2 minute read

INÉDITOS MÁRCIA DENSER

Nos anos subsequentes as medalhas de ouro se multiplicariam, sem contar o orgulho de meus pais, mas não me tornei uma nerd genuína e por uma razão aparentemente paradoxal: me apaixonei pelos livros aos nove anos, me tornei uma leitora compulsiva de ficção, como já contei no capítulo 1, escritora de novelas policiais aos 11 anos, e mandei as garotas, as matérias do currículo, o colégio e todas as medalhas de ouro do mundo para o diabo! – finalmente abrira a minha janela de esplendor, descobrira o único lugar no mundo em que podia ser eu mesma e viver em liberdade: entre as capas de um livro! Mas estou me adiantando.

Entrementes, na escola, as garotas continuavam tornando minha vida miserável: me botavam a língua, davam as costas, ninguém queria ser minha amiga ou brincar comigo no recreio, nem me incluir nos jogos de pegador, queimada, pular corda; os recreios e a maldita paineira florida eram meu calvário, minha via crucis: eu de castigo do mundo.

Lembro que enganchava sempre em alguma mais boazinha e compassiva (compassiva e boazinha com todo mundo, o que não valia muito) gorducha de óculos – eu também passara a usar óculos a partir dos oito anos, 2 graus de miopia detectados por irmã Eugênia, a baixinha dentuça e enrugada como um gato bravo, professora do segundo ano. Mas essas não contavam, até porque eram muito chatas, feiosas, puritanas, chamavamse Maurícia ou Maurília: a companhia delas não despertava o menor entusiasmo.

Salvo quando era aniversário de alguém: aí todas te rodeavam, cantavam parabéns, você distribuía o bolo que sua mãe fizera especialmente, exibia os presentes: interesseiras!

Salvo dia de prova, quando aí, sim, sentavam-se, aliás, brigavam por um cantinho ao meu lado para que lhes passasse cola (canalhinhas interesseiras!). E eu cedia, feliz. Porque minha fome de amor era tanta que aceitava qualquer esmola, qualquer demonstração de afeto ou reconhecimento, aliás ansiava por eles.

Mas hoje percebo por que essa fase foi tão sofrida: era oprimida na escola pelas colegas e em casa por minha mãe – antes que eu descobrisse os livros, não havia nenhum momento de felicidade e liberdade! Uma contabilidade negativa terrível para uma criança. Um sofrimento que, em parte, poderia ter sido poupado, caso eu tivesse feito a escola preparatória, mas – quem sabe?

Meus pais quiseram me poupar – e se poupar – do crivo escolar e julgamento mundano ao matricular tardiamente sua filhinha com cicatriz no rosto, retardando, adiando a questão. Se eu estava sofrendo era também o sofrimento deles, a dor deles, a dor e o julgamento de todos nós, do nosso pequeno núcleo familiar solidário e unido nas tristezas e alegrias.

Tê-los perdido pelo caminho – meu pai em 1997, minha mãe em 2011 e Teréca, minha única irmã, em 2013 – eis a dor.

Paulo Sayeg

MÁRCIA DENSER é escritora e jornalista, autora de Tango Fantasma (Ateliê, 1977), Muito Prazer (Record, 1982), A Ponte das Estrelas (Best Seller, 1994), Toda Prosa II: Obra Escolhida (Record, 2008), DesEstórias – Artigos e Crônicas (Kotter Editorial, 2016), entre outros. O texto publicado nestas páginas faz parte de In DesMemórias, obra que reúne memórias da autora e deve ser publicada em 2022.

80

This article is from: