Escribas
-se m a ez ção v a e c i r l res na pub s o t i r Esc mente e tema r . a diari tos sob otidiano x c de te ntes no a puls
Susanna Busato A cidade desejante As lojas estão fechadas Os passos sumiram das escadas Os carros desalojaram as ruas Não se respira no caule das torres envidraçadas (A poesia pura perpendicula nos varais e fios de alta tensão A poesia grita na pausa dos postes sussurra ouvido colado ao chão ) Corpos desejantes na cidade muda assistem à lenta morte como um arrebol Emulam a gama de gritos e cores como se deles fossem as gargantas decepadas dos dias A cidade grifa grafa grava nos muros seu desejo de fêmea: que a última foda venha queira seja a posse do poema
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Ubirathan do Brasil
Leões azuis deitados na varanda, rugindo e unhando a goiabeira carregada de frutas gordas. Penso em nós, nossas crianças que virão a viver, nos tucanos que daremos casas em bitelas árvores, árvores verdes da cor da tua alegria. Amaremos mais que as lágrimas os rios, mais que o chão os pés.
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Isaac Ruy PANORAMA Ali, debaixo de sua nova cobertura, observava a vizinhança: No prédio em frente, um homem solitário joga água na samambaia, seca, da varanda, enquanto a televisão exibe produtos emagrecedores, de um canal qualquer de vendas por telefone; uma mulher solitária fuma os restos das bitucas do cinzeiro da patroa, enquanto assiste a máquina de lavar centrifugar as roupas coloridas; um menino solitário desfila, escondido, no quarto, com as roupas da mãe; no beco ao lado, um senhor solitário se masturba vendo os catálogos de lingeries das lojas de departamento, enquanto escuta a voz do Brasil em seu rádio AM FM; na praça, uma menina solitária tortura e desmembra as Barbies na fonte, enquanto dança o hino de glória entoado pelo pastor solitário, que grita ao microfone; mulheres solitárias correm para alcançar o táxi, chacoalhando os peitos de silicone e as sacolas de grife do shopping mais próximo; um casal solitário briga no ponto de ônibus devorando hambúrgueres com refrigerante; uma senhora solitária agita uma lata de moedas, enquanto pessoas solitárias desprezam sua presença solitária; amigos solitários sentados na lanchonete conversam, frente a frente, pela tela do celular, e sorriem, felizes, confortáveis em sua solidão; uma criança chora, solitária e catarrenta, entre uma multidão solitária que parece ignorar o fato; pessoas solitárias em toda a volta, em toda parte, aos milhares... – “pobres pessoas solitárias”. Ele era diferente, se sentia diferente, superior. Sorriu. Depois de cobrir, com um plástico velho, o seu barraco no canteiro central da avenida, se considerava, de
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Isaac Ruy fato, um morador do bairro; tinha um teto para se proteger da chuva e do sol, de onde podia observar o dia a dia dos vizinhos, além de duas cadeiras, para uma possível visita, mas que se encontravam vazias no momento. Ele era um vitorioso diante de tanta gente solitária e comum. O sorriso, a felicidade que sentia, confirmava sua superioridade diante dos demais, até que, então, avistou, na entrada da cobertura, um gato solitário que lhe lançava um olhar de censura e soberania, enquanto, alongado, lambia as genitálias, vagarosamente. Reconhecia aquele olhar, era o mesmo que acabara de lançar aos vizinhos. Sério, assustou o felino com um berro e, solitário, começou a comer, em silêncio, a primeira, e única, refeição do dia - “antes só, do que mal acompanhado”.
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Cleber Falquete Poema noir Sombras delgadas rastejam intrigas e álibis pelos pavimentos da escuridão, tenebrosas da traição de soleiras homicidas. Escadarias noturnas investigam o dolo das delações digitais defecadas no falso testemunho dos corrimões. Janelas pendem reflexos /cor/ /pos/ /dila/ /cerados em vômitos facínoras de punhais e pólvoras. Cigarros paranóicos engolem os segredos exalados das fumaças de seus medos.
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Cleber Falquete Discretamente, escoa por um beco o sequestro dos gritos. E os vermes desconfiados da perfídia dos postes de néon, distanciam-se da luz predadora.
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Marina Rima
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Isabela Martinez Le Parkour Corre pra pegar o ônibus Pula para o motorista te ver Junte-se aos autônomos para comover Estende os braços Sobe em cima do muro e dá gritos altos, como alguém sem seguro As rodas param no ponto Você aterrissa chão abaixo Sobe as escadas rápido Sem tempo pra pedir desconto Equilibra-se com as pernas Procura um sistema de apoio Desafia o caminho de pedras que aumentam o desapoio Impulsiona-se para não cair Desliza até o banco desconfortável Abaixa a cabeça para distrair Mas a vaga é instável
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Isabela Martinez Levanta para dar espaço Segura o peso da senhora ao lado Estica para enxergar o ponto Distinguir é um obstáculo Ergue-se para puxar a corda Calcula seu próximo passo Se aproxima da borda E dá um salto em falso.
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Bruno Fausto
Dai-me TEMPO Vá! leve o TEMPO que for necessário, ou o que puder carregar. só não se esqueça, que o passa TEMPO preferido do TEMPO é criar rugas.
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Susanna Busato Cantiga de Roda Toda São Paulo a que volto me volta, pálpebras baixas uma nuvem vaga. Toda São Paulo a que volto deságua no confronto a última lágrima.
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Isaac Ruy
bebeu pra afogar as borboletas que lhe reviravam o est么mago
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Cleber Falquete Estruturas mutiladas Perdido na noite vagueava indiferente ao seu próprio passo disperso no labirinto inesgotável de ruas com nomes sem faces. Detevese, inesperado, no respingo de consciência vindo do pântano da memória, na fisgada lenta do olhar submisso. Aprumou os olhos no saguão do passado, nos ecos embriagados do casarão, que mesmo recluso no tempo, oferecia a láurea de um abrigo. O velho telhado escuro-avermelhado, com telhas revoltas, os pequenos vitrais quebrados, garatujas pichadas na misteriosa fachada neogótica, sua soturna cor. As janelas de madeira, seus fechamentos de rótulas e gelosias, suas estruturas mutiladas na guerra orgânica de suas próprias naturezas, as paredes e marquises castigadas pelas chagas do abandono. O mórbido jardim renunciado, sua terra seca, a grama escassa, a predominância de ervas rudes e agrestes, suas flores desfalecidas, sepultas no sagrado tempo do inverno. Com a ponta úmida dos olhos retraçou, linha por linha, aquela distante anatomia arquitetônica aparentando décadas de decadência. Assustou-se com os passos violentos da menina que saía de seu quarto no andar superior e descia soluçando os degraus da dor. Viu o rosto fresco da bela mulher, imóvel a sua frente com os louros cabelos desgrenhados na face, as últimas lágrimas que floriam esculpidas no silêncio do parto. Embalsamado no tecido áspero do remorso, parou, esperançoso, em frente à maciça porta de entrada. Não ouviu nenhum rangido familiar, nenhum sussurro nostálgico e não ousou tocá-la. Recuou na prudência da humilhação. Foi embora, fingindo caminhar com suas próprias pernas, renunciando ostensivamente a algaravia de alerta das buzinas dos carros. Olhou para suas trêmulas mãos e compreendeu que elas tateavam o peso lacônico daquele gemido que o atropelava.
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Marina Rima
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Isabela Martinez Maria atrasada Maria está atrasada para o trabalho. Não escutou o despertador tocar, acordou com o próprio grito. Sonhava com um zumbido de abelha que começava baixo até atingir notas maiores que a deixaram surda. No susto, pulou da cama e vestiu a primeira roupa que encontrou no armário e agora encontrava-se a dois quarteirões da empresa onde trabalha. Com os pés na faixa de pedestre, sente o sol ficar mais quente em seus ombros, pensa em como gostaria usar uma blusa mais apropriada para o calor, mas sua rotina de trabalho ignora as estações do ano. Maria olha obsessivamente para o farol verde esperando tornar-se vermelho. Então, no meio do sinal amarelo, com medo de chegar atrasada, decide atravessar, porém é interrompida por um carro que passa devagar, cujo motorista olha-a de cima para baixo lentamente, atrasando-a ainda mais. Sobe o quarteirão rapidamente e passa por um homem que diz: – Ô lá em casa! Maria quase que automaticamente ignora o comentário, são só ecos do dia a dia. Entra finalmente no prédio e corre para o elevador. Visualiza de longe duas colegas do segundo andar já dentro, percebe seus olhares opinativos de volta. Prefere não pedir para que segurem a porta. Com sorte, o elevador do lado acabara de descer. Entra na caixa de espelho e, quase que inconscientemente, procura
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Isabela Martinez por falhas em seu rosto no tempo curto de viagem. Quando chega ao seu andar, o reflexo de Maria já tinha se descoberto feia, gorda e com complexo de photoshop. Adentra o recinto, telefones tocam, cheiro de café, fofocas silenciosas e olhares autoexplicativos a recebem. Quando seu chefe aparece: – Bom dia, aconteceu alguma coisa? – Olá senhor, me desculpe o atraso, esse trânsito... Sabe como é. Maria tenta disfarçar com um sorriso que, confundido pelo chefe, retribui com um olhar indiscreto, e a dispensa sem mais delongas. Senta-se em sua cadeira e procura se focar nas atividades do dia. Lê seus e-mails e depara-se com um em especial, era do RH da empresa: “Prezada Maria, Venho por este e-mail pedir para que compareça no setor de RH às 14h, para conversarmos sobre sua postura na empresa. Atenciosamente, João Almeida, Diretor RH Manutenções”. Maria lembra-se automaticamente de um erro no mês passado. No turbilhão de coisas para fazer, enviou uma nota com data errada. Felizmente, passou despercebida. Infelizmente, talvez agora tenham percebido. Decide então, procurar a única coisa que a ajudaria a relaxar, cafeína. Segue para a cozinha, liga o botão da cafeteira, enquanto espera ficar pronto e, inevitavelmente, escuta a conversa ao lado. Duas hienas falavam sobre a nova estagiária que caiu nas garras do lobo mau, seu
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Isabela Martinez chefe. Aparentemente, a empresa toda sabia detalhes sobre a velha história do homem casado que é tentado pela novinha do escritório. – Eu não sei o que ela esperava, ele não iria separar-se da esposa e ficar longe dos filhos por causa dela!– Disse a colega sabe-tudo. “PLIN!” O café estava pronto. Era a deixa perfeita para a Maria sair de lá. Quando uma das sabe-tudo a confronta: – Você não acha Maria? – Olha, sinceramente, eu acho que ninguém tem nada a ver com isso. E sai pela porta, sabendo que será a próxima vítima da conversa. Maria suspira e volta a dar continuidade às suas atividades, lembra que precisa pegar um arquivo na sala de marketing. Com cheiro de testosterona e arquivos fora de ordem, ela passa por todos os números de gavetas, 1, 2... 6, e encontra o documento na última gaveta. Maria nota que sua posição corporal mudou consideravelmente da inicial. Automaticamente olha pra trás preocupada e percebe que toda a sala a observava e também mal disfarçava. Passa o tempo, são 14h, Maria vai para o andar de cima, no setor de RH e procura por João. Ele pede para que espere na sala dele. Maria observa a mesa com a foto de João e sua família. “Trimtrimm!” O celular na mesa toca, e diz “Môr” na tela. Ele atende rapidamente e diz um nome que não é o da sua esposa, e finaliza a conversa com “Tchau môr!”. Maria nada pensa sobre isso, pois está ocupada demais tentando
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Isabela Martinez descobrir o porquê foi chamada. – Bem Maria, eu convoquei você aqui para conversarmos sobre sua postura. – Como assim postura? – Bem, observamos que a sua postura não está condizendo com a empresa. Como mulher, entende? – Não senhor, pode me explicar melhor? – Sendo mais claro, a verdade é que você não costuma usar maquiagem, se arrumar, e isso tem incomodado seus superiores. – Hum, eu não sabia que isso era obrigatório. – Bem, na verdade não é. Mas é o que se espera para ter um perfil neste cargo. – Senhor desculpe-me, mas não entendo como usar maquiagem poderia me fazer mais profissional. O diretor do RH engole a seco a próxima frase, faz cara de perdido e escolhe continuar a conversa listando as normas da empresa, que nada têm a ver com estética. Maria escuta tudo com cara de seriedade-para-reuniões, e sente-se aliviada por ainda ter seu emprego, embora começa a duvidar se realmente deseja estar lá. Maria sai da sala num misto de alívio e desconforto. Ela ainda tenta compreender porque a sua imagem fala mais do que ela própria pode dizer. Então, balança a cabeça como se chacoalhasse os pensamentos para fora e segue para o elevador. Encontra um colega dentro, Tiago. Maria o considera um amigo, fazem piadas sobre como a empresa lembra uma selva organizada. – Mais tarde têm reunião, né? O que será que querem falar? Tiago atropela o assunto.
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Isabela Martinez – Poxa, é verdade, tinha até me esquecido. Bom, acredito que querem passar algo sobre o novo cliente. – É, deve ser isso. Provavelmente vão pedir sugestões. – Sim, na verdade já até tinha pensado nisso. Pelo que eu entendi, eles querem criar uma marca com um nome simples. Mas como a empresa tem bastantes funções, acredito que uma sigla forte seria o ideal para o cliente. O elevador para, os dois se despedem e Maria tenta retomar suas atividades, mas o tempo corre e já é hora da reunião. Ela entra numa sala grande, com uma mesa comprida, sente a competiçãono ar e corre para segurar seu lugar. A reunião começa da maneira como ela imaginou, porém, Maria não contava com a interrupção constante que sofria cada vez que tentava expor sua opinião. Tiago, seu amigo do elevador falava em tom alto, pelos cotovelos e sem sutileza alguma, solta a ideia de Maria na mesa. – Acho que para o nome da marca do cliente, uma sigla seria ideal, pois agrega valor a empresa. E olha para Maria com olhos de caridade, como se sua apropriação fosse algum tipo de favor à ela. Terminada a reunião, Maria segue para elevador e Tiago vai em direção a ela sorrindo. – Me sai bem, né? – Com a minha ideia, se saiu perfeitamente. – Que isso Maria? Do que está falando? Os dois discutem em tom baixo, os olhos irritados falam por si só. Tiago bate na tecla que ela está louca e que não sabe do que ela está
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Isabela Martinez falando. Maria já farta daquela conversa, começava a duvidar de sua memória, então decide erguer bandeira branca, afinal já eram seis horas. Maria entra no metrô lotado do fim da tarde. Procura se acomodar no meio da multidão. Sem lugar para escorar ou pra segurar, confia em suas pernas para se manter em pé. Quando sente um aconchego a mais ao seu corpo. Olha pra trás e vê um homem sorrindo pra ela, numa situação particular mais animadinha. Maria não vê a hora de chegar em casa. Depois de 40 minutos de situação, no mínimo, incômoda, Maria finalmente chega em sua casa. Toma seu sagrado banho e procura por seu livro de autoajuda para ler antes de dormir, ignora os detalhes do dia e se afunda no best-seller “A arte de se fazer respeitar”, e adormece com o livro na mão. No outro dia, acorda com o celular insistente. Escova os dentes, lava seu rosto para acordar e olha para o espelho. Não se enxerga. Então, procura seu kit de maquiagem, disfarça as olheiras, cora as bochechas com blush, aumenta seu olhar com rímel, faz chapinha no cabelo e passa batom cor de mulher respeitável/discreta, e olha seu relógio. Maria está atrasada para o trabalho.
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Bruno Fausto NOTA DE DESAPARECIMENTO está desaparecida uma senhora de idade não definida, que atende pelo nome de PAZ. foi vista pela ultima vez, nos arredores do bairro da ESPERANÇA, precisamente caminhando entre as ruas das flores e da FELICIDADE. há quem diga ter visto na praça das lamentações, em companhia de um senhor maltrapilho esfarrapado que segundo moradores antigos do bairro, atende pelo nome de AMOR. procura-se, a senhora PAZ, e o senhor AMOR. quem encontrar PAZ e AMOR avise o senhor MUNDO por favor.
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Susanna Busato “À paisana” Eles eram muitos. Eles eram fortes. Eles eram belos. Carregavam na ponta do fuzil das línguas a morte. Guardavam balas na boca e cuspiam sonhos que afogavam na terra com uma pisada de pé sujo de terra. Era para reprimir a vida, diziam. Para a dispersão do mundo. Para a mordaz vingança. Engatilhavam a foice negra do tempo real como uma arma serena. Eles eram o inferno. Eles eram o centro. Eles eram o seu próprio intento. Sua astúcia e repúdio: lance de guerra. Contra si mesmos os dados rolavam dos copos. Aquilo bulia aquilatava aqui lá aquilo calava.
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Ubirathan do Brasil
das que tantas foi talvez ainda n達o seja nenhuma delas
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Isaac Ruy Pequena e triste história sobre o homem que sonhava em ser poeta, mas acabou escrevendo notas de obituário para jornal sensacionalista de pouca circulaçăo, e que, cansado e desiludido, decidiu que escreveria seu último texto para, entăo, se sentir livre das amarras da sociedade capitalista Comprou uma corda no cartão de crédito e se pendurou no quarto de hóspedes, mas antes, sobre o criado mudo, deixou uma nota autobiográfica escrita em versos dodecassílabos e rimas ricas.
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Cleber Falquete Amor de căo Eu sei que você quer sair. Você sabe o que está para escutar. Está ansioso pra não ter que me ouvir. Mas olhe bem, dessa vez, te juro, antes de você sair por aquela porta e talvez nem voltar, você vai me escutar. Ah, se vai! Olhe nos meus olhos! Eu não aguento mais, não vou suportar mais nada desse inferno. O que... não é pra eu começar? Mas eu não quero começar, meu querido, quero é terminar. É hora disso acabar. Veja bem, é algo muito sério. Olhe nos meus olhos! Não me irrite com esse sorrisinho, seu cachorro. Você não entende, mas são sofrimentos, são escárnios, são desprezos. Ah, essas coisas, como você diz, ferem, sabia? Você me enxota na frente dos seus amigos, faz piadinhas grosseiras na presença dos meus pais, tira sarro, ai que ódio, quando estou menstruada, dizendo que estou no cio. Ah, agora vai dizer que não, é seu cínico? Eu sempre corri para a biblioteca e girava a chave quando você avançava sobre mim, e me afundava naquele velho sofá, ficava lá, contando minhas lágrimas, com o rabo enfiado entre as pernas, remoendo aqueles latidos horríveis que você soltava em cima de mim. Ali era meu refúgio, embora eu soubesse e você também, que era apenas temporário, aliás, como todo refúgio é. Mas agora não, eu não quero mais ter refúgio, eu não quero mais fugir de você e nem de mim. Preciso sacudir minha própria poeira, acumulada por tanto tempo. Eu tenho que limpar e lustrar o meu ego, tão machucado e ao mesmo tempo envergonhado de ter aceitado isso, sem lutar, sem questionar, preferindo sobreviver no escuro. Ah, claro, pra você isso é uma questão simples... não, não dá pra passar uma borracha e deixar
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Cleber Falquete branco o que é preto. Enfim, após tanto insistir, tomei uma decisão. Ganhei coragem. Olhe nos meus olhos! Escute bem, não aceito mais um momento sequer ser tratada como cadela. Não quero mais rações e nem suas razões diárias de desgosto. Você é osso duro de roer, por isso preciso e vou me desvencilhar das suas correntes. Você não passa de um cão covarde. O quê? Ora, dá um tempo! Chega dessas cachorradas! Olhe nos meus olhos... Você não vai dizer nada?... Aonde você vai?... Você quer sair, dar uma volta?... Espere um pouco... Onde foi que guardei a coleira?
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Marina Rima Ágora passo dado no passado passeio nos sinos da catedral nas entremuralhas medievais a gaita de fole balança o suspiro das ninfas, estáticas na praça deusas esculpidas em pedra - o devaneio impedido não há sonho nem progresso a cidade sem amanhã, ressoa no ontem que não cessa e o futuro mais próximo é a missa que está pra começar
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Isabela Martinez Porta-giratória Existe um sorriso irônico disfarçado de radiante neste sol do meio dia. O calor que esquenta os ombros, a cabeça e os neurônios nos faz andar tortos à procura pela primeira sombra à vista. Não há espaço para correr, pois somos muitos e a competição já está subentendida. Seguimos pela calçada quente, puxamos a criança interior que gostaria de seguir o desenho ondulado, afastamos os pombos da frente e enxugamos com as mãos o suor que escorre pela testa, para lembrar que, questões fisiológicas são um fator individual, e não um em massa. Mas a buzina alta junto com o motorista que gralha fazem questão de afastar da mente qualquer epifania. E o prazo curto do sinal vermelho também contribui com a evaporação de pensamentos e confisca nosso tempo de raciocínio. Após isso, o sinal verde é o caminho para outras cores, com tipos variados de cinza, cinza-chumbo, cinza-nuvem, cinza-fumaça, cinza-cimento, cinza-da-parede-descascando, com alguns toques de sorrisos amarelos que desfilam por aí camuflados. Claro que passamos por outras cores de fachadas gourmet, arranha-céus e ipês brancos, porém andamos com a cabeça baixa e só enxergamos a cor azul-bebê da tela. Chegamos ao nosso destino, abrimos a porta com cara de esperança, mas quem nos recebe é a descrença em pessoa. Inicialmente pede para nos despirmos de qualquer joia ou coisa parecida, para
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Isabela Martinez parecermos frágeis como cachorros de rua. E como cachorros, logo tratamos de obedecer e inventar qualquer gracejo para obter o que deveria ser nosso por direito. O lugar com ar artificial e sombra alivia, contudo não chega a ser um oásis, pois a água é verde e tem cheiro de impressão. Telas grandes assombram a sala, imitações de peças famosas, cujos personagens empinam o nariz para nos situar. O corredor é estreito e nos leva diretamente à forca de palavra. O pedido é negado, somos conduzidos à saída.
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Bruno Fausto Caos Ando em passos longos Perdido no planeta caos Dividido em fatias de tempo Que passa todo dia Sorrindo das nossas faces Com grandes olhos vermelhos E não conseguimos ser nem sei se sou real Faz dias que o sol não aparece no meu quintal Mas o brilho que tu vê Rompe as barreiras e reflete no espelho Que parece tv e você não vê O horizonte escondido Atrás das armações tanto aço e cimento Concretamos corações Vou aproveitar o espaço criação do Homem capital é casa em cima de casa É o padrão social.
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Susanna Busato “Ícaro do asfalto” se tudo ainda é pouco se tudo ainda é lento se tudo quanto calo raro arrebento se tudo é partida golpe buzina se tudo é café com pão ao meio-dia se tudo o mais é filé com aspirina na poça d’água do meio-fio eu ao meio partida ouso o impossível: um fio de futuro na janela entre o pôr-de-sol e a lua esgarça a fina camada do dia (e isso ainda é pouco o mais ainda me alucina) no vidro fosco da janela o sorriso de Ariadne me vigia nas suas níveas mãos a noite e nas minhas às minhas expensas apenas ases e copas asas de janela e o sol 31
Ubirathan do Brasil o que os olhos escondem ou coisa parecida ainda sou o pedreiro da sua casa um xamã bêbado de malbec invocando espíritos da natureza sou a guitarra que não trabalha a jurubeba & os velhos sábados da cidade cinza na minha boca mora o beijo do vulcão Bardarbunga o furação que apagou os olhos das crianças, o desabamento que afundou os talismãs & as joias deixadas de herança o incêndio que anarquizou o canavial & a inundação que matou as porcadas & os sonhos que não envelhecem sou Chico Buarque enforcado nas estruturas do telhado a nuvem que não chove na terra certa eu sou o bode da maçonaria & o prefeito debaixo das rodas de um carro sou o que não é meu, nem seu] sou um palhaço de santo reis passando fome os três reis magos comendo allelluias e mariposas sou a tristeza das estrelas 32
Ubirathan do Brasil o quintal sem orquestra poncã despencada um catador de feira a lágrima das boiadas orquídea negra chorando uísque no matagal o vão das portas a cocaína e o amor sou uma escrava cantando blues na janela da fazenda Santa Gertrudes animal selvagem assassinado por gladiadores num triste verão no Coliseu a paixão que você chupa & engole sou Allan Kardec depositando fichas na jukebox do puteiro no interior de São Paulo sou todos os sambas de Cartola e os acordes errados de Nelson Cavaquinho sou o rinoceronte que morreu em junho a galinha preta e o conhaque da encruzilhada o perfume do ovo choco & o tronco da palmeira caída sou um beija-flor e a piedade que afogou Deus nas águas sujas do rio Tietê.
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Isaac Ruy DESFORRA Queria vingança. Observá-los ali, juntos, reunidos à sombra, no centro da praça, tranquilos, enquanto ela ardia no sol do meio dia entregando currículos sem foto, fazia seus lábios finos curvarem-se e a testa suada desenhar arcos de raiva. Era preciso fazer algo. Não entendia como as pessoas conseguiam caminhar sorrindo, conversar sorrindo, comer sorrindo, fazer compras sorrindo, correr sorrindo com o cachorro sorrindo, entregar, sorrindo, panfletos sorrindo no semáforo, enquanto ignoravam o fato de que a praça agora tinha novos donos, já não pertencia mais a população que pagava impostos. Ela pagava seus impostos, aquela praça era, ao menos um pouco, parte de sua propriedade, e ela tinha total direito de não gostar daquela presença num espaço que era dela. Refletiu que a culpa era do governo, que não faz nada para limpar a cidade dessa praga, que agora domina o espaço público e espalha sujeira na frente da igreja. E então, num rompante de coragem, decidiu fazer algo: correu pela praça gritando e girando os braços, perdendo um sapato pelo caminho, atirando currículos sem foto pelo ar, e espantando os pombos que voaram enlouquecidos para o alto dos postes e fios de alta tensão. Que fiquem aí, pensou, ao menos eu fiz minha parte e contribuí para a limpeza dessa praça. E partiu, desmantelada, com um pé descalço e deixando os papéis espalhados pelo chão, enquanto a merda do pombo, que lhe escorria dos cabelos para as costas, secava.
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Cleber Falquete A cidade invisível na zona central da cidade invisível, em um dia inchado de telefonias celulares, combustões fósseis, tensões ególatras, de navegações de internet, refeições ecológicas, transações holográficas, reengenharias biológicas, um dia inchado de erosões patológicas, zumbis aglomerando-se turvamente dentro dos sorumbáticos túneis de metrô, crianças enterrando seus choros e mitos nos quintais das terras estrangeiras da infância, mulheres empunhando a obstinação diária em reviverem a tragédia de Sísifo, operários mastigados pelas engrenagens da grande máquina do mundo, senhores dos anéis, apóstolos das cifras, redefinindo realidades nas altas torres de seus altos castelos, anciãos tétricos, cujas odisséias de suas carnes guerreiras restam apenas em seus bolsos escassas moedas para Caronte na zona central da cidade invisível, megaesferas de Dyson orbitam arranha-céus com peles de vidro, gaiolas de Faraday aprisionam aves eletromagnéticas de vôos tóxicos, encouraçados de Ford singram 35
Cleber Falquete as ruas engarrafadas do mar asfáltico, cães mecânicos de Fahrenheit cospem línguas distópicas de fogo anestésico, templos de Salomão aglomeram milhares de súditos descendentes de Bartimeu, food trucks de Montaigne abastecem estômagos açoitados pela filosofia fascista da fome, famélicas bocas de Fenris engolfam descartáveis tridimensionais de Tetra Pak, de Philip Morris International, de Johnson & Johnson, Inc, de McDonald’s Corporation, de The Coca-Cola Company, etc na zona central da cidade invisível, sob a sombra septuagenária de um coração-de-negro, descansando sobre a extensa página de sua retalhada biografia, um mendigo lê “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. Sobre a cabeça iluminada pela imaginação antropológica de regiões longínquas e arquiteturas fantásticas, de faunas teológicas e floras cibernéticas, flutua um descomunal dirigível vigiando com holofotes islâmicos o brilho das estrelas pagãs na galáxia de Hoffmann
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Marina Rima
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Isabela Martinez Cidade coadjuvante Nasci na cidade de Sorocaba, mas logo com um ano de idade vim morar em Rio Preto. Passei minha infância em um condomínio na Avenida Bady Bassit, tive a oportunidade de crescer com crianças da mesma idade num lugar em que tínhamos um espaço determinado para correr e a convivência em grupo era um aprendizado à parte. E por mais que não tenha crescido escalando pé de manga, a infância dentro da bolha me forçou a tentar estourá-la. Dessa época, três coisas nunca se apagaram da minha memória: a primeira é como a cidade era linda na época de Natal. Em um dos passeios mais marcantes, meu pai me levava para ver as sacadas decoradas por pisca-piscas nas avenidas, que me faziam sentir que estávamos todos no mesmo clima; a segunda é o pastel do Seu Célio, que ficava na frente do cinema Eldorado, mais especificamente o delicioso pastel de queijo, muito comentado nas rodas de família; a terceira, por ironia de sentimentos, não me remete a algo tão bom assim, pois acredito que tenha sido a primeira vez em que senti medo. Estava dormindo quando escutei um barulho alto, corri para a janela do quarto da minha mãe para ver o que estava acontecendo. Havia pessoas de pijama na rua, segurando seus pertences em um clima de espera. E, antes do amanhecer, a torre Itália desabou, deixando um buraco na cena. Acredito que esta foi a primeira vez em que percebi a mudança na cidade. Passados alguns anos, a paisagem não era a mesma. Existiam mais luzes no céu, porém não eram natalinas. Eram prédios novos, imponentes e altíssimos que agora faziam parte das avenidas. O modesto pastel foi trocado por uma massa de restaurantes de 38
Isabela Martinez culinária japonesa. O passeio familiar agora fazia rodízios em shoppings. E as crianças do condomínio agora falavam de se mudar daqui. Essa cidade é uma merda, diziam. Bom mesmo seria me mudar pra uma cidade grande, tipo São Paulo. Lá tem os melhores shows, oportunidades de emprego, museus. Sabe cara, cultura de verdade! Ouvia esse tipo de comentário a cada esquina. A geração era conduzida a pensar e convencer que aqui não havia oportunidade pra nada. A meta era, no máximo, terminar a faculdade e dar o fora daqui! Por quê? Porque acreditavam que conheciam tudo e todos na cidade. E onde tudo se conhece, nada se explora. E como podemos nos mudar sem ao menos conhecer de fato de onde somos? Compreendo como o sonho da cidade grande pode nos seduzir, mas esta ideia também esconde uma verdade absoluta, que na realidade, a cidade não pode ser um conceito fixo, pois está sempre mudando, sempre se movendo a novas questões, sempre abrindo e fechando portas para novas oportunidades. Na nossa caminhada diária, atravessando a rua para ir ao trabalho, descendo as escadas da escola, subindo a escada rolante do shopping, passando pela praça pra ir pra casa, será que enxergamos além dos próprios passos? Na maioria das vezes, estamos tão desatentos que o piloto automático não nos deixa perceber um universo de elementos novos pela paisagem em que passamos. Talvez se levantássemos a cabeça durante a caminhada, poderíamos admirar um novo prédio sendo construído, notaríamos o ipê cheio de flores no caminho pra casa, dançaríamos ao som do músico 39
Isabela Martinez no bar da esquina, aceitaríamos aquele convite antigo pra jantar e conheceríamos um novo restaurante, faríamos amizade com quem já conhecíamos de vista da fila do supermercado, pegaríamos um atalho pra poder passar naquele sebo que você sempre prometeu ir e quem sabe, depois de um tempo, nós pudéssemos descobrir não só uma nova cidade, mas também um novo reflexo no espelho. Quando conseguimos nos livrar de uma vida de acúmulos de informações, repetições e olhos de viciados, nossa existência e visão de tudo ao nosso redor passa a ser nossa responsabilidade. Não há mais lugar para ser só uma criança a procura do Papai Noel, também não há espaço para ser somente um adolescente papagaio que diz coisas sem pensar. Agora, você não é mais coadjuvante da história em que vive, mas sim protagonista. E como protagonista, trabalha-se dentro da trama e contribui-se com mudanças efetivas para mudar a história. Entendese finalmente que não importa o lugar em que se escolhe viver, mas sim a maneira como você escolhe viver neste lugar.
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Bruno Fausto Indigente Perdeu a hora em seu tempo longo, desperdiçou tons quentes no alaranjar de sua nova aurora. levantou apressado em passos falidos. caminhou pelo bairro se equilibrou no meio ďŹ o da navalha tomou coragem no cachimbo Ă s margens de um rio turbulento chamado sociedade e foi sem documentos pra perder.
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Susanna Busato Movimento con brio Os olhos segredavam a têmpera familiar no arco das pálpebras e na linha das bochechas. Ganhavam com o tempo uma inevitável conquista: a marca da compreensão. O sorriso vinha posteriormente como que nascendo de dentro dos olhos, conquistando as bordas dos lábios com tanta ligeireza que logo seduzia quem o flagrasse em pleno voo. E os voos eram constantes. O corpo inclinava-se levemente para a frente, embora o pescoço mantivesse a linha do equilíbrio com que a face acenava para uma serenidade matinal. Parecia que a atenção confundia-se com a entrega. Qualquer coisa que riscasse a superfície do mundo enviesadamente àquela hora seria mergulhado por um sentimento de vontade nesse olhar atento. E cativo. As asas nasciam de um sentir-se presa, não de si própria, mas de um desejo incontrolável de unir-se ao mundo. A linha do pescoço elevava-se. As pupilas aladas lançavam-se lentas. A melodia das pálpebras alinhava os mergulhos da íris atenta. A proximidade do passo abria no seio daquele rosto um arco colorido, corrigindo qualquer hesitação que adiasse o risco. Por entre as folhas das janelas, aquele rosto lançou-se. Corrompeu o espaço, avermelhou os segundos que observaram cheios de espanto o que ninguém podia. Tampouco ela...
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Ubirathan do Brasil eu chorei vendo o passado partir mulheres desgraçadas vomitam navios e gasolina na primeira quinzena de maio psicólogos da cor do mar criam bodes e ratazanas em consultórios maquiavélicos anarquistas de braços cruzados conversavam sobre cometas suicidas e bocetas umedecidas na biblioteca municipal o amor lambe meus olhos e me faz rubi paisagistas colecionam dentes e câncer prum jardim diabético no sul da lua minguante açougueiros mastigam blocos de construção na tarde demolidora de outono à procura de índias adolescentes e tristes ricos em orgias transam com porcos em condomínios de luxo às 22:00hs horário de Brasília o amor lambe meus olhos e me faz safira
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Ubirathan do Brasil pobres paraplégicos dançam bêbados em volta do Banco do Brasil no romper da aurora velhos preguiçosos amolam facas e tacapes pro carnaval do Rio de Janeiro crianças junkie’s plantam flores e estrelas cadentes nas vidraças das delegacias o amor lambe meus olhos e me faz esmeralda farmacêuticos de cabelos tristes dirigem tratores vermelhos e assassinam os domingos do calendário maia garçons com tipóia nos braços servem saudade em bandejas bizantinas Deus dança tango e produz pães de urânio pra poetas pintados de tragédias e venenos o amor lambe meus olhos e me faz cerâmica e vil metal.
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Isaac Ruy MACRO Sozinha, no alto do viaduto, sentia o vento fraco embaraçar os cabelos que balançavam ao som das buzinas e motores dos carros que seguiam em manada abaixo de seus pés; sabia que pássaros silvavam, em algum lugar, ainda que o som da multidão no ponto de ônibus da esquina e os berros do vendedor ambulante de produtos importados impedissem que a melodia sibilante lhe chegasse aos ouvidos; a boca seca ainda trazia o gosto do último trago de cigarro com Coca-Cola e o ar cheirava a cidade, fumaça, urina e suor das seis da tarde. Então, olhando para baixo e reconhecendo sua própria insignificância, quase esquálida, diante da situação presente na imensidão urbana, escalou a grade de proteção até que sentisse a liberdade de não ter uma cela que a separasse do vazio, do nada; ela era o nada e o tudo naquele instante. Balbuciou algumas palavras silenciosas para si mesma e teve a certeza do que gostaria de fazer: em poucos segundos acertava, certeira, no parabrisa do caminhão que costurava o congestionamento, uma enorme gota de cuspe, bem no meio, no centro, do vidro, espalhando gotículas de espuma e escorrendo gosmenta e úmida e pegajosa pela transparência vitral, refletindo as cores de um ocaso cinza, amarelo e cinza, que iluminava e sinalizava o horizonte. Sorriu e partiu, não precisava de mais nada, percebeu que a vida na cidade é assim, a felicidade precisa estar em coisas simples.
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