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P.S
FACES DA FOME
Ainda no início da adolescência, me interessei pelo curso de nutrição. Naquela época, a minha motivação era viajar para o continente africano e trabalhar com desnutrição. Me lembro de matérias no jornal e comerciais na televisão pedindo donativos e isso me comovia. O problema também acontecia no Brasil, mas aquele estereótipo de crianças extremamente emagrecidas me impressionava e entristecia muito.
Enquanto eu cursava a universidade, o assunto era a transição nutricional no Brasil, ou seja, a desnutrição estava em declínio contínuo, e a má alimentação – seja pela quantidade em excesso ou pela qualidade muito ruim – causava o aumento de peso em todas as fases da vida. As carências nutricionais da população se tornaram apenas um assunto abordado em livros, muitas vezes acompanhadas do comentário de que isso já não era mais relevante. Assim, durante o período da graduação, não tive nenhum contato com o problema da desnutrição. A formação acadêmica se preocupava muito mais em ensinar como a nutrição poderia ajudar a tratar doenças como obesidade, hipertensão, diabetes e câncer, e foi com esse olhar da dietoterapia que eu me formei.
O começo da minha jornada profissional seguiu concomitantemente com a saída do Brasil do Mapa da Fome. Algum tempo depois, já no Sesc, conheci e me apaixonei pelo Programa Mesa Brasil, então, me aproximei daquele projeto antigo, já perdido no tempo, e a discussão agora tratava da segurança alimentar, da garantia ao acesso ao alimento de qualidade e em quantidade suficiente, de trazer variedade e complementar as refeições.
Nestes últimos anos, vi de perto a tal da transição nutricional, sim, mas também presenciei nas regiões mais periféricas da cidade a dificuldade de se obter comida boa e na quantidade desejada. Contudo, nada se compara ao que ouvi, vi e vivi nesse período de pandemia. Os dados que as pesquisas mostram, do quanto a fome tem atingido o país, para mim, não são apenas números – são rostos, nomes, fotos e fatos que vivencio no Mesa Brasil cotidianamente.
Infelizmente, sempre que entregamos uma doação, o agradecimento vem acompanhado de uma história triste. Seja de uma família que já não tinha nada em casa, de uma criança agarrada em uma cesta básica como se fosse um brinquedo, de alguém tendo a oportunidade de provar um alimento pela primeira vez. Dói saber que as refeições consumidas nas instituições sociais muitas vezes serão o único alimento do dia, e que se a criança não receber alguma doação para levar para casa, os outros membros da família não terão o que comer. Dói mais ainda saber a localização, o sexo e a cor das pessoas mais afetadas pela fome no país.
Ao mesmo tempo em que esses relatos diariamente apertam meu peito, é muito confortante visitar as instituições sociais e testemunhar o belo trabalho dos profissionais, como educadores, assistentes sociais, psicólogos, cozinheiros e lideranças comunitárias que, apesar de estarem no meio do caos, trabalham intensamente com os recursos disponíveis, e sempre se mobilizam atrás de mais para remediar tanto a fome de comida, quanto à necessidade de alimentar a alma com cultura, educação, amor e esperança. É esse nosso esperançar diário que move essa corrente de ações e de solidariedade, e que me nutre também a fazer tudo o que sempre quis, sem tirar os pés do Brasil.
ALINE SILVA DE OLIVEIRA é nutricionista, mestre em Nutrição e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e coordenadora do Programa Mesa Brasil do Sesc Itaquera.