPD. As Serventias devem adotar procedimentos simples e acessíveis para que os titulares de dados pessoais exerçam essas prerrogativas.

4.7. Reflexão sobre o Registro Imobiliário diante da economia digital Como ponderado acima, o sistema registral foi arquitetado para atender ao interesse público no tráfego de imóveis, numa economia na qual o principal ativo para geração de riquezas estava em bens físicos. Mas a atual economia digital tem como principal fator de geração de riqueza a transmissão, o processamento e o compartilhamento de informações. Se em uma primeira etapa a produção dessas informações e seu processamento estavam concentrados em grandes empresas, ainda dentro de uma sociedade de organizações, como principais agentes produtivos, em um segundo momento, já na virada do milênio, essa produção e consumo de informações e dados dos quais se extraem novas informações passaram a ser descentralizados dada a possibilidade de interações comunicativas e econômicas diretas entre os pares, a partir de plataformas online. Esse modelo centra a economia na coleta e processamento de dados de usuários de um lado

da plataforma, que geram inteligência a ser explorada para obter ganhos econômicos do outro lado composto por ofertantes de serviços nessas plataformas. Daí investimentos maciços em ferramentas de análise de dados e de inteligência artificial para, cada vez mais, incentivar o uso da plataforma, potencializando a coleta de dados, de modo a alimentar esse ciclo de geração de valor.90 Com relação a plataformas digitais que congregam interessados em imóveis a anunciantes e agentes imobiliários, os dados guardados pelos registradores permitem inferir informações valiosas, fidedignas e confiáveis sobre o universo imobiliário, o que reduz substancialmente os esforços necessários para coletar, por meio de consentimento, os dados relevantes acerca de seus usuários. Certamente, o valor desses dados e informações no mercado não é condizente com o valor pago pelas certidões lavradas, ou mesmo com os custos relativos aos investimentos realizados pelos oficiais de registro para a digitalização e sistematização das informações solicitadas. Esse descompasso merece reflexão diante do esforço de consolidação do sistema registral eletrônico. Não se trata apenas de mimetizar o universo físico dos imóveis para o formato digital. Trata-se de refletir sobre o papel dos registros públicos diante da nova economia digital em que o mercado passa a ter informações como seu principal ativo. A segurança das relações comerciais e de relações creditícias é afetada por esse mercado informacional, de modo que há interesse público na veiculação de informações confiáveis e seguras, guardadas e processadas por registradores. Mas é inadequado, e contrário à finalidade legal especificada para as certidões de registro de imóveis, usá-las como veículo de circulação dessas informações, notadamente porque implicam a transmissão indiscriminada de dados pessoais, colocando os sujeitos dos dados referidos nas certidões em condição de completa incerteza acerca da inferência de terceiros sobre sua pessoa. Como visto acima, o uso oblíquo das certidões para transferência de dados dos Registros para entidades privadas viola o art. 26, par. §1º da LGPD. Tal reflexão deve levar à restruturação da arquitetura e da regulamentação dos registros imobiliários, com a atribuição de novos papéis e competências que permitam aos oficiais de registro contribuir com a segurança e certeza das relações negociais e creditícias imobiliárias nessa esfera informacional da economia digital. Esse 90 Dada ênfase na coleta de dados, muitas vezes dados pessoais, Zuboff (2019) denomina esse modelo de “capitalismo de vigilância”.

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

potencial do Registro de contribuição com informações relevantes para o mercado digital pode ser explorado ao mesmo tempo em que se resguardam os direitos da personalidade dos sujeitos inscritos, por exemplo, com técnicas de anonimização, que impeçam a transferência de dados pessoais a terceiros, uma vez que, conforme a LGPD, art. 12, dados anonimizados não são considerados dados pessoais. Com isso, o mercado digital pode obter informações agregadas confiáveis e relevantes sem que titulares de dados pessoais sejam ameaçados.

5. DIRETRIZES E RECOMENDAÇÕES A partir da análise das relações entre o sistema registral e a legislação de proteção de dados pessoais, vislumbra-se o seguinte conjunto de diretrizes e recomendações ao sistema registral: (i) instituir Comitê junto ao ONR para planejamento da uniformização de práticas e estruturação de governança sobre proteção de dados no âmbito registral nacional; (ii) estruturar a governança em privacidade (art. 50 da LGPD), de preferência no âmbito do ONR, em razão de sua competência funcional e da necessidade de universalização das regras constantes em Política de Privacidade, inclusive quanto ao sistema (ambiente lógico dos Registros Imobiliários), para manutenção de nível adequado em proteção de dados em todas as Serventias no País; (iii) revisar a prática de lavratura de certidões por cópia reprográfica de matrícula, estabelecendo diretrizes uniformes sobre o conteúdo mínimo necessário, em diferentes contextos possíveis, para produzir o efeito de segurança e certeza sobre eventual transmissão do bem imóvel e, ao mesmo tempo assegurar a proteção de dados pessoais dos sujeitos com direitos inscritos; (iv) envidar esforços para a adequada regulamentação, junto ao CNJ e junto à Autoridade Nacional de Proteção de Dados, do compartilhamento de dados com o Sinter de modo a assegurar sua compatibilidade com o direito fundamental à autodeterminação informacional e com o princípio de separação de poderes informacional; (v) indicar, para cada Serventia, o Encarregado pelo Tratamento de Dados Pessoais, ou planejar, junto ao ONR estrutura para que cada Serventia ou

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Grupos de Serventias possam ter Encarregado responsável por garantir o cumprimento da LGPD, com as atribuições especificadas neste Estudo; (vi) cada Serventia deve elaborar, com apoio e diretrizes firmadas pelo ONR, o registro das atividades de tratamento de dados pessoais (produto de mapeamento das referidas atividades) que permita visualizar o ciclo de vida desses dados, bem como as medidas de segurança técnicas e administrativas adotadas; (vii) O ONR deverá fazer, no âmbito do SREI, o mapeamento do fluxo de dados e informações trocadas entre Serventias e as Centrais Estaduais, de modo a assegurar observância da LGPD nesses fluxos; (viii) elaborar Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais sobre as atividades de tratamento de dados pessoais sensíveis, bem como para fins de avaliação para atividades que possam causar maior risco aos direitos e liberdades dos titulares; (ix) elaborar aviso de privacidade, atendendo aos requisitos dos arts. 9º e 23, I, da LGPD, em todos os canais de comunicação com os usuários, no âmbito das Serventias, das Centrais Estaduais e do ONR (SAEC), para dar transparência às atividades de tratamento de dados pessoais do Registro Imobiliário (em particular deve ser esclarecido em que hipóteses e para quais finalidades ocorre o compartilhamento de dados com órgãos públicos e de informações entre as Serventias, entre estas e as Centrais e o ONR); (x) providenciar canal de atendimento para exercício de direitos dos titulares de dados pessoais, conforme art. 18 da LGPD; (xi) apurar em quais atividades registrais, atuais ou potenciais (projetos futuros), haveria emprego de decisões automatizadas, nos termos da LGPD, de modo a garantir o direito à revisão previsto no art. 20 da LGPD; (xii) refletir e estudar a viabilidade de regulamentação da atividade registral, com a atribuição de novos papéis e competências que permitam aos oficiais de registro contribuir com a segurança e certeza das relações negociais e creditícias imobiliárias na esfera informacional da economia digital.


5.1. Anexo: Legislação Citada Lei

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor

Constituição Federal

Art. 5º, XXXIII

Direito à informação prestada pelos órgãos públicos

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Constituição Federal

Art. 5º, XXXIV, b

Direito de certidão

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: (...) b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

Constituição Federal

Art. 5º, LX

Publicidade dos atos processuais

LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

Constituição Federal

Art. 93, IX

Fundamentação dos atos judiciais

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

Constituição Federal

Art. 216, §2º

Gestão documental

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

Constituição Federal

Art. 236, §1º

Institui as atividades dos Serviços Notariais e de Registro

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

Lei 8.935/1994

Art. 1º

Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal e dispõe sobre os serviços notariais e de registro

Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Lei 8.935/1994

Art. 22 e ss

Da responsabilidade civil e criminal dos notários e registradores

Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. Art. 23. A responsabilidade civil independe da criminal. Art. 24. A responsabilidade criminal será individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a administração pública. Parágrafo único. A individualização prevista no caput não exime os notários e os oficiais de registro de sua responsabilidade civil.

Lei 8.935/1994

Art. 28

Independência no exercício de suas atribuições

Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.

Lei 8.935/1994

Art. 30, I

Dever dos notários e registradores – Guarda em local seguro

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro: I - manter em ordem os livros, papéis e documentos de sua serventia, guardandoos em locais seguros.

Lei 8.935/1994

Art. 30, VI

Dever dos notários e registradores - Sigilo sobre a documentação e assuntos de natureza reservada

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro: VI - guardar sigilo sobre a documentação e os assuntos de natureza reservada de que tenham conhecimento em razão do exercício de sua profissão

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

Lei

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor

Lei 8.935/1994

Art. 30, XII

Dever dos notários e registradores - Facilitação de acesso à documentação às pessoas legalmente habilitadas

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro: (…) XII - facilitar, por todos os meios, o acesso à documentação existente às pessoas legalmente habilitadas;

Lei 8.935/1994

Art. 46

Responsabilidade do titular de serviço notarial

Art. 46. Os livros, fichas, documentos, papéis, microfilmes e sistemas de computação deverão permanecer sempre sob a guarda e responsabilidade do titular de serviço notarial ou de registro, que zelará por sua ordem, segurança e conservação. Parágrafo único. Se houver necessidade de serem periciados, o exame deverá ocorrer na própria sede do serviço, em dia e hora adrede designados, com ciência do titular e autorização do juízo competente.

Lei 8.935/1994

Art. 13

Certidão Competência dos oficiais de registro de expedir certidões (publicidade)

Art. 13. Aos oficiais de registro de distribuição compete privativamente: ... III - expedir certidões de atos e documentos que constem de seus registros e papéis.

Lei 6.015/73

Arts. 16 - 21

Certidão Dispõe sobre a publicidade no âmbito dos registros públicos

Art. 16. Os oficiais e os encarregados das repartições em que se façam os registros são obrigados: 1º a lavrar certidão do que lhes for requerido; 2º a fornecer às partes as informações solicitadas. Art. 17. Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido....

Lei 6.015/73

Art. 195

Certidão - Dispõe sobre certidão dos instrumentos particulares arquivados em cartório de registro de imóveis

Art. 194 - O título de natureza particular apresentado em uma só via será arquivado em cartório, fornecendo o oficial, a pedido, certidão do mesmo.

Decreto 8.764/2016

Arts. 1º e 5º

Comunicações com entidades externas ao Registro - SINTER

Art. 1º Fica instituído o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais - Sinter, ferramenta de gestão pública que integrará, em um banco de dados espaciais, o fluxo dinâmico de dados jurídicos produzidos pelos serviços de registros públicos ao fluxo de dados fiscais, cadastrais e geoespaciais de imóveis urbanos e rurais produzidos pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Art. 5º Os serviços de registros públicos disponibilizarão à administração pública federal, sem ônus, documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado, na forma estabelecida pelo Manual Operacional.

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Lei 11.977/2009

Art. 37 e seguintes

SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis

Art. 37. Os serviços de registros públicos de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, observados os prazos e condições previstas em regulamento, instituirão sistema de registro eletrônico.

Lei 6.015/73

Art. 1º, § 3º

SREI - livros de registros - meio eletrônico

Art. 1º Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei. § 3º Os registros poderão ser escriturados, publicitados e conservados em meio eletrônico, obedecidos os padrões tecnológicos estabelecidos em regulamento.

Lei 13.465/2017

Art. 76

SREI - Institui o ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico

Art. 76. O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) será implementado e operado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR). § 1º O procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes da Reurb serão feitos preferencialmente por meio eletrônico, na forma dos arts. 37 a 41 da Lei ➔

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Lei

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor ➔ preferencialmente por meio eletrônico, na forma dos arts. 37 a 41 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. § 2º O ONR será organizado como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos. § 4º Caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça exercer a função de agente regulador do ONR e zelar pelo cumprimento de seu estatuto. § 5º As unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal integram o SREI e ficam vinculadas ao ONR. § 6º Os serviços eletrônicos serão disponibilizados, sem ônus, ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo federal, ao Ministério Público, aos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e aos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos. § 7º A administração pública federal acessará as informações do SREI por meio do Sistema Nacional de Gestão de nformações Territoriais (Sinter), na forma de regulamento.

Provimento CNJ 89/2019

Art. 8º, IV

SREI Regulamentação do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis

Art. 8º O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis - SREI tem como objetivo a universalização das atividades de registro público imobiliário, a adoção de governança corporativa das serventias de registros de imóveis e a instituição do sistema de registro eletrônico de imóveis previsto no art. 37 da Lei n. 11.977/2009 IV – os serviços de expedição de certidões e de informações, em formato eletrônico, prestados aos usuários presenciais e remotos;

Provimento CNJ 89/2019

Arts. 24 e 25

Centrais de serviços eletrônicos compartilhados

Art. 24. As centrais de serviços eletrônicos compartilhados são criadas pelos respectivos oficiais de registro de imóveis, mediante ato normativo da Corregedoria Geral de Justiça local. § 1º Haverá uma única central de serviços eletrônicos compartilhados em cada um dos Estados e no Distrito Federal; § 2º Onde não seja possível ou conveniente a criação e manutenção de serviços próprios, o tráfego eletrônico far-se-á mediante central de serviço eletrônico compartilhado que funcione em outro Estado ou no Distrito Federal ou exclusivamente pelo SAEC. § 3º O SAEC exerce a coordenação e o monitoramento das centrais de serviços eletrônicos compartilhados com a finalidade de universalização do acesso ao tráfego eletrônico e para que se prestem os mesmos serviços em todo o País, velando pela interoperabilidade do sistema. Art. 25. Compete às centrais de serviços eletrônicos compartilhados, em conjunto com o SAEC e na forma do regulamento do SREI: I – o intercâmbio de documentos eletrônicos e de informações entre os ofícios de registro de imóveis, o Poder Judiciário, a administração pública e o público em geral; II – a recepção e o envio de títulos em formato eletrônico; III – a expedição de certidões e a prestação de informações em formato eletrônico. Parágrafo Único. Todas as solicitações feitas por meio das centrais de serviços eletrônicos compartilhados serão enviadas ao ofício de registro de imóveis competente, que é o único responsável pelo processamento e atendimento.

Lei 13.709/2018 (LGPD)

Art. 5º

Definições

Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável; II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; III - dado anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento; IV - banco de dados: conjunto estruturado de dados pessoais, estabelecido em um ou em vários locais, em suporte eletrônico ou físico; V - titular: pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento; VI - controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais; VII - operador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador; VIII encarregado: pessoa indicada pelo controlador e operador para atuar ➔

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

Lei

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor ➔ como

canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD); IX - agentes de tratamento: o controlador e o operador; X - tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração; XI - anonimização: utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo; XII - consentimento: manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada; XIII - bloqueio: suspensão temporária de qualquer operação de tratamento, mediante guarda do dado pessoal ou do banco de dados; XIV - eliminação: exclusão de dado ou de conjunto de dados armazenados em banco de dados, independentemente do procedimento empregado; XV - transferência internacional de dados: transferência de dados pessoais para país estrangeiro ou organismo internacional do qual o país seja membro; XVI - uso compartilhado de dados: comunicação, difusão, transferência internacional, interconexão de dados pessoais ou tratamento compartilhado de bancos de dados pessoais por órgãos e entidades públicos no cumprimento de suas competências legais, ou entre esses e entes privados, reciprocamente, com autorização específica, para uma ou mais modalidades de tratamento permitidas por esses entes públicos, ou entre entes privados; XVII - relatório de impacto à proteção de dados pessoais: documentação do controlador que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco; XVIII - órgão de pesquisa: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico; e XIX - autoridade nacional: órgão da administração pública responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento desta Lei em todo o território nacional.

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Lei 13.709/2018 (LGPD)

Art. 3º

Escopo material

Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que: I - a operação de tratamento seja realizada no território nacional; II - a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou III - os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional.

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Art. 7º, II

Base legal de cumprimento de obrigação legal ou regulatória para dados pessoais simples

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: (...) II - para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;

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Art. 11, II, a

Base legal de cumprimento de obrigação legal ou regulatória para dados pessoais sensíveis

Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses: (...) II - sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para: a) cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;

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Lei

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor

Lei 13.709/2018 (LGPD)

Art. 23

Definições

Art. 23. O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público referidas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação) , deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público, desde que: I - sejam informadas as hipóteses em que, no exercício de suas competências, realizam o tratamento de dados pessoais, fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso, preferencialmente em seus sítios eletrônicos; II - (VETADO); e III - seja indicado um encarregado quando realizarem operações de tratamento de dados pessoais, nos termos do art. 39 desta Lei; e IV - (VETADO). § 1º A autoridade nacional poderá dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento. § 2º O disposto nesta Lei não dispensa as pessoas jurídicas mencionadas no caput deste artigo de instituir as autoridades de que trata a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação). § 3º Os prazos e procedimentos para exercício dos direitos do titular perante o Poder Público observarão o disposto em legislação específica, em especial as disposições constantes da Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997 (Lei do Habeas Data), da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (Lei Geral do Processo Administrativo), e da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação). § 4º Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei. § 5º Os órgãos notariais e de registro devem fornecer acesso aos dados por meio eletrônico para a administração pública, tendo em vista as finalidades de que trata o caput deste artigo.

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Art. 26

Compartilhamento de dados pelo Poder Público

Art. 26. O uso compartilhado de dados pessoais pelo Poder Público deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de proteção de dados pessoais elencados no art. 6º desta Lei. § 1º É vedado ao Poder Público transferir a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso, exceto: I em casos de execução descentralizada de atividade pública que exija a transferência, exclusivamente para esse fim específico e determinado, observado o disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação) ; II - (VETADO); III - nos casos em que os dados forem acessíveis publicamente, observadas as disposições desta Lei. IV - quando houver previsão legal ou a transferência for respaldada em contratos, convênios ou instrumentos congêneres; ou V - na hipótese de a transferência dos dados objetivar exclusivamente a prevenção de fraudes e irregularidades, ou proteger e resguardar a segurança e a integridade do titular dos dados, desde que vedado o tratamento para outras finalidades. § 2º Os contratos e convênios de que trata o § 1º deste artigo deverão ser comunicados à autoridade nacional.

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Art. 12

Anonimização

Art. 12. Os dados anonimizados não serão considerados dados pessoais para os fins desta Lei, salvo quando o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido. § 1º A determinação do que seja razoável deve levar em consideração fatores objetivos, tais como custo e tempo necessários para reverter o processo de anonimização, de acordo com as tecnologias disponíveis, e a utilização exclusiva de meios próprios. § 2º Poderão ser igualmente considerados como dados pessoais, para os fins desta Lei, aqueles utilizados para formação do perfil comportamental de determinada pessoa natural, se identificada. § 3º A autoridade nacional poderá dispor sobre padrões e técnicas utilizados em processos de anonimização e realizar verificações acerca de sua segurança, ouvido o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais.

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Lei

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Art. 16

Término do trataArt. 16. Os dados pessoais serão eliminados após o término de seu mento / Exclusão tratamento, no âmbito e nos limites técnicos das atividades, autorizada dos dados pessoais a conservação para as seguintes finalidades: I - cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; II - estudo por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais; III - transferência a terceiro, desde que respeitados os requisitos de tratamento de dados dispostos nesta Lei; ou IV - uso exclusivo do controlador, vedado seu acesso por terceiro, e desde que anonimizados os dados.

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Art. 18

Direitos dos titulares

Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: I - confirmação da existência de tratamento; II - acesso aos dados; III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei; VII - informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta Lei.

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Art. 20

Direito a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais

Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade. § 1º O controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial. § 2º Em caso de não oferecimento de informações de que trata o § 1º deste artigo baseado na observância de segredo comercial e industrial, a autoridade nacional poderá realizar auditoria para verificação de aspectos discriminatórios em tratamento automatizado de dados pessoais.

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Art. 41

Encarregado pelo Tratamento de Dados pessoais

Art. 41. O controlador deverá indicar encarregado pelo tratamento de dados pessoais.

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Arts. 46 e 47

Medidas de segurança técnicas e administrativas

Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. § 1º A autoridade nacional poderá dispor sobre padrões técnicos mínimos para tornar aplicável o disposto no caput deste artigo, considerados a natureza das informações tratadas, as características específicas do tratamento e o estado atual da tecnologia, especialmente no caso de dados pessoais sensíveis, assim como os princípios previstos no caput do art. 6º desta Lei. § 2º As medidas de que trata o caput deste artigo deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução. Art. 47. Os agentes de tratamento ou qualquer outra pessoa que intervenha em uma das fases do tratamento obriga-se a garantir a segurança da informação prevista nesta Lei em relação aos dados pessoais, mesmo após o seu término.

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Lei Lei 13.709/2018 (LGPD)

Norma/Ato/Decisão Descrição

Teor

Art. 50

Art. 50. Os controladores e operadores, no âmbito de suas competências, pelo tratamento de dados pessoais, individualmente ou por meio de associações, poderão formular regras de boas práticas e de governança que estabeleçam as condições de organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais. § 1º Ao estabelecer regras de boas práticas, o controlador e o operador levarão em consideração, em relação ao tratamento e aos dados, a natureza, o escopo, a finalidade e a probabilidade e a gravidade dos riscos e dos benefícios decorrentes de tratamento de dados do titular. (...)

Governança em Privacidade

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Tratamento e proteção de dados pessoais nas serventias extrajudiciais Provimento da CGJSP dispõe sobre tratamento e proteção de dados pessoais pelos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro.

CGJSP - PROVIMENTO: 23/2020 LOCALIDADE: São Paulo DATA DE JULGAMENTO: 10/09/2020 DATA DJ: 10/09/2020 RELATOR: Ricardo Mair Anafe LEI: LO - Proteção dos Dados Pessoais - 13.709/2018 LEI: CF - Constituição da República - 1988 ART: 236 ESPECIALIDADES: Registro Civil de Pessoas Naturais, Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas, Tabelionato de Notas, Tabelionato de Protestos e Letras e Títulos, Registro de Imóveis, Outras

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PROVIMENTO CGJ Nº 23/2020 Dispõe sobre o tratamento e proteção de dados pessoais pelos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro de que trata o art. 236 da Constituição da República e acrescenta os itens 127 a 152.1 do Capítulo XIII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça. O DESEMBARGADOR RICARDO MAIR ANAFE, CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, NO USO DE SUAS ATRIBUIÇÕES LEGAIS, CONSIDERANDO a proteção dos dados pessoais promovida pela Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD; CONSIDERANDO que o novo regime de tratamento de dados pessoais se aplica aos serviços públicos extrajudiciais de notas e de registros prestados na forma do art. 236 de Constituição da República; CONSIDERANDO que os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, no desempenho de suas atividades, são controladores de dados pessoais; CONSIDERANDO o compartilhamento de dados pessoais com as Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados, pelos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, decorrente de previsões legais e normativas; CONSIDERANDO o decidido no Processo CG nº 2019/00109323; RESOLVE: Art. 1°. Acrescentar os itens 127 a 152.1 do Capítulo XIII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, com a seguinte redação: “SEÇÃO VIII

DO TRATAMENTO E PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS 127. O regime estabelecido pela Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, será observado em todas as operações de BOLETIM 362

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tratamento realizadas pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro a que se refere o art. 236 da Constituição Federal, independentemente do meio ou do país onde os dados sejam armazenados e tratados, ressalvado o disposto no art. 4º daquele estatuto. 128. No tratamento dos dados pessoais, os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro deverão observar os objetivos, fundamentos e princípios previstos nos arts. 1º, 2° e 6° da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. 129. Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, na qualidade de titulares, interventores ou interinos, são controladores e responsáveis pelas decisões referentes ao tratamento dos dados pessoais. 130. O tratamento de dados pessoais destinado à prática dos atos inerentes ao exercício dos respectivos ofícios será promovido de forma a atender à finalidade da prestação do serviço, na persecução do interesse público, e com os objetivos de executar as competências legais e desempenhar atribuições legais e normativas dos serviços públicos delegados. 130.1. Consideram-se inerentes ao exercício dos ofícios os atos praticados nos livros mantidos por força de previsão nas legislações específicas, incluídos os atos de inscrição, transcrição, registro, averbação, anotação, escrituração de livros de notas, reconhecimento de firmas, autenticação de documentos; as comunicações para unidades distintas, visando as anotações nos livros e atos nelas mantidos; os atos praticados para a escrituração de livros previstos em normas administrativas; as informações e certidões; os atos de comunicação e informação para órgãos públicos e para centrais de serviços eletrônicos compartilhados que decorrerem de previsão legal ou normativa. 131. O tratamento de dados pessoais destinados à prática dos atos inerentes ao exercício dos ofícios notariais e registrais, no cumprimento de obrigação legal ou normativa, independe de autorização específica da pessoa natural que deles for titular. 131.1. O tratamento de dados pessoais decorrente do exercício do gerenciamento administrativo e financeiro promovido pelos responsáveis pelas delegações será realizado em conformidade com os objetivos, fundamentos e princípios decorrentes do exercício da delegação mediante outorga a particulares. 132.Para o tratamento dos dados pessoais os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, sob sua exclusiva responsabilidade, poderão nomear operadores integrantes e operadores não integrantes do seu quadro de prepostos, desde que na qualidade de prestadores terceirizados de serviços técnicos. 132.1. Os prepostos e os prestadores terceirizados de serviços técnicos deverão ser orientados sobre os deveres, requisitos e responsabilidades decorrentes da Lei n.13.709, de 14 de agosto de 2018, e manifestar a sua ciência, por escrito, mediante cláusula contratual ou termo autônomo a ser arquivado em classificador próprio. 132.2. Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro orientarão todos os seus operadores sobre as formas de coleta, tratamento e compartilhamento de dados pessoais a que tiverem acesso, bem como sobre as respectivas responsabilidades, e arquivarão, em classificador próprio, as orientações transmitidas por escrito e a comprovação da ciência pelos destinatários. 132.3. Compete aos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro verificar o cumprimento, pelos operadores prepostos ou terceirizados, do tratamento de dados pessoais conforme as

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instruções que fornecer e as demais normas sobre a matéria. 132.4. A orientação aos operadores, e qualquer outra pessoa que intervenha em uma das fases de coleta, tratamento e compartilhamento abrangerá, ao menos: I. as medidas de segurança, técnicas e administrativas, aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito; II. a informação de que a responsabilidade dos operadores prepostos, ou terceirizados, e de qualquer outra pessoa que intervenha em uma das fases abrangida pelo fluxo dos dados pessoais, subsiste mesmo após o término do tratamento. 132.5. Também serão arquivados, para efeito de formulação de relatórios de impacto, os comprovantes da participação em cursos, conferências, seminários ou qualquer modo de treinamento proporcionado pelo controlador aos operadores e encarregado, com indicação do conteúdo das orientações transmitidas por esse modo. 133. Cada unidade dos serviços extrajudiciais de notas e de registro deverá manter um encarregado que atuará como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). 133.1. Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro poderão nomear encarregado integrante do seu quadro de prepostos, ou prestador terceirizado de serviços técnicos. 132.2. Poderão ser nomeados como encarregados prestadores de serviços técnicos com remuneração integralmente paga, ou subsidiada, pelas entidades representativas de classe. 133.3. A nomeação do encarregado será promovida mediante contrato escrito, a ser arquivado em classificador próprio, de que participarão o controlador na qualidade de responsável pela nomeação e o encarregado. 133.4. A nomeação de encarregado não afasta o dever de atendimento pelo responsável pela delegação dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, quando for solicitado pelo titular dos dados pessoais. 133.5. A atividade de orientação dos prepostos e prestadores de serviços terceirizados sobre as práticas a serem adotadas em relação à proteção de dados pessoais, desempenhada pelo encarregado, não afasta igual dever atribuído aos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro. 133.6. Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro manterão em suas unidades: I - sistema de controle do fluxo abrangendo a coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, até a restrição de acesso futuro; II - política de privacidade que descreva os direitos dos titulares de dados pessoais, de modo claro e acessível, os tratamentos realizados e a sua finalidade; III - canal de atendimento adequado para informações, reclamações e sugestões ligadas ao tratamento de dados pessoais, com fornecimento de formulários para essa finalidade. BOLETIM 362

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134. A política de privacidade e o canal de atendimento aos usuários dos serviços extrajudiciais deverão ser divulgados por meio de cartazes afixados nas unidades e avisos nos sítios eletrônicos mantidos pelas delegações de notas e de registro, de forma clara e que permita a fácil visualização e o acesso intuitivo. 134.1. A critério dos responsáveis pelas delegações, a política de privacidade e a identificação do canal de atendimento também poderão ser divulgados nos recibos entregues para as partes solicitantes dos atos notariais e de registro. 135. O controle de fluxo, abrangendo coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, conterá: I- a identificação das formas de obtenção dos dados pessoais, do tratamento interno e do seu compartilhamento nas hipóteses em que houver determinação legal ou normativa; II - os registros de tratamentos de dados pessoais contendo, entre outras, informações sobre: 1 - finalidade do tratamento; 2 - base legal ou normativa; 3 - descrição dos titulares; 4 - categoria dos dados que poderão ser pessoais, pessoais sensíveis ou anonimizados, com alerta específico para os dados sensíveis; 5 - categorias dos destinatários; 6 - prazo de conservação; 7 - identificação dos sistemas de manutenção de bancos de dados e do seu conteúdo; 8 - medidas de segurança adotadas; 9 - obtenção e arquivamento das autorizações emitidas pelos titulares para o tratamento dos dados pessoais, nas hipóteses em que forem exigíveis; 10 - política de segurança da informação; 11 - planos de respostas a incidentes de segurança com dados pessoais. 136. Os registros serão elaborados de forma individualizada para cada ato inerente ao exercício do ofício, ou para cada ato, ou contrato, decorrente do exercício do gerenciamento administrativo e financeiro da unidade que envolva a coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais. 137. Os sistemas de controle de fluxo abrangendo coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais deverão proteger contra acessos não autorizados e situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão, e permitir, quando necessário, a elaboração dos relatórios de impacto previstos no inciso XVII do art. 5° e nos arts. 32 e 38 da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018.

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138. As entidades representativas de classe poderão fornecer formulários e programas de informática para o registro do controle de fluxo, abrangendo coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, adaptados para cada especialidade dos serviços extrajudiciais de notas e de registro. 138.1. Os sistemas de controle de fluxo, abrangendo coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, serão mantidos de forma exclusiva em cada uma das unidades dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, sendo vedado o compartilhamento dos dados pessoais sem autorização específica, legal ou normativa. 138.2. Os sistemas utilizados para o tratamento e armazenamento de dados pessoais deverão atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança e aos princípios gerais previstos na Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, e demais normas regulamentares. 139. O plano de resposta a incidentes de segurança com dados pessoais deverá prever a comunicação ao Juiz Corregedor Permanente e à Corregedoria Geral da Justiça, no prazo máximo de 24 horas, com esclarecimento da natureza do incidente e das medidas adotadas para a apuração das suas causas e a mitigação de novos riscos e impactos causados aos titulares dos dados. 139.1. Os incidentes de segurança com dados pessoais serão imediatamente comunicados pelos operadores ao controlador. 140. A anonimização de dados pessoais para a transferência de informações para as Centrais Eletrônicas de Serviços Compartilhados, ou outro destinatário, será efetuada em conformidade com os critérios técnicos previstos no art. 12, e seus parágrafos, da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. 141. Os titulares terão livre acesso aos dados pessoais, mediante consulta facilitada e gratuita que poderá abranger a exatidão, clareza, relevância, atualização, a forma e duração do tratamento e a integralidade dos dados pessoais. 142. O livre acesso é restrito ao titular dos dados pessoais e poderá ser promovido mediante informação verbal ou escrita, conforme for solicitado. 142.1 Na informação, que poderá ser prestada por meio eletrônico, seguro e idôneo para esse fim, ou por documento impresso, deverá constar a advertência de que foi entregue ao titular dos dados pessoais, na forma da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, e que não produz os efeitos de certidão e, portanto, não é dotada de fé pública para prevalência de direito perante terceiros. 143. As certidões e informações sobre o conteúdo dos atos notariais e de registro, para efeito de publicidade e de vigência, serão fornecidas mediante remuneração por emolumentos, ressalvadas as hipóteses de gratuidade previstas em lei específica. 144. Para a expedição de certidão ou informação restrita ao que constar nos indicadores e índices pessoais poderá ser exigido o fornecimento, por escrito, da identificação do solicitante e da finalidade da solicitação. 144.1. Igual cautela poderá ser tomada quando forem solicitadas certidões ou informações em bloco, ou agrupadas, ou segundo critérios não usuais de pesquisa, ainda que relativas a registros e atos notariais envolvendo titulares distintos de dados pessoais.

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144.2. Serão negadas, por meio de nota fundamentada; as solicitações de certidões e informações formuladas em bloco, relativas a registros e atos notariais relativos ao mesmo titular de dados pessoais ou a titulares distintos, quando as circunstâncias da solicitação indicarem a finalidade de tratamento de dados pessoais, pelo solicitante ou outrem, de forma contrária aos objetivos, fundamentos e princípios da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. 144.3. Os itens 144 a 144.2 deste Provimento incidem na expedição de certidões e no fornecimento de informações em que a anonimização dos dados pessoais for reversível, observados os critérios técnicos previstos no art. 12, e seus parágrafos, da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. 144.4. As certidões, informações e interoperabilidade de dados pessoais com o Poder Público, nas hipóteses previstas na Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, e na legislação e normas específicas, não se sujeitam ao disposto nos itens 144 a 144.3 deste Provimento. 145. Será exigida a identificação do solicitante para as informações, por via eletrônica, que abranjam dados pessoais, salvo se a solicitação for realizada por responsável pela unidade, ou seu preposto, na prestação do serviço público delegado. 146. A retificação de dado pessoal constante em registro e em ato notarial deverá observar o procedimento, extrajudicial ou judicial, previsto na legislação ou em norma específica. 147. Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro não se equiparam a fornecedores de serviços ou produtos para efeito de portabilidade de dados pessoais, mediante solicitação por seus titulares, prevista no inciso V do art. 18 da Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. 148. A inutilização e eliminação de documentos em conformidade com a Tabela de Temporalidade de Documentos prevista no Provimento nº 50/2015, da Corregedoria Geral da Justiça, será promovida de forma a impedir a identificação dos dados pessoais neles contidos. 148.1. A inutilização e eliminação de documentos não afasta os deveres previstos na Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, em relação aos dados pessoais que remanescerem em índices, classificadores, indicadores, banco de dados, arquivos de segurança ou qualquer outro modo de conservação adotado na unidade dos serviços extrajudiciais de notas e de registro. 149. É vedado aos responsáveis pelas delegações de notas e de registro, aos seus prepostos e prestadores de serviço terceirizados, ou qualquer outra pessoa que deles tenha conhecimento em razão do serviço, transferir ou compartilhar com entidades privadas dados a que tenham acesso, salvo mediante autorização legal ou normativa. 149.1. As transferências, ou compartilhamentos, de dados pessoais para as Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados, incluídos os relativos aos sistemas de registro eletrônico sob a sua responsabilidade, serão promovidas conforme os limites fixados na legislação e normas específicas. 150. Para o recebimento de informações que contenham dados pessoais, previstas nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, as Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados deverão declarar que cumprem, de forma integral, os requisitos, objetivos, fundamentos e princípios previstos nos arts. 1º, 2º e 6º da Lei n.13.709, de 14 de agosto de 2018. 150.1. A declaração poderá ser encaminhada aos responsáveis pelas delegações de notas e de registro por meio escrito, eletrônico, ou outro que permita a confirmação do envio.

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150.2. Iguais declarações deverão ser encaminhadas pelas Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados para a Corregedoria Geral da Justiça. 151. As Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados deverão comunicar os incidentes de segurança com dados pessoais, em 24 horas contados do seu conhecimento, aos responsáveis pelas delegações de notas e de registro de que os receberam e à Corregedoria Geral da Justiça, com esclarecimento sobre os planos de resposta. 151.1. O plano de resposta conterá, no mínimo, a indicação da natureza do incidente, das suas causas, das providências adotadas para a mitigação de novos riscos, dos pactos causados e das medidas adotadas para a redução de possíveis danos aos titulares dos dados pessoais”. Art. 2º - Este Provimento entrará em vigor em conjunto com a Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, ficando revogadas as disposições em contrário.

São Paulo, 3 de setembro de 2020 Ricardo Mair Anafe Corregedor Geral da Justiça

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

Portaria nº 213, de 15 de outubro de 2020 Institui Comitê Gestor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (CGLGPD) no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, e dá outras providências.

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O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, CONSIDERANDO que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei nº 13.709/2018 – entrou em vigor em 18 de setembro de 2020, ressalvadas as disposições que se referem às sanções administrativas, que entrarão em vigor a partir de 1º de agosto de 2021, nos termos da Lei nº 14.010/2020; CONSIDERANDO a necessidade de se adotar providências urgentes para regulamentar e implementar a LGPD no âmbito do Conselho Nacional de Justiça; RESOLVE: Art. 1º Instituir, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Comitê Gestor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (CGLGPD), incumbindo-lhe: I – elaborar propostas de regulamentação da Lei nº 13.709/2018; II – sugerir providências a serem adotadas com vistas à implementação da Lei nº 13.709/2018; e III – monitorar e avaliar o cumprimento da Lei nº 13.709/2018. Parágrafo único. As propostas do CGLGPD serão submetidas à Presidência para deliberação e adoção de eventuais providências.

Art. 2º Integram o CGLGPD: I –Mário Augusto Figueiredo de Lacerda Guerreiro, Conselheiro, responsável pela coordenação; BOLETIM 362

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II – Valter Shuenquener de Araújo, Secretário-Geral; III – Marcus Lívio Gomes, Secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica; IV – JohanessEck, Diretor-Geral; V – Alexandre Libonati de Abreu, Juiz Auxiliar da Presidência; VI – Anderson Rubens de Oliveira Couto, Secretário de Auditoria; VII – Raquel Wanderley da Cunha, Secretária de Gestão de Pessoas; VIII – Mariana Silva Campos Dutra, Secretária Processual; IX – Thiago de Andrade Vieira; Diretor do Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação; e X – Fabiana Andrade Gomes e Silva, Diretora do Departamento de Gestão Estratégica. §1º O coordenador do CGLGPD será substituído pelo Juiz Auxiliar da Presidência, Alexandre Libonati de Abreu, em suas ausências ou afastamentos eventuais. §2º Os membros do CGLGPD poderão indicar servidores ou juízes auxiliares para representá-los na condição de suplentes.

Art. 3º O Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação prestará o apoio necessário ao pleno funcionamento do CGLGPD, incumbindo-lhe designar servidor para secretariar os trabalhos e prestar o suporte administrativo.

Art. 4º O CGLGPD poderá solicitar a colaboração de outras unidades do CNJ ou de pessoas com expertise no tema quando houver necessidade de apoio técnico ou de conhecimentos específicos. Parágrafo único. As unidades do CNJ deverão prestar as informações necessárias para o andamento dos trabalhos do CGLGPD.

Art. 5º Os trabalhos do CGLGPD serão desenvolvidos sem prejuízo das atribuições ordinárias de seus integrantes, não implicando, a qualquer título, remuneração extraordinária.

Art. 6º O Conselheiro Mário Augusto Figueiredo de Lacerda Guerreiro funcionará como Encarregado de Proteção de Dados (Data Protection Officer – DPO) até que o Plenário edite ato normativo com vistas a adequar o Regimento Interno do CNJ às disposições da Lei nº 13.709/ 2018.

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Parágrafo único. Atuarão como agentes de tratamento, Controlador e Operador, a Juíza Auxiliar da Presidência Ana Lúcia Andrade de Aguiar e a Diretora Executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias, Gabriela Moreira de Azevedo Soares, respectivamente.

Art. 8º A proposta de regulamentação da Lei nº 13.709/2018, no âmbito do CNJ, deverá ser concluída pelo CGLGPD no prazo máximo de noventa dias, a contar da publicação desta Portaria.

Art. 9º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. Ministro Luiz Fux

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PORTARIA Nº 213, DE 15 DE OUTUBRO DE 2020

Metas e diretrizes estratégicas da corregedoria nacional de justiça para 2021 Extrajudicial Aprovadas no 14º Encontro Nacional do Poder Judiciário Instruções e critérios para o cumprimento das Metas e das Diretrizes Estratégicas do CNJ, para 2021, referente aos serviços notariais e de registro. A Diretriz Estratégica 3 pretende assegurar a implementação do SREI em todo o território nacional, pelo ONR, e o seu funcionamento em plataforma única, com acesso universal. A Diretriz Estratégica 4 visa regulamentar e supervisionar a adequação dos serviços notariais e de registro às disposições contidas na LGPD.

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1. INTRODUÇÃO Este documento se destina a estabelecer instruções e critérios para o cumprimento das Metas e das Diretrizes Estratégicas da Corregedoria Nacional de Justiça, para o ano de 2021, referente aos serviços notariais e de registro. Os agentes delegados do foro extrajudicial são instrumentos reconhecidos de promoção da cidadania e de auxílio ao desenvolvimento econômico. Além disso, atualmente exercem função relevante na desjudicialização de demandas nas quais inexiste conflito, tais como inventários, partilhas, divórcios e recuperações de crédito. Nesse contexto, parte do planejamento da Corregedoria Nacional deve ser dedicado ao aprimoramento dos serviços por eles prestados. A Lei n. 13.465/2017 incumbiu à Corregedoria Nacional a função de agente regulador do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR). A autorregulamentação da Corregedoria Nacional vem estabelecer a estrutura adequada para a promoção e fiscalização do desenvolvimento das atividades do ONR, fator importantíssimo para aumentar a segurança jurídica sobre operações imobiliárias, facilitar o crédito imobiliário e, consequentemente, incrementar a circulação de riquezas e o desenvolvimento econômico. Outrossim, sempre foi motivo de preocupação e cuidados a modulação da publicidade notarial e registral em situações em que a privacidade pudesse ser vulnerada.

Hoje, em face do advento da Lei n. 13.709, de 14/8/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e do desenvolvimento de novas tecnologias, é importante estabelecer diretrizes e regras gerais de proteção de dados pessoais nas atividades notariais e registrais brasileiras. Assim, paralelamente à estruturação do ONR e à implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI em âmbito nacional, é necessário supervisionar a adequação dos serviços notariais e de registro aos ditames da Lei n. 13.709/2018 (LGPD), marco de um novo paradigma no tratamento das informações pessoais dos cidadãos com profundos reflexos no Poder Judiciário e seus serviços auxiliares

2. DAS DIRETRIZES ESTRATÉGICAS DIRETRIZ ESTRATÉGICA 3 - Assegurar a implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em todas as unidades de serviços do território nacional pelo Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), e o seu funcionamento em plataforma única, com acesso universal, em conformidade com as diretrizes legais e normativas. DIRETRIZ ESTRATÉGICA 4 - Regulamentar e supervisionar a adequação dos serviços notariais e de registro às disposições contidas na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, inclusive mediante verificação nas inspeções ordinárias. BOLETIM 362

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DIRETRIZ ESTRATÉGICA 3 Assegurar a implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em todas as unidades de serviços do território nacional pelo Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), e o seu funcionamento em plataforma única, com acesso universal, em conformidade com as diretrizes legais e normativas. Esclarecimento da Diretriz Estratégica A diretriz estratégica guarda aderência com o macrodesafio do aperfeiçoamento da Gestão Administrativa e da Governança Judiciária, bem como do enfrentamento à corrupção, à improbidade administrativa e aos ilícitos eleitorais. Consiste em que as Corregedorias promovam ações efetivas para que o Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) implemente o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI em todas as unidades de serviços do país. Descrição da Diretriz Estratégica O Operador Nacional do Serviço Eletrônico de Imóveis, denominado ONR, foi criado pela Lei Federal n. 13.465/2017 e tem por finalidade implementar e operar o SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, um projeto desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça para implantar no país o serviço de registro de imóveis por meios eletrônicos. No art. 76, § 4°, da Lei n. 13.465/2017 está prescrito que é atribuição da Corregedoria Nacional de Justiça exercer a função de “Agente Regulador do ONR”. Essa função é inteiramente compatível com as competências legais e constitucionais do Poder Judiciário, ao qual se incumbe, por disposição constitucional, a fiscalização dos serviços de notas e registro. Ademais, também se amolda às competências da Corregedoria Nacional de Justiça, tal como previsto no art. 103-B, § 5°, da Constituição Federal e no art. 8° do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça. À vista da necessidade de disciplinar a atividade da Corregedoria Nacional de Justiça neste particular, publicar-se-á um provimento que tem por objeto a disciplina da atuação da Corregedoria Nacional de Justiça como Agente Regulador do ONR – Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico, além de outras providências. A partir da edificação de tais

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estruturas, propõe-se a adoção de esforço conjunto no sentido de que seja assegurada a implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) em todas as unidades de serviços do território nacional pelo Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), e o seu funcionamento em plataforma única, com acesso universal, em conformidade com as diretrizes legais e normativas. A Corregedoria do Tribunal deverá informar à Corregedoria Nacional de Justiça o cumprimento da referida diretriz estratégica, encaminhando, até 1º de setembro de 2021, um relatório que contemple as ações destinadas à consecução da finalidade proposta. A mencionada informação deverá ser enviada por meio de formulário eletrônico a ser disponibilizado pela Corregedoria Nacional. Os dados NÃO deverão ser encaminhados por outro meio.

DIRETRIZ ESTRATÉGICA 4 Regulamentar e supervisionar a adequação dos serviços notariais e de registro às disposições contidas na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, inclusive mediante verificação nas inspeções ordinárias. Esclarecimento da Diretriz Estratégica A referida diretriz estratégica guarda aderência com o macrodesafio do fortalecimento da Estratégia Nacional de TIC e de Proteção de dados. Consiste em que as Corregedorias regulamentem e promovam a fiscalização e a adequação dos serviços notariais e de registro à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD. Descrição da Diretriz Estratégica A Lei n. 13.709, de 14/8/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), traz consigo o propósito de produzir profundos reflexos na sociedade brasileira colhendo, especialmente, a atividade registral e notarial. Trata-se de um novo paradigma no tratamento das informações pessoais dos cidadãos, que ressoa na atividade judiciária e dos serviços auxiliares como um todo. Os notários e registradores brasileiros atuam na proteção e tutela pública de interesses privados. Na execução de seus misteres, ordinariamente recebem e difundem informações pessoais relativas ao estado das pessoas, às mutações jurídicas patrimoniais dos indivíduos e de empresas e associações.


Importa, portanto, que os dados coligidos ao longo da larga trajetória humana, de suas criações e de seus direitos, sejam tratados segundo as novas regras legais relativas à tutela e proteção de dados pessoais de conformidade com os valores, princípios e preceitos consagrados na Constituição Federal. A publicidade jurídica das notas e dos registros decorre do exercício de uma função pública delegada pelo Estado, atividade de cariz eminentemente jurídico, a cargo de um profissional do Direito. O impacto das novas tecnologias da informação e comunicação impõe uma compreensão renovada dos princípios registrais – especialmente o princípio da publicidade, que agora deve conformar-se aos princípios consagrados na ordem constitucional, tanto da perspectiva do input – no recebimento, arquivamento, conservação e gestão de títulos e documentos que vão compor o acervo documental – quanto do output – na promoção da publicidade registral e na veiculação de informações juridicamente relevantes que devem ser rogadas expressa e especificamente. A LGPD é de caráter federal e convoca para sua regulamentação o órgão judiciário de caráter nacional que é a Corregedoria Nacional de Justiça, assim como as Corregedorias de Justiça dos Estados, cada qual no âmbito de sua esfera de atuação, de modo a estabelecer princípios e diretrizes aplicáveis aos serviços notariais e registrais. Ato normativo com tal finalidade foi recentemente editado no âmbito do Estado de São Paulo (Provimento CG n. 23/2020, que dispõe sobre o tratamento e proteção de dados pessoais pelos responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro de que trata o art. 236 da Constituição da República e acrescenta os itens 127 a 152.1 do Capítulo XIII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça). Propõe-se, assim, que a matéria seja regulamentada, supervisionando-se, outrossim, a adequação dos serviços notariais e de registro às disposições contidas na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, inclusive mediante verificação nas inspeções ordinárias. A Corregedoria do Tribunal deverá informar à Corregedoria Nacional de Justiça o cumprimento da referida diretriz estratégica, encaminhando, até 1º de setembro de 2021, um plano de trabalho que contemple as etapas para o atingimento da finalidade proposta ou, alternativamente, o ato normativo exarado no âmbito de cada Corregedoria Geral de Justiça.

A mencionada informação deverá ser enviada por meio de formulário eletrônico a ser disponibilizado pela Corregedoria Nacional. Os dados NÃO deverão ser encaminhados por outro meio.

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ENTREVISTA ANTÔNIO CARLOS ALVES BRAGA JUNIOR

LGPDP e os Registros Públicos Os dados pessoais e patrimoniais dos cidadãos devem ser mantidos protegidos, mas a questão é como assegurar isso.

O desembargador Antônio Carlos Alves Braga Junior, do Tribunal de Justiça de São Paulo, responde às perguntas do presidente do IRIB Sérgio Jacomino sobre o impacto das novas tecnologias nos Registros Públicos.

O Sr. tem ministrado aulas e palestras ao longo dos últimos anos acerca do impacto das novas tecnologias nos Registros Públicos. Como avalia a assimilação das novas tendências da tecnologia da informação e comunicação pela tradicional atividade de registradores públicos? R – Antes, o desafio era o acesso às novas tecnologias. Na atualidade, o desafio é a escolha dentre a abundância de opções. A atividade extrajudicial vem, sem dúvida, incorporando tecnologia. E foi, via de regra, pioneira nessa iniciativa. O momento não é mais de uso de tecnologia, e, sim, de integração de sistemas, ou seja, adequar o meu sistema ao seu. Entendo que a atividade extrajudicial

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está atenta ao tema. Tem, porém, ainda muito a fazer quanto à escolha do modelo de integração e suas etapas de implantação. Quais são os maiores riscos e desafios postos aos Registros Públicos brasileiros neste novo ciclo tecnológico? R – O risco tem relação com o timing. No passado, o emprego de tecnologia digital era rarefeito. Hoje, é maciço, em todos os setores e níveis. E há avançados estágios de integração ocorrente nas atividades privadas e no setor público. Entendo que o serviço extrajudicial se posiciona entre esses dois planos: o público e o privado. Tem que se posicionar em tempo, ou pode se fechar a janela de oportunidade. O Sr. considera que as novas tecnologias vão transformar essencialmente os Registros Públicos? A atividade sobreviverá em ambiente de constante renovação tecnológica? R – O emprego das novas tecnologias altera, em princípio, apenas a forma de prestar o serviço, e não o serviço em si. Ocorre que a transformação da forma,


em andamento, é tão profunda, que atingirá a essência da atividade. Sem as escolhas certas e no devido tempo, acredito que há um sério risco para a sobrevivência da atividade extrajudicial. Não imagino nenhum cenário de extinção, mas risco de progressivo esvaziamento. Como avalia o estágio atual de desenvolvimento tecnológico da atividade? R – Acredito que está um pouco atrasado. O serviço extrajudicial foi vanguardista. Mas os avanços nas áreas de governo têm sido muito expressivos. Assustadores mesmo. O governo vai ser digital em pouco tempo. Quase toda a interação com o cidadão será feita por meios eletrônicos. Tudo converge para isso. O serviço público, hoje, é ruim e muito custoso. Não há nenhuma perspectiva de melhoria com os instrumentos tradicionais. Tudo já foi tentado. E a tecnologia digital tem revolucionado. Ganhos absurdos de eficiência e de economia. Todos já se convenceram. Do lado da iniciativa privada, o motor é o nível de atividade econômica. A grave crise dos últimos anos, com encolhimento da economia, desacelerou muito o desenvolvimento. Confirmando-se a expecta-

tiva geral de retomada da atividade econômica, haverá uma rápida, quase explosiva, proliferação de serviços eletrônicos. O avanço desses dois setores pode emparedar o serviço extrajudicial. O futuro dirá se a atividade está bem posicionada para surfar essa grande onda de modernização. O Sr. crê que os dados pessoais e patrimoniais dos cidadãos, albergados nos Registros Públicos, podem ser mantidos protegidos? R – Eles devem ser mantidos protegidos. A questão é como assegurar isso. A migração para meios digitais é imprescindível. Mas, ao mesmo tempo, isso incrementa exponencialmente os riscos de quebra de privacidade. A anonimização dos dados (separação de dados de identificação) é a resposta teórica. Mas, na prática, não há garantias de que seja suficiente para evitar a recomposição de bancos de dados com engenharia reversa. De todo modo, a grande expectativa pela salvação da privacidade (do que ainda resta) é um grande trunfo para a revalorização das atividades notariais e registrais. BOLETIM 362

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ENTREVISTA MADALENA TEIXEIRA

Proteção de dados e os Registros Públicos A registradora portuguesa Madalena Teixeira, membro do IRN – Instituto dos Registos e do Notariado de Portugal e do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais, da Universidade de Coimbra, concedeu entrevista ao presidente do IRIB Sérgio Jacomino sobre a questão da proteção de dados e os Registros públicos.

SJ – Como os registradores portugueses receberam o Regulamento e quais foram as contribuições deles para a aplicação das regras em Portugal? MT – Para os registradores portugueses, o RGPD não implicou uma alteração comportamental significativa na medida em que já existiam uma Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 67/98, de 26 de outubro) e uma regulamentação das bases de dados do registro predial (vertida no Código do Registo Predial desde 1999), acolhendo os princípios fundamentais neste domínio, designadamente o princípio da finalidade e o princípio da proporcionalidade. Com a entrada em vigor do RGPD, a prática nos serviços de registro manteve-se, pois, orientada pelos mesmos princípios (o da finalidade e o da proporcionalidade) e pelo mesmo critério ou limite na divulgação da informação: a publicidade da situação jurídica dos prédios. Ainda assim, o RGPD não deixou de reforçar a necessidade de uma consciencialização mais fina do direito à proteção dos dados pessoais e do correspondente dever de reserva por parte dos serviços de registro, designadamente, em face dos riscos de uso ilegítimo e de desvio de finalidade potenciados pelos meios tecnológicos, que, consabidamente, podem degradar ou enfraquecer aquele direito.

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SJ – Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelos registradores? Como conciliar as disposições da Comunidade com a progressiva apropriação de dados pessoais por grandes corporações? MT – Como há muito se salientou em parecer do Conselho Técnico do IRN (Instituto dos Registos e do Notariado), o sistema de registro predial está concebido para responder a duas perguntas básicas: se determinado bem está registrado e, na hipótese afirmativa, qual a situação jurídica que lhe é atribuída pelo registro. É para responder a essas questões, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, que se justifica manter organizado um conjunto de dados reais e pessoais. E é com essa finalidade pública que os interessados contam quando tomam conhecimento da recolha de um conjunto de dados que os identificam, ou tornam identificáveis, a partir da informação registral. Não obstante, a vis attractiva dos dados contidos no registro predial intensifica-se com o “brilho” das novas tecnologias e as dificuldades de balanceamento entre os diversos direitos e interesses em presença agudizam-se. SJ – Pode explicar melhor? MT – O interesse nos dados pessoais começa logo no próprio Estado e não deixa de se manifestar também nas pequenas e médias empresas, sem que possamos afirmar, ao menos de forma categórica, que o tratamento de dados realizado por essas entidades tem um impacto menor no direito fundamental à proteção dos dados pessoais. Ainda assim, as soluções tecnológicas e os meios financeiros de que as grandes corporações dedicadas à definição de perfis ou à comercialização de informação dispõem permitem alvitrar riscos mais significativos. Daí que se


“As soluções tecnológicas e os meios financeiros de que as grandes corporações dedicadas à definição de perfis ou à comercialização de informação dispõem permitem alvitrar riscos significativos.”

mostrem indispensáveis, por parte dos responsáveis pelas bases de dados pessoais, uma gestão do acesso e da divulgação da informação segundo os critérios de licitude do tratamento ínsitos no RGPD, um cabal cumprimento do dever de accountability e uma concretização efetiva dos conceitos de privacy by design1 e de privacy by default2. Aos registradores, por seu turno, cumpre uma aplicação consistente do bloco legislativo existente em matéria de proteção de dados pessoais (Constituição da República Portuguesa, RGPD, Lei nacional de proteção de dados pessoais e normas integradas na legislação privativa dos registros), cumprindo, e fazendo cumprir pelos seus colaboradores, todas as regras tendentes a acautelar a segurança e a integridade da informação, e abstendo-se de divulgar os dados para finalidades diversas das que determinaram a sua recolha sem que se mostre existir, para o efeito, norma habilitadora bastante. SJ – Como o Registro Público português protege os dados albergados nos seus cartórios? Há uma política de boas práticas? Pode indicar as referências legais e regulamentares? Pode sugerir alguma literatura? 1 NE: “Privacy by Design” é uma “metodologia na qual a proteção de dados pessoais é pensada desde a concepção de sistemas, práticas comerciais, projetos, produtos ou qualquer outra solução que envolva o manuseio de dados pessoais”. MORAES. Henrique Fabretti. Proteção de dados pessoais: privacy by design e compliance. Acesso: http://bit.ly/priv_design. Vide os princípios basais da PbD: CAVOUKIAN Ann. Privacy by Design – The 7 Foundational Principles. Acesso: http://bit. ly/Ann_Cavoukian. 2 NE: “Privacy by Default” é uma decorrência do Privacy by Design. Trata-se da ideia de que o produto ou serviço seja lançado e recebido pelo usuário com todas as salvaguardas que foram concebidas durante o seu desenvolvimento. No caso dos Registros Públicos brasileiros, a privacy by default decorre dos princípios fundamentais que se acham na concepção dos sistemas registrais e de publicidade jurídica. A subversão das regras basilares insculpidas na LRP pode colocar em risco o próprio sistema registral.

MT – Os dados reais e pessoais recolhidos no âmbito da atividade registral estão incorporados em bases de dados relacionais centralizadas, alicerçadas em infraestruturas e recursos tecnológicos pertencentes ao Ministério da Justiça. Para além de medidas de segurança da informação, extensíveis a toda a Administração Pública, tem-se verificado um compromisso, por parte dos responsáveis pelas bases de dados e pelas infraestruturas tecnológicas correspondentes, que, essencialmente, se analisa: (a) Na adoção de medidas tendentes a garantir a segurança e a confidencialidade dos dados pessoais; (b) No cumprimento do dever de designação de um Data Protection Officer (DPO)3, a quem compete uma importante função de monitorização, aconselhamento e tutoria no âmbito da proteção dos dados pessoais e da aplicação da respectiva lei, bem como o relevantíssimo papel de interlocutor e cooperador com a CNPD; (c) Numa atitude proativa no sentido do cumprimento zeloso das normas sobre proteção de dados pessoais, colaborando ativamente com a autoridade de controlo, ou seja, a Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais; (d) e num comportamento adequado ao princípio de privacy by default, diligenciando no sentido de o tratamento dos dados pessoais ser efetuado de forma lícita, leal, transparente e equitativa. Com referência ao RGPD, encontramos coligidas algumas orientações práticas em: http:// www.sg.pcm.gov.pt/media/33595/05.pdf. Com foco preciso no RGPD, encontramos todo o trabalho publicado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados em “Forum de Proteção de Dados”: https://www.cnpd.pt/ bin/revistaforum/revistaforum.htm 3 V. https://en.wikipedia.org/wiki/Data_Protection_Officer

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LGPD e do direito ao esquecimento Art. 181-A, § 1º, inciso III – Incidência da LGPD e do direito ao esquecimento PROPOSTA1: III – Pesquisa eletrônica de bens imóveis e seus respectivos direitos e restrições averbados. JUSTIFICATIVA: Módulo de pesquisa de bens a partir de CPF/ CNPJ do titular de direitos imobiliários, reduzindo a assimetria informativa nas transações de imóveis, inclusive na contratação de crédito. PROPOSTA IRIB: votamos pela supressão.

Flauzilino Araújo dos Santos Oficial do 1º Registro de Imóveis de São Paulo. Diretor de Novas Tecnologias do IRIB

1 Proposta que compõe a série de estudos de reforma da Lei 6.015/1973. Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral em https://cartorios.org/2020/09/29/dinamizacao-do-credito-indice/.

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LGPD e a publicidade registral De acordo com a Lei nº 13.709, de 14/8/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) os dados pessoais hão de ser tratados de maneira lícita, legal e transparente. Assim mesmo hão de ser adequados, pertinentes, exatos, atualizados e devem ser recolhidos para os fins determinados, explícitos e legítimos. Como resultado, o art. 6º, da LGPD, apresenta, dentre outros, três princípios básicos da proteção de dados: princípio da finalidade, princípio do consentimento e princípio da necessidade, permeando ainda a lei o princípio do consentimento, nas hipóteses que elenca. O princípio da finalidade supõe que os dados se destinam para uma finalidade determinada, consentida, explícita e legítima, circunstância que exigirá do registrador a qualificação da solicitação, porque somente fornecerá a informação se na ponderação e juízo jurídico não resolver que deve prevalecer a proteção de dados. A imposição de obrigação legal da manutenção de pesquisa eletrônica em massa a partir do CPF/CNPJ não se coaduna com as novas disposições de proteção de dados pessoais, inclusive, eventual direito ao esquecimento1. Parece-nos que a prestação de informações registrais, já prevista no § 2º, do art. 16, da Lei nº 6.015/1973, reclama apenas regulamentação em sua modalidade, cuja figura, em virtude da vis attractiva, é direcionada para a Corregedoria Nacional de Justiça. É certo que o Registro abre a sua porta para que qualquer pessoa possa conhecer o estado da propriedade imobiliária e de seus gravames sem haver necessidade de demonstrar ao oficial, ou ao funcionário que o atende o motivo ou o interesse do pedido (Lei 6.015/1973, art. 17), ressalvados dados pessoais e informações sigilosas, que assim devem permanecer. E para isso todo pedido de certidão ou de informações deve passar pelo crivo qualificador do registrador, como qualquer outra solicitação no Registro de Imóveis.

1 O direito ao esquecimento foi dantes contemplado no Enunciado nº 531, aprovado durante a VI Jornada de Direito Civil, realizada em março de 2013, pelo Centro de Estudos do Judiciário do Conselho da Justiça Federal (CJE/CJF), que diz: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. A justificativa foi vazada nos seguintes termos “[O]s danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.” Acesso: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/142.

Certidão é do registro – não do acervo A lei garante ao usuário o direito de acessar qualquer registro, ou documento arquivado no cartório, sem declarar o motivo do seu interesse, porém, a serventia registral não é uma biblioteca pública ou uma hemeroteca digital onde o usuário teria direito a consultar diretamente os próprios livros de registro, documentos arquivados e bancos de dados. Nem tampouco um depósito de documentos ou de dados acumulados, disponíveis para uma devassa, senão que avulta, dentre as fundamentais atribuições do Oficial do Registro, a prestação de informações e a expedição de certidões sobre determinado imóvel ou pessoa. Mas, a solicitação deverá ser submetida à qualificação registral, agora sob a ótica dos novos conceitos jurídicos que emergem da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Diferentemente do regulamento anterior, Decreto Nº 4.857/1939, que no art. 19 facultava ao interessado examinar diretamente livros e documentos, a atual Lei de Registros Públicos não acolheu essa modalidade de publicidade direta, tendo consagrado, como regra, a publicidade indireta, por meio de informações e certidões expedidas sob a fé pública do registrador. Assim, não há previsão legal para a exibição de livros, fichas, documentos e banco de dados e de imagens para serem manipulados por terceiros, estranhos ao corpo registral. Não é demais anotar casos de documentos protegidos por sigilo judicial ou fiscal, tais como cartas de sentenças que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes, bem como os que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade, cujos processos, ex vi legis, correm em segredo de justiça (CPC, Art. 189, II e III). É a mesma hipótese de mandados judiciais que contenham informações reservadas, como ocorre em alguns casos de indisponibilidades de bens, questões de estado da pessoa natural, concernentes a adoção, alterações do nome e do sexo, casos de aplicação da Lei nº 9.807, de 13/7/1999, relativamente à proteção de vítimas e testemunhas ameaçadas durante a persecução penal, em que se admite a alteração do nome completo da pessoa perseguida (art. 9º, § 1º). Ademais, o art. 22 do Provimento CNJ nº 89/2019 prevê expressamente o seguinte: “Art. 22. Em todas as operações do SAEC serão obrigatoriamente respeitados os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e, se houver, dos registros.” BOLETIM 362

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LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS – LGPD

LGPD – a estática e a dinâmica do Registro PROPOSTA1: § 10. Os Registros de Imóveis deverão disponibilizar, por intermédio do Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado – SAEC, a visualização da matrícula e dos atos praticados no Registro Auxiliar, ao custo de 30% do valor da certidão. JUSTIFICATIVA: Adaptação da lei ao Registro Eletrônico de Imóveis, com inclusão na lei do serviço de visualização online de matrícula, já disponível nas centrais compartilhadas, que permite ao usuário acesso à matrícula eletrônica imediatamente, 24h por dia, mesmo em dias não úteis.

Sérgio Jacomino Presidente do Irib

1 Proposta que compõe a série de estudos de reforma da Lei 6.015/1973. Para acompanhar a sucessão de notas críticas, acesse o índice geral em https://cartorios.org/2020/09/29/dinamizacao-do-credito-indice/.

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Emolumentos – lei estadual Iniciemos com esta indicação: matéria emolumentar deve ser objeto de lei estadual. A tentação de elevar a matéria ao âmbito federal deve ser enxergada com muito cuidado. Parece existir uma tendência nesse sentido. Todavia, como temos tido ocasião de destacar no curso desta análise, o problema deve ser resolvido com estratégia e conhecimento de causa.

Um órgão não é o organismo Já aludimos às funções do SAEC. Fica aqui a advertência: como órgão do SREI, o SAEC não deve se constituir em fonte da publicidade registral, sob pena de subversão do próprio sistema de delegação, convertendo o hub de acesso e trânsito informacional em fonte própria de dados e informação. Não será o SAEC o portal de “visualização da matrícula e dos atos praticados no Registro Auxiliar”. Tenho denunciado uma tendência de alocação, em centrais (ou mesmo no SAEC) de dados registrais, convertendo-as em entidades para-registrais com uma espécie de subdelegação de ofício e função sem previsão

legal ou constitucional. Intenta-se, por meio de emendas legislativas, instituir as centrais em atores personalizados às quais se atribui funções próprias delegadas aos registradores para a prática de atos registrais como prenotação, emissão de certidões etc. Quem prenota, emite certidões ou presta informações é o registrador, não centrais ou SAEC e nem mesmo o ONR. Isso nos leva a uma outra série de considerações. Vamos a elas.

LGPD e a atividade registral À parte esse problema de fundo, aqui se avança sobre um tema ainda pouco discutido e muito sensível: o impacto da LGPD na publicidade registral. Temos sustentado que o acesso à chamada “visualização da matrícula” deverá se constituir em exceção, já que ela revela a terceiros: dados, circunstâncias e vicissitudes que se relacionam ou integram a esfera privada de todo aquele que, direta ou indiretamente, figura no BOLETIM 362

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registro na sucessão de atos que filiam e compõem o historial tabular. Sabemos que muitos desses atos acham-se cancelados, direta ou indiretamente, seja pela sucessão na titularidade dos direitos, seja por inúmeras mutações jurídicas (retificações, gravames etc.). O que pode interessar a terceiros, por exemplo, saber que fulano sofreu uma indisponibilidade de bens no passado, ou que sicrano experimentou uma penhora? Que interessará a terceiros conhecer circunstâncias já canceladas, alteradas, extintas? Separações, divórcios, reconciliações – o que tudo isso pode interessar no contexto dos intercâmbios representados pela aquisição ou oneração de bens imóveis? Mudança de sexo, averbação de transgeneridade ou de situações relacionadas como uniões homoafetivas – o que estas circunstâncias podem alterar ou qualificar a aquisição ou transmissão de bens e direitos? Dizemos que essa modalidade de “visualização de matrícula” deverá ser exceção porque, tratando-se de mera informação, a lei faculta o seu acesso somente às “partes” – isto é, àqueles que possam demonstrar e comprovar legítimo interesse. Esta é, precisamente, a redação do item 2º do art. 16 da LRP, que alude a “partes”.

“Partes” e o legítimo interesse na rogação Hoje causa espécie dois aspectos da lei: (a) que as “informações” devam ser prestadas às “partes” e (b) que “qualquer pessoa” possa requerer certidão do registro “sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”1 Já me debrucei sobre o tema, tendo me dedicado a proceder a uma exegese do corpo legal em um caso concreto2. Partes, no contexto da Lei de Registros Públicos, é um conceito técnico: refere-se às pessoas que, direta ou indiretamente, figuram no Registro ou têm legitimidade para promover mutações na situação jurídica e obter do Registro de Imóveis informações de seu interesse. Parte é, pois, um conceito de processo e o Registro, como se sabe, é um processo. A epígrafe do Capítulo III do Título V da LRP acha-se assim grafada: “Do Processo do Registro, artigos 182 e seguintes. O conceito de parte pode ser expandido, no contexto 1 O art. 17, bem como o art. 217 da LRP, aludem à rogação de publicidade e inscrição no protocolo por “qualquer pessoa”. 2 V. Processo 583.00.2008.151169-7 – informação – publicidade registral em https://quintoregistro.wordpress.com/2008/06/10/ processo-583002008151169-7/.

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dos Registros Públicos, e assim alcançar a ideia de legitimidade postulatória para obter as informações do Registro. Assim como a própria LRP previu a legitimidade para as obter (n. 2º do art. 16), a Lei de Notários e Registradores cravou o dever dos Oficiais do Registro de Imóveis de “facilitar, por todos os meios, o acesso à documentação existente às pessoas legalmente habilitadas”, conforme inciso XII do art. 29 da LNR3. Vimos, pela enunciação dos dispositivos legais citados, que há uma gradação: partes não é o mesmo que quaisquer pessoas. Afinal, quem poderá rogar e obter informações do Registro de Imóveis? Como já asseverei no curso deste trabalho, a cláusula aparentemente aberta do art. 17 da LRP – “qualquer pessoa” – não deve levar o intérprete a se afastar do escopo: “requerer certidão do registro”, expressão preposicionada por artigo definido que parece indicar um ato de registro determinado, não vários, nem indeterminados ou aleatórios. Estaríamos diante de uma faculdade de postulação, aberta a qualquer pessoa, para obtenção de certidões de um determinado registro, não o acesso indiscriminado a todo e qualquer elemento que componha o acervo registral, abarcando o que poderia representar na prática um inventário patrimonial do cidadão – circunstância que pode ser amplificada com o acesso a centrais de informação dos Estados e muito comprometida pela vulneração de dados de caráter pessoal.

A visão tradicional na voz de Serpa Lopes Vejamos como a doutrina tradicional feriu o tema. O tratadista assim registrou: “Por conseguinte, quando a lei impõe ao Oficial a obrigação de mostrar às partes os livros de registo, subentende-se um interesse concreto, relacionado com o objeto certo, determinado e individuado, e não qualquer proposição vaga e indefinida que, sob a capa de uma investigação, transformaria o direito da parte numa verdadeira correição, uma vasta e desmedida faculdade de inspeção, que a lei atribui e só permite às autoridades judiciárias ou fiscais. Essa a interpretação harmônica com o próprio mecanismo do registo e especialmente

3 A Lei 8.935/1994 utiliza-se da expressão “documentação existente”. Documento nada mais é do que “unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou formato” (inc. II do art. 4º da Lei 12.527, de 18/11/2011.)


o de imóveis”4. O mesmo SERPA LOPES cingirá a consulta (obtenção da informação) aos indicadores pessoal e real. Levemos em consideração que suas conclusões estavam condicionadas pelos limites instrumentais e infraestruturais da organização do Registro à época: “Que faculta o art. 195? Que o interessado possa, de pronto, saber a quem pertence a propriedade de determinado imóvel, não um imóvel qualquer, vagamente indicado; que alguém possa se certificar dos ônus que porventura gravem um determinado imóvel. A obrigação de exibição dos livros por parte dos serventuários, se cinge no apresentar ao interessado, não todos os livros para pesquisa, mas o livro onde deve figurar o imóvel por ele indicado, quer sob a base da menção à pessoa do proprietário, por meio do Indicador Pessoal, quer sobre a base da especificação do imóvel, através do Indicador Real. A publicidade assegurada não pode ser realizada através do registo, mas sim, partindo do objeto da pesquisa, seja uma pessoa, ou seja, um imóvel, e a obrigação do Oficial se circunscreve na apresentação do livro, onde se encontra transcrita ou inscrita a situação que se deseja conhecer”6.

Tempos modernos – “um novo começo de era” Os tempos mudaram, as novas tecnologias prenunciam uma nova era. As exigências hoje são outras, conformam-se de modo singular, mais específico, tornam-se complexas, variegadas. Já se consagrara a rotina de pesquisa nas centrais de informação de registradores com vistas a instruir ações executivas, sejam os interessados os privados ou o próprio Estado, nas execuções fiscais e nos casos de indisponibilidades de bens – o que não deixa de ser uma forma heterodoxa de acesso aos dados do Registro. Mais recentemente, surgiram novas demandas oriundas da sociedade e do próprio mercado: já não se buscam somente os dados da pessoa ou da coisa, mas abarcando um escopo maior, com pesquisas gerais e indeterminadas

e, em certo grau, aleatórias7. Por exemplo, investigam-se padrões que possam revelar o comportamento do mercado na aferição de preço médio de transações, velocidade nos intercâmbios, identificação de imóveis em fase de execução ou levados a leilão, arrematados, adjudicados etc. Visa-se, com isso, amplificar a previsibilidade dos intercâmbios, implementar velocidade aos processos e garantir maior segurança jurídica. Tradicionalmente, sempre se entendeu que essas buscas indeterminadas ou genéricas, descartando peças centrais de informação – como a pessoa, a coisa e, em certa medida, o direito – e focando em elementos acessórios, não poderiam ser toleradas. Uma vez mais, lembremo-nos de SERPA LOPES: “No caso sub judice, o pedido é formulado indeterminadamente. Não há indicação do imóvel, não há referência à pessoa do seu proprietário; não pode, assim, facultar-se a devassa dos livros do registo, devassa que não se compreenderia, de maneira alguma, e que perturbaria a própria ordem do serviço, dando ao mecanismo da publicidade uma extensibilidade jamais pretendida pelo legislador, uma extensibilidade sem resultados práticos, e que mesmo feriria o bom-senso”8. Para fornecer as informações ocorre uma espécie de subversão das rotinas tradicionais, encarecendo os custos para sua produção com o apoio de ferramentas inadequadas ainda hoje utilizadas. Não dispondo de um código que permita articular uma linguagem baseada em ontologia – a favorecer respostas mais rápidas e precisas – ficamos completamente atados para a produção desses dados.

O SREI e a mudança de paradigmas O Registro foi criado e sempre existiu para aparelhar os intercâmbios relativos a bens e direitos imobiliários. O acesso aos livros, às informações, aos dados, sempre se facultou para que se cumpra a finalidade primacial do Registro de Imóveis, a teleologia registral: outorgar direitos e os publicizar juridicamente. O nosso foco sempre

5 Curioso observar que a redação do n. 2º do art. 19 do Decreto 4.857/1939 já facultava, às partes, o acesso direto aos livros de registro para obtenção de informações de seu interesse. Na redação atual, o Oficial já não está obrigado a mostrar às partes os livros de registro, mas tão-somente a fornecer a informação.

7 O Projeto SINTER, da Receita Federal do Brasil, se orienta no sentido de buscar revelar, a partir de padrões aferíveis por meio de aplicação de tecnologias de big data, atividades suspeitas de lavagem de dinheiro ou de evasão fiscal. Obtém-se, de modo aleatório, respostas a perguntas que ainda não foram formuladas, o que representa, em certa medida, um paradoxo. Para aprofundar o tema, sugiro a leitura do excelente Mayer-Schonberger, Viktor. Cuker, Kenneth. Big Data: The Essential Guide to Work, Life and Learning in the Age of Insight. London: John Murray, 2017, 320 p. [ISBN: 9781473647206].

6 Idem, ibidem.

8 Idem, ibidem.

4 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado dos Registos Públicos. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 4ª ed., 1960, 106-7, n. 40.

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foi posto nos intercâmbios e transações entre privados – “A” aliena a “B” que institui um direito real de garantia a “C”. A situação jurídica, que assim se estabelece, será oponível a todos os terceiros. Todavia entram em cena, agora, os meios eletrônicos que alteram substancialmente o ecossistema dos Registros Públicos. Já aludi a este fenômeno no artigo Sistema de Registro de Imóveis eletrônico – ao qual remeto o leitor9. Com as mudanças provocadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação surgem demandas inéditas no Registro de Imóveis – como, por exemplo, a pesquisa de todos os imóveis de um determinado bairro para apurar variáveis que serão utilizadas por algoritmos que revelam oportunidades de novos negócios e evitam problemas na aquisição, orientando os investimentos, trazendo maior segurança, rapidez e previsibilidade. Estamos diante de um novo desafio: amplificar a garantia da segurança jurídica e econômica nos intercâmbios imobiliários com o apoio de novas tecnologias, simplificando processos e automatizando as rotinas. Em suma: o mercado está abandonando a figuração quase arquetípica do Registro de Imóveis tradicional (A x B x C) e avançando em direção a figurações plúrimas e complexas. A atuação de empresas no mercado imobiliário, baseando-se em coleção de dados (big data), já não está focada num único e determinado imóvel ou pessoa, mas a lógica inerente ao seu negócio conduz a um outro patamar, de relações complexas, que são realizadas com apoio em novas tecnologias, obtendo maior velocidade, economicidade e eficiência. São esses dados o motor da nova economia no nicho do setor imobiliário. Todavia, ao lado desse impulso quase irresistível, a sociedade ergue algumas barreiras. A mais importante delas é a proteção de dados pessoais. Veremos em detalhe.

Dinâmica e estática do Registro A matrícula imobiliária é um ente dinâmico, já a filiação revela, somente para interessados legitimados, a cadeia estática de atos inscritos (trato sucessivo) que fica penumbrada por não interferir diretamente com o tráfico jurídico-imobiliário. 9 JACOMINO. Sérgio. Sistema de Registro de Imóveis eletrônico, 2018. Acesso: http://bit.ly/2V49S13.

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No direito inglês o mecanismo é chamado de Curtain Principle ou Mirror Principle. Para GRAY & GRAY o objetivo do registro imobiliário é que “any prospective purchaser of registered land should always be able to verify, by simple examination of the register, the exact nature of all interests existing in or over the land which he proposes to buy”10. O tema é complexo e será agitado na aplicação prática da LGPD.

Princípio de finalidade da publicidade registral e a autodeterminação da imagem O acesso indiscriminado aos dados pessoais, que o acesso à informação pela “visualização da matrícula” proporciona, fere o princípio da autodeterminação da imagem e contraria o princípio da finalidade que é a enteléquia da publicidade registral imobiliária e que se concretiza pela “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (inc. XII do art. 5º c.c. inc I do art. 6º da LGPD)11.

O STF é o princípio da autodeterminação O STF vem de decidir exatamente sobre esse mesmo tema e vale a pena refletir sobre o impacto da lei e dessas decisões na atividade registral já que a expedição de certidão por mera cópia reprográfica de matrículas pode dar ensanchas à tredestinação das finalidades da publicidade jurídico-registral. Aludindo às ameaças representadas pelo advento de novas tecnologias nas atividades tradicionais, o ministro GILMAR MENDES deixou consignado em voto proferido na ADI 6.389: “O direito fundamental à igualdade – enquanto núcleo de qualquer ordem constitucional – é submetido a graves riscos diante da evolução tecnológica. A elevada concentração de coleta, tratamento e análise de dados possibilita que governos e empresas utilizem algoritmos e ferramentas de data analytics, que promovem classificações e estereotipações discriminatórias de grupos sociais para a tomada de decisões estratégicas 10 GRAY, Kevin & GRAY, Susan Francis. Elements of Land Law, 5 ed. London: OUP, 2008, p. 190. 11 Para maior aprofundamento do tema no âmbito da publicidade registral, consulte: MARANHÃO. Juliano Souza de Albuquerque. Proteção de Dados e o Registro Imobiliário. Acesso: https://near-lab.com/


para a vida social, como a alocação de oportunidades de acesso a emprego, negócios e outros bens sociais. Essas decisões são claramente passíveis de interferência por vieses e inconsistências que naturalmente marcam as análises estatísticas que os algoritmos desempenham” (voto proferido na ADI 6.389). Na mesma direção o voto da ministra ROSA WEBER. Para ela são “decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa”. Tais direitos “foram positivados, no art. 2º, I e II, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais”. As mudanças sociais e econômicas – ainda segundo a Ministra – “demandam incessantemente o reconhecimento de novos direitos, razão pela qual necessário, de tempos em tempos, redefinir a exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo independentemente do seu conteúdo, mutável com a evolução tecnológica e social, no entanto, permanece como denominador comum da privacidade e da autodeterminação o entendimento de que a privacidade somente pode ceder diante de justificativa consistente e legítima” (ADI 6.389, voto de 24/4/2020).

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Passado e futuro se ligam numa grande ponte geracional

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O presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, abriu o XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil lembrando que vivemos uma época de grandes mudanças e transformações. “Achamo-nos como que imersos num ambiente cultural e tecnológico em que se produz uma sensação de perda de referências, de insegurança. Vagamos desorientados sob um denso nevoeiro de dúvidas e incertezas.” Sérgio Jacomino Presidente do Irib

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- “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”, perguntou Alice - “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato de Cheshire. - “Não me importa muito para onde”, disse Alice. - “Então não importa que caminho tome”, disse o Gato. (Alice no País das Maravilhas).

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embrei-me da célebre passagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, quando preparava estas breves palavras que ora dirijo aos registradores imobiliários de todo o Brasil reunidos na abertura do XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis. Vivemos uma época de grandes mudanças e transformações. Achamo-nos como que imersos num ambiente cultural e tecnológico em que se produz uma sensação de perda de referências, de insegurança. Vagamos desorientados sob um denso nevoeiro de dúvidas e incertezas. Perguntamo-nos: as novas tecnologias vão modificar o secular sistema registral brasileiro? Em que medida os meios eletrônicos terão o condão de transformar o Registro de Imóveis substancialmente? Blockchain, computação cognitiva, identidade digital, inteligência artificial... Ao fim e ao cabo: a máquina será capaz de

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substituir o elemento humano nas atividades próprias de notários e registradores? Ao lado das novas tecnologias, que nos assombram e nos levam a este estado de grandes apreensões, verificamos um fenômeno igualmente importante: perdemos o senso de direção na exata medida em que o próprio Direito, e suas regras materiais e formais, antes tendentes à estabilização das relações sociais, diluem-se num relativismo que a todos desorienta, confunde e prejudica. Tenho a percepção de que, mais ainda do que as novas tecnologias – que afinal são meros instrumentos –, as próprias regras jurídicas, que sempre foram a base e o fundamento do Registro de Imóveis e que nos proviam uma cartografia fiável que nos permitia perceber o sentido e a direção no interior do sistema, elas próprias se relativizam, inoculando o germe da incerteza, da imprevisão, da insegurança jurídica.


Neste cenário de disrupção, de algaravia jurídica, de imprevisibilidades normativa e decisória, as novas tecnologias nos são apresentadas como um meio de recondução à racionalidade perdida do próprio sistema jurídico. Para muitos, a máquina há de nos prover os meios para reconhecer o Direito. Ela será capaz então de perscrutar o cipoal normativo e configurar o quadro da situação jurídica, indicando-nos o caminho mais célere e seguro para estabilização das relações jurídicas. A segurança jurídica estará na dependência da prefiguração da máquina. Isso é simplesmente intolerável. Caímos nos domínios do idealismo. A máquina não pode ir além de algoritmos e de estritas relações lógico-formais. Não pode pretender ser mais do que a régua e o compasso nas mãos de um bom artífice, provado na prática de sua atuação profissional. Nesta etapa do caminho, volto à pergunta do Gato de Cheshire: sabemos aonde queremos chegar? Não quero iludi-los, queridos colegas. Não temos certeza absoluta de nada, salvo a de que estamos em movimento e, visto em perspectiva, trilhando, até aqui, um bom caminho. Trazemos na algibeira o conhecimento acumulado por gerações de registradores que se sucederam no exercício do nosso ofício ao longo do tempo. Eles nos legaram um Registro de Imóveis melhor do que o que receberam de seus maiores. É fiado justamente nessa tradição, orientados pela razão prática, que nos lançamos no reconhecimento dos sinais do passado, nos diferenciando, contudo, tornando-nos aptos para enfrentar as dificuldades do caminho e construir o nosso futuro. Seremos capazes de legar aos que nos sucederão um Registro de Imóveis melhor do que aquele que recebemos de nossos pares? É preciso descer do ideal ao real. Temos um desafio objetivo que se traduz na capacidade e na aptidão para assimilar as novas tecnologias e dar-lhes a importância relativa que merecem na estrutura de um bom Ofício de Registro de Imóveis. Os novos meios e ferramentas eletrônicos são elementos acessórios e instrumentais e, ainda que se conceda que possam transformar os elementos do ecossistema de informações e comunicações, ainda assim não podem substituir o elemento humano na realização de atividades próprias e singulares do registrador. A isto nos dedicamos neste momento: dar respostas efetivas aos desafios postos ao registro de nosso tempo.

Elvino Silva Filho – o IRIB é a “casa do registrador imobiliário brasileiro” Quero finalizar estas breves palavras evocando a memória de um grande registrador imobiliário brasileiro – Elvino Silva Filho e de um grande desembargador paulista, Márcio Martins Ferreira. Gostaria de trazer ao conhecimento dos jovens colegas a marca indelével do protagonismo do Instituto desde as suas origens. E o faço hoje honrando a figura exemplar do registrador Elvino Silva Filho e do desembargador Márcio Martins Ferreira, recuperando parte do brilhante discurso proferido por ocasião da fundação do IRIB, no longínquo ano de 1974. Qualquer um de nós, registradores ou não, que queira compreender o processo de modernização do Registro de Imóveis a partir da segunda metade do século XX deve voltar-se às figuras emblemáticas desses grandes juristas. Elvino esteve presente à fundação do CINDER – Centro Internacional de Direito Registral no ano de 1972, onde apresentou uma excelente contribuição – A unidade imóvel – fólio real – e a mecanização dos registros no Brasil. O texto seria publicado posteriormente na Revista dos Tribunais, edição 477, de julho de 1975. Nos meados da década de 1970, Elvino já antevia as vantagens do uso das ferramentas computacionais aplicadas ao Registro de Imóveis. Vamos dar voz ao registrador e Presidente do IRIB: BOLETIM 362

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“E, nesta oportunidade, não poderíamos deixar de nos referir, também, à utilização de computadores, uma vez que os Registros de Imóveis, além de serem os repositórios dos imóveis e das pessoas dos titulares de direito sobre eles, devem possibilitar precisas informações sobre esses dois dados ou elementos. A mecanização dos registros possibilitará, assim, no Brasil, em futuro não muito remoto, a aplicação da cibernética, mediante a utilização de computadores, para o processamento das informações sobre os imóveis e os titulares do seu domínio (…). Dir-se-á que tais previsões são um tanto quanto visionárias de nossa parte, para a implantação no Brasil. Não comungamos, todavia, dessa opinião. Se o homem dispõe da máquina para a sua utilização, por que não a utilizar para u’a maior eficiência nos seus serviços?” (RT 477/34).

IRIB – a “Universidade de Direito Imobiliário” Vamos agora ao ilustre desembargador Márcio Martins Ferreira, homem culto, tradicionalista e ainda assim capaz de conceber uma visão moderna acerca das grandes transformações tecnológicas de seu tempo. Diz ele:

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“E tudo isso sugere uma outra advertência: será preciso, desde logo, que o estudo da Cibernética entre nas cogitações dos responsáveis pela eficiência dos Registros Imobiliários. A Cibernética ‘filha da simbiose de necessidades científicas e militares, é apenas um belo nome, de estirpe grega, para a segunda revolução industrial’. Dela podemos dizer que será a alavanca de alterações e de adaptações sociais e irá reformular o próprio Direito. Ela se apressa a penetrar em todas as áreas da atividade humana, como o ‘fruto da árvore da ciência do bem e do mal’. Como já se tem notícia ‘à medida em que o Brasil vai entrando na era do computador, sua aplicação vai se difundindo e se multiplicando’: registros públicos e controles sobre propriedades (móveis e imóveis); registros de comércio, aplicações no terreno fiscal; contabilidade computada em bancos, INPS e etc. A verdade é que a Cibernética está modificando o comportamento dos indivíduos, em função das recém-introduzidas relações de estrutura de poder, do processo produtivo, do mecanismo do trabalho e até dos controles de natureza burocrática e política, que afetam diretamente o destino de cada ser humano.


Já se alarma mesmo que o emprego da eletrônica e da Cibernética ameaça, desde já, no seu nascedouro, os próprios direitos individuais, historicamente protegidos, e que dizem respeito à liberdade e à inviolabilidade do cidadão. É uma consideração, sem dúvida, que desperta temor, mas que, por certo, adianta muito a corrida dos efeitos de tal intervenção nos domínios do Direito. (...) Como a Cibernética acena para a vida da Justiça, tomamos este pouco tempo para focalizá-la. E no rico cenário deste Encontro, que prepara as bases de um novo futuro, em meio às mais promissoras realizações, era oportuno realçar tudo que em perfeita simbiose constituirá amanhã um dos altos objetivos do magnífico resultado de uma brilhante ideia. Brilhante e definidora da grandeza de um pugilo de homens que não perdem a chama do ideal que ilumina os seus corações. E podíamos justificar mais: assim como a poesia é a taquigrafia da alma, a Justiça é o computador das aspirações que comandam o destino do homem. Prossiga esta ideia pela larga estrada da verdade e do sucesso. Que o mundo de amanhã não possa surpreender os arautos desta admirável iniciativa nas surpresas de um novo status que antes não tivessem prevenido na superior visão do Instituto que hoje toma corpo e grandeza. Temos a imensa satisfação de registrar no coração de São Paulo e do Brasil, como uma transcrição imutável no tempo e no espaço, a nossa confiança e a nossa fé nos homens que tiveram a genial e corajosa primazia em criar uma Universidade de Direito Imobiliário. E assim será o INSTITUTO que motiva o I Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis, de cunho nacional”. (Boletim da ASJESP nº 98, abril/dezembro 1974, p. 47 e ss.).

mento do Registro Imobiliário brasileiro. Com os olhos postos no futuro e os pés fincados na tradição vamos em frente, conscientes de que o desafio de construir o Registro de Imóveis está depositado em nossas mãos. Vamos construir pontes para o futuro! Muito obrigado!

Neste XLV Encontro Nacional do IRIB, recolhendo o que se produziu ao longo das últimas décadas, reatando os fios que nos ligam ao espírito de união e congraçamento dos registradores presentes no I Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado no mês de junho de 1974 na cidade de São Paulo, nesta hora de alguma hesitação e de incertezas, penso que podemos dar um sentido de orientação e direção ao desenvolviBOLETIM 362

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PALESTRA MAGNA

A função social do registro imobiliário Será que as transformações tecnológicas pelas quais o mundo passa estão esvaziando a função do registrador imobiliário, ou pior, a própria função do Direito? Será que no lugar do Direito é possível introduzir uma máquina sofisticada e todos os problemas estarão resolvidos?

Celso Fernandes Campilongo Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Vice-Diretor eleito da instituição e Livre-Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

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m grande dramaturgo suíço do século passado, Friedrich Dürrenmatt, estudou filosofia. Não sendo jurista, frequentemente ele era convidado a fazer conferências nas faculdades de Direito da Suíça. Uma dessas conferências tinha um nome pomposo como o desta palestra magna, Megaconferência sobre o Direito e a Justiça. E lá ia Dürrenmatt fazer a megaconferência a respeito de um assunto que não era especialidade dele. Mas algumas das coisas mais brilhantes a respeito da justiça do ponto de vista dramatúrgico foram escritas justamente nas peças de Dürrenmatt. Ele ironizava a moralidade, a justiça, o conceito de Direito da época, especialmente os paradoxos. Muitas vezes o Direito apontava uma direção, mas conduzia à direção oposta. Peças como A Visita da Velha Senhora, O Suspeito, A Testemunha, tratam da relação entre Direito e moral, entre Direito e justiça. Assim como Dürrenmatt não era um especialista em Direito, eu não sou um especialista em Registro Imobiliário; especialistas são vocês. Então, por que convidar um professor de Teoria do Direito, de Sociologia do Direito, se este é um congresso de registradores? Por que não chamar um grande especialista em Direito Registral? Eu desconfio que haja uma razão, um sentido em chamar alguém para lançar um olhar um pouco distanciado e, justamente por essa distância, mais neutro, talvez com a capacidade de oferecer luzes de uma perspectiva um pouco mais distante da temática que vocês conhecem tão bem. Então, me ocorreu falar alguma coisa não da perspectiva que vocês conhecem muito melhor do que eu, mas falar alguma coisa sobre a função social do registro imobiliário na perspectiva de um professor de Sociologia do Direito. Claro que falar sobre a função do registro imobiliário é falar sobre a função do Direito. A função do Registro Imobiliário não é nada mais, nada menos do que um desdobramento, uma projeção da função do Direito para a atividade específica dos senhores. Qual é a função do Registro Imobiliário? Será que todas as transformações tecnológicas pelas quais o mundo vem passando estão esvaziando a função do registrador imobiliário, ou pior, a própria função do Direito? Será que no lugar do Direito eu posso introduzir uma máquina sofisticada e, desde que eu saiba operar convenientemente esses instrumentos, nossos problemas estarão resolvidos?

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Qual é, afinal de contas, a função do Direito e do Registro Imobiliário? O que essas transformações todas poderiam nos ajudar a compreender? Vários autores trataram da função do Direito, mas um dos mais ilustrativos é o professor italiano Norberto Bobbio, no livro Da Estrutura à Função. Como diz o título, Norberto Bobbio descreve um percurso que vai da análise estrutural à análise funcional do Direito. Bobbio diz o seguinte. No século XIX, o Direito desempenhava fundamentalmente a função repressiva. Na passagem do século XIX para o século XX, o Direito continuou exercendo a função repressiva, mas combinou essa função com pelo menos outras três. Eu acho que na verdade o conjunto das funções que o Bobbio atribui ao Direito se reproduzem em todos os âmbitos do Direito e não é diverso no âmbito registral e no que diz respeito à temática da função social do registrador imobiliário. Bobbio vai dizer que, no século XIX, os juristas se davam por contentes em dizer que a função do Direito era o controle social e, portanto, não tinham que se preocupar com outras coisas. Mas começa a tentar identificar o que acabou fazendo com que essa preocupação microscópica se transformasse no centro da investigação jurídica, pelo menos de Filosofia e Teoria do Direito, no século XX. Bobbio levanta algumas hipóteses, oferece algumas explicações. Por que aquilo que não era relevante, a função do Direito, se torna algo central? Não é difícil especularmos que Bobbio está tentando identificar uma mudança, uma transformação, e oferece uma explicação para ela. E é exatamente isso que estamos passando neste momento, uma mudança que coloca em xeque o papel do Direito e o papel do registrador imobiliário, por exemplo. Bobbio levantava algumas hipóteses. Não conhecemos, por exemplo, no século XIX, os meios de comunicação de massa que o século XX descobriu, uma nova tecnologia, ou várias novas tecnologias. Se os juristas do século XIX imaginavam o Direito como um mecanismo de controle social, ora, o cinema, o rádio, a televisão, a publicidade – se Bobbio estivesse vivo, ele diria a internet, as redes sociais –, tudo isso faz com que se desenvolvam mecanismos infinitamente mais poderosos do que o Direito para exercer o papel de controle social. Se essa era a função, o Direito perdeu a função porque esses mecanismos desenvolvem a função do Direito com uma eficiência muito maior.


Bobbio duvidava disso. Ele levantava outras hipóteses. Os juristas começaram a estudar a função do Direito porque se deram conta de que em muitos casos o Direito não apenas perdeu essa função de controle, essa função repressiva, mas o Direito passou a desempenhar uma função negativa, uma função destrutiva. Eu condeno alguém por furto de galinha a passar seis meses na cadeia e o sujeito sai da cadeia um criminoso muito mais aperfeiçoado. Ou seja, o Direito estaria desempenhando uma função negativa? Não reprime e ainda desempenha um papel negativo? Pensem na repressão ao tráfico de drogas. Longe de mim fazer qualquer defesa do comércio de drogas, mas vejam os problemas por trás disso. Em nome da repressão ao tráfico de drogas, possivelmente, eu vou expandir problemas de criminalidade, de prostituição, de crime organizado, de corrupção policial e por aí vai. O Direito se propõe a fazer algo e o resultado é o inverso do que se espera. Aqui o dramaturgo Dürrenmatt começa a se aproximar do jurista Norberto Bobbio, o Direito aponta numa direção e o resultado acaba sendo exatamente o oposto. E não é preciso ser especialista em Direito Registral Imobiliário para identificar problemas análogos no campo registral. Pensem nos problemas decorrentes do chamado direito de laje. Será que o direito de laje se apresenta como uma solução ao problema de moradia no Brasil, ou ele traz tantos problemas que em vez de facilitar a vida daquele que não tem a sua propriedade regularizada ele cria ainda mais obstáculos, maiores dificuldades para quem quer exercer um direito? Essa não é uma especulação que diga respeito à função do Direito de forma genérica, ela diz respeito também à função do Direito Registral de forma específica. Há outras explicações para essa expansão da análise da função do Direito. Alguns vão dizer que não se trata de o Direito ter perdido a sua função ou de estar desempenhando uma função negativa, mas fica cada vez mais claro que o Direito desempenha funções latentes, que não aparecem declaradamente, mas que no fundo é naquilo que não aparece que reside a importância do Direito e a importância de uma análise da sua função, e vale dizer a função do registrador imobiliário. Bobbio vai tomar um exemplo da antropologia. Pensem num ritual como a dança do índio pedindo chuva. Não existe nada mais inútil, absoluta ausência de relação de causalidade entre a dança do índio pedindo chuva e a obtenção de chuva. Apesar disso a dança do índio pedindo chuva é um ritual que os antropólogos identificaram

em todas as partes do planeta. Como algo tão ineficiente, sem nenhum nexo de causalidade, pode estar presente em tantos lugares? Bobbio vai responder com base em estudos de antropologia. A dança ritual do índio pedindo chuva tem uma função manifesta, uma função declarada: pedir a chuva. Mas também tem uma função latente, e está em todos os lugares graças a essa função não manifesta. Em um momento de falta de água, um momento de desagregação da tribo, um momento de tensão, o ritual, a dança, a bebida, a festa têm a capacidade de congregar, promover a união. Por isso ela é importante. Bobbio vai dizer que com o Direito acontece algo parecido. O Direito, às vezes, se propõe a fazer uma coisa, mas ele não é relevante em razão daquilo que se propôs expressamente a fazer, mas daquilo que está por trás da proposta jurídica. É possível que com o direito de propriedade e o direito de registro imobiliário se tenha de um lado uma função declarada, assumida – garantir a fé pública registral, por exemplo – mas, por trás disso, pode haver uma função latente como a do registro imobiliário enquanto facilitador do ambiente de negócios. Isso tem uma importância extraordinária, especialmente numa economia capitalista moderna.

A função preventiva do Direito Bobbio usa esses exemplos para dizer que, se no século XIX se tinha essa função repressiva do Direito, ao longo do século XX o Direito começa a desempenhar outras funções. Por exemplo, ganha importância a função preventiva do Direito. O Registro Imobiliário tem essa enorme capacidade de desempenhar uma função que é preventiva. Bobbio vai dizer que o Direito começa a lidar não somente com as condutas indesejadas, que devem ser reprimidas ou prevenidas. Ao longo do século XX, o Direito passa a regular com mais intensidade também as condutas desejadas. Em relação às condutas desejadas a função do Direito não pode ser preventiva nem repressiva. O Direito pode desempenhar uma função promocional em relação às condutas desejadas, e uma função premial. A função premial não é tão clara na atividade do Registro Imobiliário, mas a função promocional é claríssima. O Direito Registral é uma técnica que estimula, promove, facilita negócios imobiliários, oferece segurança, oferece garantia, oferece estabilidade a um setor fundamental à BOLETIM 362

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economia de mercado. Um trabalho muito importante sobre esse tema, é de um especialista em Direito Registral e registrador, o professor espanhol Fernando Méndez González. O nome do livro que menciono aqui é A Função Social da Fé Pública Registral nas Transmissões de Bens Imóveis. O professor Fernando González faz a seguinte comparação. Em uma economia agrária como a do século XIX, nesse momento em que vai dizer Bobbio que o Direito desempenhava poucas funções, o número de contratos imobiliários, por exemplo, é reduzido, e as relações contratuais são principalmente relações interpessoais. Consequentemente, não há grande assimetria de informações entre as partes envolvidas no negócio. São poucos os negócios, as partes se conhecem, as relações são pessoais. E para isso, vai dizer Fernando González, o Código Civil dá conta dos problemas. Na passagem para o século XX, com expansão das funções do Direito, as relações deixam de ser pessoais, passam a ser relações jurídicas dotadas de elevada impessoalidade. E não é que a informatização tenha mudado esse quadro, ao contrário, ela reforça tudo isso. As relações ficam ainda mais impessoais quando eu posso, por exemplo, comprar um livro pela internet ou adquirir um imóvel sem estar presente, sem sequer conhecer o imóvel, vendo fotografias ou um filme feito por um drone. Essas relações impessoais aumentam de número em razão da tecnologia disponível. E além de aumentarem em número e em impessoalidade, justamente por conta disso, aumenta também a assimetria informacional. E é exatamente com base nesses pontos – assimetria informacional, quantidade de contratos e impessoalidade dessas relações – que o professor Fernando González vai dizer que o Código Civil servia para o século XIX, mas no século XX passa a ocupar esse lugar o Direito Hipotecário. Claro que o Código Civil continua sendo muito importante, mesmo porque tem disposições de natureza hipotecária. No entanto, o Direito Hipotecário assume papel muito mais relevante do que tinha o Código Civil no século XIX, porque todo esse conjunto de assimetrias revela que contratos imobiliários de forma especial são contratos incompletos. E essa incompletude de algum modo pode ser controlada, colmatada pela atividade do registrador imobiliário. Fernando González atribui a isso essa capacidade que tem o registro imobiliário de promover esses ajustes de reduzir, controlar, tornar passível de convivência num mundo complexo como

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este a assimetria informacional, a incompletude contratual com a necessidade e o ritmo que eu tenho cada vez maior de contratos impessoais e numerosos. É essa a explicação que ele dá, tecnicamente, para a função social do registrador imobiliário quando novas tecnologias estão tolhendo, substituindo ou abrindo mão de uma atividade como a do registrador imobiliário, ou substituindo a própria função do Direito. O Direito continua tendo uma importância extraordinária e o Direito Registral também. Claro, uma transformação na tecnologia pode ter impacto na atividade do registrador, pode facilitar, criar dificuldade, modificar a função do registrador, mas jamais eliminá-la. Eu vou dar um exemplo da atividade acadêmica. Eu dou aulas na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a primeira faculdade de Direito criada no Brasil, juntamente com a do Recife. Vou citar uma passagem extraída de um autor que vocês conhecem bem, Walter Ceneviva. Em um livro de memórias da faculdade há uma biografia do Barão de Ramalho escrita por Walter Ceneviva. O Barão de Ramalho foi um dos primeiros professores da Faculdade de Direito da USP. Ele morava na Rua da Consolação, distante cerca de um quilômetro e meio do Largo São Francisco, e tinha o hábito de ajeitar uma sacola de livros num burrico, tomar assento no burrico e ir para a faculdade. O terreno da Rua da Consolação até o Largo São Francisco é acidentado – imaginem como era no século XIX. Então, nos dias chuvosos os alunos tinham certeza de que o Barão de Ramalho chegaria à faculdade completamente enlameado, mas os livros chegariam intactos. Ele protegia de tal maneira os livros que escorregava, caia na lama, chegava com o paletó todo sujo, mas os livros impecáveis. Dizem que era muito cuidadoso com os livros da biblioteca da Faculdade de Direito. A faculdade sempre teve muito orgulho disso, desse cuidado com os livros, desse seu acervo extraordinário. A biblioteca da Faculdade de Direito possui o maior acervo da Universidade de São Paulo, 500 mil volumes. Alguém poderia imaginar: “o professor está mostrando como a tecnologia torna aquilo que foi orgulho da Faculdade de Direito – ter uma biblioteca enorme – algo desprezível. Na verdade, é uma biblioteca que a Faculdade herdou do Mosteiro dos Franciscanos, tem 400 anos, é uma das mais antigas do Brasil. Vocês podem estar colecionando textos há dez anos, vinte anos. Em vinte anos vocês têm uma quantidade maior do que uma biblioteca de 400 anos.


“O Direito continua tendo uma importância extraordinária e o Direito Registral também. Claro, uma transformação na tecnologia pode ter impacto na atividade do registrador, pode facilitar, criar dificuldade, modificar a função do registrador, mas jamais eliminá-la.” O que significa isso? Que as bibliotecas não são mais relevantes para as faculdades de Direito? Que eu não preciso mais de biblioteca? A tecnologia superou por completo a necessidade de biblioteca? Olha, a tecnologia ajuda muito. Eu era capaz de dizer qual a data da edição de um livro, nome completo do autor, nome completo do livro, a página, e reproduzir a citação do trecho mencionado. Hoje, quando estou dando aula sempre esqueço uma dessas coisas. Não dura um segundo até que um aluno diga: “Professor, o senhor está mencionando tal autor, o senhor está mencionando tal livro. Foi publicado em Lisboa. Foi publicado em Londres”. Em um segundo ele obtém essa informação com muita facilidade. Alguém poderia dizer: “Então eu não preciso mais de professor nem de aula tradicional nem de biblioteca. A tecnologia supera tudo isso”. O erro seria tão grande quanto o equívoco de imaginar que eu não preciso mais do registrador ou não preciso mais do Direito. Evidentemente o que se vai exigir de um professor, de um estudante ou de um diretor de biblioteca é algo diferente, mas não que a sua função tenha se tornado dispensável. Se o estudante do século XIX ia à biblioteca e precisava da ajuda ou orientação de uma bibliotecária, a bibliotecária dos dias de hoje está lá para oferecer a mesmíssima ajuda, só que diante de um cipoal infinitamente mais complexo de possibilidades. Da sua salinha lá na Faculdade de Direito do Largo São Francisco ela consulta todas as bibliotecas do planeta. O mesmo ocorre com a quantidade de informações que registradores têm a sua disposição quando conectados em redes nacionais, quando têm acesso a informações via GPS ou com recurso tecnológico mais sofisticado. Mas isso não dispensa de forma alguma nem a bibliotecária, nem a aula, nem o estudante da aula de Direito e tampouco a atividade do registrador. Precisamos ter

muita clareza disso, não podemos substituir o Direito ou a atividade registral por qualquer passe de mágica. Isso não faz o menor sentido.

Direito Registral enquanto técnica de redução de complexidade Vou para outro passo da exposição, o passo conclusivo e mais abstrato, mais teórico, talvez o mais complicado de todos porque esse é o exercício um pouco atrevido e inadequado. É quase que a certeza de transformar a aula magna ou a macroconferência sobre o Direito e a Justiça em uma microconferência. O que vou dizer é muito arriscado. Recebam com cautela. É experimental. É como andar pela primeira vez de bicicleta, corre-se o risco de levar um tombo. Vou tratar da função do Direito e associá-la à função notarial de uma perspectiva um pouquinho diferente dessa que eu desenvolvi até aqui, que é mais convencional da teoria jurídica, mais convencional da Teoria do Direito nos moldes, por exemplo, do que fez o Norberto Bobbio, mas não é o único a ter feito essas tentativas. Vou mobilizar um autor muito menos consensual e muito menos conhecido do que o Bobbio, mas que trata exatamente desse tema: a função do Direito. Utilizei esse autor, um sujeito chamado Niklas Luhmann para escrever há três anos um livro sobre a função social do notariado. Estava aplicando isso para o notário, não para o registrador. Agora vou tentar algo atrevido aqui, puxar uma parte daquelas ideias para discutir com vocês a função social do registrador. Luhmann vai dizer que numa sociedade complexa, numa sociedade com pluralidade de alternativas de conduta e de comportamento, numa sociedade com economia de mercado, com desenvolvimento do Direito positivo, num contexto de globalização econômica, com BOLETIM 362

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novas tecnologias, que, com tudo isso, ou justamente em razão de tudo isso, o Direito desempenha um papel de garantia de expectativas normativas, garantia de direitos. E o desempenho dessa função de garantia de direitos é exatamente o que faz o Registro Imobiliário. Ele desempenha essa função de garantia de direitos que permite, por exemplo, uma multiplicidade de contratos, contratos impessoais, contratos incompletos, mas que ganham no Registro Imobiliário parâmetros para que o Direito me ajude a enfrentar uma elevada complexidade. Por quê? Vai dizer esse autor, porque o Direito atua como uma técnica que reduza a complexidade. Eu posso ter problemas na identificação do comprador, na identificação do vendedor, na indicação do imóvel, na descrição do imóvel, nas referências documentais, nas datas, nos contratos anteriores. Enfim, as incontáveis possibilidades de que a complexidade contratual possa gerar dificuldades exigem uma técnica jurídica que tenha a capacidade de reduzir essa complexidade, de formatá-la de modo a ser tolerável para uma sociedade que vive com esse excesso de possibilidades, controlando a incerteza e a insegurança, regulando a assimetria de informações, completando os contratos. E é exatamente como uma técnica dotada dessa força que atua o Registro Imobiliário. O Direito Registral funciona como uma fórmula ou uma técnica de redução de complexidade que permite a uma economia de mercado moderna conviver com transações com essas características, com negócios com essas possibilidades. Essa é uma primeira característica da função do Direito na sociedade moderna, ele atua como uma técnica de redução de complexidade. A segunda característica também está muito vinculada à atividade registral. O Direito, diante de um excesso de possibilidades, reduz complexidade e ativa algumas escolhas, viabiliza algumas seleções, portanto é um redutor de complexidade e é um mecanismo seletivo muito eficiente do ponto de vista jurídico pelas suas peculiaridades – não estou nem discutindo a evidente eficiência econômica. O Direito funciona, e o Direito Registral também, como uma técnica de implementação de escolhas, de implementação de seleção. Admitir ou recusar um título a registro é tipicamente uma atividade seletiva. Portanto, há redução de complexidade e seletividade. Há uma terceira característica importante dessa explicação. O Direito lida com situações complexas, reduz complexidade e possui mecanismos seletivos. O Registro Imobiliário faz tudo isso. Mas isso funciona também

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como uma estratégia em uma sociedade moderna para lidar com a contingência. Mais um exotismo que estou introduzindo aqui. Estou dizendo que o Direito reduz complexidade, que o Direito é um mecanismo seletivo e que o Direito oferece um tratamento à contingência. Tudo poderia ser diferente daquilo que é. Isso significa contingência. Nós pensamos que as coisas são de uma maneira, mas elas poderiam ser de outra. O registrador não admitiu o título a registro, devolveu com exigências, mas poderia eventualmente ter acontecido de um título com características análogas ter sido aceito por outro registrador, em outro momento. Ora, isso significa que o Direito está diante de um excesso de possibilidades – isso é complexidade – seleciona uma, ativa uma. Não se consegue ativar todas ao mesmo tempo; não é possível registrar e não registrar ao mesmo tempo, ou se registra ou não se registra. Mas isso pode gerar contingências. Alguém vai à Justiça reclamar da ausência do registro, faz uma representação contra o cartório, suscita uma dúvida, pouco importa. Eu tenho técnicas para lidar com a contingência de maneira que o resultado poderia ser diferente daquilo que é. O Direito também é uma técnica para lidar com essas possibilidades, que são cada vez mais numerosas. Sérgio Jacomino dizia há pouco: “Eu não sei exatamente o que fazer com as normas, eu tenho dificuldade para interpretar; tudo poderia ser diferente daquilo que é”. E é exatamente por conta dessa contingência – inevitável numa sociedade complexa –, a que se expõe o Direito a possibilidades alternativas, que a atuação do registrador é tão importante. Contingência, seletividade e complexidade são três conceitos que Luhmann utiliza. Ele mobiliza esses três conceitos para explicar que a função do Direito é oferecer uma estabilização a essas situações de elevada variabilidade – complexas, seletivas, contingentes – que exigem mecanismos, como os mecanismos para garantir expectativas. E, com todo o desenvolvimento tecnológico, eu não vejo a menor possibilidade de que novas tecnologias sejam capazes de se substituir ao Direito no enfrentamento desses desafios de complexidade, seletividade e contingência. Por isso a função social do registrador imobiliário, essa de garantir um ambiente de negócios resistentes a numerosos contratos, a relações interpessoais, a contratos incompletos, a incertezas nas relações jurídicas é cada vez mais importante, não o inverso. Eu diria que da perspectiva de professores de Direi-


to as novas tecnologias não tirarão o emprego nem de professores de Direito nem de bibliotecários. Mas suspeito, talvez para a felicidade geral dos presentes, que as novas tecnologias também não substituirão a atividade do registrador. Termino a exposição com uma referência à régua e ao compasso que o doutor Sérgio Jacomino mencionou aqui na sua exposição. Desde que a régua e o compasso estejam em mãos adequadas – isso pressupõe mãos e não máquinas nem teclados – registradores, professores de Direito e juristas de forma geral terão o que fazer. Comecei mencionando um dramaturgo e vou concluir mencionando um historiador da arte, um dos principais historiadores da arte do século XX, Henri Focillon. O ensaio Elogio da Mão é muito famoso entre historiadores da arte. Num texto literário muito bonito Focillon vai dizer que o artista se vale muito das mãos. Ele com muita frequência é capaz de traduzir ideias com as mãos de forma muito mais profunda do que com palavras. As mãos têm a capacidade de promover sensibilidade, de descrever o mundo de uma forma criativa extraordinária. Pensem, por exemplo, nas mãos do pintor segurando o pincel e dando as pinceladas. Pensem, por exemplo, nas mãos do ator numa peça do Dürrenmatt. Pensem, por exemplo, nas mãos do pianista e na sua relação com o piano. Pensem nas mãos do escultor e na sua relação com a espátula e com o modelo. As mãos têm a capacidade de revelar a sensibilidade humana com habilidade maior, muitas vezes, do que as palavras. Focillon diz que as mãos também podem esbarrar em um vaso precioso, deixar que esse vaso caia e se parta em dezenas de cacos. Mas a mesma mão que é capaz de derrubar o vaso é capaz também de reconstituí-lo e pode reconstituí-lo de maneira grosseira. Pode também reconstituir o mesmo vaso com um tipo de artesanato oriental no qual com a habilidade das mãos do artista e se valendo, as mãos do artista, de filetes de ouro, utilizar esses filetes de ouro para regenerá-lo, como fênix, em um vaso ainda mais bonito. Não estamos tratando da história da arte nem do elogio ao artista, mas do elogio ao Direito, elogio ao jurista e elogio à função do registrador imobiliário, as mãos certas, com as ferramentas que estão ao alcance do Direito enquanto mecanismo seletivo redutor de complexidade, capaz de lidar com a contingência, de oferecer uma obra de arte tão completa e tão reconstituída quanto aquele vaso remontado com filetes de ouro.

São congressos como este, que nos permitem fazer um voo extravagante e mobilizar um historiador da arte ou um dramaturgo para explicar algo que aparentemente é muito mais rígido, inflexível ou sisudo, como a função pública registral. Em eventos como este é possível tentar, se não uma megaconferência, uma microconferência capaz de identificar as virtudes do Direito e da atividade registral.

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Construindo o SREI – do ideal ao real Apresentação da prova de conceito do Registro de Imóveis Eletrônico

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Adriana Jacoto Unger Engenheira Mecatrônica e mestre em Engenharia de Produção/Gestão de TI na Escola Politécnica da USP.

Nataly Cruz Gestora de Processos e Projetos do 5º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. Pós-graduada em Direito Notarial e Registral Imobiliário pela Escola Paulista da Magistratura.

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POC – Prova de Conceito do SREI Construir um registro eletrônico é complexo, mas em vez de adotar metodologia tradicional de construção de um carro, por exemplo, é possível construir um skate com metodologia ágil. Esse skate é um registro eletrônico do começo ao fim. O resultado final é uma matrícula natodigital eletrônico-estruturada da forma especificada no SREI. Com esse skate já se pode dar uma voltinha.

Por Adriana Jacoto Unger Atuou como líder da equipe de modelagem de processos de negócio do projeto SREI para o Conselho Nacional de Justiça.

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amos falar sobre um projeto que está sendo desenvolvido no IRIB, a prova de conceito do SREI – Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico, e os desafios postos para os registradores na atualidade. O projeto da prova de conceito é uma metodologia escolhida para sairmos do ideal, que foi a concepção do registro eletrônico no projeto do SREI, e passarmos a construir o caminho do registro eletrônico na prática do Registro de Imóveis. Falar de Registro de Imóveis Eletrônico, hoje, ainda é um pouco como a seguinte parábola dos cinco cegos e do elefante. Um príncipe indiano mandou reunir um grupo de cegos e trazer um elefante para cada um o apalpar e descrever. Um cego tocou a barriga, outro a cauda, outro a orelha, outro a tromba, outro a perna. Então, o príncipe pediu que cada um explicasse aos outros como era o elefante. O que tocou a barriga disse que o elefante era como uma grande panela. O que tocou a cauda discordou

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e disse que o elefante se parecia com uma vassoura. O que tocou a orelha disse que o elefante era como um grande leque aberto. Para o cego que tocou a tromba, o elefante tinha a forma, as ondulações e a flexibilidade de uma mangueira. Já o que tocou uma perna afirmou que o elefante era rígido como um poste. E, na discussão que se seguiu, cada um queria provar que estava certo com apoio na sua experiência particular. O que é o Registro de Imóveis Eletrônico? Já ouvi algumas pessoas dizendo que se as imagens das matrículas estão disponíveis nas centrais e as pessoas podem tirar certidões, isso é um registro eletrônico. Afinal, o usuário faz o pedido de certidão pela internet e recebe uma certidão eletrônica. E algumas pessoas entendem que se pegarmos as matrículas da forma como temos hoje e colocarmos na blockchain, isso é o registro eletrônico. Se tivermos centrais operando esses serviços em todos os estados, isso é um registro eletrônico? A analogia com a fábula dos cegos e do elefante nos levou a adotar uma referência do que é o registro eletrônico. A partir desse grande projeto que durou dois anos, teve a chancela do CNJ, e foi desenvolvido no LSI-TEC (Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico da Escola Politécnica), foi concebido o conceito de registro


eletrônico. Esse conceito é mais do que simples registros eletrônicos disponíveis a partir de centrais de serviços, ele engloba o registro eletrônico internamente à operação do cartório. Muitos títulos chegam aos cartórios em formato digital, mas a primeira coisa que se faz é imprimir e depois digitalizar, ou seja, todo o processamento interno ainda é muito manual. Então, o registro de imóveis ainda está longe de ser eletrônico, mas partimos do princípio de que existe uma especificação, um modelo, uma referência do trabalho feito há quase sete anos e propusemos o projeto POC SREI.

POC SREI e o funcionamento do sistema de registro eletrônico POC SREI é uma prova de conceito, uma metodologia em que se desenvolve um Produto Mínimo Viável – MVP. Ou seja, construir um registro eletrônico é algo extremamente complexo, não é simples de fazer. Mas em vez de se adotar uma metodologia de projeto tradicional – em que para construir um carro, por exemplo, primeiro construímos a roda, depois o motor, depois o chassi e só vamos poder andar com esse carro quando o projeto estiver pronto – adotamos uma metodologia ágil, estamos construindo o skate. O que é o nosso skate? Nosso skate é um registro eletrônico do começo ao fim. Dentro do sistema da POC é possível recepcionar um título eletrônico natodigital estruturado que é um instrumento particular de venda e compra com alienação fiduciária. A tramitação desse título é feita de modo totalmente eletrônico. O resultado final é uma matrícula natodigital eletrônico-estruturada da forma especificada no SREI. Com esse skate já podemos dar uma voltinha, apesar de não ser um sistema completo, apesar de não ser ainda um sistema comercialmente usável e com todas as funcionalidades que ele precisa ter. É uma estratégia que adotamos para demonstrar o funcionamento do sistema de registro eletrônico, para ganharmos maturidade técnica, para experimentarmos como esse registro pode ser. A arquitetura do SREI adota um Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC), que é semelhante ao que já existe nas centrais. São centrais de recepção de pedidos eletrônicos. Dentro da POC o projeto ainda está em andamento, o

que vamos mostrar aqui ainda é um protótipo, mas temos um mini SAEC para recepcionar esse título natodigital eletrônico, que é um XML. E na arquitetura do SREI consideramos que cada cartório vai ter um SC, Sistema do Cartório. Esses SCs são independentes, eles têm acoplado um SIGAD, que é o sistema que faz a gestão dos arquivos natodigitais que tramitam dentro do registro eletrônico, e cada cartório tem o seu. O SAEC é o responsável por distribuir os pedidos através do Código Nacional de Serventia. E os pedidos tramitam dentro do sistema de cada cartório. Cada sistema de cartório tem os seus livros de registros escriturados eletronicamente.

Arquitetura do SREI reforça protagonismo das serventias Por que isso? Porque essa arquitetura reforça o protagonismo de cada serventia na execução dos serviços de registro eletrônico. O Serviço de Registro de Imóveis é único nacionalmente, mas ele é operado de maneira distribuída. E é muito importante que na transição para esse modelo eletrônico consigamos manter as virtudes do sistema atual. Essa operação distribuída do registro, em que não há centralização de dados, é favorável por vários aspectos, tanto de privacidade quanto da própria operação do serviço. No portal Registro do Futuro – https://www.registrodofuturo.org/ – temos os três componentes que fazem parte da POC: SAEC, SC e SIGAD. No SAEC, o usuário que fizer uma solicitação vai se cadastrar na primeira vez que usar o serviço de Registro de Imóveis Eletrônico. Ao fazer uma nova solicitação, ele vai anexar o arquivo do título. Como prova complementar será anexado o comprovante de ITBI e a procuração. Por trás dessa solicitação enviada, no XML do título, está o Código Nacional da Serventia que vai encaminhar esse pedido para o Sistema do Cartório, no caso, do 5º Registro de Imóveis de São Paulo. Eu entro no SC e visualizo o pedido que acabou de ser efetuado. O próprio sistema já fez o cálculo das custas. A partir desse momento o SC vai começar a fazer a escrituração eletrônica dessa solicitação, e depois o registro. Quando o usuário faz um pedido de registro, tanto o título como o protocolo eletrônico gerado seguem uma especificação, que é de um documento eletrônico natodigital estruturado. BOLETIM 362

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Essa tecnologia permite que se tenha um documento machine-human readable, em que os dados estruturados podem ser lidos tanto pelo ser humano quanto por um computador.

Como vai ser a escrituração eletrônica Na escrituração eletrônica, em primeiro lugar, nasce um protocolo no formato natodigital eletrônico estruturado. Esse protocolo já tem numeração própria definida no SREI, uma numeração nacional única que contém o CNS e o tipo do protocolo. Conforme a especificação de livro-protocolo do SREI, todos os protocolos de todas as solicitações de serviço são registrados, não somente as prenotações. É realizado um controle de segurança entre cada um dos arquivos XML, em que eles são assinados eletronicamente com o padrão XML-Dsig. E cada protocolo está linkado ao anterior de forma que a escrituração do livro seja contínua e tenha sua integridade garantida. Nesse sistema há um Livro de Protocolo Geral que já nasce com um XML de abertura. Então, a abertura do livro acontece diariamente e o encerramento também. O primeiro protocolo gerado é linkado a esse termo de abertura, portanto todos esses XMLs são linkados e assinados. É o mesmo conceito da tecnologia de blockchain, de se ter um registro em cadeia. No final do dia, o termo de fechamento do livro também é assinado. O solicitante que está no SAEC vai receber um documento, o recibo-protocolo que hoje ela recebe em mãos no balcão. No protótipo do recibo-protocolo em formato XML podemos ver todas as informações estruturadas em modelagem de dados de acordo com uma ontologia que está sendo definida. Ao aplicar uma máscara de visualização no mesmo arquivo de leitura da máquina, tem-se um PDF, um arquivo visualizável daquele protocolo XML, com os mesmos dados, mas para leitura pelo ser humano. No SREI, todos os arquivos obedecem a esse formato XML natodigital eletrônico estruturado. A matrícula é assim, a certidão é assim, o título é dessa mesma forma. Primeiro temos o protocolo em si, depois temos o Livro Protocolo com esses protocolos encadeados e o recibo-protocolo tanto na visualização de máquina quanto na visualização humana. E, além de todos os mecanismos de segurança de escrituração eletrônica existentes dentro do SC e dentro do SIGAD de cada cartório, temos ainda uma estrutura em blockchain registral federada, ou seja, todos os cartórios estão compartilhando uma blockchain restrita e o hash – não o conteúdo, mas o hash 92

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(resumo) – de cada registro, de cada protocolo, de cada matrícula está sendo colocado na blockchain. Assim, se houver uma tentativa de fraude interna ao cartório, uma tentativa de se colocar algum protocolo no meio da cadeia, alguma alteração ou algum ato na matrícula, isso não vai se refletir na blockchain. São níveis variados de segurança para que esse registro aconteça de forma eletrônica segura e robusta. O próximo passo do projeto é atingir esse mesmo nível de escrituração para o livro de matrícula. Os dados do título vão migrar para a matrícula e vai haver um processo de qualificação registral, que é o núcleo do SREI. Na verdade, o SREI automatiza todas as tarefas que são acessórias e condensa a atividade do registro à qualificação registral, para a qual o ser humano é muito importante. E no processo de qualificação digital há uma migração dos dados do título, e de outros dados, para a primeira qualificação eletrônica da matrícula, que vai ter uma abertura, a primeira abertura de matrícula eletrônica. Isso vai se concretizar no livro de matrícula. A ideia é que a partir do momento em que se faça a abertura da matrícula eletrônica de um imóvel, que hoje tem uma matrícula em papel, ele passe a existir no meio eletrônico. E vamos conseguir fazer perguntas para essa base, o que hoje não é possível. Quantos imóveis há em determinada região, qual o preço médio da transação, etc. Perguntas que hoje talvez nem saibamos ainda fazer. Vamos ter uma base estruturada de dados para poder levar esse registro eletrônico à realidade.


Gestão dos documentos arquivísticos digitais “Posto que o acervo registral é de caráter arquivístico, público e de preservação permanente, deve-se formular a seguinte questão: como garantir a segurança do arquivo no meio digital?”

Por Nataly Cruz Participou do Curso de Preservação de Acervos Documentais na Fundação Biblioteca Nacional e de Reuniões da Comissão Especial para Gestão Documental do Foro Extrajudicial, instituída pelo Conarq. Formada em Gestão de Projetos pela Fundação Vanzolini (USP).

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iante da complexidade relacionada com a recepção, manipulação, conservação de dados e documentos digitais em repositórios seguros e confiáveis é de fundamental importância dedicar um tempo para enfrentar a questão da migração dos documentos tradicionais para o ambiente digital. Hoje os cartórios são complexos repositórios de documentos. A lei confiou aos profissionais do Direito, registradores e notários, a tarefa de conservar os títulos, documentos, papeis, livros e dados que representam uma categoria muito especial de documentos: eles são classificados como documentos públicos e de preservação permanente. O quadro legal que dá suporte a essa afirmativa é o seguinte: artigos 22 a 27 da Lei 6.015/1973; artigo 4º c.c. inc. I do art. 30 c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994; art. 7º c.c. § 3º do art. 8º da Lei 8.159/1991 c.c. art. 15 do Decreto 4.073/2002. De acordo com o art. 2º da Lei 8.159/1991 são considerados documentos arquivísticos o conjunto de documentos recebidos e/ou produzidos por qualquer pessoa, física ou jurídica, em decorrência da execução de suas atividades, independentemente de seu suporte. Posto que o acervo registral é de caráter arquivístico,

público e de preservação permanente, deve-se formular a seguinte questão: como garantir a segurança do arquivo no meio digital? Sabemos que os livros de registro, como previsto na legislação, são mantidos em suporte de papel pelos registradores em meio tradicional com a maior cautela e com o maior zelo. Mas como fazer quando os documentos que passam a aceder os Registros Públicos passam a ser gerados e conservados em meio totalmente digital? Como garantir o acesso, modificação, preservação e autenticidade dessa documentação? Esse é um tema que procuramos abordar na Proof of Concept (POC), pois representa uma preocupação em face da sua importância crescente na diuturnidade dos cartórios, uma vez que os títulos encaminhados pelos interessados ao Registro de Imóveis serão progressivamente substituídos por documentos digitalizados ou natodigitais. O formato natodigital é o melhor padrão? Na maioria dos cartórios, o gerenciamento é feito basicamente em papel, mantendo-se, ainda, a forma tradicional em suporte cartáceo. Vamos falar sobre essa transformação digital que a sociedade está experimentando e que se revela na transformação morfológica dos documentos inscritíveis, buscando apresentar o conceito que nos orientou na POC. É preciso reconhecer, de partida, que os documentos tradicionais têm uma larga história na conservação e representação de fatos relevantes e de direitos. Ao longo BOLETIM 362

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dessa trajetória multissecular, os meios adotados para sua preservação sempre mereceram a atenção dos coetâneos que cultivaram técnicas de preservação que se mostraram eficientes. Temos provas de escrituras tabelioas desde o século XIV, para ficar num só exemplo. Assim como os documentos tradicionais em papel, os digitais requerem o desenvolvimento de uma técnica muito apurada, com uso de recursos tecnológicos e de gestão eletrônica específica. Buscamos introduzir, nas discussões da POC, o conceito do SIGAD, um sistema informatizado para gerir documentos.

SIGAD – Sistema Informatizado de Gestão Arquivística de Documentos O SIGAD é um “conjunto de procedimentos e operações técnicas, característico do sistema de gestão arquivística de documentos, processados por computador”1 Trata-se de um modelo de requisitos, ou diretrizes, que visam permitir que os documentos se mantenham confiáveis, autênticos e ainda sejam preservados a longo prazo. Além disso, o SIGAD, como um sistema de gestão de documentos, visa apoiar a economia e eficiência dos processos pelas organizações. O SIGAD pode gerenciar todos os documentos, sejam eles digitais ou não. Dentro do que se denomina, na lei, de processo de registro, é necessário tratar os documentos desde o input no sistema registral, passando pelas várias etapas, consumando-se a inscrição e expedindo-se certidões. Em cada uma dessas etapas é possível que os documentos tenham sido introduzidos em papel, meios digitais, natodigitais. Como gerenciar tudo isso? Um dos objetivos do SIGAD é controlar o ciclo de vida dos documentos, a partir de um plano de classificação preestabelecido, mantendo a relação orgânica dos documentos, gerenciando os prazos de guarda e destinação, realizando a captura, indexação, armazenamento, preservação e recuperação, e zelando pela manutenção da autenticidade dos documentos. Sabemos que todo título que ingressa no protocolo do cartório – com seus documentos acessórios e consectários – são classificados e dotados de organicidade no contexto do sistema. Ordinariamente, no processo de registro o 1 e-Arq Brasil - Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos. 2011. CONARQ. p. 10.

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título provoca uma inscrição, lavrada no livro de registro, que é decorrente de toda essa documentação. Esse livro de registro é, ele próprio, um documento que ostenta o caráter de preservação permanente. Dentro do projeto (POC), o sistema informatizado visa criar um ecossistema em que se recepciona o título, rastreia e imputa atributos em cada etapa da tramitação, tornando claro e seguro todo o ciclo de vida, abrangendo inclusive os atos de registro, permitindo localizá-lo no contexto em que ele foi inserido e arquivado, inter-relacionando-o com toda a cadeia registral. Por exemplo, é possível identificar a cadeia sucessiva do trato registral indexado pela chave primária (protocolo) integrando organicamente o protocolo e registros anteriores no âmbito do acervo do Registro de Imóveis, garantindo a integridade e autenticidade de forma que se possa confiar e acessar essa documentação ao longo do tempo.

Visão geral do SIGAD – Projeto Proof of Concept SREI Estamos tratando de um complexo sistema que permite a localização segura e imediata de cada elemento que compõe o plexo registral. No SIGAD é possível construir um sistema complexo de apoio à gestão física e eletrônica de toda a documentação que ingressa no registro, seja ela de preservação permanente ou nos casos de documentos de apoio e que têm como atributo uma temporalidade pré-definida. Nos casos de planilhas de suporte à qualificação registral, recibos, notas devolutivas e a série de documentos que os tribunais, por suas corregedorias, definem em suas tabelas de temporalidade como de preservação limitada, é possível, pelo SIGAD, fazer o descarte com segurança e autonomia. Os cartórios devem fazer a gestão não só dos documentos tradicionais – como os títulos que são apresentados a registro. Os cartórios, nos dias que correm, lidam com uma série crescente de documentos – como ofícios, e-mails, processos físicos ou digitais, memoriais, plantas, ligações telefônicas em meios eletrônicos, interconexões com centrais de serviços compartilhados. É preciso enxergar os cartórios como um complexo sistema processual que lida, em suas várias etapas de funcionamento e atuação, com as mais variadas fontes de informação que, a cada dia que passa, se diversificam, exigindo, para o seu tratamento e organização uma gestão orgânica e tecnicamente apropriada.


SIGAD – fases Olhando um aspecto do SREI, vamos focalizar o SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, que recepciona e encaminha a demanda do usuário para o cartório responsável, que a recebe, aceita e prossegue com a ação (registro). Assim, os documentos recebidos por meio do SAEC passam a ser documentos arquivísticos para o cartório, que prosseguirá com as ações decorrentes das suas atividades próprias e competências legais. O interessado vai encaminhar a documentação, que será recebida pelo Sistema do Cartório. Ele pode mandar um título, uma certidão de casamento, uma certidão de nascimento, uma procuração, as provas complementares. Toda essa documentação, que comporá um dossiê, será enviada por meios eletrônicos para o cartório porque é o registrador que detém a competência delegada para o processamento, gestão e qualificação, mantendo os títulos e documentos sob sua guarda e responsabilidade. Ao final de todo o processo, alguns documentos são devolvidos – no caso de documentos físicos –, outros são arquivados, outros ainda são produzidos no processo de registro. No complexo sistema de gestão documental temos várias etapas. A fase corrente do documento é aquela em que o título se acha sob escrutínio, exame e qualificação pelo registrador. Nessa etapa, durante a tramitação do título, o acesso aos documentos deve ser muito mais fácil e rápido. Depois de cumprida a fase corrente os documentos geralmente seguem arquivados em uma etapa intermediária, com menor acesso pelo registrador e seus colabo-

radores, aguardando o cumprimento do prazo legal. Os documentos possuem uma finalidade fiscal, administrativa ou legal. Por exemplo, o recibo-protocolo, um dos documentos produzidos no ato da entrada, é um documento de valor fiscal e administrativo. Ele deve ser mantido até que cumpra sua finalidade de documento fiscal e administrativo, em média cinco anos, de acordo com o Código Tributário Nacional e as tabelas de temporalidade dos tribunais. Após o decurso dos cinco anos, o sistema deve sinalizar a possibilidade de eliminação desse documento. Se o documento, no caso do recibo-protocolo, já cumpriu sua finalidade, é possível eliminá-lo. O sistema pode sinalizar a eliminação desse documento, gerenciando o espaço com facilidade. Ao final desse período, o resultado será a destinação final. Documentos de valor permanente precisam ser mantidos de modo perene nos arquivos do cartório. É preciso que haja um ambiente cuidadosamente preparado para preservar essa documentação – seja o ambiente físico ou digital. Principalmente no meio digital, o ambiente precisa ser seguro e os documentos e dados precisam estar acessíveis. Estamos olhando para esse circuito e buscando, com a equipe do Arquivo Nacional, as práticas mais adequadas de tecnologia, mas também aproximando essas práticas do nosso cenário registral. Por exemplo, os livros de registro e a matrícula têm prazo permanente, mas estão sempre na fase corrente, isto é, são sempre atualizados indefinidamente. Como fazer com esse documento, latamente conside-

MATRÍCULA ELETRÔNICA - SIGAD Prenotação Instrumento particular Prova imposto

Primeira qualificação eletrônica Ato de abertura AB Imóvel Titularidade Restrições

Prova representação Recibo protocolo Protocolo de abertura Protocolo de prenotação Protocolo de encerramento

Registro Ato de abertura R1 Imóvel Titularidade Restrições

Ato de abertura R2 Protocolo de registro

Imóvel Titularidade Restrições

Protocolo de abertura Protocolo de registro R1 Protocolo de registro R2 Protocolo de certidão Certidão Protocolo de emissão de certidão

Recibo de custas e emolumentos

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rado, que ostenta, por um lado, o caráter de preservação permanente e que precisa ser acolhido em ambiente seguro de preservação, mas está sempre na fase corrente? Como criar um sistema de gestão de documentos dinâmicos das serventias? Essa foi a nossa preocupação também. O SAEC é um simples portal de trânsito, um hub informacional, vai receber e encaminhar o dossiê digital (títulos mais documentos acessórios) sem qualquer manipulação e interferência exógena, dirigindo ao registrador que o vai receber, acessar, analisar e praticar todos os atos inerentes à sua atividade própria e conservar o dossiê e todos os documentos originados do processo. Ele vai ser o curador legal desse dossiê, garantindo que, desde a postagem no ponto único na internet, proporcionado pelo SAEC, não haja intrusão não autorizada e acesso a dados sensíveis dos envolvidos no processo de registro. É preciso cuidar da preservação e tutela da privacidade dos envolvidos no processo de registro. Essa curadoria a lei colocou nas mãos do registrador, exclusivamente, considerando-se, ainda, que além dos dados pessoais há títulos gravados com a nota de sigilo e segredo de justiça. Esses documentos não vão ser compartilhados. Estamos considerando essa individualidade. Nós sabemos que é um grande desafio para o registrador constituir um repositório digital confiável. As Resoluções do Conselho Nacional de Arquivos 39/2014 e 43/2015, e a norma ISO 14721/2003 estabelecem padrões e diretrizes, mas elas não vão dar a fórmula da gestão de documentos arquivísticos para o Registro de Imóveis. Esse é o desafio que precisamos assumir e enfrentar. O objetivo desse sistema, desse repositório, é gerenciar o acervo documental do Registro de Imóveis. Para isso precisamos manter a organicidade, tratar esse documento de forma individual e estabelecer metadados que possam identificar essa documentação dentro do acervo, coordenando-a com todo o sistema do cartório e, mais ainda, interconectando-a no SREI. Para que seja possível organizar um bom sistema de gestão documental, é preciso atentar para certos pré-requisitos. Os metadados, que são dados sobre dados, são muito importantes porque permitem indexar, gerenciar, acessar e manter essa documentação disponível segundo critérios racionais, como se acha no artigo 25 da Lei 6.015/1973: “os papéis referentes ao serviço do registro serão arquivados em cartório mediante a utilização de processos racionais que facilitem as buscas, facultada a utilização de microfilmagem e de outros meios de reprodução autorizados em lei”.

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Além disso, um bom sistema de gestão visa à proteção dos documentos de forma a manter sua identidade, integridade e organicidade. Um elemento de um conjunto precisa ser singularizado e identificado. A relação orgânica entre esses documentos precisa ser estabelecida dentro do sistema. Um dos requisitos na POC é o próprio software, o SIGAD, esse sistema que ora apresentamos à seleta plateia. Nesta POC trabalhamos sobre um pequeno núcleo que atua sobre sete elementos: recibo-protocolo, livro-protocolo, título – instrumento particular de compra e venda com alienação fiduciária. E selecionamos dois documentos acessórios: ITBI e procuração, as mais comuns que são rotineiramente encaminhadas como anexos do título, o recibo de custas e emolumentos ao final e a própria matrícula eletrônica. Selecionamos essa documentação para testar o que chamamos de “mini SIGAD”. Também procuramos adotar todos os procedimentos técnicos adequados e aplicáveis para a prova de conceito. Estamos trabalhando com a equipe do Arquivo Nacional para nos orientar de acordo com as melhores práticas e aproximar esses conceitos sem, contudo, absorvê-los completamente, já que os cartórios são instituições muito singulares e importantes na história da documentação pública e privada relacionada com a tutela pública de interesses privados. Precisamos aproximar esses conceitos e adaptá-los à nossa realidade tendo em mente o que é viável e o que é usual para os registradores.

Ferramentas da gestão de documentos Para fazer a gestão de documentos precisamos de duas ferramentas principais. A primeira é o código de classificação desses documentos. Sem uma codificação prévia não é possível controlar o trânsito dos documentos e informações no sistema. Estamos trabalhando atualmente na elaboração de um código de identificação próprio para o Registro de Imóveis, tomando como base e exemplo os sete documentos da POC. Vamos classificar, organizar e estabelecer a relação orgânica desses documentos. Devemos ainda trabalhar com uma tabela de temporalidade, o que é muito importante, como já dissemos. Apesar de sabermos que muitos documentos do cartório são de valor permanente e que devem ser mantidos indefinidamente, há, também, documentos que podem ter um mero valor fiscal, ou um valor administrativo, que, ao


final de sua vida útil, podem ser eliminados, permitindo uma gestão mais eficiente e econômica do acervo. Alguns nos perguntam: e se tudo for arquivado em ambiente digital? Pensem num acervo tradicional: é como se mantivéssemos os arquivos físicos para sempre numa série sempre crescente. Em algum momento não teremos mais espaço físico. Por essa razão, a tabela de temporalidade é um instrumento muito importante para identificar e tratar dessa questão. No ambiente da POC o repositório permite que os documentos sejam classificados em categorias. Estamos trabalhando especialmente com o Registro de Imóveis, mas sabemos que há cartórios que têm anexos. Como fazer quando se tem documentos de Tabelionato de Notas, de Registro de Imóveis, Registro Civil e assim por diante? Essa classificação, ora apresentada, é um estudo preliminar e que pode avançar, já que os pressupostos estão todos indicados. Com a classificação proposta, conseguimos divisar a organicidade dos documentos e sua inter-relação no sistema. Dentro de “Registro e Averbação” o primeiro documento é o livro-protocolo. Dentro de “Apresentação dos Títulos” temos o recibo-protocolo e podemos receber também os títulos. A classificação está de acordo com a Lei 6.015/1973. Ao abrir toda a grade vamos visualizar onde estão esses documentos e qual é a relação orgânica que se estabelece entre eles. Por exemplo, aqui a relação orgânica é a finalidade, registro e averbação. Mas podemos ter uma relação orgânica relacionada à emissão de certidão, ou apenas a um exame-cálculo e assim por diante. Também podemos ver esses documentos de acordo com a ordem numérica ou alfabética. Por exemplo, um instrumento particular. Eu quero acessar todos os instrumentos particulares autorizados em lei que estão no meu sistema. Basta clicar na rede para visualizar os documentos que estão na lateral. Ou, eu quero visualizar os recibos-protocolos. Mantendo essa classificação orgânica conseguimos controlar melhor o que o sistema pode fazer. No tempo determinado o sistema poderá sinalizar a possibilidade de eliminação desses documentos que foram anexados em determinada data. O registrador vai decidir a respeito, o sistema não fará nada sozinho. Nós conseguimos visualizar o documento, que tem uma relação orgânica vinculada a um processo. Por exemplo, entrou no cartório um título que recebeu um número de ordem no protocolo gerando uma prenotação. Como visualizar esses documentos e saber que

eles entraram naquele processo de registro? Precisamos estabelecer os metadados que vão vinculá-los. Um dos metadados mais fortes é o próprio protocolo. Pela classificação é possível visualizar todos os recibos-protocolos. E para ver o dossiê do registro, ou seja, o dossiê de documentação, eu posso pesquisar pelo próprio protocolo e por outros metadados que possamos definir. Aqui neste protocolo, por exemplo, eu tenho todos esses documentos. Eu tenho o recibo-protocolo que foi localizado lá no locus de classificação dele, ou seja, ele está sendo gerenciado de acordo com sua tipologia documental, mas eu também consigo visualizar todos os documentos – o ITBI, a procuração, o recibo de custas – que foram utilizados para esse processo de registro. Um repositório digital confiável depende muito mais dessas práticas, desses procedimentos, da correta identificação do que de infraestrutura tecnológica. É claro que a infraestrutura tecnológica é importante, mas devemos enfrentar o desafio de como fazer o compartilhamento dessa infraestrutura. Encerro dizendo que o Registro de Imóveis viveu, ao longo de sua longa história, atuando com base no que hoje nos parece uma ontologia “fraca”, representada por livros indicadores, acessórios, que nada mais são do que apontadores do Livro de Registro. Essa decomposição, feita a partir da inscrição de elementos reais ou pessoais consubstanciados nos chamados “livros auxiliares”, foi pensada para facilitar o acesso ao elemento essencial que é a própria inscrição de direitos. Ao lado do protocolo, que marca o concurso de direitos, classificando-os numa ordem que expressa o direito de prioridade e preferência dos direitos reais, há repositórios – como os arquivos de instrumentos particulares (art. 194 da LRP) – que são ordenados e classificados como se fazia há mais de uma centúria. São elementos que, integrados, formam o que conhecemos como o sistema de registro de imóveis. A informatização dos cartórios não foi além dessa fraca ontologia. Com o advento de novas tecnologias e de novos suportes materiais para a recepção, inscrição e publicidade de situações jurídicas nos Registros Públicos, é fundamental avançarmos para um novo paradigma de gestão documental. Caminhamos rumo a um novo marco operacional, que talvez o ONR – Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis, com o apoio da Corregedoria Nacional de Justiça, possa nos contemplar.

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Panorama atual do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico “A informatização não pode ser o fruto de experiências isoladas, ainda que bem-sucedidas. Deve ser o fruto de uma deliberada opção da classe pelo aprofundamento das questões técnicas e jurídicas relacionadas com a integridade dos dados, validade, autenticidade, segurança e eficácia dos negócios jurídicos”.

Flauzilino Araújo dos Santos Oficial do 1º Registro de Imóveis de São Paulo. Diretor de Tecnologia da Informação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB.

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“A

informatização não pode ser o fruto de experiências isoladas, ainda que bem-sucedidas. Deve ser o fruto de uma deliberada opção da classe pelo aprofundamento das questões técnicas e jurídicas relacionadas com a integridade dos dados, validade, autenticidade, segurança e eficácia dos negócios jurídicos”. Esta apresentação está fundamentada nesse pensamento do Sérgio Jacomino.1

Registro de Imóveis na vanguarda da tecnologia Tudo começou em 2002 com uma representação do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo ao Corregedor-Geral de Justiça solicitando que o Ministério Público do Estado de São Paulo tivesse acesso às bases de dados dos cartórios de Registro de Imóveis da capital de São Paulo. O corregedor deferiu o pedido do Ministério Público e, na 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, teve início um procedimento para acompanhar o desenvolvimento dessa facilidade, que ficou a cargo da Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (Arisp). Travou-se, então, uma discussão muito densa entre os registradores da capital porque alguns entendiam que o Ministério Público não poderia acessar a base de dados, outros entendiam que seria possível desde que observadas certas regras jurídicas e também valendo-se de tecnologias que garantissem segurança e controle nesse acesso. Essa discussão foi longa e com alguns despachos muito firmes do juiz da Vara de Registros Públicos, na época o doutor Venício Antônio de Paula Salles. No meio dessa discussão toda houve a renúncia do presidente da Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo – Arisp. Nós entendíamos que seria possível essa facilidade. Nosso grupo assumiu a diretoria da Arisp e eu a presidência. Em 2005, ano em que assumimos a Arisp, nós implantamos o Registro Eletrônico com o banco de dados light – que os senhores conhecem – e a Certidão Digital. E desenvolvemos também o Assinador Digital Registral da Arisp, que foi algo disruptivo porque uma licença de assinador digital custava R$ 350,00. Nós disponibilizamos o assinador digital gratuitamente como uma contribuição dos registradores de imóveis para o desenvolvimento da economia digital no Brasil. O Assinador Digital Registral 1 Sérgio Jacomino, 1996, in “A Informática e os Serviços Notariais e Registrais Brasileiros”. Disponível em https://goo.gl/PFy1Ue. Acesso em 17/10/2018.

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acabou sendo recomendado pelo governo federal e pelos ministérios, pela Petrobras e Vale. As grandes empresas do governo usavam o Assinador Digital Registral da Arisp por recomendação do próprio ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação. Nós desenvolvemos também o que chamamos de Certidão Express, um aplicativo de suporte, porque nem todos os cartórios tinham as suas matrículas digitalizadas para emitir certidões. Esse aplicativo auxiliava – e ainda há quem o utilize – a digitalização das matrículas, indexação das matrículas, emissão da certidão digital com conversão de qualquer arquivo em formato PDF/A, com a inclusão de metadados no padrão Dublin Core e também assinatura digital no padrão ICP-Brasil. A Portaria 149/2007 do Conselho Nacional de Justiça, instituiu um grupo de trabalho para estudar e implantar uma funcionalidade de acesso aos Registros de Imóveis do Brasil pelo Poder Judiciário. Esse projeto do CNJ andou bem até certo ponto, mas depois enfrentou muita oposição. Uma entidade se opôs de maneira contundente à proposta que desenvolvíamos no CNJ e o projeto malogrou. Ainda em 2007, nós colocamos em operação o Sistema de Penhora Eletrônica de Imóveis, Penhora Online, englobando também arresto e sequestro. Em 2011, nós colocamos em operação a visualização eletrônica de matrícula, ou Matrícula Online. Em 2012, o Protocolo Eletrônico de Títulos, o Repositório Confiável de Documento Eletrônico, o acompanhamento registral online para que os 316 cartórios do Estado de São Paulo pudessem informar o andamento do título, o Monitor Relatório e o Sistema de Correição Online, de apoio à atividade administrativa do Poder Judiciário, para correição das serventias. Em 2010, a Arisp e o IRIB firmaram um termo de cooperação técnica com o Conselho Nacional de Justiça para o desenvolvimento da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, visto que algumas corregedorias não aceitavam receber ordens de indisponibilidades para enviar aos registradores dos seus estados. Em 2012, a Central de Indisponibilidades foi normatizada pelo Estado de São Paulo e, em 2014, pela Corregedoria Nacional de Justiça. Em 2015, a Arisp foi homologada como Autoridade de Carimbo do Tempo e também criamos, na mesma infraestrutura de Autoridade de Carimbo do Tempo, uma entidade emissora de atributo dos registradores e também uma Central Nacional do Documento Eletrônico. Nós temos que estar na vanguarda da tecnologia para


conversar com o Poder Judiciário, com o Poder Executivo, com os bancos, enfim, com todos os players ligados aos negócios imobiliários. A Arisp e o IRIB constituíram uma autoridade certificadora com ARs, instalações técnicas etc., de maneira tal que sempre pudemos conversar com bancos e governos sem que tivéssemos que nos desculpar. A nossa palavra sempre foi: “Por que vocês não fazem contratos eletrônicos? Nós fazemos registro eletrônico.” Não importa se ainda imprimimos e digitamos, mas no final a pessoa recebe uma comunicação eletrônica.

Base legislativa para implantação do registro eletrônico Para implantação do registro eletrônico nós temos primeiramente a base, que é a Lei 6.015/1973, mas a partir da Medida Provisória 2.200/2001 nós já podíamos ter implantado o registro eletrônico. Porque a medida provisória que foi perenizada pela Emenda Constitucional 32/2001 criou o documento eletrônico, a ICP-Brasil, a infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras. Depois nós tivemos a Lei 11.419/2006, que é a Lei do Processo Judicial Eletrônico. Essa lei prevê expressamente que os tribunais podem normatizar livros eletrônicos. Depois veio a Lei 11.977/2009, que é a Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida, que dedica um capítulo ao registro eletrônico. Essa lei fixou em cinco anos o prazo para os cartórios oferecerem à população brasileira o registro eletrônico. Houve um esforço por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a partir de 2009, na gestão do Ministro Gilmar Mendes, no âmbito do Fórum de Assuntos Fundiários, que teve o objetivo de combater a grilagem de terras, a violência urbana e rural pela posse de terras, o trabalho em condição análoga à de escravo, julgamento dos crimes de campo etc. Entendeu-se que o combate à grilagem de terras e à violência pela posse de terra urbana e rural passaria pela modernização dos cartórios, por uma melhor organização fundiária do Brasil. Posteriormente, tivemos o Provimento 47/2015, a Lei 13.465/2017 e por último o Provimento 74/2018.

Projeto SREI: estudo para implantação do RI eletrônico com apoio do CNJ No bojo do Fórum de Assuntos Fundiários, em razão do óbvio interesse nacional, o Ministério do Desenvolvimento Agrário colocou à disposição do CNJ o valor de

R$ 10 bilhões para o projeto de implantação do registro eletrônico. Os estudos para implantação do registro eletrônico foram desenvolvidos sob os auspícios do CNJ no projeto chamado SREI, que tinha por escopo a modernização dos processos dos cartórios de Registro de Imóveis, inicialmente da Amazônia Legal, abrangendo todo o ciclo desde o ingresso até a manutenção e guarda permanente das informações, incluindo os antigos livros e papéis arquivados nos cartórios. Para o desenvolvimento desse projeto foi criado um segundo grupo de trabalho por uma portaria CNJ de 2010. Sérgio Jacomino e eu fizemos parte desse grupo de trabalho, pelo Conselho Nacional de Arquivos, que foi uma Comissão Especial para a Gestão Documental do Foro Extrajudicial, em decorrência de um acordo de cooperação técnica firmado entre o Arquivo Nacional e o CNJ. E também houve a contratação, pelo CNJ, do LSI-TEC – Laboratório de Sistemas Integrados Tecnológico, uma instituição vinculada à Escola Politécnica da USP. A Comissão Especial para a Gestão Documental do Foro Extrajudicial se debruçou sobre a necessidade da adoção de uma política de preservação da informação digital ante a fragilidade dos elementos que compõem os acervos das serventias, agravada pela obsolescência de hardwares e de softwares e o aumento do poder computacional, que facilita a quebra de algoritmos criptográficos outrora considerados seguros. Para a especificação do registro eletrônico, o grupo de trabalho do CNJ levou em consideração serventias de pequeno, médio e grande porte, bem como questões relativas à infraestrutura, e principalmente a inclusão das pequenas serventias, levando em consideração problemas como falta de energia elétrica e de internet, situações que devem ser equacionadas de forma segura quando se fala em registro eletrônico. Além do conhecimento dessas serventias em todo o território nacional, os trabalhos desse grupo foram também enriquecidos com o conhecimento de sistemas de registros eletrônicos de Portugal, Espanha, China, Alemanha e Inglaterra, locais que visitamos para conhecer in loco o funcionamento do registro eletrônico. Os estudos resultaram no desenvolvimento das especificações técnicas, primeiro, para informatização dos cartórios de Registro de Imóveis do país e, segundo, para a prestação de serviços eletrônicos pela internet por meio do chamado SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, atendendo ao padrão ICP-Brasil e à arquitetura ePING, que são os padrões de BOLETIM 362

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interoperabilidade de governo eletrônico. Esses estudos foram recebidos e assimilados pelo Conselho Nacional de Justiça, que, por meio da Recomendação CNJ 14/2014, disponibilizou o modelo sugerido para criação e implantação do Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário (SREI), e o definiu como padrão para aplicação pelas Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal. A essa altura o projeto SREI, que inicialmente era voltado para a Amazônia Legal, foi definido para todo o território brasileiro. É importante destacar que a Recomendação CNJ 14/2014 não foi dirigida aos oficiais de Registro de Imóveis, mas às Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, para que, na autorização da adoção do sistema de registro eletrônico pelo oficial ou pelos serviços prestados por centrais eletrônicas, fossem adotados os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de sistema de registro eletrônico elaborado pelo Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico (LSI-TEC), um volume anexo à Recomendação CNJ 14/2014 com mais de mil páginas. Lamentavelmente as Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados autorizaram sistemas sem que fossem vinculados como estava na Recomendação CNJ 14/2014. Tivesse essa Recomendação sido observada e não estaríamos com a dificuldade que temos para interoperabilidade dos sistemas entre as centrais. Se os líderes das centrais tivessem observado voluntariamente os termos da Recomendação CNJ 14/2014, nós estaríamos vários anos à frente. O sistema do Registro de Imóveis pode ser entendido como um sistema distribuído em duas camadas principais. A primeira, e mais importante, é a camada do Sistema dos Cartórios, é o software que funciona no cartório, e a segunda é a camada do Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado, SAEC, que é realizado pelas centrais. O Sistema dos Cartórios corresponde ao sistema existente em cada cartório de Registro de Imóveis e é responsável por automatizar as atividades internas do cartório, manter o registro eletrônico, auxiliar no atendimento de solicitações de usuários presenciais, realizar o atendimento de solicitações encaminhadas pela central e interagir com outras entidades. Cerca de 90% das especificações técnicas do SREI constantes da Recomendação CNJ 14/2014 dizem respeito apenas aos sistemas dos cartórios. Isso significa que a camada Sistema dos Cartórios é a mais importante na implementação

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do registro eletrônico. Os estudos levaram à conclusão de que o sistema do cartório pode funcionar como um sistema totalmente local para os cartórios em condições de implantar e manter uma infraestrutura de recursos humanos e técnica ou, para os pequenos cartórios, um sistema hospedado em um provedor, funcionando online ou offline, com atualização semanal, quinzenal ou mensal. Nós acompanhamos o CNJ na inspeção em cidade no Estado do Pará. Levamos quase quatro horas de barco para chegar no Registro de Imóveis e o cartório não tinha energia elétrica, porque a cidade funcionava com gerador e óleo diesel. Não estávamos no horário de funcionamento do gerador, então foi preciso tirar os livros para fora do cartório e examiná-los à luz do sol. Esse cartório pode funcionar eletronicamente? Pode. Ele pode funcionar offline e pode atualizar uma vez a cada quinze dias, uma vez por mês. Ele não estaria fora da infraestrutura dentro das suas possibilidades. Como os senhores sabem uma grande parte dos cartórios de Registro de Imóveis do Brasil tem receita inferior a três salários mínimos por mês. Quer dizer, essa pessoa não pode pagar R$ 300,00 para uma empresa de locação do software, temos que encontrar uma solução para isso, nem pode ter um analista para ficar lá olhando se algum hacker está tentando entrar. Enfim, nós temos que encontrar uma solução para o registro eletrônico no Brasil.

Surge o Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico – ONR Agora vamos saltar para 2016. Logo após a assunção do governo pelo presidente Michel Temer houve um esforço para se desenvolver um Plano Nacional de Regularização Fundiária a partir do Ministério das Cidades, que criou o Grupo de Trabalho Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária. Em 2017, havia a expectativa de abertura de um milhão de novas matrículas, tendo em vista os novos instrumentos para a regularização fundiária, bem como a possibilidade de ressarcimento dos atos registrais gratuitos realizados no âmbito da Regularização Fundiária Urbana. Houve um esforço muito grande, notadamente no Congresso Nacional, para a previsão de um fundo para o ressarcimento dos atos de regularização fundiária. Eu acabei fazendo parte de um grupo de trabalho do CNJ que propôs o texto que virou a Medida Provisória 759/2016, depois a Lei 13.465/2017. Foi uma discussão muito densa


a respeito de “não cobra”, “cobra”. Nos últimos minutos do segundo tempo, no texto de conversão da lei, conseguimos que esse ressarcimento fosse feito pelo FNHIS, o mesmo fundo do Programa Minha Casa, Minha Vida. Há essa abertura para se negociar, no Ministério das Cidades, um repasse para o fundo estadual fazer o ressarcimento dos atos de regularização fundiária. Entendeu-se então que somente com procedimentos inteligentes de registro eletrônico seria viável a abertura de tantas matrículas e a prática de tantos atos registrais. Assim, buscou-se aplicar aquele projeto SREI desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça e publicado na Recomendação CNJ 14/2014. Tanto a medida provisória quanto a lei de conversão deixaram consignada a criação de um ente para organizar os oficiais de Registro de Imóveis a fim de prestar serviços de registro eletrônico em caráter nacional. Um outro fator que foi levado em consideração é que a Lei 11.977/2009 dispôs em seu artigo 37 que o serviço de registros públicos, observados prazos e tal, instituiria um sistema de registro eletrônico. Porém, a lei não disse como os oficiais se organizariam para prestar ou para instituir esse sistema de registro eletrônico. Então a ideia foi sair do lugar comum das entidades associativas, em que a pessoa se associa ou permanece associada voluntariamente, e criar uma forma em que todos os oficiais de Registro de Imóveis do Brasil estivessem vinculados a uma entidade, sejam eles oficiais titulares, interinos, interventores ou dos próprios tribunais, porque ainda há estados em que os cartórios são oficializados. Então pensamos uma forma em que todos os cartórios estivessem vinculados a um ente como o Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico. Esse tema foi discutido com o IRIB, principalmente no Congresso de Salvador, onde estavam presentes todos os ex-presidentes. Jordan Fabrício Martins e o Sérgio Jacomino eram os candidatos à sucessão do João Pedro Lamana. Como se tratava de medida provisória não houve discussão ampla, mas houve uma discussão no âmbito do próprio IRIB.

ONR: instituição voltada à inovação de tecnologias aplicadas ao RI eletrônico Inicialmente o IRIB apresentou ao CNJ uma proposta de estatuto. Posteriormente, em razão de algumas oposições manifestadas, o CNJ pediu que fosse apresentada uma proposta conjunta do IRIB e da Anoreg/BR. Anoreg/BR fez uma assembleia colegiada com Ano-

regs estaduais e institutos membros que integram a entidade e foi aprovado um texto. O IRIB e a Anoreg/ BR apresentaram essa proposta ao CNJ por meio da Corregedoria Nacional de Justiça. A Corregedoria Nacional de Justiça colocou essa proposta em consulta nas Corregedorias Gerais de Justiça dos estados. Apenas três ou quatro de todas as corregedorias do Brasil não foram positivas, mas todas as demais responderam muito afirmativamente à implantação do ONR. Nós tivemos três Ações Diretas de Inconstitucionalidade em face da Lei 13.465/2017. A primeira foi proposta pelo então Procurador-Geral da República, mas não fez nenhuma menção ao ONR, abordou a questão de não se tratar de tema próprio para medida provisória, mas para projeto de lei etc. Uma ADIn protocolada pelo Partido dos Trabalhadores também não fez nenhuma alusão ao ONR, ao registro eletrônico. E a última foi a do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Essa sim concentrou o seu foco no ONR, estranhamente. Essas três ações têm como relator o ministro Luiz Fux e não houve concessão de liminar para suspender, portanto a lei está em pleno vigor. Nós pretendemos credenciar o ONR como Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação, ICT, na forma da Lei 10.973/2004, Lei de Incentivo à Tecnologia e à Inovação. ICTs são órgãos ou entidades da administração pública ou entidades privadas sem fins lucrativos – que será o nosso caso – que têm como missão institucional, dentre outras, executar atividades de pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico. A natureza jurídica das atividades desempenhadas pelas ICTs possibilita que elas usufruam de uma série de benefícios fiscais, de oportunidades de fomento à inovação, não apenas no âmbito do SNCTI, mas também em editais e programas internacionais. Houve uma interpretação errônea com relação aos objetivos e ao caráter do ONR. O ONR tem como finalidade ser uma instituição de tecnologia voltada para a pesquisa, desenvolvimento e inovação de tecnologias aplicadas ao Registro de Imóveis Eletrônico. O ONR não tem e nunca teve a pretensão de normatizar o Registro de Imóveis. Esse papel, constitucionalmente, é assegurado e realizado pelo Poder Executivo Federal e Congresso Nacional, na edição de leis e decretos, e pelo Poder Judiciário – representado pelo Conselho Nacional de Justiça, tribunais dos Estados e do Distrito Federal –, na edição de atos regulamentares e normativos. BOLETIM 362

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Coordinación Registro de la Propiedad y Catastro: El principio de especialidad referido al objeto del derecho y el principio de legitimación 104

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“Tras la promulgación en España de la Ley 13/2015 de 24 de Junio, por la que se reforma la Ley Hipotecaria y el Texto Refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario, se ha abierto en nuestro país un proceso de coordinación entre ambas Instituciones y lo que es más importante desde la perspectiva registral, una nueva perspectiva del principio registral de especialidad en lo que se refiere al objeto del derecho de propiedad, esto es la finca.” Jorge Blanco Urzáiz Registrador de la Propiedad – España

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ras la promulgación en España de la Ley 13/2015 de 24 de Junio, por la que se reforma la Ley Hipotecaria y el Texto Refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario, se ha abierto en nuestro país un proceso de coordinación entre ambas Instituciones y lo que es más importante desde la perspectiva registral, una nueva perspectiva del principio registral de especialidad en lo que se refiere al objeto del derecho de propiedad, esto es la finca. Tras varios años de aplicación de la Ley, se pueden llegar a ciertas conclusiones en un camino no exento de dificultades que ha arrojado ciertas ventajas en su aplicación y justo es decirlo dificultades también. Desde la perspectiva registral son varias las consecuencias a las que llegamos: - la asimilación por parte del sistema registral de la extensión del principio de legitimación registral a los datos descriptivos de las fincas en cuanto a ubicación, superficie y linderos que conforman la configuración gráfica de la finca siempre que se produzcan determinadas circunstancias; - unos nuevos procedimientos registrales en cuanto a la rectificación de la descripción de las fincas dotados de mayores garantías bajo el control de la calificación del registrador; - la incorporación al registro de nuevos elementos tecnológicos gráficos que fortalecen el acierto de la calificación del registrador, la defensa de los intereses de los particulares y del dominio público. El artículo 9 de la Ley Hipotecaria establece que los asientos del registro contendrán entre otras todas las circunstancias referentes al sujeto, al objeto y al contenido del derecho inscribible, lo que no es otra cosa que la expresión del principio de especialidad registral en cuanto que todo derecho real objeto de inscripción debe estar perfectamente determinado en cuanto a su titularidad, a su objeto (la finca) y finalmente en cuanto a su contenido.

1. El Concepto de Finca registral Para adentrarnos en la definición de finca registral, es necesario previamente aclarar distintos conceptos referentes a la finca y que nos ayudarán a delimitar de forma más clara su significado. Ya Antonio Manuel Morales Moreno en su Libro Publicidad Registral y Datos de Hecho (Colección Magenta Editado por el Colegio de Registradores de la Propiedad, 106

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Mercantiles y Bienes Muebles de España), al hablar de la finca como elemento de referencia de la publicidad registral distingue entre fincas materiales y fincas registrales. Lo cierto es que para la propiedad inmobiliaria, la primera realidad de la cual la misma procede es la superficie terrestre. Derivado del reconocimiento de la propiedad privada sobre dicha superficie terrestre aparecerán las fincas materiales, de forma que podríamos definir la finca material como el espacio físico topográfico, sobre la cual se proyecta una relación jurídico dominical de propiedad, de forma que inevitablemente el concepto de finca material se vincula al ejercicio del derecho de propiedad. No de otra forma puede entenderse el derecho de propiedad sobre inmuebles, sino como la relación jurídica de dominio proyectada sobre un espacio físico debidamente limitado de la superficie terrestre. El hecho de que dicho derecho de propiedad sobre el inmueble, acceda o no al registro, dará lugar o no a la aparición de la finca registral, entendiendo la finca registral de una forma autónoma, como aquella entidad que se refiere a un derecho de propiedad que se proyecta sobre una superficie delimitada del espacio terrestre y que por el hecho de acceder al registro como tal derecho de propiedad, hace que el mismo pueda fortalecerse a través de la protección que el registro le dispensa, reflejada en los asientos registrales y los principios que le son inherentes, convirtiendo dicha entidad autónoma, la finca registral, en elemento clave de la publicidad del sistema. Es por ello que la finca material se compone de dos elementos, a saber, la relación jurídico dominical sobre una parte de la superficie terrestre y por otro dicho espacio físico topográfico sobre la superficie terrestre suficientemente delimitado. Mientras no haya relación jurídica de propiedad no habrá finca material, y mientras no haya un espacio delimitado de la superficie terrestre sobre la cual proyectar dicha relación de propiedad tampoco. Una vez conjugados dichos dos elementos es como decimos cuando aparecerá el concepto de finca material como entidad autónoma del resto de la superficie terrestre. Si dicha entidad autónoma del resto de la superficie terrestre que denominamos la finca material accede al registro de la propiedad, es cuando aparece la finca registral. A partir de este momento, la finca material y finca registral, siendo coincidentes en la primera inscripción de dominio y que produce la apertura del folio real, podrán coincidir en su desarrollo evolutivo o no, hacerlo de manera unívoca o dispersa, dependiendo de que las


modificaciones en la configuración física de las mismas o de los distintos derechos sobre ellas accedan o no al registro de la propiedad. Si dicha finca registral es el elemento clave de la publicidad del sistema, en cuanto a las relaciones de dominio y los derechos reales que recaen sobre la superficie física en la que se proyectan, es lógico por otro lado que se opte por una llevanza del registro de la propiedad por el sistema de folio real, entendido éste como la apertura del inicio del historial jurídico de la finca a través de la primera relación de dominio y donde constarán las distintas vicisitudes jurídicas de la misma. No es otro el concepto de inmatriculación en el derecho registral español o de matriculación de fincas en otros sistemas. Dar matrícula a una finca material y convertirla en registral, no es otra cosa que darle una entidad autónoma, a través de su número de finca registral, suponiendo el acceso por primera vez de una relación de dominio sobre un espacio físico de la superficie terrestre suficientemente delimitado. Es por ello inevitable que siendo el espacio terrestre delimitado por una relación jurídico dominical lo que compone el concepto de finca material, haya sido preocupación constante en las distintas legislaciones, y en especial en el Derecho Registral, el determinar adecuadamente los requisitos descriptivos con los que dichas fincas hayan de contar para su acceso al registro de la propiedad. No es otra la razón de ser del principio registral de especialidad, que supone la concreta determinación de los derechos en cuanto a su titularidad, objeto y contenido (artículo 9 de la Ley Hipotecaria Española), siendo el objeto, la finca en nuestro caso, una de las mayores preocupaciones de todos los sistemas registrales. Cuanto más preciso se es en la determinación del objeto, más preciso y seguro es la determinación del derecho, evitando la colisión e interferencias con el resto de derecho que recaen sobre el territorio, aportando por ello mayor seguridad jurídica. Ejemplo de ello es el artículo 9 de la Ley Hipotecaria en su redacción dada por la Ley 13/2015 de 24 de Junio de reforma de la Ley Hipotecara, establece en su apartado a), que la inscripción contendrá la Descripción de la finca objeto de inscripción, con su situación física detallada, los datos relativos a su naturaleza, linderos y superficie. Como vemos del precepto citado, son cuatro los elementos de componen la descripción de la finca para su acceso al registro: - situación física detallada;

- naturaleza; - linderos; - superficie. Por situación física detallada entenderemos la concreta ubicación de las mismas, en cuanto al paraje o zona si se trata de fincas rústicas, y nombre de la calle y número de gobierno si se trata de fincas urbanas. La naturaleza en cuanto si la misma es de naturaleza urbana o rústica, dado el posible distinto régimen jurídico aplicable a unas y otras. Los linderos y superficie en cuanto delimitan el espacio de la superficie terrestre objeto del derecho de propiedad. Indudablemente las nuevas tecnologías en cuanto permiten la descripción georreferenciada de los inmuebles, están siendo un gran apoyo en esta materia. Es por ello que se hace preciso distinguir entre dos tipos de descripciones de las fincas, la tradicional o literaria, y la georreferenciada. De la existencia de estas dos clases de descripción, da fe el propio artículo 9 cuando habla de que la representación gráfica georreferenciada de la finca completa su descripción literaria. La literaria o tradicional como su propio nombre indica es la que contiene de forma literaria todos los elementos descriptivos de la finca, en cuanto a su situación, naturaleza, superficie y linderos, y que es la que estamos acostumbrados a ver en los asientos registrales. Frente a ella, la descripción georreferenciada es la que permite la descripción de la finca fruto de las tecnologías de georreferenciación de la misma, disponiendo el legislador en el artículo 9 su incorporación al folio real de la finca, unas veces de forma obligatoria y otras de forma potestativa. Es curioso que el legislador español, en el citado artículo habla de incorporación de la representación gráfica georreferenciada al folio real de la finca. Dos críticas merece el artículo, la primera que se hable de incorporación, y la segunda que la misma lo sea al folio real de la finca. De Incorporación, pues hubiera sido una buena oportunidad para disipar las dudas en cuanto a si la representación gráfica georreferenciada es objeto de inscripción registral, y por lo tanto bajo la cobertura de los principios registrales de legitimación y de fe pública, tema del que hablaremos más adelante, y lo segundo porque no se puede hablar de incorporación al folio real, sino al asiento respectivo. Es cierto que el precepto ha corregido ciertos errores que se recogían en el proyecto en cuanto a la incorporación de los datos descriptivos BOLETIM 362

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al folio real, pues dado el carácter dinámico de la finca, alejado de todo estatismo, los datos descriptivos y sus respectivas actualizaciones lo han de ser en los asientos respectivos y no al folio real como concepto genérico y a medida que los mismos se vayan produciendo, pues no en vano lo que se hace es reflejar el historial de la finca. Sin embargo, con una defectuosa técnica legislativa el artículo 9 unas veces hablar de incorporación de la representación gráfica georreferenciada al tiempo de formalizarse cualquier acto inscribible o como operación registral específica y otras veces habla de su incorporación al folio real. La representación gráfica georreferenciada, de ser objeto de incorporación lo habrá de ser en el asiento específico de que se trata, nunca en el folio real. No obstante en el momento actual, ya toda la doctrina registral y la propia Dirección General de los Registros y del Notariado en España, dan por hecho que estamos ante una auténtica inscripción de la base gráfica y no de una mera incorporación. Como decimos la misma habrá de incorporarse unas veces de forma obligatoria, como en los casos de inmatriculación de fincas, y operaciones de parcelación, reparcelación, concentración parcelaria, segregación, división, agrupación, agregación de fincas, expropiación forzosa o deslinde que determine una reordenación de los terrenos (artículo 9.b) párrafo primero de la Ley Hipotecaria), y otras veces de forma potestativas con ocasión de cualquier acto inscribible o como operación registral específica (artículo 9.1.b) párrafo segundo). Tan importante es la representación gráfica de la finca, que el artículo 9 de la Ley Hipotecaria, en su nueva redacción establece que una vez inscrita la representación gráfica georreferenciada de la finca, su cabida será la resultante de dicha representación, rectificándose si fuera preciso, la que previamente conste en la descripción literaria. Como vemos el precepto vuelve a hablar de inscripción que no de incorporación de la representación gráfica y siempre que por un lado el registrador no albergue dudas de la correspondencia entre dicha representación gráfica y la finca inscrita, valorando la falta de coincidencia , siquiera parcial, con otra representación gráfica previamente incorporada, así como la invasión del dominio público, entendiendo como dice el precepto que la correspondencia de la representación gráfica de la finca con la finca inscrita , lo será cuando ambos recintos se refieran básicamente a la misma poción de territorio y las diferencias de cabida si las hubiera no excedan del 10% y no impidan la perfecta identificación

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de la finca inscrita ni su correcta diferenciación respecto a los colindantes. De todo lo anterior se deduce que son dos los supuestos en los que la representación gráfica georreferenciada de la finca, no podrá ser objeto de inscripción en el asiento registral respectivo, por su falta de correspondencia con la descripción literaria de la finca: 1. que ambos recintos se refieran a porciones distintas del territorio, o dicho de otra manera, que la representación georreferenciada de la finca con se refiera al mismo recinto al que se refiere la descripción literaria. 2. Y finalmente por su coincidencia siquiera parcial con otra representación gráfica de la finca, así como la posible invasión del dominio público. Dicha Inscripción de la representación gráfica georreferenciada se hará siempre sobre la base del principio calificación registral, en cuanto ello solo será posible en la medida que el registrador no albergue dudas de su correspondencia con la descripción literaria del asiento registral. Es por ello que me atrevo a afirmar, que a los tres supuestos antes contemplados, la práctica registral y fruto de la calificación del registrador añadirá otros más, que quizás de se puedan subsumir en aquellos elementos que no permitan la perfecta identificación de la finca ni su correcta diferenciación respecto a los colindantes. A título de ejemplo, señar el caso de falta de consistencia de la representación gráfica georreferenciada para su inscripción en el asiento registral respectivo, bien porque la superficie numérica de la certificación descriptiva y gráfica del catastro o de la base gráfica alternativa no se corresponda con la contenida el la línea poligonal del gráfico aportado, bien porque en su contraste con los elementos auxiliares de calificación arrojen resultados contradictorios.

2. El principio de legitimación registral y los datos de hecho Un lugar común en la doctrina registral y la jurisprudencia, es el estudio de si la Publicidad del Registro se extiende a los datos de hecho que constan en la descripción de la finca en el asiento registral, en cuanto a su configuración (linderos) y superficie, o si por el contrario la misma sólo aparece referida a los datos jurídicos que el asiento del registro refleja. Ello es tanto como preguntarse, si los datos de hecho que contiene la descripción de la finca en el asiento registral respectivo están o no bajo la órbita de los principios


… podríamos definir la finca material como el espacio físico topográfico, sobre la cual se proyecta una relación jurídico dominical de propiedad, de forma que inevitablemente el concepto de finca de legitimación y de fe pública registral, y de estarlo si lo es solo referido al principio de legitimación, negando el de fe pública, o a ambos. Para el estudio de esta materia es necesario hablar de dos datos de hecho sobre los que principalmente se plantea el problema al que nos referimos, cuales son la Superficie y los Linderos. Era tradicional, que la individualización de las fincas en los registros de la propiedad se produjera a través de la determinación de su superficie y linderos, sin embargo, el desarrollo de las nuevas tecnologías ha hecho posible el desarrollo de nuevas formas descriptivas de las fincas como su georreferenciación que permitan abrir nuevas perspectivas en toda esta materia, y que como refleja el nuevo artículo 9 de la Ley Hipotecaria son objeto de inscripción. En las legislaciones registrales de finales del siglo XIX se impuso una descripción literaria de las fincas a través de la expresión de su Situación, de su Superficie y de sus Linderos. En una economía eminentemente agraria se consideró perfecta la descripción de las fincas a través de la expresión literaria de estos tres elementos, descripción que en sí misma hacía que en muchas ocasiones la descripción de la finca en el registro naciera ab initio de forma imprecisa. Todo ello sin olvidar en muchas ocasiones, las motivaciones fiscales que como en el caso del derecho español, llevaron a muchos propietarios a la ocultación de los verdaderos datos físicos de sus propiedades alterando a menos la real superficie de la finca. Pues bien, lo que se plantea en el campo del derecho registral es si precisamente la publicidad del registro de la propiedad se extiende o no a esos datos de mero hecho. Y quizás en este debate, es el momento de plantearse un profundo revisionismo de los planteamientos realizados por la doctrina y la jurisprudencia. Pareciera que si como consecuencia de una imprecisa descripción de las fincas derivadas de la descripción literaria de las mismas, la doctrina y la jurisprudencia negaban esa publicidad del registro a los datos de mero

hecho. La conclusión contraria por tanto a dicho planteamiento, sería que a una mayor precisión de la descripción de las fincas en el Registro de la Propiedad, mayores serían los efectos de la publicidad referente a los datos de hecho, situación en la que nos encontramos en la actualidad, donde a través de la nuevas tecnologías se pueden obtener resultados muy precisos en la descripción de las fincas, y es por ello, que nos planteamos un revisionismo total de la doctrina y jurisprudencia existente al momento actual sobre la materia. Como decíamos antes cuando se habla de extensión de la publicidad del registro a los datos de hechos contenidos en el asiento registral, a lo que realmente nos estamos refiriendo es si los datos de hechos que el registro refleja se benefician de dos principios registrales esenciales en un registro de derechos cuales son el principio de legitimación (artículo 38 de la Ley Hipotecaria española) y el principio de fe pública de esa misma legislación. Hemos hecho referencia al principio registral de especialidad, adelantando desde ya, que los datos de hecho contenidos en la descripción de las fincas entran de lleno en el campo del principio de especialidad y que por lo tanto respecto a este principio no se plantea ningún tipo de problema. El principio registral de legitimación registral se enuncia como aquel principio por virtud del cual, el derecho (de dominio, o cualquier otro derecho real en sus diversas modalidades) existe y pertenece a su titular en la forma determinada en el asiento. Por lo tanto si ello es así, lo que cable plantearse y refiriéndonos al derecho de propiedad , si tal derecho existe y pertenece a su titular, no solo en cuanto a los datos jurídicos que refleja el asiento , sino que también se proyecta sobre una finca material individualizada por la situación, superficie y linderos que refleja el asiento registral; o por el contrario el registro no garantiza que dicha finca material que describe el registro, tal y como el mismo lo hace, no sea la que realmente pertenece a su titular. Y en segundo lugar, el principio de fe pública registral BOLETIM 362

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del artículo 34 de la Ley Hipotecaria Española, supone que el adquirente a título oneroso y de buena fe, será mantenido en su adquisición, aunque se anule o resuelva el derecho de su transferente en virtud de causas que no consten en el mismo registro. Ello aplicado a los datos de hecho, supone tanto como afirmar que si consideramos que el principio de fe pública registral se extiende a los mismos, el adquirente a título oneroso y de buena fe que adquiere confiando en lo que el registro pública, lo hará por tanto con la superficie y linderos que consta descrita en el registro sin que quepa alegar contra el mismo cualquiera otra descripción no contenida en dicho asiento. Pues bien, una vez definidos, cuales son los datos de hecho, y los principios registrales cuyos efectos se les pudiera hacer extensivo, el debate de la Doctrina, de la Jurisprudencia y de las Resoluciones de la Dirección General de los Registros y del Notariado ha sido plenamente oscilante. En una primera etapa, se niega que a los datos de hecho que el registro publica se le puedan extender tanto los principios de legitimación como el de fe pública registral. La verdad que a la vista del momento actual, sorprende que el único argumento de peso utilizado para tal negación, sea el de la imprecisa descripción con que las fincas registrales nacen ab initio en el registro. Pensemos que no otro podría ser el argumento cuando durante décadas lo único que se contenía en el asiento registral era una descripción literaria de las fincas por su situación, superficie y linderos. Poco a poco se va abriendo en la doctrina, la idea de que cuanto más precisa sea la descripción de la finca en el registro, podrá extender a los datos de hecho los efectos derivados del principio de legitimación pero no los derivados del principio de fe pública registral. En los fallos del Tribunal Supremo, se reitera igualmente dicho debate, desde sentencias que niegan la extensión de la publicidad registral en ninguno de sus principios, a aquellas que lo extienden al principio de legitimación exclusivamente, y otras que lo refieren a los dos. Y quizás sea el momento actual, la necesidad de plantearse que cuando lo que se logre en el registro de la propiedad sea una descripción precisa e indiscutible por parte de los colindantes, pueda la misma beneficiarse de los efectos protectores derivados del principio de legitimación y en su caso del de pública registral. Lo cierto es que el número 5 del nuevo artículo 10 de la Ley Hipotecaria en su redacción dada por la Ley 13/2015 de 24 de Junio nos deja a mitad de camino. Es-

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tablece el precepto: “5- Alcanzada la Coordinación gráfica con el Catastro e inscrita la representación gráfica de la finca en el registro, se presumirá, con arreglo a lo dispuesto en el artículo 38 (que es el que recoge el principio registral de legitimación en cuanto a que los derechos existen y pertenecen a su titular en la forma determinada en el asiento respectivo), que la finca objeto de los derechos inscritos (principio de especialidad) tiene la ubicación y delimitación geográfica expresada en la representación gráfica catastral que ha quedado incorporada al folio real”. Indudablemente la nueva redacción del artículo 10 de la Ley Hipotecaria, introduce el principio de legitimación registral cuando la base gráfica, catastral con los requisitos establecidos en el mismo artículo haya sido objeto de inscripción en el asiento registral y por lo tanto quede incorporada al folio real. Supone ello una transformación radical del sistema de descripción de fincas en el sistema registral español, pues ello es tanto como afirmar que la descripción literaria de las fincas no goza de los efectos del principio de legitimación en cuanto a los datos de hecho, y si la inscripción de la representación gráfica de la finca. Se desplaza por ello el sistema registral español de una descripción literaria de la finca, a una descripción gráfica de las mismas, tomando como base para ello la catastral, o la alternativa en los supuestos contemplados en la ley.

3. La realidad física de la finca en cuanto objeto del derecho de propiedad Muchas veces se produce el hecho de que a la hora de superponer la parcela catastral sobre el elemento auxiliar de calificación de bases gráficas del Registro se detecta que la configuración gráfica que de la finca hace el Catastro, es totalmente inconsistente, pues la misma ofrece un representación física de la finca que difícilmente puede ser encuadraba dentro de la realidad física de la finca registral y sobre la que recae el derecho de propiedad. Establece el Preámbulo de la Ley 13/2015 de 24 de Junio de reforma de la Ley Hipotecaria y del Texto Refundido del Catastro que entró en vigor el 1 de Noviembre de 2015, que la finalidad de la misma es conseguir la coordinación Catastro- Registro, para lograr un mayor acierto en la representación gráfica de los inmuebles, determinando con mayor exactitud la porción de terreno sobre la que el Registro despliega sus efectos. El acier-


to en la representación gráfica de los inmuebles viene indubitadamente unido a un tercer concepto cual es la realidad física de la finca, a la que se refieren muchos preceptos de la nueva norma, pues el objetivo de la seguridad jurídica no solo vendrá dado por una coordinación entre el Registro y el Catastro, sino por el hecho, de que la descripción registral sea lo mas ajustada posible a la realidad física que de igual manera ha de representar gráficamente el Catastro. Es por ello que no se puede olvidar nunca el concepto de realidad física de la finca, pues si el registro de la propiedad la omite, mal sirve entonces, por el principio de especialidad, a la determinación del objeto del derecho; y de la misma manera si el Catastro tampoco se ajusta a dicha realidad física, puede dar lugar como consecuencia de los procedimientos establecidos en la nueva Ley , a la entrada en vacío de fincas en el registro, con absoluta desconexión de la realidad física que le sirve de soporte al derecho de dominio y demás derechos reales . Nos encontramos pues ante la existencia de dos realidades, la finca registral vinculada por vocación a una realidad física y la parcela catastral; realidad física de la finca, a la que necesariamente como objeto del derecho habrán de referirse lo más exactamente posible una y otra Institución a los efectos de no producir una inseguridad jurídica nada deseable desde el punto de vista registral. Que la realidad de la física es importante lo demuestra que la Ley se está refiriendo constantemente a la misma. Lo hace en el Preámbulo en su número IV, cuando señala que la reforma tiene un alcance global, y que ello explica que se incorporen a la misma los procedimientos registrales que puedan afectar a las realidades físicas de las fincas (a los que se refieren los artículos 9, 10, y 198 y ss de la Ley Hipotecaria). El procedimiento para que el interesado pueda manifestar y rectificar la representación catastral si esta no se corresponde con la realidad física de la finca registral previsto en el artículo 199 de la Ley, es igualmente otra manifestación de la importancia de la realidad física de la finca. Pero el precepto que no deja lugar a dudas es el artículo 198 de la Ley cuando hablar de la Concordancia entre el Registro de la Propiedad y la realidad física y jurídica extrarregistral y de los procedimientos para llevar a cabo la misma. Por lo tanto el primer interesado en la Coordinación entre la finca registral y la realidad física de la misma, es la propia Institución del Registro, dado los principios que le son propios. Y es que la finca registral como objeto del derecho está unida indisolublemente a la realidad física que le sirve de soporte, y

que por lo tanto el Catastro es deseable que refleje de forma más fidedigna posible, ya que las descripciones que en el mismo se hagan, pueden llegar en virtud de los nuevos procedimientos a producir efectos jurídicos en el registro, que de no ser rigurosos e su aplicación pueden llevar a consecuencias de enorme peligro para la seguridad del trafico. Es cierto que finca registral, y realidad del territorio pueden llegar a no ser coincidentes dado nuestro sistema de inscripción voluntaria, pero no lo es así, existiendo un principio de unicidad, en los casos de inmatriculaciones de fincas, modificaciones hipotecarias y rectificaciones descriptivas de las mismas, procedimientos todos ellos a los que se refiere la Ley Hipotecaria. Es por ello que en todos los casos de incorporación de la representación gráfica aportada, el Registrador no ha de tener dudas de que dicha representación gráfica se corresponda con la finca inscrita, como señala el artículo 9 de la Ley Hipotecaria. Eso se producirá, cuando la representación gráfica no invada el dominio público, no invada otra representación gráfica previamente incorporada, y representación gráfica y finca registral se refieran a la misma porción del territorio (artículo 9 citado) Son muchas las ocasiones en las que la representación gráfica del Catastro y la descripción literaria de la finca registral no se están refiriendo a la misma porción del territorio. Muchas veces al superponer el gráfico catastral sobre el elemento auxiliar del registro se ve que no guarda ninguna conexión con la realidad física de la finca, pues la gráfica, atraviesa distintas porciones físicas, corta cultivos sin sentido, intercepta muros de otras porciones de territorio. Es por ello que lo que se plantea es que cuando difícilmente la parcela catastral representada se puede corresponder con la misma porción de territorio de la finca inscrita, el registrador debe ser extremadamente cauteloso y rechazar el acceso de dicha inscripción en el registro a los efectos de no producir fincas en vacío que no guardan ninguna conexión con la base física de la finca que sirve de soporte al derecho de propiedad.

4. La Coordinación Registro y Catastro. Sus respectivas funciones y las relaciones entre ambos a) Planteamiento General Es un punto común en la doctrina y la jurisprudencia, el analizar las diferencias entre el Registro de la Propiedad y el Catastro y cuales han de ser las relaciones entre BOLETIM 362

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ambos, todo ello en el intento de configurar cual ha de ser el papel que en el futuro han de desempeñar ambas instituciones sobre el territorio y el marco de relaciones a las que deben atender. Quisiera plantear en la presente conferencia un revisionismo total del concepto tradicional de coordinación que desde los años 1950 se ha intentado instaurar, para dar paso a una nueva visión de dicha coordinación al albur de las nuevas tecnologías. Coordinación sin duda, y colaboración la máxima, pero nunca sin olvidar el papel que juega la finca en una y otra Institución. Principio de colaboración entre el Catastro y el Registro de la Propiedad recogido en el artículo 2 del Texto Refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario. Si nos remontamos a la génesis de la legislación registral, en la exposición de la Comisión de Códigos sobre los motivos y fundamentos de la Ley Hipotecaria española de 8 de febrero de 1861 se decía: “Sin negar que los Registros de la Propiedad y de las Hipotecas pueden y deben venir al auxilio de la Administración….esto debe entenderse sin desnaturalizar los registros……dar intervención directa en los Registros a la Administración conduce irremediablemente a desconocer su carácter civil y a sacrificar lo principal a lo accesorio.” Confusión que se ha vuelto a producir en España como consecuencia de la reciente aprobación de la Ley de reforma de la Ley Hipotecaria y del Texto refundido del Catastro a través de la Ley 13/2015 de 24 de Junio, la cual solo atribuye la eficacia del principio de legitimación en cuanto a los datos hechos, respecto aquella finca registral que se encuentre Coordinada con la parcela catastral. (artículo 10.5 de la Ley Hipotecaria en su nueva redacción). Adelanto un concepto importante. Lo que antaño se ha visto como un grave inconveniente, cual es la falta de coordinación entre la descripción de las fincas en el registro de la propiedad y el catastro, responde a un reduccionismo propio de una época donde solo los catastros asumían la realidad descriptiva de las fincas, y no al mundo actual donde las nuevas tecnologías permiten que sean muchas y distintas las Administraciones que vierten información sobre el territorio. Es propio de un Catastro que pretende ser hegemónico en cuanto a la realidad descriptiva de las fincas, y no propio de un Catastro que debiera beneficiarse de la descripción e información que de las fincas y del territorio realizan diversas instituciones con medios tecnológicos espe-

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cializados para dichos fines. De hecho y eso ha sido un acierto en la Ley 13/2015, cuando los propios interesados alegan que a descripción que de la finca hace el Catastro no se corresponde con la realidad física sobre la que recae su derecho de propiedad, los interesados pueden aportar al registro para su calificación por el registrador de una Base Gráfica Alternativa realizado por un técnico con los requisitos de Resolución Conjunta de 25 de Octubre de 2015, que posteriormente será remitida por el Registro al Catastro. Cada Institución debe responder a los propios fines para los que fue creada, y el hecho de que se coordine e interopere con otras Administraciones, no debe llevar a la conclusión sin más, de que una Institución imponga la descripción que realiza de sus fincas a otras, porque ello indudablemente desnaturaliza a ambas y los perjuicios, algunos de ellos visibles ya en la realidad actual, puede ser de difícil reparación. Es por ello que el artículo 2.2 del Texto refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario establece que lo dispuesto en esta Ley, la del Catastro, se entiende sin perjuicio de las competencias y funciones del Registro de la Propiedad y de los efectos jurídicos sustantivos derivados de la inscripción de los inmuebles en dicho registro. Para el estudio de este tema, es necesario recordar dos conceptos, que por ya asumidos, es necesario volver a insistir sobre ellos: 1. La diferencia de concepto entre los Registros Jurídicos y los Registros Administrativos. 2. La diferencia entre el concepto de finca registral y el de parcela catastral b) Concepto de Registros Jurídicos y Registros Administrativos A lo largo de la evolución jurídica, ha sido objeto de estudio por parte de los tratadistas la contraposición entre los registros jurídicos y los registros administrativos, olvidando bien es verdad, que en todo registro jurídico hay parte de administrativo y en todo administrativo algo de jurídico. Juan Antonio Leyva, Pau Pedrón, Rodríguez Molina o Menéndez son testigos de este debate, como igualmente lo hacen Bienvenido Oliver, Díez Picazo o Lacruz Verdejo, señalando este último a título de ejemplo que los registros administrativos son registros de mera información, carentes de efectos jurídicos, y que no tienen la garantía de certeza. Y a nivel Constitucional, la propia Constitución española de 1978 reconoce esta distinción en su artículo 105.


Los registros de la propiedad responden a la primera de las categorías, es decir la de registros jurídicos, donde el registro brinda la protección jurídica necesaria a los derechos en el inscritos, donde es evidente la De forma general se definen como registros jurídicos aquellos que a través de los principios que le son inherentes garantizan la protección de los derechos en ellos inscritos, frente a los registros administrativos, que suponen la acumulación de distintos datos que conforman un índice con fines diversos, ya sean estadísticos, recaudatorios, de protección del entorno etc. Frente a esta contraposición se produce igualmente la existencia de figuras híbridas de registros que naciendo como registros administrativos, recogen principios propios de los sistemas registrales confluyendo en ellos elementos administrativos y elementos jurídicos, como es el caso de registro de la propiedad intelectual. Los registros de la propiedad responden a la primera de las categorías, es decir la de registros jurídicos, donde el registro brinda la protección jurídica necesaria a los derechos en el inscritos, donde es evidente la protección del interés privado y del tráfico jurídico inmobiliario, frente al Catastro , que se trata de un registro administrativo, representativo de un inventario de la riqueza territorial con fines recaudatorios de impuestos , donde lo que es objeto frente al anterior es la protección del interés colectivo o general, como puede ser inventariar la riqueza territorial de un país con finalidades recaudatorias de impuestos. Es necesario establecer esta primera aclaración, pues indudablemente ayuda a entender mucho mejor el problema que estamos tratando. Si somos sabedores que el registro de la propiedad responde a un tipo de registro jurídico, con unos fines que le son propios, y con unos principios integrantes del sistema, y que los Catastros son registros administrativos, con el objeto de protección del interés general y que no está dotado de los principios que son propios de los registros jurídicos, entenderemos pues que son dos instituciones que funcionan en dos órbitas distintas, y que si bien es cierto puede haber el interés de coordinación para ambas instituciones, están llamadas a funcionar en planos y escenarios diversos.

c) Diferencia entre el concepto de finca registral y parcela catastral Otros de los conceptos que ayudan a entender de manera clara cual es el juego de ambas instituciones, es la diferencia entre el concepto de finca registral y el de parcela catastral. Es evidente que ambas pueden coincidir y constituir la misma entidad, pero no siempre dicha convergencia puede producirse. Definíamos el concepto de finca registral como aquella entidad autónoma que se refiere a un derecho de propiedad que se proyecta sobre una superficie delimitada del espacio terrestre y que por el hecho de acceder al registro como tal derecho de propiedad, hace que el mismo pueda fortalecerse a través de la protección que el registro le dispensa ,reflejada en los asientos registrales y los principios que le son inherentes, convirtiendo dicha entidad autónoma, la finca registral, en elemento clave de la publicidad del sistema. Definimos la parcela catastral, como la representación gráfica de la riqueza territorial aparente en el espacio. El texto refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario establece en su artículo 6 que “a los exclusivos efectos catastrales, tiene la consideración de bien inmueble la parcela o porción de suelo de una misma naturaleza,… cerrada por una línea poligonal que delimita, a tales efectos, el ámbito espacial del derecho de propiedad de un propietario o de varios proindiviso...”. Visto desde esta perspectiva pareciera, como que en los dos casos nos estamos refiriendo a la misma realidad, esto es una superficie delimitada del espacio terrestre sobre la que se proyecta un derecho de propiedad. Sin embargo y como veremos nada más lejos de la realidad. Pasamos, siguiendo la exposición que realiza Oscar Germán Vázquez, en su libro la Información Territorial asociada a las bases gráficas registrales, al estudio de las notas diferenciadoras entre la finca registral y la parcela catastral. Todo ello en el buen sentido de lo deseable de la coordinación entre ambas Instituciones, pero intentando llegar a la forma adecuada de dicha coordinación: BOLETIM 362

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1. Apariencia Física 2. Universalidad 3. Actualidad 4. Necesidad 5. Técnica descriptiva 6. Carácter Público de su finalidad 7. Valor de la Titularidad 1. Apariencia física La parcela catastral tiene una apariencia física y es tangible, ya que obedece a signos palpables sobre le terreno, y evidentemente como señala el citado autor tendrá o no un dueño, pero esa declaración lo es consecuencia de una declaración de riqueza sobre el territorio. La finca registral se caracteriza por el dominio, que como tal concepto jurídico es intangible. Se refiere un espacio físico delimitado pero lo es en cuanto que por el principio de especialidad registral se hace necesario determinar claramente el objeto del derecho, en nuestro caso la finca. La finca registral podrá tener una realidad aparente y podrá coincidir o no con el espacio territorial delimitado por el catastro, integrarse por varios de ellos, o solo ser parte de uno. Y de la misma manera la finca registral puede que no tenga una realidad aparente, como es el caso de los pisos proyectos en división horizontal, que sin tener espacio territorial físico, son fincas registrales con entidad y vida jurídica propia, susceptibles de dominio y de otros derechos reales de garantía, posibilitando la obtención del crédito territorial. Ejemplos de ellos lo son las concesiones administrativas que en cuanto fincas especiales, producen la apertura del folio real y tienen vida jurídica propia. El Catastro ,es cierto, que en su artículo 6 .2.c) considera bien inmueble el ámbito espacial de una concesión administrativa sobre los bienes inmuebles o sobre los servicios públicos a los que se hallen efectos, pero como se vuelve a observar, lo hace en relación con un ámbito espacial determinado y por lo tanto aparente y tangible, a diferencia del registro de la propiedad, donde la concesión es en sí misma, independientemente del ámbito espacial a la que la misma se refiera, un entidad con vida jurídica propia, generadora de derechos y obligaciones en el tráfico jurídico. Todo lo anterior está íntimamente relacionado con el debate del númerus clausus y del númerus apertus en el campo de los derechos reales. La necesidad de que los sistemas registrales sean flexibles en la creación de nuevos derechos reales donde igual se puedan configurar nuevas formas de derecho de dominio sobre la propie-

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dad inmobiliaria y que puedan referirse a espacios del territorio indeterminados es interesante a los efectos de fomentar el crédito territorio. El legislador es consciente de esta realidad, y por eso sabe que cuando se da un proceso de parcelación, reparcelación, división, agrupación, agregación o deslinde judicial, que determinen una reordenación de los terrenos, existirá una realidad jurídica conformada por distintas fincas registrales que en tanto no accedan al catastro no aparecerán como nuevos inmuebles a los exclusivos efectos del catastro, y de ahí que se admita en el número 3 del artículo 10 de la Ley Hipotecaria la aportación de un representación gráfica georreferenciada complementaria o alternativa, que habrá el registrador remitir a los efectos de que practique la alteración que corresponda. 2. Universalidad El Catastro aspira por su vocación a ser universal, a ser un inventario de toda la riqueza territorial nacional, y por ende le importa la finca como un dato más a los efectos de la evaluación de dicha riqueza, influyendo que pueda haber una relajación en los datos descriptivos de sus parcelas catastrales. Es por ello que el artículo 2 del Texto Refundido de la Ley del Catastro Inmobiliario señala en cuanto a los principios informadores del Catastro Inmobiliario, que la información catastral estará al servicio de los principios de generalidad y justicia tributaria y de asignación equitativa de los recursos públicos, a cuyo fin el Catastro colaborará con el Registro de la Propiedad para el ejercicio de sus respectivas funciones y competencias. Frente a ello, el registro de la propiedad, y más en el sistema registral español de inscripción voluntaria en la mayoría de los derechos, no tiene aspiraciones de universalidad, primando la individualidad de un derecho de propiedad proyectado sobre el territorio, lo que obliga en aras de la seguridad jurídica, a que la descripción del objeto del derecho, la finca, sea lo más precisa posible. Ni siquiera algunos sistemas de carácter absoluto con vocación de universalidad como es el caso del Sistema Torrens, confunden la descripción registral de las fincas con las catastrales. Recordamos por ejemplo el Sistema Torrens de la República Dominicana, donde dentro de la Jurisdicción Inmobiliaria de Tierras, una de sus tres patas es la Dirección General de Mensuras, que es la institución encargada de hacer la representación gráfica de las fincas registrales, para su posterior coordinación con el Catastro.


3. Actualidad Señala Oscar Germán Vázquez, que el registro de la propiedad brinda su protección independiente de que la finca haya sido objeto de actualización en su descripción, mientras que el Catastro, para ser eficiente, ha de estar en un proceso de continua actualización para guardar una coherencia territorial. 4. Necesidad El Catastro actúa de manera Necesaria, reflejando todos los cambios territoriales que se produzcan independientemente de que los particulares aporten las alteraciones producidas al mismo, mientras que en el caso del registro de la propiedad, la actuación es de carácter rogada y solo para aquél que quiera beneficiarse de la protección registral que el sistema le brinda. 5. La técnica descriptiva El catastro tiene aspiraciones como decimos de universalidad, y ha de representar gráficamente la finca sobre el territorio con la mayor precisión posible, porque de la representación que de la finca se haga de una de ellas, se puede poner en tela de juicio la trama continuada de parcelas. Frente a ello la representación gráfica de la finca registral opera en lo que he procedido a llamar diversos Estadios a los que más adelante me referiré, y que van desde la indicación de la situación de la finca, hasta su perfecta coordinación con el catastro. 6. Carácter de la publicidad Ya veíamos en la distinción entre los registros jurídicos y los registros administrativos, que el registro de la propiedad responde al interés del Estado en proteger las relaciones jurídico inmobiliarios que fundamentan el derecho constitucional a la propiedad privada, y por lo tanto se enmarca dentro del interés privado, frente al Catastro que nace de la necesidad de proteger los intereses de la Administración Pública

sustantivos derivados de la inscripción de los inmuebles en dicho registro. No podía ser de otra manera pues si la Institución del registro de la propiedad está dotada en cuanto a los derechos inscritos, de unos principios que le son propios, como el principio de tracto sucesivo, el de legitimación, el de fe pública, propios de la protección jurídica del derecho de propiedad, dichos principio le son ajenos a la institución del catastro que como vemos responde a otras finalidades. Pero dado que la inscripción es voluntaria en nuestro sistema, se puede producir un decalaje entre la titularidad registral y la catastral , y de aquí la importancia de la regla cuarta del artículo 9 del TR de la Ley del Catastro Inmobiliario que establece que “en caso de discrepancia entre el titular catastral y el del correspondiente derecho según el registro de la propiedad sobre fincas respecto de las cuales conste la referencia catastral en dicho registro, se tomará en cuenta, a los efectos del Catastro, la titularidad que resulte de aquél, salvo que la fecha del documento por el que produce la incorporación al Catastro sea posterior a la del título inscrito en el Registro de la Propiedad”. Lo que se ha querido expresar con la presente Conferencia , es que efectivamente debe haber Coordinación sin duda, y colaboración la máxima, pero nunca sin olvidar el papel que juega la finca en una y otra Institución, pues la finca en el registro de la propiedad responde a las necesidades del principio de especialidad , de ahí a las de seguridad jurídica y fomento del crédito territorial y de la inversión, necesidades distintas a las que corresponde un registro administrativo como es el Catastro.

7. Valor de la Titularidad Catastral y de la Registral Es evidente que la titularidad catastral y la registral juegan en planos y con efectos diversos. La diferencia entre ambas Instituciones ya es recogida en el artículo 2.2 del TR de la Ley del Catastro Inmobiliario cuando establece que lo dispuesto en esta Ley, la del Catastro, se entiende sin perjuicio de las competencias y funciones del Registro de la Propiedad y de los efectos jurídicos BOLETIM 362

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Melhoria do ambiente de negócios. Doing Business – Registro de propriedades 116

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“Entre as economias emergentes ficamos na última posição. Será que um relatório desses tem relevância para o investidor internacional? No que diz respeito ao registro de propriedades estamos na posição 131, com nota 52,60.”

Carlos Eduardo de Jesus Assessor da Secretaria Executiva do Programa Bem Mais Simples do Governo Federal

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nossa secretaria está vinculada à Secretaria de Governo da Presidência da República que cuida da articulação com o Congresso e da articulação social. Foi criada em 2015, com a finalidade de simplificar e agilizar a prestação de serviços públicos, de melhorar o ambiente de negócios e a eficiência da gestão pública. Em relação à simplificação e agilização da prestação de serviços públicos, nós tivemos uma atuação muito forte. É possível perceber isso com o programa e-Social, que integrou diversos cadastros da Caixa Econômica, do INSS, do Ministério do Trabalho e da Receita Federal para reduzir as obrigações acessórias vinculadas ao trabalhador. Já a REDESIM foi montada a partir de 2007 e tinha o propósito de fazer uma integração entre a Junta Comercial de cada estado, as secretarias municipais da Fazenda, as secretarias estaduais e a Receita Federal para reduzir o tempo de abertura de empresa no país.

Doing Business oferece padrão de referência sobre reformas no ambiente de negócios O Relatório Doing Business avalia o ambiente de negócios de 190 economias, por meio de pesquisa com especialistas. • Mapeia o processo e mede o impacto das regulamentações sobre 10 temas que afetam as atividades empresariais. • Permite a comparabilidade entre os países e incentiva a competição para alcançar uma regulamentação/ processo mais eficiente. • Oferece padrões de referência sobre reformas no ambiente de negócios de cada país. • A mediação é realizada na cidade de maior volume de negócios de cada país. Em países com mais de 100 milhões de habitantes, são consideradas as duas maiores cidades. No Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo. • O projeto Doing Business inclui, sob demanda, relatórios subnacionais, para avaliações de cidades selecionadas e recomendações sobre reformas a serem implementadas em cada uma delas.

Brasil: posição 125 entre 190 economias Nossa nota média ficou em 56,45 em 2018. O Brasil foi classificado na posição 125 entre 190 economias. Como estamos em relação à América Latina?

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Países como México, Colômbia e Chile têm posição mais ou menos estável entre 50 e 30 ao longo dos últimos dez anos. E o Brasil está sempre lá embaixo, estagnado. Subiu um pouco em 2014, mas voltou a cair. O que isso diz para os investidores internacionais? O Brasil é bom ou ruim para fazer negócio? É fácil? Não, não é fácil.

Brasil: última posição entre as economias emergentes Entre as economias emergentes ficamos na última posição. A Rússia subiu muito nos últimos anos, África do Sul está caindo, China subindo e a Índia também subindo. Será que um relatório desses tem relevância para o investidor internacional? Um embaixador americano conversou conosco sobre o Doing Business e comentou: “Eu tenho muita dificuldade com os investidores do meu país porque eles olham o relatório e falam: ‘Como eu vou investir em um país com situação ruim, difícil para fazer negócios?’”. Ele conhece o Brasil e argumenta que não é bem assim, mas o relatório aponta para outro lado. Dez temas são avaliados e cada um recebe uma nota. A classificação do Brasil está de acordo com a média dessas notas. No que diz respeito ao registro de propriedades estamos na posição 131, com nota 52,60. Começamos a trabalhar com Doing Business em 2017. Primeiro tentamos entender como funcionava, conversamos com quem participava do processo. Depois fizemos um monitoramento de várias ações. Algumas apoiávamos, outras buscávamos envolver parceiros. Uma coisa boa. No relatório que vai sair agora devemos ter uma inversão daquela curva de descida. Devemos sair da nota 56 para uma nota próxima a 60.

Abertura de empresas em SP: 90 dias para um procedimento Em São Paulo, apenas um procedimento do processo de abertura de empresas, que é monitorado, levava 90 dias. Foi preciso um decreto do prefeito, e depois a outra gestão continuar o investimento para poder fazer a integração da Junta Comercial com a Secretaria da Fazenda do Município, com a Secretaria da Fazenda do Estado, e principalmente com a área de licenciamento da prefeitura. Ali se levava 90 dias para tirar um licenciamento em São Paulo. Esse número deve ser reduzido para cinco dias.


Muitos dos nossos problemas se devem à fragmentação de processo, diversos procedimentos para se conseguir um serviço ou para finalizar aquele processo. Também temos problemas de cunho estrutural, mas há falhas no próprio processo de mensuração do Doing Business. No comércio internacional tínhamos um processo que avaliava a importação de peças automotivas. Pelo relatório, essas peças saíam da Argentina por via terrestre e chegavam ao Brasil pelo Porto de Santos. Como é possível? Havia alguma coisa errada. Se o relatório da Argentina dizia exportar as peças por via terrestre como elas chegavam pelo Porto de Santos? Mensuração errada. Trata-se de uma pesquisa com especialistas. Se o especialista responde errado, ou se vários especialistas respondem errado, ou não entendem a pergunta, o resultado final é ruim. Nós detectamos e apontamos várias falhas ao longo de todos esses processos. Algumas o Banco Mundial aceitou, outras não. Essa era gritante: como sai via terrestre e chega no porto? Além de demonstrar isso tivemos que inserir uma série de informações da Receita Federal referentes ao que passava pela aduana. Todas as cargas que entravam da Argentina foram monitoradas para apresentarmos uma evidência do erro. Em outros processos somos muito bons em alguns pontos e ruins em outros. Há um processo, se não me engano o da proteção de investidores minoritários, onde chegamos a ter nota máxima em um indicador e no outro, relativo à execução, somos péssimos. Então há essas distorções.

Tempo dedicado ao pagamento de impostos no Brasil: 2 mil horas Duas mil horas são dedicadas ao pagamento de impostos. Será verdade? A Receita Federal diz que não. Se olharmos somente o indicador horas, estamos em último lugar. Levamos duas mil horas para pagar impostos contra seiscentas horas do penúltimo lugar. Se reduzirmos três vezes nosso número de horas ainda vamos continuar em último lugar. E vamos ter nota zero, porque a partir de um limite a nota é zero. Para pontuar no indicador de tempo para pagar impostos precisamos ter em torno de quatrocentas horas.

Registro de propriedade: Brasil está na posição 131 Vamos ver como eles analisam o registro de propriedade.

A pesquisa é feita entre fevereiro e maio. Eles medem a quantidade de procedimentos que há em uma transação imobiliária, o tempo em dias, o custo em percentual do valor da propriedade, a qualidade da regulação e eficiência da gestão. A pessoa que vai responder tem que observar o período de junho do ano anterior até maio do ano corrente da pesquisa. A qualidade da regulamentação e da eficiência avalia dimensões como confiabilidade da infraestrutura, transparência da informação, cobertura geográfica, resolução de disputas fundiárias e igualdade do direito de propriedade. A pessoa tem que avaliar observando um pressuposto. É assim que se consegue comparar várias economias. É preciso ter um modelo para que se possa avaliar. Por exemplo, aqui há uma transação entre duas empresas nacionais no valor de R$ 1,477 milhão, registrada em cartório, livro de hipoteca ou qualquer outro ônus. As partes seguiram todos os procedimentos exigidos por lei. Não adianta ter apenas regulamentação. A regulamentação pode ser enxuta, mas se as pessoas não confiam na regulamentação elas vão colocar outros procedimentos. A verificação é feita entre junho e setembro. Nesse período eles perguntam para o governo o que houve de melhorias, reformas. Nós preenchemos um documento chamado update e mandamos para o Banco Mundial. Se houver divergência entre respostas, eles questionam as pessoas que responderam nesse período de avaliação. Outubro é o período de apresentação do relatório. O Brasil está na posição 131, com 13,6 procedimentos, a média ponderada de Rio e São Paulo, levando 31,5 dias para realizar a transação – entre escritura, certidões e registro. E 3,2% do imóvel fica como custo; a qualidade da administração fundiária fica em 3,8. Na comparação, o México tem menos procedimentos, um tempo maior, um custo maior. Parece que é uma característica do México, o custo deles está sempre acima do nosso. O custo não é um problema para nós. O nosso problema principal é a quantidade de procedimentos. É o processo que está fragmentado. Portugal tem um único procedimento. Faz a transferência mediante um procedimento, em um dia. Custa 7,3% do imóvel. Tem uma pontuação de 20 na qualidade da administração. A Rússia tem mais procedimentos, leva um tempo maior, mas, em razão do custo e da qualidade de administração tem melhor classificação que Portugal. Procedimentos para o processo de transferência BOLETIM 362

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Entre os procedimentos identificados para fazer o processo de transferência, o Brasil utiliza uma grande quantidade de certidões. Muitas são solicitadas online. Vários processos já estão na internet, mas é preciso entrar em vários sites – Justiça do Trabalho, TRT, TST. É preciso pegar as certidões de protesto – a entrega não é online –, requisitar dados do imóvel, do IPTU, certidão vintenária. E aqui começamos a ver que há diferenças entre São Paulo e Rio, com procedimentos online ou não. O peso do custo está aqui: 3% do ITBI. Ainda há muita fragmentação no processo. Depois da certidão – uma vez pago o ITBI, a escritura, o registro – ainda é preciso fazer uma atualização do IPTU na prefeitura: 5 dias em São Paulo e 5,5 dias no Rio. - Quanto aos indicadores de qualidade fundiária, o que está faltando? Nem todos os terrenos de propriedade privada estão formalmente registrados. E também não sabemos o percentual registrado, o que leva à perda de dois pontos. - Confiabilidade da infraestrutura. A maioria dos títulos registrados é mantida em formato digitalizado ou escaneado. Perdemos um ponto aqui porque deveria ser nato-digital. - Existência de base de dados eletrônica para verificação de gravames. No Rio não foi identificada pelos respondentes. Não há integração, interoperação ou troca de informações entre o Registro de Imóveis e o Cadastro Municipal. Registro de Imóveis e o Cadastro Municipal não usam o mesmo número de identificação de propriedades. - Inexistência de mecanismos específicos e separados para apresentação de queixas ou problemas ocorridos em registros de imóveis. Os respondentes não reconheceram a Corregedoria como instrumento, mas vamos continuar insistindo.

Divergências nas informações da pesquisa Doing Business Começamos o trabalho em 2017. Fizemos reuniões com pessoas que respondem a pesquisa Doing Business para entender a percepção delas e por que há divergência entre o que estamos vendo e o que está sendo informado. Por que certidões que não são necessárias estão sendo relacionadas? É incrível, cerca de 85% das pessoas que respondem aqueles dez temas são advogados. Notamos que poucas pessoas que efetivamente operam o dia a

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dia daqueles temas estão envolvidas em responder os questionários. Outro problema é que não sabemos se quem respondeu o fez efetivamente ou se as respostas foram dadas por um estagiário, uma vez que o questionário vem pré-preenchido com as informações do ano anterior. Se em 2010 alguém respondeu que precisava daquela certidão, isso pode continuar na resposta por inércia. E está prejudicando o país, porque estamos falando aqui da imagem do país. Estamos falando de perda de investimento porque alguém pode olhar de fora e pensar: “Se eu vou levar duas mil horas para pagar imposto, eu vou investir no Chile”. No Brasil faltam informações estatísticas e outras coisas: - Inexistência de informações estatísticas oficiais disponíveis sobre o número de transações de imóveis. O Cadastro Municipal de São Paulo não tem prazo para entregar um mapa atualizado. No Rio de Janeiro você entra no site da Secretaria do Município e consegue acessar esse mapa. - Inexistência de mecanismos específicos separados para apresentação de queixas do Cadastro Municipal. Existe ouvidoria, mas isso não é reconhecido. - Cobertura geográfica, mapeamento, saber se todos os terrenos estão formalmente registrados no país e na cidade. Não sabemos qual é o percentual que está registrado em relação à quantidade de terrenos. Os terrenos de propriedade no país estão todos mapeados? Não. Isso é avaliado. O Sistema de Registro de Imóveis brasileiro não está sujeito a uma garantia estatal ou privada. - Inexistência de mecanismos de compensação específicos para cobrir perdas sofridas por partes que se comprometam de boa-fé em transação de propriedade com base em informações erradas certificadas pelo Registro de Imóveis. - Inexistência de base de dados nacional para verificação de documentos de identidade. Estamos tentando resolver esse problema. Está saindo o Documento Nacional de Identidade – DNI, documento eletrônico, e há um outro processo chamado Brasil Cidadão que vai entregar também um documento físico. Uma boa parte dos serviços fornecidos pelo Governo Federal passam por um processo de transformação digital, utilizando essa mesma base feita pelo TSE para identificação das pessoas. Estamos trabalhando em conjunto com o Ministério do Planejamento, a Casa Civil e o TSE para que eles tenham condição de fazer uma


validação das identidades utilizando essa base nacional. Qual o tempo médio estimado para se obter uma decisão em primeira instância de uma disputa de terras? Não sabemos. As pessoas respondem dois ou três anos, eu não sei se é mais ou se é menos porque não há estatística disso. E a inexistência de estatística sobre essas disputas de terra leva à perda de meio ponto. Estamos perdendo pontos em coisas que talvez conseguíssemos melhorar rapidamente. Exemplos de melhores práticas: registro de queixa, cadastro de estatística online, transações na Holanda, Coreia do Sul com cobertura geográfica, litígios na Lituânia resolvidos em menos de um ano, confiabilidade da infraestrutura na Turquia. Eles apontam referências como bancos de dados de propriedades integrados, número de identificação exclusivo, mapas digitais, portal público com informações cadastrais e imagens de satélite.

Meta: reduzir o tempo de registro de 31,6 dias para 13 dias Assumimos um desafio na Secretaria com base em tudo o que aprendemos no último ano. Queremos reduzir o tempo de registro imobiliário de 31,6 dias para 13 dias. Não estamos discutindo o custo, porque se trata basicamente de imposto. Não temos muito o que fazer, não dá para impedir a prefeitura de aumentar imposto. Então estamos atuando sobre processos e sobre o que é possível fazer. No primeiro momento o foco é o crescimento mais rápido. As coisas mais difíceis vão ser trabalhadas em paralelo, mas com horizonte mais longo. Vamos trabalhar para ver se conseguimos esses 21 pontos. Isso faria com que saíssemos de uma nota 56 para 81 e a posição de 131 para 27 no ranking do Doing Business. Como faríamos isso? Primeiro, há uma iniciativa que começou no ano passado, o Portal Escritura Simples, que vai fazer a integração de processos, verificação e formalização de registros e cadastros. Como seria isso? A ideia é ter um integrador, em que a pessoa dá entrada na sua escritura, o notário faz as verificações necessárias, prepara a escritura, realiza o pagamento do imposto e das taxas. A partir da assinatura o notário providencia o envio para o Registro de Imóveis. A pessoa não precisaria sair do Cartório de Notas para fazer o registro. A ideia é que o envio seja eletrônico e o Registro de Imóveis faria a atualização junto à prefei-

tura. Seria preciso haver troca de informações entre o Registro de Imóveis e o Cadastro Municipal. Precisamos também aprimorar outros pontos. Acreditamos que em pouco tempo seja possível disponibilizar estatística sobre transações imobiliárias e trabalhar essa parte de informações online de gravames. Fazer a integração de dados imobiliários entre prefeituras e Registros de Imóveis, ou seja, interoperabilidade, troca de informações. Também é necessário ampliar o número de oficiais de registro de imóveis como respondentes. Faço um convite para que vocês façam parte do conjunto de respondentes do Doing Business, temos que contar com a participação de quem conhece o processo. Para eliminar distorções precisamos de respostas mais atualizadas. Hoje, dos 35 respondentes apenas quatro são registradores imobiliários. Por fim, gostaríamos de acompanhar, apoiar e ajudar no que for possível a implantação do registro eletrônico de imóveis.

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A Qualificação Registral e a Independência do Registrador − Maxime em Portugal “A função qualificadora, desempenhada pelo registrador português e brasileiro, é o meio indispensável para que o princípio da legalidade atue. De fato, através do exercício da função qualificadora, o registrador efetua uma “depuração” dos atos que é chamado a registrar, assegurando que o Registro não seja um mero arquivo de documentos, mas o “crivo” por onde só passam os atos que o ordenamento jurídico consente.”

Mónica Jardim Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra, onde é regente, na licenciatura, da segunda turma da disciplina Direitos das Coisas e da disciplina de Direito dos Registros e do Notariado e no Mestrado Científico, da disciplina de Direito Imobiliário e Registral. Mestre em Direito Civil (Tese de Mestrado intitulada: “A Garantia Autónoma”). Doutora em Direito Civil (Tese de Doutoramento intitulada: “Efeitos Substantivos do Registro Predial”).

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1. A qualificação registral e a independência do registrador – perspectiva geral Em qualquer sistema de registro jurídico, e não meramente administrativo ou de arquivo de documentos, existe um responsável - em princípio o registrador1 - que tem como missão decidir se determinado fato, em concreto, deve ou não ser admitido a registro. Efetivamente, o registrador não se limita a formular um juízo especulativo acerca da registrabilidade de um título, deve proferir, isso sim, uma decisão sobre a efetiva operação de um registro determinado. A missão a que nos referimos pode ser mais ou menos complexa e relevante – quer do ponto de vista jurídico, social ou econômico –, consoante os princípios registrais consagrados e os efeitos substantivos reconhecidos aos assentos registrais, e é, como se sabe, denominada como qualificação2. Portanto, diz-se qualificação registral (imobiliária) o 1 Texto que serviu de base à apresentação oral feita, a 19 de Outubro de 2018, no XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Florianópolis (SC). Tradicionalmente, em Portugal, os registros eram lavrados apenas pelos conservadores. No entanto, desde 2009, no âmbito do Registro Predial, nos termos do nº 2 do art. 75º-A do Cód.Reg.Pred. português, os oficiais têm competências próprias para um enorme número de atos. Designadamente: - penhora de prédios; - aquisição e hipoteca de prédios descritos antes de titulado o negócio; - aquisição por compra e venda acompanhada da constituição de hipoteca, com intervenção de instituições de crédito e sociedades financeiras; - hipoteca voluntária, com intervenção das referidas entidades; - locação financeira e transmissão do direito do locatário; - transmissão de créditos garantidos por hipoteca; - cancelamento de hipoteca por renúncia ou por consentimento; - averbamentos à descrição de fatos que constem de documento oficial; - atualização da inscrição quanto à identificação dos sujeitos dos fatos inscritos; - desanexação dos lotes individualizados em operação de transformação fundiária decorrente de loteamento inscrito e abertura das respectivas descrições; - abertura das descrições subordinadas da propriedade horizontal inscrita; - abertura das descrições das frações temporais do direito de habitação periódica inscrito. 2 Sobre a Qualificação Registral vide, entre outros: Flauzilino Araújo dos Santos, Sobre a Qualificação de Títulos Judiciais no Brasil – Revista do Direito Imobiliário, no 56 (Jan/Jun – 2004) – Estudos e Comentários – CDROM (Thesauros – Registral / Notarial / Imobiliário); João Baptista Galhardo, Títulos Judiciais e o Registro de Imóveis – CD ROM Thesaurus Registral, Notarial e Imobiliário – IRIB – ANOREG/SP; José Maria Chico Ortiz, Calificación Jurídica, Conceptos Básicos y Formularios Registrales, Madrid, Marcial Pons, 1987; José Maria Chico Ortiz, La Función Calificadora: Sus Analogías y Diferencias com Otras, Anais do IV Cangresso Internacional de Direito Registral; José Maria Chico Ortiz, Presente y Futuro del Principio de Calificación Registral. Revista Crítica de Derecho Inmobiliario n. 496; José Maria Chico Ortiz e Catalino Ramírez Ramírez, Temas de Derecho Notarial y Calificación Registral del Instrumento Público, Madrid, Montecorvo, 1972; José María de Mena y San Millán, Calificación Registral de Documentos Judiciales, Barcelona, Libr. Bosch, 1985; José Victor Sing, La Función Calificadora de Los Registros de Bienes, Anais do II Congresso Internacional de Direito Registral, tomo II; RICARDO DIP palestra proferida no Curso sobre Direito Registral Imobiliário, promovido pela EPPM e disponível in: https://epm.tsp.jus.br?Noticias/3429?pagina =224; RICARDO DIP, Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, disponível in: https://arisp.files.wordpress.com/2008/06/007-dip-qualificacao-registral. pdf.; SILVA PEREIRA, O princípio da legalidade, o registro das decisões finais e a força do caso julgado, p. 13, disponível in: http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/ DOC070314-004.pdf.

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juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem à sua inscrição predial, importando na realização do seu registro ou na sua recusa3. A qualificação registral é um juízo lógico de análise fática, de subsunção jurídica e de conclusão/decisão acerca da aptidão inscritiva de certo e determinado título ou, por outra via, da prática ou não do registro requerido num caso singular e concreto. Consequentemente, “o juízo que marca a tarefa de qualificação é um juízo prudencial, que diz respeito a uma situação concreta, da qual não emerge uma conclusão universal, mas, isso sim, uma conclusão dialética”4. Ademais “não é um juízo de natureza me3 Em Portugal - onde inexistem juízes corregedores e se desconhece o procedimento de dúvida -, salvaguardadas as hipóteses de recusa taxativamente previstas na lei (cfr. art. 69.º do Cód.Reg.Pred. português), o conservador, perante o pedido de registro, deve lavrar o registro como: 1 - Definitivo: quando o interessado solicita o registro e o conservador, após a qualificação, conclui que o registro pode ser realizado e produzir a eficácia que lhe é própria sem qualquer reserva. 2 -Provisório: por dúvidas ou por natureza. a) Os registros são lavrados como provisórios por dúvidas sempre que o responsável pela sua realização se depare com algum motivo que, não sendo fundamento de recusa, obste ao registro do ato tal como foi pedido (cfr. art. 70º do Cód.Reg.Pred. português). Por exemplo, nas seguintes hipóteses: incumprimento do princípio do trato sucessivo; falta de prova do cumprimento das obrigações fiscais; rasuras ou entrelinhas nos documentos; falta de uma certidão; etc. O registro provisório por dúvidas tem um prazo de vigência de seis meses; converte-se em definitivo quando as referidas dúvidas são eliminadas dentro do seu prazo de vigência e caduca quando tal não ocorra. (cfr. o nº 2 do art. 11. do Cód.Reg.Pred. português). b) Os registros são lavrados como provisórios por natureza, apenas e só, nas situações do art. 92º do Cód.Reg.Pred. português. Designadamente: - Em virtude do caráter preliminar ou precário do ato a inscrever. Assim, por exemplo: o registro de um pedido formulado numa ação judicial; o registro de constituição da propriedade horizontal, antes de concluída a construção do prédio; o registro de hipoteca judicial antes do trânsito em julgado da sentença de condenação; o registro de aquisição antes de titulado o contrato. - Em decorrência da anulabilidade do negócio jurídico por falta de consentimento de terceiro ou de autorização judicial, antes de sanada a anulabilidade ou de caducado o direito de a arguir; em consequência da ineficácia do negócio jurídico celebrado por gestor ou por procurador sem poderes suficientes, antes da ratificação. - Quando depende de um registro não lavrado em virtude de recusa ou lavrado como provisório. Assim, por exemplo: o registro de fatos jurídicos respeitantes a frações autônomas, antes do registro definitivo da constituição da propriedade horizontal; as inscrições dependentes de qualquer registro provisório ou que com ele sejam incompatíveis. O prazo regra do registro provisório por natureza é de seis meses, mas a lei estabelece múltiplas exceções. Acresce que, em certas hipóteses, pode ser renovado (cfr. os nos 3 e ss. do art. 92º do Cód.Reg.Pred. português) e o registro provisório de ações e procedimentos sujeitos a registro não estão sujeitos a qualquer prazo de caducidade (cfr. o no 11 do art. 92º do Cód.Reg.Pred. português). Por fim, o registro provisório por natureza converte-se em definitivo quando ocorre um outro fato que afaste a causa de provisoriedade. Assim, se a provisoriedade residisse no caráter preliminar ou precário do fato a inscrever, o novo fato tem de lhe dar caráter definitivo. Designadamente: a sentença proferida julgou procedente o pedido e transitou em julgado; o prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal foi construído; o negócio aquisitivo ocorreu). Se a provisoriedade fosse consequência da ineficácia sanável mediante ratificação, o novo fato há de ser a ratificação. Se a provisoriedade decorresse do fato de o registro depender de um registro não lavrado em virtude de recusa ou lavrado como provisório, este terá, entretanto, de ter sido registrado como definitivo.Etc. 4 Nas palavras de RICARDO DIP proferidas no Curso sobre Direito Registral Imobiliário, promovido pela EPPM e disponível in: https://epm.tsp.jus.br?Noticias/3429?pagina =224.


ramente conciliativa, pois tem um caráter conclusivo e imperativo, ao dizer que se registra ou não determinado título, da mesma forma que uma sentença. 5-6 Acresce que a qualificação e decisão do registrador não se traduz numa possibilidade ou prerrogativa que pode ser exercida ou não de acordo com o livre arbítrio, consubstancia, isso sim, o cumprimento de um dever imposto por lei. De fato, a atuação qualificadora que deixamos descrita não poderá o registrador omiti-la, sob pena de violação grave dos poderes/deveres que a lei lhe impõe. Por fim, como é evidente, o registrador não assume a função de um executor subordinado a ordens singulares superiores. Muito ao invés, tem de decidir o caso concreto com independência e imparcialidade, uma vez que, sendo a qualificação registral um juízo jurídico-prudencial, não há como dissociá-la da independência, pois não existe prudência sem liberdade7. Um saber e juízo jurídico-prudencial não é, de todo, compaginável com a ausência de liberdade ou independência, seja de ordem corporativa, política, econômica, etc.8 Os regis-

tradores, aquando da formulação do seu juízo, apenas estão sujeitos ao principio da legalidade. A função qualificadora, desempenhada pelo registrador português e brasileiro, é o meio indispensável para que o princípio da legalidade atue. De fato, através do exercício da função qualificadora, o registrador efetua uma “depuração” dos atos que é chamado a registrar, assegurando que o Registro não seja um mero arquivo de documentos, mas o “crivo” por onde só passam os atos que o ordenamento jurídico consente9. Em suma, um Registro seguro ou que garanta a segurança jurídica supõe uma união indissolúvel entre qualificação – independência e imparcialidade – e cumprimento do princípio da legalidade. O sistema registral português e brasileiro consagram o princípio da legalidade no seu sentido mais amplo, ou seja, como controle de legalidade de forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós, como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o Registro possa opor ao assento pretendido10 - tal como acontece no sistema registral alemão, suíço, austríaco,

5 Idem. 6 Ainda segundo RICARDO DIP, “(...) trata-se de um juízo, vale dizer, uma operação formalmente intelectiva que une ou separa os conceitos, tornados em relação às coisas mesmas que representam de modo reflexivo e abstrativo, mas de um juízo prudencial, ou seja: a) juízo que é propriamente da razão prática, não da especulativa; b) que se ordena a operações humanas singulares contingentes; c) e que, não dispensando atenta consideração dos princípios da sindérese e das conclusões da ciência moral, acaba, para além do conselho e do juízo dos meios achados, por imperar uma determina atuação.” (Vide RICARDO DIP, Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, disponível in: https://arisp.files.wordpress. com/2008/06/007-dip-qualificacao-registral.pdf, p. 12). 7 Neste sentido, vide, entre outros, RICARDO DIP, Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, disponível in: https://arisp.files.wordpress.com/2008/06/ 007-dip-qualificacao-registral.pdf, p. 20 e 21. 8 No ordenamento jurídico brasileiro tal é inequívoco, uma vez que segundo a Lei 8.935, de 18.11.1994, os notários e registradores são “profissionais do direito”, “dotados de fé pública” (cfr. art. art. 3º), que gozam “de independência no exercício de suas atribuições ” (cfr. art. 28). Em Portugal, onde o sistema de registro predial está a cargo de serviços públicos (as Conservatórias do Registro Predial) dependentes de um serviço central (Instituto dos Registros e do Notariado, IP) integrado na orgânica do Ministério da Justiça, sendo indiscutível a vinculação hierárquica do responsável pela feitura do registro perante o Presidente do Instituto dos Registros e do Notariado, também não subsistem dúvidas de que sendo o responsável pela feitura do registro organicamente funcionário da administração, substancialmente está encarregado de funções de valoração jurídica próprias de um árbitro imparcial, alheio ao assunto e não de um burocrata ao serviço da administração. De fato, no que diz respeito ao concreto juízo decisório do responsável pela feitura do registro, a relação de subalternidade funcional não existe. Ou seja, não existe qualquer dever de obediência hierárquica no momento em que o conservador/registrador tem de decidir sobre a admissibilidade do registro. Acresce que em caso algum é possível à administração anular ou revogar a inscrição registral. Por fim, qualquer decisão do Presidente dos Registros e do Notariado que julgue procedente um recurso hierárquico, negando, assim, razão ao conservador, não assume caráter vinculativo em futuros casos e, como veremos posteriormente, na hipótese de indeferimento do recurso hierárquico, havendo posterior impugnação judicial, a decisão impugnada é sempre a decisão inicial do conservador (art. 145º do Cód.Reg.Pred), nunca a decisão do Presidente dos Registros e do Notariado.

9 Em Portugal, o “julgamento” do conservador/registrador, no que diz respeito à validade dos fatos, só pode conduzir à recusa do registro quando seja manifesta a nulidade do ato (cfr. a al. d) do nº 1 do art. 69º do Cód.Reg.Pred. português). A regra quanto à anulabilidade e à ineficácia “em sentido estrito” é a de que as mesmas não constituem obstáculo ao ingresso definitivo no Registro. A exceção verifica-se quanto ao negócio anulável por falta de consentimento de terceiro ou de autorização judicial, antes de sanada a anulabilidade ou de caducado o direito de a arguir e quanto ao negócio jurídico celebrado por gestor ou procurador sem poderes suficientes, antes da ratificação, uma vez que nestas situações, como já referimos, o registro é feito como provisório por natureza (cfr. art. 92º, nº 1, al. e) e f), do Cód.Reg.Pred. português). 10 De acordo com este princípio, o conservador/registrador português deve pronunciar-se sobre a viabilidade do pedido de registro à luz das normas legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registros anteriormente lavrados. Devendo, para tal, apreciar: a identidade entre o prédio a que se refere o ato a registrar e a correspondente descrição; a legitimidade dos interessados; a regularidade formal dos títulos referentes aos atos a registrar; a validade dos atos contidos nesses títulos (cfr. art. 68º do Cód.Reg.Pred. português). Saliente-se que é o princípio da legalidade em sentido amplo e rigoroso que sustenta a consagração das presunções ilidíveis decorrentes do registro (cfr. art. 7º do Cód.Reg.Pred. português). São duas as presunções legais estabelecidas: - por um lado, presume-se que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular; - por outro lado, presume-se que o direito existe tal como o registro o revela; Por força destas presunções, o titular registral, por um lado, não carece de alegar e provar fatos demonstrativos da existência, validade e eficácia do direito registrado, nem fatos pertinentes à qualificação, conteúdo e amplitude do referido direito. E, por outro, não necessita de alegar e provar que tal direito lhe pertence. Refira-se que o ordenamento jurídico português - tal como os outros ordenamentos que consagram as supra referidas presunções - consagra, também, o princípio do trato sucessivo (cfr. o art. 34º, nº 4, do Cód.Reg.Pred. português), pois, como a lei estabelece que o registro faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito, não pode dispensar a intervenção deste para a realização de um registro posterior que colida com o seu. Mas, por seu turno, é a própria observância da continuidade das inscrições que reforça as presunções legais derivadas do registro e são estas que justificam a amplitude com que se encontra consagrado o princípio da legalidade em Portugal. De fato, se as referidas presunções não estivessem consagradas no sistema registral português, nada justificaria que o conservador/registrador controlasse a valia substancial dos títulos.

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espanhol, etc. e ao contrário do que ocorre no sistema holandês, francês, belga, italiano, luxemburguês, etc. onde o controle recai apenas sobre a valia formal dos títulos11. De fato, o juízo de apreciação, não se limita à análise formal ou tabular e abrange também a situação substantiva concreta. Por isso, a função de qualificação, arrancando indiscutivelmente de uma vertente ou de um plano tabular, depressa ultrapassa esta feição e emerge no plano substantivo. De fato, na sua missão, o registrador, para além de necessitar de interpretar o direito registral, também tem de interpretar preceitos de direito civil, de direito ambiental, de direito urbanístico, de direito tributário,

11 O princípio da legalidade em sentido amplo encontra-se consagrado no § 29 da GBO alemã, nos arts. 965, 966 e 976 do Código Civil suíço e no art. 24 do Regulamento sobre o Registro Imobiliário suíço, nos arts. 18º, 19º, 65º, 99º e 100º, todos da Ley Hipotecaria espanhola, nos §§ 26, 94 e 102 e ss. da GBG austríaca, nos arts. 26, 93, 94 e 102 e ss. do Nuovo Testo della Legge Generale sui Libri Fondiari vigente em certas zonas do território italiano, no art. 46 da Lei de 1 de Junho de 1924, reformada pela Lei nº 2002-306, vigente em Alsace e Moselle, etc. Na Holanda, onde a inscrição é constitutiva, o princípio da legalidade limita-se ao controlo da valia formal dos títulos (cfr. o art. 18, parágrafo 1 e art. 19, parágrafo 2 do Kadasterwet) e é essa a razão pela qual as presunções, referidas na nota anterior, não estão consagradas. Cumpre, no entanto, fazer referência a um mecanismo indireto mediante o qual o registrador holandês acaba por exercer um controle um pouco mais amplo: com a Lei Cadastral de 1991, o registrador não é apenas o encarregado do Registro público de bens imóveis; é, também, como prescreve o art. 16 do livro III do Código Civil, o responsável pelo Registro cadastral, regulado pelo art. 48 da Lei Cadastral. Esse Registro cadastral tem uma função eminentemente fiscal, não atribui direitos nem tem valor jurídico, serve apenas para arrecadar impostos. Mas, diferentemente do que ocorre no Registro público, cujas dúvidas do registrador somente podem dar lugar a uma advertência (cfr. art. 19, parágrafo 4 do Kadasterwet), no Registro cadastral, essas mesmas dúvidas levam o registrador, enquanto responsável pelo cadastro, a não efetuar a alteração cadastral, ou seja, a não modificar a titularidade. E na prática, segundo informam os Autores holandeses, ninguém contrata com um titular que não figure no Registro cadastral. Deste modo indireto, o registrador, nas suas vestes de responsável pelo cadastro, acabará por fazer respeitar o trato sucessivo e excluir os títulos de propriedade contraditórios. Porém, este mecanismo indireto é apenas aplicável quando em causa esteja um negócio jurídico que tenha por objeto o direito de propriedade, já não o sendo quando o objeto do negócio é qualquer um dos outros direitos reais. (cfr. HENDRIK PLOEGER/AART VAN VELTEN/JAAP ZEVENBERGEN, Real Property Law and Procedure in the European Union Report for the Netherlands, p. 14 e 15, disponível in: http://www.iue.it/LAW/ResearchTeaching/EuropeanPrivateLaw/ Projects/Real%20Property%20Law%20Project/TheNetherlands.PDF; Wim Lowman, The protection of land rights in the Netherlands, http://cinder.artisoftware.com/wp-content/uploads/file/DocumentosMoscu/The%20protection%20 of%20land%20rights%20in%20the%20Netherlands.pdf; ZEVENBERGEN, Registration of Property Rights, Notarius Internacional, 2003, 1–2, p. 135. Em França, na Bélgica, em Itália e no Luxemburgo o princípio da legalidade, também, apenas se encontra consagrado enquanto controle da valia formal do título (cfr., respectivamente, o art. 2452 do Código Civil francês e o art. 34 do Decreto de 4 de Janeiro de 1955; o art. 2199 do Código Civil belga e o art. 130 da Loi Hypothécaire belga; o art. 2674 do Código Civil italiano; o art. 2199 do Código Civil luxemburguês), e as presunções supra referidas, também, não se encontram consagradas (cfr. entre outros, GIOVANNI LIOTTA, Real Property Law Report – Italy, disponível in: http://www.iue.it/LAW/ResearchTeaching/EuropeanPrivateLaw/ Projects/Real%20Property%20Law%20Project/Italy.PDF; STÉPHANE GLOCK, Real Property Law Project – França, p. 22 e 23, disponível in: http://www.iue.it/ LAW/ResearchTeaching/EuropeanPrivateLaw/Projects/Real%20Property%20 Law%20Project/France.PDF; VALÉRIE WEYTS, Real Property Law Belgium – Draft Lawfort, 29 de Setembro de 2004, esp. p. 12 e 16, disponível in: http://www. iue.it/LAW/ResearchTeaching/EuropeanPrivateLaw/Projects/Real%20Property%20Law%20Project/Belgium.PDF.

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de direito administrativo, de direito penal, etc.12 Em resumo, através do exercício da função qualificadora o registrador português e brasileiro efetua uma “depuração” dos atos que é chamado a registrar, assegurando que o registro não seja um mero arquivo de documentos, mas o crivo por onde só passam os atos que o ordenamento jurídico consente. Em suma, qualificar é13, indiscutivelmente, o ato mais prestigioso de toda a atuação do conservador/ registrador do registro predial, Mas, como é evidente, a qualificação também é a sua tarefa mais “delicada e responsabilizante”14.

2. A qualificação registral em face do pedido de registro de uma ação ou de um procedimento judicial ou do pedido de registro de uma decisão proferida numa ação ou procedimento sujeito a registro Conforme estatui o art. 3º do Cód.Reg.Pred. português, estão sujeitos a registro: a) As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo an12 Mas, a função qualificadora está confinada às disposições legais aplicáveis ao caso que é submetido à qualificação do registrador, aos documentos apresentados que para tal lhe são apresentados e à situação tabular resultante dos registros anteriores àquele que é objeto do pedido (ou que deverá ser efectuado oficiosamente). Do que decorre, desde logo, a seguinte ilação: os documentos apresentados – a que se refere o art. 68º do Cód.Reg.Pred. português – são aqueles que foram carreados para o processo registral pelo interessado, e que visam titular o fato a inscrever e comprovar os demais requisitos exigidos por lei. Ou seja, o responsável pela feitura dos registros só tem que atender aos documentos apresentados pelo interessado no registro. Não tem que apreciar outros documentos que quem não seja interessado no registro pretenda juntar. Nem tem que apreciar outros documentos apresentados no cartório fora do contexto da realização, a requerimento ou oficiosamente, de um ato de registro. O princípio da legalidade apenas obriga o responsável pela feitura dos registros conservador/registrador a analisar «os registros anteriores» e não também «os títulos» que serviram de base a esses registros. Acresce que, no exercício da sua função qualificadora, o responsável pela feitura dos registros não pode apreciar fatos que chegaram ao seu conhecimento por outra via que não seja a da apresentação para registro (com exceção daqueles que a lei manda registrar oficiosamente), e, consequentemente, com base na valoração desses fatos, decidir-se pela recusa (entendida em sentido amplo) em lavrar o registro nos termos em que é pedido. Portanto, o responsável pela feitura dos registros não pode socorrer-se de fatos que são do seu conhecimento particular para fundamentar a qualificação de um ato de registro e nunca poderá qualificar com base no conhecimento pessoal que tenha da situação e tampouco poderá realizar um labor de indagação pessoal e extra-registral sobre o ato cuja inscrição se pretende. Por isso se pode afirmar, “quod non este in tabula et non este in instrumenta non est in mundo conservatoris”. 13 Sobre o sentido normativo-jurídico da questão da qualificação, vide PINTO BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença, Coimbra, 1994, pp. 332 e ss., nota 835. 14 Cfr. SEABRA LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 2ª ed., Coimbra, 2003, p. 175.


terior15, bem como as ações de impugnação pauliana; b) As ações que tenham por fim, principal ou acessório, a reforma, a declaração de nulidade ou a anulação de um registro ou do seu cancelamento; c) As decisões finais das ações referidas nas alíneas anteriores, logo que transitem em julgado: d) Os procedimentos que tenham por fim o decretamento do arresto e do arrolamento, bem como de quaisquer outras providências que afetem a livre disposição de bens; e) As providências decretadas nos procedimentos referidos na alínea anterior16. 15 O teor do art. 2º do Cód.Reg.Pred. português é o que de seguida se transcreve: “1 – Estão sujeitos a registo: a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão; b) Os factos jurídicos que determinem a constituição ou a modificação da propriedade horizontal e do direito de habitação periódica; c) Os factos jurídicos confirmativos de convenções anuláveis ou resolúveis que tenham por objeto os direitos mencionados na alínea a); d) As operações de transformação fundiária resultantes de loteamento, de estruturação de compropriedade e de reparcelamento, bem como as respetivas alterações; e) A mera posse; f) A promessa de alienação ou oneração, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, se lhes tiver sido atribuída eficácia real, bem como a cessão da posição contratual emergente desses factos; g) A cessão de bens aos credores; h) A hipoteca, a sua cessão ou modificação, a cessão do grau de prioridade do respetivo registo e a consignação de rendimentos; i) A transmissão de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos, quando importe transmissão de garantia; j) A afetação de imóveis ao caucionamento das reservas técnicas das companhias de seguros, bem como ao caucionamento da responsabilidade das entidades patronais; l) A locação financeira e as suas transmissões; m) O arrendamento por mais de seis anos e as suas transmissões ou sublocações, excetuado o arrendamento rural; n) A penhora e a declaração de insolvência; o) O penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos e quaisquer outros atos ou providências que incidam sobre os mesmos créditos; p) A apreensão em processo penal; q) A constituição do apanágio e as suas alterações; r) O ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação; s) O ónus de casa de renda limitada ou de renda económica sobre os prédios assim classificados; t) O ónus de pagamento das anuidades previstas nos casos de obras de fomento agrícola; u) A renúncia à indemnização, em caso de eventual expropriação, pelo aumento do valor resultante de obras realizadas em imóveis situados nas zonas marginais das estradas nacionais ou abrangidos por planos de melhoramentos municipais; v) Quaisquer outras restrições ao direito de propriedade, quaisquer outros encargos e quaisquer outros factos sujeitos por lei a registo; x) A concessão em bens do domínio público e as suas transmissões, quando sobre o direito concedido se pretenda registrar hipoteca; z) Os factos jurídicos que importem a extinção de direitos, ónus ou encargos registados; aa) O título constitutivo do empreendimento turístico e suas alterações. 2 - O disposto na alínea a) do número anterior não abrange a comunicabilidade de bens resultante do regime matrimonial.” 16 Desde 1 de Janeiro de 2009, o registro, em Portugal, passou a ser, em regra, obrigatório, de acordo com o art. 8º-A do Cód.Reg.Pred., introduzido pelo Dec.-Lei 116/2008, de 4 de Julho, entretanto alterado pelo Decreto-Lei nº 125/2013, de 30 de Agosto.

Consequentemente, o registro de uma ação ou de um procedimentos judicial e da decisão judicial proferida numa ação ou procedimento sujeito a registro não está imune ao poder/dever de qualificação do conservador/ registrador. Ponto é saber qual a dimensão ou amplitude desse poder/dever, perante o pedido de registro de uma ação, de um procedimento ou de uma decisão proferida numa ação ou procedimento sujeito a registro. E isto porque, em matéria de registro de ações e de procedimentos o conservador/registrador não é confrontado com um título cuja valia formal ou substancial possa ser apurada, mas com os pedidos formulados numa ação ou procedimento judicial17, no qual caberá ao juiz verificar os pressupostos processuais e apreciar a viabilidade da pretensão deduzida pelo autor. E, em matéria de registro de decisões judiciais, o conservador/registrador, estando perante um título, que pode padecer de invalidades formais ou substanciais, há de ter em conta as regras atinentes ao caso julgado, bem como o art. 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual, as decisões dos tribunais são De acordo com a redação atual do referido artigo, salvo o disposto no nº 3, devem promover o registro dos fatos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos ativos do fato sujeito a registro. Estão ainda obrigados a promover o registro: a) Os tribunais no que respeita às ações, decisões e outros procedimentos e providências judiciais; b) O Ministério Público quando, em processo de inventário, for adjudicado a incapaz ou ausente em parte incerta qualquer direito sobre imóveis; c) Os agentes de execução, ou o oficial de justiça que realize diligências próprias do agente de execução, quanto ao registro das penhoras, e os administradores judiciais, quanto ao registro da declaração de insolvência. Saliente-se que a obrigação de pedir o registro, cessa no caso de este se mostrar promovido por qualquer outra entidade que tenha legitimidade (cfr. nº 5 do art. 8º-B do Cód.Reg.Pred.). Por fim, de acordo com a alínea a) do art. 8º-A do Cód.Reg.Pred., excetuam-se do regime da obrigatoriedade do registro: i) Os fatos que devam ingressar provisoriamente por natureza, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 92º. Assim, o registro das ações; ii) A aquisição sem determinação de parte ou direito; iii) Os fatos que incidam sobre direitos de algum ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa; iv) As ações de impugnação pauliana e dos procedimentos mencionados na alínea d) do nº 1 do artigo 3º, isto é os que tenham por fim o decretamento do arresto e do arrolamento, bem como de quaisquer outras providências que afetem a livre disposição de bens; v) A constituição de hipoteca e o seu cancelamento, neste último caso se efetuado com base em documento de que conste o consentimento do credor; vi) A promessa de alienação ou oneração, os patos de preferência e a disposição testamentária de preferência, se lhes tiver sido atribuída eficácia real. vii) A providência cautelar, quando já tenha sido registrada a acção principal – sendo o procedimento cautelar um seu apenso, justifica-se a suspensão da obrigatoriedade do registro, pois estará já tutelado o direito do autor. 17 São os pedidos que devem ser especialmente mencionados no extrato da inscrição, de acordo com a alínea g) do nº 1 do art. 95º do Cód.Reg.Pred. português.

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obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades - donde, à primeira impressão, parece resultar que o não acatamento da decisão do tribunal traduzir-se-á em desobediência. Comecemos por analisar o referido poder/dever de qualificação do conservador/registrador no domínio do registro das ações e procedimentos judiciais, para depois o analisarmos a propósito do registro das decisões proferida numa ação ou procedimento sujeito a registro.

2.1. A qualificação registral em face do pedido de registro de uma ação ou procedimento judicial Em matéria de registro de ações18, cumpre antes de mais salientar que a registrabilidade do pedido formulado na ação não se determina pela natureza real do direito invocado como fundamento da pretensão do autor, mas antes pelos efeitos que, através da ação se visa produzir no conteúdo ou na titularidade de algum dos direitos taxativamente indicados no art. 2º – derivem eles de um direito real ou de um direito de crédito19. Ou seja, não é a natureza real do direito em que se funda a respectiva causa de pedir – tal como o direito processual qualifica as ações reais (cfr. art. 581º, nº 4, do Código de Processo Civil português) – que determina 18 No ordenamento jurídico português o registro da ação, que é lavrado como provisório por natureza (cfr. o art. 92.º, n.º 1, a), do Cód.RegPred. português), é um assento registral de vigência temporalmente limitada, que publica a pendência de um processo sobre uma situação jurídica registrada ou suscetível de ser registrada. Ou, como escreveu CATARINO NUNES, Código do Registro Predial, Anotado, p. 189 e 405, é um registro provisório do pedido formulado pelo autor contra o réu, cuja sorte depende do resultado da ação: se for julgada procedente, o registro converte-se em definitivo; caso improceda, o registro provisório é cancelado. 19 É o que sucederá, nomeadamente com os direitos do arrendatário, do preferente convencional e do promissário, que, segundo a melhor doutrina, têm natureza obrigacional.

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a sua registrabilidade. O que para este efeito releva é, antes, a realidade das pretensões deduzidas, isto é, dos efeitos substantivos que através da ação se pretende alcançar, no conteúdo ou na titularidade de algum dos direitos taxativamente definidos no art. 2o. 20 21 Porque assim é, o conservador/registrador, ao ajuizar da viabilidade do pedido de registro de uma ação ou procedimento, tem, desde logo, que apurar se a ação ou procedimento em causa é registrável. O que o obriga a dedicar redobrada e particular atenção à interpretação dos articulados – que não poderá circunscrever-se à pretensão expressa pelo autor, mas tem de abarcar necessariamente os próprios fundamentos – com o objetivo de definir correta e exatamente os pedidos formulados, 20 OLIVEIRA ASCENSÃO e PAULA COSTA E SILVA, ROA, p. 202 a 205, afirmam: “Enquanto o legislador processual entende ser real a acção cuja causa de pedir se funde num direito real, podendo ser também real a pretensão deduzida, em sede do Código do Registro Predial estará sujeita a registro a acção cujo efeito útil tenha interferência sobre a estrutura objectiva ou subjectiva de um direito real. Enquanto o Código de Processo Civil atende normalmente ao fundamento da acção, para a definir como real, o Código do Registro Predial apenas se ocupa com as repercussões que uma qualquer acção possa ter sobre os direitos sujeitos a registro. Deste modo, deverá ser registada, nos termos do artigo 3.º do Cód.Reg.Pred. português, toda a acção cuja procedência implique uma alteração do conteúdo ou da estrutura de um direito real, não relevando, para efeitos de aplicação deste preceito legal, que aquela alteração resulte de uma acção fundada num direito real ou num direito de crédito, portanto quer se trate de uma acção real, quer não. Só deste modo se obtém a finalidade do registro. Este visa tornar conhecida a situação jurídica das coisas, permitindo àquele que pretenda entrar em contacto com um direito real, cuja dinâmica se encontra sujeita a registro, conhecer a sua exacta dimensão”. “Assim, a afirmação de que todas as acções reais, mas só elas, estariam sujeitas a registro traduz uma ideia menos correcta e, mesmo, inexacta, quando tomadas aquelas na sua acepção processual (art. 498º, nº 4, do C.P.C. [ actual art. 581, nº 4]), e só poderia ganhar alguma aceitabilidade se interpretada, cum grano salis, no sentido de que tais acções se identificariam, antes, com aquelas que se mostrem susceptíveis de obter eficácia perante terceiros …” (cfr. Silva Pereira, Registro das Acções (Efeitos), p. 1, in http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/DOC070314-004. pdf.). A expressão entre parêntesis retos é nossa. 21 Segundo Catarino Nunes, Código do Registro Predial anotado, 1968, pág. 177 a 179, as ações que a lei submete a registro são: a) As ações reais, que apresentem as seguintes características: - preexistência de um direito real e seu reconhecimento; - violação desse direito, e restituição ao estado anterior. São nitidamente ações declarativas de condenação (art. 10º, nº 2º e nº 3º, b), do Código de Processo Civil português), uma vez que têm por fim exigir a prestação de uma coisa (ou de um fato), pressupondo (ou prevendo) a violação de um direito. É exemplo típico a ação de reivindicação (rei vindicatio), que tem por fim fazer reconhecer o direito de propriedade e restabelecer a situação anterior à violação. b) As ações constitutivas de um direito real. São ações nitidamente declarativas constitutivas, visto introduzirem uma alteração na ordem jurídica existente (art. 10º, nos 2 e 3, c), do Código de Processo Civil português). É o exemplo típico da ação de execução específica. c) As ações cujo objeto seja a apreciação da eficácia (em sentido lato) de atos ou negócios jurídicos produtores de efeitos reais de gozo ou de garantia ou com eficácia em face de terceiros, desde que os próprios atos ou negócios estejam sujeitos a registro, quer se trate de acções de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. São, por exemplo, as ações sobre nulidade ou anulabilidade, e as ações de preferência legal ou negocial. d) As ações que tenham por objeto atos ou negócios jurídicos respeitantes a arrendamento por mais de 6 anos. e) As ações da alínea b) do art. 3.


sob pena de, não o fazendo, poder criar situações de incerteza quanto ao objeto do registro, recusar o registro de ações ou procedimentos registráveis ou lavrar registro de um pedido insuscetível de ser registado, com todos os prejuízos que daí advirão para a segurança do comércio jurídico. De fato, os fundamentos da ação ou do procedimento e os respectivos pedidos têm de se relacionar de uma forma lógica e inteligível, pois, de outro modo, seria desnecessário juntar toda a petição inicial, bastando levar a registro uma simples cópia do próprio pedido22. Acresce que a viabilidade do pedido de registro implica, no domínio do registro das ações e procedimentos, como em geral, a verificação casuística, em face da situação tabular existente à data da apresentação do pedido do registro, das regras técnicas que têm necessariamente de ser observadas para a prossecução dos objetivos da segurança do comércio jurídico - pressupostos processuais do registro ou requisitos de acesso ao registro -, de entre as quais cumpre salientar aquelas que se prendem não só com o trato sucessivo na modalidade da continuidade das inscrições23 mas, também, 22 Nesta atividade interpretativa não podem restar quaisquer dúvidas sobre o sentido e alcance dos pedidos que devem ser levados a registro, uma vez que está em causa a certeza e a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. art. lº, Cód.Reg.Pred. português). Registrada a ação e os procedimentos, as tábuas devem publicitar com precisão os efeitos que, no plano do direito substantivo, serão produzidos caso o autor obtenha decisão que julgue procedentes os pedidos formulados e inscritos no registro, uma vez que, como foi salientado pelo Conselho Técnico dos Registros e do Notariado de Portugal, no parecer R.P. 23/98 DSJ-CT, BRN, nº 10/98, p. 11 e ss., “não faria sentido - e seria mesmo frustrante das expectativas tabulares abertas - que se lavrasse o registro de acção [ou de procedimento] sem qualquer motivo de impedimento, que já então existia e era cognoscível, para mais tarde se vir a revelar que afinal os efeitos do caso julgado não poderiam aceder ao registro por razões tabulares que se revelavam já à data do registro da acção.”. A expressão entre parêntesis retos é nossa. 23 Cfr. o art. 34º, nº 4, do Cód.Reg.Pred. português. O princípio do trato sucessivo, na segunda modalidade, existe no direito registral português desde 1864, e é um princípio formal que visa assegurar, ao nível tabular, a sequência dos fatos publicados, dando a devida tradução e cumprimento aos próprios princípios substantivos em que se enraíza a válida oneração e aquisição dos bens. De acordo com este princípio, o transmitente de hoje tem de ser o adquirente de ontem e o titular inscrito de hoje tem de ser o transmitente de amanhã. Enquanto pressuposto do processo registral que impõe a sequência linear e contínua dos fatos inscritos, o trato sucessivo é, de algum modo, o reflexo tabular da regra nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet que domina a aquisição derivada. Mas o princípio do trato sucessivo não se restringe à aquisição derivada, nem sequer se justifica como princípio de direito substantivo. O trato sucessivo vai buscar, antes, as suas raízes e os seus fundamentos ao princípio da prioridade do registro e às presunções que do registro derivam para o respectivo titular, às quais já nos referimos. Presunções ilidíveis, que asseguram, por um lado, que o direito inscrito, se existiu, ainda se conserva no seu titular, nas condições em que se encontra inscrito, e, por outro, que aquele que figura, ali, como titular, não o alienou, nem sobre ele constituiu encargos além dos que estiverem igualmente inscritos no registro. É que a proteção devida ao titular inscrito, em consequência das presunções supra referidas, conduz à inadmissibilidade de um registro não diretamente fundado na inscrição em seu nome. Daí que o trato sucessivo se assuma como um dos pressupostos basilares do processo registral, determinando a sua inobservância, em regra, a provisoriedade

com a identidade do prédio e a sua harmonização entre a matriz e o registro24. E toda esta atividade é exigida pela segurança do comércio jurídico imobiliário, garantindo que para as tábuas seja carreada, por forma clara e inequívoca, a situação jurídica dos prédios que a lei antevê para tanto necessária (cfr. art. 1º do Cód.Reg.Pred. português). Em resumo, o conservador/registrador pode e deve suscitar na qualificação do pedido de registro de uma ação ou de um procedimento as questões atinentes aos efeitos, em face de terceiros, que a decisão do pleito poderá produzir – sem o que não poderia sequer emitir juízo sobre a própria registrabilidade da ação ou do procedimento – e as razões tabulares que contrariem ou revelem alguma desconformidade com os pressupostos processuais da ação ou do procedimento. Assim, não obstante a verificação dos pressupostos processuais e a apreciação do mérito da causa competir exclusivamente ao tribunal, que há de tomar as necessárias decisões sobre as quais se formará caso julgado, logo que insuscetíveis de recurso ou de reclamação, nos termos do arts. 613 e ss. do Código de Processo Civil português, para então se tornarem imodificáveis e vinculativas (arts. 619º, 620º, 621º, 628º e 704º, todos, do Código de Processo Civil português), ao conservador/ registrador compete, por força da função qualificadora que a lei lhe comete, apreciar a viabilidade do pedido de qualquer ato de registro – e o registro das ações e dos procedimentos sujeitos a registro, como já o dissemos, não está imune a este procedimento – em face da legislação aplicável, dos documentos apresentados e dos registros anteriores. De fato, não se pode confundir o ajuizar do mérito da causa com o ajuizar da viabilidade do pedido de registro, e neste segundo plano, no ordenamento jurídico português, é indiscutível a competência do conservador/registrador. Trata-se de uma função relevantíssima que não pode ser menosprezada ou, sequer, subalternizada. O que, obviamente, contraria qualquer ideia de que a função do conservador/registrador se limita a inscrever automaticamente o pedido formulado na ação, tal como ele por dúvidas do registro (cfr. os arts. 69º, nº 2, e 70º do Cód.Reg.Pred. português) e constituindo a sua violação na realização do registro definitivo causa de nulidade deste (cfr. o art. 16º, al. e), do Cód.Reg.Pred. português). Mas a atual lei permite que tal registro possa vir a ser convalidado mediante a realização da inscrição intermédia em falta, quando for esse o caso e desde que não haja entretanto registro da ação de declaração de nulidade (cfr. o art. 121º, nº 4, do Cód.Reg.Pred. português). 24 Cfr. os arts. 28º a 33º e 79º a 86º do Cód.Reg.Pred. português.

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é formulado. Do que se deixa dito decorre, naturalmente, ser legítimo, constituindo mesmo um imperativo legal, que o conservador/registrador recuse o pedido de um registro de ação ou de um procedimento sempre que considere que o pedido formulado é insuscetível de ser publicitado pelo registro. Assim, por exemplo, é evidente que não pode ser lavrado o registro de uma ação de execução, o registro de uma ação onde se pretenda fazer valer um direito de crédito fora dos casos previstos no art. 2º do Código de Registro Predial ou o registro de uma ação tendente ao cancelamento de um registro onde não sejam impugnados os fatos jurídicos registrados25. Sendo lavrado o registro do pedido quando não está em causa um fato sujeito à publicidade registral, o referido registro é neutro, ou seja, não é inexistente, nem nulo, nem inexato. É neutro, nada vale, é completamente ineficaz26. E, como é evidente, o referido registro ineficaz não assegurará de nenhum modo os interesses visados com o registro de uma ação. O registro sendo ineficaz, não servirá para assegurar o interesse do autor da ação em garantir antecipadamente a oponibilidade a terceiros da providência ou providências que o tribunal vier eventualmente a decretar, ou em impedir que os referidos terceiros possam prevalecer-se de direitos que sobre a coisa venham a adquirir do réu (ou de outrem). E também não servirá os interesses dos “terceiros” - bem pelo contrário, pois, apesar de lhes dar conhecimento de que determinada coisa está a ser objeto de 25 De acordo com o art, 8º do Cód.Reg.Pred. português “a impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respectivo registo”, deste modo visa o legislador assegurar-se de que findarão os efeitos decorrentes do registro (nomeadamente as presunções) caso o fato jurídico registrado venha a ser declarado inexistente, nulo ou ineficaz, ou venha a ser anulado, garantindo, assim, a conformidade entre a realidade tabular e a extratabular. Em consonância, o legislador português também estatui, por respeito às presunções decorrentes do registro, que o cancelamento de uma inscrição registral só pode ocorrer com base na extinção dos direitos (…), em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou em execução de decisão judicial transitada em julgado (cfr. o art. 13º do Cód.Reg.Pred. português). Decisão essa que há de, obviamente, ser pronunciada numa ação onde os fatos registrados sejam impugnados, uma vez que os efeitos que o registro produz se mantêm até que seja proferida decisão, transitada em julgado, que ordene o seu cancelamento ou a sua retificação. Ou seja, assim como os fatos registrados não podem ser impugnados sem que em simultâneo se solicite o cancelamento do registro, também não podem ser cancelados os registros de fatos jurídicos que não tenham previamente sido impugnados de modo procedente, uma vez que só assim se respeitam as presunções decorrentes do registro. 26 Uma vez que, não obstante, nos termos do artigo 14º e seguintes do Código de Registro Predial português, as irregularidades e deficiências do registro serem qualificadas, conforme a sua gravidade, como inexistência (cfr. art. 14º do Cód. Reg.Pred.), nulidade (cfr. art. 16º do Cód.Reg.Pred.), ou inexactidão do registro (cfr. art. 18º do Cód.Reg.Pred.), ninguém nega a existência de registros ineficazes.

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um litígio, adverte-os indevidamente que devem abster-se de adquirir sobre ela direitos incompatíveis com o invocado pelo autor, fazendo-os eventualmente crer erroneamente que, se não se abstiverem de praticar tais atos, terão de suportar os efeitos da decisão que a tal respeito vier a ser proferida, mesmo que não intervenham no processo. Ou seja, teoricamente, um registro, por ser neutro ou ineficaz, não gera vantagens nem prejuízos, mas, na prática, constitui obviamente um escolho que entrava o comércio jurídico, com prejuízo para o Réu, para eventuais credores hipotecários e para o público em geral, que estará a ser mal informado e poderá ser levado a abster-se de celebrar negócios jurídicos por temer efeitos que nunca poderão produzir-se. Por outro lado, o conservador/registrador não poderá deixar de lavrar como provisório por dúvidas o registro de uma ação quando os pedidos, determinando embora a registrabilidade da ação, se mostrem, face às leis aplicáveis, insanavelmente contraditórios. Será o caso, por exemplo, de os autores pedirem, cumulativamente, a declaração de invalidade do contrato de compra e venda e a resolução desse contrato por incumprimento das obrigações a que por força dele ficou adstrita a contraparte. Em hipóteses como a apresentada, a feitura do registro definitivo não cumpriria a sua finalidade - a de garantir a segurança do comércio jurídico -, dado que a situação jurídica do imóvel definida nesse registro seria equívoca e perturbante, pelos efeitos contraditórios que passariam a ser publicitados. Nem se diga, para contrapor a esse entendimento, que não é o registro da ação mas o registro da decisão que nela vier a ser proferida a definir esses efeitos. Uma vez que, como justamente tem sido salientado, o registro provisório da ação é a antecâmara do registro da decisão, tornando os efeitos deste oponíveis a terceiros a partir da data do registro da ação27. Donde decorre que todos os motivos tabulares que se antevejam como oponíveis ao ingresso no registro da decisão devam ser invocados como impeditivos do registro da própria ação, que relativamente àquele é antecipativo e cautelar. Pois não faria sentido - para além de frustrar as expectativas tabulares geradas – que se lavrasse o registro de ação sem qualquer motivo de impedimento, para, mais tarde, se vir a revelar que afinal os efeitos do caso julgado não poderiam aceder ao 27 Cfr. os arts. 5º, 6º, nº 3, 101º, nº 2, b), e nº 4, do Cód.Reg.Pred. português.


registro, por razões tabulares que se revelavam já à data do registro da ação. Pelos mesmos motivos, também deve ser lavrado como provisório por dúvidas o registro de uma ação em que não sejam demandados todos os titulares inscritos, uma vez que, caso contrário, será violado o princípio do trato sucessivo, na segunda modalidade. Por exemplo, se A, titular de um direito de preferência legal, intentar uma ação de preferência contra B (o obrigado à preferência) e contra C (o adquirente), para preferir na compra de certo e determinado prédio, mas à data da propositura da ação já constar como titular registral D, pessoa a quem, entretanto, C alienou o prédio, o registro não pode deixar de ser lavrado como provisório por dúvidas - para além, claro está, de o ser como provisório por natureza -, na expectativa de que estas venham a ser removidas mediante a apresentação oportuna dos documentos comprovativos da intervenção (ulterior) do titular inscrito. Pois, se é verdade que não cabe ao conservador/ registrador pronunciar-se sobre a legitimidade ou ilegitimidade das partes, o que, obviamente, compete ao tribunal, também é verdade que lhe cabe a observância das regras do registro e designadamente do princípio formal do trato sucessivo. E não faria sentido, como inúmeras vezes foi afirmado pelo Conselho Consultivo dos Registros e do Notariado de Portugal, não ser suscitada a questão da violação do trato sucessivo aquando do registro provisório da ação, quando já neste momento ela é patente - e pode, eventualmente, ainda vir a ser ultrapassada - para, posteriormente, vir a ser recusada a conversão do registro da ação, com base na referida violação, quando seja proferida sentença final favorável ao pedido. Em resumo, ao registro predial não cabe dirimir conflitos, mas é seguramente sua função preveni-los. Repise-se que a atuação qualificadora que deixamos descrita não poderá o conservador/registrador omiti-la, sob pena de violação grave dos poderes/deveres que a lei lhe impõe.

isso, sempre que este não esteja comprovado nos documentos apresentados, que nessa parte estarão omissos, tal deficiência constituirá motivo para a recusa da conversão do registro da ação e para a provisoriedade por dúvidas da inscrição autônoma do registro da decisão28. E, sempre que daqueles documentos resulte, inequivocamente, que a decisão ainda não transitou em julgado, tal conduzirá à recusa do registro, uma vez que manifestamente não comprovam o fato sujeito a registro29. Como resulta do exposto, a força do caso julgado das decisões finais tem uma influência decisiva na qualificação dos atos de registro com elas relacionados. Mas, se apenas as decisões transitadas em julgado podem ser objeto de registro, e se estas, nos termos do art. 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades, como é que as mesmas podem ser objeto do controle de legalidade exercido pelo conservador/registrador? Como já o dissemos, todas as questões que incidam sobre o mérito da causa bem como aquelas que se relacionem com a verificação dos pressupostos processuais da ação, por serem da competência própria e exclusiva dos tribunais, são insindicáveis no âmbito do registro. Tal decorre, quer da força de caso julgado que tem a decisão judicial (artigo 619º, nº 1, do Código de Processo Civil), quer do monopólio da função jurisdicional, por parte dos tribunais, cujas decisões são obrigatórias para os conservadores/registradores. Por conseguinte, não é lícito ao conservador/registrador invocar a nulidade da sentença30 - caso esta não especifique os fundamentos de fato e de direito que justificam a decisão, ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão nem, ainda, quando o juiz tenha deixado de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou tenha conhecido questões de que não podia tomar conhecimento - para, assim, recusar a conversão do registro da ação recusar ou o registro da decisão final, na mesma medida em que não pode conhecer do mérito da decisão tomada.31 28 Cfr. os arts. 69º, nº 2, e 70º do Cód.Reg.Pred. português.

2.2. A qualificação registral em face do pedido de registro de uma decisão judicial proferida numa ação ou procedimento sujeito a registro É requisito de registrabilidade da decisão que esta tenha transitado em julgado, o que equivale a dizer que a sua registrabilidade se sustenta na força do caso julgado. Por

29 Cfr. o art. 69º, nº 1, al. b), do Cód.Reg.Pred. português. 30 As causas de nulidade da sentença estão previstas no nº 1 do art. 615º do Código de Processo Civil português. 31 Assim se, por exemplo, for proferida sentença que reconheça a aquisição originária de um prédio em virtude da invocação da usucapião e desse modo forem violadas as regras do urbanismo, o conservador/registrador nada poderá fazer.

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Mas se, por exemplo, a sentença não contiver a assinatura do juiz, será nula e tal nulidade é exclusivamente formal não contendendo, por isso, com o mérito da causa, podendo e devendo, consequentemente, o conservador/registrador recusar o correspondente registro32, enquanto a nulidade não for suprida, nos termos previstos no nº 2 do art. 615º do Código de Processo Civil. Acresce que, relativamente à vertente tabular, os poderes de qualificação do conservador/registrador são, em face das decisões judiciais, tendencialmente absolutos. A única diferença que aqui existe, em face dos títulos de natureza não judicial, verifica-se quando a questão tabular é ela própria a debatida no processo judicial. Assim, por exemplo, se a questão debatida na ação sujeita a registro é a da identidade do prédio o conservador/ registrador, obviamente, não poderá opor este motivo de natureza tabular. Mas, quando esse não seja o caso, sempre que em causa estejam normas básicas do sistema registral e a decisão do tribunal as contrarie, é evidente que o conservador/registrador há de intervir na defesa da legalidade tabular, sem que haja qualquer violação do caso julgado. Haverá, isso sim, obstáculo ao registro imposto pelas regras de acesso dele decorrentes, nomeadamente, dos princípios da prioridade, da exatidão do registro, do trato sucessivo, etc. Assim, não existirá ofensa do caso julgado na recusa da conversão quando, por exemplo, a intervenção do titular inscrito, apesar de provocada, não tiver sido admitida, sendo a decisão proferida em ação que correu contra outrem que não o titular inscrito, uma vez que a realização do registro implicaria, obviamente, violação do princípio do trato sucessivo e das presunções que o suportam. Também não haverá ofensa do caso julgado na recusa da conversão quando, no decurso da ação, tenha ficado provado que, afinal, o prédio objeto do direito feito valer pelo autor não é aquele sobre que incidiu o registro da ação33. Não tem legitimidade para recorrer da referida decisão e mesmo que a tivesse, regra geral, só a conhece após o seu trânsito em julgado e a decisão transitada em julgado só pode ser revista nas hipóteses previstas no art. 696º do Código de Processo Civil português. 32 Cfr. o art. 69º, nº 1, b), do Cód.Reg.Pred. português. 33 Neste sentido, vide SILVA PEREIRA, O princípio da legalidade, o registro das decisões finais e a força do caso julgado, p. 12, in http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/DOC070314-004.pdf.

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Vejamos mais duas hipóteses: a) O juiz ordena o registro de um arresto ou de uma penhora sobre um prédio cujo direito de propriedade está inscrito provisoriamente por natureza a favor de outra pessoa que não o executado. Na situação descrita o registro, de um arresto ou de uma penhora, não pode ser feito como definitivo, devendo ser feito provisoriamente por natureza34. b) Através de despacho o juiz solicita ao conservador/ registrador a realização oficiosa de um registro que por lei deve ser requisitado. Nesta hipótese, é evidente que o conservador/registrador há de formular um juízo de recusa, uma vez que, se lavrasse o referido registro, estaria a violar o princípio da instância, nos termos do qual o ato de registro tem de ser requerido pelo interessado com a respectiva legitimidade tabular35. Refira-se que o caso não é acadêmico, pois ocorria com alguma frequência, antes da reforma da ação executiva realizada em Portugal, em virtude do Dec.-Lei 38/2003, de 8 de Março, e dizia respeito ao cancelamento do registro de penhora sobre determinado imóvel. Cancelamento este que devia ser requerido pelo executado com base no despacho judicial transitado em julgado36.

2.3 Da sindicabilidade da decisão de recusa do registro de uma ação, de um procedimento ou de uma decisão judicial Admitindo a lei do registro que todas as decisões do conservador/registrador possam ser sindicadas judicialmente37, é incontestável que em sede de impugnação 34 Cfr. o artigo 92º, nº 2, alínea b), do Cód.Reg.Pred. português. 35 Salvo nos casos legalmente previstos de registro oficioso, o registro efetua-se a pedido dos interessados. Ou seja, o registro português é um serviço público, mas depende da atuação dos particulares, a quem cabe o impulso inicial (Cfr. art. 36º do Cód.Reg.Pred. português). As pessoas consideradas, por lei, como “interessadas” para requererem o registro são: o sujeito ativo ou passivo da relação jurídica e em geral todas as pessoas que nele tenham interesse - nomeadamente, para poder obter o registro do seu próprio fato aquisitivo – ou que estejam obrigadas à sua promoção. 36 Nos termos do cfr. art. 101º, nº 2, f), do Cód.Reg.Pred. português. 37 A decisão de recusa da prática do ato de registro nos termos requeridos pode ser impugnada mediante a interposição de recurso hierárquico para o Conselho Diretivo do Instituto dos Registros e do Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registro. (cfr. art. 140º do Cód.Reg.Pred. português). A interposição da impugnação judicial faz precludir o direito de interpor recurso hierárquico e equivale à desistência deste, quando já interposto. (cfr. o nº 3 do art. 141º do Cód.Reg.Pred. português).


judicial contra uma qualquer decisão do conservador/ registrador e quando esgotados todos os graus de recurso permitidos, este tem de acatar o resultado dessa decisão porque ela provém do órgão de soberania com competência para administrar a justiça e como tal se lhe impõe. Mas, uma coisa é o indiscutível cumprimento das decisões judiciais confirmadas pela última instância nos processos de recurso ou impugnação judicial. Neste caso, temos o mandado especificamente dirigido a resolver a controvérsia suscitada pela anterior decisão do conservador/registrador, isto é, temos o processo próprio de impugnação das suas decisões. Realidade distinta, é o pedido formulado numa ação ou procedimento ou o título de natureza judicial que é apresentado numa conservatória do registro predial para ser registrado nos termos determinados por um magistrado38. Tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registro ou a pessoa que por ele tenha sido representada (cfr. nº 4 do art. 141º do Cód.Reg.Pred. português). O recurso e a impugnação judicial têm de ser interpostos no prazo de 30 dias (cfr. nº 1 do art. 141º do Cód.Reg.Pred. português). Em ambos os casos, deve ser apresentada a respectiva petição no serviço de registro a que pertencia o funcionário que proferiu a decisão recorrida (cfr. nº 2 do art. 142º do Cód.Reg.Pred. português). Compete ao conservador/registrador, no prazo de dez dias, emitir despacho a sustentar ou a reparar a decisão (cfr. o nº 1 do art. 142-Aº do Cód.Reg.Pred. português). Sendo sustada a decisão, o processo deve ser remetido, no prazo de cinco dias, à entidade competente (cfr. o nº 3 do art. 142-Aº do Cód.Reg.Pred. português). O recurso hierárquico é decidido no prazo de 90 dias, pelo Presidente do Instituto dos Registros e do Notariado, I. P., que pode determinar que seja previamente ouvido o Conselho Técnico (cfr. o nº 1 do art. 144º do Cód.Reg.Pred. português). Quando haja de ser ouvido, o Conselho Técnico deve pronunciar-se no prazo máximo de 60 dias, incluído no prazo referido no número anterior. Sendo o recurso hierárquico deferido, deve ser dado cumprimento à decisão no próprio dia. (cfr. o nº 2 do art. 144º do Cód.Reg.Pred. português). Quando o recurso é hierárquico e é deferido, deve ser dado cumprimento à decisão no próprio dia (cfr. art. 144º, nº 4 do Cód.Reg.Pred. português). Ao invés, quando a decisão do Presidente indefira o recurso hierárquico, o interessado pode ainda impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registro inicial. Repetimos que a impugnação judicial, posterior ao recurso hierárquico é, também, interposta contra a decisão inicial do funcionário dos serviços do registro e não da decisão do Presidente do Instituto dos Registros e do Notariado. (cfr. art. 145º, nº 1 do Cód.Reg.Pred. português). A impugnação judicial é proposta mediante apresentação do requerimento no serviço de registro competente, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação da decisão que tiver julgado improcedente o recurso hierárquico. (cfr. art. 145º, nº 2 do Cód.Reg.Pred. português). Recebido em juízo e independentemente de despacho, o processo vai com vista ao Ministério Público, para emissão de parecer. (cfr. art. 1465º, nº 1 do Cód.Reg. Pred. português). Da sentença proferida podem sempre interpor recurso para a Relação, com efeito suspensivo, o impugnante, o conservador/registrador que sustenta, o Presidente do Instituto dos Registros e do Notariado e o Ministério Público. (cfr. o nº 1 do art. 147º, nº 1 do Cód.Reg.Pred. português). O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias a contar da data da notificação (cfr. o nº 3 do art. 147º, nº 1 do Cód.Reg.Pred. português). Nos casos previstos no nº 5 do art. 147º, do acórdão da Relação cabe, ainda, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. 38 Passamos a ilustrar o acabado de referir com um caso ocorrido em concreto. Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 67/96, de 31 de Maio, o artigo 3º do Código de Registro Predial português, depois de no seu nº 1 enunciar as ações que estavam sujeitas a registro, no nº 2 acrescentava que tais ações não teriam seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição e no nº 3 determinava que “sem prejuízo da impugnação do despacho do conservador, se o

registro for recusado com fundamento em que a acção a ele não está sujeita, a recusa faz cessar a suspensão da instância a que se refere o número anterior”. Na vigência do referido preceito legal, foi intentada uma ação junto do Tribunal Judicial de Coruche, assumindo este Tribunal o entendimento de que a referida ação estava sujeita a registro nos termos do art. 3º, nº 1, a), do Cód.Reg.Pred. Em consequência, foram convidados os autores para, no prazo de 15 dias, procederem à junção aos autos do comprovativo do registro da ação, sob expressa cominação de, não o fazendo, ser determinada a suspensão da instância (nº 2 do art. 3º do Cód. Reg. Pred.) Notificados de tal despacho, os autores requisitaram, junto da Conservatória do Registro Predial de Coruche, o registro da ação. Porém, o registro da ação foi recusado pela Senhora Conservadora, com fundamento na sua não sujeição a registro. Em face da letra do nº 3 do art. 3º do Cód.Reg.Pred., aparentemente, nada mais restaria ao juiz do que proceder à tramitação subsequente da ação, determinando a cessação da suspensão da instância (caso, naturalmente, já a tivesse declarado). Mas, o Tribunal de Coruche recusou-se a aplicar a referida a norma, invocando a sua inconstitucionalidade, com a fundamentação que, parcialmente, de seguida, se transceve: “Conforme dispõe o art. 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades». Ao convidar o autor a promover o registro da ação, o juiz (entendido em sentido amplo) não está naturalmente a dar uma ordem ao Conservador do Registro Predial (até porque não detém qualquer poder hierárquico sobre o mesmo). Contudo, tal convite feito ao autor significa que o juiz entende – e afirma – que determinada ação está sujeita a registro. Ao recusar o registro da ação com o fundamento de que mesma não está sujeita a registro, o Conservador do Registro Predial desautoriza o tribunal, pondo em causa a sua decisão. Por seu turno, o art. 3º, nº 3, do Cód. do Reg. Predial, ao dispor que tal despacho do Conservador faz cessar a suspensão da instância, mais não faz do que estabelecer que a decisão do Conservador do Registro Predial prevalece sobre a decisão do juiz. Ora, a ser assim, tal norma padece de inconstitucionalidade, pois viola diretamente o comando constitucional ínsito no art. 205º, nº 2, da CRP.” Consequentemente, o Tribunal de Coruche decidiu: “a) Recusar a aplicação da norma constante do art. 3º, nº 3, do Cód. do Registro Predial, com fundamento na sua inconstitucionalidade; b) Determinar a suspensão da instância (o que ainda não tinha determinado anteriormente), já que os autores, naturalmente não por culpa sua, não juntaram aos autos o comprovativo do registro da acção”. Em face desta decisão, o Representante do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial de Coruche, recorreu para o Tribunal Constitucional, pugnando pela constitucionalidade do nº 3 do art. 3º do Cód.Reg.Pred, argumentando em síntese: “1. A norma constante do artigo 3º, nº 3, do Código de Registro Predial, ao prescrever que a recusa do registro predial (...) faz cessar a suspensão da instância, sem que incida sobre o requerente o ónus de esgotamento de todos os meios impugnatórios possíveis, face a tal recusa de registro pelo conservador, não viola o princípio constitucional da prevalência das decisões judiciais sobre as administrativas.” 2. Na verdade, ao pronunciar-se liminarmente sobre a sujeição da causa à publicidade emergente do registro predial, o juiz não está a determinar ou ordenar a feitura de um acto de registro, no exercício da sua função jurisdicional, mas tão somente a convidar a parte a diligenciar por tal registro junto do órgão competente.” 3. Pelo que – se o conservador, a quem está cometida primacialmente a função de zelar pela legalidade em matéria de registro, considerar que o mesmo não tem cabimento – não se verifica uma situação de colisão ou conflito entre uma decisão judicial e administrativa, a solucionar pela necessária prevalência da primeira.” O Tribunal Constitucional, por seu turno, depois de afirmar o papel reconhecido ao registro das ações, além do mais, declarou: “Considerar que o art. 3º, nº 3, do Cód.Reg.Predial, ao dispor que o despacho do Conservador faz cessar a suspensão da instância e que, por isso, a decisão do Conservador do Registro Predial prevalece sobre a decisão do juiz, envolve um pré-juízo sobre os poderes do conservador para recusar uma inscrição registral quando a mesma seja apresentada na sequência de um convite a promover tal inscrição.” (...) Começando, então, pela consideração desse específico pré-juízo implicado na recusa de aplicação da norma sindicanda, cumpre mencionar que o nosso sistema registral se encontra construído sob a égide do princípio da legalidade – artigo 68º do C.R.Predial –, nos termos do qual, «compete ao conservador apreciar a viabilidade do pedido de registro, em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registros anteriores, verificando especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos dispositivos nele contidos», o que pressupõe, para o

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Portanto, o afirmado em nada contraria o anteriormente exposto sobre o cumprimento do princípio da legalidade em matéria de registro de ações, procedimentos ou decisões judiciais, porque não se pode confundir a atitude que o conservador/registrador há de assumir perante um pedido formulado numa ação ou num procedimento judicial ou, ainda, perante um título de natureza judicial que seja apresentado na conservatória para ser registrado, com o comportamento que o conservador/registrador tem de adotar perante uma decisão judicial que se traduza num mandado especificamente dirigido a resolver a controvérsia suscitada pela sua anterior decisão, depois

de ter corrido o processo próprio de impugnação39.

seu cabal cumprimento, o desenrolar de uma complexa função qualificadora direccionada a «comprovar a legalidade de forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós, como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o registro possa opor ao assento pretendido» (Mónica Jardim, cit., pp. 2-3).” (...) “Como é óbvio, o juízo de qualificação do conservador não é insindicável, podendo a questão tabular em causa ser objecto de sindicância hierárquica ou contenciosa. E, no que concerne especificamente ao controlo jurisdicional aberto por via do recurso contencioso da decisão do conservador, bem se compreenderá que a decisão que o tribunal venha a proferir na sequência desse processo tenha a força vinculativa própria das decisões jurisdicionais quanto à matéria registral em causa, a implicar o cumprimento de um dever de obediência ao julgado. No entanto, não se pode é «confundir a atitude que o conservador há-de assumir perante um pedido formulado numa acção judicial ou perante um título de natureza judicial que seja apresentado na conservatória para ser registado, com a atitude que o conservador há-de assumir perante uma decisão judicial que se traduza num mandado especificamente dirigido a resolver a controvérsia suscitada pela sua anterior decisão, depois de corrido o processo próprio de impugnação» (Mónica Jardim, cit., p. 17), pelo simples fato de, na primeira situação, não existir ato jurisdicional que, tendo como destinatário o conservador, ordene ou imponha a realização de determinado ato de registro. De resto, tendo presente tal diferença, bem se veria que a apreciação da viabilidade do pedido de registro e a decisão que sobre ele recaia não põe em crise a existência de qualquer decisão jurisdicional nem implica «subordinação de uma das entidades à outra, mas apenas o cumprimento das suas competências específicas» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Setembro de 2005, disponível in: www.dgsi.pt). Projectando esta realidade no caso dos autos, perante a inexistência de um título judicial próprio a impor, como res judicata, a realização do registro, e atenta a legitimidade da pronúncia do conservador sobre a legalidade dos pedidos que lhe são dirigidos, improcedem os fundamentos subjacentes ao juízo lavrado na decisão recorrida. Resta, portanto, concluir que a recusa de registro de uma acção cujo pedido tenha sido formulado, pelas partes, na sequência de promoção judicial não compromete as exigências de sentido firmadas na norma do artigo 205º, nº 2, da Constituição, não padecendo de inconstitucionalidade a norma do artigo 3º, nº 3, do C.R.Predial, enquanto autoriza o prosseguimento da lide em face da recusa de registro com o fundamento de que a acção a ele não se encontra sujeita” Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decidiu: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 3, do Código de Registro Predial, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 67/96, de 31 de Maio; e, consequentemente, b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de constitucionalidade. Sublinhe-se, no entanto, que apesar da claríssima decisão do Tribunal Constitucional que acabamos de apresentar (publicada em Julho de 2008 e que pode ser acedida in: http://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_main.php?ficha=2231&pagina=71&nid=8378), o Dec.-Lei 116/2008 – que alterou profundamente o Cód. Reg.Pred. português – revogou o nº 2 e o nº 3 do art. 3º do Cód.Reg.Pred. Por isso, atualmente, a instância não é suspensa quando não seja solicitado o registro da ação e, ainda, quando o conservador se recuse a lavrar o respectivo assento. Desta forma, o legislador pôs definitivamente fim a eventuais conflitos entre juízes e conservadores, a propósito do registro da ação, os quais apenas prejudicavam o autor da ação.

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39 A este propósito, vide o parecer do Conselho Técnico dos Registros e do Notariado de Portugal, proferido no Processo nº 56/96 R.P. 4, BRN, nº 1/97, p. 19, onde se pode ler: “o princípio da legalidade, com a atribuição ao conservador de um poder-dever de apreciar e decidir sobre a efectuação dos registros e o princípio do controlo judicial das decisões do conservador em sede de qualificação dos registros são dois princípios igualmente estruturantes do sistema registral português”, e “nenhum deles poderá, ou deverá ser postergado”.


cus restrum explignam, none providisci rem sitiis moditata quide laudantium apit et que nimpore mporectem que magnis maio. Xerovid estrupt urehent officia corporiam facepudiorro omniendi dolloria conempo rporernatem apelias et odiaerit abore eossit, temolup tatias sumquo entiore nitate nesernatus in re voluptatur, sa velici te lacestio doluptatem es mi, as dit aditet am, nam intet fuga. To volo elentio torere, cumet dolectur aut audandia si nihilitatem eatur? Quiderorio. Veniendam, qui doloritam fuga. Em. Edit, vellore pa volum que pror as ipsus quam, cullore repelignihit eost, omnihil iment occus, omnisi repuda nieniatum que nimporat hil il mos ium es eum is pariam suntem. At laut am que sus quiame expero blaborr orerspidem es est, consequod unt. Eptatiis rat ulparcia eum ut et alique di ut eos ut preribus, culles modit landae pro tempor aut fugitatus dolestrunt, quam aliquis velique res mint minctumqui conem in plab im nonsenis et omnisquis unt re volest assundent unt vellacc ullessint lis dolupta turempo restota tiasperum dolupiducid ma ipsuntur modis ditio consed quiscid est, ent laborum re posam simodic iisquidunt. Pudam, sum rae nobissendam, ut placepudi ipsam is est laccaturia estrum sus moluptament auditamus dolori occusciet asint re magnis atqui aut ent quaesci assunda as doluptate la conse ma volo doles simet, sus voluptis estia demquo millupt atinvenis dunt ommos am, vendita natiis dellis aliquod modit, et es demporem. Obitamus dolum eventor adis sinvele ssimus. Pelecus rero dolest, optibererit ut velesti utat andus quibus evercit hicabores sunt faccus, si te mo berae. Ut re dem alis aut rae. Itatus maio moluptatat volorpori optat. Ur, aboreptas asperia quas si omnient. Et et eium volo que omnim asi rest dolesti cus, volorec usapiduciet quoditis millis mo blatis eatium re volut volorem et laborior aliqui duciae. Olor sam exerchicab iditaque pre volor ab il ium inciis aut fugiasit lacid moloreni comnimaxim hilitium eum vel eos expe volupta tincidus doluptatist, vollabo. Sa nullabo ribusam nonsedi ium quis eliqui opta et la aut facesequi dit harum noneceatis doluptaecto dolupta speria nim cuptassum abore veratur aut fugit pe debit eatquasinis esequid quaes dolorro volore eatem fuga. Et voloria dellorehent lautae sita se omnia saperum est, optatem sus, voloreped que reptaspis ra doles denem iuntempore volorroviti quunt eatus es doloreperum rercieniti a doluptis dendunt isquia imet quia sumetur, simusam, con re noneces dempore icidem facero omnis atem sa perferia secea conseque que pre, eum quossitia autem. Ita doluptatur?Restia ad elibus pligent esequia doloribus et perorum esti alia nonsequi niscil ipic tem ventotatet ut ad moluptu repero evelenimo explab int acea prentet etur, am, officip saperat la porem necto maionsendus aut odigeni hicide la nulpa denistio. Optur autem facimol uptur? Ipid minimus ea que eici ad moluptassum sedipiet accus, cus BOLETIM 362

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Do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público – Lei nº 13.709/2018 136

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Proteção de dados pessoais é respeitar o titular dos dados. O titular dos dados é cada cidadão e nunca aquele que os recolhe facultativa ou compulsoriamente. Isso dentro de um conceito de publicidade registral e direito da personalidade.

Luís Paulo Aliende Ribeiro Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

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S

aúdo meus colegas do Curso Anual de Direito Registral para Registradores Ibero-americanos (CADRI), do qual participei em 2004, em Barcelona, na Espanha, e foi algo que realmente mudou minha percepção do registro imobiliário. Eu acredito que foi uma das melhores experiências que pude ter. Fiquei sabendo disso por conta do IRIB, por meio do Sérgio Jacomino. A minha participação desse encontro do Cadri foi fundamental para os trabalhos que eu já vinha desenvolvendo para a tese de doutorado. De uma forma ou de outra fico feliz de que tenha sido um dos tijolinhos que fez com que alguém pudesse se voltar para essa atividade tão interessante que é a atividade registral, e em especial a atividade registral imobiliária. O tema de hoje parece novo, mas não é: tratamento de dados pessoais, com enfoque no tratamento de dados pessoais pelo Poder Público, a partir da edição, no Brasil, da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Ao me preparar para esta conversa com vocês eu encontrei entre meus livros uma relíquia, o folheto que tratou do Encontro Internacional de São Paulo – Proteção de Dados, Novas Tecnologias e Direito à Privacidade dos Registros Públicos – nos dias 28 e 29 de setembro de 2005. Da palestra desse curso saiu o artigo publicado na RDI 59 que trata já de alguns dos temas relativos à diferença entre proteção de dados e proteção à intimidade. Eu trouxe alguns artigos da lei, para quem ainda não teve esse primeiro contato com relação ao tema que vamos tratar. Depois vou fazer algumas considerações, em especial, de dois pontos que me parecem fundamentais para a interpretação dessa lei, e para a interpretação de tudo que diga respeito à atuação do Poder Público. Eu esclareço que antes de passar pela experiência que tive na Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em 1998, fui lá recebido. Meu grande orientador foi o doutor Marcelo Berthe. Foi ali que eu comecei a aprender alguma coisa sobre registro imobiliário, antes mesmo do CADRI de 2004. Eu sou juiz de Direito Público da Vara da Fazenda Pública desde 1991. Depois de 2009, já no Tribunal como juiz-substituto de 2º grau, desembargador nas Câmaras de Direito Público. Esse tempo todo lidando com a venda pública e com o Poder Público faz com que eu tenha grande experiência e um medo enorme da Administração Pública. Eu confesso que, como magistrado e em contato há décadas com a atuação dos poderes públicos, entendo que precisamos

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realmente ter respeito e um certo receio no que diz respeito a abrir as portas para qualquer agente, qualquer pessoa que esteja no exercício efetivo ou temporário de determinada função pública. A questão é a seguinte. Nós temos que entender o significado da palavra função, que pode ser uma função do Estado – função executiva, função legislativa, função judicial; função de um cargo público. A determinado cargo público corresponde uma função, uma atividade. Será que eram essas as duas funções que o professor Celso Campilongo referiu ontem em sua palestra sobre a função social do registrador? É evidente que não. Ele estava falando de outro tipo de função. E mais adiante eu vou falar que tipo de função é essa que ele abordou ontem e que precisamos ter em mente ao interpretar a atividade do notário e do registrador. Minha tese abordou a regulação da função pública notarial e de registro. É essa a função que precisamos entender quando estivermos interpretando a LGPD.

Lei Geral de Proteção de Dados: um pequeno histórico A União Europeia já trata do assunto há algum tempo. Criada pouco antes para viabilizar a realização de negócios e a proteção dos cidadãos europeus, já em 1995 foi feita a primeira Diretiva de Proteção de Dados Pessoais. Desde essa época a Europa trata de maneira muito séria a questão da proteção de dados pessoais, diferentemente do Brasil, em que pouco se falava disso. Por isso reconhece-se a iniciativa e a maravilha que foi aquele nosso primeiro encontro em São Paulo, organizado pelo IRIB e pela Associação dos Advogados de São Paulo. Aquilo gerou alguma discussão, mas não sei se o conjunto dos juristas já estava pronto para recepcionar aquilo tudo. Talvez não, até porque aparentemente eu tenho me tornado um expositor quase que de tema único. Já fui chamado pela Anoreg, pelo IRIB, por várias entidades de notários e de registradores para falar sobre a questão da proteção de dados, em especial nessa fase de implantação do registro eletrônico. E volto aqui agora com uma novidade. Nós também já temos no Brasil essa legislação. Por que eu falo da União Europeia? Porque no histórico da nossa lei há o que aconteceu na Europa. É muito relevante. Não aquela Diretiva de 1995, mas a evolução daquilo tudo. Aquilo foi trabalhado, foi levado às Cortes Constitucionais. O direito à proteção


de dados foi reconhecido como direito fundamental, algo que merece a proteção constitucional das altas cortes europeias. E nós aqui não olhávamos para isso, até desconhecíamos. Na Europa já foi feita uma nova legislação, que é o Regulamento Geral de Proteção de Dados, RGPD, ou, em inglês, GDPR. Ele foi aprovado em maio de 2016, com vigência a partir de 25 de maio de 2018. A vigência do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu interferiu no mundo inteiro porque a utilização de dados por internet faz com que as pessoas interajam mundialmente, globalmente. Então essa nova regulamentação afetou usuários, empresas, pessoas no mundo inteiro.

Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil No Brasil havia um projeto de lei de 2012 (na Europa foi em 1995). Em 2012 aconteceu uma coisa interessante. Em São Paulo houve um congresso de publicitários e meios de comunicação. Eles se preocuparam com determinados ataques de ódio, ou bullying informatizado, que os meios de comunicação estavam sofrendo por conta do uso de dados. Um dos deputados presentes elaborou um projeto de lei, em 2012, e ofereceu para apreciação da Câmara. Outros projetos foram apresentados, alguns com questões mais de mercado, outros aparentemente de proteção de um grupo ou outro de cidadãos. Mas o Congresso não deu muita atenção para nada disso. De 1995 até 2018 passaram-se 23 anos com a coisa dormindo lá no Congresso. Em maio de 2018 entrou em vigor o novo Regulamento Europeu. Catalisador. Então, depois de 23 anos parada, em três meses, sem nenhuma modificação, foi aprovada no Senado, em 10 de junho de 2018, a nossa Lei Geral de Proteção de Dados, que nós recebemos assim de chofre. Sanção presidencial em 14 de agosto deste ano, vigência em dezoito meses. Então precisamos estar preparados para a nova lei. Quem dos senhores conhece essa lei? Quem já fez uma leitura aprofundada dela? Eu acredito que não seja a maioria. Mas vamos tratar de alguma coisa. E nós vamos ver que a lei não esqueceu de nenhum dos senhores. Não esqueceu de nós, da Administração, não esqueceu daqueles que exercem de modo privado a delegação do Poder Público, a atividade notarial e de registro.

Lei 13.709/2018: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Ou seja, é uma lei voltada para a proteção de direitos fundamentais da pessoa natural com relação à proteção dos dados pessoais. Essa lei tem um capítulo específico a respeito do tratamento dos dados pessoais pelo Poder Público. Ela se apresenta como mais rigorosa no tratamento de dados pessoais efetuado por pessoa privada, por pessoa física, por pessoa jurídica de direito privado. Mas, no seu artigo 4º, estabelece que certas condutas poderão ser praticadas pelo Poder Público na forma de itens específicos. E é sobre isso que o IRIB me convidou a falar, sobre esse ponto da lei que focaliza o tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. E é aqui que eu faço aquela advertência inicial. Art. 23. O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público referidas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público, desde que: Reparem no que eu destaquei no texto: “atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público”, uma expressão que precisa ser muito bem compreendida. Nós temos que saber exatamente o que é interesse público para fins de interpretação dessa legislação. O que é “interesse público”, cabe qualquer coisa nessa expressão. Interesse da Administração? Interesse do governante? Interesse de uma das secretarias que faz parte da Administração e do Poder Público? Ou interesse de cidadãos? Ou interesse de cada um de nós como integrantes da coletividade, uma parcela do BOLETIM 362

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interesse individual que, sendo interesse pessoal de cada um, é também interesse do todo? Temos que definir o que é interesse público. (...) desde que: I - sejam informadas as hipóteses em que, no exercício de suas competências, realizam o tratamento de dados pessoais, fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso, preferencialmente em seus sítios eletrônicos; Ou seja, o Poder Público, para que faça isso, tem que deixar muito claro nos seus sites eletrônicos, de preferência, para que ele está fazendo, o que ele está fazendo e como ele está fazendo. História da carochinha? Vamos pensar mais um pouco. II - (VETADO); e III - seja indicado um encarregado quando realizarem operações de tratamento de dados pessoais, nos termos do art. 39 desta Lei. E aqui fala uma outra coisa.

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mental, uma autoridade administrativa independente, que deveria fiscalizar, não existe ainda. É algo muito significativo, tendo em vista que na União Europeia existem as autoridades administrativas. Autoridade administrativa independente é o nome que o americano dá à agência reguladora, um jeito muito fácil de entender do que se trata. A questão é a seguinte. Nós não temos, para a proteção de dados, alguém com essa função para desempenhar. Embora a lei diga “isso aqui pode ser feito desde que informado à autoridade nacional”, não há para quem informar. Vejamos os outros artigos. § 2º O disposto nesta Lei não dispensa as pessoas jurídicas mencionadas no caput deste artigo de instituir as autoridades de que trata a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação). § 3º Os prazos e procedimentos para exercício dos direitos do titular perante o Poder Público observarão o disposto em legislação específica, em especial as disposições constantes da Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997 (Lei do Habeas Data), da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (Lei Geral do Processo Administrativo), e da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação)

§ 1º A autoridade nacional poderá dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento.

E aqui olha quem achamos no meio da lei: os senhores e as senhoras.

Abro já um parêntese. A lei, que foi aprovada daquele jeito, com todo aquele estudo de três meses no Senado previa uma autoridade nacional, uma agência reguladora, uma autarquia que iria fazer o controle, a fiscalização, a verificação, a avaliação do cumprimento dos requisitos e dos procedimentos previstos na lei. A autoridade nacional foi vetada quando da sanção presidencial, sob o argumento técnico de que implicava na criação de um novo ente administrativo, com aumento de despesa e que a criação de um ente administrativo com aumento de despesa era de iniciativa privativa do chefe do Executivo. E essa lei quem fez foi o deputado que tinha saído lá da reunião de publicitários. Então faltava esse requisito. Diz-se que viria logo uma iniciativa para sanar esse problema, que é algo muito sério. Por quê? Porque existe todo um regramento, existem exceções ao regramento protetivo do cidadão e aquele ente autárquico, governa-

§ 4º Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei.

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Ou seja, vão ser tratados como entidades do Poder Público. § 5º Os órgãos notariais e de registro devem fornecer acesso aos dados por meio eletrônico para a administração pública, tendo em vista as finalidades de que trata o caput deste artigo. Os notários e registradores estão sujeitos às regras dessa lei. Aqui vem um outro detalhe. Começamos a pensar em como vai se fazer isso tudo.


Art. 24. As empresas públicas e as sociedades de economia mista que atuam em regime de concorrência, sujeitas ao disposto no art. 173 da Constituição Federal, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito privado particulares, nos termos desta Lei. O que é o artigo 173 da Constituição Federal? É a economia de mercado. Empresas públicas e entidades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado que integram a administração indireta do Estado. São entidades privadas criadas pela administração pública, para atuar no exercício privado, mediante igualdade de condições com as entidades privadas. Parágrafo único. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, quando estiverem operacionalizando políticas públicas e no âmbito da execução delas, terão o mesmo tratamento dispensado aos órgãos e às entidades do Poder Público, nos termos deste Capítulo. Ou seja, entidades de direito privado criadas pela Administração Pública para exercer alguma função sem as amarras normais do regime jurídico de direito público – licitação e outras tantas coisas – quando estiverem operacionalizando políticas públicas e no âmbito da execução dessas políticas poderão ter o mesmo tratamento de Poder Público e poderão ter o acesso e o compartilhamento dos dados pessoais da mesma forma que o Poder Público e que aqueles que realmente estão exercendo uma função pública. Art. 26. O uso compartilhado de dados pessoais pelo Poder Público deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de proteção de dados pessoais elencados no art. 6º desta Lei. (grifo nosso) § 1º É vedado ao Poder Público transferir a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso, exceto: Aqui a lei não fala em entidades que, por estarem atuando em alguma prerrogativa de política pública, sejam equiparadas a entidades públicas. Não podem passar os dados pessoais.

Eu sou caipira. Lá no sítio represávamos alguma água e chamávamos, no interior de São Paulo, de açude, laguinho, represa. Para essa represa funcionar, precisava haver um cantinho em que a água escoasse e não deixasse a represa transbordar. Essa aguinha que escorria chama-se ladrão. É algo muito importante. Sem o ladrão a represa não funciona. Mas eu poderia dizer que a proteção de dados que está colocada aqui tem um ou dois ladrõezinhos muito interessantes, que precisamos respeitar e tomar cuidado com esses locais por onde a água dá uma escapadinha. § 1º É vedado ao Poder Público transferir a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso, exceto: I - em casos de execução descentralizada de atividade pública que exija a transferência, exclusivamente para esse fim específico e determinado, observado o disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação); II - (VETADO) Por quê? Nas razões de veto vem o seguinte. - O Ministério da Fazenda juntamente com o Banco Central do Brasil opinou pelo veto ao dispositivo a seguir transcrito: - Inciso II do § 1º do art. 26 - “II - quando houver previsão legal e a transferência for respaldada em contratos, convênios ou instrumentos congêneres;” Vamos ver o veto. Razões do veto “A redação do dispositivo exige que haja, cumulativamente, previsão legal e respaldo em contratos, convênios ou instrumentos congêneres para o compartilhamento de dados pessoais entre o Poder Público e entidades privadas. A cumulatividade da exigência estabelecida no dispositivo inviabiliza o funcionamento da Administração Pública, já que diversos procedimentos relativos à transferência de dados pessoais encontram-se detalhados em atos normativos infralegais1, a exemplo do pro1 Decreto é um ato normativo infralegal.

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cessamento da folha de pagamento dos servidores públicos em instituições financeiras privadas, a arrecadação de taxas e tributos e o pagamento de benefícios previdenciários e sociais, dentre outros.” Vetado esse dispositivo porque exigiria que houvesse lei permitindo a transferência dos dados. III - nos casos em que os dados forem acessíveis publicamente, observadas as disposições desta Lei. § 2º Os contratos e convênios de que trata o § 1º deste artigo deverão ser comunicados à autoridade nacional. (grifo nosso) Não existe autoridade nacional. Art. 27. A comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais de pessoa jurídica de direito público a pessoa de direito privado será informado à autoridade nacional e dependerá de consentimento do titular, exceto: Ou seja, as pessoas que vão ter os dados transferidos deveriam ter consentido com a transferência dos dados. Nesses 25 anos desde 1995 alguém foi perguntado ao transferir os dados ou ao depositar os dados em um acervo público, como o do Registro de Imóveis, se ele autorizava transferir os seus dados? Não. (...) exceto: I - nas hipóteses de dispensa de consentimento previstas nesta Lei; II - nos casos de uso compartilhado de dados, em que será dada publicidade nos termos do inciso I do caput do art. 23 desta Lei; ou III - nas exceções constantes do § 1º do art. 26 desta Lei. Art. 28. (VETADO). O que será que vetaram nesse artigo 28? Vamos ver? Ouvidos, os Ministérios da Fazenda, do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e da Transparência e Controladoria-Geral da União manifestaram-se pelo veto ao seguinte dispositivo: Art. 28. “Art. 28. A comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais entre órgãos e entidades de direito público será objeto de publicidade, nos termos do inciso I do caput do art. 23 desta Lei.”

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Razão do veto “A publicidade irrestrita da comunicação ou do uso compartilhado de dados pessoais entre órgãos e entidades de direito público2, imposta pelo dispositivo, pode tornar inviável o exercício regular de algumas ações públicas como as de fiscalização, controle e polícia administrativa.” Não enxerga quem não quer. Art. 29. A autoridade nacional poderá solicitar, a qualquer momento, às entidades do Poder Público, a realização de operações de tratamento de dados pessoais, informe específico sobre o âmbito e a natureza dos dados e demais detalhes do tratamento realizado e poderá emitir parecer técnico complementar para garantir o cumprimento desta Lei. Não existe autoridade nacional. Art. 30. A autoridade nacional poderá estabelecer normas complementares para as atividades de comunicação e de uso compartilhado de dados pessoais. Nós não temos autoridade nacional. Essa é a visão do tema que vocês me pediram para comentar. Eu vou voltar a 2005 com base naquilo que se pôde buscar na própria União Europeia. Eu estudei lá em 2004. Isso foi trabalhado num encontro em Barcelona. Tratamento é tudo O que é tratamento? É tudo. Tratamento “Qualquer operação ou conjunto de operações, efetuados ou não mediante procedimentos automatizados, e aplicados a dados pessoais, como a obtenção, registro, organização, conservação, elaboração ou modificação, extração, consulta, utilização, comunicação, difusão ou qualquer outra forma que facilite o acesso aos mesmos, cotejo ou interconexão, assim como seu bloqueio, supressão ou destruição”. Isso é tratamento. E está na nossa lei também.

2 Lembrem-se de que o conceito de ente de direito público foi bastante ampliado na própria lei.


Tratamento (Lei nº 13.709/2018, art. 5º, X) “Toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.” – Nelson Remolina Angarita, professor da Universidad de los Andes, na Colômbia Colocados esses pontos, vamos ver como interpretar a lei sobre o tratamento dos dados de cada pessoa.

Função e a ideia de dever O termo função se apresenta relacionado à ideia de dever, o que Celso Antônio Bandeira de Mello, ao tratar da função administrativa, descreve como obrigação de buscar no interesse de outrem a satisfação de certa finalidade que, em geral, num Estado de Direito, vem fixada na lei. A proteção ao meio ambiente, a proteção ao urbanismo, a proteção à propriedade são finalidades que devem ser satisfeitas por alguém que trabalha no interesse de outrem. Como ninguém é relógio, é evidente que essas pessoas podem atender a satisfação do interesse de outrem em seus próprios interesses. O registrador tem seus emolumentos, atendendo os interesses de outrem mediante a satisfação dos seus próprios interesses. Tudo normal, tudo correto. Só defende interesses de outrem quem também está atendendo os seus próprios interesses. A função social, a função econômica, a função pública de cada um de vocês é a de trabalhar bem no interesse de outrem, mesmo que esse outrem seja algo difuso, como a proteção ao meio ambiente, a proteção ao patrimônio histórico, artístico. Como falou Celso Campilongo, existe uma função, um interesse evidente e existe uma outra função oculta que vai aparecendo. O respeito às regras urbanísticas, por exemplo, atende os interesses da coletividade, às vezes até sendo contrários ao do próprio empreendedor, do incorporador ou do proprietário, que têm que atender a função social da propriedade, função-dever de atuar no interesse de outrem que molda e determina o próprio direito da propriedade no nosso ordenamento. Não é algo que vem depois. Ele já está na conformação do próprio direito de propriedade.

Interesse público é aquele que atende o interesse da coletividade Outro termo para se ter um cuidado específico é “interesse público”. Interesse público é uma coisa muito simples, e Bandeira de Mello também fala disso de forma muito relevante. Todos nós temos nossos interesses privados, alguns lícitos outros nem tanto, alguns morais outros nem tanto, mas são interesses, e que sejam todos respeitados. Mas dentre esses interesses todos e dentre os interesses lícitos e regulares, ao satisfazer algum interesse meu, eu posso estar também satisfazendo um interesse que é de todo mundo ao mesmo tempo. Eu fui convidado para vir aqui e tenho interesse em falar alguma coisa boa para vocês porque eu queria ser bem recebido. Mas existe o interesse coletivo de que eu não ocupe o tempo para falar só coisas do meu interesse e venha falar alguma coisa que seja útil para vocês. Isso não impede que essa parcela de interesse coletivo faça parte do meu interesse. Interesse público só existe quando ele atende o interesse da coletividade. Isso é interesse público. Não é aquilo que o mandante ou governante de plantão carimba como “interesse público”. Mas quem é que vai fiscalizar se está sendo atendido algum interesse público ou não? No caso dessa lei, ela previa uma autoridade administrativa independente para isso. Proteger dados pessoais é respeitar o titular dos dados Proteção de dados pessoais não é a questão antiga de direito à privacidade, direito à informação ou a colidência entre o direito de informar e de ser informado. Proteção de dados pessoais é respeitar o titular dos dados. O titular dos dados é cada cidadão e nunca aquele que os recolhe facultativa ou compulsoriamente. Isso dentro de um conceito de publicidade registral e direito da personalidade. Aquele encontro de 2005 destacou três coisas que se via na diretiva inicial da União Europeia: 1) os dados possuem valor econômico e é inquestionável o interesse do mercado em usar e trabalhar com tais dados, assim como sua livre circulação; 2) os dados integram o patrimônio dos indivíduos e não podem, sem ofensa a sua dignidade, lhes serem tomados. 3) os dados não podem ser apropriados pela Administração Pública para fins diversos daqueles consentidos pelos usuários dos registros públicos. BOLETIM 362

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Temos que lembrar que o Registro de Imóveis está na transição do meio físico para o eletrônico. E temos que preservar o sistema de registro de imóveis como ele existe no Brasil. O que são sistemas de registro de imóveis? São conjuntos normativos que em cada país regulam e organizam a propriedade de bens imóveis, do ângulo estrito do direito imobiliário, ou seja, em função do regime jurídico da publicidade imobiliária. É um mecanismo estruturado e vinculado por ideia de publicidade, consentimento e punibilidade. E é necessário para que os direitos reais adquiram eficácia erga omnes. O direito real para ter eficácia real exige uma contratação em duas fases. Uma dupla contratação ou contratos sucessivos: uma entre as partes que é a contratação ordinária em regra de direito privado; e com todos os outros. Primeiro eu faço um contrato, um instrumento de transmissão, e então eu tenho que contratar com todo mundo, ou seja, todos os titulares de direitos reais que possam ser afetados pelo primeiro contrato entre partes. Como não é possível ter no contrato a assinatura de cada um que eu não conheço, então eu vou reunir o consentimento de todos num determinado modo. No Brasil fazemos isso no Registro de Imóveis por meio da publicidade imobiliária. É a diferença que existe entre um registro de documentos e um registro de direitos. O que preservar no registro eletrônico O que tem que ser preservado no registro eletrônico, ou no Registro de Imóveis na forma eletrônica, é a função do registrador, o dever de trabalhar no interesse de outrem de que é incumbido o registrador imobiliário, esse profissional do direito encarregado da qualificação, de verificar direitos e obrigações que ingressam no sistema, fornecer informação segura dos direitos e ônus reais, diminuir as assimetrias informativas de modo seguro e módico. Benito Arruñada fala da importância da discussão sobre custos e benefícios de integrar a formalização contratual e administrativa no sentido de que a coexistência desses dois tipos de formalização traz dúvidas sobre como interagem, pois surgem economias e deseconomias quando se integram. A atividade registrária é uma formalização privada, mas cada vez mais o Registro de Imóveis está sendo chamado para a formalização de arquivos de cadastros públicos, para uma formalização pública, o que acontece quando ele presta informações e transfere dados para

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outros entes da própria Administração. Há alguns movimentos no sentido de fazer um cadastro múltiplo multifacetário. Só que os requisitos para a formalização contratual no Registro de Imóveis não são os mesmos requisitos de outros bancos de dados. Para o cadastro eu não preciso verificar o conteúdo dos direitos reais inscritos. Para o registro eu preciso de outras questões, então são dados que fazem pensar se a coexistência de dois tipos de formalização, e a forma como interagem, é boa ou não. Eu acredito que em regra o resultado vai ser ruim para o conjunto da obra. A pergunta é: qual o tipo de formalização que se deve priorizar? Em que medida devem se organizar independentemente? É uma pergunta que eu trago de volta para os senhores, embora fugindo um pouco do meu tema, mas trabalhando essa questão do registro eletrônico. O tempo do papel impresso já se foi. O registro não pode deixar de enfrentar essa realidade, muito se tem feito para a transição. Creio que se deve instituir uma premissa básica fundamental: o registro eletrônico não é um novo registro, mas o Registro de Imóveis que já existe, caracterizado como sistema de registro de direitos, que, de uma estruturação no meio físico, em papel, passará, sem a perda de seus requisitos e virtudes essenciais, para o meio eletrônico. A novidade deve limitar-se ao meio – do papel para o eletrônico –, sem desnaturar o sistema de registro de imóveis que vem sendo construído há décadas.


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Desjudicialização: avanços, desafios e novas demandas Em defesa da constitucionalidade do rito da Lei 9.514/1997: é seguro para as partes; é o que hoje dá sustentação ao Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e ao Sistema Financeiro Habitacional (SFH) graças à celeridade na cobrança das dívidas hipotecárias ou de alienação fiduciária relacionadas ao mercado financeiro.

Rafael Ricardo Gruber 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil da Pessoa Jurídica de São Caetano do Sul/SP

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u vou apresentar algumas situações para refletirmos sobre questões interessantes no que toca à judicialização. A ideia inicial era abordar a desjudicialização, sua natureza jurídica, as possibilidades, as limitações, o que pode ser desjudicializado e o que não pode. Mas no meio do estudo percebemos que um dos temas talvez merecesse uma atenção mais aprofundada, a questão relacionada a uma das coisas que foi desjudializada há 20 anos, no Registro de Imóveis, e que funciona muito bem, mas está em risco. Então vamos trabalhar sobre essas duas perspectivas, um pouco da questão teórica e um pouco sobre alguns procedimentos específicos.

Desjudicialização no Registro de Imóveis O que é desjudicialização? É o deslocamento de determinada atividade tipicamente judicial – relacionada à resolução ou prevenção de litígios ou de administração pública de interesses privados – para ser exercida fora do Poder Judiciário. Ou seja, não mais pelo juiz, permitindo a prática de atos por outros órgãos, autoridades ou pessoas especificadas em lei. Esse é um conceito inicial do que seja desjudicializar para que possamos ter uma ideia do que vamos trabalhar. Se olharmos hoje para o Registro de Imóveis e para o extrajudicial como um todo, vamos perceber que tivemos muitos avanços nas últimas décadas. No Registro de Imóveis, por exemplo, podemos mencionar nossa atuação na execução da alienação fiduciária da Lei 9.514/1997. Todos os registradores recebem uma quantidade razoável de solicitações para notificação do devedor, para que ele purgue a mora. E se não purgar a mora ocorre todo o procedimento, conforme a Lei 9.514, até se chegar ao leilão. E tudo isso acontece longe dos olhos do juiz. Só vai para o juiz se o interessado perceber alguma ilegalidade e entrar com ação contra o credor, podendo, se for o caso, conseguir alguma medida de urgência. Fora isso, toda a execução acontece extrajudicialmente. Parece-me que hoje essa é a principal atuação do Registro de Imóveis no que diz respeito à extrajudicialização ou desjudicialização. Nós percebemos como a desjudicialização avança de maneira progressiva e significativa. Podemos falar também da retificação extrajudicial, no Registro de Imóveis, 148

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autorizada pela Lei nº 10.931/2004, que alterou a Lei de Registros Públicos e permitiu ao registrador realizar determinadas alterações. Temos ainda as averbações premonitórias. Tivemos uma novidade com a alteração do Código de Processo Civil (CPC) de 1973. A reforma da Lei da Execução introduziu o então art. 615-A, que permitia que o credor, pela simples distribuição de uma ação executiva, levasse para o Registro de Imóveis a averbação de publicidade daquela situação. Também se trata de um ato de desjudicialização, porque não havia decisão judicial alguma que mandasse fazer, mas já se fazia. Hoje a dinâmica é parecida com o art. 828 do CPC, mas há um requisito adicional, a admissão da execução pelo magistrado. O magistrado não precisa mandar averbar nada, ele simplesmente admite a execução e se faz uma averbação. Não há uma decisão específica nesse sentido, então permanece uma situação de desjudicialização. A questão da legitimação da posse, da legitimação fundiária, também é muito importante. A hipoteca judiciária do CPC de 2015 embora tenha esse nome é extrajudicial, porque o juiz não manda mais constituir a hipoteca. Basta o credor de uma sentença condenatória – ainda que ela seja de interpelação com efeito suspensivo – requerer o registro de imóveis e o registro de hipoteca. Não há necessidade de ordem judicial para tanto, outro caso de desjudicialização. Temos dado os primeiros passos da usucapião extrajudicial, um tema muito debatido em outros encontros. Penso que vamos ter no futuro um importante papel também aí.

Desjudicialização em outras especialidades Para se ter uma ideia, 1,8 milhão de escrituras de inventário, divórcio ou separação já foram feitas no Brasil desde 2007. É um número bastante significativo, 1,8 milhão de processos a menos no Judiciário. Os inventários, por exemplo, foram resolvidos de maneira muito simples no extrajudicial. Registro de Nascimento Tardio no RCPN; Reconhecimento de filiação socioafetiva no RCPN; etc. O protesto de Certidão de Dívida Ativa (CDA) também trouxe impacto positivo. O registro de nascimento tardio, no Registro Civil das Pessoas Naturais, atribui até a nacionalidade sem que o juiz tenha que conhecer dessa situação.


Mais recentemente, o STF, também em ato de confiança na atividade do registrador civil, desjudicializou o reconhecimento da filiação socioafetiva. Mais do que isso, permitiu a mudança de sexo e do nome. Alguns dogmas do passado diziam que “não pode ser objeto de desjudicialização coisas que sejam direitos indisponíveis”. O direito de personalidade é indisponível. O nome é indisponível, e hoje se faz isso de maneira desjudicializada, mediante declaração do RCPN. Portanto, hoje, até o direito indisponível está sim sujeito à desjudicialização. Execução extrajudicial. Alienação fiduciária. Risco de retrocesso? Há um ponto que eu confesso que me preocupa. O Recurso Extraordinário 860.631/SP teve a repercussão geral reconhecida no STF. Recurso Extraordinário 860.631/SP. Ementa publicada em 01/02/2018: Recurso Extraordinário. Processual civil e constitucional. Sistema Financeiro Imobiliário. Execução extrajudicial. Alienação fiduciária de bem imóvel. Princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Direitos fundamentais à propriedade e à moradia. Questão relevante do ponto de vista jurídico, econômico e social. Repercussão geral reconhecida. (Ementa publicada em 01/02/2018) “Repercussão geral reconhecida.” Ou seja, o STF vai analisar se a Lei 9.514/1997 é constitucional ou não. O CASO NO STF – Parecer do Procurador-Geral da República: Opina pelo provimento do extraordinário. Destaca a inconstitucionalidade da Lei nº 9.514/1997, no que atribui prerrogativas de jurisdição contenciosa ao agente financeiro de habitação, possibilitando ao credor desempenhar, em causa própria, função jurisdicional contra particular. Sublinha a violação dos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Sugere o julgamento conjunto com o recurso extraordinário nº 627.106, no qual debatida a recepção do Decreto-Lei nº 70/1966 pela Constituição Federal.

A PGR entende que é inconstitucional notificar e consolidar nesses casos da Lei 9.514. O CASO NO STF – Alegações do devedor/recorrente: Alega que a execução extrajudicial no Sistema Financeiro Imobiliário, prevista pela Lei 9.514/1997, viola os princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição, da ampla defesa e do contraditório, na medida em que permite ao credor fiduciário a excussão do patrimônio do devedor sem a participação do Poder Judiciário e, consectariamente, sem a figura imparcial do juiz natural, o que se traduziria numa forma de autotutela, repudiada pelo Estado Democrático de Direito. Ou seja, o devedor alega simplesmente que não houve nenhum fato específico, que ele foi cobrado a mais, ou que a purgação da mora não foi notificada. Não é essa a questão. A questão é simplesmente ser inconstitucional o trâmite do processo no âmbito extrajudicial. Ele traz o princípio da inafastabilidade de jurisdição de ampla defesa e do contraditório como argumento para o STF conhecer do extraordinário. O TRF3, que julgou esse recurso antes de chegar ao STF, tinha feito algo que parece muito razoável. A conclusão era que o procedimento de execução do título com alienação fiduciária não ofende a ordem constitucional. Vamos ver a ementa: Julgamento do caso no TRF3; Apelação Cível 2009.61.04.012616-3/SP: PROCESSUAL CIVIL [...]- SFH - EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL - CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA - ARTIGO 38 DA LEI 9514/97 – [...] - O PROCEDIMENTO DE EXECUÇÃO DO TÍTULO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA NÃO OFENDE A ORDEM CONSTITUCIONAL. I - Cumpre consignar que o presente contrato possui cláusula de alienação fiduciária em garantia, na forma do artigo 38 da Lei nº 9.514/97, cujo regime de satisfação da obrigação difere dos mútuos firmados com garantia hipotecária, posto que na hipótese de descumprimento contratual e decorrido o prazo para a purgação da mora, ocasiona a consolidação da propriedade do imóvel em nome BOLETIM 362

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da credora fiduciária. II - Diante da especificidade da lei em comento, não há que se falar na aplicação das disposições do Decreto-Lei nº 70/66 neste particular. III - O procedimento de execução do mútuo com alienação fiduciária em garantia, não ofende a ordem constitucional vigente, sendo passível de apreciação pelo Poder Judiciário, caso o devedor assim considerar necessário. IV - In casu, verifica-se no registro de matrícula do imóvel (fls. 40/45), que o autor foi devidamente intimado para purgação da mora, todavia, o mesmo deixou de fazê-lo, razão pela qual a propriedade restou consolidada em favor da credora fiduciária. V - Agravo legal improvido. O Tribunal Regional Federal entendia que era constitucional, mas o STF recebeu para julgar. Uma situação que preocupa um pouco é que no Decreto-Lei nº 70/1966, relativo ao Sistema Financeiro da Habitação, não havia participação do Registro de Imóveis para notificar o devedor para que ele pudesse purgar a mora. Essa notificação era feita por um agente fiduciário. Se fosse do SFH era o próprio, na época, Banco Nacional da Habitação, que foi substituído pela Caixa Econômica. Se não fosse do SFH, poderia ser um outro banco, ou outro agente do mercado financeiro nacional. O rito era parecido, mas a autoridade não era o oficial de Registro de Imóveis, era um agente fiduciário. Ele notificava para pagar em 20 dias. Se não houvesse o pagamento, permitia-se o leilão de maneira também extrajudicial. Essa sistemática do Decreto-Lei nº 70/1966 já está em discussão no STF há mais tempo. Cinco ministros votaram a respeito da inconstitucionalidade ou não do rito do DL. Três ministros votaram pela inconstitucionalidade. Os ministros Luiz Fux, Carmen Lúcia e Ayres Britto entenderam que era inconstitucional esse regime. Dois votos diziam que era constitucional, dos ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. O ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos, em 2011, e até agora não devolveu. Por enquanto está 3 a 2 pela inconstitucionalidade do decreto. SITUAÇÃO DO RE 627.106, que trata sobre a execução extrajudicial do Decreto-Lei 70/1966: Após os votos dos Senhores Ministros Dias Toffoli

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(Relator) e Ricardo Lewandowski, negando provimento ao recurso extraordinário, e os votos dos Senhores Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto, provendo-o, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Ausente, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. Falaram, pela recorrida, o Dr. Natanel Lobão Cruz e, pela interessada, o Professor Arruda Alvim. Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso. Plenário, 18.08.2011. A última movimentação que tivemos nesse Recurso Extraordinário, que discute a Lei 9.514, foi o indeferimento de um pedido cautelar, feito pelo amicus curiae no processo, que pedia que o STF suspendesse todas as execuções extrajudiciais no Brasil enquanto não julgasse isso. O ministro Luiz Fux, que é o relator, não acolheu o pedido. Na mesma decisão ele deferiu para ingressar também como amicus curiae no processo a Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação, além da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip). Os bancos querem preservar a dinâmica da Lei 9.514. Última movimentação do RE 860,631, em 14/08/2018: “Ex positis, INDEFIRO o pedido de suspensão nacional dos processos judiciais em trâmite, a suspensão dos procedimentos de execução extrajudicial de imóveis alienados fiduciariamente com fundamento na Lei 9.514/1997 [...]. Por outro lado, DEFIRO a habilitação nos autos, na qualidade de amici curiae, da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação ABMH e da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança ABECIP, determinando, outrossim, que as suas intimações sejam realizadas, na imprensa oficial, em nome de seus respectivos patronos. À Secretaria para as providências de praxe”. Alguns incisos do art. 5º da Constituição estão no núcleo de possíveis fundamentos que impediriam qualquer desjudicialização: Análise do caso e de possíveis fundamentos que impediriam qualquer desjudicialização. CF, art. 5º: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (inafastabilidade da jurisdição) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (devido processo legal)


LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; Que coisa é essa, afinal, de inafastabilidade de jurisdição? “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Podemos fazer uma interpretação bastante rigorosa disso e dizer que nada pode ser feito extrajudicialmente, nem assinar um cheque. Se eu dou um cheque ao doutor Flauzilino, ele pode ir ao banco e descontar. Como descontar, se o juiz não falou que pode descontar? Podemos chegar a uma situação absurda de interpretação. Há que se encontrar a ponderação para interpretar esses princípios.

Acesso à Justiça ou inafastabilidade da jurisdição No que diz respeito ao princípio de acesso à justiça ou inafastabilidade da jurisdição, Cassio Scarpinella Bueno afirma que: “A compreensão de que nenhuma lei excluirá ameaça ou lesão a direito da apreciação do Poder Judiciário deve ser entendida no sentido de que qualquer forma de ‘pretensão’, isto é, de ‘afirmação do direito’ pode ser levada ao Poder Judiciário para solução. Uma vez provocado, o Estado-juiz tem o dever de fornecer àquele que bateu às suas portas uma resposta, mesmo que seja negativa, no sentido de que não há direito nenhum a ser tutelado, ou, bem menos do que isso, uma resposta que diga ao interessado que não há condições mínimas de saber se existe, ou não, direito a ser tutelado, isto é, que não há condições mínimas de exercício (...) [...] da própria função jurisdicional, o que poderá ocorrer por diversas razões, inclusive faltar o mínimo indispensável para o que a própria CF exige como devido processo legal.” “Se a CF impõe que a lei não retire do Poder Judiciário a apreciação de qualquer ameaça ou lesão a direito, não há como negar que qualquer lei – e, com maior vigor ainda, qualquer ato infralegal – que pretenda subtrair da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito é irremediavelmente inconstitucional.” Mas logo o doutrinador esclarece que: “O disposto também permite interpretação no

sentido de que o acesso ao Estado-juiz nele assegurado não impede, muito pelo contrário, que o Estado, inclusive o Judiciário, busque e incentive a busca de outros mecanismos de solução de conflitos, ainda que não jurisdicionais. Uma coisa é negar, o que é absolutamente correto, que nenhuma lesão ou ameaça a direito possa ser afastada do Poder Judiciário. Outra, absolutamente incorreta, é entender que somente o Judiciário e o exercício da função jurisdicional podem resolver conflitos, como se fosse esta uma competência exclusiva sua. É incorreta essa compreensão totalizante do Poder Judiciário.” Aqui a doutrina de um processualista tradicional que vai, portanto, mostrando a mitigação disso. Arruda Alvim tratando sobre jurisdição afirma: “O que se preconiza atualmente é que o Estado não é o único – e, algumas vezes, sequer é o mais adequado – ente vocacionado para esta função, que pode muito bem ser exercida por particulares, algumas vezes com resultados mais proveitosos do que aqueles obtidos no âmbito do Judiciário.” E prossegue Arruda Alvim afirmando que: “A propósito do ‘mito’ da indelegabilidade da jurisdição, Joel Dias Figueira Jr. assinala a importância de se refletir este princípio, que não pode ser erigido à condição de dogma, em detrimento dos objetivos da jurisdição e da interação entre os Estados”. Não é uma situação que pode ser interpretada de maneira absoluta. Tem que se fazer realmente uma mitigação dessas questões. A própria Constituição traz exceções, limitando, em algumas ocasiões, o direito de o Judiciário decidir.

Exceções ao direito de o Judiciário decidir Casos em que a Constituição ou Leis afastam a atuação – em partes – do Poder Judiciário para decidir o direito (mérito de forma heterônoma): - CF: Art. 217, § 1º: questões desportivas [Primeiro é preciso acionar a Justiça Desportiva para depois ir ao Judiciário]; - CF: Art. 52, I, competência do Senado para julgar [Presidente em crime de responsabilidade]; - CF: Art. 142, § 2º: limitação ao cabimento de HC [É caso das punições disciplinares, por exemplo. Não BOLETIM 362

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cabe à pessoa recorrer ao Judiciário com habeas corpus]; - Lei de arbitragem (Lei 9.307/96), art. 31: definitividade da sentença arbitral, confirmada pelo STF no SE 5.206/ES, em 12/12/2001. [A Lei de Arbitragem impede que as partes voltem a discutir no Judiciário o que foi decidido numa sentença arbitral.] Portanto, percebemos por alguns exemplos que esse princípio não é absoluto. A ideia da facilidade de jurisdição não pode ser levada a dogma.

Limitações/condições ao “direito de ação” no CPC No próprio Código de Processo Civil temos a questão do que é direito de ação: Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade. Art. 330. A petição inicial será indeferida quando: I - for inepta; II - a parte for manifestamente ilegítima; III - o autor carecer de interesse processual; IV - não atendidas as prescrições dos arts. 106 e 321. Ou seja, se a pessoa pôde pedir ao Judiciário, ainda que o Judiciário indefira por conta de petição inepta ou falta de interesse de agir, por exemplo, a prestação jurisdicional está feita. Não vai conhecer da causa, mas está feita a posição jurisdicional e isso já está consagrado no CPC há muito tempo. Percebemos que mais uma vez o próprio Código de Processo Civil, o de 2015, os anteriores, têm limitações claras às possibilidades de acesso à jurisdição também em relação aos requisitos. Rodolfo de Camargo Mancuso indica que múltiplos fatores criam uma crise numérica de processos no Poder Judiciário e que tanto aflige os juízes em todas as instâncias: [...]; (ii) uma leitura, que se diria ufanista e irrealista do disposto no art. 5º, XXXV, da CF/88, dele se extraindo mais do que nele se contém, a ponto de, praticamente, se desvirtuar o direito de ação em... “dever de ação”, assim fomentando a contenciosidade ao interno da coletividade; [...] (iv) a desigual e injusta distribuição dos ônus e encargos na judicialização das controvérsias.

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Ele diz que a desigual distribuição dos ônus e encargos da judicialização é um dos problemas que causa mais judicialização. O que ele quis dizer com isso? Vamos pensar que de cada 2824 títulos apresentados para protesto no Estado de São Paulo, nos últimos três anos, um único foi sustado judicialmente. Vamos pensar que a nossa lei inverta isso e estabeleça: “Vai protestar alguém? Protestar é sério. Protestar pode até levar uma empresa à falência, dependendo do contrato que ela tenha com o banco. Olha como isso é grave! Não vamos deixar protestar antes que o juiz diga que pode protestar.” Em vez de uma ação para sustar protesto a cada 2.800, teríamos 2.800 ações ajuizadas. É uma questão de lógica, de se perguntar onde parece estar o direito. Coloque o ônus de ajuizar para o outro lado. A presunção aqui é de que, às vezes, eu tenho uma duplicata, um título. Quem tem que ir na Justiça se não for verdade? O devedor. Então deixa fazer o protesto de maneira livre e quem não quiser que judicialize.

Interpretação extremista do “acesso à justiça” e “contraditório” Com a Constituição de 1988 surgiu a discussão se podia ainda existir uma execução de título extrajudicial. Uma das teorias dizia que: “Apesar de ter-se elaborado a execução de título executivo extrajudicial, cuja ação é de cognição sumária, o princípio do contraditório foi previsto na Constituição Federal de 1988 como uma garantia suprema, o que ocasionou a exclusão do contraditório diferido e do contraditório eventual, transformando, por consequência, em ‘ordinárias todas as demandas, pois sem liminares de mérito todas elas tornam-se ordinárias, dada a relação essencial entre ‘contraditório prévio e ordinariedade’”.1 Chega-se a uma interpretação caótica. Podemos dizer que não existe uma atitude executiva extrajudicial, porque o juiz não falou. Lógico, isso não foi acolhido, nunca foi e não vai ser. Mas percebemos o quanto isso pode ser importante. As duas faces do princípio do Acesso à Justiça (ou inafastabilidade da jurisdição):

1 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 112.


XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; No que diz respeito ao acesso à Justiça, além dessa questão do direito do devedor, existe também o outro lado, o direito do credor. Aliado à garantia formal de se postular a tutela jurisdicional, é necessário que haja o acesso a uma ordem jurídica justa, com proteção da confiança e concretização dos direitos subjetivos. É necessário, ainda, que a lei distribua adequadamente o ônus e encargo da judicialização das controvérsias.

Espécies de contraditório Em relação ao contraditório quanto ao tempo, a doutrina processual civil aceita de maneira tranquila que existe o contraditório prévio, contraditório diferido e contraditório eventual. O que é contraditório prévio? Alguém bateu no meu carro. Não sei quem foi, não sei quanto deu o prejuízo. Tenho que entrar com uma ação contra alguém para provar que foi ele o culpado, para provar quanto foi o débito. Eu não tenho título para isso, eu tenho que fazer uma ação ordinária e fazer todo um rito para constituir o crédito. O que é o contraditório diferido? Uma ação monitória, por exemplo. Temos um documento sem força executiva, ajuizamos uma monitória. O juiz fala “pague ou conteste”. Se contestar foi diferido o contraditório, houve uma decisão por pagar no início e depois se reformou. Também se fala em diferido quando existe antecipação de tutela. E o contraditório eventual? É uma execução de título executivo. A parte pode fazer embargos à execução, por exemplo. É uma outra ação que vai trazer o contraditório para dentro, ou permitir o cotejo de uma questão material daquela outra ação. Em várias situações nós temos o contraditório quanto ao tempo nessas três formas. E na nossa questão da Lei 9.514 pode-se falar de um contraditório diferido ou eventual. A pessoa notificada diz “eu não devo isso”. Não deve, mas há uma ordem de pagar, senão vai consolidar. O que ela tem que fazer? Usar do contraditório que tem direito, eventual ou diferido, e entrar na Justiça. Quanto à amplitude também tem uma questão: se o contraditório vai ser pleno e exauriente ou se vai ser mitigado (art. 525, § 1º, art. 544, art. 680 CPC, art. 32 c/c 33 da Lei 9.307/96). Há vários casos em que a própria

lei mitiga a amplitude do que vai ser feito. Ao falar em acesso à Justiça, falamos de um princípio, e todo princípio tem que ser mitigado, tem que ser ponderado com outros princípios que entram em colisão. De um lado pode existir o direito ao contraditório de ampla defesa que pode levar a uma interpretação. Por outro lado, também está no mesmo rol do art. 5º que a duração razoável do processo é outro princípio. Ponderação entre “princípio do contraditório e ampla defesa” versus “duração razoável do processo”: Constituição Federal, Art. 5º: [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. O credor também tem direito a um processo célere. Mitigando os dois princípios se percebe que é preciso tirar daí uma fórmula inteligente e lógica que distribua de maneira adequada a quem deve judicionalizar eventualmente alguma questão. O princípio do devido processo legal: CF, Art. 5º [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; Existe o devido processo legal no âmbito extrajudicial? É inequívoco que existe. No âmbito da Administração pública federal há uma lei específica para isso. E o cartório de Registro de Imóveis, ao notificar uma pessoa para purgar a mora, não segue um rito? Então está sendo observado o devido processo legal também numa situação extrajudicial.

Devido processo legal administrativo e contraditório assegurado ao devedor O devedor é pessoalmente notificado para purgar a mora, momento em que fica ciente da consequência de consolidação em caso de não pagamento. Ampla defesa Em caso de ilegalidade manifesta, o interessado pode BOLETIM 362

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reclamar ao Oficial de Registro e/ou ao Juiz Corregedor Permanente que faça as adequações necessárias. Ainda, pode exercer toda e qualquer defesa formal ou material em Juízo, e obter tutela de urgência, se for o caso.

(SFH). Se não houver segurança na cobrança célere das dívidas hipotecárias ou de alienação fiduciária relacionadas ao mercado financeiro, seguramente o spread bancário será maior.

Direito de ação do devedor O devedor pode, a qualquer momento que tenha qualquer direito violado ajuizar ação em face do credor para que o juiz impeça a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário. Mas a simples alegação de “inconstitucionalidade da notificação extrajudicial” não demonstra verdadeiro interesse de agir;

Questões críticas da Lei 9.514/97

Defesa da constitucionalidade do rito da Lei 9.514/1997 i) Trata-se de mecanismo para cobrança de uma dívida líquida e certa, que já estava previamente constituída e registrada no Registro de Imóveis, constituindo propriedade fiduciária ao credor, na forma da lei, e que a mora não purgada legalmente permite a consolidação; ii) diferentemente do DL 70/1966, na Lei 9.514/1997 a cobrança é realizada por meio do Oficial de Registro, e em vista do art. 236 da CF o devedor tem “dupla porta de acesso ao Judiciário”: uma perante o Juiz Corregedor (procedimento administrativo) e outra Jurisdicional. iii) há rígido controle de legalidade da cobrança, notificação do devedor, com prazo adequado para purgação da mora e/ou para exercício de todos os instrumentos de defesa; iv) há contraditório eventual, que é amplamente admitido no direito brasileiro e adequado no caso; v) não havendo purgação da mora pelo devedor no prazo legal, o credor consolida a propriedade, e é obrigado a levar o bem para a venda em leilão, entregando o saldo excedente para o devedor; vi) até a data do leilão o anterior devedor-fiduciante tem preferência na aquisição pelo preço da dívida e mais encargos; vii) o rito é protetivo para ambas as partes, e adequado para credor e devedor, e dá sustentação ao SFI e SFH; Além de ser seguro para as partes, esse rito é o que hoje dá sustentação para o nosso Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e para o Sistema Financeiro Habitacional

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Art. 27 [...] § 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. E se o lance for vil? Se o imóvel valer R$ 1 milhão e a dívida for de R$ 3 mil? Seria proporcional e constitucional a venda do bem por 3% do seu real valor de mercado? De acordo com a lei é possível essa venda por 3% do preço do imóvel. Eu acredito que isso possa ser inconstitucional, porque parece vil, e a lei não estabelece um preço que seria vil para o segundo leilão. É o preço da dívida, que pode ser muito pouco. Mas isso não tem nada a ver com o Registro de Imóveis, é uma questão paralela. Outra questão, como os registradores devem proceder na qualificação da notificação para purgação da mora em caso de alienação fiduciária para garantia de dívida de “limite de crédito”, “crédito rotativo” ou “garantia guarda-chuva”, expressamente autorizados pelos artigos 3º a 9º da Lei 13.476/2017? A Lei 13.476 autorizou a alienação fiduciária para crédito rotativo. Hoje o Código Civil estabelece que a propriedade em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X, que dispõe sobre hipoteca. Um artigo fala da hipoteca guarda-chuva, que é o crédito rotativo: Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código [...] Art. 1.487. A hipoteca pode ser constituída para garantia de dívida futura ou condicionada, desde que determinado o valor máximo do crédito a ser garantido. § 1 º Nos casos deste artigo, a execução da hipoteca dependerá de prévia e expressa concordância do


devedor quanto à verificação da condição, ou ao montante da dívida. § 2º Havendo divergência entre o credor e o devedor, caberá àquele fazer prova de seu crédito. Reconhecido este, o devedor responderá, inclusive, por perdas e danos, em razão da superveniente desvalorização do imóvel. O parágrafo primeiro exige a prévia concordância do devedor. Será que vou ter a prévia concordância do devedor? Como vamos qualificar essa situação do guarda-chuva, que tem juros, que entra conta corrente com juros sobre juros, com coisas mais complexas? Esse é um aspecto que me preocupa. Talvez isso possa ser não razoável. Eu não vou dizer inconstitucional, mas talvez isso seja não razoável e pode ser que por algum motivo não vingue. É muito novo, vamos ter que descobrir, mas preocupa. Outra questão crítica da Lei 9.514/1997: a indisponibilidade superveniente do patrimônio do devedor-fiduciante deveria impedir que o credor-fiduciário concretize a consolidação da propriedade em caso de mora? E como proceder em caso de pedido para notificação para purgação da mora, se o devedor-fiduciante teve indisponibilidade decretada (em data posterior ao registro da alienação fiduciária)? Em São Paulo, tivemos uma decisão da Corregedoria Geral da Justiça no final de 2017, publicada em 2018. Vamos ver como ficou a ementa: REGISTRO DE IMÓVEIS - Alienação fiduciária de bem imóvel - Consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário - Indisponibilidade judicial decretada, a impedir a averbação da consolidação da propriedade, por implicar disposição do bem - Necessidade de levantamento das ordens de indisponibilidade, pelos juízes de onde emanaram - Recurso desprovido - Parecer pelo desprovimento do recurso. CGJ/SP Processo 1038883-97.2017.8.26.0100, Julgado em 06/11/2017, DJE 23/01/2018, Des. Pereira Calças. O credor não pôde consolidar a propriedade. Não pôde seguir com a execução. Na decisão consta que: [...] Por fim, note-se que, diversamente do quanto

sustentado pelo recorrente, não se está afirmando haver qualquer mácula no negócio jurídico entabulado entre as partes, tampouco óbice à cobrança do crédito a que entenda fazer jus. A barreira está, unicamente, no registro ou na averbação, perante o Cartório de Registro Imobiliário, de qualquer ato de disponibilidade que recaia sobre o imóvel em comento. Na alienação fiduciária de bem móvel, o DL 911/1969 é expresso: Art. 7º-A. Não será aceito bloqueio judicial de bens constituídos por alienação fiduciária nos termos deste Decreto-Lei, sendo que, qualquer discussão sobre concursos de preferências deverá ser resolvida pelo valor da venda do bem, nos termos do art. 2º. Parece muito razoável. Mas não temos uma norma expressa nesse sentido no âmbito da Lei 9.514/1997. O CPC 2015 também parece andar no mesmo sentido quando indica, no art. 835, o que pode ser objeto de penhora. “XII - direitos aquisitivos derivados [...] de alienação fiduciária em garantia;” Ele não indica o bem sujeito à alienação, mas os direitos aquisitivos derivados da alienação fiduciária em garantia. Não é o bem, o que pode ser penhorado é o direito aquisitivo. E o direito aquisitivo sofre alguma mutação porque a pessoa teve uma atividade contra ela? Na verdade, o direito do banco é um direito real que está inscrito na matrícula com prioridade e antecedência. Será que ele pode ser mitigado?

Algumas questões a) A indisponibilidade pode recair sobre o bem inteiro ou deveria recair somente sobre “os direitos do devedor-fiduciante”? b) A interpretação atual – que impede a consolidação – não violaria a tutela do direito de propriedade (ou garantia real) do credor fiduciário, registrado antes da situação de indisponibilidade? BOLETIM 362

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c) Decretar a indisponibilidade dos direitos do credor fiduciário, que é titular de tal direito real na matrícula do imóvel, por decisão em processo judicial ou administrativo que ele não participou, não violaria o contraditório e o devido processo legal?

Desjudicialização Fechando essa situação da alienação fiduciária vamos tratar um pouco da teoria sobre a desjudicialização até para podermos pensar em novas perspectivas. Vamos ver um quadro resumo de um estudo, que pretendo publicar em breve, fazendo uma classificação para compreender melhor a natureza jurídica das coisas e as características que podem ser relevantes para a compreensão do próprio instituto.

Estudo de desjudicialização – classificação Quanto à imutabilidade

Com eficácia material X Com eficácia formal

Quanto à natureza do direito

Direitos patrimoniais X Direitos não patrimoniais

Quanto ao consentimento

Consensual expressa X Consensual tácita X Heterônoma

Quanto à autoridade

Extrajudicialização X Desjudicialização em sentido estrito

Quanto ao rito

Ex lege X Mediante procedimento especificado

Quanto à natureza da tutela

Acautelamento X Conhecimento X Execução

Vamos falar um pouco em classificar a desjudicialização. Quanto à imutabilidade, eu posso falar que existe desjudicialização com eficácia material e com eficácia formal. O que é isso? Uma desjudicialização com eficácia material: uma sentença arbitral, por exemplo, não pode ser rediscutida judicialmente. Portanto, ela é uma desjudicialização que tem eficácia material. Ela faz como se fosse coisa julgada. A desjudicialização que tem eficácia formal não está sujeita à imutabilidade. A retificação extrajudicial do art. 214/LRP tem previsão expressa no sentido de que

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o ato praticado extrajudicialmente não impede que as partes possam fazer a devida ação judicial, se quiserem. Portanto, ainda que se trate de uma retificação extrajudicial no cartório pelo art. 213/LRP, inciso II, ainda estamos falando de uma situação com eficácia formal, porque alguma parte prejudicada pode amanhã ingressar em juízo. Voltando à alienação fiduciária, existe eficácia material a respeito da consolidação “decidida” no Registro de Imóveis? Não tem eficácia material. Se a pessoa amanhã provar que decorreu de uma fraude do banco, a ação judicial pode perfeitamente desconstituir aquilo. É importante entender a questão de eficácia formal e material. Por exemplo, uma criança de 10 anos pode ser reconhecida filho de outra pessoa sem concordar. Ela não concorda. Olha como isso é sério. Direito indisponível, personalidade, filiação. O Código Civil fala que o pai pode reconhecer. O pai socioafetivo também pode. Mas o Código Civil dispõe o seguinte: depois da maioridade, a pessoa tem quatro anos para entrar em juízo. Nesse caso tem eficácia material? Não absoluta, porque aquele que foi reconhecido pode buscar o reconhecimento de que aquilo não era verdade. É um caso de desjudicialização? Claro que sim. Pode reconhecer extrajudicialmente o filho? Pode, mas está sujeito à mutabilidade superveniente conforme o caso. Eu já mencionei alguns exemplos de direitos não patrimoniais, o que é outro dogma. O que é direito não patrimonial, não disponível, não pode ser? Pode sim. Quanto ao consentimento, existe caso de desjudicialização que é consensual e expressa, existe caso que é consensual tácita. Existe o caso que é heterônoma. Consensual expressa no âmbito do Registro de Imóveis, por exemplo. A usucapião antes da Lei 13.465/2017 exigia consentimento expresso. Acontece isso também na lei do inventário, o tabelião só pode lavrar com o consentimento de todos os envolvidos. Consensual tácita, o que é isso? Uma situação que está desjudicializada e que o silêncio presume concordância. É a usucapião atual. Notifica-se, não houve manifestação, presume-se que há concordância e o processo segue. Tem também a situação heterônoma. Talvez uma das principais seja aquela tratada aqui no início: consolidação da alienação fiduciária. Ainda que o devedor não queira a consolidação, por exemplo, ele não pode fazer nada. Se houve algum vício no processo, se a notificação foi entregue em endereço diferente ou o edital estava errado, tudo isso vai ser reconhecido no próprio cartório


e vai se resolver. Mas, se não houve vício no processo, ainda que seja contra a vontade do devedor o cartório vai fazer a consolidação. O mesmo acontece no protesto. É heterônoma, é contra a vontade da parte que tem a relação. Da mesma forma, existe desjudicialização heterônoma. Quanto à autoridade, há uma situação interessante como doutrina dos tabeliães e registradores que criaram a diferença entre extrajudicialização ou desjudicialização em sentido estrito. A extrajudicialização seria uma situação em que o judicial é levado para o extrajudicial do art. 236/LRP, ou seja, não seria exatamente uma total desjudicialização porque continua o controle do judicial. Uma desjudicialização em sentido estrito seria uma situação em que o extrajudicial não participa. É uma situação que pode ser feita perante um advogado ou perante qualquer pessoa. Portanto, quando é um caso de extrajudicialização tem-se mais segurança, porque as partes estão perante uma pessoa com fé pública e uma autoridade que tem conhecimento jurídico, que pode realmente dar segurança para as partes. Parece que a transação é muito mais segura para as partes do que em caso de desjudicialização em sentido estrito. Quanto ao rito, podemos dizer que temos desjudicialização ex lege. O novo CPC estabeleceu que uma certidão de débito de emolumentos é título executivo extrajudicial. A lei dispensou a fase de conhecimento judicial. Da mesma forma fez com os débitos condominiais. Antes havia a ação de cobrança, de conhecimento,

Tempo de tramitação na Justiça Comum

e agora não se faz mais. A lei atribuiu eficácia executiva àqueles títulos. E quanto à natureza da tutela também se pode dizer que existe uma situação de acautelamento, uma situação de conhecimento, ou uma situação de execução. Acautelamento, averbações premonitórias, por exemplo. Em conhecimento está a situação própria da usucapião e em execução está aqui a nossa situação da Lei 9.514, por exemplo. E não é só a Lei 9.514 que tem execução extrajudicial. Além dessa lei, que corre no juízo de imóveis, tem também a execução extrajudicial da Lei 6.766, do loteamento. Há ainda a situação de execução extrajudicial particular. O Código Civil permite que o credor pignoratício, se tiver cláusula contratual admitindo, venda a coisa, entregue para o devedor o que sobra, se sobrar. Está no Código Civil. Nunca se falou que isso é inconstitucional. É caso de autotutela. Não tem autoridade nenhuma. Existem vários casos de execução extrajudicial além desse. Em relação a novas demandas, observando o cenário do que pode ser a natureza jurídica da desjudicialização vamos perceber o seguinte. Ao contrário do que foi alegado nessa discussão do STF analisada, que põe em risco um bem-sucedido caso de extrajudicialização da execução, o relatório do CNJ Justiça em Números, bem como a Lei 13.606/2018 parecem apontar para caminho diverso: a necessidade de mais desjudicialização de atos de execução de quantia certa contra devedor solvente.

Tempo de tramitação na Justiça Federal 2o grau 2 anos e 9 meses

2o grau 11 meses Execução judicial 1o grau 3 anos e 10 meses Conhecimento 1o grau 3 anos e 7 meses

Execução judicial 1o grau 5 anos e 4 meses Execução Extrajudicial 1o grau 7 anos e 9 meses

Fiscal 8 anos e 5 meses

Não fiscal 4 anos e 11 meses

Conhecimento 1o grau 3 anos e 8 meses

Execução Extrajudicial 1o grau 6 anos e 9 meses

Fiscal 6 anos e 11 meses

Não fiscal 4 anos e 10 meses

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XLV ENCONTRO DOS OFICIAIS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DO BRASIL – FLORIANÓPOLIS/SC

Eu fiz um print do próprio relatório do CNJ em números divulgado no mês passado. Um processo de execução extrajudicial em primeiro grau leva em média 7 anos e 9 meses. Esse é o tempo médio de uma execução extrajudicial. Quando a execução é fiscal, a média é de 8 anos e 5 meses. Quando a execução é extrajudicial não fiscal, a média é de 4 anos e 11 meses. Na Justiça Federal é um pouco mais rápido, o prazo médio é de 6 anos e 9 meses. Realmente é uma situação bastante séria. O Relatório CNJ Justiça em Números diz: “Historicamente as execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. O executivo fiscal chega a juízo depois que as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustraram na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas antigas e, por consequência, com menor probabilidade de recuperação.” Sabemos que a execução fiscal realmente tem um volume imenso, uma situação que causa transtorno sério. As execuções não fiscais também causam o mesmo transtorno. E ainda permanece a ideia de concentrar tudo no Judiciário.

Medidas de desjudicialização MEDIDAS DE DESJUDICIALIZAÇÃO NA EXECUÇÃO FISCAL (Lei 13.606/2018, que altera a Lei 10.522/2002) Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados [...] § 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá: I - comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis. 158

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A verdade é que se fosse mais rápido seria mais eficiente, recuperaria mais crédito, o tributo seria mais justo. A Receita Federal tentou, nessa Lei 13.606/2018, um caminho, ainda não implementado, prevendo que a própria PGFN – por enquanto a prerrogativa é só da Fazenda Nacional – poderia averbar a CDA diretamente no Registro de Imóveis, sem ordem judicial. Começa aqui um caminho para se encontrar bens do devedor, eliminando a necessidade de um despacho judicial pró forma. O inciso II, sobre tornar os bens indisponíveis, realmente é inconstitucional. Isso é um absurdo. Mas parece muito razoável que a Fazenda Nacional possa fazer essa averbação, encontrar bens e já começar a dar publicidade para terceiros de boa-fé também. Isso faz parte do caminho da eficiência na gestão. Eu trouxe alguns casos de outros países.

Execuções fiscais no Direito Comparado França: as causas fiscais são analisadas pela jurisdição administrativa, sendo insindicáveis pela jurisdição judiciária. No caso da execução fiscal (contentieux du recouvrement forcé) a Administração Fiscal não é um credor ordinário, pois o ato de imposição fiscal é autoexecutório. Alemanha: Na Alemanha, o processo de execução fiscal (Vollstreckung) é também inteiramente administrativo, procedendo-se no âmbito da administração tributária dos Estados ou da União. A defesa do contribuinte está baseada no sistema denominado dupla correção, segundo o qual é possível a defesa tanto no âmbito administrativo quanto no âmbito judicial. Estados Unidos: Nos EUA, a execução fiscal se dá, via de regra, pela via administrativa (tax collection procedure). O fisco norte-americano – IRS –, no âmbito federal) somente recorre à via judicial na hipótese de concurso de credores. México: No México, a execução fiscal tem natureza administrativa, desnecessária a intervenção judicial para a penhora de bens e até mesmo para sua alienação. A defesa do contribuinte pode se dar perante as próprias autoridades fiscais, mediante impugnação, e perante ações dirigidas à justiça administrativa mexicana. Chile: O Código Tributário do Chile prevê um sistema de cobrança semijudicial. O agente fiscal encarregado dispõe de competência até para efetivar penhora em dinheiro ou bens. A judicialização ocorre quando o contribuinte oferece impugnação à cobrança, caso a


defesa não seja acatada pelo agente fiscal. Argentina: o processo de execução fiscal é administrativo. O contribuinte pode tomar a iniciativa de jurisdicionalizar para atacar a juridicidade de atos das autoridades fiscais. Na França, na Alemanha e nos Estados Unidos todo o processo de execução fiscal é administrativo. Na Alemanha tem o sistema denominado dupla correção, segundo o qual o devedor pode fazer a defesa tanto no âmbito administrativo como no judicial. Mas, se ele quiser fazer a defesa, se ele fizer embargo. Se ele embargar, haverá um litígio para julgar, vai para o juiz. Se não embargar, não há litígio. A questão é “venda o bem e entregue o dinheiro”. É muito simples na visão europeia e também norte-americana. Nos Estados Unidos só tem um caso em que a cobrança da dívida fiscal é ajuizada, no caso do “for clausure”, é a situação em que exista insolvência, a nossa falência. Quando uma empresa americana entra em crise de insolvência o crédito tributário faz parte dessa situação judicial. Também no México, no Chile e na Argentina o processo de execução é administrativo. No Chile eles chamam de cobrança semijudicial. Todo o processo é administrativo, só é judicializado quando a pessoa apresenta uma defesa para o agente fiscal e o agente fiscal não concorda, então ele remete para o juiz. Pronto, então o juiz vai julgar. A justiça vai julgar quando tiver litígio. Parece bastante interessante também.

Parcial eficácia do Protesto na desjudicialização Eu vou fazer uma analogia da execução do Protesto com

o Registro de Imóveis, porque me parece que são coisas que andam juntas. Há estudos acadêmicos de doutorado e mestrado da última década aqui no Brasil, e também em Coimbra, com algumas teses sobre isso. Tem-se buscado caminhos para desjudicializar a execução por quantia certa. Falamos aqui do STF no caso da Lei 9.514 e o caminho é o contrário, o mundo todo caminha para a desjudicialização. Os dados que temos do Protesto do Estado de São Paulo são muito interessantes. Em três anos, milhões de títulos foram apresentados para protesto no Estado de São Paulo. Desses, 3,2 milhões (8%) o tabelião indeferiu depois de fazer um exame formal. E somente 13 mil (0,04%) tiveram sustação judicial. O devedor foi notificado, entrou com ação e o juiz mandou sustar. Do total tivemos 17 milhões de títulos satisfeitos e 16 milhões não satisfeitos. A proposta em alguns estudos é que, para esses casos não satisfeitos, o tabelião prossiga com o ato de constrição patrimonial.

Desjudicialização da execução civil na Europa Eu trouxe uma comparação com alguns outros países. Espanha: a execução ainda é concentrada no juiz, embora reforma de 2009 tenha atribuído a “secretário judicial” poderes para dar andamento nos atos de busca e constrição de patrimônio do devedor; Itália: Os atos de penhora são realizados pelo “ufficale giudiziario”, e os autos só vão conclusos para juiz após a penhora; Alemanha: há “órgãos de execução”, conforme o direito e objeto, como: “oficial de execução - Gerichtvollzieher”, “tribunal executivo” ou “registro de imóveis”;

Apresentados

Indeferidos pelo tabelião

Sustados judicialmente

Satisfeitos

Não satisfeitos

Bancos

21.398.520

1.176.372

8.881

14.401.687

5.811.580

Governo

9.382.131

1.284.781

3.767

1.267.663

6.825.920

Outros

6.114.668

815.515

419

1.467.785

3.830.949

36.895.319

3.276.668 8,88%

13.067 0,04%

17.137.135 46,45%

16.468.449 44,64%

Total

Situação dos títulos apresentados para protesto em SP de 01/07/2015 a 30/06/2018. Fonte: IEPTB-SP

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França: a execução de títulos judiciais ou extrajudiciais é totalmente desjudicializada, exercida pelos “hussiers de justice”, que são profissionais liberais. Somente há atuação judicial em caso de “embargos do devedor”, e também há necessária atuação conjunta com o Tribunal quando a execução recai sobre bens imóveis. Portugal: Reformas em 2003 e 2008 transferiram do juiz para o agente de execução os atos de execução, cabendo ao “juiz de execução” julgar “oposição/embargos”, julgar recursos contra decisões do agente de execução; analisar questões suscitadas pelo agente de execução. Reformas basearam-se nos modelos francês, belga e holandês. Na Alemanha, o sistema de execução varia conforme o objeto do bem que vai ser penhorado. E se é bem imóvel tem um trâmite no Registro de Imóveis. Eu me pergunto, não seria o caso de o RI abraçar essa causa e mostrar para o STF que é o caso de não judicializar ainda mais? Além dos casos de execução fiscal que vimos em outros países, há também os casos de execução civil na Europa. Na Espanha, a execução civil é feita pelo secretário judicial que tem poderes para dar andamento nos atos. Na Espanha e na Itália é um funcionário público que faz isso. Na Alemanha a execução é feita por um funcionário, mas não é o juiz, é alguém que tem poderes para dar andamento nos atos de constrição patrimonial. Na França, a execução é desjudicializada efetivamente. São profissionais liberais os encarregados de execução. Eles recebem título extrajudicial de um credor e recebem uma espécie de mandato. Eles fazem os atos de constrição patrimonial, vão buscar o bem para penhorar, fazer penhora, vender. Na França essa é a dinâmica. A atuação do Judiciário fica reservada para casos de embargos do devedor. E também em caso de bens imóveis, é interessante essa diferença. Quando o objeto da penhora for bem imóvel também tem a participação do tribunal. Se não houver embargo ou bem imóvel não passa pelo tribunal. É privada a execução. Em Portugal houve duas reformas recentes, em 2003 e em 2008, que desjudicializaram a execução. Ela estava com o juiz e passou para uma situação privada. A figura chama-se “agente de execução” e só vai para o juiz se tiver embargo. Também a execução por quantia certa em Portugal foi desjudicializada.

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Humberto Theodoro Junior afirma que a “desjudicialização, ora total, ora parcial, da execução forçada tem sido uma tônica da evolução por que vem passando o direito processual europeu. [...] Não há uniformidade na eleição dos meios de simplificar e agilizar o procedimento de execução entre os países europeus. Há, porém, a preocupação comum de reduzir, quanto possível, a sua judicialização.”

Outras demandas por desjudicialização Para finalizar eu vou trazer aqui um PL que já está tramitando. Está na Comissão de Desburocratização do Senado Federal. Esse projeto de lei traz para o Registro de Imóveis também a promessa de adjudicação compulsória. Aquela situação de adjudicação compulsória para que a promessa de venda e compra não saia da estrutura pública vem para o Registro de Imóveis. Desjudicializa, mas tem uma coisa que eu não sei se os colegas concordam. Talvez se fosse um congresso notarial concordariam, mas eu vou ler para vocês. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA – PLS 14/2018 Art. 195-C. Se a promessa de compra e venda condicionou a celebração do contrato definitivo apenas ao pagamento do preço pelo promitente comprador, a promessa de compra e venda ou as cessões ou as promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do imóvel se, cumulativamente: I - estiverem acompanhadas da respectiva prova da quitação; II - tiverem assumido a forma que a lei impunha ao contrato definitivo. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA – PLS 14/2018 Art. 195-C. [...] § 1º Na hipótese de a promessa de compra e venda, a cessão ou a promessa de cessão tiverem sido formalizados por instrumento particular e o contrato definitivo exigir escritura pública, o promitente comprador, portando a prova de quitação da dívida, poderá requerer ao tabelião a lavratura de uma escritura pública de adjudicação, que será título translativo da propriedade no registro de imóveis independentemente de participação do promitente vendedor. Eu fico pensando que talvez tenha algum fundamento


deontológico para isso, no sentido de não se deixar o oficial formar o próprio título que ele vai registrar. Já ouvi esse argumento, mas eu não consigo concordar com isso. Eu não consigo entender essa lógica de falar em escritura pública para isso.

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Aspectos do Condomínio Edilício e do Condomínio de Lotes na Lei nº 13.465/2017 162

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Marcelo Benacchio

Paulo Cesar Batista dos Santos

Juiz da Corregedoria Geral da

Juiz da Corregedoria Geral da

Justiça do Estado de São Paulo

Justiça do Estado de São Paulo

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Lei 13.465/2017 e o condomínio de lotes “O registro imobiliário é fundamental em um processo de melhora das condições de vida. Se não houver certeza do aspecto proprietário, como estabelecer relações? E todo o mercado funciona na base da confiança.”

Por Marcelo Benacchio Juiz da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo

N

ós temos em todo o Brasil os chamados loteamentos fechados, uma realidade que já nos incomoda há muitos anos. Tem vários trabalhos para tentar descobrir qual é a natureza jurídica do loteamento fechado. Esse fato social envolve todas as classes sociais, desde condomínios fechados caríssimos, de alta renda, muita coisa de classe média, em São Paulo, capital, e em todos os municípios. Temos também condomínios fechados das populações de menor renda. Essa prática tem sido costumeira pelas facilidades e pelas questões de segurança, que afligem o nosso país. Com relação aos mais pobres é pior ainda, porque muitos estão em ocupações irregulares que não existem no Registro de Imóveis. Essas questões têm que ser resolvidas. Sabidamente, o Registro de Imóveis fornece segurança jurídica, e o ponto mais interessante do registro imobiliário é a diminuição dos custos de transação, falando na ótica da análise econômica do direito. Em países menos organizados, que não têm registro imobiliário adequado, não se faz negócios. Por quê? Não se faz negócios porque não há segurança jurídica. Para melhorar as condições de vida da população é preciso atividade econômica. E atividade econômica precisa de livre iniciativa e propriedade, ainda que mo-

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dernamente se dissocie a livre iniciativa da propriedade. Mas, de qualquer maneira, vai se precisar da propriedade para acumular riquezas. O registro imobiliário é fundamental em um processo de melhora das condições de vida. Se não houver certeza do aspecto proprietário, como estabelecer relações? E todo o mercado funciona na base da confiança. Todas as relações hoje em dia são estabelecidas mediante confiança. Com a Lei 13.465/2017 nós tivemos um acréscimo no aspecto dos condomínios. No sistema brasileiro nós temos o condomínio geral, que já havia desde o sistema de 1916; o condomínio edilício, que foi trazido para o Código Civil; e a novidade, que é o tema aqui, o condomínio de lotes. E temos ainda o condomínio urbano simples. Esses dois últimos foram inovações da Lei 13.465/2017.

Evolução legislativa dos modelos de loteamentos fechados Como é um tema novo vamos usar o método socrático. Estamos mais preocupados com as perguntas do que com as respostas, porque é um momento inicial. Não é um momento de afirmação, é um momento de perguntar, não parece que seja um momento de afirmar. Primeira pergunta. Antes da Lei 13.465/2017, o condomínio de lotes poderia ser considerado um condomínio geral? Essa pergunta comporta várias respostas. Uma das


respostas poderia ser o sistema de frações ideais. A jurisprudência administrativa de São Paulo teve idas e vindas nesse tema, mas, atualmente, prevaleceu a ideia de que se fazer por meio de frações ideais seria uma burla ao sistema de parcelamento do solo. Por quê? Porque no condomínio geral as pessoas têm um vínculo prévio: ou tem um vínculo familiar, ou tem um vínculo de amizade, ou tem um vínculo de determinada atividade. E, no condomínio de lotes, não haveria esse vínculo. Portanto, haveria uma inadequação do condomínio geral, no passado, para o condomínio de lotes. Então as previsões do art. 1.314 e seguintes do Código Civil seriam inadequadas. E o condomínio geral, seja pro diviso, seja pro indiviso, não foi pensado para essa realidade. Tanto isso é verdade que a administração do condomínio geral não tem síndico, mas administrador do condomínio. Então, não foi pensado para essa situação. O condomínio de lotes não poderia ser regulamentado pelo condomínio geral. Outra pergunta, outra opção. Será que poderíamos, então, regularizar o condomínio de lotes ou loteamentos fechados, como eram chamados, pelo condomínio edilício? Aí temos dois problemas. Quando era um sistema de construção que não era vertical, mas que era horizontal – falando grosseiramente, porque a palavra propriedade horizontal no Direito é polissêmica. Alguns usam propriedade horizontal em outro sentido, mas eu quero dizer o seguinte, em vez de construir o prédio para cima, eu construo o prédio para o lado. Vamos deixar assim. E aí são conhecidas as disposições da Lei 4.591/1964, especificamente o art. 8º, incisos “a” e “b”, ainda que o “c” e “d” também tratem dessas questões. Em que medida? Na medida que se permitia a criação do condomínio de casas. Mas isso seria correto? Também não. Por quê? Porque as unidades autônomas já estão edificadas nesse modelo, ainda que elas possam ser construídas de maneira sobreposta. Então é incompatível, porque não poderia se vender os lotes para construção. Então também não seria possível. Houve uma tentativa de se acomodar isso, pelo menos em São Paulo se entendeu que isso seria uma burla às previsões normativas. A ideia era se fazer uma pequena construção para depois alegar o potencial construtivo. Então eu fazia lá uma pequena edícula, fazia a churrasqueira de 20 m² em um terreno imenso e falava: “Cada um constrói como quer”. Não é condomínio edilício, porque condomínio edilício já está construído. Não é da estrutura do condomínio edilício. Foi um ato

abusivo. São Paulo não admitiu essa disposição. Também não resolvia. Vamos para a terceira possibilidade, a Lei 6.766/1979, Lei de Loteamentos, que foi o modelo de solução mais usado para os chamados loteamentos fechados. Será que esse modelo era adequado? Também não era, porque as vias são públicas, são transferidas para o município. Um loteamento da Lei 6.766 é tudo, menos um loteamento fechado, menos um condomínio de lotes. Além disso, outro grande problema eram os custos de manutenção. Como não era possível ter um condomínio edilício com síndico foram criadas associações. No início, as decisões jurisdicionais aceitavam que era possível fazer as associações. Eu me filiava à corrente minoritária, que depois se tornou majoritária, com a ideia de que ninguém era obrigado a se associar. Qual era o problema? O problema era de quem não tinha o lote construído e queria pagar menos. E isso foi decidido em sede de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça, e também pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de que não poderia. Qual seria a solução? Seria ingressar com ação contra os supostos condôminos com base no enriquecimento sem causa. Imaginem a complexidade dessa ação para demonstrar quanto a pessoa enriqueceu com a terra nua. Enriqueceu como? Que serviços? Que valor? Também não era uma solução. Outra coisa. A legislação municipal começou a permitir o fechamento de ruas. Qual foi o problema? O Ministério Público começou a entrar com ação dizendo que aqueles instrumentos públicos e áreas verdes eram públicas e poderiam ser usadas por qualquer pessoa. A solução, então, seria demolir aqueles muros. Mas sabemos que esse é o modelo mais usado atualmente. O que temos de condomínio fechado é esse modelo, que agora, com a nova Lei, tem a forma do condomínio de acesso controlado. Temos que aproveitar essa situação. Mas, me parece muito estranho erguer uma parede em uma via pública, em um tipo de ocupação do solo que foi pensado como se aquela área fosse particular, não pública. Temos que convir que quem queria fazer um loteamento fechado não tinha na cabeça um parcelamento do solo urbano mediante loteamento. Mas essa solução foi muito utilizada. Além disso, alguns municípios fizeram leis próprias acerca do loteamento fechado. Então havia leis municipais, leis próprias. Mesmo em São Paulo, depois que foi revogado, houve uma tentativa de se estabelecer isso BOLETIM 362

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tudo nas normas da Corregedoria. Aparentemente, uma boa solução. Mas qual o problema? Mesmo agora, com a lei, não sabemos qual o regime jurídico aplicável. Imaginem uma lei municipal perdida no sistema, com a Lei 6.766, com o Código Civil. Todas essas situações eram insuficientes, e veio a Lei 13.465/2017 em busca de solucionar esse problema. Segundo aquela máxima dos romanos, o direito vem dos fatos e não apenas da norma.

Condomínios de lotes no registro imobiliário Vamos tentar agora fazer uma aproximação não de um conceito, que é muito fechado, mas de uma noção do que é o condomínio de lotes, imaginando como isso vai ingressar no registro imobiliário. A primeira crítica, ainda muito superficial, é a nomenclatura. Se essa nomenclatura seria a mais adequada, porque a palavra “lote” é usada para parcelamento e não para condomínio de lotes. Eu acho que isso é apenas falta de costume, vamos acabar nos acostumando com condomínio de lotes. Temos tantas palavras polissêmicas no Direito, essa é mais uma. O problema não é o nome. A dificuldade é como fazer o diálogo das fontes para saber qual a normatividade incidente. Tudo ficou com uma mudança no Código Civil, com o art. 1.358-A. Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística. § 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. O caput dá, de maneira rápida, “partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes de propriedade comum dos condôminos”. Ao ler isso pensamos em condomínio edilício. Tanto é que o § 2º fala em aplicar no que couber as disposições do condomínio edilício, respeitada a legislação urbanística. E o § 1º também puxa mais para condomínio edilí-

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cio, porque dá vários critérios de fração ideal. Ele pode falar que é a área do solo, potencial construtivo. Vai ser o critério a ser utilizado, que já se tem no condomínio edilício, só que sempre se usa o critério de metragem. Os senhores aqui com certeza devem ter, mas eu nunca vi outro critério, como, por exemplo, do valor da unidade pela posição. Nunca vi, sempre se usa pela metragem porque esse critério é que vai dar o valor das contribuições, das despesas de cada um. Qual seria a legislação incidente? Fica difícil. O que que ele é? É um condomínio edilício, em face da expressa disposição de art. 1.538-A? Eu não excluo essa resposta, mas me parece que não é. A estrutura é um pouco diferente. Eu aplicaria Lei de Condomínios e Incorporações por atração às exposições do condomínio edilício? Sim e não. Eu aplicaria para o sistema de incorporação, mas eu não tenho como fazer uma aplicação integral. E o ponto mais delicado. Eu aplico a Lei 6.766 para o condomínio de lotes? E aí temos um argumento irrefutável que parece não se ter como afastar. Quando foi criado o condomínio de lotes, a Lei 13.465/2017 incluiu artigos na Lei 6.766. Por exemplo, o art. 2º, § 7º dispõe: § 7º O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes. Ou seja, o lote pode ser constituído sob a forma de imóvel autônomo, que é a maneira tradicional que já conhecemos, ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes. Então, poderíamos especular se essa disposição leva as disposições da Lei 6.766 para o condomínio de lotes. A questão é o registro do art. 18, se vai se poder fazer as exigências para o registro. Esse é o ponto. Na Lei 6.766, art. 4º, foi incluído o § 4º: § 4º No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros. “Poderão ser instituídas limitações administrativas”. As limitações convencionais não serão necessárias, por-


que é possível fazer pela convenção de condomínio. O regramento das construções do condomínio de lotes eu faço pela convenção de condomínio. Mas a questão interessante é que essa disposição fala que as vias internas, que são particulares, podem ter algum tipo de direito real imposto pelo Poder Público. E cita, a título de exemplo, servidão de passagem, usufruto e restrições à construção de muros. Olha que interessante! Para os que entendem que o condomínio de lotes é uma área puramente particular, puramente privada, esse artigo diz sim e não, porque fala de uma afetação pública da área. É claro, ele fala de uma afetação pública, e quer me parecer que ele chama essa disposição. Outra disposição da Lei 6.766 é o art. 36-A, que fala das associações, mas não disse se é para pagar. Permanece a dúvida e vai continuar essa insegurança. Art. 36-A. As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis. Falou, falou, falou e não disse. Vai precisar de uma grande interpretação. Mas, repito, no condomínio de lotes, vai ser contribuição condominial, não vai precisar disso. Isso é para o que existe hoje.

Outras indagações e algumas distinções Primeira distinção. Condomínio de lotes é condomínio edilício? Eu vou nas lições do doutor Marcelo Tozzi, publicadas no livro dele, de incorporação imobiliária, que foi a dissertação de mestrado aprovada com nota máxima. Nós conversamos e ele falou o seguinte. “Quando eu tenho um condomínio edilício, eu já tenho a edificação. E no condomínio de lotes não é da estrutura e da função dele...”. Usando aqui a mesma obra já citada, o mesmo livro do Bobbio, Da Estrutura à Função, eu não tenho que

saber apenas do que o direito é feito, mas eu tenho que saber para que serve. Não me parece que o condomínio edilício sirva para o condomínio de lotes. Por quê? Porque eu posso ter condomínio mesmo sem edificação nos lotes, e no edilício eu não posso. Alguns têm falado de vagas de garagem exclusivas, mas eu não sei se isso chega a tanto. A estrutura da vaga de garagem exclusiva, que não pode ser vendida para pessoa estranha ao condomínio, não me parece que seja a mesma coisa. Outra questão interessante é que no condomínio edilício não há possibilidade de edificação maior ou menor. Mesmo quando ele é de casas, as áreas de uso exclusivo são comuns. O art. 8º, incisos “a” e “b” da lei, deixa essa ideia. Então, quando são lotes, têm potencial construtivo. Isso não combina com a natureza jurídica do condomínio edilício. Outro ponto é que no condomínio edilício é criada unidade autônoma e não lotes. Tem uma vinculação da fração ideal e áreas comuns. E no condomínio de lotes é diferente. Os senhores viram como é bom fazer esta exposição? Não se responde nada, só se pergunta. Mas, aproveitando que o método é socrático, os senhores já entenderam a única coisa que eu sei a respeito. Então vamos lá. Eu posso aplicar a Lei 6.766? Essa é a natureza jurídica? Também não. Por quê? Porque as vias são particulares, não são públicas. E a afetação de direito real da Lei 6.766 é excepcional, não é regra. Então não dá essa situação. E mesmo em caso de parcelamento irregular, o art. 22, § único, da Lei 6.766, fala que tem afetação pública. Então não há como fazer esse encaixe. Nessa altura poderíamos perguntar: qual seria a natureza jurídica? Seria de condomínio edilício? Como disse, me parece que não. Tem gente que mescla aspectos do condomínio edilício e da Lei de Loteamento, e chega a falar que seria uma nova modalidade de parcelamento de solo. Eu acho que é um pouco exagerado isso, mas não excluo neste momento inicial. Temos que tomar cuidado também com o aspecto urbano e rural, porque o condomínio de lotes pode ser usado para esses ranchos de pesca, essas casas em área rural. Vai ser utilizado para isso também. Não é só urbano, tem mais esse problema. E por último, assim como o condomínio edilício tem uma natureza jurídica própria quer me parecer que o condomínio de lotes também vai ter a sua natureza jurídica própria, pelo menos neste momento inicial que está difícil de cientificamente colocá-lo em algum lugar. BOLETIM 362

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Já passando a palavra aos meus colegas, eu queria colocar umas questões registrárias iniciais. Na verdade, o importante para decidir cientificamente é a repetição dos resultados. Ainda que a pós-modernidade coloque dúvida na razão para a solução dos problemas, é muito usada no Direito a obra de Thomas Kuhn, Estrutura das Revoluções Científicas, no sentido da busca de paradigmas que são modelos de solução para problemas de uma comunidade científica. Minha dúvida: quais seriam os paradigmas de solução dos problemas do condomínio de lotes?

Maior dificuldade: estabelecer o diálogo normativo Um exemplo do Thomas Kuhn. Se eu concebo que a Terra é quadrada, quando eu sei que a Terra é redonda, todas as teorias da Terra quadrada já não me servem mais. Eu descarto. Eu não acho que aqui precisamos descartar, não precisamos criar um novo paradigma, até porque um paradigma de solução é uma coisa custosa. É demorado chegar num paradigma científico. Então, quer me parecer que nós temos que achar, dentro do que existe, a solução para algum desses problemas. O que a lei não fala expressamente e vai causar grande dificuldade, ainda que possa ser resolvido por lei municipal? Quantos lotes são necessários para o condomínio de lotes? Qual é o mínimo e qual é o máximo? Qual o tamanho? “Ah, legislação municipal”. E quando eu não tenho legislação municipal? Chega para o registrador qualificar, e aí? É uma questão difícil. Outra questão. Os lotes têm que obedecer às metragens da Lei 6.766, 125 m², 5 m de frente? Têm que obedecer a essa regra mínima? Esse é um ponto difícil. Tem que obedecer às posturas municipais gerais quem está fora do loteamento? Os senhores imaginam que nós teríamos as posturas de Direito Urbanístico e um buraco lá no meio que não se aplicaria? Ou seguiriam as mesmas regras? Quais seriam os limites entre o público e o privado? O que é interesse de um, o que é interesse de outro? Nem vou entrar nisso, porque essas questões também são polêmicas, ou seja, se isso conferiu maior poder à autonomia privada coletiva ou não. Mas nem vou ingressar nisso porque acho que isso não é tão fundamental para nós no momento. O ponto mais difícil vai ser estabelecer como fazer o diálogo normativo. Aplica-se o art. 32 da Lei de Con168

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domínios e Incorporações, Lei 4.591/1964? Aplica-se o art. 18 da Lei 6.766/1979? O que se aplica, o que não se aplica? E nós sabemos, hoje, do diálogo das fontes, de se buscar uma normativa máxima. Eu só tiro do sistema as normas que eu não consigo adequar. Eu não trabalho com antinomia, mas com diálogo das fontes, coisa que já estamos habituados a fazer no Brasil com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil. E agora nós temos um microssistema normativo do condomínio de lotes, porque a lei falou muito pouco. Então, o que se aplica? O doutor Paulo vai responder essas questões.

Obras de infraestrutura, registro do compromisso de compra e venda e outras questões É, eu tenho mais uma ainda, doutor Paulo. Em tempo de campanha eleitoral, antes que te perguntem, pergunte você. Essa é a técnica. Seria cabível exigir os documentos do art. 18 da Lei 6.766? Pelo Código Civil, tem que ter os equipamentos. Então quem faz o condomínio de lotes tem que colocar os equipamentos, escoamento de água, as obras de infraestrutura. Pergunta: quem controla a realização dessas obras? Na Lei 6.766, até o comunicado do Ministério Público ele tem obrigação solidária do município porque são vias públicas. E aqui, quem controla? O Ministério Público controla? O município controla? Haveria obrigação do município de realizar na sua ausência? Se tiver incorporação imobiliária, eu peço os documentos do art. 18, da Lei 6.766, para construção e alienação futura? Nesse caso, eu vou pedir para fazer o depósito do compromisso de compra e venda do modelo nos termos da Lei 6.766, que não tem na Lei de Condomínios e Incorporações? O Código Civil, no art. 1.358-A, § 3º, dispõe: § 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. Só é possível negociar depois que houver as obras de infraestrutura. Os artigos 32 e 33 da Lei 6.766, com relação aos compromissos de compra e venda: o procedimento que é feito no Registro de Imóveis caberia ser feito no condomínio de lotes? Haveria essa atribuição do oficial do registro imobiliário? E outra. Essa é mais fácil, mas eu estava tão convic-


to, aí fiquei pensando e perdi a convicção. Eu estava convicto porque tem uma resposta muito simples. É possível fazer a conversão dos condomínios hoje existentes para condomínio de lotes. Mas quando eu falei com os meus colegas, eles acabaram comigo. “Você quer dar via pública para os particulares?”. Em São Paulo, a Constituição Estadual não permite desafetação. Nós poderíamos dizer que, então, não tem como. Quem está hoje com loteamento fechado, com rua fechada... Isso dá insegurança jurídica. E é um patrimônio muito alto. Quem garante que um dia não vai aparecer uma pessoa genial e falar: “A minha plataforma é a queda dos muros dos loteamentos”. E aí? Então tem que ter um elemento

mais forte. Uma maneira muito rápida de responder seria falar que é tudo bem público e não pode ser transmitido aos particulares. Não poderia haver uma lei que pudesse fazer essa transmissão, porque seria incompatível com a natureza pública. Essa resposta para mim estava pacífica. Mas foi aí que eu comecei a ficar em dúvida. Isso foi criado pensando em via pública ou foi feito assim porque a legislação, à época, não permitia outra modalidade? Olha como é difícil a questão. Alguém pode falar que estão dando bem público para particular, casas de milhões de reais ainda vão ficar com a rua. É um assunto muito delicado. BOLETIM 362

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Lei 13.465/2017 e a regularização fundiária “Finalmente, com a Lei 13.465/2017, o condomínio de lotes foi incorporado às normas de serviço da CGJ de São Paulo. Então, a lei veio em ótima hora. O Código Civil e as alterações trazidas também na Lei de Parcelamento do Solo Urbano vieram em ótima hora para finalmente podermos regularizar isso.”

Por Paulo Cesar Batista dos Santos Juiz da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo

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Lei 13.465 inovou no nosso ordenamento jurídico e trouxe dispositivos que mexem com várias leis e vários códigos. Ela realmente trouxe muitas questões que devem ser postas. E se preocupou com a regularização, pelo menos legislativa, de situações fáticas. O doutor Marcelo Benacchio disse que a realidade chega antes do direito. E se o direito ignora a realidade, a realidade ignora o direito. É uma frase que todo mundo fala, mas realmente é assim. Situações que são consolidadas, que já existem em diversas localidades. Algumas localidades com base em legislações municipais, vamos dizer, com regularidade legislativa, e algumas situações irregulares. Parece que temos exemplos aqui em Florianópolis. O município de Florianópolis já admitia condomínios de lotes há algum tempo. Ao que parece já existem condomínios de lotes autorizados aqui e registrados. Alguns estados admitiam isso usando a legislação de condomínios em incorporação, a Lei 4.591/1964, lá no seu art.

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8º, justamente o artigo que o Estado de São Paulo dizia que era o que impedia a regularização do condomínio de lotes. E também com base no antigo Decreto-Lei 271. O art. 3º dizia que se aplica aos loteamentos a Lei 4.591, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos condôminos, e as obras de infraestrutura à construção das edificações. Então, com base nisso, alguns municípios e alguns estados, admitiram o condomínio de lotes. Coisa que em São Paulo não se admitia, inclusive com bastante rigor. Sabemos que houve alguns casos em que os registradores imobiliários e os empreendedores se muniam dessa legislação com base na doutrina, incluindo um artigo muito famoso do doutor Gilberto Valente, que foi Juiz da 1ª Vara de Direitos Públicos de São Paulo, e ele falava sobre essa possibilidade da regularização dos condomínios de lotes. Então isso chegou a ser registrado no Estado de São Paulo em algumas situações, mas foi tratado com bastante rigor pela Corregedoria Geral da Justiça, com bloqueio das matrículas, com o cancelamento desses loteamentos, e com sanções disciplinares aos registradores imobiliários que praticaram isso. Houve até perda da delegação. Posteriormente, a própria Corregedoria Geral da


Justiça do Estado de São Paulo, na gestão do doutor José Renato Nalini, chegou a autorizar e levar para as normas a regularização do condomínio de lotes, mas durou pouco. Já na gestão do doutor Pereira Calças isso foi retirado das normas. E agora, finalmente, com a Lei 13.465/2017, o condomínio de lotes foi incorporado às normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Então, a lei veio em ótima hora. O Código Civil e as alterações trazidas também na Lei de Parcelamento do Solo Urbano vieram em ótima hora para finalmente podermos regularizar isso.

Situações consolidadas e situações novas nos termos da legislação Como o doutor Marcelo Benacchio falou, temos dois tipos de situação. Situações consolidadas, ou seja, que já estão consolidadas no tempo. Loteamentos, ou condomínios de casas que foram implantados como sendo condomínios de casas, mas na verdade seriam condomínios de lotes, com construções pequenas num lote grande. Enfim, situações já consolidadas e situações que vão começar a aparecer agora para os senhores. A rigor, um pedido de instituição de condomínio, ou incorporação, e depois a gestão do condomínio de lotes, pelo menos agora vai vir nos termos da legislação. As situações que já são consolidadas vieram de acordo com o que foi feito à época, a depender do registro imobiliário, a depender do estado. Então, nós temos essa questão que, também como foi dito, traz alguns perigos no Código Civil, que regulamentou o condomínio de lotes em alguns parágrafos, mas deixou em aberto a questão relativa a alguns limites máximos de quantidade de lotes. Deixou de regulamentar alguns pontos que, segundo parte da doutrina, realmente não deveria ter regulamentado. Isso é matéria para a legislação municipal cuidar. Às vezes é até melhor que a lei não fale muito, porque quando a lei fala muito acaba por atrapalhar mais do que ajudar. Também não diz o Código Civil, e não sei se deveria dizer, se é preciso o prévio parcelamento da área onde será implantado o condomínio de lotes. Ou seja, eu posso implantar o condomínio de lotes numa gleba não parcelada ainda, ou condomínio de lotes precisa ser instituído sobre um lote? E daí a nomenclatura equivocada, que não devia chamar de lote o que não é lote. Lote é uma unidade característica de parcelamento de solo, não

de condomínio. Condomínio é unidade autônoma. Mas não se sabe, pelo menos a lei não diz se é necessário o prévio parcelamento. Talvez a princípio sim. Precisa ser uma área já previamente parcelada para que se institua o condomínio.

Previsibilidade e segurança jurídica Os condomínios são uma realidade, as pessoas querem morar em locais seguros, querem morar em locais fechados com infraestrutura. E aí a lei também estipulou a questão do loteamento de acesso controlado, que é uma figura diferente do condomínio de lotes. Se pararmos na frente de um “condomínio fechado” e olharmos para a portaria, não dá para saber se aquilo é um parcelamento de solo, um loteamento ou um condomínio de lotes. Só vai dar para saber lendo a matrícula. Aí sim vamos ver de que forma jurídica aquilo foi instituído, porque a natureza jurídica deles é totalmente diversa. Claro, as normas conversam, mas a natureza jurídica é totalmente diversa. E vai ser possível conviver no mercado tranquilamente com as duas figuras. Os senhores, são registradores de imóveis ou prepostos, vão precisar fazer uma rigorosa qualificação dos títulos que vão ingressar, para saber se estão atendidos os requisitos de instituição daquele condomínio. Os senhores precisam cuidar da qualificação registral para afastar os riscos daquele empreendimento. Riscos para a coletividade, que pode sofrer os impactos de uma instituição irregular, ou de um parcelamento irregular. Risco para os futuros adquirentes desses lotes, essas pessoas que vão celebrar compromissos de compra e venda. E riscos até para o próprio empreendedor, porque ele precisa saber as regras. Precisamos de previsibilidade e segurança jurídica, para que não haja risco no desenvolvimento dessa atividade. Talvez a característica mais importante do tal condomínio de lotes seja a inexistência de vinculação entre a unidade autônoma e uma averbação de construção. Não existe essa vinculação. A unidade autônoma é o próprio espaço territorial ou lote. Não se é obrigado a construir e a averbar essa construção, mas a construção dos equipamentos de infraestrutura das vias particulares dentro do condomínio sim. Essas, obviamente, precisam ser averbadas, mas inexiste essa vinculação. E a vantagem é que a construção que se fizer no lote, muito embora ela precise obedecer aos requisitos gerais traçados pelo município, e talvez pelo estado – a BOLETIM 362

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depender da necessidade de autorização estadual – não vai precisar de mudança no cálculo da fração ideal. A construção não vai influenciar no cálculo das frações ideais. As frações ideais vão ser distribuídas de acordo com os critérios legais e sem vinculação à construção. Como nós dissemos aqui, a Lei 13.465/2017 inovou no art. 1.358-A do Código Civil, inovou na Lei 6.766 – trouxe o § 7º da Lei 6.766, daí a ligação que o condomínio de lotes vai ter com a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que, a princípio, vai ter que obedecer ao registro especial do art. 18. Acho que esse é um dos pontos mais nervosos na nova interpretação. Se vai usar a incorporação, vai usar o art. 18 da Lei 6.766, mas pelo menos a própria Lei 13.465 já namorou com a Lei 6.766 inserindo nela o § 7º no art. 2º, e o § 4º no art. 4º, que fala das limitações administrativas. O § 4º do art. 4º da Lei 6.766 dispõe que poderão ser instituídas limitações administrativas. Sabemos que nos loteamentos também existem as limitações administrativas. Nas regras da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo os registradores imobiliários não são obrigados a conferir o atendimento de restrições convencionais em loteamentos urbanos. Embora tenha havido uma divergência sobre a obrigatoriedade de registradores avaliarem o atendimento a restrições convencionais nos loteamentos urbanos, em São Paulo, o item 191, do capítulo XX, das Normas de Serviço da CGJ, diz que não cabe ao registrador examinar os loteamentos. Agora mais uma pergunta. Ao receber no Registro de Imóveis uma averbação de obra no lote, será que o registrador imobiliário terá que verificar se aquela obra está atendendo às limitações convencionais previstas no § 4º do art. 4º da Lei 6.766? Talvez sim, mas também fica no ar.

Nem tudo é privado no condomínio de lotes A propriedade do terreno é totalmente privada, vai ser dividida em frações ideais dos condôminos. No loteamento, os bens se incorporam ao patrimônio municipal. O município adquire com registro, mas a Justiça do STJ é pacífica no sentido de que antes mesmo do registro, a partir da autorização da aprovação do loteamento pelo município, os bens já estão incorporados ao patrimônio municipal, coisa que no condomínio de lotes, a princípio, não vai acontecer. A fração ideal vai ser calculada de acordo com os critérios que a lei colocou e o Código Civil estipulou, mas 172

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ele deixa em aberto que pode haver outros critérios ao dizer no § 1º do art. 1.358-A: § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. O doutor Marcelo Benacchio falou e eu também já ouvi alguns doutrinadores dizendo que dentro do condomínio de lotes a regra é privada. Mas já vimos aqui que não é exatamente assim. Nem tudo é privado no condomínio de lotes. Por que nem tudo é privado? Porque a gente sabe que o Estado, num conceito mais amplo, tem interesse na boa distribuição do solo urbano. A competência para regras gerais de distribuição do solo urbano é concorrente, segundo o art. 20 da Constituição Federal, e o município é o detentor do poder de legislar sobre regras de parcelamento e ocupação do solo. Então, não podemos pensar que tudo é privado porque aquilo vai interferir no sistema viário da cidade. Aquilo vai interferir em certas posturas edilícias da cidade, do município.

Regulamentação dos condomínios de lotes pelo município Alguns municípios precisarão editar leis regulamentando os condomínios de lotes, muitos não têm essas leis. Virão leis boas, claras, virão leis ruins, omissas, e às vezes sequer virão leis. A própria iniciativa legislativa, o nosso órgão especial de São Paulo, tende a algumas decisões estipulando que a iniciativa para legislações que versem sobre o parcelamento é exclusiva do chefe do Poder Executivo. Às vezes o município aprova uma lei que cuida do gabarito, das posturas edilícias e essa lei é tida como inconstitucional pelo órgão especial, porque a iniciativa partiu da Câmara de Vereadores e não do chefe do Poder Executivo. Então, tudo isso precisa ser visto com cuidado para que os municípios tragam leis boas que regulamentem essas regras e que tenham esse cuidado, esse zelo com as posturas que vão ser observadas em relação aos condomínios de lotes. A legislação é bem clara ao estipular essa necessidade de observância das regras urbanísticas, edilícias, dos condomínios de lotes. Se houver ou não houver lei no município sobre o condomínio de lotes, podemos aplicar uma lei que exista


sobre o condomínio edilício? A princípio, pode. O Código Civil diz expressamente que se aplicam as regras de condomínio edilício ao condomínio de lotes. Então, se não há lei regulamentando o condomínio de lotes, podem ser aplicadas, a princípio, as posturas municipais sobre o condomínio, sobre os condomínios edilícios.

Registro dos condomínios de lotes: lei aplicável Eu vou trazer alguns pontos em relação ao registro, sobre a questão da lei que deve ser aplicada ao registro dos condomínios de lotes. Pode ser utilizada a Lei 6.766. De acordo com a doutrina, com a interpretação, pode ser usada a Lei de Incorporação Imobiliária, ou a instituição do próprio condomínio pelo Código Civil, pela Lei de Incorporações. As normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo mencionam, salvo engano, que se aplicam as regras de incorporação imobiliária, mas a clareza não está sequer nas normas. Isso dificulta a vida dos senhores, porque não dá para ficar sem as normas. Precisamos delas, elas devem vincular a atividade administrativa, mas às vezes essa própria instabilidade dificulta as atividades dos senhores. Mas enfim, a discussão em relação à lei aplicável vai ser sempre suscitada, vai ser levantada nas dúvidas que os senhores vão suscitar perante seus corregedores permanentes, e que as corregedorias vão ter que decidir. Ou o Conselho Superior da Magistratura, no caso de São Paulo. Nós temos, expressamente, no item 451 das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que se aplicam ao condomínio de lotes, no que couber, as disposições relativas à incorporação imobiliária e ao condomínio edilício constantes desse capítulo. Então, as normas fazem referência à incorporação imobiliária e também equiparam as obras de infraestrutura de um condomínio de lotes à edificação, dizendo que essas obras equiparam-se às obras de infraestrutura. O lote não tem construção, mas as obras de infraestrutura se equiparam à construção de edificação.

domínio edilício, ou, ainda que não se chame edilício, vai haver a instituição de um condomínio, vai haver um síndico, vai haver um Conselho Fiscal, vai haver uma assembleia. Um condomínio de lotes vai ter essas figuras compatíveis. Vai haver essas figuras no condomínio de lotes e aquilo que se aplica ao condomínio edilício. Rateio das despesas, não tem mais briga. O rateio das despesas para os condôminos será aplicável tranquilamente. Mas nem todos os dispositivos do edilício são passíveis de aplicação. A convenção de condomínio edilício se registra no Livro 3. Também não vejo óbice ao registro, no Livro 3, da convenção do condomínio de lotes. Ao contrário dos loteamentos, essa associação vai ser registrada no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Tem alguns casos em São Paulo em que se parcelou o solo ainda sob a égide do Decreto-Lei 58. Se fez um parcelamento de solo com características de loteamento urbano, mas se instituiu uma convenção de condomínio na administração desse loteamento. Há um problema de representatividade em relação ao condomínio de lotes. O que acontece? Muitos dos senhores têm competência cumulativa de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, e Pessoa Jurídica. E aí esses condomínios fechados, que na verdade não são condomínios, são loteamentos, perdem a sua própria representatividade, porque como não se trata de condomínio, então você não institui condomínio, não registra no Livro 3, convenção. Como ele é um loteamento, mas não tem associação, então não tem nada registrado em Pessoa Jurídica. Aí eles realizam suas atas, realizam suas assembleias, querem registrar as atas para ter representatividade. Isso não entra em lugar nenhum. O registro facultativo para mero fim de conservação em TD não gera direitos perante terceiros. Loteamentos não são condomínios, muito embora tentem falar que o sejam. São loteamentos urbanos, com vias públicas. E é uma situação que está consolidada. É possível transformar isso num condomínio de lotes? Não dá para transformar. Não dá para transformar as vias públicas em privadas. Pelo menos no Estado de São Paulo, a princípio, não dá.

Representatividade e administração do condomínio de lotes Para completar, uma questão relativa à representatividade e administração do condomínio de lotes. Claro, sendo um condomínio, vai haver uma instituição de conBOLETIM 362

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Publicidade registral das averbações premonitórias, constrições judiciais e institutos assemelhados: efeitos no patrimônio de terceiros “Julgamos importante que todos os Operadores do Direito se empenhem no estudo e na busca do aperfeiçoamento do Sistema Registral Imobiliário efetivando a publicidade e, assim, alcançando a oponibilidade preventiva e a fé pública registral, o que evitará demandas e oportunizará a tão almejada segurança jurídica e a paz social.”

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Sérgio Neumann Cupolilo

João Pedro Lamana Paiva

1º Oficial de Registro de Imóveis de Tubarão/SC

Oficial de Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre/RS


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Publicidade registral das averbações premonitórias, constrições judiciais e institutos assemelhados: efeitos no patrimônio de terceiros “Publicizada a situação jurídica, decorrem daí efeitos jurídicos. A finalidade, portanto, da publicidade jurídica, e aí se inclui a publicidade registral, é a produção de eficácia jurídica. Da publicidade apta legalmente a gerar efeitos jurídicos perante a coletividade, ou seja, erga omnes, decorre a oponibilidade.”

Por Sérgio Neumann Cupolilo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Tubarão/SC

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emos que analisar o primeiro elemento do tema proposto, a publicidade. Publicidade é a atividade destinada a dar a conhecer a alguém certa situação. Quando o conhecimento é posto à disposição da coletividade, seja mediante uma instituição criada para esse fim, como por exemplo o Registro de Imóveis, seja mediante uma situação jurídica do próprio objeto, por exemplo, a posse, estará presente a publicidade. O instituto jurídico da publicidade torna determinada situação jurídica acessível a toda a coletividade, significando isso dizer que confere a ela cognoscibilidade da situação publicizada, ou seja, ela promove a possibilidade de conhecer, não significando isso conhecimento efetivo. Oposto à publicidade, temos a clandestinidade. Publicizada a situação jurídica, decorrem daí efeitos

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jurídicos. A finalidade, portanto, da publicidade jurídica, e aí se inclui a publicidade registral, é a produção de eficácia jurídica. Da publicidade apta legalmente a gerar efeitos jurídicos perante a coletividade, ou seja, erga omnes, decorre a oponibilidade. Terceiro, para efeito desta apresentação, é todo aquele que não é parte na relação jurídica processual. Parte processual é todo sujeito que integra a relação jurídica atuando com parcialidade. (Assumo a conceituação processual, uma vez que o tema diz respeito à publicidade registral de situações jurídicas derivadas do processo). Eu preparei uma ilustração bastante infantil, onde A estabelece uma relação jurídica processual com B, por exemplo, uma execução, e B estabelece uma relação jurídica de direito material com C, que figura como terceiro na relação jurídica processual estabelecida entre A e B. Vamos supor que B celebrou um negócio jurídico de compra e venda com C. Enquanto não publicizadas


pelo registro as situações jurídicas, seja de A com B, seja de B com C, os efeitos das relações se dão tão somente inter partes, sendo inoponíveis perante terceiros. Só com o registro das referidas situações jurídicas emanarão efeitos perante a coletividade, tornando-se oponíveis erga omnes. Percebe-se, pois, que a geração de efeitos e, portanto, a oponibilidade de situações jurídicas perante terceiros está intimamente relacionada à evolução legal da publicidade registral. Passemos, portanto, a analisar a evolução histórica da legislação atinente.

Da precariedade da publicidade advinda da tradição à Lei Orçamentária, hipoteca judiciária e tentativa de implantar o sistema Torrens no Brasil Quando os portugueses chegaram com suas naus nas terras de Vera Cruz trouxeram na bagagem o primeiro compêndio legislativo aplicado por aqui: as Ordenações Afonsinas. As Ordenações Afonsinas foram sucedidas pelas Ordenações Manuelinas, que, por sua vez foram sucedidas pelas Ordenações Filipinas. Todas adotavam, para a transmissão da propriedade, o Direito Romano Justinianeu, não bastando o contrato, necessitando-se ainda do modo de aquisição da propriedade que se dava com a tradição. A entrega do bem, sendo a posse a exteriorização publicitária da transmissão. Havia, pois, um meio precário de publicidade, o que levava à completa desproteção do terceiro adquirente de boa-fé, tornando nula a transmissão da coisa litigiosa, bem como das transmissões de bens hipotecados judicialmente. Algumas passagens das ordenações que estão no Livro 4, título 5, trazem as disposições sobre as vendas e alheações que se fazem de coisas litigiosas e estabelecem que, independentemente de boa-fé, o negócio é nulo, apenas isentando pela boa-fé uma sanção pecuniária que era devida ao rei, ao reinado e ao prejudicado nessa alienação nula. Também no parágrafo 14 do título 84 do Livro 4, que trata dos agravos das sentenças definitivas, temos a hipoteca judiciária, que dispõe: “E o que tiver bens de raiz, que valham o conteúdo na condenação, não os poderá alhear, durante a demanda, mas logo ficarão hypothecados por esse mesmo feito e per esta Ordenação para pagamento da condenação.” Ou seja, da própria condenação já derivaram efeitos perante terceiros na hipoteca judiciária.

Diante da precariedade da publicidade advinda da tradição, sobretudo por admitir-se a tradição simbólica ou ficta, e da elevada insegurança na concessão do crédito real, foi criado, pela Lei Orçamentária 317/1843, o registro de hipotecas. Regulamentado pelo Decreto 482/1846, estabelecia que são efeitos legais do registro das hipotecas, primeiro, tornar nula a favor do credor hipotecário qualquer alienação dos bens hipotecados que o devedor possa fazer posteriormente ao registro, por título, quer gratuito, quer oneroso. Segundo, poder o credor hipotecário com sentença penhorar e executar os bens registrados em qualquer parte que eles se acharem. Terceiro, conservar ao credor hipotecário o privilégio de preferência nos bens registrados que pela hipoteca possa haver adquirido. Contudo, o novo sistema de publicidade hipotecária pecou por não criar um novo modo de transmissão da propriedade. Um modo de publicidade mais sólida que a mera tradição. Augusto Teixeira de Freitas, na introdução de sua célebre Consolidação das Leis Civis, afirma: “O que se-póde justamente arguir à tradição é que, como signal indicador da translação do domínio de immoveis, ou meio de publicidade, longe está de sêr um expediente satisfactorio”. E logo após analisar os sistemas de publicidade registral existentes, conclui: “Seja qual fôr o systema, que se adopte, a theoria dos direitos reaes, pela sua intima correspondência com a theoria do credito, merece por certo a primeira attenção. A Legislação Civil, que bem comprehendêr as necessidades econômicas da época em que vivemos, deve designar taxativamente os direitos reaes, e declarar que não admitte outros. Deve sêr parca em concedê-los, deve expô-los á grande luz da publicidade; não se deixando porém dominar por alguma idéa exclusiva, não recusando protecção aos variados interesses da sociedade”. Com a criação do Registro Geral de Imóveis, pela Lei 1.237/1864, iniciou-se o registro das transmissões “entrevivos” por título oneroso ou gratuito de bens suscetíveis de hipotecas, assim como a instituição dos ônus reais, que não operariam seus efeitos a respeito de terceiros, senão pela transcrição e desde a data dela. A transcrição, contudo, não induzia à prova do domínio, que ficava “salvo a quem for”. Determinava ainda a Lei 1.237/1864 que não havia outras hipotecas senão as que estabelecia, não se considerando, contudo, derrogado o direito que ao exequente competia de prosseguir a execução da sentença contra BOLETIM 362

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os adquirentes dos bens do condenado (Art. 3º, § 12). Mas, para ser oposto a terceiros, dependeria de inscrição. Esse § 12 do art. 3º da Lei gerou dúvidas acerca da necessidade de registro de hipoteca judiciária para atingir o terceiro adquirente de boa-fé, criando embate entre o conselheiro Antônio Pereira Rebouças e Augusto Teixeira de Freitas. Contudo, a Lei 1.237/1864 foi regulamentada pelo Decreto 3.453/1865, que estabeleceu: Art. 111. Todavia não está derogada a hypotheca Judiciaria, a qual sem importar preferencia, consiste sómente no direito que tem o exequente de proseguir a execução da sentença contra os adquirentes dos bens do devedor condemnado (art. 3º § 12 da lei). Então, Antônio Teixeira de Freitas conclui que o que a hipoteca judiciária gerava era uma meia hipoteca, trazendo apenas e tão somente o direito de sequela e não de preferência. Vê-se, portanto, que a legislação protegia apenas o terceiro credor de nova hipoteca inscrita, não trazendo proteção ao terceiro adquirente de boa-fé. Muitos dos entraves ao tráfego imobiliário e à concessão do crédito real continuavam vindo a cabo na tentativa de implementar no Brasil o sistema de registro Torrens através do Decreto 451-B, de 1890. Segundo consta de sua exposição de motivos, os traços capitais do regime proposto assinalam-se pelas seguintes características: 2º Registro de todos os direitos, que gravarem o immovel, para a constituição delles entre as partes e a sua acção contra terceiros; “4º Publicidade real, e não pessoal, isto é, instituição de um grande livro das terras, onde cada propriedade, em vez de cada proprietario, tenha aberta a sua conta;” A substituição da incerteza pela segurança, da obscuridade e do palavreado pela brevidade e pela clareza. O decreto, então, dispõe: Art. 19. Nenhuma sentença, ou mandado de execução, terá effeito contra immovel admittido ao regimen deste decreto, emquanto não for averbada no livro da matricula, e mencionada a averbação na propria sentença, ou no mandado.

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Gradual evolução dos atos suscetíveis à publicidade registral Entretanto, a tentativa de implementação do regime Torrens não deu muito certo. Em 1916 foi editado o Código Civil que, passando ao largo da polêmica sobre a adoção ou não da fé pública registral travada entre Lysippo Garcia, Soriano Neto, Serpa Lopes e Filadelfo de Azevedo, trouxe para o registro imobiliário, entre outros avanços, a publicidade registral, a transcrição das transmissões causa mortis e a aquisição por usucapião. Houve então, nos anos seguintes, uma gradual evolução e ganho de corpo dos atos suscetíveis à publicidade registral. O Decreto 4.827/1924 incluiu entre as situações inscritíveis: penhoras, arrestos e sequestro de imóveis, além de citações de ações reais ou pessoais e reipersecutórias relativas a imóveis. Nota-se, no Decreto 58/1937, certa semelhança com a suspensão da ação enquanto não registrada sua existência no Registo Predial Português, mencionada pela doutora Mónica Jardim, ao dispor que: Art. 2º As penhoras, arrestos e sequestros de imóveis, para os efeitos da apreciação da fraude de alienações posteriores, serão inscritos obrigatoriamente, dependendo da prova dêsse procedimento o curso da ação. [Disposições Transitórias] Por sua vez, o Decreto 4.857/1939 deu mais corpo à publicidade das constrições judiciais, determinando que a inscrição da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior. E o artigo 281 diz que serão inscritas no Livro 4 as ações reais ou pessoais reipersecutórias, inclusive possessórias, quando for o caso, e as de retificação de registro, pelas certidões das citações, averbando-se as decisões, recursos e seus efeitos e ficando, desde logo, considerados os bens como litigiosos para o efeito de apreciação de fraude de posteriores alienações. O Decreto-Lei 1.608/1939, o CPC, trazia que: no mesmo despacho em que conceder penhora, arresto ou sequestro de imóveis loteados, o juiz, ex-officio, mandará fazer, no registro, a devida anotação. Finalmente, então, evoluímos para a adoção do fólio real, com a Lei 6.015/1973, que dispôs: Art. 1º Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenti-


cidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei. O art. 169 determina que todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios. Nota-se que o artigo 169 dispõe serem os atos enumerados no 167 obrigatórios, não impondo sanção. Aqueles atos que não fossem publicados no Registro não teriam eficácia perante terceiros, não sendo, portanto, oponíveis ao adquirente de boa-fé. A Lei 7.433/1985 veio obscurecer essa interpretação ao determinar que na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, deveriam ser apresentadas as certidões de efeitos ajuizados. Porém, o Decreto 93.240/1986, que regulamentou a Lei 7.433, não fez referência à certidão de feitos ajuizados para a lavratura de atos notariais relativos a imóveis, referindo-se apenas à certidão de ações reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e de ônus reais, expedidas pelo Registro de Imóveis competente. Eu entendo que a Lei 7.433/1985 mencionou a certidão de feitos ajuizados por tratar também da lavratura de atos notariais relativos a bens não sujeitos ao registro imobiliário. Já o Decreto 93.240/1986, que trata exclusivamente de atos notariais relativos a imóveis, referia-se apenas a certidões expedidas pelo Registro de Imóveis, por ser obrigatório o registro das ações para terem eficácia perante terceiros. Contudo, essa interpretação não é a mais acatada pela jurisprudência. Diante da promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, que representou um marco na chamada reforma do Judiciário, buscou-se dar maior celeridade ao processo, sendo então aprovada a Lei 11.382/2006, que introduziu no Código de Processo Civil então vigente o artigo 615-A, e o § 4º do art. 659, a nossa conhecida averbação premonitória. Determinando ainda (§ 3º): Art. 615-A. O exequente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto. (...) § 3º Presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593). Criou também maior facilidade no instrumento que seria apto a registro para penhora, determinando que independia de mandado judicial.

Ao tratar da averbação premonitória em 2007, o desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, doutor Marcelo Guimarães Rodrigues, afirma vigorar o fetichismo do processo e a antecipação do momento em que a fraude à execução é presumida, e diz: “Reflexo de uma cultura jurídica discutível, para dizer o menos, que não cabe aqui analisar, valoriza-se em nosso país mais o processo do que as relações negociais típicas ou mesmo a legislação concernente aos registros públicos, que também é de ordem instrumental, além de pública e cogente”. Reforçando suas palavras, utiliza-se dos dizeres de Décio Antônio Erpen, que diz: “Muitos credores desidiosos e omissos foram vencedores nos pleitos judiciais, como autêntica loteria jurídica. Nunca o direito foi tão injusto para milhares de contratantes de boa-fé, como no instituto da fraude à execução. Prestigiou-se o processo e a suposta dignidade da jurisdição, gerando-se a insegurança jurídica, olvidando-se que a segurança jurídica é um dos valores supremos do direito”. Nesse contexto é editada a Medida Provisória 656/2014 que em sua exposição de motivos diz: MP 656/2014 - EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS Atualmente, a operação de compra e venda de um imóvel é cercada de assimetria de informação. De um lado, o vendedor tem informações mais precisas sobre sua própria situação jurídica e financeira e sobre a situação física e jurídica do imóvel. Do outro lado, o comprador e o financiador não possuem, de pronto, essas informações, devendo buscá-las em fontes fidedignas. Os registros cartorários constituem-se em uma das mais importantes fontes de informação sobre a condição jurídica do imóvel, do vendedor e do comprador (...) Ou seja, por desconhecimento ou economicidade, os agentes deixam de trabalhar com a totalidade das informações necessárias para aferir o risco e, consequentemente, o efetivo preço da transação e as consolidam com um “vácuo informacional”, que possibilita, no futuro, a contestação ou reversão da operação. A concentração dos atos na matrícula do imóvel pode ajudar na mitigação deste “vácuo informacional”. Trata-se de procedimento que contribuirá decisivamente para aumento da segurança jurídica dos negócios, assim como para desburocratização dos procedimentos dos negócios imobiliários, em geral, e da concessão de crédito, em particular, além de redução BOLETIM 362

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de custos e celeridade dos negócios, pois, num único instrumento (matrícula), o interessado terá acesso a todas as informações que possam atingir o imóvel, circunstância que dispensaria a busca e o exame de um sem número de certidões e, principalmente, afastaria o potencial risco de atos de constrição oriundos de ações que tramitem em comarcas distintas da situação do imóvel e do domicílio das partes.

Um sistema de proteção forte: novo CPC complementa a publicidade registral As disposições da MP 656/2014 atinentes à concentração dos atos na matrícula são então inseridas nos artigos 54 e seguintes da Lei 13.097/2015. Completa-se esse novo passo na publicidade registral, a entrada em vigor do novo CPC, vindo a estabelecer, seguindo classificação dada pela doutora Mónica Jardim, um sistema de proteção forte. O art. 54 da Lei 13.097/2015 determina: Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil; III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. E o art. 59 modifica a Lei 7.433/1985, resolvendo a celeuma que antes fora criada, determinando que “o tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de proprie-

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dade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição”, excluindo assim a certidão de feitos ajuizados. O novo CPC estabelecido pela Lei 13.605/2015 traz em seu art. 792 as disposições atinentes à fraude à execução, de modo bastante similar ao já estabelecido na Lei 13.097/2015. Um ponto que até me leva a um relacionamento com a celeuma dada pela Lei 7.433 e o regulamento dado pelo Decreto 93.240, é o inciso IV do art. 792/CPC, que diz que a alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução “quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”, não mencionando a necessidade do registro. Contudo, creio eu que essa disposição está relacionada à Lei 13.097 e ao § 2º, dispondo que “no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”. Assim, entendo que da mesma forma que quando constava das certidões de feitos ajuizados na Lei 7.433, o decreto, por ser exclusivamente direcionado ao registro imobiliário, dizia que as certidões eram expedidas pelo registro imobiliário, aqui o legislador deixou ampla essa situação por tratar também da fraude à execução relativa a bens móveis não sujeitos a registro. Concluindo, eu creio que a legislação deve continuar evoluindo em busca da tutela do direito pela publicidade registral, a qual caminha para um grande avanço tecnológico com adoção do registro eletrônico para garantir novos e eficazes meios de cognoscibilidade. Precisamos resgatar a fé pública que a sociedade deposita nos cartórios. Termino com este trecho do Samba da Bênção, de Vinícius de Morais: A vida é pra valer Não se engane, não É uma só Duas mesmo que é bom Ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado com certidão passada em cartório do Céu assinado embaixo: Deus! E com firma reconhecida A vida não é de brincadeira, amigo A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida...


Publicidade registral das averbações premonitórias, constrições judiciais e institutos assemelhados “Vamos analisar a abertura do ordenamento jurídico para os eventos, especialmente os judiciais, que têm reflexo no patrimônio imobiliário pelo fenômeno da publicidade. Quiçá concluir que tal abertura eleva a publicidade registral a outro patamar de relevância no sistema normativo.”

Por João Pedro Lamana Paiva Oficial de Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre/RS

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epois da história da publicidade no Brasil, vamos dar continuidade ao tema com aqueles gravames que levam até à perda da propriedade. O que vamos ver então? Publicidade registral das averbações premonitórias, e eu diria também acautelatórias, constrições judiciais e institutos assemelhados. Analisar a abertura do ordenamento jurídico para os eventos, especialmente os judiciais, que têm reflexo no patrimônio imobiliário pelo fenômeno da publicidade. Quiçá concluir que tal abertura eleva a publicidade registral a outro patamar de relevância no sistema normativo. Qual a finalidade do sistema registral brasileiro? Dar publicidade, autenticidade, eficácia dos atos que são levados a efeito. Por isso essa publicidade enorme que nós temos no nosso sistema registral brasileiro. Aspectos curiosos sobre a publicidade na América

Latina. Os latinos são criativos, vamos ver a publicidade em imóveis em alguns países. Aqui uma ação de usucapião, uma publicidade que se dá in loco no imóvel: “Prescripción adquisitiva [...]”.

O instituto do sistema Torrens trazido em 1890 vigorou muito bem no Brasil. O Rio Grande do Sul foi um dos BOLETIM 362

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primeiros a adotar. O Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre tem 500 livros Torrens e 87 mil registros, que estão vigorando. Hoje, o sistema Torrens ainda existe para imóveis rurais. No Estado do Rio Grande do Sul você pode renunciar, porque no meu ofício 99% são imóveis urbanos. E quando entra um ato no sistema comum ou Torrens há proprietários que não querem desistir do Torrens, por incrível que pareça. O Brasil tem um sistema duplo de registros. Tem o sistema comum, do Código Civil, e o Torrens para imóveis rurais. No Registro de Imóveis de Santo Ângelo, onde eu comecei minha vida, quando um proprietário precisava de financiamento dava um imóvel como garantia e esse imóvel estava no Torrens, o banco não exigia o registro da hipoteca. O banco exigia a via original do Torrens, ia ao imóvel e colocava uma placa “imóvel hipotecado”. Quer publicidade mais forte do que essa?

que uma lei alcance efeitos. O art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) assim prevê: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.” No aspecto registral é possível ponderar que “Ninguém se escusa de respeitar direito registrado, alegando que não o conhece.”

Do passado ao presente Até pouco tempo atrás, o protesto contra alienação de bens não acessava o Registro de Imóveis. Hoje é possível averbá-lo em quase todos os Estados. A penhora era registrada e isso, não raras vezes, dificultava o seu acesso ao álbum imobiliário (ex.: necessidade de abertura de matrícula, observância de inúmeros requisitos etc.). Qual a finalidade da penhora? A finalidade da penhora é dar conhecimento a terceiros de boa-fé para a sua aquisição imobiliária. Por isso, hoje, o legislador adotou a penhora averbada e não registrada. Por que averbada? Porque a averbação é simples, basta ter o nome do devedor com a sua qualificação. Basta ter o credor e basta ter o número da transcrição, inscrição. No Rio Grande do Sul, para minimizar esses atos de devoluções foi criada a “notícia de penhora”. Protocolado o mandado, não dava para registrar, noticiava na matrícula. Dificilmente alguém comprava um imóvel desses. Notícia de penhora, um instituto que serviu à publicidade. Hoje a notícia de penhora é pouco utilizada por causa da alteração da forma do ato de penhora, de registro para averbação.

Aqui outra publicidade: “Imóvel em juízo. Proibida a sua venda. Cuidado com o golpe”. Existe publicidade melhor?

Sobre a publicidade no Brasil Estamos numa constante (r)evolução. No Brasil, o método de alcançar a publicidade é diferente. Ocorre, hoje, pela realização de um ato registral, num livro específico (Livro 2 – Registro Geral / Transcrição / Inscrição), de um órgão apropriado (Registro de Imóveis) da situação da coisa (territorialidade). E naqueles Estados que tenham o imóvel no sistema Torrens, porque ainda há imóveis que têm matrículas abertas hoje não pelo sistema da transcrição, mas com base no Torrens. Trata-se de um método similar ao vislumbrado para 182

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Minuta de notícia de penhora para averbar na matrícula do imóvel AV-10/10.000(AV-dez/dez mil), em 19/10/2018.NOTÍCIA SOBRE EXISTÊNCIA DE PENHORA Procede-se a esta averbação nos termos do artigo 396, da Consolidação Normativa Notarial e Registral-CGJ/RS, para ficar constando que foi protocolado sob o número 889.000, em 15/10/2018,o termo de penhora datado de 17 de setembro de 2018, extraído dos autos do processo número 001/0000000000000-0 (CNJ:.00000000000000000) - Execução de Título Extrajudicial, em que é exeqüente FULANO DE TAL LTDA., com CNPJ/MF sob número 00000000000000 e devedor BELTRANO DE TAL.,


com CPF sob número 000000000000, oriundo da Vara Cível da Comarcar de XXXXX, nesta Capital, a qual foi devolvida ao apresentante, por não preencher os requisitos exigidos pela legislação vigente.- PROTOCOLO - Título apontado sob o número 889.000, em 15/10/2018.- Porto Alegre, 19 de outubro de 2018.- Registrador/Substituto(a)/ Escrevente Autorizado(a):_______________________.EMOLUMENTOS - R$XXXX. Selo de Fiscalização 0000000000000 O que não estava expresso no rol dos incisos I e II do art. 167 da LRP não acessava o álbum imobiliário, era taxativo. Hoje ele é exemplificativo, nele os problemas gerados oportunizam reflexões e consequentemente o desenvolvimento do princípio da concentração. Vamos concentrar tudo o que se referir ao imóvel na matrícula, que é o fólio real e aquele que vai originar a negociação imobiliária. O Registro Civil de Pessoas Naturais também passa por profunda transformação. Reconhecimento de filho, alteração do prenome, gênero e sexo. Esse princípio da verdade real é o corolário da publicidade. É isso que é preciso trazer para o mundo da publicidade. Antes só se (i) executava uma obrigação, (ii) retificava uma matrícula, (iii) fazia uma partilha consensual, ou (iv) alcançava o domínio pela usucapião por ações judiciais próprias. Hoje todos sabemos que não é mais assim (Lei nº 9.514/1997, Lei nº 10.931/2004, Lei nº 11.441/2007 e art. 1.071 do CPC). Isso é desjudicialização. Só se regularizavam imóveis por processos judiciais complexos e morosos. Hoje temos os arts. 195-A e 195-B da Lei nº 6.015/1973 e as Reurbs e Legitimações. Dependendo da visão de cada Corregedoria Estadual, hoje é possível verificar a reserva legal, o arrendamento rural, o comodato sendo averbados. Tudo isso tem que vir para o Registro de Imóveis. Ao longo do tempo foram criados provimentos visando a regularização de imóveis, os quais fomentaram reflexões que culminaram na Lei nº 13.465/2017 (Reurb). Hoje temos um sistema inclusivo. E é esse o objetivo do sistema registral, incluir e não retirar. Publicidade é um dos motes.

Agora é a hora do registro eletrônico Estamos esperando novos tempos e o Brasil está de bra-

ços abertos para receber as novas tecnologias. Agora é a hora do Registro Eletrônico, das Centrais Compartilhadas, do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) etc. Chegou o momento. Para isso nós vamos precisar dos estados, das centrais compartilhadas. Essas centrais compartilhadas vão alimentar o ONR, porque sem elas não tem como fazer. O Brasil é um continente, são 5.570 municípios, 27 federações. Agora chegou o momento. Registro Eletrônico. Agora é tempo em que a publicidade vai preponderar sobre a clandestinidade. A clandestinidade é uma praga no sistema de desenvolvimento econômico. Imóvel imatriculado só causa prejuízo. Nós temos que trazer para a matrícula. Está aí a razão talvez da gratuidade. É o momento social do registrador. A meu critério ele tem que colaborar para isso. Vai ser beneficiado. Hoje não se paga registro para a regularização. Mas a partir da matrícula começa a fluir o registro de pedido de certidões. A luz rompe a escuridão e a verdade liberta. Isso é transformar consciências. E nós precisamos transformar as nossas consciências. Por que a desjudicialização buscou o sistema registral e notarial? É transformar o nosso sistema jurídico. Conseguimos mudar o paradigma em 2015, com a lei 13.097 (arts. 54 e segs.), que levou quinze anos para vigorar. Eu lembro que fomos convidados para ir a Havana, em 2001, para verificar o sistema do Registro de Imóveis de lá, porque ele estava prejudicado, estava arquivado. Ninguém sabe onde andam os livros. E nesse encontro nós lançamos, com o desembargador Décio Antônio Erpen, o princípio da concentração. Está nos anais desde 2001, mas só veio à luz em 2015. E agora me perguntam: “Lamana Paiva, o que adiantou esse esforço todo? Veio o Código de Processo Civil e tirou”. Onde é que retirou? Não retirou. O Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, trouxe efeitos importantes como a validação das informações sobre imóveis concentradas num único órgão (matrícula), no Registro de Imóveis. Entre os benefícios estão a redução da assimetria da informação (tudo está na matrícula); segurança jurídica nas contratações; diminuição de custos; quem deseja se proteger tem o dever (ônus legal) de dar a conhecer (premissa básica dos registros: “Quem não registra não é dono”, “Quem não noticia não está protegido”) . O art. 1.245 do Código Civil diz: “Transfere-se entre BOLETIM 362

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vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.” Nós temos um binômio. Título e módulo. Título é aquele que é apresentado. E o módulo é o registro. E o parágrafo primeiro do art. 1.245/CC diz: ‘Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.”

Pode perder a propriedade uma vez ali averbado. A nova lei dispõe de dois momentos distintos para expedição da certidão para averbação no Registro de Imóveis: a) o primeiro momento é o do ajuizamento da execução e dos atos de constrição (art. 799, IX do CPC); b) o segundo é o momento da admissão da execução pelo juiz (art. 828 do CPC), corroborando a fraude à execução nas alienações posteriores.

Cuidados Não se trata de permitir o acesso de tudo ao Registro de Imóveis de modo desmedido e descuidado, mas de noticiar fatos e atos relevantes e que possam ter repercussão na esfera jurídica de terceiros, prevenindo litígios. Essa é a finalidade. Não importa que na matrícula do imóvel tenha mil atos. O importante é você ler e concluir que o imóvel se encontra livre de quaisquer ônus reais ou convencionais, bem como de ações persecutórias etc. A Súmula 375/2009 do STJ diz: “O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Essa súmula ajudou muito o sistema registral, e principalmente o princípio da concentração, ao dizer que o reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora. E por que depende? Havia uma discussão entre processualistas e civilistas. Os processualistas diziam que uma vez distribuído o processo de execução se deu publicidade. O registro é mera informação. Então não adiantava ter o registro, porque já tinha sido distribuído, e aí se vendia o imóvel, caracterizava fraude na execução.

Art. 799 do CPC. Incumbe ainda ao exequente: IX - proceder à averbação em registro público do ato de PROPOSITURA da execução... para conhecimento de terceiros;

Publicidade registral das ações premonitórias, constrições judiciais e institutos assemelhados: efeitos no patrimônio de terceiros Eu uso também a premonitória e a acautelatória, porque são sinônimos. A averbação premonitória ou acautelatória, criada originalmente pelo art. 615-A do CPC revogado (Lei nº 11.382/2006), grande avanço na segurança jurídica imobiliária, alcançou maior delineação da atuação do exequente, bem como um regramento mais claro quanto ao cancelamento das averbações. A finalidade é noticiar a certidão acautelatória ou premonitória. Noticiar a formação de processo de execução que pode alterar ou modificar o direito de propriedade. 184

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Esse dispositivo se assemelha a “notícia” de penhora de imóvel. Consolidação Normativa Notarial e Registral do RS Art. 424 – Averbar-se-ão, ainda, na matrícula ou no registro, para o simples efeito de dar conhecimento aos interessados requerentes de certidão: 7) a notícia de penhora, quando for impossível a feitura do registro por falta de requisitos formais no título apresentado, exigidos pela legislação em vigor; Esse é um dispositivo que nós podemos usar. O art. 828/ CPC depende do despacho do juiz. Por quê? Porque o exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida, agora já com o veredito do magistrado. Art. 828 [CPC]. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi ADMITIDA pelo juiz ... para fins de averbação no registro de imóveis... § 1º No prazo de 10 (dez) dias de sua concretização, o exequente deverá comunicar ao juízo as averbações efetivadas. § 2º Formalizada penhora sobre bens suficientes para cobrir o valor da dívida, o exequente providenciará, no prazo de 10 (dez) dias, o cancelamento das averbações relativas àqueles não penhorados. § 3º O juiz determinará o cancelamento das averbações, de ofício ou a requerimento, caso o exequente não o faça no prazo. § 4º Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação. São normas antagônicas? No mesmo diploma legal? Sim. Ao intérprete cabe colmatar lacunas interpretando sis-


tematicamente o ordenamento jurídico. Para as ações de execução são dois os momentos trazidos pelo legislador, sendo o primeiro explicitado pelo art. 54, II, da Lei nº 13.097/2015, que deve ser lido em conjunto com o art. 799, IX, do CPC, para que se autorize o averbar quando da propositura/ajuizamento da execução. Nesse caso, mesmo antes da admissão da execução já se poderá requerer a publicidade ampla no Registro de Imóveis sobre a existência de dívida reconhecida. É possível, ainda, se não requerida a averbação quando da propositura/ajuizamento da execução, que se alcance a ampla publicidade registral (erga omnes) quando da admissão da execução pelo magistrado. Eis o que estabeleceu o art. 828/CPC. Em síntese, a nova lei dispõe de dois momentos distintos para expedição da certidão para averbação da ação de execução no Registro de Imóveis: a) do ajuizamento da execução e dos atos de constrição (art. 799, IX, CPC c/c art. 54, II, da Lei nº 13.097/2015), sob responsabilidade do exequente, a fim de dar conhecimento a terceiros; b) da admissão da execução pelo juiz (art. 828/CPC), corroborando a fraude à execução nas alienações posteriores. É possível ainda, se não requerida a averbação quando da propositura do ajuizamento da execução que se alcance a ampla publicidade registral legal quando admitida a execução pelo magistrado. É isso que estabelece o art. 828/CPC. Em síntese, nova disposição de dois momentos distintos para a expedição da certidão de averbação do ajuizamento admitido pelo magistrado na execução. Ambas existem para respaldar a efetividade do processo e, por via de consequência, a segurança dos negócios jurídicos, dever do Estado, podendo ser implementadas desde a distribuição, após a admissão da execução ou até mesmo em momento posterior, no interesse do processo (e do exequente). Uma vez procedida a averbação, o exequente não se forra do ônus (obrigação) de não gerar dano ao devedor. Assim, a comunicação da realização da averbação premonitória ou acautelatória ao Juízo deve ser feita pelo exequente, conforme art. 828/CPC, § 1º, no prazo de 10 (dez) dias contados do prazo para a retirada do ato praticado junto ao Registro de Imóveis. E, uma vez alcançada a penhora, com arrimo agora no § 2º do art. 828/CPC, igualmente deve o exequente, também em 10 (dez) dias da intimação da penhora, can-

celar as averbações que excedam a proteção do processo, para não caracterizar excesso de execução. A inércia do exequente é motivo de justa causa indenizatória, nos termos do § 5 º do art. 828/CPC. Não sendo realizados os cancelamentos pelo exequente no prazo, o juiz determinará de ofício, ou a requerimento, a baixa dos gravames. Tais dispositivos são de suma importância para manter o sistema oxigenado, em construção, visando refletir a realidade, demonstrando a seriedade e a boa-fé que devem pautar a relação processual (art. 5º do CPC). Com efeito, o Registro de Imóveis consiste, hoje, num repositório aberto para a inclusão e a exclusão de informações que tenham repercussão no Processo. O ordenamento jurídico está indicando o caminho a seguir, se se pretender alcançar alguma proteção. O Sistema Registral é considerado antitético da clandestinidade, não importando o número de atos praticados no fólio real, mas sim que se alcance a ampla publicidade.

Lei 13.097/20015: princípio da concentração e da fé pública registral O art. 54 da Lei nº 13.097/2015: (i) elenca os atos judiciais, administrativos e convencionais passíveis de acessar o fólio real, e (ii) prevê o efeito de não se dar ampla publicidade.

Fé pública registral Hoje nós temos fé pública em função da Lei 13.097, que corroborou a fé pública original. A cautela necessária será a verificação do conteúdo da matrícula onde poderá contar com o princípio da fé pública registral, assim como na Espanha e em outros países. Consolidados na legislação os princípios da concentração e da fé pública registral que propugnam em última análise a redução das assimetrias de informação e consequentemente a diminuição dos riscos e dos custos de um negócio imobiliário, pela segurança e proteção geradas à sociedade (arts. 54 ao 58 da Lei nº 13.097/2015 e art. 828 e §§ do NCPC) – importa estabelecer agora a sua aplicabilidade. A jurisprudência brasileira já está trabalhando com a Lei 13.097. Jurisprudência O próprio Judiciário já reconhece que existe o princípio BOLETIM 362

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da concentração, está inserido nos seus julgados. No Estado de São Paulo reconhece que nos termos da referida lei devem estar na matrícula ações reais pessoais e reipersecutórias sob pena de não afetarem o adquirente. Outro agravo de instrumento do Tribunal de Justiça do Amazonas negou, com base no art. 55 da Lei 13.097, o bloqueio das matrículas abertas. Como se vê, alguns tribunais já começam a decidir sobre a Lei 13.097, corroborando a verdadeira fé pública registral. • Apelação 1019197-56.2015.8.26, TJ-SP da 18ª Câmara de Direito Privado, 12/5/2017, reconhece que, nos termos da referida lei, devem estar na matrícula ações reais, pessoais reipersecutórias etc., sob pena de não afetarem o adquirente. • Agravo de Instrumento 4000781-44.2015.8.04.0000, TJAM, com base no artigo 55 da lei, negou o bloqueio de matrículas abertas em empreendimento a pedido de suposto verus dominus [verdadeiro dono], o qual pretendia ver valer seu direito contra terceiros. Artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - REGISTRO de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - AVERBAÇÃO, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; III - AVERBAÇÃO de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - AVERBAÇÃO, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

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O item I, registro de citação de ações reais e pessoais reipersecutórias, mantém-se. Averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento da ação, o art. 799/CPC, em fase de cumprimento da sentença. Averbação também de restrição administrativa ou convencional, ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei. Afasta essa indisponibilidade. Essa indisponibilidade é morte civil de qualquer proprietário de imóveis. Averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. Essa é a grande discussão e a grande comparação que nós vamos fazer para provar que mesmo com a admissão do Código de Processo Civil continua em pleno vigor sim, muito mais forte, o princípio da concentração. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula. Terceiros de boa-fé e ônus legal do credor De regra, será oponível o que estiver inscrito, resolvendo o problema da dispersão publicitária (diversas buscas em órgãos distintos para se alcançar minimamente alguma segurança). Art. 54/ Lei nº 13.097/2015 Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. O sistema requer tutela e boa-fé, estabilizando as relações e gerando segurança jurídica ao explicitar os efeitos substantivos da publicidade. É possível considerar uma novidade, sim, a previsão desses efeitos. Antes disso – mesmo após 90 anos de previsão de se levar ao Registro Público – muito se debateu e se divergiu até se alcançar o que ficou expresso na súmula 375 do STJ. Até então reinava a insegurança jurídica. Art. 56/ Lei nº 13.097/2015 Art. 56. A averbação na matrícula do imóvel prevista


no inciso IV do art. 54 será realizada por determinação judicial e conterá a identificação das partes, o valor da causa e o juízo para o qual a petição inicial foi distribuída. § 1º Para efeito de inscrição, a averbação de que trata o caput é considerada sem valor declarado. § 2º A averbação de que trata o caput será gratuita àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. § 3º O Oficial do Registro Imobiliário deverá comunicar ao juízo a averbação efetivada na forma do caput, no prazo de até dez dias contado da sua concretização. § 4º A averbação recairá preferencialmente sobre imóveis indicados pelo proprietário e se restringirá a quantos sejam suficientes para garantir a satisfação do direito objeto da ação. O artigo 56, que trata da versão do número do imóvel elenca: “a averbação recairá preferencialmente sobre imóveis indicados pelo proprietário e se restringirá a quantos sejam suficientes para garantir a satisfação do direito objeto da ação. Art. 58. O disposto nesta Lei não se aplica a imóveis que façam parte do patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas fundações e autarquias. Vale citar aqui o parágrafo único do art. 54, que excepciona, ainda, os casos de falência e os atos que independem de registro. Usucapião independe? Aqui referimo-nos ao caso da recuperação judicial. Usucapião independe de registro? Hoje temos três tipos de usucapião. A usucapião judicial, que permanece, com dois artigos no Código de Processo Civil. A usucapião administrativa, da Lei 13.465. E a usucapião extrajudicial. A primeira, uma vez expedido o mandado, se o possuidor depois de reconhecida a posse, não quiser registrar. A administrativa é obrigatória, e a extrajudicial também é obrigatória agora, porque ela tramita no próprio Registro de Imóveis, e ao deferir o final ele é obrigado a proceder o registro. Constrições judiciais Art. 61. Os registros e averbações relativos a atos jurídicos anteriores a esta Lei, devem ser ajustados aos seus termos em até 2 (dois) anos, contados do início de sua vigência.

Esse prazo já transcorreu e quem averbou a existência de ação ou restrição estará protegido. Quem não averbou não poderá demandar contra eventual terceiro de boa-fé que vier a contratar com o imóvel (REsp 1.592.072-PR). Lembrando que a boa-fé se presume, a má-fé se prova. Registro da Citação Há muito tempo (90 anos aproximadamente – Decreto nº 18.542/28) as informações de processos judiciais podem acessar o Registro de Imóveis. Quantos já recepcionaram um Mandado de Registro de Citação? Já contávamos com o registro das citações de ação real ou pessoal reipersecutória. Corroborado pelo art. 167, I, 21 da Lei nº 6.015/1973: “das citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis;” Esse ato registral (citação) se assemelha à notícia de ação. Ambos importam na publicidade da existência de uma ação que pode ter repercussão no imóvel. Para garantir a segurança jurídica dos negócios imobiliários ou poderão ser registradas as citações ou poderá ser averbada a NOTÍCIA DA AÇÃO na matrícula/ transcrição do imóvel para fins de conhecimento erga omnes da tramitação. Seja por qual dos modos optar a parte interessada, o que se pretende é alcançar uma publicidade ampla, decorrente do registro público, diferente da publicidade (restrita) da existência de processo. Hipoteca judiciária A hipoteca judiciária, instituto de garantia do processo uma vez existente sentença condenatória, sofreu alterações quanto aos seus requisitos e a sua instrumentalização. Assim, a nova lei acrescentou no art. 495, § 1º, III a possibilidade de se registrar a hipoteca judiciária mesmo havendo impugnação da sentença por recurso dotado de efeito suspensivo. Para o registro de uma hipoteca judiciária antes era preciso um mandado judicial com fim específico, o que não é mais necessário na vigência do atual Código de Processo Civil. O parágrafo segundo do art. 495 delineou uma nova especificação de título ao determinar que o interessado apresentará cópia da sentença (certamente autenticada pelo respectivo juízo), independentemente de ordem judicial, o que facilitará a oneração no fólio real e garantirá o direito de preferência em relação aos outros credores, observada a prioridade no registro. BOLETIM 362

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Junto com a cópia da sentença deverá ser apresentada uma declaração do exequente e do advogado do processo, indicando os bens a serem hipotecados de modo a poder atender as exigências dos artigos 222, 223 e 225 da Lei nº 6.015/1973. É possível registrar a hipoteca? Eu entendo que sim, mesmo em situação interlocutória. A decisão interlocutória, como disposto no art. 203, § 2º, é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não extingue o procedimento comum ou a execução judicial. Porém, essas decisões podem ter como conteúdo o mérito da causa, sendo consideradas sentenças aparentes, conforme doutrina de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery1. Por isso fica o questionamento. É possível o registro da hipoteca judiciária com decisão interlocutória para pagamento de prestação pecuniária? Entendemos que sim, é possível. § 4º A hipoteca judiciária, uma vez constituída, implicará, para o credor hipotecário, o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro. Indisponibilidade de bens Matéria relacionada com o princípio da disponibilidade. A indisponibilidade retira do seu titular um dos atributos do direito de propriedade, que é a faculdade de dispor voluntariamente da coisa. Retira o imóvel do mercado negocial. Nós temos dezenas de indisponibilidades, mas a indisponibilidade de bens é diferente, porque retira o imóvel do mundo negocial. Indisponibilidade não é inalienabilidade (não afeta a transmissão por força da lei). Lei nº 6.015/1973 Art. 247 - Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na Lei. O Provimento nº 39 do CNJ criou a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB. O art. 14 do Provimento nº 39/CNJ determina a prévia consulta à CNIB antes da prática de qualquer ato notarial ou registral, exceto a lavratura de testamento. 1 NERY JÚNIOR, Nelson. e NERY, Rosa M. de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil; novo CPC – Lei 13.105/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 721-722.

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Como afirmado, a publicidade alcançou outro patamar. A cada dia são milhares de indisponibilidades acessando o Registro de Imóveis através da CNIB ou por outros meios. Problema 1: A “prática dos atos de ofício” (arts. 7º e 14 do Prov. 39/CNJ) implica a expedição de certidões? Sim, é preciso consultar a CNIB antes da expedição de qualquer certidão. Sendo positiva, informar na certidão (art. 21 da Lei nº 6.015/1973). Problema 2: Para os notários, envolve a consulta antes da lavratura de uma ata notarial, por exemplo? Para reflexão. Será que prejudica? Problema 3: Como agir quando a ordem de indisponibilidade é protocolada após o protocolo do título de transmissão do bem, mas antes da prática do registro? Ontem falamos sobre o princípio da prioridade. Prior in tempore, potior in jure. O primeiro que chega é o que leva. Mas para a indisponibilidade parece que não podemos agir assim. E entendo que não devemos. O melhor é consultar o juiz do feito, explicando que está protocolada uma escritura de compra e venda, mas ato posterior entrou em indisponibilidade. Como fazer? Registrar em nome do comprador, que não tem nada a ver, ou registrar sem a averbação? É recomendável deixar para o juiz decidir. Problema 4: Tem sido frequente a apresentação de título judicial de alienação de imóvel indisponível por Juízo diverso daquele que expediu a ordem de indisponibilidade e sem que o Juízo da alienação determine expressamente a prevalência dessa frente à indisponibilidade. Como resolver? Quando se tratar de título judicial, eu não vejo problema em fazer o registro, porque o imóvel continua indisponível. Não foi por força, não foi por livre vontade das partes, e sim por um ato de processo. Aplicar o parágrafo único do art. 16 do Provimento 39/CNJ e consultar o Juízo que expediu a ordem de alienação visando a sua complementação, se prevalecerá ou não sobre a indisponibilidade. Problema 5: É possível expedir certidão do acervo criado em face da CNIB? Ou seja, certificar especificamente sobre ter ou não indisponibilidade no banco de dados em relação a uma determinada pessoa sem qualquer registro para se proceder? Se possível, cobra-se emolumentos? Nós temos o tal do indicador pessoal de nomes. Como fazer se alguém requerer para verificar se tem alguma indisponibilidade contra o fulano? Será que


podemos fornecer? Acho que não. Não podemos. E não podemos nem cobrar, porque a indisponibilidade da CNIB é gratuita. Ou seja, certificar especificamente sobre se ter ou não disponibilidade do banco de dados em relação a determinada pessoa sem qualquer registro para se proceder, se possível, cobra-se emolumentos? Entendo que não, mas é para reflexão. Ordens da CNIB Levantamento procedido no Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre. Período apurado: 2/1/2018 a 30/6/2018.

Total de nomes indicados nas ordens

140.039

Atos praticados de indisponibilidade

883

Atos praticados de cancelamento de Indisponibilidade

358

Total de nomes com indisponibilidade cancelada

17.667

Total de nomes com indisponibilidade ativa (Livro 5 - Indicador Pessoal)

122.372

Dentro de cada ordem tem três, quatro ou cinco nomes. Total de nomes indicados nas ordens: 140.039. E nós temos que pesquisar todos esses nomes. Atos praticados de indisponibilidade no primeiro semestre somente na 1ª zona: 883. Esses 883 imóveis estão fora do negócio. Atos praticados de cancelamento de Indisponibilidade: 358. Total de nomes com indisponibilidade cancelada: 17.667. Quantos têm indisponibilidade ativa ainda, esperando para chegar ao adquirente? São mais de 122 mil nomes. O que mais aterroriza é a indisponibilidade.

Ordens de Indisponibilidade

61.116 100%

Justiça Comum

11.688

19%

Justiça Federal

9.237

15%

40.147

66%

Justiça do Trabalho

Ordens de indisponibilidade na 1ª Zona de Porto Alegre: 61.116; 100% dos 140 mil nomes. Justiça comum: 11.688; 19% de todo o Brasil. A Justiça Federal: 9.237; 15%. E pasmem, Justiça do Trabalho: 40.147. A Justiça manda indisponibilizar todos os imóveis. Se você averbar os 300 imóveis da empresa, ela quebra em 48 horas. Então, eu tenho um sistema. Até dez imóveis indisponíveis eu entro em contato com o órgão expedidor, para ver. E consegui em dois casos. Um do Rio Grande do Sul e um de São Paulo. Um com 221 imóveis e outro com 270. O juiz entendeu e mandou cancelar. Sabe qual era o valor? Uma dívida era de R$ 14.200,00 e outra de R$ 18.600,00. Constituição de renda A constituição de renda para assegurar o pagamento das prestações de alimentos já era prevista no antigo Código de Processo Civil (art. 415-Q). A nova lei processual trouxe inovações ao procedimento, facultando ao exequente requerer a constituição de capital por parte do executado, conforme art. 533 e parágrafos, o que se viabiliza através do instituto jurídico em comento, incidindo sobre imóveis suscetíveis de alienação (disponíveis). Sua formalização depende de escritura pública, nos termos do art. 807 do Código Civil, devendo ser registrada na matrícula do imóvel conforme prevê o art. 167, I, 8, da Lei nº 6.015/1973 (mesmo não se caracterizando como um direito real). Caso o credor deseje alcançar uma garantia real, deverá formalizar uma hipoteca com o seu consequente registro na matrícula imobiliária. Com efeito, de acordo com o § 1º do art. 533 do CPC, o imóvel vinculado em constituição de renda torna-se inalienável e impenhorável enquanto durar a obrigação do executado. Essa é uma novidade trazida pelo Código. Institutos assemelhados O instituto do patrimônio de afetação foi um dos grandes instrumentos da legislação do século XXI para a proteção aos adquirentes de boa-fé de imóveis sob regime de incorporação imobiliária, constituindo um patrimônio em separado, incomunicável e independente, destinado à efetiva consecução da obra e à entrega das unidades aos respectivos compradores, o que evita que o incorporador destine o recurso alcançado em um empreendimento para outro. A nova Lei processual no art. 833, XII assim prevê: BOLETIM 362

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Art. 833. São impenhoráveis: (...) XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra. Assim, prestigiou-se o importante instrumento de garantia dos adquirentes de unidades imobiliárias sob regime de incorporação, reforçando o caráter impenhorável dos créditos protegidos pelo Patrimônio de Afetação, como bem explicitado por Melhim Chalhub2. No mesmo sentido prevê o art. 119, IX da Lei nº 11.101/2005. Assim, sempre que houver uma lei ressalvando um patrimônio com destinação específica ela precisará ser observada a fim de que os institutos jurídicos criados sejam preservados sob pena de os vermos fragilizados de modo geral em virtude de um ou outro caso isolado, o que não é recomendável. Desse modo, a qualificação registral prévia deverá informar ao magistrado a existência de um propósito específico do patrimônio que se pretende penhorar, quando houver a previsão da impenhorabilidade legal, e ficar no aguardo de novas providências. Usucapião, notícia na matrícula Visando ampla publicidade acerca de tudo quanto possa ter repercussão no imóvel, entendo que os pedidos de registro de usucapião extrajudicial devem ensejar a averbação de notícia da existência do procedimento na matrícula do imóvel (quando houver). Isso depois de autuada a ata notarial com toda a documentação e protocolado aquele ato, feito o primeiro exame. Noticiado o procedimento na matrícula, uma vez expedida a certidão, se dá conhecimento que existe. Por que noticiar, se o sistema já garante um protocolo? O sistema pode falhar. O ser humano pode falhar ao examinar, não ver que tem o protocolo. Então o melhor é colocar na matrícula, noticiar. Isso servirá para prevenir terceiros interessados em adquirir o imóvel, evitando que contratem com quem já perdeu o domínio para quem implementou os requisitos legais para adquiri-lo, embora ainda sem registro. Tal publicidade gera, salvo melhor juízo, e quando não aparente propósito obscuro ou ilícito, segurança jurídica. 2 CHALHUB, Melhim Namen. Novo CPC poderia reforçar segurança da afetação patrimonial. Boletim Jurídico da AGADIE, Porto Alegre, Jul/Set 2016, ano XXIV, nº 148.

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Modelo de Notícia AV-6/100.000 (AV-seis/cem mil), em 25/9/2018.NOTÍCIA DE PROCEDIMENTO DE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL - Nos termos do requerimento datado de 19 de setembro de 2018, firmado por FULANO DE TAL, fica constando que para fins de publicidade foi protocolado neste Ofício pedido de usucapião extrajudicial, tendo como objeto o imóvel desta matrícula/transcrição, cujo procedimento tramita de acordo com o disposto no art. 216-A da Lei nº 6.015/73.PROTOCOLO - Título apontado sob o número 800.000, em 25/9/2018.Porto Alegre, 27 de setembro de 2018.Registrador/Substituto(a)/Escrevente Autorizado(a):_______________________.EMOLUMENTOS - R$XXX. Selo de Fiscalização XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX.Reserva de prioridade (RS) Em alguns países da América do Sul vigora o Princípio da Reserva de Prioridade. Aqui no Brasil não há previsão legal. Em alguns Estados da Federação, através de Provimentos feitos publicar pelas Corregedorias Estaduais, há normas que se assemelham (mas não são idênticas). No exterior, quando alguém solicita uma certidão para ir lavrar um ato notarial é possível que tal circunstância seja averbada na matrícula do imóvel de modo a permitir que o imóvel saia do comércio e aguarde por um tempo determinado a apresentação do título de alienação. Nesse caso, a prioridade fica reservada para determinado título (espécie de bloqueio). Isso de certo modo excepciona o princípio da prioridade. No Rio Grande do Sul há previsão de se averbar a expedição de certidão para fins de alienação, conforme arts. 327 e segs. do Prov. 32/06-CGJ/RS (Consolidação Normativa Notarial e Registral – CNNR); entretanto, essa averbação não obsta que seja apresentado título contraditório, o qual manterá a prioridade. Por essa razão o instituto não ganhou força. Trata-se de averbação/notícia que não garante, mas serve para informar terceiros que uma contratação imobiliária está em andamento. De qualquer modo é medida que pode ser repensada em face da proteção do futuro adquirente hoje buscada pelo entendimento dominante, o que se alcança se se admitir a Reserva da Prioridade. Aqui mais uma vez a publicidade servindo à segurança jurídica.


Modelo de Reserva de Prioridade AV-7/100.000 (AV-sete/cem mil), em 25/9/2018.SOLICITAÇÃO DE CERTIDÃO ACAUTELATÓRIA PARA FINS DE ALIENAÇÃO/ONERAÇÃO - Nos termos do requerimento de expedição de certidão acautelatória, prevista no parágrafo 1º, do artigo 327, da Consolidação Normativa Notarial e Registral, firmado em 24 de setembro de 2018, pelo Tabelião do |qual Tabelionato: 1º, 2º...|, |nome do tabelião|, onde consta como vendedor FULANO DE TAL e como comprador BELTRANO DE TAL, fica constando que nesta data foi expedida CERTIDÃO ACAUTELATÓRIA, a qual, decorridos trinta (30) dias desta averbação, terá seus efeitos cessados automaticamente, conforme o disposto do parágrafo 4º do artigo 327 da CNNR/CGJ-RS.PROTOCOLO - Título apontado sob o número 800.000, em 25/9/2018.Porto Alegre, 26 de setembro de 2018.Registrador/Substituto(a)/Escrevente Autorizado(a):_______________________.EMOLUMENTOS - R$XXX. Selo de Fiscalização XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX.Efeitos do patrimônio de terceiro: fraude à execução A resolução do problema, de modo geral, pode ser simples. Como? Efetivando a evolução do pensamento que culminou nas recentes alterações legislativas, as quais, por sua vez, reconhecem efeitos a quem publicizou potencial problema na matrícula do imóvel (concentração das informações num órgão). Quem publicizou estará garantido pela evicção. Quem não publicizou, precisará fazer prova em juízo do conhecimento do adquirente acerca da preexistência do problema. Em síntese: privilegia-se quem foi proativo. A proteção do sistema está relacionada com quem se valeu da publicidade. O credor diligente que publicizar sua pretensão estará protegido. “Dormientibus Non Sucurrit Ius” (O Direito não Socorre aos que Dormem). Fraude à Execução e o Princípio da Concentração O estudo do instituto da fraude à execução, previsto no art. 792, rende bons debates, mormente quando citada a incidência de outra legislação contemporânea à publicação do próprio CPC, qual seja, a Lei nº 13.097/2015 (art. 54, caput e parágrafo único), que também tem correlação

com o tema. A nova lei processual alterou a concepção de fraude à execução nas alienações e onerações de bens imóveis. O Princípio da Concentração, expressamente disposto na Lei nº 13.097/2015, passou a nortear a configuração da fraude, impulsionando a concentração dos atos na matrícula imobiliária e a segurança jurídica dos negócios. Equivalência das Leis A regra geral para configuração da fraude, art. 792 do novo CPC, passou a ser a preexistência de averbação de pendência judicial na matrícula do imóvel alienado ou onerado, concentrando em um só lugar as informações reais sobre a situação jurídica de um imóvel e das pessoas detentoras de direitos com repercussão na propriedade. Bens sujeitos a algum órgão registral precisam sofrer a averbação da existência da ação se o credor pretender invocar alienação fraudulenta. Fraude à execução só pode existir, para bens passíveis de registro, se se publicizou ação que pudesse ser comprometida por eventual negócio jurídico. Essa é a inovação do sistema que precisa ser observada. O sistema será mais eficaz e menos oneroso desse modo, ao contrário de como funcionava antes da Lei nº 13.097/2015 e do CPC, com a busca de certidões que oneravam e tardavam a contratação, tornando-a muito burocrática e não oportunizando segurança. Isso porque os bens não sujeitos a registro exigem do futuro adquirente diligências na obtenção de certidões forenses em nome do transmitente do seu domicílio e da situação da coisa (art. 792, § 2º), mas tão só para esses bens, porque para os sujeitos a registro a informação agora está absolutamente concentrada. Nesse sentido BRANDELLI proclama que “O inciso IV deve ser interpretado conjuntamente com o § 2º do mesmo art. 792 ...”. A matrícula imobiliária passou a ser o repositório oficial dessas informações, enaltecendo a publicidade registral e a fé pública do registrador imobiliário, que certifica a qualquer interessado os dados constantes nos livros e documentos arquivados no Ofício. Agora, em um só lugar poderá o cidadão buscar as informações sobre o imóvel. Com referência à conformidade do CPC com a Lei nº 13.097/2015, cabe salientar que ambas dispõem que não serão oponíveis as situações não inscritas na matrícula imobiliária, inclusive havendo uma equivalência entre as situações que devem ser publicizadas no fólio real. BOLETIM 362

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A exceção legal à aplicação do Princípio da Concentração como basilar na configuração da fraude à execução está nas ações capazes de reduzir o devedor à insolvência (art. 792, IV), o que não representa a maior parcela do contencioso judicial brasileiro. A fim de resguardar os credores da ação nessa situação atípica foi excepcionada a necessidade de prévia averbação do feito na matrícula para caracterização da fraude à execução. Não fosse assim, da aplicação isolada do inciso IV do art. 792 do CPC se excluiria, por consequência lógica, a inovação trazida que exige a publicidade das ações no órgão registral competente, o que não é de se admitir. Ora, todo o esforço empreendido de convencimento do legislador que o melhor para o Brasil é contar com um espaço único para publicidade, o registro público competente, ao invés de se manter a peregrinação ineficaz e extremamente onerosa então vigente, não serviria apenas por dois meses, que é o interregno de tempo entre a publicação da Lei nº 13.097/2015 e da Lei nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil). É ilógico concluir que tudo permanece como era antes do Princípio da Concentração explicitado pelo art. 54 da Lei nº 13.097/2015. A aplicação do inciso IV do art. 792 do CPC deve-se dar de forma integrada com as demais regras do ordenamento jurídico, não de forma isolada. Sua incidência se dará: (i) quando não houver órgão registral competente para publicizar a existência de ações (citado § 2º do art. 792), e (ii) tiver o condão de gerar a insolvência civil do devedor. BRANDELLI leciona “que não há qualquer ônus jurídico de o adquirente providenciar certidões dos distribuidores judiciais, porque há previsão legal – e há ônus legal do credor de assim proceder – para a publicidade registral das ações meramente pessoais, se isto for necessário no caso concreto (ver arts. 54, IV, e 59 da Lei nº 13.097/2015)”. No mesmo sentido é a lição de LUIZ AUGUSTO HADDAD FIGUEIREDO ao informar, referindo-se à Lei nº 13.097/2015 e ao CPC, que “os referidos diplomas legais são compatíveis entre si e podem coexistir de modo interativo”. Nas conclusões do artigo o autor arremata que “O art. 54 da Lei 13.097/2015 e o art. 792 do novo CPC são compatíveis entre si, sendo exigível, para reconhecimento da fraude à execução, a prévia averbação na matrícula do imóvel da existência de

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ação capaz de levar o proprietário à insolvência. O princípio da concentração e o instituto da fraude à execução atuam harmonicamente na proteção equilibrada dos interesses do adquirente de boa-fé e do credor do alienante de imóvel”. Crítica A ANOREG-BR publicou no Boletim Anoreg-BR News nº 38, de setembro de 2018, entendimento que demonstra um retrocesso ao defender a obrigatoriedade de apresentação de certidões de feitos ajuizados para a formalização de uma contratação imobiliária hígida. Como fica a alteração legislativa que consagrou o princípio da concentração e a fé pública registral? Conclusão Finalmente, julgamos importante que todos os Operadores do Direito se empenhem no estudo e na busca do aperfeiçoamento do Sistema Registral Imobiliário efetivando a publicidade e, assim, alcançando a oponibilidade preventiva e a fé pública registral, o que evitará demandas e oportunizará a tão almejada segurança jurídica e a paz social.


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Arbitragem, Mediação e Conciliação no Registro de Imóveis

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“Como registradores nós podemos receber decisões advindas de arbitragem, e temos que conhecer o instituto para diferenciar o que é uma arbitragem legítima, feita de maneira correta, que pode ser apreciada como um título hábil a ser registrado, daquilo que pode parecer uma picaretagem. Será que uma decisão de um tribunal arbitral é válida, ou será que é uma tentativa de ludibriar o registrador? É importante conhecer esse instituto para fazer a qualificação de maneira correta.” Paola de Castro Ribeiro Macedo Oficial do Registro de Imóveis de Taubaté/SP

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muito bom falar sobre arbitragem, mediação e conciliação; especialmente sobre arbitragem, porque eu fui advogada dez anos, fiz mestrado nos Estados Unidos em Direito Internacional com ênfase em arbitragem. Trabalhei nos Estados Unidos com arbitragem, depois trabalhei em São Paulo mais quatro anos antes de prestar o concurso. Eu era apaixonada por essa matéria. Uma das maiores dificuldades de largar a advocacia para ser registradora foi me desabraçar da arbitragem, mas eu pensei que um dia chegaria na arbitragem como registradora, e aqui estamos. O que arbitragem tem a ver com o registro de imóveis? Por que está num tema junto com mediação e conciliação? Arbitragem, mediação e conciliação são métodos alternativos de solução de conflitos. Esses três temas estão interligados dessa forma. O que arbitragem tem a ver com registro de imóveis? Tem dois pontos de contato desse tema com o registro de imóveis de extrema importância. Primeiro, a arbitragem enquanto método de solução alternativo de conflitos produz decisões. E hoje nós vamos trabalhar com decisões aqui. Tutelas de urgência, por exemplo, e decisões definitivas. E essas decisões podem ter repercussões no Registro de Imóveis. Como registradores nós podemos receber decisões advindas de arbitragem, e temos que conhecer o instituto para diferenciar o que é uma arbitragem legítima, feita de maneira correta, que pode ser apreciada como um título hábil a ser registrado, daquilo que pode parecer uma picaretagem. Será que uma decisão de um tribunal arbitral é válida, ou será que é uma tentativa de ludibriar o registrador? É importante conhecer esse instituto para fazer a qualificação de maneira correta. E o segundo ponto é que eu entendo que arbitragem pode ser uma nova área, uma nova atribuição que o registrador pode receber. Nós vamos ver como funciona a arbitragem e como a arbitragem realmente se encaixa nas nossas atribuições, especialmente se estivermos falando de demandas que envolvam direito imobiliário, porque uma das maiores belezas da arbitragem são as partes poderem escolher, para julgar o seu caso, um especialista naquela determinada matéria. Hoje, nas câmaras de arbitragem é isso: se eu tenho uma demanda que envolve direito marítimo, eu vou escolher um árbitro que entenda de direito marítimo. Se eu tenho uma demanda que toca o direito de energia,

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eu vou escolher um árbitro especializado naquela matéria. E se eu tiver uma demanda que envolve direito imobiliário, quem são as pessoas que mais entendem de direito imobiliário? São os registradores. Então nada mais natural do que avançarmos na seara da arbitragem, atuando como árbitros.

Arbitragem Eu vou passar diretamente à arbitragem para entendermos como isso funcionaria no Registro de Imóveis. Como eu já disse, tanto a arbitragem como a mediação e conciliação são meios alternativos de solução de conflitos, também chamados de “meios adequados”. O professor Carmona, uma das grandes autoridades em arbitragem no Brasil, fala em meios adequados de solução de conflitos, porque eles atendem as demandas com maior celeridade, com maior especialidade. De qualquer forma existe uma classificação entre meios alternativos de solução de conflitos em geral. Existe a heterocomposição, a composição que se dá através de um terceiro. Nós temos as partes e temos um terceiro, que vai decidir sobre aquela demanda. Isso pode ser feito na jurisdição estatal, normalmente num processo, ou na arbitragem, que é uma jurisdição privada. A arbitragem se diferencia da mediação e da conciliação porque ela não é uma autocomposição, que é onde a conciliação e a mediação estão. Ela é uma heterocomposição, porque tem um terceiro decidindo pelas partes. Na autocomposição nós temos a conciliação, a mediação, e só a título de curiosidade, temos outras formas de solução de conflitos por autocomposição. Temos negociação, mini-trial, avaliação do terceiro neutro, dispute board, sistema de manejo de conflitos etc. Enfim, uma série de outros meios alternativos de solução de conflitos em que as partes chegam a um determinado acordo através de um terceiro, independente e imparcial, que vai ajudar, de maneira mais ativa ou menos ativa, as partes a chegarem a um acordo. A legislação de arbitragem é até antiga, Lei 9.307/1996, que sofreu alteração em 2015. A arbitragem já vem acontecendo no Brasil há bastante tempo. É claro que ela vai evoluindo à medida que os institutos vão sendo mais aceitos. Mas o que é arbitragem? Arbitragem é um meio privado, então não estamos falando de intervenção estatal, estamos falando de uma intervenção privada e jurisdi-


cional. Quando se fala em arbitragem, se fala em jurisdição. O árbitro tem jurisdição, ele atua como juiz de fato e de direito. É importante não esquecer isso, porque isso vai ter reflexos para nós. E é alternativo, porque não é a jurisdição estatal, é uma jurisdição alternativa de solução de conflitos. E a lei delimita quais tipos de conflitos podem ser resolvidos por arbitragem. É possível resolver conflitos que decorrem de direitos patrimoniais disponíveis; não é possível decidir qualquer conflito por arbitragem. E então vamos ter uma sentença arbitral que é definida como título executivo judicial. Ela é equiparada à sentença judicial para todos os fins. A sentença arbitral é igual à sentença judicial. Tem, então, um árbitro privado, que vai dar uma decisão que é igual à do juiz? Exatamente isso. E o árbitro não necessariamente precisa ser formado em Direito. Aliás, os únicos requisitos são: capacidade e a confiança das partes. Somente isso é exigido do árbitro privado, então por que nós não poderíamos fazer, se tivermos a confiança das partes, como especialistas que somos da área imobiliária? Arbitragem é sim um potencial novo de serviço que pode ser passado para o Registro de Imóveis e que contaria com a especialização do registrador. Daquela sentença será produzido, então, um título judicial, que pode ser tratado por um árbitro, por vários árbitros, sempre em número ímpar para não dar empate, ou por um tribunal ou uma câmara arbitral. Quando existe mais de um árbitro, a própria Lei de Arbitragem fala em tribunal arbitral. Se estivesse escrito isso no documento, não necessariamente seria fraude. Pode ser, por isso temos que olhar com bastante cuidado.

Convenção de arbitragem Os árbitros funcionam como juízes de fato e de direito, nomeados pelas partes de acordo com a convenção de arbitragem. Chegamos, então, ao ponto mais importante da arbitragem: a convenção. A convenção de arbitragem é o que vai diferenciar o que não é legítimo do que é legítimo. A convenção é um acordo. Há uma divisão entre o que se chama de convenção, mas a convenção vai ser a submissão das partes àquele procedimento com aqueles árbitros. E aí sim nós vamos saber que aquela arbitragem é legítima e se pode confiar naquela decisão porque ela tem força de sentença judicial.

Características da arbitragem Quais são as características da arbitragem? - Especialização. Não necessariamente o árbitro tem que ser especialista, mas é uma das características. Geralmente as pessoas escolhem árbitros especialistas naquela matéria que vai ser julgada justamente para ter uma decisão mais especializada. - Rapidez. A arbitragem é mais rápida, ela é feita para ser célere, porque não segue os parâmetros do Código de Processo Civil. Ela segue os parâmetros da Lei de Arbitragem e as câmaras têm suas próprias regras internas, mas são infinitamente mais simples do que o Código de Processo Civil. Por exemplo, o IBA, International Bar Association tem regras que se aplicam internacionalmente, chamadas de Soft Law. São regras para se padronizar os procedimentos de arbitragem, mas não são regras rígidas, as partes podem acordar como vai ser o procedimento. Pode haver um acordo entre as partes dizendo como será produzida a prova, o que será admitido na prova, o que não será admitido. Enfim, existe liberdade das partes em acordar sobre o procedimento. É muito mais célere. - Irrecorribilidade. Da sentença arbitral somente cabe pedido de esclarecimento. Não cabe apelação e não necessita ser homologada pelo Poder Judiciário. As decisões são irrecorríveis. O pedido de esclarecimento funciona mais ou menos como um embargo de declaração. Se alguém alegar que não entendeu algum ponto da sentença, ou que a sentença não apreciou todos os pontos, que existe alguma contradição, é possível fazer um pedido de esclarecimento para os próprios árbitros. Não cabe nenhum tipo de recurso, nem para o Judiciário e nem para os próprios árbitros, discutindo o mérito da sentença. Claro que temos o princípio da inafastabilidade do acesso à Justiça. O Judiciário vai estar sempre lá, se houver alguma nulidade do procedimento, se o processo foi nulo de alguma maneira, se a parte não concordou com aquela convenção de arbitragem. Se houver algum defeito no procedimento, o Judiciário pode tutelar esses interesses. Mas não é recurso de mérito, não é recurso a respeito do que foi decidido na sentença arbitral. - Informalidade. A arbitragem não é submetida às regras rígidas do Código de Processo Civil, podendo o procedimento ser acordado entre as partes e os árbitros. O procedimento é informal e pode ser confidencial. - Confidencialidade. A arbitragem pode ser sigilosa, se as partes assim convencionarem. Isso é muito BOLETIM 362

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interessante, por exemplo, para conflitos familiares, ou mesmo para conflitos de empresas que as partes queiram manter em sigilo. A arbitragem tem grande preocupação com a confidencialidade e isso ela vai irradiar para o registro. Se essas decisões arbitrais forem a registro, elas também têm que ser tratadas com a confidencialidade estabelecida pelas partes. E nós vemos que até no trânsito entre as câmaras arbitrais e o Judiciário, as câmaras reclamam que às vezes o Judiciário não respeita essa cláusula de confidencialidade, o que não é interessante e viola a vontade das partes nesse ponto.

Constitucionalidade da arbitragem A constitucionalidade da arbitragem já foi julgada. A arbitragem não é obrigatória, mas até pelo princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF), uma vez que é acordado pelas partes que aquela disputa vai ser resolvida por arbitragem, o juiz vai acolher a alegação de existência da convenção de arbitragem, mas não vai resolver o mérito. Isso está previsto no Código de Processo Civil (art. 485, VII), nas hipóteses em que o juiz não acolhe o mérito. Tem convenção de arbitragem? Se tiver, o juiz não vai decidir o mérito, o mérito tem que ser decidido pelos árbitros. Então afasta-se o Judiciário dessas demandas. E o STF, em 2001, julgou que a Lei de Arbitragem é constitucional (SE 5206, j. 12/12/2001).

O que é convenção de arbitragem A convenção de arbitragem é o grande diferencial, ou seja, é a questão principal que precisamos olhar para saber se uma arbitragem é legítima ou não. Tem convenção de arbitragem ou não tem? E quando falo convenção estou falando de gênero, porque a convenção pode ser uma cláusula prévia, chamada cláusula compromissória, antes de qualquer litígio aparecer. Eu posso ter uma cláusula no contrato dizendo que qualquer litígio que decorrer daquele contrato vai ser resolvido por arbitragem, então ainda não há litígio instalado. Essa cláusula compromissória pode ser cheia, o que significa que ela estabelece todas as regras possíveis e aplicáveis para aquela arbitragem. Ou ela pode ser vazia, dizendo apenas que vai haver arbitragem, mas não diz como, com que regras, em que câmara ou como vai 198

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ser a escolha dos árbitros. Ela exige um pouco mais de trabalho das partes, para adequar todo esse regramento no momento do litígio. E a cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato. Se o contrato for considerado nulo, ou se a parte quiser declarar o contrato nulo, a cláusula vai valer independentemente das outras cláusulas do contrato. Agora, se eu já tenho um litígio instalado e não tinha a cláusula de arbitragem, eu posso fazer o que se chama de compromisso arbitral, que é uma composição posterior, é uma convenção depois que o conflito já foi instalado. As partes fazem esse documento chamado compromisso arbitral, que pode até ser judicial. No meio de um processo judicial as partes podem não querer mais uma decisão judicial. Elas querem a resolução por arbitragem. E isso pode ser feito dentro de um processo para colocar fim ao processo, inclusive. Ou pode ser feita arbitragem extrajudicial por instrumento particular com duas testemunhas, ou instrumento público. A convenção de arbitragem gênero, seja a cláusula, seja o compromisso, é um documento central que vincula as partes àquele procedimento arbitral.

Não podem ser objeto de arbitragem Não podem ser arbitrados direitos não patrimoniais ou direitos patrimoniais indisponíveis. A doutrina coloca como exemplos: direitos da personalidade, direito à vida, direito à honra, à igualdade, à imagem, nome, capacidade, filiação, poder familiar, questões penais e matéria tributária. Isso eu não posso arbitrar. Mas com relação à imagem, por exemplo, a imagem é um direito indisponível, mas os danos decorrentes do uso da imagem pode ser algo arbitrável, porque os danos eu posso transigir. Eu não estou discutindo o direito de imagem, eu estou discutindo o valor que será pago a título de indenização. Essa é uma questão que pode ser arbitrada.

Podem ser objeto de arbitragem O que pode ser arbitrado? Relações jurídicas de direito obrigacional, ou de direito real, passíveis de transação. Por exemplo: indenizações, relações contratuais, questões societárias, questões imobiliárias.

Limites da arbitragem 1. Relações de Consumo. Não pode ser imposta a


“O árbitro é uma pessoa física capaz, que tenha a confiança das partes. Não é preciso ter curso. Quais os deveres do árbitro? Ele deve ser imparcial, independente, precisa ter competência, diligência e discrição em razão da confidencialidade. São atributos que se encaixam como uma luva no registrador.” utilização da arbitragem em contratos de adesão (art. 51, VII, CDC e art. 4º, § 2º, Lei 9.307/1996), mas se o consumidor concordar com a instituição da arbitragem, esta será válida (Resp 1.169.841/RJ, Min. Nancy Andrighi, 14.11.2012). 2. Relações de Trabalho. Posso fazer arbitragem com relações de trabalho? Coletivamente, sim, está previsto na Constituição (art. 114, § 1º, CF). Individualmente, agora com a recente reforma trabalhista, sim. Se o empregado tiver remuneração superior a duas vezes o limite máximo da Previdência, desde também que conte com a concordância do empregado (art. 507-A CLT – incluído na reforma Lei 13.467/2017). 3. Relações Locatícias. É perfeitamente cabível arbitragem tanto por cláusula compromissória como por compromisso arbitral (TJSP, rel. Gilberto Leme, j. 09/02/2015 e rel. Campos Petroni, j. 16/12/2014). Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor em relações locatícias (Resp 329.067/MG). Posso fazer, desde que esteja previsto, desde que as partes concordem. 4. Administração Pública: a) contratos envolvendo empresas públicas e sociedade de economia mista: cabe arbitragem se o conflito derivar da atividade econômica, pois equiparam-se às empresas privadas (STF, Adin 1.552-4. j. 17/4/1997); b) contratos de concessão podem ser discutidos na via arbitral por expressa previsão legal (art. 23-A, da Lei 8.987/1995); c) parcerias público-privadas – PPPs podem ser discutidas por expressa previsão legal (art. 11, III, Lei 11.079/2004); d) demais relações das pessoas jurídicas de direito público, a arbitragem pode ser utilizada para solução de conflitos com características privadas (seguro, financiamento, locação), de acordo com art. 62, I, §

3º, Lei 8.666/1993.Também está previsto na Lei de Licitações. Então, em alguns momentos é possível utilizar arbitragem até com a Administração Pública. 5. Conflito entre o condomínio e os condôminos. É possível a arbitragem, se a convenção de condomínio assim estipular em previsão expressa, vinculando todos, incluindo aqueles que adquiriram sua unidade posteriormente. Exemplos: cobrança de cotas condominiais, discussão sobre a validade de deliberações, conflitos sobre aplicação de penalidades pelo condomínio etc. (TJGO, Proc. 200700100410, j. 31.07.2007); 6. Conflitos entre condôminos. É possível a arbitragem, se estiver expresso na convenção de condomínio ou por compromisso arbitral. Exemplos: direito de vizinhança, problemas de construção, indenizatória etc.; 7. Partilha de bens. É possível solução por arbitragem, pois se constituem como direito patrimonial disponível (TJSP, AI 501.512-4/4-00, j. 30.05.2007).

Quem pode ser o árbitro? A lei não diz se o árbitro é pessoa física ou se pode ser pessoa jurídica, mas a doutrina majoritária entende que tem que ser uma pessoa física. Não seria possível nomear uma empresa, por exemplo, como árbitro. Teria que ser uma ou mais pessoas físicas. Então o árbitro é uma pessoa física capaz, que tenha a confiança das partes (art. 13). Não é preciso ter formação jurídica, não é preciso ter segundo grau. Não é preciso ter curso, como na mediação e na conciliação. A doutrina fala que até um analfabeto poderia ser um árbitro, se a parte confiasse nele para definir o objeto particular da demanda. Quais os deveres do árbitro? Ele deve ser imparcial, independente, precisa ter competência, diligência e disBOLETIM 362

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crição (art. 13, § 6º) em razão da confidencialidade. São atributos que se encaixam como uma luva no registrador. O árbitro pode ser único, ou pode ser um colegiado de árbitros, sempre em número ímpar para evitar que haja empate. O colegiado de árbitros pode ser chamado de Tribunal Arbitral (art. 13) e a arbitragem pode ser o que chamamos de ad hoc, que é uma arbitragem totalmente privada e desvinculada de qualquer órgão, qualquer câmara arbitral. Ou ela pode ser vinculada a uma instituição, a uma câmara arbitral, chamada de arbitragem institucional. Hoje existem algumas câmaras que são bem atuantes no Brasil em arbitragem institucional. A mais famosa, que tem maior número de demandas, é a Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), que é a primeira, creio que responde por 60% da demanda de arbitragem no Brasil. Temos também a CAMARB; a AMCHAM; a CIESP/ FIESP; a CCI, internacionalmente chamada de ICC, uma câmara internacional com presença no Brasil. A Câmara da Bovespa (CAM-Bovespa), a Câmara FGV. Temos outras câmaras Brasil afora, eu citei apenas as maiores. São câmaras organizadas que fazem regularmente suas arbitragens. Claro que receber a documentação vinda de uma câmara dá maior segurança do que se receber ad hoc, mas não significa que ela não possa ser tão legítima quanto uma arbitragem realizada numa câmara arbitral. Tutelas de urgência proferidas na arbitragem 1. Os árbitros podem conceder medidas cautelares ou de urgência, após instituída a arbitragem (art. 22-B, Lei 9.307/1996). 2. Antes de instituída a arbitragem, tais medidas poderão ser concedidas pelo Poder Judiciário (art. 22-A, Lei 9.307/1996). Após a instauração da arbitragem, os árbitros poderão revogar, modificar ou manter a tutela concedida. Exemplos: arresto ou sequestro de bens, protesto contra alienação de bens, averbação da existência do procedimento arbitral (art. 54, IV, Lei 13.097/2015), indisponibilidade de bens. É preciso atenção ao que pode respingar no Registro de Imóveis: arrestos, sequestros, protestos contra alienação de bens são todas medidas que os árbitros podem determinar no curso de um processo arbitral. E quanto à averbação da existência do procedimento arbitral com base no art. 54, § 4º da Lei 13.097? Eu posso averbar? Sim. Há até alguns precedentes em São Paulo. A câmara arbitral remeteu o procedimento para o Judiciário, que mandou averbar a existência dessa ação,

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porque é uma ação que interessa a eventuais compradores daquele imóvel, uma medida acautelatória, que foi determinada por um árbitro e que deve ser cumprida pelos registradores ou por qualquer outro órgão de registro, bancos, da mesma maneira que se cumpre uma decisão judicial. E indisponibilidade de bens? Também. É possível que o árbitro determine uma indisponibilidade de bens por meio de decisão de tutela de urgência e que isso possa ser averbado na matrícula dos imóveis. Como saber se essa decisão é válida ou não? Pela análise da documentação que nós vamos pedir. Essas são as tutelas de urgência durante o procedimento. Como eu disse, o juiz pode dar um arresto, por exemplo, e o árbitro pode dar um cancelamento de arresto. Então é possível ter na matrícula do imóvel uma decisão de arresto do Judiciário e depois ter uma ordem de cancelamento dessa decisão advinda do árbitro. Isso é totalmente possível, porque é assim a natureza da arbitragem. O árbitro pode rever uma decisão do juiz depois de instituída a arbitragem.

Sentença arbitral 1. A sentença arbitral produz os mesmos efeitos de uma sentença transitada em julgado proferida pelo Poder Judiciário. Constitui-se título executivo judicial (art. 31, Lei 9.307/1996 e art. 515, CPC). A sentença arbitral proferida no Brasil não precisa ser homologada pelo Poder Judiciário, ela já é uma sentença judicial. Ela não precisa de trânsito em julgado porque é irrecorrível. Um pedido de esclarecimentos é a única coisa que cabe contra uma sentença arbitral. Realmente pode ter um pedido de esclarecimento que altere ou que esclareça de alguma maneira a sentença arbitral, e isso é importante o registrador conhecer na hora de cumprir uma sentença arbitral que tem efeitos no Registro de Imóveis. 2. A sentença arbitral estrangeira (proferida fora do território nacional) está sujeita à homologação no STJ (art. 35, Lei 9.307/1996). Exemplos de casos que vejo possíveis de serem recebidos no Registro de Imóveis com relação à sentença arbitral: adjudicação compulsória (pode ser que haja uma demanda entre um vendedor e um comprador e dali saia uma sentença arbitral que possa ser registrada no Registro de Imóveis através da sentença); partilha de bens (há uma contenda, um litígio entre as partes e se decide a partilhar o bem de


uma maneira ou de outra); anulação ou resolução de negócio jurídico imobiliário (é possível haver uma demanda arbitral com o efeito de resolver o negócio jurídico-imobiliário); divisão ou demarcação de imóvel (pode haver uma sentença arbitral determinando que se divida ou se demarque o imóvel daquela ou desta maneira); cancelamento de hipoteca, usufruto, alienação fiduciária ou caução (a determinação de cancelamento de hipoteca, usufruto ou alienação fiduciária também vai desaguar no Registro de Imóveis); hipoteca judiciária (Ap. 0074278-09.2009.8.26.0114 – permite o ingresso da hipoteca judiciária, embora a sentença seja proferida fora do Judiciário, porque a sentença arbitral é igual a uma sentença judicial). *Usucapião – não parece possível. Alguns colegas começaram a receber sentenças arbitrais de usucapião. Isso me chamou a atenção. A regra basilar da arbitragem é que todos precisam concordar. É um procedimento privado, mas que exige a concordância de todas as partes envolvidas no litígio. Ainda que haja concordância do proprietário do imóvel e dos confrontantes, a usucapião é feita contra todos porque existe a figura do edital. E eu não consigo uma convenção de arbitragem gênero de todos. Esse processo ainda está sub judice, parece que o registrador negou o registro da usucapião por sentença arbitral, a parte entrou com mandado de segurança que ainda não foi julgado. Mas não acho possível fazer usucapião por arbitragem, porque não há essa convenção de arbitragem contra todos. Em tese é possível haver direitos de terceiros que vão ser prejudicados pelo procedimento, e esses terceiros não vão participar da arbitragem porque não assinaram a convenção de arbitragem. Então, nesse específico ponto, eu entendo que não é possível.

Cumprimento de decisões arbitrais A grande questão é como nós vamos cumprir as decisões arbitrais. Como isso vai vir para o Registro de Imóveis e que preocupações nós vamos ter para esse cumprimento. 1. As decisões arbitrais devem ser cumpridas de forma espontânea pelas partes envolvidas. Elas não precisam de homologação, elas são autoaplicáveis. Mas, dependendo do que for decidido na sentença, será necessário um novo procedimento para cumprimento. 2. O árbitro é dotado de jurisdição, mas não de poder coercitivo. Por exemplo, a decisão a respeito de uma obrigação de pagar, uma obrigação de fazer ou de não

fazer, vai ter que ser cumprida por meio de uma ação de cumprimento de sentença arbitral, porque só o Poder Judiciário vai ter poder coercitivo para obrigar a pessoa a pagar ou fazer ou deixar de fazer. 3. Carta arbitral: Instrumento de Cooperação Jurisdicional (art. 22-C, Lei 9.307/1996 e arts. 237 e 260, CPC). O árbitro expedirá a carta para que o Poder Judiciário pratique ou determine o cumprimento do ato solicitado. 4. Ação de cumprimento de sentença arbitral (obrigação de pagar e de fazer). Existe a execução imprópria, aquela que não precisa de uma atitude do devedor, o vencido na demanda. Eu entendo que uma decisão com reflexo no Registro de Imóveis é meramente documental. Se esse procedimento fosse no Poder Judiciário, o que poderia ingressar no Registro de Imóveis? Ou mandado do juiz determinando aquela medida ou essa, ou uma carta de sentença. Então, se fosse um procedimento judicial, essa seria a solução. E para os procedimentos arbitrais? Não há na Lei de Arbitragem, no Código de Processo Civil, e nem nas nossas normas administrativas, uma regra clara de como essa sentença arbitral vai ingressar no Registro de Imóveis. Então, qual o arcabouço que existe na lei? A lei, recentemente alterada, criou a figura da carta arbitral. Com a reforma de 2015 criou-se esse instrumento, pensando única e exclusivamente na interconexão entre o árbitro e o juiz. Por exemplo, o árbitro determina uma medida de urgência, uma coerção de testemunha. A testemunha não comparece à audiência da arbitragem. O árbitro não tem o poder da espada para trazer coercitivamente a testemunha, então expede uma carta arbitral para o juiz, para que o juiz determine a coerção da testemunha. Esse instrumento foi pensado e desenvolvido pelos estudiosos de arbitragem para essa interconexão entre o Judiciário e os árbitros, para que as decisões dos árbitros possam ser cumpridas. Mas esse instrumento se encaixa perfeitamente ao que nós precisamos para cumprir também as decisões arbitrais. Por quê? Porque muitas vezes, as decisões arbitrais não requerem uma conduta do devedor, e sim uma execução imprópria. Nós podemos trazer para o Registro de Imóveis essa decisão, tanto de tutela de urgência como de uma sentença arbitral, por meio de um documento, que é a carta arbitral. O árbitro vai expedir essa carta não mais para o Judiciário praticar o ato ou trazer uma testemunha, mas para o registrador, para que o registrador cumpra BOLETIM 362

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aquela decisão. E com isso resolvemos dois problemas: fazer com que a sentença tenha efetividade no Registro de Imóveis e tirar essas demandas do Judiciário. Eu fiz uma pesquisa, inclusive na Câmara Brasil-Canadá, que é uma das maiores câmaras de arbitragem brasileiras, e eles me relataram a dificuldade de cumprir essas decisões nos registros, até por falta de regulamentação. Hoje eles encaminham uma carta arbitral ao Poder Judiciário, e o Judiciário expede uma ordem de cumprimento para o registrador. Mas isso demora, e isso vai contra a ideia de desjudicialização, de desafogamento do Poder Judiciário. Então o que eu defendo, e tenho uma antiga decisão da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que vai na mesma linha e até chama de “carta de sentença arbitral”. Ela permite que esse conjunto de documentos seja encaminhado diretamente ao registrador e que o registrador verifique se aquela arbitragem é apta ou não é apta, é legítima ou não é legítima, e cumpra aquela decisão independentemente de ordem judicial e de triangulação desse procedimento. Então não preciso fazer com que o árbitro tenha que recorrer ao juiz para cumprir essa decisão.

O que deve conter a Carta Arbitral A Lei de Arbitragem prevê o que deve conter a Carta Arbitral, que são os documentos principais que devem ser aferidos pelo registrador ou pelo juiz na hora de cumprir uma decisão. A Carta Arbitral deve conter: 1. A convenção de arbitragem, seja prévia ou posterior. 2. A prova de nomeação e aceitação dos árbitros, porque a arbitragem só se instala efetivamente quando o árbitro é nomeado e aceita o encargo. Essa nomeação e a aceitação dos árbitros é um documento importantíssimo para se aferir se aquela arbitragem é legítima ou não. 3. O inteiro teor da decisão, tutela de urgência ou sentença a ser cumprida. Nós precisamos ter o inteiro teor mesmo. Se houver um pedido de esclarecimentos que altere as sentenças, esse pedido e o complemento devem ser encaminhados juntamente com a sentença a ser cumprida. 4. A procuração dos advogados, se houver, porque na arbitragem a atuação dos advogados não é obrigatória. Ela é extremamente comum, praticamente nunca vi um processo de arbitragem sem advogados, mas de 202

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acordo com a lei ela é facultativa. 5. O encerramento dessa carta com a assinatura dos árbitros. Esse documento, a Carta Arbitral, me parece que é o documento perfeito para ser encaminhado ao Registro de Imóveis. Mas, se eu recebesse um ofício ou uma comunicação formal de um árbitro contendo todos esses documentos que a lei elenca como essenciais para verificar se aquela arbitragem é legítima ou não, eu praticaria o ato sem receio algum. Se todos os documentos estiverem em ordem, se realmente aquela decisão partiu dos árbitros nomeados dentro de um procedimento com convenção de arbitragem não há problema, ainda que esse documento não se chame formalmente Carta Arbitral. O nome não importa, importa o conteúdo do documento. Então o que o registrador precisa conferir é se realmente aquela arbitragem é legítima. E aí a gente vai ter um embate, porque arbitragem é um procedimento informal e nós somos formalistas até pela questão da segurança jurídica. Do ponto de vista do registrador é perfeitamente possível aceitar uma ordem do árbitro desde que ela contenha esses mínimos elementos de verificação. Eu preciso saber se aquelas partes se submeteram àquela comissão de arbitragem, se os árbitros são esses e se a decisão partiu desses árbitros. É basicamente isso. Não há necessidade de se fazer uma triangulação com o Poder Judiciário para esse cumprimento. Eu faço uma sugestão, seria muito interessante as Normas de Serviço das Corregedorias terem essa previsão. Os advogados que militam nessa área relatam dificuldades. O instituto é diferente, a arbitragem não faz parte do mundo registral, mas ela pode sim ter vários efeitos no Registro de Imóveis. Por isso essas normativas seriam importantes para que se padronize a conduta dos registradores, que, à míngua de padrão de regulamentação, muitas vezes devolvem esses documentos. A parte tem que procurar o Poder Judiciário para dar cumprimento a essas decisões, que poderiam ser cumpridas de forma muito mais célere pelo Registro de Imóveis.

Mediação e conciliação Assim como a arbitragem, a mediação e conciliação fazem parte dos meios alternativos de solução de conflitos. Na arbitragem há uma heterocomposição, ou seja, um terceiro vai resolver o conflito, e as partes vão se submeter a essa decisão. Estudos a respeito da arbitragem


“Nós podemos trazer para o RI essa decisão, tanto de tutela de urgência como de uma sentença arbitral, por meio da carta arbitral. O árbitro vai expedir essa carta não mais para o Judiciário praticar o ato ou trazer uma testemunha, mas para o registrador, para que o registrador cumpra aquela decisão.” afirmam que, como as partes se submetem voluntariamente àquele tribunal arbitral, o índice de cumprimento da decisão da sentença arbitral é muito maior do que o índice de cumprimento voluntário de uma sentença do Poder Judiciário, porque as partes participam mais ativamente do procedimento. As partes se sentem ouvidas, o mundo arbitral tem essa informalidade e oralidade. A mediação e a conciliação, por outro lado, são uma forma de autocomposição. Nessas duas figuras nós vamos ter um terceiro imparcial. Como nós vamos ver, há uma diferença entre esses dois institutos. Tem a figura do terceiro, mas quem vai resolver o conflito não é o terceiro, são as partes. As partes é que vão chegar a um acordo. Se as partes não chegarem a um acordo, a lide não vai ser resolvida e as partes vão ter que procurar outro meio. O conflito vai ter a intervenção desse terceiro, que será um mero facilitador, ele não vai ter o poder de decidir sobre o pleito. E nem se pode ter uma continuação. Um mediador que não conseguiu o acordo não pode, a seguir, ser o árbitro. Existe aí um conflito de interesses. O que foi dito dentro de uma mediação, de uma conciliação, foi dito para se chegar a um acordo e não pode contaminar a cabeça de um árbitro ou de um juiz, que têm que ser imparciais na hora de julgar uma demanda. É um meio de autocomposição, como eu disse, considerado não adversarial, ou seja, não há um lado e outro, as duas partes têm o mesmo objetivo de chegar a um acordo. Não há o processo decisório. Se as partes não chegarem a nenhum acordo não tem a solução do conflito. A mediação e conciliação podem ser realizadas extrajudicialmente, na esfera privada (ad hoc ou institucional), ou no curso de um processo judicial (art. 334, CPC). Hoje, por opção legislativa, nos processos judiciais, nós temos necessariamente a fase da mediação e conci-

liação. A não ser que o direito não seja transacionável ou as partes declarem que não queiram transacionar. Mas, do contrário, é uma etapa que tem que ser cumprida dentro do processo. Nós temos a ideia de mediação fora do processo e dentro do processo. Isso associado à ideia do Tribunal Multiportas. Eu vou ao tribunal, eu tenho várias portas de solução do meu conflito. Eu posso mediar, eu posso conciliar, ou eu posso ter uma decisão do juiz. Eu posso escolher a forma pela qual o meu conflito vai ser resolvido dentro do Judiciário. Essa ideia vem desde a Resolução 125/2010, que criou a mediação, que regulamentou a mediação dentro do processo, e mais ainda com a atual Lei de Mediação.

Diferenças entre mediação e conciliação Mediação e conciliação são dois institutos diferentes. A normativa deles é a mesma, a Lei da Mediação (Lei nº 13.140/15, arts. 165/175 e 334), mas ela também se aplica a outros meios de solução de conflitos. E temos alguns dispositivos do Código de Processo Civil diferenciando esses dois institutos. A Lei 13.140/2015 aplica-se para as duas situações. A mediação é utilizada para conflitos pessoais, ou para conflitos em que as partes tenham maior proximidade, ou que as partes vão continuar a ter um relacionamento depois da solução do conflito. É o caso, por exemplo, de um conflito familiar ou um conflito societário. O objetivo é que aquela relação seja restabelecida, a mediação é indicada nesses casos. Há um foco maior no conflito, e não necessariamente na solução. Muitas vezes, na mediação, não se chega a um acordo, mas as partes já se sentem acolhidas pelo fato de discutirem a relação, de terem uma oportunidade para BOLETIM 362

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discutir seus problemas. Às vezes, não se chega a um acordo formal, mas a finalidade da mediação já foi alcançada. Nesse modelo de solução de conflitos, o mediador atua para auxiliar os interessados a compreenderem o conflito sem sugerir soluções. Ele restabelece o diálogo entre as partes, faz o que se chama de terapia do conflito. Ele ajuda as partes a restabelecer a comunicação. Por isso a mediação é indicada para conflitos familiares, empresariais, direitos de vizinhança, que são relações continuadas, relações contratuais duradouras, relações trabalhistas em que as pessoas vão continuar vinculadas. O importante é se tratar o conflito, não se busca o melhor acordo, mas a melhor maneira de terminar o conflito. Essa é a grande característica da mediação. E a conciliação? A conciliação é o contrário, preferencialmente para casos em que não haja vínculo entre as partes. Pode ser aquela batida de trânsito, você nunca mais vai encontrar a pessoa e precisa resolver ali o acordo, como é que vai ficar a indenização. O conciliador tem uma participação mais ativa. Ele atua como uma usina de ideias, propondo soluções e alternativas para a realização do acordo. Ele foca no acordo, não necessariamente na solução do conflito. Assim, ele tem atuação mais ativa do que o mediador, que parece mais um psicólogo tentando que as partes cheguem a um determinado acordo sozinhas.

Princípios que se aplicam tanto para a mediação como para a conciliação O mediador trabalha com independência, com imparcialidade. O procedimento prima pela oralidade, porque as audiências são feitas de forma oral. Existe autonomia da vontade das partes. Diferentemente da arbitragem, o mediador e conciliador não julgam, não exercem uma jurisdição. Quem vai estabelecer o acordo são as partes. Existe também o princípio da decisão informada. O que o mediador e o conciliador podem fazer – e isso no extrajudicial é bastante importante – é esclarecer as partes, informar as consequências de um acordo feito de um jeito ou de outro. Isso, o mediador e conciliador podem fazer, esse dever de informação para que as partes possam tomar uma decisão informada. A confidencialidade também é uma regra. Tem exceções no art. 30, mas é uma regra que tudo que seja falado numa sessão de mediação e conciliação não vai se constituir depois em um litígio. Por isso o mediador e o conciliador não serão árbitros depois. 204

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Há ainda o princípio da isonomia das partes, o princípio da informalidade, e o princípio da boa-fé. Está lá no art. 2º da Lei de Mediação que as partes têm que buscar o melhor acordo, mas sempre baseado na boa-fé, na boa-fé objetiva, naquele comportamento leal e probo que se espera de todo mundo numa relação contratual. Então, como eu disse, a mediação, a conciliação, podem se dar dentro de um processo ou podem se dar de maneira privada fora de um processo. A maioria das câmaras de arbitragem também tem serviços de mediação e conciliação. A parte escolhe qual é a melhor forma de decidir o seu conflito.

Quem pode ser o conciliador ou mediador? 1. Extrajudicial (privado) – qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação/conciliação (art. 9º, Lei 13.140/15). 2. Judicial – qualquer pessoa capaz, graduada há dois anos em curso superior, capacitação reconhecida, observados requisitos mínimos do CNJ (art. 11, Lei 13.140/15). Tribunais manterão cadastros de profissionais habilitados. 3. Extrajudicial nos Serviços Notariais e Registrais (Res. 67 CNJ/2018). Existe divergência a respeito do termo “capacitada”. Há quem diga que é preciso sim ter um curso especializado. Há quem diga que não e que, como na arbitragem, qualquer pessoa poderia fazer mediação e conciliação dentro desses requisitos. No caso de ser feita judicialmente, a lei tem requisitos mais rígidos que “qualquer pessoa capaz”. Essa pessoa tem que ser graduada há dois anos em curso superior, com capacitação reconhecida, observados os requisitos mínimos do CNJ. Mas aí os tribunais não teriam cadastros dessas pessoas. Então exige-se o curso aprovado pelo CNJ, geralmente feito pelas escolas da magistratura ou por órgãos oficiais dos tribunais, mas também por escolas particulares desde que sejam credenciadas pelo CNJ para fazer essa capacitação. E os Serviços Extrajudiciais foram autorizados a fazer esse serviço de forma privada. De maneira geral, o procedimento para a mediação e conciliação extrajudicial começa com um convite. Uma parte pode ter interesse em fazer uma mediação e conciliação. Ela procura uma entidade ou mediador privado e pede que ele faça esse convite para outra parte, para que ela compareça ao local de uma primeira reunião para se


tentar fazer essa conciliação. E pode haver várias reuniões, havendo ou não acordo no final do procedimento. E judicialmente? Se a petição inicial for apta, e se não for caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de mediação ou conciliação (CEJUSCs). Atualmente, na grande maioria das cidades médias e grandes existem os CEJUSCs, Centros Judiciários de Solução de Conflitos. Essas mediações e conciliações são feitas no âmbito dos CEJUSCs.

Resultado da mediação ou conciliação 1. Judicial – O acordo (autocomposição) será reduzido a termo e homologado por sentença (art. 334, § 11, CPC) e será considerado título executivo judicial (art. 20, par. único, Lei 13.140/2015). Se tiver reflexos no Registro de Imóveis, a carta de sentença ou o mandado/ ofício deverá ser cumprido normalmente. 2. Extrajudicial – O acordo firmado pelas partes será considerado título executivo extrajudicial (art. 20, par. único, Lei 13.140/2015). Se a mediação for judicial, ou seja, se ela for feita dentro de um processo judicial, ainda que ela seja feita pelo CEJUSC, o acordo, ou seja, aquele termo de autocomposição, será reduzido a termo e ele será homologado por sentença judicial e será considerado título executivo judicial. Nós temos um acordo homologado judicialmente que tem força de título executivo judicial. Isso significa que se o registrador receber uma carta de sentença, ou mandado, ou ofício desses centros de conciliação com essa decisão homologada judicialmente, ela deve ser cumprida como se fosse uma ordem judicial. Nós estamos acostumados a receber. Mas, se esse acordo for feito extrajudicialmente, ou seja, numa câmara de mediação e conciliação extrajudicial, portanto fora de um processo, nós vamos ter um título executivo extrajudicial. Nesse caso, eu tenho um pouco mais de dificuldade de cumprir espontaneamente um acordo que tenha reflexos no Registro de Imóveis porque ele não tem a efetividade de uma decisão judicial.

Mediação e conciliação nas serventias extrajudiciais Recentemente o CNJ regulou a mediação e conciliação nas serventias (Prov. CNJ 67/2018). Essa regulamentação do CNJ diz o seguinte: a me-

diação e conciliação podem ser desenvolvidas nas serventias extrajudiciais, tanto por notários como por registradores. É um serviço facultativo, eu posso oferecer se entender cabível. Existe um processo de autorização regulada pelos Núcleos Permanentes de Mediação e Conciliação e pelas Corregedorias de Justiça (NUPEMEC) de cada estado (art. 4º). Esse processo de autorização para que as serventias possam oferecer esses serviços, dependerão dessa regulamentação do NUPEMEC e das corregedorias. Em São Paulo, essa normativa está em andamento, mas ainda não foi editada. O serviço pode ser prestado pelo próprio oficial ou por até cinco escreventes. Todos, inclusive o oficial, terão que passar por essa capacitação de acordo com a Resolução 125 do CNJ para escolas judiciais ou credenciadas, e a cada dois anos é necessário fazer o curso de aperfeiçoamento. Hoje, esse curso é de 40 horas de aulas e de 60 a 100 horas de estágios. Obrigatoriamente, o curso tem horas de estágios práticos nos centros de conciliação e mediação do Judiciário. Os sites das corregedorias terão listas de serventias com mediadores e conciliadores habilitados, autorizados a prestar esses serviços. Há uma regra na normativa do CNJ que considero um pouco inquietante. O art. 9º, diz: “Notários e registradores poderão prestar serviços profissionais relacionados com suas atribuições às partes envolvidas em sessão de conciliação ou de mediação de sua responsabilidade”. O que que será que o CNJ quis dizer com a expressão “com suas atribuições”? Será que ela diz respeito somente à territorialidade, ou à especialidade de cada serviço? Um Registro de Imóveis poderia mediar ou conciliar somente questões imobiliárias? Essa é uma questão que ainda vai ser discutida. Não vi nenhum posicionamento de um lado ou de outro. Eu sou favorável à abertura da atribuição, a não restringir a atribuição da mediação e conciliação somente para questões afetas, por exemplo, ao registro imobiliário. Acho que o registrador, tendo a confiança das partes, poderia conciliar ou mediar quaisquer tipos de conflitos. Mas isso ainda vai ser decidido pela normativa das corregedorias.

Procedimento 1. Requerimento de mediação ou conciliação por uma das partes ou todas, contendo os requisitos mínimos (art. 14): identificação das partes, narrativa do conflito BOLETIM 362

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e proposto de acordo (se houver). 2. Livro de Protocolo de Conciliação e de Mediação – arts. 17 e 26 (poderia ser o mesmo livro protocolo geral). 3. Qualificação do requerimento (10 dias) com: (i) notificação do requerente para sanar vício; (ii) rejeição do pedido e arquivamento; ou (iii) recebimento com designação da audiência (arts. 15 e 18). 4. Notificação da parte requerida – art. 19 (meio eletrônico, carta com AR ou notificação por RTD). 5. Sessões de conciliação ou mediação: a) Se ao menos duas partes contrárias não comparecerem: arquivamento (art. 21); b) Obtido o acordo: termo de conciliação ou mediação a ser arquivado em Livro de Conciliação e Mediação (art. 22 e 28). c) Não obtido o acordo (art. 23/25): (i) novas sessões; (ii) arquivamento. Eu não vejo necessidade de ter um livro protocolo, separado, só para mediação e conciliação, mas está lá na normativa do CNJ, foi assim que eles determinaram. Depois esse requerimento será qualificado pelo registrador em dez dias e com três possibilidades: ou ele pode notificar o requerente para sanar o vício, ou seja, ele vai olhar os requisitos do art. 14. Não cumpridos esses requisitos ele vai notificar a parte para sanar o vício. Ou ele vai rejeitar o pedido e vai arquivar o procedimento, por exemplo, no caso de não ser uma questão mediável. Então, o registrador vai olhar para o cerne da questão e ver se é possível promover uma audiência de mediação e conciliação. Se não for, ele vai rejeitar o pedido e vai arquivar. Ou ele vai receber o pedido e vai designar uma audiência de mediação e conciliação. Nesse primeiro requerimento as partes escolhem se querem mediação ou conciliação, que são procedimentos diferentes. Depois o registrador vai fazer a notificação da parte requerida, preferencialmente pelo meio eletrônico, mas também pode ser por carta ou notificação no RTD. Se ao menos duas partes contrárias comparecerem à sessão de mediação, a sessão acontece, mas o acordo não vincula quem não estiver presente na sessão. Obtido o acordo, o termo de conciliação vai ser arquivado em outro livro, então teremos dois novos livros. Um livro de protocolo e o livro de conciliação e mediação, no qual vão ser encartados os termos de mediação e conciliação. Não obtido um acordo, podem ser feitas novas sessões

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a requerimento das partes. As partes é que mandam nesse procedimento, se querem mais sessões para tentar chegar ao acordo. Ou, se não há mais interesse em novas sessões, é feito o arquivamento, que pode ser eletrônico, não precisa ser arquivamento físico.

Custas e emolumentos De acordo com a normativa do CNJ as custas e emolumentos terão como referência o menor valor cobrado na escritura pública sem valor econômico para uma sessão de até 60 minutos, com valores proporcionais para períodos prolongados (art. 36). Então a ideia é que se cobra um valor fixo por uma sessão de 60 minutos. Se levar mais tempo ou várias sessões, a cobrança vai ser proporcional. Serão acrescentadas as despesas com notificações (art. 37) e, se houver arquivamento do requerimento antes da sessão, 75% do valor deve ser devolvido. Os tribunais determinarão um percentual de audiências não remuneradas que as serventias terão que suportar, e que não poderá ser inferior a 10% da média semestral, para atender os casos de gratuidade (art. 39). Essa é uma normativa que já existe para as câmaras privadas.

Recomendação nº 28 CNJ, 20.08.2018 E, finalmente, o CNJ editou a Recomendação nº 28 (20.08.2018), estimulando os tribunais a firmarem convênios com os notários e registradores para a instalação de centros de mediação dentro das serventias, em localidades onde ainda não tenham sido implantados, sob fiscalização da CGJ e juiz coordenador do CEJUSC. Há uma clara mensagem do CNJ de que esse é um serviço importante que está sendo aberto aos notários e registradores para que possam utilizar sua capilaridade, sua especialidade, sua imparcialidade e independência para ajudar as partes em conflitos a resolverem tantos processos que terminam no Judiciário. É mais uma forma de desafogar o Judiciário. Eu sou entusiasta desse novo serviço, acho que podemos avançar ainda mais e obter autorização também para arbitragem. Na Espanha é possível a arbitragem feita por notários e registradores, tanto quanto a mediação e conciliação.


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Consolidação da propriedade: “aspectos polêmicos” “Este tema não se propõe a abordar o processo de consolidação da propriedade. Eu não tenho que dar soluções e saídas para as dificuldades que nós enfrentamos. O tema propõe que eu indique quais são os temas polêmicos, quais são as dúvidas. Isso é muito bom, porque tudo o que se disser aqui vai ter duas ou três posições. Se sairmos daqui com os temas polêmicos, nós temos condição de buscar as soluções entre nós.”

Roberto Lúcio de Souza Pereira Oficial do 6º Ofício de Registro de Imóveis de Recife/PE

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1. Vale a pena o registrador ser o responsável pelo procedimento de consolidação da propriedade? primeiro ponto não vou dizer que seja um aspecto polêmico, mas é algo que eu precisei mudar na minha própria concepção. E a pergunta é bem simples: vale a pena para o registrador de imóveis ser o responsável pelo procedimento de consolidação da propriedade? Por que faço essa pergunta? Alguns anos atrás eu recebi uma citação num processo judicial que buscava a anulação de uma consolidação da propriedade que se operara na serventia da qual eu era titular. Eu fui citado como parte ré, porque no processo da anulação havia um argumento de erro do registrador de imóveis no processo de intimação. Era uma ação que cumulava o pedido de anulação da consolidação com a indenização de danos morais. E eu fui intimado pessoalmente, tive que ir para o fórum, passei a tarde inteira lá, e então o juiz nos chama para audiência e está lá o advogado do banco. Na audiência o advogado disse ao juiz que eu não fiz certo, porque eu autorizei publicar um edital e a cliente dele morava na cidade, então eu não tinha sido diligente. E mais, “o oficial ao certificar que ela estava em lugar incerto e não sabido, a feriu profundamente. Foi muito difícil para ela ver uma certidão com fé pública dizendo que ela estava em lugar incerto e não sabido. Isso era um absurdo.” E aquilo mexeu tanto comigo que eu saí de lá falando mal do processo de consolidação da propriedade. Esse é um processo curioso, ninguém o quer. O banco não quer consolidar, porque quer receber. O devedor não quer perder a propriedade, e o registrador também não quer o processo. É muita responsabilidade. É muito chato. Lá no meu estado não recebemos nada e nos tornamos responsáveis quando se utilizam títulos e documentos. É muito ruim. Eu me tornei uma voz contra a consolidação. Até que um dia eu recebi um corretor muito experiente na região. Perguntei qual era a sensação dele a respeito do índice de formalidade dos imóveis da cidade do Recife? Em outras palavras, qual o percentual de imóveis que ele acreditava estarem regularmente registrados em nome dos atuais proprietários? Ele me respondeu que embora não houvesse uma cultura muito forte do registro e da regularização no Recife, isso estava crescendo assustadoramente. Eu disse: “Então tem havido uma cultura de compreensão do nosso ordenamento jurídico cuja

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transmissão da propriedade se opera com o registro de imóveis e as pessoas estão compreendendo?” E o corretor: “não tem nada a ver com isso. O que tem havido é que os bancos têm exigido a formalização. O acesso ao crédito possibilita a aquisição de imóveis. Hoje nós, corretores, quando uma pessoa nos procura para alienar seu imóvel, desde logo exigimos que elas registrem o título delas primeiro, porque a maioria não tem. O pai morreu, o imóvel é a herança e os filhos querem nos contratar. E nós indicamos que façam um inventário, registrem, porque nós vamos anunciar, vão surgir interessados, mas na sua grande maioria eles vão procurar o financiamento bancário e o banco só vai liberar com a regularização. E não apenas o registro da compra e venda com alienação fiduciária, é preciso registrar o título anterior.” Há um gráfico exponencial do crescimento do volume de unidades vendidas com o crédito bancário. Na minha cidade, e talvez não seja diferente na sua, há necessidade de que os títulos anteriores estejam aperfeiçoados e formalizados no Registro de Imóveis. É muito comum que para registrar a alienação fiduciária, nós precisemos resolver uma ou duas gerações de títulos que não foram registrados. Preste atenção, se o processo de consolidação da propriedade é chato, porque ele é desgastante, se você não recebe nada por ele, se você já teve como eu o dissabor de ser acionado na Justiça como parte ré, buscando o autor indenização, lembre-se de que a nossa eficiência no processo de consolidação da propriedade é responsável em alguma medida por esse crescimento exponencial do volume de unidades que são negociadas e que registram não apenas o contrato em si, mas exigem a formalização e o registro dos títulos anteriores.

Certamente vale à pena! “A alienação fiduciária de bens imóveis veio resolver um dos principais problemas que atormentam o setor do crédito imobiliário, ou seja, os intermináveis procedimentos judiciais necessários para retomada de um imóvel em caso de inadimplência.” (Como funciona o SFI – Abecip). É óbvio que vale a pena o registrador ser o responsável pelo procedimento de consolidação da propriedade. Esse pequeno parágrafo foi retirado do site da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), associação dos bancos. Ou seja, se nós somos eficientes no processo de consolidação da propriedade, nós retroalimentamos o sistema


de crédito, o que é bom para todos. Você reduz juros, aumenta o crédito imobiliário, aumenta a quantidade de unidades negociadas e você aumenta exponencialmente a formalização registral. O ideal é que olhemos a consolidação da propriedade com bons olhos. Por exemplo, a Caixa Econômica Federal anda procurando os estados, para que aqueles que ainda não têm as suas centrais, que não recebem os processos de intimação eletronicamente, que o façam, porque a celeridade é muito maior e o custo muito menor.

2. Quem possui legitimidade para requerer a consolidação da propriedade? Esse tema não parece polêmico, quem pede é o credor fiduciário. Eu recebi um pedido de consolidação da propriedade. Eu tinha uma matrícula com alienação fiduciária registrada e uma Cédula de Crédito Imobiliário averbada cujo credor fiduciário era a financeira da matrícula. E recebi, então, um pedido de consolidação pela financeira escritural. Era uma outra financeira pedindo a consolidação. Eu fiz a nota devolutiva de exigência dizendo: “É um princípio basilar do Registro de Imóveis que os títulos anteriores precisam estar na matrícula. Então, financeira escritural, você não pode pedir a consolidação da propriedade, porque a credora fiduciária é a financeira da matrícula”. Eu fiz essa nota devolutiva e um advogado veio falar comigo, pedindo que eu explicasse a nota devolutiva”. Eu disse: “Tenho aqui um credor fiduciário, a financeira da matrícula, e de repente há um requerimento com a financeira escritural. E ela quer consolidar, não é assim.” E expliquei: “Você precisa de um instrumento de cessão do crédito fiduciário e ele precisa ser averbado para que haja continuidade.” Então o advogado respondeu com um dispositivo da lei que dispõe que, se a Cédula de Crédito Imobiliário (CCI) averbada for escritural, a transferência da condição de credor fiduciário do direito real não se opera na matrícula, mas na instituição custodiante. Ele ainda falou de outro dispositivo dizendo que a instituição custodiante é que vai dizer quem é o credor fiduciário na hipótese de circular a CCI escritural; não é na matrícula. “Acontece que esse dispositivo é inconstitucional e é por isso que eu tenho que exigir”, foi o que eu respondi. Vocês sabiam que nós temos nas nossas matrículas as alienações fiduciárias e quando a CCI é escritural não

damos uma certidão que possa ser certa quanto a quem é o credor fiduciário e proprietário? É uma coisa complicadíssima. A cessão do crédito garantido por direito real, quando representado por CCI e emitido sob a forma escritural, está dispensada de averbação no Registro de Imóveis. Eu tive esse caso e ao final eu fiz um despacho de reconsideração, porque é a letra da lei. Se o Registro de Imóveis não der as soluções tecnológicas e celeridade adequadas ao mercado, o mercado resolve. A circulação de um direito real não se dá mais exclusivamente na matrícula. Você consegue aceitar uma coisa dessas? É um direito real que circula e não é pela matrícula. Não é um registrador de imóveis que diz. E com isso eu só quero dizer mais uma vez: se nós entendermos que a nossa relevância, nossa segurança jurídica, tem que ser antenada com o caminho do mercado, sinceramente o registro eletrônico de imóveis é para ontem sob pena de uma nova custodiante conseguir um novo projeto para constituir outro direito real, que pode ser a própria alienação fiduciária, por exemplo. É para ontem o nosso esforço conjunto de colocar um sistema de registro eletrônico de imóveis que atenda a todos os princípios basilares da segurança. Mas nós já estamos perdendo. É por isso que a resposta não é tão simples. Quem é o legitimado? Depende. Na maioria das situações é o credor fiduciário indicado na matrícula. Mas há exceção quando se tratar de hipótese com emissão de CCI escritural, de acordo com a Lei 10.931/2004. O art. 22, § 2º, dispõe que “a cessão de crédito garantido por direito real, quando representado por CCI emitida sob a forma escritural, está dispensada de averbação no Registro de Imóveis...” E o art. 18, § 9º, estabelece: “No caso de CCI emitida sob a forma escritural, caberá à instituição custodiante identificar o credor...” Ou seja, às vezes o legitimado é alguém que você não sabe quem é pela sua matrícula, e quem vai dizer que houve a transferência do direito real é uma instituição custodiante que não fez concurso, não tem fé pública, mas ela transfere direito real.

3. É possível acordo para afastar a necessidade dos leilões? Terceiro ponto polêmico: é possível as partes afastarem a necessidade da realização dos leilões do contrato de alienação fiduciária? BOLETIM 362

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Esse tema precisa ser dividido em três momentos. A) No próprio contrato? Não (art. 1.458/CC) B) Após o inadimplemento? Sim (art. 26, § 8°) C) Após a consolidação da propriedade? Sim (há controvérsias), apesar de não haver previsão expressa, mas pelo princípio estabelecido no art. 26, § 8°. Averba-se o acordo para permitir a venda direta. A primeira pergunta é: ao fazer o contrato de alienação fiduciária, o credor e o adquirente – que vão se tornar devedor fiduciante e credor fiduciário –, podem estabelecer que, se houver inadimplemento, a propriedade vai retornar de maneira plena ao credor e é desnecessário o leilão? Seria isso possível? Segunda possibilidade: se foi constituída a mora, houve inadimplemento, processo de consolidação, e já está caracterizada a mora. Podem as partes dispensar os leilões? Terceira hipótese: e se já foi averbada a consolidação da propriedade, os leilões podem ser dispensados? Aqui então eu farei a seguinte análise. No momento de se fazer o contrato de alienação fiduciária não se pode de jeito nenhum afastar a necessidade dos leilões. O Código Civil (art. 1.458) veda aquilo que ficou conhecido na doutrina como pacto comissório, que seria exatamente a possibilidade de o credor emprestar o dinheiro e inserir no contrato uma cláusula estabelecendo que em caso de inadimplemento ele retome o imóvel. Na segunda hipótese, após o inadimplemento, nós temos uma regra específica na Lei 9.514/1997. Ela diz que o devedor fiduciante constituído em mora pode dar o seu direito em pagamento da dívida, e com isso não há que se falar em leilões. Ao registrar essa dação em pagamento já há propriedade plena do credor fiduciário, ele está apto a transacionar o imóvel. Então pode, é expresso. E surge a dúvida: e se o devedor não dá o seu direito eventual para dação em pagamento? Então o processo de consolidação se exaure com averbação da consolidação. E a partir de agora é imprescindível a realização dos leilões, ou pode haver acordo para não se realizar os leilões? A lei não fala e existe uma controvérsia. É mais um desses temas polêmicos em que se pode optar por qualquer uma das respostas. A minha posição é de que é possível um acordo. Ora, se a própria lei define que antes da averbação da consolidação da propriedade o devedor pode dar o seu direito eventual de aquisição para quitação da dívida, e isso dispensa os leilões, por que é que depois de averbada a

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consolidação eu vou argumentar que esses leilões são de ordem pública? O argumento é esse, eu não posso dispensar os leilões porque eles são de ordem pública e não seriam afastados pela vontade das partes. Certo, mas a própria lei permite que a vontade das partes afaste esse leilão naquele período antes da consolidação. Minha ponderação é de que é possível, isso também é situação prática que já aconteceu comigo, e esse acordo eu averbo para que de alguma forma fique estabelecido que, como averbamos leilão negativo, mas agora por acordo porque eu entendo que ele não é de ordem pública nesse momento, o banco tem a liberdade de poder vender o imóvel como se frustrados tivessem sido os leilões, porque a própria lei prevê em uma possibilidade intermediária a sua dispensa.

4. Como agir se os leilões forem realizados após o prazo legal (art. 27)? Quarta questão. A Lei 9.514/1997 define que após a consolidação da propriedade, o banco precisa promover o primeiro leilão em 30 dias. E depois desse primeiro leilão, se ele é frustrado, precisa promover o segundo em 15 dias. Ponderação: Acatar os leilões! A) A lei não prevê sanção; B) Não se pode exigir novo procedimento, pois já houve a consolidação; C) Não há que se falar em cancelamento da averbação de consolidação sem previsão legal; D) Eventual prejuízo resolve-se em perdas e danos; E) Várias normas estaduais afastam esse controle do prazo pelo registrador. Minha questão é a seguinte. Já está consolidada a propriedade e passam-se meses para ter o primeiro leilão, mais meses para ter o segundo leilão, e isso chega para o registrador. A lei tinha um prazo. Esse prazo é para o registrador? Esse prazo tem que conotação? E se os prazos não forem obedecidos, por exemplo, e o leilão é feito meses depois? Eu faço um raciocínio aqui que é mais de ordem prática do que técnico jurídico. Suponhamos que eu diga que não pode. O leilão foi feito depois de 30 dias, descumpriu a lei. E agora foi vendido e foi realizado um instrumento – que eu concordo que depois do leilão pode ser particular. Eu penso que se enquadra na regra geral da Lei 9.514, que define os instrumentos como podendo ser particulares.


Qual é a sanção, se o leilão é feito fora do prazo? Eu vou eu dizer que vou cancelar a consolidação da propriedade, porque não foi feito o leilão no prazo e não há previsão legal? Ou eu vou dizer que não pode mais fazer o leilão? Não tem o que fazer. É por isso que existem algumas normas dispondo que o registrador de imóveis não controla esse prazo. Esse é um prazo que está na lei e eventual prejuízo advindo do seu descumprimento vai ser resolvido em perdas e danos entre as partes. Não há um jeito prático de resolver, de modo que a minha compreensão é que, ainda que não obedecidos os prazos de 30 dias para o primeiro leilão e 15 dias para o segundo, nós vamos aceitar. Ou é o caso de averbar leilões negativos ou então para fazer o registro do título definitivo que foi celebrado em função desses leilões que foram realizados. São as minhas ponderações. Várias normas estaduais preveem, talvez diante dessa perplexidade, que esse não é um prazo que diz respeito ao Registro de Imóveis e ao direito real.

5. Afinal de contas, o que quer dizer o art. 26-A, § 1°? “A consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário será averbada no registro de imóveis trinta dias após a expiração do prazo para purgação da mora de que trata o § 1° do art. 26 desta Lei.” Quinta polêmica. O que é isso? Depois da Lei 9.514/1997 vários são os artigos a respeito das novidades e sabemos, por exemplo, que no âmbito das intimações muita coisa foi resolvida, dúvidas sobre a hora certa, e se no condomínio o porteiro pode receber. E é desse artigo que suscitam as mais diversas interpretações que eu já vi. Que prazo é esse? O que é isso? A consolidação em nome do credor fiduciário será averbada no Registro de Imóveis 30 dias após a expiração do prazo para purgação da mora. Algumas coisas que ninguém tem dúvida. Primeiro: o art. 26-A trata de uma alienação fiduciária específica, não é geral. E nós sabemos que uma regra hermenêutica de interpretação é que os parágrafos estão vinculados às regras do caput. E o caput diz que um tipo especial de alienação fiduciária, que é para moradia (Programa Minha Casa, Minha Vida), vai obedecer às regras especiais desse artigo. Esse é o escopo. E nesses casos da alienação fiduciária de moradia? Qual é o prazo? E esse prazo é para fazer o quê? E esse prazo significa que eu não posso fazer antes ou não posso

fazer depois? Essa é a dúvida. Você tem três possibilidades. Você tem até 30 dias para fazer? Você só pode fazer depois dos 30 dias? Ou você tem que fazer no trigésimo dia? Você cancela tudo porque ele não diz nem até, nem depois. Muita gente diz que se estabeleceu esse prazo, mas não o que acontece se ele for descumprido. E muita gente tem argumentado que esse seria um prazo máximo para que fosse requerida e averbada a consolidação da propriedade sob pena de, não sendo cumprido, ser necessário um novo procedimento. Eu não concordo com isso. Eu vou dizer qual é a minha sensação. Para dizer a minha sensação, eu preciso ler um dos dispositivos. Primeiro, esse dispositivo que diz respeito à alienação fiduciária de moradia tem uma finalidade, precisamos interpretá-la em conjunto. Qual a finalidade? A do § 2º. Ele cria para as alienações fiduciárias de moradia um benefício especial, que é: até a data da averbação da consolidação da propriedade é assegurado ao devedor fiduciante pagar as parcelas da dívida vencida, as despesas de que trata o inciso tal, hipótese em que convalescerá contrato de alienação fiduciária. Parece que não há uma dúvida a esse respeito. O § 2º está dizendo que o devedor tem 15 dias para purgar a mora, mas, se for moradia, se for o programa Minha Casa, Minha Vida, é o seguinte: se ele aparecer depois dos 15 dias, mas se você ainda não consolidou a propriedade, aceita a purgação da mora. É moradia? Vamos dar um prazo a mais. Essa é a ideia.

Interpretação sistemática conjunta com o art. 26-A § 2° e o art. 26, § 7°: Art. 26-A § 2° Até a data da averbação da consolidação da propriedade fiduciária, é assegurado ao devedor fiduciante pagar as parcelas da dívida vencidas e as despesas de que trata o inciso II do § 3° do art. 27, hipótese em que convalescerá o contrato de alienação fiduciária. Art. 26 § 7° Decorrido o prazo de que trata o § 1° sem a purgação da mora, o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio. BOLETIM 362

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Trata-se de prazo diferenciado para purgação da mora em contratos habitacionais (art. 26-A § 2°). Não é prazo máximo, mas prazo de retardo, ainda que esteja tudo pronto para averbar a consolidação. No art. 26, § 7º, a consolidação pode ser imediata (cumpridos os requisitos), logo após os 15 dias e no art. 26-A exige-se espera de mais 30 dias em nítido esforço de manutenção da moradia. O que diz para a regra geral o dispositivo logo antecedente? “Decorrido o prazo de que trata o § 1° sem a purgação da mora (15 dias), o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova de pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio.” Qual é o prazo? É imediato. Você intimou, passou 15 dias, promove a consolidação. Naturalmente. Você tem o requerimento e tem os impostos. A regra que está no artigo antecedente é que você pode promover imediatamente a consolidação, atendidos os requisitos. E o que é então que o nosso dispositivo está dizendo? Se for habitacional, não promova. Tem que ser 30 dias depois. Se é um artigo na sequência, ele parte do pressuposto desse artigo antecedente, ou seja, se decorridos 15 dias, se já tenho o requerimento e a prova do imposto, na regra geral já promovo a averbação. Na regra especial tem que esperar 30 dias. Em outras palavras, para mim o que o dispositivo está dizendo é exatamente isso. Se for uma alienação fiduciária para moradia, programa Minha Casa, Minha Vida, se você certifica para o credor fiduciário que não foi pago e ele já te entrega o requerimento com o ITBI, você não averba, você segura 30 dias. Por quê? Porque como é para moradia, a pessoa tem um prazo a mais e esse prazo a mais é de no mínimo 30 dias para poder realizar a purgação da mora. Se chegar no trigésimo dia e a pessoa não purgou, eu averbo a consolidação. No geral eu posso fazer desde já. E nesse caso específico só no trigésimo dia ou para a frente. Alguém pode dizer que, então, a lei não resolveu. Depois de certificada a purgação da mora por quanto tempo o credor fiduciário pode esperar para pedir que eu averbe a consolidação? A lei não definiu isso, e sabemos que muitas normas estaduais definiram. Por exemplo, em Pernambuco, esse prazo é de 120 dias. Depois de 120 dias de certificada a purgação da mora, se o credor não

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fizer o requerimento, então será necessário um novo procedimento. Mas a questão do § 1° do art. 26-A é: e se ele requerer imediatamente? Não faça. Aguarde 30 dias, porque é dado a esse devedor, na habitação, que ele possa purgar até a consolidação. É a minha interpretação.

6. É possível cancelar a averbação da consolidação da propriedade? É possível cancelar a consolidação da propriedade em razão da purgação da mora diretamente no banco, repristinando o contrato de alienação fiduciária? A resposta é não. Com a nova redação do art. 27 § 2°-B (direito de preferência), prevalece a tese de que não é possível, pois seria nova transmissão! (Precedentes de SP e um Resp do STJ). Para responder essa pergunta da maneira mais objetiva possível, eu não posso cancelar a averbação da consolidação da propriedade com os argumentos de que ela é constitutiva de direito. Mas para mim, em especial, porque a lei agora diz que o devedor tem aquilo que é chamado de um direito de preferência até a realização dos leilões. Uma vez pagando aquela dívida, ele fica com o imóvel, que a lei diz que é uma nova aquisição da propriedade. E se é uma nova aquisição, então ela vai atender aos requisitos fiscais de título e de registro. Não seria o caso de se cancelar a consolidação para repristinar o contrato anterior. E agora esse tema fica também pacificado.

7. É possível publicar edital eletrônico na consolidação da propriedade? A) PCA - 0005278-16.2017.2.00.0000: “2. Interpretando sistematicamente o artigo 15 com artigo 41 da Lei n. 9.492/97, o TJSC otimizou a prestação do serviço extrajudicial e, consequentemente, conferiu maior alcance à publicidade, cumprindo o princípio constitucional da eficiência ao permitir a publicação de todos os editais de intimação em um único jornal eletrônico criado especialmente para este fim.” B) Provimento CGJ/SP Nº 46/2016: Editais eletrônicos de Proclamas: “CONSIDERANDO os avanços tecnológicos nos meios de comunicação, a redução das tiragens de jornais físicos e a disseminação do acesso à internet;” C) art. 11, parágrafo único, do Provimento n° 65/2017 do CNJ: “A notificação por edital poderá ser publicada em meio eletrônico, desde que o procedimento esteja


regulamentado pelo tribunal.” PROVIMENTO CGJ/ SP N° 32/2018 É possível publicar edital eletrônico de intimação na consolidação da propriedade? Sim, mas com autorização da Corregedoria local. O IRIB lançou neste encontro uma ferramenta sensacional: https://editaisonline.org.br Devemos todos nos esforçar em nossos estados para obter autorização normativa local e utilizar essa opção que fortalecerá o Registro de Imóveis! Todos nós sabemos que saiu um provimento do CNJ falando que os estados e as corregedorias podem normatizar o edital eletrônico na usucapião extrajudicial. Mas na alienação fiduciária não tem previsão, é o contrário. A previsão da Lei 9.514 é de jornal de grande circulação. Então qual é o tema polêmico? Isso não é polêmico, não pode. No entanto eu entendo que pode, mas é claro que pode. Eu fui convencido pelos meus colegas, Sérgio Ávila do Rio de Janeiro, e o próprio Flauzilino Araújo dos Santos. Hoje, quem esteve aqui no final da manhã viu uma das coisas mais fantásticas que eu penso que está sendo divulgada em primeira mão neste encontro, que é um diário eletrônico oficial do Registro de Imóveis do Brasil. Merece uma salva de palmas. Um negócio especial, e eu fiz questão de colocar três pontos (A, B e C) que nos ajudam a confirmar a regularidade do raciocínio jurídico de que é possível. Santa Catarina editou um provimento do Protesto de Títulos, dizendo que publica eletronicamente. Isso foi parar no CNJ, impugnado pelo Sindicato das Empresas Jornalísticas. E o CNJ legitima e até elogia. Interpretando sistematicamente, o Tribunal de Santa Catarina otimizou a prestação de serviços de ação judicial, e consequentemente conferiu maior alcance à publicidade, cumprindo o princípio constitucional da eficiência ao permitir a publicação de todos os editais de intimação em um único jornal eletrônico criado especialmente para esse fim. Ou seja, não precisa de lei ou de regra, porque a publicação eletrônica é de índole constitucional (princípio da eficiência). Em São Paulo, há alguns anos os registradores civis de pessoas naturais, talvez concluindo que a fixação dos proclamas na sede da serventia e a publicação em jornais não era tão eficiente, foram à Corregedoria Geral da Justiça argumentando todos os benefícios de se fazer isso eletronicamente. E é muito legal porque os considerandos do provimento não dizem respeito ao casamen-

to. Eles dizem respeito a essa nova ordem eletrônica. Considerando os avanços tecnológicos dos meios de comunicação, a redução das tiragens de jornais físicos e a disseminação do acesso à internet. Nos considerandos fala-se até da responsabilidade ambiental em razão da redução de papel de impressão. Se o CNJ permite a publicação em edital eletrônico para a usucapião extrajudicial, mediante regulamentação, muito mais aqui. O que é a usucapião extrajudicial? É alguém que implementou condições para adquirir a propriedade. Ele quer dar a oportunidade de que alguém que poderia ser prejudicado possa impugnar. E se ele não é localizado, faz-se um edital. Não é a mesma coisa na alienação fiduciária? É alguém que implementa a condição para adquirir a propriedade, mas que precisa notificar a parte que seria prejudicada a se manifestar, e se ela não é localizada, publica-se um edital. É o mesmo princípio que o CNJ adotou. Em São Paulo, recentemente, saiu esse provimento autorizando. Ao ler o parecer você verifica que mais uma vez os argumentos da nova era tecnológica estão por trás, mas com autorização da Corregedoria local. E o IRIB lançou neste encontro uma ferramenta sensacional. Esse edital eletrônico nasce aqui e em São Paulo, que tem provimento de usucapião extrajudicial, então já vão publicar os editais lá. Imaginem se nós sairmos daqui para influenciar todas as unidades da federação, para que as corregedorias locais permitam a publicação dos editais de retificação de metragem, a própria consolidação da propriedade, a usucapião. Todos os editais de modo eletrônico e no portal do IRIB. Isso vai ser sensacional, de modo que acho que todos devemos nos esforçar nesse sentido. O edital eletrônico tem maior alcance de publicidade, diminui drasticamente os custos e aumenta a celeridade. E se nós fizermos isso no processo de consolidação da propriedade, parafraseando Sergio Ávila, nós não apenas vamos emocionar a Caixa Econômica Federal, mas vamos fortalecer o instituto jurídico que tem sido um dos maiores responsáveis pelo incremento da circulação formal dos imóveis nas nossas serventias. Com essas palavras só me lembro deste pensamento: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças” (Eclesiastes 9-10). Talvez o Registro de Imóveis do Brasil não tenha se apercebido da força que tem. Acho que nós podemos fazer muito mais, melhor e mais rápido pela sobrevivência da nossa categoria. BOLETIM 362

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Regime patrimonial na união estável e no casamento

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“Vamos tratar apenas de temas polêmicos e alguns que têm alterações jurisprudenciais, em especial do STJ, muito recentes. Algumas boas, poucas, e algumas ruins, muitas. Ou seja, temos acórdãos recentes do STJ que têm causado polêmica no tribunal e que certamente vão se refletir no Registro de Imóveis.”

Francisco Eduardo Loureiro Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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Princípios que regem o regime de bens do casamento: autonomia, isonomia e mutabilidade controlada nosso tema de hoje vai abordar questões controversas sobre regimes e bens do casamento e da união estável. Vamos tratar apenas de temas polêmicos e alguns que têm alterações jurisprudenciais recentes, em especial do STJ. Algumas boas, poucas, e algumas ruins, muitas. Ou seja, temos acórdãos recentes do STJ que têm causado polêmica no tribunal e que certamente vão se refletir no Registro de Imóveis. Vamos começar com os três princípios que regem o regime de bens. Os bens do casamento e da união estável são regidos basicamente por três regimes. O primeiro regime é o regime da autonomia, ou seja, a princípio eu posso escolher o regime que bem me aprouver. Essa autonomia privada na escolha do regime de bens não é absoluta. Ela é mitigada, porque certas pessoas são obrigadas a casar pelo regime da separação obrigatória de bens, pelo regime legal do art. 1.641/CC. Além disso, no meu pacto antenupcial eu não posso inserir cláusulas que firam a ordem pública. Por exemplo, eu não posso estabelecer que naquele casamento não há dever de fidelidade. Eu redigiria a cláusula do seguinte modo: “Ninguém é de ninguém”. Olha que maravilha, uma linha apenas, hein? Isso pode? A resposta é não, porque viola norma cogente. O que eu posso fazer é, além da escolha dos quatro regimes colocados à minha disposição – comunhão parcial, comunhão universal, comunhão final de aquestos ou participação final de aquestos e separação total de bens –, mesclar os regimes de bens. É possível? Vocês sabem que é, eu posso mesclar regimes de bens, mas com uma observação, ele tem que ser idêntico para ambos os cônjuges. Se não for idêntico para ambos os cônjuges, isso fere o segundo princípio que rege o regime de bens, que é o princípio da isonomia. Ou seja, é impossível estabelecer o regime de bens com regras distintas para o marido e para esposa, para o companheiro e para a companheira. Aquela cláusula maravilhosa que todo mundo sonha – “O que é meu, é meu. E o que é teu, é nosso.” – essa não pode, porque fere o princípio da isonomia. Eu lembro a vocês que nós já tivemos um regime formal de bens que feria a isonomia, e que foi declarado não recebido pela Constituição Federal de 1988 mesmo

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antes da mudança do Código Civil, que era o regime dotal. No regime dotal a família da esposa dava bens para o marido, e esses bens integravam o patrimônio dele. Então se entendeu que esse regime violava o princípio da isonomia conjugal, e antes da mudança no Código Civil ele foi finalmente e formalmente revogado. Os tribunais já diziam que ele não podia mais prevalecer. O segundo aspecto que me interessa aqui, na questão da isonomia, é uma figurinha que eu ainda julgo no tribunal, e muito, que é a questão dos bens reservados da mulher casada. Vocês sabem que o estatuto da mulher casada, uma lei antiga, emancipou a mulher casada. Eu lembro a vocês que o Código Civil de 1916, de uma forma que hoje parece incrível para nós, dizia que a mulher casada perdia capacidades. No velho Código, a mulher era capaz após os 21 anos, mas ao se casar, ela se tornava relativamente incapaz e só podia praticar os atos da vida civil assistida por seu marido, o que era incrível. Alguém que era capaz perdia a capacidade, parte dela, quando casava. O estatuto da mulher casada, de 1962, emancipou a mulher. Deu a ela capacidade plena, embora tenha mantido a supremacia do marido no casamento, o que só terminou com a Constituição Federal, que igualou os dois regimes, igualou os direitos e deveres dos cônjuges. O estatuto da mulher casada previa uma figurinha chamada “bens reservados à mulher casada”. Ele criou essa figurinha dizendo que aquilo que a mulher casada comprasse com o produto da sua atividade profissional pertenceria somente a ela, qualquer que fosse o regime de bens. Portanto, não apenas protegia a mulher casada, mas dava a ela um regime especial de bens ao dizer que mesmo no regime da comunhão universal, mesmo no regime da comunhão parcial, o que ela comprasse com o produto do trabalho dela era só dela. E o que o marido comprasse com o produto do trabalho dele era de ambos. Isso quebrou a isonomia, sem dúvida. Mas no velho Código não se tratava de isonomia. Por isso a pergunta é: esse regime dos bens reservados à mulher casada é compatível com a Constituição Federal? Não. O entendimento dos tribunais é que ele não foi recepcionado pela Constituição Federal. Mas até hoje eu julgo isso, porque tem gente que comprou bens antes de 1988, portanto antes da Constituição Federal. São pessoas casadas pelo regime da comunhão universal, muitas vezes, alguns pela comunhão parcial, e na hora de se divorciarem surge a dúvida: se é aquesto ou se é bem comum ou se é bem exclusivo da esposa.


E volta e meia, quando o tribunal julga partilhas, ele quer saber: qual é a data da aquisição? Pré-1988. Ela comprou com qual dinheiro? Só dela? Ela era advogada, ela era registradora, era tabeliã? Esse bem não entra na partilha. Mas, e se o marido da tabeliã é o registrador? Isso entra na partilha. Os maridos gostam ou não? Não. Mas é o regime dos bens reservados à mulher casada. Não é inconstitucional? É. Mas quando a Constituição Federal entrou em vigor, em 1988, encontrou um regime de direito adquirido. Portanto, ela não poderia retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido. Volta e meia nós fazemos partilha ainda dizendo: mulher casada, o que é teu, é teu, e o que é dele, é nosso. O que é muito bom para a mulher casada. E temos que trabalhar com esse conceito porque isso é importante. Tem reflexo no Registro de Imóveis? Sem dúvida nenhuma, especialmente nas escrituras de partilha extrajudicial. O registrador terá que verificar se aquele bem foi adquirido pré-1988, com o trabalho de quem e se aquele bem não será partilhado. Por quê? Bem próprio, bem reservado da mulher casada. O primeiro princípio que rege o regime de bens é autonomia, o segundo é a isonomia. E o terceiro princípio que rege o regime de bens do casamento é o regime da mutabilidade controlada. Ou seja, hoje eu posso mudar o regime de bens do casamento (art. 1639, § 2º CC). Quanto a isso ninguém tem dúvida.

Questões polêmicas na mudança do regime de bens do casamento Quais são os problemas ainda polêmicos que a mudança do regime de bens do casamento suscita? Têm alguns requisitos cumulativos, quais são? O primeiro deles é que haja consenso. Aqui não há suprimento de outorga. Se um dos cônjuges não quiser, ele fala: “Eu não quero”. E não interessa por quê. Não há uma ação de suprimento negativa de consentimento, é uma questão que diz respeito aos interesses subjetivos de cada um. Tem que ser consensual. É judicial? A lei fala que sim. Deveria ser extrajudicial? A meu ver, sim. Por quê? Jurisdição voluntária é falsa jurisdição. A falsa jurisdição hoje caminha de forma decidida e a passos largos para o notariado. A partilha do divórcio está lá, o inventário extrajudicial está lá. Para dissolver o vínculo pode ir no tabelião, mas para mudar o regime de bens de casamento consensualmente eu tenho que ir ao Judiciário para que ele, com falsa jurisdição,

dê uma sentença autorizando essa mudança. Esse pedido comum entre os cônjuges tem que ser fundamentado? Sem dúvida nenhuma. Eu devo dizer as razões que recomendam essa mudança e devo aprová-las. Mas cada vez mais os juízes são condescendentes, são liberais em acolher as razões que as partes alegam. Por que eu negaria a alteração do regime de bens? Há uma razão objetiva para isso? Se não houver, eu defiro. O terceiro requisito é que a alteração do regime de bens não pode causar prejuízo a terceiros. Está expresso na Lei, (art. 1.639, § 2º, CC). E se causar? É difícil, mas pode acontecer. Por exemplo, eu vou alterar o regime de bens para lesar os meus credores, para fraudar os meus credores. Isso, em tese, prejudica terceiros. Eu digo que é difícil acontecer porque os efeitos da alteração do regime de bens se dão ex nunc e não ex tunc. Por isso, se ocorrem para a frente e não para trás, é muito rara a hipótese de que o credor tenha prejuízo com alteração do regime de bens. Mas, digamos que tenha. Eu já julguei um caso em que o cara brigou com o sócio, queria mudar o regime de bens, e o ex-sócio impugnou a alteração do regime de bens dizendo: “Como você me deve haveres que você não me pagou na sociedade, eu impugno a tua alteração do regime de bens”. O que foi dito para ele? “Não tem problema nenhum, meu querido, porque a alteração será ex nunc. O teu crédito está garantido.” Ainda que prejudicasse, o caso é de nulidade ou de mera ineficácia? E a resposta é: de mera ineficácia. Ou seja, eu posso alterar o regime, e ele só não produz efeitos frente àquele credor fraudado. É por isso que cada vez mais os juízes falam o seguinte: “Olha, eu não vejo prejuízo, e se houver credor prejudicado, penhore os bens como se não tivesse havido a mudança de regime”. Mas perante terceiro, que não são credores prejudicados, o novo regime vale e é eficaz. É como se fosse uma ação pauliana, como se fosse uma fraude à execução. Nós sempre achamos, e é mentira, que uma ação pauliana leva à anulação do negócio jurídico. A gente fala: “De jeito nenhum, leva a ineficácia do negócio jurídico”. Vale contra todo mundo, menos contra o credor fraudado. Tanto isso é verdade, registradores, que nós não cancelamos o registro na ação pauliana. Nós fazemos o quê? Admitimos a penhora do credor fraudado, do credor lesado. Mas mantemos a validade do ato, nós trabalhamos no plano da ineficácia e não no plano da invalidade. Isso me parece interessante. BOLETIM 362

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A partilha pode ou não ser feita na alteração do regime de bens do casamento? A grande questão que aparece hoje é: e a partilha de bens? Pode ser feita ou não, quando nós, juízes, julgamos a alteração do regime de bens? Ela deve ser feita naquele momento da sentença, se as partes quiserem, ou deve ser relegada para o final do casamento? O que diz a lei? Não diz nada. A lei é miseravelmente omissa, e como a lei é omissa, quem diz é a jurisprudência. Há um precedente do STJ, (REsp 1.533.179/RS, 3ª Turma. Rel. Marco Aurélio Belizze, DJe de 23.09.2015). O Ministro Belizze falou o seguinte: “Pode sim fazer a partilha de bens quando o juízo muda o regime de bens do casamento”. Portanto, essa partilha será feita em duas etapas: quando se altera o regime de bens é feita a primeira partilha. Quando o casamento termina, pela morte ou pelo divórcio, se faz a segunda partilha pós-novo regime. Essa é a posição desse acórdão único do STJ. Nos tribunais atuais a matéria é altamente controversa. Se alguém perguntar, eu sou radicalmente contra isso. Por quê? Porque no casamento não há condomínio, o casamento é comunhão. E a diferença básica entre condomínio e comunhão é: o condomínio, eu posso extinguir a qualquer tempo. Quanto à comunhão, não há bens singulares no patrimônio. Qual é a tua parte no patrimônio? Você vai vender a sua parte ideal no apartamento? Quem garante que você tem uma parte ideal no apartamento e que numa futura partilha não seja atribuído outro bem que não o apartamento a você. Na comunhão eu tenho parte ideal de um patrimônio, ativos e passivos. Essa universalidade de direito de natureza patrimonial. Logo, eu não tenho direito a um bem singular. E a segunda marca da comunhão é que ela só termina quando a causa que a gerou for extinta. Portanto, se a causa que gera comunhão é o casamento, comunhão parcial, os aquestos, comunhão universal etc., só vai terminar a comunhão quando o casamento terminar. E quando eu mudo o regime de bens o casamento continua sob novas regras. Eu não posso fazer a partilha de bens, porque não há condomínio, há comunhão, e o casamento continua. Essa partilha no final do casamento, pela morte ou pelo divórcio, vai ser a partilha mais chata, mais trabalhosa, que o oficial do Registro vai receber. Para registrar ele vai ter uma dúvida: “Mas essa partilha segue duas regras temporárias distintas?”. Exatamente. São regras sucessivas: até tal data, determinado regime de bens com regras específicas; após tal data, um novo 220

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regime de bens com novas regras. A meu ver não se faz partilha antes de determinar a causa que gerou comunhão, que é o casamento. No entanto, não é o que diz esse acórdão do STJ.

Alteração do regime de bens na união estável O art. 1.725 do Código Civil diz que, se não houver um contrato escrito de convivência, o regime de bens da união estável é o regime legal da comunhão universal naquilo que for aplicável. E a grande pergunta é: eu posso fazer contrato de convivência criando um novo regime de bens? Sem dúvida nenhuma. Mas o STJ tem dito o seguinte: “Pode. Mas, se durante a minha união estável, que não tinha contrato algum, eu fizer um contrato criando um regime diferente daquele que vigorava desde então – e que era o regime legal, não tinha contrato nenhum – eu posso fazer, mas com o efeito ex nunc.” Nunca com o efeito ex tunc. A exceção a essa regra é a comunhão universal de bens. Quando eu altero qualquer regime para comunhão universal, esse regime da comunhão universal necessariamente vai retroagir. Não porque ele tem efeito ex tunc, mas porque as regras internas desse regime dizem que os bens passados também se comunicam. Por isso ele vai ter um efeito retroativo que não é desejado, mas é automático. Fora isso, efeito ex nunc e nunca efeito ex tunc. Há uma tendência, até pela Corregedoria normatizar essa matéria, de que se eu quiser registrar o meu contrato de convivência no Registro Civil das Pessoas Naturais e depois registrar junto ao Registro de Imóveis, eu posso. O que é um grande avanço, um avanço excelente. Mas desde que eu faça a escritura pública. Não deixa de ser interessante. O art. 1.725/CC dispõe: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.” O que a Corregedoria fez, e eu entendo as razões, foi criar uma formalidade adicional, uma solenidade adicional. Para dar maior segurança a quem? Ao registrador, para verificar se efetivamente aquela é a vontade das partes, se não há falsidade da assinatura. Ou seja, como é muito sério mudar o regime de bens, a Corregedoria falou: “Olha, para ter fé pública, para maior segurança das partes, eu quero escritura pública e não a forma particular”. A grande questão é que se criou uma solenidade adi-


“O primeiro princípio que rege o regime de bens é autonomia, o segundo é a isonomia. E o terceiro princípio que rege o regime de bens do casamento é o regime da mutabilidade controlada. Ou seja, hoje eu posso mudar o regime de bens do casamento (art. 1639, § 2º CC).” cional sem previsão legal. Eu já fui da Corregedoria, e nós, da Corregedoria, adoramos legislar. É bom, coça a sua mão para fazer uma lei, uma regrinha. Essa é boa, é uma regra que dá segurança, mas nem sempre é uma regra que esteja de acordo com o ordenamento jurídico.

Para mudar o regime de bens da união estável é exigível a sentença judicial – mesma formalidade da mudança do regime de bens do casamento? Nós temos um acórdão recente do STJ que tem que ser lido, o REsp 1.383.624 (REsp 1.383.624-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 2/6/2015, DJe 12/6/2015).

Esse REsp é como casamento: começou bem, terminou mal. Ele começou bem, dizendo que a alteração do regime de bens e da união estável tem efeito ex nunc, o que todos nós concordamos, é bacana, é seguro. A jurisprudência entende que o efeito é ex nunc. Mas ele termina mal porque, embora o que se discutisse naquele recurso especial fosse só eficácia para a frente ou para trás do regime de bens alterado, no final do acórdão ele acaba dizendo o seguinte: a rigor, nem poderia ter mudado o regime de bens daquela união estável, porque, se para mudar o regime de bens do casamento se exige sentença judicial, para mudar o regime de bens da união estável se deve exigir a mesma formalidade, a mesma sentença judicial. Caso contrário, o convivente teria mais direito do que o cônjuge. Esse é o raciocínio básico do acórdão. Isso é o que nós chamamos de obiter dictum. Não estava no julgamento, ninguém discutia isso, mas se resolve dar uma pitada no final. E a pitada foi: a princípio, para mudar regime de bens de casamento é preciso sentença judicial. E se no casamento precisa, na união também precisa, senão é melhor ser convivente do que ser cônjuge, e a lei diz o contrário. A lei fala que a tendên-

cia é que a união estável seja convertida em casamento porque, segundo o acórdão, esse o regime preferencial, é a entidade familiar preferencial da Constituição. Na verdade, eu acho isso um desastre, porque união estável não é casamento. A união estável é uma entidade familiar com garantia constitucional, mas não é casamento. Em especial naquilo que diz respeito à sua forma. É por isso que se eu vou morar com alguém, eu não faço celebração, eu não faço proclamas, eu não faço habilitação, mas já é uma união estável. Por isso não há identidade exata entre união estável e casamento. E essa questão de alteração do regime de bens da união estável não precisar de sentença judicial diz respeito à formalidade. Ela é menos formal. Isso é da essência dessa entidade familiar, por isso me parece um precedente perigosíssimo. A pergunta é: com base nesse REsp 1.383.624, os registradores devem fazer uma nota devolutiva cada vez que entrar no Registro um contrato de alteração de regime de bens? Resposta: nem pensem nisso. Por quê? Obiter dictum, isso não integra a parte dispositiva do julgado. Isso foi uma observação final que se pôs no acórdão, mas que não fazia parte nem sequer da lide, nem coisa julgada faz. Eu espero que em acórdãos que enfrentem diretamente essa questão, o STJ volte atrás nessa posição e reconheça que não tem cabimento exigir essa situação.

Questões da analogia entre união estável e casamento Quando é que eu posso usar a analogia da união estável para o casamento, e do casamento para a união estável, e quando é que eu não posso usar? Primeira questão: emancipação. Vocês sabem que o casamento emancipa, é uma emancipação legal do art. 5º do Código Civil. E a união estável? Emancipa ou BOLETIM 362

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não? Se perguntar para um autor de direito de família, ele vai dizer que emancipa. Por quê? Porque não tem cabimento que alguém relativamente incapaz vá viver a união estável e os pais tenham que prestar assistência a todos os atos que ele praticar. Se alguém perguntar a um civilista que atua na área de contratos, ele vai dizer: de jeito nenhum. De jeito nenhum por quê? Porque isso fere a segurança jurídica dos contratos. Se eu vou contratar com uma moça que tem 16 anos, como saber se ela está começando o relacionamento ou se já há estabilidade no relacionamento? Isso criaria uma instabilidade no mundo dos negócios. E hoje, o direito contratual é apoiado em dois valores: aparência de quem oferece e confiança de quem aceita. Esses são os dois valores que têm efeito jurídico no mundo negocial. A segunda questão que aparece na analogia entre união estável e casamento é a prescrição. Vocês sabem que durante o casamento não ocorre a prescrição entre os cônjuges para que não haja o fomento do litígio, para que não se destrua a harmonia familiar. A pergunta é: e quando há separação de fato? Volta a ocorrer ou tem que esperar o divórcio para ocorrer? Os juízes dizem que volta a ocorrer sim, porque aquilo que a lei quer preservar, a harmonia, não existe mais. Se não existe mais, a norma não tem mais função e a prescrição volta a ocorrer. E na união estável, ocorre ou não a prescrição? Mais uma vez aqui, a gente fala: ocorre sim. Usamos analogia, porque o valor que a norma quer proteger, que é preservar a harmonia familiar, é exatamente a mesma no casamento e na união estável. Há pelo menos vinte acórdãos sobre isso, não ocorre a prescrição entre companheiros nem usucapião entre companheiros. Entre companheiros não ocorre prescrição como não ocorre prescrição entre cônjuges. E aquela usucapião familiar do art. 1.240-A do Código Civil, pode ou não? Pode a partir do momento que terminar a união estável. Enquanto houver união estável, enquanto houver casamento – casamento com convivência – a prescrição está parada. Eu viro a ampulheta quando há a separação de fato ou quando termina a união estável.

Outorga uxória: somente quando o bem é próprio do outro Que mais ainda temos sobre essa questão? Outorga uxória. Na outorga uxória um cônjuge consente na alienação do bem que pertence a outro cônjuge. Portanto, eu só 222

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falo em outorga uxória quando o bem é próprio do outro. Se for o bem comum, não é outorga uxória, é consentimento. O apartamento que recebi de herança é meu. Se eu me divorciar hoje, não tem partilha. Mas, se eu quiser vender durante o casamento, minha esposa tem que anuir. E se ela não concordar? A venda é anulável. Pode ser anulada até dois anos após a data final do casamento. Mas se o bem for comum, foi aquesto, ainda que só registrado em meu nome. Se eu vender a minha parte e a dela sem o consentimento dela, essa venda é inexistente em relação a ela. Por que é inexistente? Porque eu vendi coisa alheia. E na união estável, há ou não outorga uxória? Isso é importante. A bola é divididíssima. Alguns autores dizem: “Não, não tem porque é informal”. Outros autores dizem que sim porque a ideia da outorga uxória é proteger a economia da família. De forma talvez um pouco ingênua, para vender um imóvel, que é meu, a minha esposa tem que consentir, tem que anuir. Mas para vender um lote de ações da Petrobras que vale R$ 50 milhões eu posso vender sem a anuência dela, o que é muito estranho. De qualquer modo, hoje é ilusão que a propriedade imobiliária é a grande propriedade. Houve uma mobilização da propriedade, hoje existem cotas de fundos de investimento. É uma ilusão legislativa. Por isso eu acho que sim, que deve haver a outorga uxória na união estável desde que haja prova documental dela. É o caso, por exemplo, de alguém que fez um contrato de união estável e levou a registro, ou seja, está no livro 3, está no livro do Registro Civil, está averbado na matrícula. Você vai vender o bem próprio do companheiro, eu devo exigir outorga? Sim. É um caso exemplar de analogia, porque eu viso garantir a estabilidade econômica da família. É claro que há aqueles que defendem que restrições a direito não comportam interpretação analógica. Para mim o que interessa muito mais é a função que a norma tem, e a função da norma é exatamente a mesma.

Regime da separação obrigatória de bens e a questão da Súmula 377/STF Vamos trabalhar um pouquinho com a questão do regime da separação obrigatória de bens. Todo mundo sabe que o art. 1.641 do Código Civil fala que o regime da separação de bens é compulsório em três hipóteses: para maiores de 70 anos, para menores de 18 anos com a concordância dos pais, e para menores de 16 anos quando há gravidez.


No caso específico da separação absoluta de bens obrigatória, a pergunta é: como fica a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (“No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”)? Essa súmula é muito estranha porque praticamente equipara a separação obrigatória à comunhão parcial de bens. Mas que separação obrigatória é essa que se comunicam os aquestos? Por que o Supremo fez isso há 50 anos? Simples, para garantir as meninas que tinham casado com menos de 16 anos. Na época era muito comum que casar com autorização judicial tivesse separação obrigatória de bens. Havia autorização judicial, e depois de 30, 40 anos de casadas, os maridos se separavam delas e elas cuidavam dos filhos. Há 40 anos poucas mulheres trabalhavam, e o Judiciário dizia: “Você não tem nada porque você não trabalhou, então o patrimônio é todo dele.” Para evitar essa situação é que o Supremo Tribunal Federal criou a Súmula 377, que até hoje está em vigor, ou não? A meu ver, não. É incompatível com o novo Código Civil. No entanto, o STJ e mesmo os tribunais, logo após 1988, começaram a afirmar que a súmula estava sim em vigor. E o Conselho Superior da Magistratura: “A súmula está em vigor, podem continuar a aplicar sem medo”. No entanto, a coisa virou nos últimos acórdãos do STJ. Um exemplo é o EREsp 1.623.858-MG, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), por unanimidade, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018. Embargos de divergência no STJ: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.” Ou seja, agora a Súmula 377 do STF só se aplica se for aprovado o esforço comum, a comunicação não é mais ex lege, agora tem que provar o esforço comum. Eu acho que seria muito mais sensato revogar a súmula, ela é incompatível com o novo Código Civil. Não tem cabimento dizer que a súmula está em vigor, mas tem que provar o esforço comum. O sentido da súmula era a comunicação sem esforço comum, porque com esforço comum é óbvio que eu sou sócio da minha esposa. A comunicação se dá não por força do casamento, mas por força da contribuição que eu dou, e na proporção da contribuição que eu dou, sob pena de violar enriquecimento sem causa. Por isso, a meu ver, sendo agora exigido esforço comum, a súmula perdeu o sentido, perdeu eficácia.

Logo, isso vai ter sim reflexo no Registro, a princípio não tem mais comunicação por força de lei. Só vai ter comunicação se no regime da separação obrigatória de bens houver prova de que naquele caso concreto houve esforço comum. Esforço comum é contribuição direta, não é contribuição indireta. Portanto, tem que haver esforço comum e na proporção do esforço feito. Isso é direito obrigacional, não é direito de família. Por isso, a meu ver, os Conselhos Superiores vão ter que rever essa matéria. E os oficiais do Registro vão ter que parar de devolver os títulos em razão da Súmula 377, comunicação ex lege. Acabou a Súmula 377 do STF.

Aspectos controversos do regime da comunhão parcial de bens Vamos trabalhar agora um pouquinho só nos aspectos controversos do regime da comunhão parcial de bens, artigos 1.658 a 1.666 do Código Civil. Só questões difíceis, só questões que nós temos dúvidas, que não estão expressamente previstas em lei, só isso nos interessa. O regime da comunhão parcial de bens é o regime legal quando não se escolhe nenhum regime e não se cai na separação obrigatória de bens. O que interessa é a primeira regrinha do art. 1.659 do Código Civil. O art. 1.659 diz “excluem-se da comunhão” e dá uma lista imensa de bens que estão excluídos da comunhão. A doutrina dá uma embaraçada na gente. Existe numerus clausus, se não estiver na lista é bem comum. A lista é taxativa, se não estiver na lista é aquesto. Verdade ou mentira? Mentira. Nenhum juiz julga assim. Dou um exemplo, dano moral. Um casal perdeu um filho por erro médico e a mãe ajuizou a ação por danos morais contra o hospital e contra o médico. Esse terrível incidente acabou fazendo o casamento naufragar, eles se divorciaram. A mãe prosseguiu com a ação e ganhou a ação. Uma indenização razoável, acho que eram R$ 700 mil de indenização contra o hospital e contra o médico por um grave erro médico. Ganhou, penhorou os bens. Na hora de levantar o dinheiro aparece o ex-marido querendo metade da indenização sob alegação de que ele também sofreu, o filho não era só dela, era dele também e o fato ocorreu durante o casamento. Ganhou ou perdeu? Perdeu. Por quê? Porque se ele quisesse ajuizar a ação dele, ele que ajuizasse. Eu julguei o sofrimento dela, não o sofrimento dele. Não está na lista, é bem incomunicável. Outro exemplo, acidente de trabalho. O cara perdeu BOLETIM 362

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“A escritura foi feita antes do casamento, mas o financiamento ou parte dele foi pago depois do casamento. É aquesto ou não é aquesto? É aquesto em parte. É preciso calcular a parte do preço pago antes e depois do casamento. É bem comum. A parte do preço que foi paga antes do casamento é bem próprio.” uma perna durante o casamento, ganhou indenização milionária e a mulher quer metade. Ganha ou perde? Perde. A perna era dele, não dela. Por isso nós dizemos: não está na lista, não comunica. Não acreditem naqueles autores de manuais: é rol taxativo, blá blá blá. Não é, porque a jurisprudência volta e meia fala isso, eu não deixo comunicar. De bens que não se comunicam, esses não se comunicam mesmo, mas que é uma armadilha legal para a gente. A questão da sub-rogação devia ser chamada de substituição. Na verdade, quando eu tenho um patrimônio, eu tenho uma cesta de bens. O patrimônio é isso, é uma universalidade de direitos. E por isso, essa minha cesta de bens tem direitos, obrigações, todos de natureza patrimonial. Eu meço meu patrimônio pela quantidade e não pela qualidade. Por isso, quando eu alieno um bem, meu patrimônio se mantém quantitativamente igual. Eu tinha 1 milhão, eu continuo tendo 1 milhão. Muda o bem que está dentro da cesta. Sai o imóvel, entra o dinheiro. Se o imóvel era próprio, o dinheiro será próprio. Qual é a questão? É simples, quem tem o ônus da prova de demonstrar que houve sub-rogação? A resposta é: quem alega. O dinheiro não é carimbado, não tem marca. Esse dinheiro é bem próprio. Por isso é muito comum que o sujeito venda o imóvel, fique com aquele dinheiro zanzando de um lado para outro, e adquira outro imóvel depois de 7 anos, por exemplo. Na hora de divorciar ele alega que esse imóvel foi adquirido com dinheiro lá de trás, mas tem que provar. E muitas vezes tem dificuldade em provar. Quem prova? Quem alega sub-rogação. Como eu faço para evitar a prova? Simples, ao adquirir o novo bem tem que fazer constar da escritura de aquisição que aquele bem é sub-rogado. Mas, a esposa tem que participar da escritura. Embora seja escritura de aquisição, que ge-

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ralmente o cônjuge não precisa de participação, naquela ela tem que consentir, porque ela vai dizer que aquele bem não é aquesto. Aquele bem é só dele.

Bens que se excluem da comunhão Que mais eu tenho nesse art. 1.659 que me interessa? Os bens que não se incluem, bens que se excluem da comunhão. Me interessa os incisos VI e VII. Os incisos VI e VII do art. 1.659/CC dispõem que não se comunicam os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. Quer dizer que tudo que eu ganhar é só meu? Tudo o que ela ganhar é só dela? Então é separação de bens, não é comunhão parcial. Qual é a resposta para isso? Proventos pessoais são rendimentos futuros, rendimentos abstratos. Mas caiu na conta, virou ativo. Virou ativo, vai à partilha. Ainda que seja uma conta salário, é ativo, é aquesto e vai à partilha. Tem que provar esforço comum? Um erro crasso. As pessoas acham que tem que provar esforço comum. É mentira. Na comunhão parcial de bens a comunicação se dá ex lege, por força de lei. Tem que terminar o mito do esforço comum.

Bens que se comunicam Vamos trabalhar com umas seções que são terríveis, mas nós temos que enfrentar, que são os bens que se comunicam. Volta e meia eu tenho situações em que a comunicação não se traduz em meação. Que hipótese é essa? É a hipótese frequente de eu ter adquirido parte de um bem antes do casamento, e parte do bem depois do casamento. O famoso art. 1.661 do Código Civil fala: “São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título


uma causa anterior ao casamento”. Como assim? O que isso significa? Essa palavrinha “causa” é terrível porque a causa do negócio jurídico é uma das questões mais difíceis do direito civil. Não vamos discutir isso aqui hoje, mas a lei usa “causa” como operação econômica. E é comum, logo, se eu adquiri um bem, estava em meu nome antes do casamento, mas paguei o bem depois, a proporção daquilo que eu paguei depois é partilhável. Um exemplo, hoje o que nós estamos julgando no tribunal é propriedade fiduciária. O cara comprou o apartamento solteiro, deu como garantia da alienação fiduciária o próprio imóvel. Claro que estava em nome do banco, mas ele tinha, segundo diz o Código Civil (art. 1368-B), direito real de aquisição, direito de expectativa de o imóvel ser dele ao terminar de pagar. De qualquer modo, a escritura foi feita antes do casamento, mas o financiamento ou parte dele foi pago depois do casamento. É aquesto ou não é aquesto? É aquesto em parte. É preciso calcular a parte do preço pago antes e depois do casamento. É bem comum. A parte do preço que foi paga antes do casamento é bem próprio. O que me interessa não é a escritura, mas a operação econômica que as partes fizeram. Quanto foi pago antes e quanto foi pago depois do casamento. Isso vale para a propriedade fiduciária e vale para a situação inversa, o compromisso de compra e venda. É muito comum que o cara celebre o compromisso de compra e venda quando solteiro, pague o preço como solteiro, mas receba a escritura definitiva como casado. E depois que o casamento acaba a pergunta é: esse bem vai para a partilha ou não, já que a escritura foi passada em nome dos dois e durante o casamento. Nem pensar. A operação econômica foi feita antes do casamento. A escritura e o registro são meros atos devidos, porque o preço foi pago antes. O que me interessa é o preço e não a formalização do negócio. E na usucapião, qual é o caso comum? O cara solteiro invade o imóvel e durante o período aquisitivo de 5, 10, 15 anos, ele vai viver em união estável, ou se casa. Começou solteiro e completou o prazo casado, vão partilhar o bem ou não? A resposta é: a sentença que julga usucapião retroage a que momento? A consumação do prazo ou o início do prazo. Se eu entender que ela retroage à consumação do prazo, o bem será comum. Se eu entender que retroage ao início do prazo, o bem será próprio. O entendimento dos tribunais é que ela retroage na data em que o prazo se completou. Por isso vai para a partilha.

Construções, acessões e benfeitorias A questão final é extremamente comum: construções, acessões e benfeitorias. É muito comum que o sujeito adquira o bem como solteiro ou como herança, portanto bem próprio, mas depois, construa no terreno vazio ou reforme a casa que já existia no terreno que era só dele ou só dela. A lei é expressa: o art. 1.660/CC diz que são sim bens comuns as benfeitorias dos bens particulares de cada cônjuge. Esse inciso está incompleto. As benfeitorias e as acessões. Portanto, volta e meia, eu tenho que fazer o cálculo de quanto vale a construção. O marido comprou e pagou o terreno quando solteiro, terreno vazio. O casal construiu a casa sobre o terreno durante o casamento, é bem comum ou é bem próprio? O terreno é próprio, e a construção é comum. Qual é a regrinha do Código Civil, art. 1.255? O dono do terreno fica com a construção, mas indeniza o construtor de boa-fé. Eu vou indenizar o cônjuge que fez essa construção com metade do valor da construção. Eu vou partilhar o valor da construção e não o terreno. A pior das situações é quando a construção é feita não no terreno do marido, nem no terreno da mulher, mas no terreno da sogra. Nesse caso, quem construiu perde a construção em favor do dono do terreno, e tem o direito indenizatório contra a sogra, que se beneficiou com a incorporação da construção.

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O futuro do Registro de Imóveis em tempos de globalização e novas tecnologias “As novas tecnologias devem ser utilizadas para fortalecer as garantias do procedimento registral e, ao mesmo tempo, proporcionar a maior agilidade possível, possibilitando a realização de procedimentos em menor tempo, evitando, tanto quanto possível, os custos de deslocamento e trâmites presenciais. Essa tem sido a linha seguida, em geral, pelos países europeus, especialmente pela Alemanha e Espanha.”

Fernando P. Méndez González Registro Mercantil e Bens Móveis de Barcelona. Professor Associado da Universidade de Barcelona – Membro do European Law Institute

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m primeiro lugar, eu gostaria de expressar meus parabéns ao IRIB pela organização do 45º Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil. A realização desses encontros, mantidos ao longo do tempo, tem sido e continua sendo um fator decisivo para o desenvolvimento do sistema registral brasileiro. Em segundo lugar, gostaria de expressar minha gratidão aos organizadores, especialmente ao Dr. Sérgio Jacomino, Presidente do IRIB, por ter me honrado com este convite a, mais uma vez, compartilhar com os senhores e senhoras algumas reflexões sobre os desafios postos diante dos sistemas de registro imobiliário nestes tempos de globalização em decorrência de uma constante e crescente inovação tecnológica que se irradia por todos os campos da atividade humana. Devemos lembrar, no entanto, que qualquer desafio é, acima de tudo, uma oportunidade. Em terceiro lugar, quero desculpar-me, uma vez mais, por não conseguir me expressar no belo idioma de Fernando Pessoa, tão delicadamente tratado pelo sotaque brasileiro, que o impregna com uma acentuação vocálica, uma musicalidade, de que padece, em sua versão original, o do nosso querido vizinho, Portugal. Para lidar com o futuro do Registro de Imóveis em tempos de globalização e novas tecnologias, é necessário fazer uma referência prévia, ainda que superficial, aos desafios que, em geral, nós humanos, que habitamos o planeta Terra, nos deparamos, para, em seguida, concentrar minha intervenção nos desafios específicos, sobretudo para os sistemas de Registro de Imóveis.

GLOBALIZAÇÃO: UMA APROXIMAÇÃO Por globalização entendemos um processo crescente de interconexão e interdependência e, portanto, de integração econômica, social, cultural e política favorecida pela queda do Muro de Berlim e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente de informação e comunicação (TICs) – singularmente a internet. Tais processos permitem a intercomunicação em rede entre os diferentes habitantes do planeta, independentemente do local concreto onde residam, de modo que tendemos ao que Teilhard de Chardin a seu tempo denominou de “noosfera”1, ou seja, a interconexão entre todas as mentes do planeta. Esse conjunto de fenômenos acabou por 1 TEILHARD DE CHARDIN, P. El porvenir del hombre, Taurus, Madrid, 1971. Nessa obra ele desenvolve sua visão do avanço da humanidade em direção ao ponto ômega, fora do tempo e do espaço.

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dinamizar um processo de inovação tecnológica com uma aceleração crescente que se estende tendencialmente a todos os aspectos da atividade humana. Não só facilitou o intercâmbio de ideias e conhecimentos entre diferentes indivíduos, mas também o movimento de pessoas e o intercâmbio de bens e serviços em todo o planeta. Em 1784, Kant escreveu a Ideia de uma História universal de um ponto de vista cosmopolita. Se contemplamos o processo globalizante a partir de uma perspectiva kantiana e a partir dessa perspectiva tentarmos julgar se é positivo ou negativo para a humanidade como um todo e não apenas para este ou aquele país ou grupo de indivíduos, devemos concluir que a globalização é um processo muito benéfico, já que facilitou a produção de ideias e conhecimentos, bem como sua difusão, e o comércio internacional, fatores que contribuem decisivamente para a paz, o crescimento econômico, o bem-estar global, fomentando um certo processo de convergência de renda entre diferentes nações (Xavier Sala i Martín2), embora à custa de aumentar as desigualdades sociais dentro de cada país (Thomas Piketty3), pelo menos, nesta fase do processo.4 Permitam-me destacar algumas das características deste processo, sob a perspectiva do tema central deste discurso, ou seja, os desafios apresentados pelo processo de globalização. 1. Big Data e IA – inteligência artificial Novas tecnologias geraram e continuam gerando, a uma velocidade crescente, uma grande quantidade de dados de todos os tipos, um fenômeno conhecido como “macrodados” ou Big Data, que não pode ser 2 Xavier Sala i Martín é economista e professor catedrático catalão. É professor da Universidade Columbia nos Estados Unidos, conhecido por artigos jornalísticos em diversos meios de comunicação (Nota do editor). 3 Thomas Piketty é um economista francês autor do livro “O Capital no século XXI”, publicado em 2013. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico (NE). 4 Nessa fase do processo, podemos observar como se proliferam as empresas multinacionais, algumas delas de tamanho global, ao mesmo tempo que carecemos de um governo mundial, do “estado de relação de estados” ao qual Kant se referia. Não apenas isso, observamos como os indivíduos, receosos com as mudanças sociais de alcance global produzidas pelas novas tecnologias, tendem a buscar refúgio em seus estados nacionais, buscando líderes fortes que pratiquem políticas protecionistas, restrinjam a imigração e o ritmo das inovações, para aqueles que se consideram responsáveis pelas ​​ perdas de postos de trabalho dentro de cada país, o que constitui um grave erro de apreciação, embora esse seja um aspecto que está além do escopo da minha apresentação. Vou me limitar a ressaltar que, como sustenta R. Sebastián, a revolução digital está causando uma polarização do mercado de trabalho e, portanto, da distribuição salarial, o que significa que são as classes médias que sofrem mais intensamente os efeitos nocivos – pelo menos a curto prazo – dos avanços tecnológicos. Isso tem consequências políticas, que são do conhecimento de todos.


analisado por procedimentos tradicionais, que por sua vez geraram novas tecnologias de análise de dados – tecnologias de informação e comunicação – que permitem encontrar, entre outras coisas, padrões repetitivos no comportamento humano. Observa-se que, se “A” é produzido, então, muitas vezes, “B” é também produzido. Isso permite gerar algoritmos, isto é, conjuntos de instruções ou regras para resolver os problemas que nos interessam. Eles, por sua vez, permitem desenvolver e explorar cada vez mais a chamada inteligência artificial, que pode substituir o humano em um número cada vez maior de atividades5. 2. O futuro das profissões Quais profissões têm futuro e quais não? Embora as recorrentes afirmações relativas a esse fenômeno devam ser avaliadas cum grano salis, a verdade é que a inteligência artificial está produzindo e produzirá uma grande transformação no mercado de trabalho e, portanto, na organização social. Um relatório recente do Fórum Econômico Mundial6 afirma que em 2025 ocorrerá o sorpasso. Nesse ano, os robôs já realizarão 52% das tarefas laborais. Isso significará a destruição de 75 milhões de empregos, juntamente com a criação de outros 133 milhões. 3. Dados e algoritmos: uma questão de poder Isso significa que aquele que dominar os dados e os algoritmos vai dominar o mundo do futuro. É uma questão de poder. Portanto, tudo dependerá da nossa capacidade de administrar e regular o poder, o que depende da qualidade institucional que, em última instância, depende da eficiência do mercado político. 4. Tecnologia institucional Isso mostra que, para que a produção e o uso de novas tecnologias físicas e, portanto, também de informação e comunicação, produzam resultados desejáveis, elas devem ser ajustadas a uma tecnologia institucional adequada. As instituições, em geral, são o conjunto de regras – de todos os tipos – que nos dizem o que devemos fazer e o que não podemos fazer, enfim, moldam o com5 Nesse ponto deve ser salientado que, conforme observado por Byung-Chul Han, a correlação é a forma mais primitiva de conhecimento: não está em posição de averiguar, ou mesmo considerar, a relação causal. Simplesmente as coisas são como são e ponto final. Dessa forma, os “macrodados” tornam o pensamento supérfluo. 6 O relatório é chamado The Future of Jobs 2018. [Nota do editor: relatório publicado pelo Centre for the New Economy and Society. Acesso: http://bit.ly/ futurejobs2018.]

portamento humano. Uma tecnologia institucional adequada é aquela que permite igualar os índices privados e sociais de benefícios, o que requer um sistema de freios e contrapesos efetivos ao poder. Nesse sentido, a evolução da política, desde os governantes absolutistas individuais até governos democráticos, é tipicamente concebida como um caminhar em direção a maior eficiência política, mesmo que seja em razão da existência de poderosos órgãos representativos, o que limita a capacidade de comportamento predatório de governos e de outras entidades de poder. Sem esse limite efetivo, as novas tecnologias, como todos os instrumentos de poder, correm o risco de serem usadas para o benefício exclusivo daqueles que conseguem delas se apropriar.

2. OS PRINCIPAIS DESAFIOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA PERSPECTIVA DOS SISTEMAS DE REGISTRO IMOBILIÁRIO 2.1. Introdução Uma vez feita esta introdução, estamos agora em condições de abordar o tema central da exposição: a análise dos desafios apresentados pela globalização aos sistemas nacionais de registro imobiliário. Em primeiro lugar, devemos ter em mente que aproximadamente 60% da riqueza dos países desenvolvidos – um pouco menos nos Estados Unidos – é composta de imóveis residenciais e o crédito hipotecário representa a maior parte do seu mercado total de crédito. A isso devemos acrescentar a relevância tributária da apropriação e circulação de ativos imobiliários em qualquer país, uma vez que, além de seu valor intrínseco, a administração da tributação dessas rendas é relativamente simples. Por fim, devemos considerar que os imóveis residenciais são lares e, ao mesmo tempo, o maior ativo econômico dos cidadãos em sua grande maioria. Com exceção da Suíça, nos países desenvolvidos o regime majoritário das tenças é o da propriedade plena, considerando-se a proporção ideal 70% de propriedade e 30% de locação. Os imóveis constituem-se, igualmente, em sede das empresas, tanto do ponto de vista administrativo quanto de instalações laborais. Igualmente, a sede das administrações públicas e de seus centros de trabalho. Em caso de falta de liquidez, sobre os imóveis recaem sanções pecuniárias, tanto judiciais quanto administrativas. Por fim, tanto o BOLETIM 362

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imóvel quanto as acessões construídas sobre ele constituem o suporte substancial no qual desenvolvemos nossa vida no planeta. Em segundo lugar, para que se possam evitar conflitos e estimular o crescimento econômico é essencial a determinação da propriedade e dos encargos – especialmente os direitos reais de garantia – e definir a quem corresponde o poder de disposição e fazê-lo, ademais, de forma ágil e segura, para que as transações com os direitos sobre os imóveis sejam ágeis e seguras em um ambiente de contratação impessoal. Em terceiro lugar, em plena revolução digital, na perspectiva dos macro-dados ou big data, os Registros de Imóveis são bases de dados muito valiosas, por isso é inevitável que grandes empresas multinacionais queiram não apenas o acesso a esses dados, mesmo gratuitamente, mas também deles se apoderarem, para então gerenciá-los e obter assim um maior retorno privado. Eu vou me referir a esse aspecto da questão posteriormente, mas é apropriado adiantar que, para lidar adequadamente com ele é necessário estarmos bem cientes de que os sistemas de registro não são apenas ou principalmente bases de dados. Tudo isso mostra, por fim, que no setor imobiliário trava-se boa parte das batalhas pelo poder, cujas tensões se revelam nas diferentes áreas do setor e também na regulação dos sistemas registrais e, nos tempos atuais, no uso, num sentido ou noutro, de novas tecnologias na organização e gestão dos mesmos. Dado que as novas tecnologias são novos instrumentos de poder, o conflito de interesses, que tradicionalmente conflui na organização e gerenciamento de tais sistemas, se intensificam porque os diferentes protagonistas creem que as novas tecnologias podem dar a eles a oportunidade de desequilibrar o sistema a seu favor. Com base nesses pressupostos, vou me referir a alguns desafios que a globalização e as novas tecnologias representam para os sistemas registrais, concentrando-me naqueles que me parecem mais relevantes. 2.2. A crença de que os sistemas de registro estão especialmente aptos a serem automatizados. Sobre a automação dos sistemas de registro. 2.2.1 - Abordagem Ao analisar esta questão, devemos partir do entendimento de que entre os economistas há uma tendência a considerar que é desejável alcançar o mais alto grau possível de automação em qualquer atividade econômica,

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porque ela favorece um incremento da produtividade. E essa presunção parece projetar-se especialmente na atividade registral, provavelmente porque não há uma compreensão adequada sobre o que os Registros de Imóveis efetivamente são. Com efeito, parte-se da presunção não explícita de que os Registros de Imóveis são simples caixas de entrada eletrônicas, ou seja, meros receptores de dados concebidos com a única missão de publicá-los tão rápida e fielmente quanto possível, o que os tornaria especialmente aptos a serem automatizados. A partir dessa premissa, para analisar adequadamente essa questão é necessário responder previamente duas outras questões: 1. O que é um Registro de Imóveis? Voltarei a este ponto mais tarde, quando tratarmos da tecnologia da cadeia de blocos (blockchain). Por enquanto basta dizer que o Registro não é meramente uma base de dados ou caixa de mensagens eletrônica, mas é uma complexa tecnologia institucional que permite que as titularidades imobiliárias sejam seguras e facilmente transmissíveis em um contexto de contratação impessoal, como é próprio de uma economia de mercado. Isso implica que o Registro assume funções de verificação de sujeição à legalidade dos processos transmissivos – gatekeeping – e de ser responsabilizado em caso de erro – underwriting. Sem isso, os dados registrais não poderiam ser caracterizados como inputs praticamente inquestionáveis no ​​ âmbito judicial e, portanto, também no campo negocial. 2. O que significa automatizar um Registro de Imóveis? Começarei respondendo a essa segunda questão. 2.2.2 - Distinção entre registros automatizados e registros automáticos Em primeiro lugar, devemos distinguir entre um Registro de imóveis automático e um Registro de Imóveis automatizado7. Um Registro de Imóveis é automático quando as operações registrais derivadas de uma rogação de inscrição – no sentido mais amplo, entendida como qualquer tipo de assento registral – são feitas automaticamente, ou seja, sem a intervenção de qualquer autoridade registral. Um Registro de Imóveis acha-se automatizado quando um processo registral se desenvolve eletronicamente, 7 Cf. BRENNAN, Gabriel. The Impact of eConveyancing on Title Registration: A Risk Assessment. New York: Springer, 2015, p. 29.


“Na perspectiva dos macro-dados ou big data, os Registros de Imóveis são bases de dados muito valiosas, sendo inevitável que empresas multinacionais queiram não apenas o acesso a esses dados, mas também deles se apoderarem, para então gerenciá-los e obter assim maior retorno privado. sendo, no entanto, imprescindível a intervenção da autoridade registral para que se produza qualquer mutação nos assentos registrais ou, na generalidade dos casos, em diferentes fases e aspectos do processo registral – como a prática de atos de registro ou expedição de certidões, por exemplo. É claro que as tecnologias de informação e comunicação permitem operações registrais de maneira mais eficiente. É possível, por exemplo, que a documentação que aceda ao Registro seja eletrônica e não formada apenas em suporte papel e, além disso, que os intercâmbios se produzam por meio de um canal de comunicação seguro. Essas novas tecnologias também permitem a realização de assentos registrais diretamente em suportes eletrônicos em vez de papel, economizando, por conseguinte, espaço para o armazenamento dos arquivos de registro. Permitem igualmente realizar cópias de segurança, manipular dados contidos nos assentos com mais facilidade, interoperar com outros arquivos e sistemas, evitando inconvenientes para os particulares. Permitem elaborar estatísticas mais completas, bem como estabelecer sistemas de alerta que facilitem o ofício registral. Por outro lado, as novas tecnologias de comunicação e informação também apresentam alguns problemas: a consumação de operações registrais exclusivamente em suporte eletrônico, por exemplo, acarreta, hoje, um problema de preservação dos arquivos registrais a longo prazo. Para evitar a deterioração, utiliza-se a técnica de migração periódica, mas isso, além de ser muito caro, não garante a completa fiabilidade no processo de atualização de dados. De qualquer forma, acho inquestionável que essas tecnologias permitiram no passado e permitem, nos dias que correm, que os cartórios realizem seu trabalho com mais eficiência e, até mesmo, que possam fazer coisas que antes estavam fora de seu alcance. Nesse sentido, podemos dizer que, atualmente, os registros de países desenvolvidos

e mesmo os emergentes se encontram automatizados, ou, se preferirmos uma expressão que não induza interpretações equívocas: são registros eletrônicos. 2.2.3 - Registros automáticos: duas opções Mas a questão que se levanta nos últimos tempos é se, além de eletrônicos, os registros devam ser automáticos, isto é, as operações registrais possam ser realizadas sem a intervenção de qualquer autoridade registral ou, mesmo, sem qualquer intervenção humana, além das partes implicadas no ato ou negócio jurídico translativo. Especificamente, duas opções são propostas: 1. Que um representante das partes documente a transação e, além disso, realize todas as operações registrais sem a intervenção de nenhuma autoridade registral. Ou seja, que as partes contratantes possam escolher um representante, socorrendo-se necessariamente de um notário, solicitor8 ou figura similar que, além de documentar o ato ou negócio jurídico em questão, envia o título eletronicamente para o Registro de Imóveis, redige o requerimento de inscrição e, além disso, lavra o próprio ato registral pertinente sem a intervenção de qualquer autoridade registral. Basta dizer que é eficiente que as partes possam escolher um notário ou solicitor que atenda aos seus interesses; mas nem os contratos produzem efeitos perante terceiros nem, tampouco, tais profissionais contratados pelas partes podem tomar decisões que afetem os direitos de terceiros, já que as partes buscam seus próprios interesses, e, na busca e expansão desses, não se autocontêm, salvo se o sistema institucional lhes impuser muros dificilmente ultrapassáveis 8 NT: A figura não é conhecida do direito brasileiro. Trata-se de uma espécie de advogado na Grã-Bretanha e na Austrália treinado para redigir e preparar documentos jurídicos, atuando no aconselhamento sobre assuntos jurídicos e legais e pode representar os interessados em tribunais inferiores. Para mais informações sobre as atribuições e requisitos dessa profissão na Grã-Bretanha, cf. o “Solicitors Act”, de 1974.

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que impeçam a vulneração de direitos de terceiros ausentes, sejam pessoas concretas, sejam bens públicos, que constituem direitos de terceiros em geral, caso em que não é necessário que sejam considerados individualmente. O país que mais avançou nesse ponto foi a Nova Zelândia por meio do sistema Landonline9, implantado em 2002 e reformado em 2017, embora sem prescindir completamente do controle ex ante realizado pela autoridade registral. No entanto, há uma opinião geral de que seu ponto débil é que é um sistema muito vulnerável aos abusos dos practitioners10, abusos esses que têm sido detectados em grau crescente (R. Thomas). Vale a pena referir-se ao seguinte exemplo: recentemente, um practitioner conseguiu realizar mais de uma centena de transações com compradores fictícios e, assim, formalizar hipotecas preferentes no valor de 54 milhões de dólares neozelandeses11. Esses profissionais, além disso, não possuem um nível adequado de formação. A pesquisa Storr revelou que 25 de 63 solicitors participantes responderam “não” à seguinte pergunta: “Você acredita que compreende inteiramente as implicações de toda a legislação relevante ao certificar e assinar uma transação a ser registrada no Landonline?” Isso revela um sério déficit de treinamento do capital humano que pode tomar – e de fato toma – decisões registrais com efeitos in rem tanto inter partes como erga omnes. Por essa razão é provável que a reforma tenha debilitado indiretamente os efeitos das inscrições registrais. Embora mantendo-se a indefeasibility12, aumenta, no entanto, o número de exceções e, além disso, transfere a responsabilidade de erros do Estado para os practitioners. Mesmo assim é significativo o fato de que haja especialistas que estejam pleiteando o desaparecimento da regra da indefeasibility, como consequência da 9 Land Information of New Zealand: www.linz.govt.nz/ (NE) 10 Mantido como no original. Trata-se de profissionais especializados. Vide: https://www.privateproperty.co.za/advice/news/articles/what-you-need-to-know-about-the-property-practitioners-act/7027 (NE). 11 V. Lawyer one of three convicted in $54 million mortgage fraud case - NZ Law Society acesso: https://www.lawsociety.org.nz/news-and-communications/latest-news/news/lawyer-one-of-three-convicted-in-$54-million-mortgage-fraud-case?- (NE). 12 Preferi deixar a expressão como no original. Ela representa o efeito de inatacabilidade do direito ou de um título de propriedade que não pode ser anulado ou cancelado por qualquer evento passado, erro ou omissão no título.

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permissão de que sejam os conveyancers13 a realizar a apresentação dos documentos e que se tenha substituído o controle ex ante, realizado pelo staff registral, por verificações e checagens eletrônicas. A partir disso podemos tirar uma conclusão. Todos os sistemas registrais produzem, em maior ou menor extensão, efeitos frente a terceiros – prioridade, inoponibilidade, inmediate ou deferred indefeseability ou title guarantee14 –, de modo que solicitors não deveriam ser capazes de tomar qualquer decisão registral, em nenhum caso, e, menos ainda quanto maiores forem os efeitos do registro na definição e atribuição dos direitos da propriedade. Se esse requisito de design institucional for violado, o registro deixará de ser confiável. Parece que a Nova Zelândia, como outros países, pretende suprir a deficiência de formação de capital humano por meio da implementação de sistemas o mais automatizados possível, o que implica, de fato, em deixar as decisões jurídicas registrais nas mãos dos contratantes e/ou de seus representantes – notários ou solicitors. E esta é, na minha opinião, uma decisão errada. Quero enfatizar que esta é, como tantas outras, uma decisão proporcionada pelas novas tecnologias. Todavia, estas decisões não precisam ser tomadas necessariamente. De fato, tais iniciativas implicam suprimir as faculdades de controle jurídico dos registradores e essa decisão pode ser tomada – e, de fato, foi tentada no passado, quando as tecnologias que hoje servem de justificativa não existiam. Deve-se dizer, no entanto, que, em geral, as reformas eletrônicas respeitaram a necessidade de que os registradores supervisionassem a legalidade das operações jurídicas necessárias para uma mutação jurídico-real. Assim, como nos casos de Ontário, Inglaterra e País de Gales, ou Austrália. 2. Que as partes contratem sem a intervenção de nenhum terceiro de confiança e sem necessidade de recorrer a qualquer Registro de Imóveis. A tecnologia da cadeia de blocos – blockchain. 13 Um conveyancer é um profissional legal especializado no Reino Unido, Nova Zelândia, Austrália ou África do Sul treinado para lidar com todos os aspectos da transferência e aquisição da propriedade. Para maiores informações: BLACK, Henry Campbell, Black´s Law Dictionary, 5ª Ed., Saint Paul – Minnesota, West Publishing, 1979, p. 301. (NE) 14 [NE: Trata-se de um efeito do registro britânico, também conhecido como “conclusiveness” (seção 58 do Land Registration Act de 2002), pelo qual se reputa que a pessoa que figura no registro como proprietária será tida garantidamente, perante terceiros, como proprietária, ainda que não o seja. Esse efeito não protege, contudo, o próprio titular registral, pelo que se distingue da indefeseability. A respeito, cf. DIXON, Martin John, Updating the Land Registration Act 2002: Title Guarantee, Rectification and Indefeasibility, in, The Conveyancer and Property Lawyer, (3) (2016).]


Ou seja, as partes, sem necessidade de recorrer a notários, solicitors ou qualquer terceiro de confiança, podem, elas mesmas, realizar o contrato e, utilizando-se da tecnologia blockchain, produzir a transferência de propriedade – em rigor, das titularidades sobre os property rights imobiliários – com efeitos não só inter partes como também erga omnes. Não seria necessária a intervenção da autoridade registral nem de qualquer Registro, que seriam substituídos pelo Livro de Inventário de Transações Distribuídas, isto é, em poder de todos os participantes do mercado. Em outras palavras, a Organização Autônoma Descentralizada – DAO (Decentralized Autonomous Organization) – integrada pela Tecnologia do Livro de Inventário Distribuído – DLT (Distributed Ledger Technologies) –, substituiria tanto os conveyancers em sua função de instrumentalização contratual quanto os Registros e, portanto, os registradores de imóveis e, em última instância, o próprio Estado, em sua função de supervisão da legalidade do procedimento contratual e, por fim, de atribuição das titularidades derivadas com efeitos erga omnes, como ocorre especialmente nos registros dotados de indefeseability – tanto imediata (inmediate) quanto deferida (deferred) – ou da mal-chamada fé pública registral. 3. Cenário atual da tecnologia de cadeia de blocos – blockchain – aplicada aos registros imobiliários Parece-me conveniente ressaltar, antes de entrar na análise dos fundamentos dessa questão, que, apesar da intensa publicidade promovida pela indústria dessa tecnologia, bem como por algumas agências nacionais de registro, no momento atual, não há nenhum país que tenha implementado um Registro de Imóveis por Blockchain, ou seja, qualquer sistema blockchain que desempenhe as funções que os sistemas registrais de hoje executam. Nem a Suécia, nem a Estônia, nem a Geórgia, nem Dubai, nem Honduras, nem qualquer dos países que afirmam tê-lo efetivamente implantado ou estar em um estágio avançado de desenvolvimento. Na Suécia, por exemplo, o projeto de Registro de Imóveis por Blockchain (Land Registry Blockchain) afeta exclusivamente a fase de conveyacing, mas não a fase do Registro. O Lantmäteriet mantém suas faculdades íntegras para decidir o que acessa o Registro e o que não15. O mesmo acontece no caso da Georgia, onde a 15 Vide KEMPE, Magnus. The Land Registry in the Blockchain: A Development Proj-

tecnologia blockchain é usada apenas para arquivar documentos e ter cópias de segurança dos assentos. Nesses casos, e em outros similares, fala-se, sem dúvida, do Land Registry Blockchain, mas induzindo a confusão. Por essa razão é notável o rigor com que se pronuncia o Relatório sobre o Projeto-Piloto realizado no Condado de Cook16, que compreende a cidade de Chicago. Concluiu-se que a blockchain poderia ser usada para contratação privada e apresentação ao registro somente se for observado o marco legal existente, segundo o qual “o registro oficial do condado é o único registro oficial”, o que está longe da pretensão daqueles que propõem soluções P2P – pessoa a pessoa – sem intervenção alguma de terceiros independentes17. Vale notar que o Condado de Cook possui um registro de documentos18. Por fim, na II Conferência Anual da International Blockchain Real Estate Association (IBREA), realizada em Nova York em 2017, ficou claro que a blockchain tende a substituir o notário, embora se reconheça que atualmente não se pode garantir a identidade dos contratantes. No que diz respeito ao Registro, foi reconhecido que num país com um Registro Imobiliário digital e acessível online, a margem que resta para a blockchain é bastante reduzida. Somente em certos países poderia ser criado um registro privado paralelo ao oficial, que dispensaria publicidade, e que faria o mercado funcionar. Mas sem reconhecimento oficial não há prioridade. Somente com reconhecimento oficial a publicidade pode criar um valor. Os projetos, portanto, orientam-se preferencialmente para os estados sem Registro ou com um Registro claramente ineficiente, partindo do ponto de que no terceiro mundo 70% dos imóveis não se acham matriculados, o que representa uma grande opor-

ect with Lantmäteriet, Telia Company, ChromaWay and Kairos Future. White Paper. Estocolmo, 2016. V. ARRUÑADA B. Blockchain’s Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J. L. SCI. & Tech. Vol. 19.1, pág. 101. 16 [NE: LIFTHRASIR, Ragnar. Permissionless Real Estate Title Transfers on the Bitcoin Blockchain in the USA! — Cook County Blockchain Pilot Program Report.] 17 Cook county recorder of deeds, blockchain pilot program. Final Report (2017). 18 [NE. As distinções entre os “registros de direitos” e “registro de documentos”, que se tornaram clássicas na literatura especializada, podem ser conhecidas na edição especial da Revista Cartórios Com Você. São Paulo: AnoregSP/SinoregSP. V. especialmente “Registro de Direitos x Registro de Documentos: a teoria imobiliária mundial”, p. 66 et seq. Acesso em 17/11/2018: http://bit.ly/2KbXNhE].

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tunidade de negócios19. Este é, em suma, o cenário atual da tecnologia blockchain aplicada aos registros imobiliários. A questão que devemos abordar a seguir é se essa tecnologia pode, num futuro razoável, substituir o papel do Estado e, portanto, dos Registros, na atribuição de direitos de propriedade erga omnes.

4. Evolução do referido cenário no futuro próximo. Referência a algumas das principais questões. Tentar prever qual será a evolução futura da tecnologia blockchain aplicada aos registros imobiliários é muito complicado. No entanto, dado o otimismo ilimitado de seus arautos, que anunciam sua expansão imperial a todas as áreas transacionais, incluindo a imobiliária, parece conveniente fazer uma análise serena da evolução previsível em um tempo razoável, considerando todas as circunstâncias concorrentes. A análise se concentrará preferencialmente em seu impacto nos sistemas transacionais que contam com um Registro de direitos. 1. Em primeiro lugar, para que a blockchain seja imposta como um sistema transacional é necessário garantir a identidade e a capacidade das partes contratantes, o que é impossível, de acordo com a própria arquitetura do sistema, que permite contratar dois ou mais endereços eletrônicos entre si sem que se possa saber quem está por trás. Se a identidade das partes deve ser revelada deve ser revelada e, tanto por razões fiscais, como outras, há o dever de fazê-lo, devem fazê-lo, isso implica a intervenção de terceiros, geralmente autoridades públicas, no processo transacional, o que rompe diretamente a característica mais marcante dessa tecnologia: a de ser um sistema peer-to-peer, sem a intervenção de terceiros, nem privados nem públicos. A autossuficiência que repele a necessidade de qualquer terceiro intervir é a razão de ser para a tecnologia blockchain. 2. Para que essa tecnologia funcione como um sistema transacional, seria necessário renunciar ao princípio da liberdade de forma contratual, assim como à escolha de procedimentos transmissivos, o que é possível em alguns países, e então o sistema blockchain deveria ser imposto como único e obrigatório sistema na jurisdição que o adotasse, negando validade e eficácia a qualquer outra forma contratual e modalidade trans-

19 MOLINA BALAGUER, F. Informe correspondiente a la Segunda Conferencia Anual de IBREA – International Blockchain Real Estate Association – Nueva York, 10 de octubre de 2017. Artigo citado com autorização do autor.

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missiva dentro dele20. Isso, por sua vez, prejudicaria significativamente as contratações transnacionais, a menos que as diferentes jurisdições adotassem o sistema blockchain sujeito às mesmas regras, o que, por si só, implicaria um sistema blockchain, regulado e submetido aos estados, exatamente o oposto do que essa tecnologia pretende. 3. Embora na maioria das jurisdições o sistema de numerus clausus regule na questão dos direitos reais, geralmente existem maneiras indiretas para que novas figuras de direito real possam ser criadas, de baixo para cima e, finalmente submetidas, para admissão por parte da autoridade judicial. Isso facilita a inovação e, portanto, o progresso. Como seria possível em um sistema blockchain? Não é sustentável pensar que, para isso, seria suficiente que nenhum peer se opusesse a isso. E se ele se opusesse? Não seria possível ou seria necessário procurar procedimentos de decisão? Isso requer novamente a intervenção de terceiros ou que as decisões sejam tomadas por aqueles que têm mais poder dentro do sistema e as tomariam de acordo com seus próprios interesses, como veremos. Por si só já supõe uma ruptura da arquitetura blockchain. Claro, se houver uma escolha entre qualquer uma dessas opções ou a decisão de um juiz de um estado democrático, parece que a opção é clara. Mais tarde, veremos como alguns dos incidentes foram resolvidos até agora. A isso devemos acrescentar a tendência de concentrar o poder de cálculo em poucas mãos, o que dá aos chamados mineradores um poder decisivo sobre a cadeia de blocos, em um fenômeno semelhante ao que está sendo observado na internet, em função da apropriação e uso de dados pessoais por pouquíssimas empresas de alcance global. 2.2.3.2.3.- Referência especial a contratos autoexecutáveis – ​​ Smart Contracts. Problemas relacionados a eles. Para que essa tecnologia esteja operacional, ela deve necessariamente recorrer ao que é indevidamente chamado de smart contracts, que deveríamos chamar, mais apropriadamente, de contratos automáticos ou autoexecutáveis. Isso basicamente levanta dois tipos de problemas: 20 Também poderia ser escolhido para preservar a liberdade de forma e de procedimento transmissivo, mas dando maior valor probatório à documentação blockchain, prescrevendo, por exemplo, que transações não incluídas na blockchain não estarão oponíveis àquelas que o fazem. Nesse caso, porém, a força da blockchain não derivaria diretamente de sua confiabilidade, mas de uma norma legal e, além disso, problemas relacionados à boa-fé de terceiros deveriam ser resolvidos, o que exigiria intervenção judicial, negando novamente o princípio de autossuficiência da tecnologia de cadeia de blocos.


“Nos bens imobiliários vários tipos de direitos de propriedade podem coexistir e, em muitos casos, os serviços são desenvolvidos ao longo do tempo e estão sujeitos a condições, ou seja, ao cumprimento de eventos futuros e incertos, cuja apreciação nem sempre é automatizável.” 2.2.3.2.3.1.- Tais contratos devem ser públicos. Em primeiro lugar, os contratos e, em geral, os atos e negócios jurídicos de finalidade transmissiva, seriam públicos, algo que dificilmente seria aceito pelos cidadãos e, em geral, pelos agentes econômicos. Pode-se argumentar que isso poderia ser evitado estabelecendo um acesso seletivo a eles, mas isso, além de quebrar a arquitetura de blockchain, novamente, representa um grave problema. Se por um lado o consenso faz parte da essência dessa tecnologia, por outro não será possível quando nem todos os componentes da rede tiverem acesso a atos ou negócios jurídicos de finalidade transmissiva, uma vez que a invalidade destes afeta a efetividade da transmissão, mesmo nos chamados sistemas abstratos, enquanto o bem transmitido está nas mãos do adquirente, isto é, antes de ter sido transmitido a um terceiro. Pode-se dizer que esse problema seria resolvido com a introdução de sistemas de transmissão absolutamente abstratos. Descobrimos, no entanto, que a tendência é inversa, mesmo na área de Torrens, onde as reformas tendem a evoluir da inmediate até a deferred indefeseability. Na própria Nova Zelândia, contudo, após a reforma de 2017, a inmediate indefeseability se manteve, no entanto, são introduzidas tantas exceções que, de fato, o deferred foi introduzido de forma sorrateira. E, precisamente, a principal razão que levou a essa evolução legislativa foram as fraudes baseadas no roubo de identidade. Se considerarmos que a essência da blockchain é que os contratantes sejam virtuais, ou seja, que dois endereços eletrônicos são suficientes, sem precisar identificar os que estão por trás, e que, hoje, a tecnologia não garante a identidade daqueles de quem contratam, seria surpreendente se os países optassem por introduzir sistemas abstratos ou reconhecessem a validade das transações de blockchain desconectadas de seus contratos causais. A isso devemos acrescentar que na Alemanha,

onde vigora o dogma dos negócios abstratos, a doutrina é extremamente crítica com sua manutenção. 2.2.3.2.3.2.- Escopo real de autoexecução. A necessidade de recorrer a oráculos. O segundo problema, ou melhor, grupo de problemas que surgem quando se analisam os contratos autoexecutáveis ​​são aqueles relacionados ao escopo real da autoexequibilidade necessária para que a tecnologia blockchain funcione como um sistema transmissivo, já que a blockchain é apenas o instrumento de enforcement dos smart contracts, pelo que, se esses não são autoexecutáveis, quebra-se o próprio conceito de blockchain que surgiu para tornar desnecessária a intervenção de terceiros no rito transmissivo, tanto em sua fase contratual quanto em sua fase de transferência. 2.2.3.2.3.2.1.- O primeiro problema que surge é que os smart contracts são programas de computador escritos em linguagem própria de programação, a chamada linguagem de máquina, diferente da linguagem humana. Isso levanta, em primeiro lugar, o problema da compreensibilidade, essencial para um consentimento válido, por sua vez essencial para a validade contratual. Como Feliu Rey afirma21, em um smart contract essa manifestação de acordo deve ser feita através de linguagem de máquina – isto é, uma linguagem de programação – adequada para sua execução. Portanto, é pertinente considerar como assegurar a compreensão das cláusulas e, assim, a emissão consciente do consentimento sobre as funcionalidades quando o acordo é feito apenas em linguagem de máquina sem “transcrição” na linguagem humana. Isso é mais complicado quando esses tipos de con21 Feliu Rey J. “Smart Contract: Concepto, ecosistema y principales cuestiones de Derecho privado”, La Ley Mercantil, nº 47, 2018, pag. 18.

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tratos também são padronizados e oferecidos a uma pluralidade de destinatários, porque então entramos no escopo das condições gerais de contratação que ativam os controles de incorporação, interpretação e conteúdo aos quais estão sujeitos. Além disso, mesmo que não tenham o estatuto de condições gerais, quando uma das partes tem a condição de consumidor, todas as regras de tutela e proteção correspondentes serão aplicadas, em particular, em relação ao abuso de certas cláusulas. Assumir que a programação de smart contracts deve estar em linguagem de máquina tem implicações significativas. Diferentemente da linguagem humana que lida com nuances e ambiguidades, a linguagem de máquina não permite isso. As decisões são estruturadas em instruções condicionais, se A então B, se C então D. Isso implica que, dado o atual estado da técnica, não será possível codificar nenhuma obrigação em um smart contract em razão das próprias limitações da linguagem para descrever a obrigação, “entendê-la”, para comprovar ou verificar a conformidade e, quando apropriado, realizar as ações programadas em caso de não conformidade, ou pelo menos não será possível levantá-las nos mesmos termos e com a mesma extensão.22 Continua afirmando que “Se o Smart Contract não tem controle sobre a execução dos serviços ou das consequências do descumprimento, o automatismo e a autonomia na execução não podem ser alcançados. Para isso é necessário que o smart contract possa executar essas decisões em conformidade com os termos contratuais com ações no ambiente físico (por exemplo, no caso de não pagamento da taxa de leasing de um carro, o dispositivo de partida é desativado e não pode circular) sem a intervenção das partes ou de outros assuntos. 22 Considerem-se expressões comuns como a boa-fé, diligente comerciante, o honrado pai de família, rebus sic stantibus, a variação das bases essenciais do negócio, fato de Deus, fatos imprevisíveis ou previsíveis, mas inevitáveis, etc. E muitos outros. Filippi P. e Wright A. Blockchain e Law, Harvard University Press, 2018, p. 77. No mesmo sentido Feliu Rey J. “Smart Contract: Concepto, ecosistema y principales cuestiones de Derecho privado”, La Ley Mercantil, no 47, 2018, pag. 8 ss. Como diz o autor, p. 9: “... devemos alertar que, no estado atual da tecnologia, o dispositivo, na realidade, não entende conceitos, mas executa instruções conforme programadas. Ou seja, quando pressionamos a tecla de impressão, para imprimir um documento, o dispositivo não entende o conceito de impressão ou a ordem, simplesmente executa um protocolo que atinge o objetivo pretendido, ou seja, a obtenção no suporte papel de um conteúdo que estava em suporte digital. Outro exemplo mais sofisticado, no qual já começamos a incorporar noções de tecnologia mais avançada com soluções de inteligência artificial, seria o caso de uma bola que passa na frente de um carro autônomo. Certamente, o veículo vai parar ou desacelerar antes da identificação de um obstáculo, porque isso foi programado anteriormente, mas dificilmente, no estado atual da tecnologia, será capaz, por si só de intuir, que por trás da bola pode aparecer uma criança correndo tentando pegá-la.” Nesta mesma linha, Surden H. “Computable Contracts”, U. C. Davis L. Rev., vol. 46, 2012, pp. 633 e segs., afirma que (...) os algoritmos contemporâneos de computador não podem ler ou compreender mesmo textos básicos de linguagem escrita, estando longe da sofisticação exibida por uma pessoa apenas alfabetizada”.

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A capacidade de realizar essas tarefas depende do que a doutrina chamou de contractware, definida como a concretização física ou digital dos termos do contrato por meio de dispositivos que realizam uma ação derivada da execução de um Smart Contract.23. Segundo RASKIN24, essa forma de concretização não precisa ser uma peça ou ativo físico (por exemplo, hardware), mas pode exigir a intervenção de outro código que execute a ação estipulada (por exemplo, a desativação de um código de acesso ou a desativação de uma conta).” 2.2.3.2.3.2.2.- Isso revela que há um trade-off ou conflito entre a autoexecução e a complexidade contratual. Isso explicaria por que a blockchain está se desenvolvendo especialmente no campo das finanças e, em particular, em certas áreas, como derivativos, que atingiram tal grau de padronização que, na realidade, são legal commodities (commodities jurídicas).25 No ramo imobiliário, no entanto, as coisas se desenvolvem de forma muito distinta, pois pode-se dizer que existe uma correlação negativa entre o baixo valor dos direitos e a alta complexidade das transações, portanto, nessa área, os smart contracts e a blockchain se desenvolvem mais facilmente em transações de baixo valor.26 Nos bens imobiliários vários tipos de direitos de propriedade podem coexistir simultaneamente e, além disso, em muitos casos, os serviços são desenvolvidos ao longo do tempo e estão sujeitos a condições, ou seja, ao cumprimento de eventos futuros e incertos, cuja apreciação nem sempre é automatizável. Deve-se presumir, entretanto, que um desenvolvimento progressivo da inteligência artificial permitirá que transações autoexecutáveis sejam cada vez menos simples. Prever hoje qual seria o limite da complexidade contratual autoexecutável não é fácil e nem mesmo possível, mas os contratos relacionais, 23 Feliu Rey J., op. cit., pág. 17. 24 Segundo Raskin: “o contractware pode ser definido como as instanciações físicas ou digitais dos termos do contrato em máquinas ou outras propriedades envolvidas na execução do contrato. Por instanciação, queremos dizer a escrita dos termos do acordo em um software já existente ou sua adição em um software que esteja conectado de alguma forma a uma máquina que implemente o contrato. Esse autor esclarece (nota de rodapé 4) que este termo “contractware” surgiu em outro lugar para se referir a ofertas de software comercial que facilitam o fluxo de trabalho e a escrita de contratos tradicionais. Raskin M, “The law and legality of Smart Contracts”, Georgetown Law Technology Review, vol. 1, 2017, p. 307 Citado por Feliu Rey J em op. cit, p. 17. 25 Arruñada B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol. 19.1, 1918, p. 78 26 Arruñada B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol.19.1, 1918, p. 78


frequentes no âmbito imobiliário, dificilmente podem ser autoexecutáveis. 2.2.3.2.3.2.3.- Se os contratos não são autoexecutáveis, então é necessário que um terceiro intervenha. Será necessária portanto, em muitos de casos, a intervenção de terceiros. Isso não só quebra o conceito de blockchain, mas expõe sua principal fraqueza: a institucional, que é especialmente significativa porque, como tenho dito, a blockchain não incorpora nenhuma nova tecnologia eletrônica ou física, mas, partindo das já existentes, ela se inter-relaciona alinhando, supostamente, os diferentes interesses em jogo, de modo que eles sejam, supostamente, convergentes. No entanto, como veremos abaixo, não é possível que tal convergência de interesses ocorra. Para isso, vou me referir ao modo como alguns dos principais incidentes foram resolvidos até agora: 2.2.3.2.3.2.3.1.- O incidente do DAO – Decentralized Autonomous Organization. Esse incidente aconteceu em 2016 na plataforma Ethereum, considerada o paradigma dos smart contracts e cujo objetivo é implementar o princípio da Lex criptographica, segundo o qual o código é lei (code is law)27, o que significa que o código, por si só, fornece uma autoexecutabilidade completa e repele sua submissão a qualquer regulamento por um terceiro, seja privado ou público, incluindo o Estado. Na realidade, no entanto, as coisas se desenvolvem muito diferentemente, como o incidente acontecido em 2016 mostrou. Diante de uma fraude que ocorreu em uma cadeia de transações, a equipe de gerenciamento da plataforma decidiu executar um hard fork, ou seja, uma modificação no software para reverter transações anteriores consideradas inválidas. Isso significava a própria negação da imutabilidade das transações, bem como de sua autoexecução, em suma, do princípio o código é a lei. Ficou evidenciada também a existência de uma autoridade central, não escolhida por ninguém e sem qualquer autoridade legal, com um grau inegável de poder que, além disso, o utilizou em benefício próprio. Isso resultou na divisão da comunidade e na fundação de uma nova criptomoeda, teoricamente fiel à essência do sistema, chamada Ethereum Classic (ETC), embora apenas até certo ponto porque, pelo menos em casos

de fraude, permite o recurso aos tribunais.28 2.2.3.2.3.2.3.- O Bitcoin Cash. Em 2017, um conflito semelhante foi levantado dentro da comunidade Bitcoin sobre o tamanho dos blocos.29 O protocolo Bitcoin fixou-o em um tamanho relativamente baixo, a fim de evitar ataques de negação de serviço, o que dificulta a velocidade de processamento, tornando a do Bitcoin menor que a dos operadores financeiros comuns. Diante dessa situação, por um lado, os mineradores e as empresas que prestam serviços em torno do Bitcoin reivindicavam blocos maiores, enquanto, por outro, os principais desenvolvedores do código se opunham por razões de segurança. Isso levou a uma verdadeira guerra civil e à adoção de soluções hard fork, como no caso da Etherum. Para os fins desta apresentação é interessante notar que, em razão desse conflito, a monopolização de praticamente toda a capacidade de mineração por alguns grupos, que se opõem a qualquer modificação que possa alterar seu status atual, ficou bastante clara, o que supõe, além disso, a perda de controle do Bitcoin por parte dos usuários que era, precisamente, um dos objetivos iniciais; também a falta de clareza quanto ao montante de comissões a serem pagas pela realização das transações e seu rápido crescimento previsível no futuro; a falta de democracia na comunidade Bitcoin; etc.30 Tudo isso evidencia a existência de falhas básicas de tecnologia institucional pelo que os usuários estão indefesos nas mãos daqueles que dominam as plataformas e cujos interesses só podem ser defendidos, em última instância, pelo Estado. 2.2.3.2.3.3.- Neste ponto devemos considerar se o conjunto formado pelos contratos autoexecutáveis – smart contracts – e a tecnologia de cadeia de blocos – blockchain – estão em condições de substituir com vantagem os Registros de Imóveis. 2.2.3.2.3.3.1.- Premissas básicas. As propriedades in personam e propriedades in rem. Embora existam vários tipos, enfocarei, acima de 28 Arruñada B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol.19.1, 1918, pág. 73 29 Vide Gallego Fernandez L.A, Cadenas de bloques y Registros de derechos, pág. 17

27 Arruñada B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol.19.1, 1918, pág. 92

30 Gallego Fernandez L.A, Ibidem, pág. 20

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tudo, os registros de direitos, com uma breve referência final aos registros de documentos. Para responder adequadamente a essa pergunta devemos partir de uma série de premissas básicas: 1.- Os contratos só produzem efeitos inter partes e, portanto, servem apenas para ordenar as relações entre A e B, mas não as relações com C e, em geral, com todos os outros, chamados de terceiros. 2.- Os direitos podem ser direitos de crédito ou in personam e direitos reais ou in rem. Para os Registros de Imóveis, independentemente das nuances, somente interessam os direitos reais imobiliários, e não os direitos de crédito, a menos que sejam garantidos por algum tipo de direito real de garantia sobre um bem imóvel. 3.- Da mesma forma que existem direitos in personam e direitos in rem, as titularidades sobre os mesmos podem ser, independentemente da natureza do direito, titularidades in rem e titularidades in personam. As titularidades in rem, como em direitos in rem caracterizam-se por não poderem ser alteradas sem a vontade do seu titular, ao contrário dos direitos in personam, os quais podem ser alterados contra a vontade do seu proprietário, sendo substituídos pela indenização correspondente. As titularidades in rem, tanto de direitos pessoais como de direitos reais, são mais valiosas do que as titularidades in personam porque impedem que terceiros influenciem tanto a titularidade quanto o conteúdo dos direitos. 4.- As titularidades in rem sobre os direitos reais só podem ser adquiridas através de usucapião ou através de um sistema de aquisição baseado num registro de direitos. Um contrato não seria suficiente ainda que fosse autoexecutável, uma vez que serviria apenas para transmitir uma propriedade obrigacional, ou seja, com efeitos apenas inter partes31. Resta, portanto, saber se a tecnologia blockchain poderia atuar como um registro público, ou seja, criar propriedades in rem e, além disso, facilitar sua transmissão mantendo a natureza da propriedade e, portanto, sua efetividade erga omnes. A fim de facilitar a exposição, vou dispensar a necessidade de estabelecer um procedimento de matrícula na rede de blockchain, da regulamentação de contratos 31 [NE: O autor está considerando aqui os sistemas nos quais vigora o consensualismo (como é o caso do Direito Francês e os que lhe seguiram), ou seja, nos quais os direitos reais são constituídos pelo próprio contrato, independentemente de um modo de aquisição. Em tais sistemas fica ainda mais evidenciada a distinção entre direito real e titularidade real.]

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que operem fora da referida rede em relação aos property rights imobiliários que, uma vez matriculados, já estejam incluídos no ledger, etc., para focar na questão de que se, hipoteticamente, poderiam outorgar aos contratos de finalidade translativa que constassem no ledger os mesmos efeitos que hoje possuem as entradas do registro nos assentos registrais em um registro de direitos, sem intervenção de terceiros de confiança, por ser essa incompatível com a própria natureza do sistema blockchain. Para responder a essa pergunta, é necessário indicar antecipadamente como obter um registro de direitos para criar titularidades in rem. 2.2.3.2.3.3.2.- Procedimento pelo qual um registro de direitos cria propriedade in rem. O papel do Registrador como autoridade pública. A primeira coisa que deve ser levada em conta é que a propriedade privada é uma função do Estado moderno, mediante um arranjo institucional no qual os governantes reconhecem e protegem os direitos de propriedade em troca de impostos. Estritamente falando, somente são proprietários aqueles que são reconhecidos pelo Estado como tais perante todos. O Registro de direitos é o instrumento através do qual o Estado reconhece uma pessoa que o solicita como dono em primeira instância, em uma decisão, adotada por meio de um procedimento que deve ser ágil, mas, ao mesmo tempo, com garantias suficientes para que, no caso em que a decisão de registro seja contestada perante os tribunais, eles geralmente a ratifiquem. Dessa forma, os assentos registrais tornam-se inputs inquestionáveis para o mercado, economizando custos de informação aos agentes econômicos e, portanto, custos de transação. Se não for esse o caso, ou seja, se os tribunais não apoiarem os pronunciamentos registrais normalmente, em caso de impugnação, os agentes econômicos não terão confiança neles e, consequentemente, procurarão fórmulas alternativas para esclarecer suas incertezas. A confiabilidade dessas decisões depende, portanto, das garantias, que, por sua vez, dependem da confiabilidade do procedimento registral. Para alcançar esse objetivo, o procedimento registral geralmente segue – sem nuances e exceções – as seguintes etapas: 1.- Somente documentos autênticos são admitidos como prova, isto é, aqueles que comprovam a identidade das partes, bem como o conteúdo do ato ou negócio


“O Registrador representa o interesse não apenas de cada parte, mas, acima de tudo, dos terceiros ausentes e de que sua vontade será respeitada conforme especificado nas leis e regulamentos emanados de seus representantes políticos.” de finalidade transmissiva. O notário, solicitor ou conveyancer deve assegurar a identidade das partes, avaliar sua capacidade de direito, bem como sua capacidade de agir. Deve ser assegurado que a escritura corresponde ao que foi declarado pelas partes, que deve corresponder ao que é realmente desejado, o que exige que o entendimento do conteúdo do contrato seja assegurado, especialmente quando uma das partes contratantes tem o status de consumidor. Tudo isso, a fim de evitar vícios de consentimento que afetariam a validade do contrato. 2.- O cedente deve ser o proprietário registrado, em suma, o proprietário, por ser o proprietário reconhecido pelo Estado – salvo prova em contrário, que – além disso, deve ter poder de disposição. Se não o tiver, ou estiver limitado por uma decisão judicial, deverá ser registrado no Registro de Imóveis, pois, em outro caso, tal limitação não teria efeito sobre o adquirente. 3.- O adquirente deve solicitar o registro da sua aquisição obrigacional, ou seja, o reconhecimento pelo Estado de sua titularidade negocial, por meio do Registro. Se o negócio tiver acesso, tal propriedade torna-se uma titularidade in rem, isto é, com efeitos erga omnes. Para tomar essa decisão, o registrador ou autoridade registral pertinente deve examinar: 1.- A regularidade formal do documento verdadeiro em que conste o ato ou contrato de finalidade transmissiva. 2.- Que adquire de um proprietário registrado com capacidade e poder de disposição 3.- Que tal ato ou contrato esteja de acordo com a Lei e, portanto, seja válido e efetivo. 4.- Que todas as leis do Direito Público que se projetam sobre a transação – fiscais, ambientais, urbanas, de combate à lavagem de dinheiro, etc. – foram cumpridas. Após o exame, a autoridade registral autoriza o registro e, se o adquirente obteve o bem a título oneroso e, além disso, se houver alguma imprecisão registral, essa é

por ele ignorada, adquire uma propriedade in rem32. Isso significa que está protegido contra qualquer causa de invalidade ou ineficácia de qualquer ato ou negócio jurídico anterior relacionado ao mesmo ativo, ainda que o beneficiário desse ato ou negócio anterior esteja protegido por uma ação in rem, se essa não tiver sido registrada antes da aquisição pelo terceiro, e essa proteção abrange também qualquer outro encargo real, incluindo os direitos reais de garantia, se não registrados. E para isso, não precisa realizar nenhum trabalho de investigação retrospectivo que sempre é custoso e inseguro, bastando consultar o Registro. Deve-se ter em mente que, nessa função, o Registrador age como uma autoridade pública. Ao analisar se o ato ou contrato de finalidade transmissiva atende aos requisitos do Direito Privado para ser válido e eficaz, está agindo em defesa de cada uma das partes e também, quando uma das partes é um grande ator econômico, em defesa da parte mais fraca, analisando as cláusulas gerais e, quando uma das partes atende à condição de consumidor, verificando a existência de cláusulas abusivas. A repressão da violação pelas partes de regras obrigatórias ou proibitivas é essencial, pois tais regras, por definição, indicam o que é lícito e ilícito às partes e, portanto, delimitam o canal aceitável pela sociedade para adquirir propriedades sobre bens que, por definição, são escassos. E, nesse sentido, tais regras contêm direitos em favor de todos a quem as partes devem respeitar. O mesmo acontece quando se examinam as regras do Direito Público que projetam sua vigência na transação e à qual me referi anteriormente. 32 [NE: O registro, a onerosidade da aquisição e a boa-fé do adquirente são os requisitos impostos pela Lei Hipotecária Espanhola a fim de que o terceiro seja protegido pelos efeitos da fé pública registral. A respeito, cf. o artigo 34 da referida lei: El tercero que de buena fe adquiera a título oneroso algún derecho de persona que en el Registro aparezca con facultades para transmitirlo, será mantenido en su adquisición, una vez que haya inscrito su derecho, aunque después se anule o resuelva el del otorgante por virtud de causas que no consten en el mismo Registro.]

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O Registrador, portanto, representa o interesse não apenas de cada parte, mas, acima de tudo, dos terceiros ausentes e de que sua vontade será respeitada conforme especificado nas leis e regulamentos emanados de seus representantes políticos. Entender esse aspecto da função do Registrador é essencial para avaliar adequadamente o problema que estamos analisando. 2.2.3.2.3.3.3.- Exame para saber se o complexo formado pelos contratos autoexecutáveis – ​​ smart contracts – e a cadeia de blocos – blockchain – poderiam substituir vantajosamente o procedimento de registro. Uma vez expostas, basicamente, as fases do procedimento registral, é necessário examinar se o complexo formado pelos contratos autoexecutáveis – smart contracts – e a cadeia de blocos – blockchain – poderiam substituí-lo com vantagem. Vejamos. 1.- Na fase de formação do contrato de finalidade transmissiva, há um problema de que tal tecnologia não só não permite identificar o verus dominus, mas não permite sequer conhecer a identidade das partes contratantes, bem como sua capacidade e poder de disposição. Também não se pode saber, como consequência, se eles deram consentimentos válidos, especialmente se considerarmos que contratos autoexecutáveis – smart contracts – não são escritos em linguagem humana, mas em linguagem de máquina. Para superar esse problema, a proteção do anonimato devia desaparecer, um dos aspectos identificadores da blockchain assim como provar a identidade e capacidade através do uso de oráculos33, o que implica a negação do princípio de autossuficiência da cadeia de blocos. Nessa fase do procedimento não parece que essa tecnologia possa substituir, hoje, o papel dos notários, solicitors e, em geral, dos conveyancers. 2.- Contratos referentes a imóveis geralmente não são breves nem simples. Tendem a ser também relacionais, isto é, integrados por serviços que serão prestados após o contrato, por um período de tempo mais ou menos longo. Portanto, eles são dificilmente padronizáveis e autoexecutáveis. Por exemplo, ao longo da duração do contrato – compra e venda com preço diferido, empréstimos hipotecários de longo prazo – as 33 Sobre o conceito de oráculo, ver Feliu Rey J. Esse autor define os oráculos como fontes de informação externa que fornecem dados para um smart contract, a fim de especificar os serviços ou proceder com o seu cumprimento. Feliu Rey J. “Smart Contract: concepto, ecosistema y principales cuestiones de Derecho privado”, La Ley Mercantil, nº 47, 2018. Quanto a quem pode ser o oráculo que fornece essas informações, podem ser a partir do Registro Civil, a polícia que emite documentos de identidade pessoal junto com notários, solicitors ou conveyancers.

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circunstâncias essenciais podem variar e produzir a aplicação da cláusula rebus sic estantibus. A execução do contrato, sua novação ou resolução teria que ser decidida também por um oráculo que, normalmente, seria a autoridade judicial. 3.- No que diz respeito à função de controle legal da autoridade de registro em relação ao fato de que o referido ato ou contrato está em conformidade com a lei e, portanto, é válido e eficaz, bem como que todas as regras do Direito Público que se projetam sobre a transação – fiscais, ambientais, urbanas, de combate à lavagem de dinheiro etc. – também hoje não parecem facilmente automatizáveis, especialmente na medida em que essa função implica certo trabalho de ponderação, inevitável à medida em que se aplicam regras abstratas a casos específicos. Essa função só poderia ser feita por um oráculo tecnicamente qualificado e institucionalmente neutro, como o Registrador, pelo menos no estágio atual e previsível em um horizonte razoável de desenvolvimento da inteligência artificial. Os sérios déficits institucionais mostrados tanto pelo Bitcoin quanto pelo Ethereum, aos quais me referi anteriormente, apoiam essa visão. 2.2.3.2.3.3.4.- Pode o chamado consenso que caracteriza a blockchain substituir a necessidade de supervisão legal pela autoridade registral? 2.2.3.2.3.3.4.1.- Abordagem da questão. Neste ponto, acho que uma questão do maior interesse deve ser abordada. A saber, no desempenho de sua função, o registrador representa os interesses dos ausentes, ou seja, de terceiros que não fazem parte do ato ou negócio jurídico de finalidade transmissível. Se, por definição, num cenário de blockchain como um sistema único, todas as transações são públicas e imutáveis, e aqueles que não estejam de acordo podem se opor porque consideram que seus direitos foram violados, então devemos concordar que não haveria ausentes indefesos e, portanto, você não precisaria de ninguém para representá-los. É assim? Na minha opinião, não, e para demonstrá-la, seguem os argumentos. 2.2.3.2.3.3.4.2.- Sobre o significado de consenso no ecossistema de cadeia de blocos – blockchain. A primeira coisa que deve ser destacada é o significado do termo consenso quando o utilizamos no ecossistema blockchain porque pode facilmente levar a erro,


uma vez que sugere que no iter transmissivo submetido a blockchain e, portanto, à lex criptographica, existem consentimentos explícitos ou implícitos de todos os possíveis afetados. E isso, simplesmente, não é verdade, exceto no sentido de que, usando blockchain, estamos aceitando todas as suas possíveis consequências. Em primeiro lugar, como afirmei, a blockchain não pode identificar os contratantes físicos. Na internet eles contratam utilizando seus avatares digitais e a blockchain não consegue identificar o contratante físico nem, portanto, estabelecer qualquer correspondência com seu avatar digital. Além disso, para os blockchainers, uma das principais vantagens do sistema é justamente permitir que eles escondam sua verdadeira identidade, razão pela qual é extremamente atraente para todos aqueles que querem realizar transações contornando limitações legais. Em segundo lugar, tanto na versão tradicional do protocolo, que permite apenas a transferência de criptomoedas virtuais – por exemplo: Bitcoin – e em versões mais desenvolvidas, que permitem trocar criptomoedas virtuais por coisas ou serviços (por exemplo: Ethereum), quando o termo consenso é usado, é para se referir à coincidência ou acordo referente a verificações muito limitadas. De fato, o termo consenso em relação ao Bitcoin refere-se apenas às chamadas validações – verificações – que são feitas a cada transação pelos demais nós da rede, porém estão limitadas a verificar se a conta que transfere um certo número de bitcoins existe e tem pelo menos essa quantidade, bem como a coincidência das assinaturas e a existência da conta de destino. Mas eles não se estendem além disso. Assim, não se estendem aos elementos essenciais do contrato, que podem ser determinantes de sua nulidade, como, por exemplo, a identidade efetiva do solicitante (quem ordenou a transação era, na verdade, o dono da conta) ou que, mesmo sendo assim, o consentimento foi dado livremente, a legalidade do pagamento, etc. No caso do Ethereum, como no caso do Bitcoin, verifica-se que os avatares – não os contratantes físicos – assinaram um contrato e depois o restante dos nós verifica a coincidência das assinaturas, que são todos os consentimentos – dos avatares, não dos contratantes físicos – definidos no contrato autoexecutável, que os eventos previstos ocorreram ou não e que as consequências previstas para cada caso foram executadas, que é até onde alcança o consenso dos nós que executam essas verificações.

Mas isso não é suficiente. Como sabemos, a validade e a eficácia de um contrato exigem a concorrência de elementos essenciais que determinam sua validade ou nulidade, bem como sua eficácia ou ineficiência, aos quais o protocolo não se estende nem pode se estender, como, por exemplo, a efetiva identidade do solicitante – que é saber se a pessoa que ordenou a transação era, de fato, o dono da conta – nem que, ainda, o consentimento foi dado livremente, o pagamento foi legal, bem como a não violação de regras imperativas ou proibitivas que, precisamente por serem assim, garantem direitos de terceiros, por vezes identificados, por vezes difusos. Em terceiro lugar, tanto na versão tradicional do protocolo, que é usada para o Bitcoin, por exemplo, como em versões posteriores, como o Ethereum, o dono de certos bitcoins ou um certo bem não tem mecanismos, dentro dos próprios protocolos, para se opor a alguém que os usa indevidamente por ele. Esse fato, aliado ao anonimato que caracteriza os protocolos e a irreversibilidade das transações, uma vez verificadas e incorporadas à cadeia de blocos, deixa-o indefeso. De fato, já vimos como os incidentes de disposição dupla no protocolo Bitcoin e no protocolo Ethereum, aos quais me referi anteriormente, foram resolvidos. Nesses casos não houve consenso, entendido esse como acordo entre todos os possíveis afetados. Esses incidentes mostraram que a tecnologia blockchain pode falhar e, de fato, falha e, além disso, no caso de falha, sofre de uma fraqueza de desenho institucional, isto é, da tecnologia institucional, simplesmente inaceitável. Tanto as medidas adotadas para o incidente DAO de 2016 quanto o Bitcoin Cash de 2017 querem apresentar-se como soluções excepcionais. Entende-se assim que, de maneira ordinária, no caso de um ato de dupla disposição, o protocolo blockchain resolve o problema por via do consenso. Vamos ver se isso é verdade. Como vimos, blockchain é um sistema público e distribuído, sem intermediários. Isso implica, como Gallego34 observa, que não há um único marcador de tempo que seja fornecido aos diferentes usuários e nós da rede para estabelecer o momento exato em que uma transação é feita e, por outro lado, a marcação de hora pelas partes no momento de sua assinatura não pode ser levada em consideração uma vez que esse horário pode ser facilmente manipulado. Nessa situação e tendo 34 Gallego Fernández L.A, Cadenas de bloques y Registros de derechos, pág. 12, in Revista Critica de Derecho Inmobiliario (765) (2018).

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em conta a arquitetura geral do sistema, o autor acima mencionado continua o raciocínio no qual uma vez que as transações são progressivamente comunicadas de nó para nó, não é possível garantir que a ordem na qual um nó da rede recebe tais transações seja a mesma na qual elas foram feitas. Como consequência, é possível que um mesmo indivíduo transfira os mesmos bitcoins ou o mesmo bem para pessoas diferentes. Como Gallego descreve, “um usuário mal-intencionado poderia fazer uma transação e em seguida, antes desta ser validada, de outro dispositivo fazer uma nova transação usando as mesmas entradas que a anterior. Devido aos diferentes tempos de propagação na rede, haverá nós que receberão a segunda transação antes da primeira – e, portanto, considerarão esta última como inválida – e vice-versa, com a qual não haveria acordo sobre quais operações deveriam ser consideradas válidas”.35 A cadeia de blocos é, simplesmente, o instrumento para resolver esse tipo de problemas, porque eles são apenas instrumentos para solicitar transações. A solução adotada é que, no caso de dupla disposição, a cadeia se ramifica em dois ramos de blocos diferentes. A regra para estabelecer qual transação tem a preferência é a chamada fork choice, segundo a qual, no caso de uma bifurcação, os mineradores devem sempre optar pela maior ramificação, ou seja, aquela com o maior número de blocos confirmados, medidos em termos de capacidade computacional necessária para validá-los. A transação incluída nesse ramo prevalecerá, mesmo que mais tarde.36 Isso implica que as transações incluídas nos blocos que integram as ramificações mais curtas e que já foram confirmadas, deixam de contar com essa confirmação. Afirma-se que, com essa regra, o consenso é preservado através da rede, porque o que uma maioria concorda supõe-se válido já que se presume que aqueles que controlam a maioria da capacidade computacional da rede agem de acordo com o protocolo.37. De acordo com a lex cryptographica, portanto, ganha aquele cuja transação foi incluída no bloco mais longo. Não vou entrar na análise dos chamados “ataques de 51%”, ou seja, nas conspirações que possam existir entre os grupos que controlam mais de 50% da capacidade 35 Gallego Fernández L. A, Ibidem. 36 Véase Filippi P y Wright A. Blockchain and the Law, Harvard University Press, 2018, pág. 24 37 Ibidem.

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computacional da rede que, por outro lado, está passando por uma preocupante tendência para a concentração, para me fixar apenas em saber se essa regra pode ser chamada de consenso. Pode-se admitir que sim, no sentido de que quem faz as transações dessa maneira deve saber que essa é a regra no caso da dupla disposição e, portanto, a aceita. Repele-se, no entanto, chamar a regra de consenso a uma regra na qual A adquire do proprietário de acordo com o protocolo, vê confirmada sua aquisição pelo mesmo e, no entanto, posteriormente perde o adquirido sem ter havido negligência de sua parte e sem poder fazer nada para evitá-lo, exceto por uma coisa: pagar mais a um minerador para resolver preferencialmente o problema matemático que permite validar o bloco no qual sua transação está incluída e, dessa forma, ganhar prioridade. O protocolo blockchain, portanto, provoca a existência de terceiros indefesos, isto é, de adquirentes que perdem essa condição sem qualquer causa que o justifique, segundo nossa concepção, e sem que eles possam fazer nada para evitá-lo. Esse problema é agravado se considerarmos as soluções dadas aos incidentes do DAO em 2016 e o ​​Bitcoin Cash de 2017, onde os verdadeiros governantes dessas redes adotaram soluções de acordo com seus interesses quebrando as regras do protocolo. Isso requer a existência de uma tecnologia institucional que evite o problema mediante a intervenção de um terceiro imparcial que, no caso em questão, é exatamente o papel desempenhado pelo registrador de imóveis. Para isso, devemos acrescentar uma última observação, feita por Arruñada: a liberdade individual tem um preço em termos de responsabilidade pessoal que nem todos estão dispostos a assumir. Afirma esse autor: “Pelo contrário: conhecendo suas próprias fraquezas, geralmente confiam mais e preferem confiar em soluções centralizadas, baseadas em agentes de custódia privados e públicos. Essa preferência por confiar em terceiros, em vez de em si, impõe uma restrição particularmente severa às aplicações no campo da propriedade, porque a natureza universal da propriedade exige que as mesmas regras se apliquem a todos os titulares de direitos de cada bem. Em um sistema hipotético de propriedade totalmente descentralizado, todas as pessoas devem outorgar ou negar nosso consentimento a todos os tipos de transações de projetos que possam afetar nossos direitos de propriedade. Como resultado, nós


“O protocolo blockchain, portanto, provoca a existência de terceiros indefesos, isto é, de adquirentes que perdem essa condição sem qualquer causa que o justifique, segundo nossa concepção, e sem que eles possam fazer nada para evitá-lo.” nos tornaríamos os únicos custodiantes não apenas de nossas chaves criptográficas (para obter aviso e outorgar consentimento), mas também para proteger a integridade legal de nossos direitos.”38 A isso devemos acrescentar que nem todos estão dispostos a assumir essa responsabilidade porque não é fácil defender a integridade jurídica de nossos direitos e, além disso, porque as partes, quando contratam, podem conspirar não para prejudicar os direitos específicos de pessoas individualmente identificáveis, mas bens públicos – e, portanto, direitos difusos de terceiros – definidos e protegidos por normas impeditivas e proibitivas não conhecidas em muitas ocasiões pelos cidadãos que não são especialistas em Direito. Além disso, isso exigiria uma atenção permanente para cada transação feita na rede, o que por sua vez exigiria a dedicação de um tempo que normalmente falta ao cidadão comum. Em um mundo cada vez mais especializado, os supervisores legais também devem se especializar.

documentos não publicados, mesmo que sejam de uma data anterior, sejam oponíveis aos publicados, mesmo que sejam de uma data posterior. Até recentemente, na França, a inoponibilidade operava mesmo quando um segundo adquirente contratual sabia da existência de uma transação anterior não publicada. Por fim, deve-se ter em mente que todo registro de direitos é também, em parte, um registro de documentos, na medida em que uma de suas funções consiste em atribuir prioridades, tornando documentos não publicados indisponíveis comparados àqueles publicados nos mesmos termos que um registro de documentos. Em uma primeira aproximação, parece que o escopo do blockchain em relação a esse tipo de registros será maior do que em relação a um registro de documentos. Assim, por exemplo, Arruñada sustenta39: “É concebível que um registro de documentos possa ser substituído por um sistema automático para datar contratos privados e preservar seu conteúdo, se as partes de tais contratos privados não puderem manipular ambas as funções depois de assinadas.”

2.2.3.2.3.4.- Contratos autoexecutáveis ​​– smart contracts – cadeia de blocos – blockchain – e sistemas de registros de documentos. Para lidar com o alcance do conjunto formado pelos contratos autoexecutáveis e a cadeia de blocos em relação aos registros de documentos é necessário referir-se a algumas das características essenciais de tais sistemas. A primeira coisa que deve ser enfatizada é que esse tipo de registros não faz pronunciamentos sobre titularidades, mas sim se limitam a ordenar os documentos que contêm atos e contratos com o intuito de transmissão segundo a ordem de sua recepção no Registro, definindo como válida perante terceiros, para o próprio documento, não aquela que aparece no instrumento em si, mas o de sua recepção pelo Registro de Imóveis, proibindo que

E especifica que, obviamente, essa mesma conclusão se aplicaria à parte de registro de documentos que está contida em todos os registros de direitos (pág.16). Certamente, é concebível, mas hoje, não parece viável. Pelo menos teoricamente, o conteúdo dos contratos formados digitalmente dentro de uma rede blockchain não seria manipulado, mas, se o transmitente dispuser simultaneamente ou imediatamente a seguir em favor de um terceiro, surgiria um problema sério. A solução legal para essa situação é que o documento que primeiro acessa o Registro seja publicado. No entanto, como observa Gallego L. A:

38 Arruñada B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol. 19.1, 1918, pág. 92

39 B., Blockchains Struggle to Deliver Impersonal Exchange, Minn. J.L. SCI & Tech., Vol. 19.1, 1918, pág. 16

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“Nas cadeias de blocos, a ordenação das transações não depende do momento em que são feitas e enviadas, mas de um fato totalmente aleatório e alheio às partes envolvidas, que é a resolução das buscas matemáticas que os mineradores realizam para a mineração de blocos e a validação de transações e, inclusive, pode acontecer que uma transação inicialmente confirmada e integrada em um bloco já minerado seja “não confirmada” se estiver em um bloco localizado em uma ramificação menor que as outras que poderiam existir em um dado momento na cadeia. Se o protocolo seguido nas cadeias de blocos fosse aplicado aos registros, no caso de uma apresentação sucessiva em relação a uma mesma propriedade, os apresentadores não poderiam saber com que hierarquia ou prioridade seus direitos serão registrados, podendo acontecer que o direito constituído e apresentado em último lugar seja registrado com preferência em relação ao apresentado em primeiro lugar, dado que por uma mera questão aleatória – a mineração de blocos – ou monetária – o último apresentador pagou uma comissão maior do que os outros – foi minerado antes o bloco em que a transação foi incluída em último lugar; e ainda poderia ser pior, se um direito inicialmente registrado viesse a ser “desinscrito” posteriormente porque estava em uma ramificação curta.”40 Isso tornaria a segurança jurídica impossível. Não parece que uma solução desse tipo fosse legalmente admissível, pois também é estranha à diligência demonstrada pelos adquirentes. Além disso, nesse ponto, não devemos esquecer que a estrutura de incentivo dos mineradores incentiva a produção de comportamentos perversos, o que mostra que, apesar das pretensões, os incentivos dos diferentes envolvidos na cadeia, a principal conquista buscada pela blockchain, não estão alinhados. Com efeito, estes não apenas cobram em termos de bitcoins pela solução de problemas matemáticos, mas, além disso, cobram comissões das partes. Embora, hoje, 40 Gallego Fernández L.A., Cadenas de bloques y registros de derechos, pág. 30. Continua afirmando esse autor: “É evidente que isso cria, não segurança, mas insegurança jurídica e dificulta o tráfego, já que os operadores econômicos, no momento da assinatura dos contratos inscritos, não poderão ter a completa garantia de que naquele momento a situação dos direitos registrados que aparecem no registro é o definitivo, nem da prioridade que seu direito, uma vez apresentado no registro, terá, diante de outros que apareçam simultaneamente com ele, de tal forma que seja possível, por exemplo, que a execução de um direito constituído e apresentado posteriormente a outro, mas registrado com um grau menor pela aleatoriedade do funcionamento da cadeia de blocos, cause o seu cancelamento.” Ibidem.

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não sejam obrigatórias para confirmar as transações, o são quando se pretenda ganhar a prioridade,41 o que poderia ser usado por um segundo adquirente para obter tratamento prioritário. Entretanto, sendo ambas transações públicas, as consequências das disposições em duplicidade – gasto duplo – poderiam ser evitadas ao possibilitar que um oráculo decida que somente a primeira transação é permitida, cancelando aquelas que integram a cadeia que deriva da que foi feita em segundo lugar. E parece que quem estaria em melhor posição para realizar essa função oracular seria o registrador devido à sua posição de neutralidade. Uma solução desse tipo, no entanto, seria a demonstração de que a blockchain não poderia substituir um registro de documentos para atribuição de prioridades. Nem, portanto, um registro de direitos naquela parte de sua função. 2.3.- Tecnologias de informação e comunicação e a questão da privatização de registros de propriedade imobiliária A incorporação de novas tecnologias torna o uso de sistemas de colaboração público-privada praticamente inevitável no gerenciamento de sistemas registrais e, em última análise, está intimamente relacionada ao que poderíamos chamar de certa tendência à privatização de tais sistemas, uma vez que, de certa forma, facilita isso. No que diz respeito à colaboração público-privada, é comum que os registros públicos utilizem os serviços de empresas de todos os tipos para instalar equipamentos de informática, projetar programas, manter sistemas em operação e tarefas semelhantes. Na verdade, isso não é novidade: é comum que os cartórios estejam instalados, v. gr., em regime de locação em locais pertencentes a empresas ou indivíduos. Há, no entanto, uma diferença notável: quando o registro é eletrônico, o poder daqueles que projetam e controlam os programas no sistema registral é notável, no sentido de que, dentro de certos limites, podem guiar a evolução do sistema no sentido mais favorável ​​aos seus interesses, não coincidindo necessariamente com os dos cidadãos ou empresas. Há outro aspecto que vale a pena mencionar: existem empresas multinacionais interessadas em oferecer seus produtos registrais e podem ganhar concorrências em diferentes países. Isso torna inevitável que tais empresas tendam a aproximar sistemas, de acordo com seus pró41 Gallego Fernández L.A., Cadenas de bloques y registros de derechos, pág. 20.


prios interesses, para diminuir custos, não de maneira explícita, mas como uma tendência subjacente, já que isso lhes permite gerar e, ao mesmo tempo, se beneficiar das economias de escala geradas. O caso do Reino Unido merece destaque. Na primeira consulta de 2007 sobre o e-conveyancing, foi levantada a questão sobre se deveria haver um único fornecedor, vindo do setor privado de serviços eletrônicos, ou vários. Essa opção foi desaconselhada devido à dependência que geraria de uma única empresa e à dificuldade que o Registro de Imóveis teria para controlar o próprio sistema registral. A pluralidade de fornecedores foi o sistema escolhido pelas seguintes razões: a) aproveitava a experiência e o conhecimento do pessoal do registro, b) permitia que o próprio registro tivesse controle sobre o sistema e c) oferecia a melhor combinação de eficiência, menor risco e custo econômico. Alguns estados foram além e, mantendo a titularidade e os poderes de supervisão, privatizaram a gestão do sistema, concedendo-o a empresas privadas por meio da concorrência. Isso se deve a dois motivos. Em primeiro lugar, as autoridades, especialmente em tempos de crise, tendem a perceber os sistemas registrais como instrumentos para obter fundos, através de adjudicação por meio de concorrência e obtendo rendas anuais. Em segundo lugar, porque as empresas estão cada vez mais conscientes das oportunidades de negócios oferecidas pelo controle do acesso ao Big Data registral42. Isso aconteceu no Canadá – Ontário e Manitoba – e

na Austrália – Nova Gales do Sul. Essas são experiências recentes, então é muito cedo para julgar seus resultados. É interessante, o caso do Reino Unido, em que houve várias tentativas de privatização na mesma linha. Na última houve uma grande oposição por parte dos cidadãos e, finalmente, um relatório da Autoridade de Concorrência e Mercados de 2016 desencorajando a privatização. Deve-se ter em mente que uma privatização na linha acima mencionada tende a minimizar os custos operacionais e maximizar o retorno sobre o investimento. Sob tal modelo, os riscos e custos de aumentar as hipóteses de comportamento abusivo pelo sistema tenderão a ser transferidos para terceiros que as partes considerem como responsáveis, isto é, solicitors, notários ou similares – R. Thomas, especialmente se forem eles que realizarem as operações registrais sem a intervenção de qualquer autoridade registral. De acordo com esse modelo, além disso, os gerentes do sistema de registro estarão interessados em ​​ recusar poderes para decidir autorizar ou rejeitar as operações registrais solicitadas. 2.4.- A influência das tecnologias de informação e comunicação na interação entre cadastros e Registros de Imóveis de propriedades imobiliárias. Outra área em que as tecnologias de informação e comunicação estão impactando é a interação entre os cadastros imobiliários e os Registros de Imóveis, tema recorrente nos diversos fóruns internacionais, embora tenha perdido o destaque que possuía há certo tempo devido à irrupção da tecnologia da cadeia de blocos e sua potencial aplicabilidade a todas as áreas transacionais e não apenas ao Bitcoin. Aqui vou basicamente discutir

42 Cf. Thomas, Rod; Griggs, Lynden; Low, Rouhsi, Big Data and privatisation of registers – recent developments and thoughts from a Torrens perspective, in, European Journal of Property Law, (07) (2018), p. 172.

Noruega

What is the connection between land register and cadastre?

Suécia

Estônia

Dinamarca Kaliningrad

Irlanda

Grã-Bretanha

Holanda Bélgica

Rep. Tcheca

Joint administration of land register and cadastre Completely separate, but land register refers to cadastre2

França

There is no cadastre1 1 En Grecia castastro y registro continuam seoarados aunque existe un proyecto de ley de unificación que por el momento, se ha congelado a la vista de las dificultade 2 En las regiones italianas de Trentino y Adigio registro y catastro están separados Source: vdpPfandbrief Akademie. Méndez, F.P. 2017

Hungria Eslovênia Croácia Bósnia e Herzeg. Sérvia Montenegro Kosovo Albânia

Espanha M A R

Ucrânia

Eslováquia

Áustria

Suíça

Itália Portugal

Belarus

Polônia

Alemanha

M E D I T E R R Â N E O

Rússia

Latvia Lituânia

Moldava Romênia Bulgária

M A R

N E G R O

Macedônia

Turquia

Grécia Chipre

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XLV ENCONTRO DOS OFICIAIS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DO BRASIL – FLORIANÓPOLIS/SC

o estado atual da questão. Para isso, vou me referir às conclusões que podem ser extraídas do Working Party of Land Administration [Grupo de Trabalho da Administração de Propriedades] – WPLA – workshop da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa – UN-ECE, realizado em Madri nos dias 24 e 25 de novembro de 2016. Antes disso, explicarei brevemente qual é o status dessa interação. Como pode ser visto, em algumas das economias mais importantes da União Europeia ou não há Cadastro, ou Cadastro e Registro são instituições separadas, com maior ou menor grau de coordenação entre as duas instituições. A Itália é uma exceção, pois lá formam uma única instituição, exceto nas regiões de Trentino e Alto Ádige. Também na Holanda eles são uma instituição única. Deve-se notar que na Itália há um Registro de documentos, exceto precisamente nas duas regiões mencionadas. Da mesma forma, nos Países Baixos, o Registro é de documentos, exceto para a constituição de hipotecas, em relação à qual o Registro é de direitos. Inglaterra e País de Gales, Escócia, Irlanda e a metade norte de Portugal não possuem um Cadastro. Espanha, França, Bélgica, Suíça, Alemanha, Áustria, Polônia e quase todas as antigas repúblicas balcânicas têm Cadastros e Registros – de documentos ou direitos – que funcionam separadamente e em coordenação. Até recentemente, na Áustria, o Cadastro e Registro, embora funcionassem e funcionam como instituições separadas, compartilhavam o banco de dados. No entanto, recentemente, eles pararam de compartilhá-lo, devido à natureza diferente de cada uma das instituições. É também digno de nota que, com exceção da Polônia, duas das antigas repúblicas bálticas e a maioria dos Bálcãs, nas antigas repúblicas comunistas, o Cadastro e Registro permanecem unidos, o que pode ser atribuído à sua tradição de economia planejada, sua mentalidade pan-estatista e a herança dos inventários técnicos da era comunista. Nos últimos tempos, a expansão da cartografia graças ao desenvolvimento de novas tecnologias de geolocalização, que geram sistemas de informação geográfica constantemente aprimorados e preços cada vez mais acessíveis, tem sido utilizada por órgãos cadastrais e por todos os tipos de entidades ligadas à cartografia para tentar fazer que os cadastros assumam funções que hoje são desempenhadas pelos Registros de Imóveis, como, por exemplo, a definição dos limites dos imóveis, o que

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é uma função legal, embora por vezes seja conveniente empregar em muitas ocasiões técnicas cartográficas . Tudo isso reavivou o debate sobre se o Registro e o Cadastro devem ser uma instituição única ou duas instituições diferentes, embora coordenadas. Este não é o momento para expandir esse assunto, embora eu faça algumas reflexões gerais43. Ao lidar com qualquer questão relacionada ao Registro de Imóveis, é necessário estar ciente da complexidade do sistema legal que permite que as propriedades imobiliárias sejam seguras e, ao mesmo tempo, que a sua negociação seja ágil em um contexto de contratação impessoal, como é o caso de uma economia de mercado. A concretização desse objetivo requer uma tecnologia jurídica muito complexa e delicada, na qual é o Registro de Imóveis, especialmente em sua modalidade de Registro de Direitos, o instrumento do Estado para alcançá-lo. Ao mesmo tempo, os estados precisam de receitas fiscais para poderem funcionar. Uma parte deles vem de ativos imobiliários. Para obtê-los, os estados geralmente recorrem aos cadastros. Um alto grau de cooperação é desejável entre as duas instituições, embora respeitando suas respectivas funções e objetivos, que determinam sua respectiva estrutura organizacional. Para o Estado, as receitas fiscais são essenciais, mas um funcionamento eficiente do mercado imobiliário é ainda mais essencial, mesmo por razões arrecadatórias. Essa é a razão pela qual é tão importante que as urgências fiscais dos governos não sejam impostas às necessidades dos mercados em geral e, no caso que nos preocupa, do mercado imobiliário. Portanto, essas urgências não deveriam enfraquecer ou muito menos sobrepor-se à infraestrutura legal necessária para que os mercados imobiliário e hipotecário sejam eficientes. Com o objetivo de conseguir esse delicado equilíbrio entre as duas necessidades, é necessário que os cadastros e registros permaneçam como instituições separadas, integradas em diferentes ministérios. Os Registros de Imóveis devem estar integrados no Ministério da Justiça ou no Poder Judiciário. Os registros de documentos, no entanto, são geralmente integrados aos ministérios das finanças, bem como os cadastros. Todos, desde suas respectivas posições, devem facilitar a cooperação. 43 Trato mais amplamente dessa questão em Méndez González F.P., Direitos Imobiliários e Identificação Gráfica: Diferentes Formas de Interação de Registos e Cadastros de Direitos de Propriedade Imobiliária. Conferência realizada na Land and Poverty Conference [Conferência de Propriedades e a Miséria] do Banco Mundial em 21 de março de 2017.


“A operação dos Registros de Imóveis gera subprodutos úteis para a Administração Territorial, mas eles devem ser projetados e organizados de forma a alcançar seus próprios objetivos relacionados ao funcionamento eficiente dos mercados imobiliário e hipotecário.” Os conceitos de Administração Territorial – Land Administration – e Gestão Territorial – Land Management – são úteis para melhor utilização dos mesmos. Cadastros e registros são instrumentos úteis para atingir esse objetivo, embora nenhum deles seja seu objetivo principal. Provavelmente, os cadastros podem evoluir para funções mais extensas relacionadas ao território. Os Registros de Imóveis também podem assumir funções mais amplas, mas dentro do desempenho de suas funções essenciais. A operação dos Registros de Imóveis gera subprodutos úteis para a Administração Territorial, mas eles devem ser projetados e organizados de forma a alcançar seus próprios objetivos relacionados ao funcionamento eficiente dos mercados imobiliário e hipotecário. A concepção e organização de Registros de Imóveis, para atingir os objetivos da Administração do Território sem atenção ou subordinação aos seus próprios fins, é um erro. As tecnologias relacionadas a sistemas de informação geográfica podem ser muito úteis para otimizar a exploração dos subprodutos da própria atividade dos Registros de Imóveis para os próprios trabalhos da Administração do Território ou para outros fins.

3.- REFLEXÕES FINAIS: AS TECNOLOGIAS ELETRÔNICAS SÃO MUITO ÚTEIS DESDE QUE USADAS PARA MELHORAR A ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONAL EXISTENTE, PARA O QUE É ESSENCIAL MELHORAR A QUALIDADE DO CAPITAL HUMANO A SEU SERVIÇO, FORNECENDOLHE OS INCENTIVOS APROPRIADOS. Como expliquei no início, as novas tecnologias aumentam as possibilidades de atuação e, portanto, as possibilidades organizacionais, mas devemos ser capazes de escolher aquelas que melhoram a qualidade institucional existente e rejeitar aquelas que a deterioram.

O Registro de Imóveis, especialmente o registro de direitos, visa criar situações jurídicas incontroversas que sirvam de base inquestionável para a contratação. Para que os assentos registrais sejam um input inquestionável no âmbito contratual, é necessário que o sejam no âmbito legal, ou seja, que os juízes endossem ordinariamente os pronunciamentos registrais. Se não o fizerem, as partes procurarão estratégias alternativas. Para apoiá-los, é necessário que o procedimento registral ofereça garantias suficientes de que as partes, no processo de contratação, não violem os direitos de terceiros específicos ou de terceiros difusos, o que significa respeito aos limites impostos pelas normas imperativas e proibitivas. Se o procedimento não oferecer garantias suficientes, os comportamentos irregulares e fraudulentos se tornarão evidentes e os juízes, consequentemente, deixarão de apoiar os pronunciamentos registrais, independentemente do que a lei diga. Se isso acontecer, haverá um aumento geral nos custos de transação com todas as suas consequências. As novas tecnologias devem ser utilizadas para fortalecer as garantias do procedimento registral e, ao mesmo tempo, proporcionar a maior agilidade possível, possibilitando a realização de procedimentos em menor tempo, evitando, tanto quanto possível, os custos de deslocamento e trâmites presenciais. Essa tem sido a linha seguida, em geral, pelos países europeus, especialmente pela Alemanha e Espanha. Novas tecnologias também podem ser usadas para encurtar os tempos de operação do registro, mesmo à custa de eliminar procedimentos ou introduzir modificações regulatórias que diminuam as garantias do procedimento registral. Nesses casos, as consequências são a diminuição dos efeitos das inscrições e, portanto, do seu valor, através da erosão, legal e/ou judicial do atributo definidor de um registro de direitos, que é a fé pública registral e a degradação progressiva a um registro de documentos, com todas as suas consequências: seguranBOLETIM 362

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ça jurídica menor e mais cara, já que o registro não é mais suficiente para fornecer o nível de segurança exigido pelo mercado (Austrália, Ontário, Nova Zelândia). Esse novo cenário aumenta o poder legal dos atores com maior poder de mercado, que pretendem exercê-lo transferindo custos para conveyancers, registros e, em geral, para todo o sistema econômico. As novas tecnologias tornam-se assim, não um instrumento para melhorar a eficiência dos sistemas registrais e, portanto, dos mercados imobiliário e hipotecário, mas sim um instrumento e álibi para a criptoapropriação de tais sistemas pelos atores mais poderosos, em benefício de seus próprios interesses e em detrimento dos interesses de todos os demais. Neste ponto já somos capazes de abordar a questão, se para alcançar maior velocidade no processo de registro esse é o caminho certo, ou se teria sido melhor seguir outro caminho muito diferente que teria resultado, previsivelmente, em melhor custo/benefício. Se a razão para esse tipo de reformas tem sido simplificar o processo de registro, parece que a rota mais adequada teria sido melhorar a organização registral, melhorando os incentivos do corpo de registro, tanto em seu nível como em sua estrutura, para que o sistema de registro seja atendido por um capital humano valioso e bem treinado, um aspecto para o qual a atenção necessária não foi dada em muitos países. Atualmente, estudos internacionais, como o chamado Relatório de Bremen, começam a apontar a carência de alguns sistemas registrais pela ausência de pessoal legalmente qualificado, e o Banco Mundial também está começando a notar esse problema. No passado, a falta de pessoal adequadamente qualificado impediu melhorias nos sistemas registrais e, ao longo do tempo, a informática não conseguiu compensar essa carência. Exemplos paradigmáticos são a França e a Itália, como foi mostrado no trabalho da comissão para a reforma do Código Civil Francês em 1945-46 e na Itália por sua melhor doutrina (Coviello). As funções que requerem elevada formação jurídica dificilmente serão substituídas, a menos que sejam degradadas. Na verdade, alguns autores norte-americanos já haviam apontado que a causa do mau funcionamento dos registros dos Estados Unidos reside no fato de serem operados por funcionários com salários bastante baixos, e – acrescente-se – com um sistema de gestão que é o ordinário da Administração e que não condiz com a natureza

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do serviço registral, que, no caso de registro de direitos, deve fornecer ao mercado titularidades reais imobiliárias e, em geral, situações jurídico-imobiliárias, com a segurança e com a velocidade exigida pelo mercado. Nesse aspecto deve-se notar que os países nos quais os registros recebem incentivos poderosos, do tipo empresarial, corretamente estruturados, o serviço registral funciona de maneira normalmente satisfatória, bem valorizada pelos agentes econômicos e sociais. Essa opção alcança maior eficiência no funcionamento do registro, não apenas em termos quantitativos, mas também qualitativos, já que elidem os riscos decorrentes da atribuição às partes ou a conveyancers com atribuição para alterar o conteúdo do registro em detrimento de terceiros, como tem acontecido, especialmente no caso da Nova Zelândia.


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XLV ENCONTRO EXPEDIENTE DOS OFICIAIS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DO BRASIL – FLORIANÓPOLIS/SC DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Sérgio Jacomino (SP) Vice-presidente: Jordan Fabrício Martins (SC) Secretário Geral: João Baptista Galhardo (SP) 1º Secretária: Fabiane de Souza Rodrigues Quintão (MG) Tesoureiro Geral: George Takeda (SP) 1º Tesoureira: Denize Alban Scheibler (RS) Diretora Social: Naila de Rezende Khuri (SP) DIRETORIA NOMINATIVA Pesquisador de Novas Tecnologias: Caleb Matheus Ribeiro de Miranda (SP), Diretor de Relações Institucionais: Daniel Lago Rodrigues (SP), Diretor de Tecnologia da Informação: Flauzilino Araújo dos Santos (SP), Diretor de Relações Internacionais: Ivan Jacopetti do Lago (SP), Diretora da Escola Nacional de Registradores – ENR: Daniela Rosário Rodrigues (SP), Diretor de Assuntos Agrários: Izaias Gomes Ferro Junior (SP), Coordenador Editorial: Ivan Jacopetti do Lago (SP) CONSELHO DELIBERATIVO Região Norte: Fabiana Faro de Souza Campos Teixeira (AC), José Marcelo de Castro Lima Filho (AM), Cleomar Carneiro de Moura (PA), Milton Alexandre Sigrist (RO), Mirly Rodrigues Martins (RR), Marlene Fernandes Costa (TO). Suplentes: Rafael Ciccone Pinto - In Memoriam (AC), Francisco Jacinto Oliveira Sobrinho (RO), Kênnya Rosaly Lopes Távora (RR), Ionize Rodrigues da Silva (TO) Região Nordeste: Jackson Ivan Paula Torres (AL), Milton Barbosa da Silva (BA), Ana Teresa Araújo Mello Fiúza (CE), Felipe Madruga Truccolo (MA), Walter Ulysses de Carvalho (PB), Carla Carvalhaes Vidal Lobato Carmo (PE), Abmerval Gomes Dias (PI), Aldemir Vasconcelos de Souza Jr (RN), Estelita Nunes de Oliveira (SE). Suplentes: Neusa Maria Arize Passos (BA), Ana Carolina Pereira Cabral (CE), Fábio Salomão Lemos (MA), Roberto Lucio Pereira (PE), Sérgio Abi-Sáber Rodrigues Pedrosa (SE) Região Centro-Oeste: Manoel Aristides Sobrinho (DF), Ângelo Barbosa Lovis (GO), Haroldo Canavarros Serra (MT), Marco Aurélio Ribeiro Rafael (MS). Suplentes: Igor França Guedes (GO), Juan Pablo Correa Gossweiler (MS) Região Sudeste: Kênia Mara Felipetto Malta Valadares (ES), Luciano Dias Bicalho Camargos (MG), Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (RJ), Flaviano Galhardo (SP). Suplentes: Jocsã Araújo Moura (ES), Sérgio Ávila Doria Martins (RJ), José Celso Ribeiro Vilela de Oliveira (MG) Região Sul: Gabriel Fernando do Amaral (PR), Cláudio Nunes Grecco (RS), Christian Beurlen (SC). Suplentes: José Luiz Germano (PR), Bianca Castellar de Faria (SC), Marcos Costa Salomão (RS) CONSELHO FISCAL Titulares: Geraldo Augusto Arruda Neto (PR), Marcelo de Rezende C. M. Couto (MG), Jéverson Luís Bottega (RS), Aurélio Joaquim da Silva (MG), Gustavo Faria Pereira (GO). Suplentes: André Villaverde de Araújo (PE), Ynara Ramalho Dantas Mota (PE), Marcos Alberto Pereira Santos (PA) CONSELHO DE ÉTICA Titulares: Ademar Fioranelli (SP), Eduardo Sócrates C. Sarmento Filho (RJ), Marcos de Carvalho Balbino (MG). Suplentes: Alexandre Gomes de Pinho (SP), Sérgio Neumann Cupolilo (SC), Miguel Angelo Zanini Ortale (SC) CONSELHO DELIBERATIVO (membros natos) Adolfo Oliveira - In Memoriam (RJ), Carlos Fernando Westphalen Santos - In Memoriam (RS), Dimas Souto Pedrosa - In Memoriam (PE), Elvino Silva Filho - In Memoriam (SP), Francisco José Rezende dos Santos (MG), Helvécio Duia Castello (ES), Ítalo Conti Júnior (PR), Jether Sottano (SP), João Pedro Lamana Paiva (RS), Julio de Oliveira Chagas Neto - In Memoriam (SP), Lincoln Bueno Alves (SP), Ricardo Basto da Costa Coelho (PR), Sérgio Jacomino (SP)

Av. Paulista, 2.073 – Horsa I – Conjuntos 1.201 e 1.202 – CEP 01311-300 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 3289 3599 | 3289 3321 www.irib.org.br – irib@irib.org.br Presidente Sérgio Jacomino Editora e jornalista responsável Fatima Rodrigo (MTb 12576) Fotos dos Eventos Carlos Alberto Petelinkar | kpetelink@gmail.com Projeto gráfico, diagramação e edição de arte Eli Sumida (Designer: Mateus Akio)

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ORGANIZAÇÃO

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Instituto de Registro Imobiliário do Brasil

Av. Paulista, 2.073 – Horsa I – Conjuntos 1.201 e 1.202 – CEP 01311-300 – São Paulo – SP Telefones: (11) 3289 3599 | 3289 3321 www.irib.org.br – irib@irib.org.br

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