Textos de apoio 4º módulo: Cultura e Memória 26 e 27 de agosto
Marcos Pompéia Karen Worcman
Sesc São José dos Campos Fundação Cultural Cassiano Ricardo 2014 1
Leitura do mundo
Marcos Pompéia Pode-se descrever o conceito de “abordagem antropológica” de um povo ou de uma comunidade, com uma proposição sintética: o “óculos antropológico” consiste em detectar, registrar e tratar de compreender os “Saberes Coletivos” daquele povo ou comunidade. Mas o que são “saberes coletivos”? Tome-se como exemplo o fato de que os homens de uma determinada nação indígena aprendem todos, (desde mais cedo do que se supõe), a construir arcos e flechas, assim como malocas, canoas, bordunas, etc. Trata-se de saberes coletivos desenvolvidos e reproduzidos pela cultura daquele povo. Tratamos aqui de um saber coletivo da chamada ‘cultura material’ restrita em geral ao contingente masculino. E isto quer dizer que os ‘instrutores’ das crianças na arte de confeccionar arcos e flechas quase sempre serão homens. Fica a cargo das mulheres, coletivamente, o domínio de outros saberes coletivos, tais como a tecelagem, a cerâmica, a roça, a culinária, etc., artes que têm por instrutores, da mesma forma, mulheres. Mas o exemplo mais acabado do que é um saber coletivo de um povo é a sua Língua. A língua constitui o saber coletivo mais universal, cuja instrução (permanente) é ministrada por todos, cuja aprendizagem (permanente) é igualmente compartilhada por todos ao longo de toda a vida. Além disso, ela está permanentemente aberta a inovações e, digamos, à execução virtuose. Para citar o antropólogo Antonio Risério, a língua é “a tecnologia das tecnologias”, ou ainda, segundo o pensador Villém Flusser, “o mito mestre, o mito dos mitos”.
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Já no que se refere à identidade de um povo, visto da perspectiva de um membro seu (e não de fora), devemos lembrar que numa aldeia indígena é construída, com todo o cuidado, uma memória coletiva, seja por intermédio das histórias que os mais velhos e líderes contam para toda a comunidade, seja por meio da instrução que os jovens recebem nos Ritos de Passagem (os ritos que fazem a passagem da criança para a condição de adulto). Em ambos os casos, mistura-se uma mitologia de origem do mundo e do ser humano e histórias verídicas daquele povo em particular. É este mix de mitos e história (que naturalmente se torna um saber coletivo) que confere à identidade daquele povo um lugar central na vida de cada um dos seus membros. A formação de uma memória coletiva é que confere identidade a um povo. Como pensar uma memória coletiva no nosso mundo urbano do século XXI? Tecnicamente falando, o conceito de História é o que mais perto chega da idéia de uma memória coletiva. E, por isso, a abordagem histórica é tão importante para a saúde de uma cultura que se identifica consigo mesma, que constrói uma narrativa própria do mundo, que tem, de fato, uma identidade. Será exagero dizer que uma pré-condição para que nos pensemos como cidadãos é a construção da idéia e da vivência de se pertencer a um povo, uma nação? Será que só depois disso e, em função disso, é que, de fato, poderemos pensar em cidadania?
Mas uma memória coletiva – a possibilidade de ter em perspectiva a dimensão histórica – representa para o ser humano ainda outro ganho de ordem cognitiva. Lembro-me de caminhar por uma picada no interior do Paraná quando um amigo revelou que aquele caminho fazia parte do famoso Peabiru que originalmente levava a Assunção e depois a Potossi. A partir daí, o significado daquele passeio mudou completamente. Todos os sinais da picada imediatamente se tornaram relevantes. Passei a reparar nas plantas que seguiam de ambos os lados, na largura regular do caminho, nas suas curvas, subidas e descidas. Enfim, passei a ‘ler’ o caminho com seus sinais. Quem não teve a experiência de assistir um filme policial e, ao saber finalmente quem é o ‘culpado’, retomar o fio da narrativa com outros olhos, reparando em como os fatos vão se ajustando tim-tim-por-tim-tim à identidade do culpado? Conhecer a história de
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uma cidade transforma a maneira de vê-la: olha-se para ela com outros olhos, com uma compreensão muito mais clara da sua identidade e do porquê de inúmeras características e peculiaridades que a tornaram assim como ela é. Pode-se ver a paisagem de uma cidade, mas muito melhor é poder ‘ler’ a sua paisagem. E o que permite que se faça a ‘leitura’ de um mundo é a construção da sua história, isto é, de uma memória coletiva em torno dele.
Marcos Pompéia é formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Trabalhou na criação de vários projetos educativos e culturais, entre eles, a série “O Povo Brasileiro” e o Museu da Língua Portuguesa. E-mail: marcospompeia@yahoo.com.br
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Histórias de vida como patrimônio: a experiência do Museu da Pessoa
Karen Worcman Toda prática deriva de uma ideia. Toda prática resulta de um conjunto de experiências, individuais e/ou coletivas, sistematizadas. O Museu da Pessoa nasceu de uma ideia. São 22 anos de história que nos permitiram sistematizar algumas práticas. Tal sistematização – por nós denominada Tecnologia Social de Memória1- constitui o cerne de nossa metodologia. Baseada no que denominamos atualmente de História Oral, a Tecnologia Social de Memória identifica o que de mais essencial podemos extrair dessas prática para permitir que seja apropriada por indivíduos e grupos sociais diversos. E, eu poderia afirmar que a essência está na capacidade de escuta que possuímos e no potencial transformador que esta capacidade pode significar para cada um de nós, como indivíduos e como membros de uma sociedade. Nossas histórias de vida são parte inerente de nossa memória. Pensar nossa existência sem memória é impossível. Nossas experiências, emoções, práticas, aprendizados fazem parte de nosso “patrimônio” pessoal e a habilidade que temos de articular essas experiências em narrativas diversas fazem, de cada um de nós, um ser com a possibilidade de auto reflexão. Esta habilidade é, talvez, uma das características mais marcantes do que consideramos parte de SER HUMANO. No entanto, esta habilidade não é levada em conta quando pensamos nas práticas usuais de construção da memória social e nem tampouco nos termos do que é tradicionalmente considerado nosso “Patrimônio”.
As únicas narrativas individuais que se tornaram parte de nossa
“História” são as grandes narrativas, aquelas de pessoas com grande destaque social,
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Esta metodologia está descrita no livro Tecnologia Social da Memória: para comunidades, movimentos sociais e instituições registrarem suas histórias. Fundação Banco do Brasil. Brasília, 2010. A publicação está em pdf no site do Museu da Pessoa www.museudapessoa.net.
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político, cultural e/ou econômico. Mas como bem afirma Paul Thompson: “Precisamos de estudos sobre o normal, e para isso precisamos ter a história oral” 2. A vontade de tornar essas duas habilidades humanas – escutar o outro e construir uma auto narrativa – em “patrimônio” foi o que deu origem ao Museu da Pessoa. Não havia, desde o início, a intenção de registrar todas as histórias de vida do globo terrestre, mas sim a de atuar para garantir o direito de cada pessoa em ter sua história preservada e valorizada como patrimônio social. A proposta de usar o nome “museu” era também fundamental na medida em que, em nossa sociedade, os museus são percebidos como instituições capazes de dar legitimidade e valor ao que consideram como tendo “valor”. No início, nosso maior esforço era o de registrar vozes que considerávamos “excluídas” das narrativas oficiais. Data desta época os primeiros CD ROM’s , nos quais as histórias organizadas de forma temática se conectavam por meio de links e hiperlinks que tinham a função de oferecer ao leitor “noção”do contexto ao qual aquela narrativa estava inserida. Um ano após colocar nosso primeiro site na Internet, em 1997, percebemos que a Internet significava uma mudança de paradigma, pois abria ao internauta a possibilidade de registrar sua própria história. Iniciamos a seção “Conte sua História”, que incentivava os leitores a participar e criar novos conteúdos para o site. Nesse momento, surgiram as dúvidas: qual a diferença entre uma narrativa produzida em uma entrevista e aquela que uma pessoa escreve por conta própria, sabendo que se destina a um público amplo e anônimo? A Internet e as redes sociais mudaram definitivamente o papel dos indivíduos na produção de conteúdos, o que impactou na produção coletiva da memória. Hoje, o público produz suas histórias. Poderíamos dizer que se trata de um fenômeno absolutamente paralelo ao processo de construção de acervos orais, cuidadosamente construídos. Mas, pelo menos no que tange à idéia original do Museu da Pessoa – constituir uma rede de histórias que envolvesse de forma ampla, geral e irrestrita toda e 2
Thompson, Paul .“Histórias de Vida como Patrimônio da Humanidade” in: Worcman, Karen e Jesus Vasquez Pereira. História falada: memória, rede e mudança social. São Paulo: SESC SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. PP.17-45
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qualquer pessoa da sociedade – são fatores que favorecem a ideia original ao mesmo tempo que desafiam as mesmas premissas conceituais que inspiraram a construção do Museu. Tal qual mencionado no início, a metodologia adotada no Museu da Pessoa pressupõe que a narrativa de cada pessoa é a expressão de sua capacidade reflexiva. Neste sentido, entrevistá-la é estimulá-la a produzir sua narrativa. Cada entrevistado não é entendido como uma mera fonte de “informações” sobre o assunto, mas sim como uma pessoa que de alguma maneira vivenciou um pedaço de um momento histórico e que se apropriou de forma pessoal de seu significado. O foco é a escuta. Quando invertemos toda a lógica de captação e passamos a contemplar, de fato, os internautas como os maiores colaboradores para a construção do acervo do Museu da Pessoa, evidente que o processo muda. É fundamental avaliar o significado das transformações que o mundo digital trouxe para a produção e uso de nossas memórias. Os novos conteúdos refletem produções variadas e a questão de como acessar todo este material só se amplia. São inúmeras as questões que surgem de toda essa trajetória. No entanto, uma certeza permanece: o poder transformador de ouvir uma boa história e a magia que essa escuta produz em cada um de nós.
Karen Worcman é historiadora com pós-graduação em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fundadora e diretora do Museu da Pessoa de São Paulo e fellow da Ashoka Empreendedores Sociais. E-mail: karen@museudapessoa.net.
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