REVISTA DOSSIÊ INVESIGATIVO || Nº 3

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2º SEMESTRE 2018

COMISSÃO

NÚMERO 3 ANO 3 REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO

À DEPOIMENTOS EM BASEADA PROFISSIONAIS, ATORES POR FEITA ARTÍSTICA,

NACIONAL DA VERDADE, DOCUMENTOS OFICIAIS E ENTREVISTAS REALIZADAS PELA REPORTAGEM.

REPRODUÇÃO

Não é uma lição de moral, é a história. Não é uma mensagem política, é a verdade. Não é medo do passado, é a preocupação com o futuro.

DESVENDAMOS O PAPEL DAS MULHERES NA RESISTÊNCIA. P. 5

RIO GRANDE DO SUL: A PRODUÇÃO DE MILITARES EM LARGA ESCALA P. 12

AMIGOS NA TRINCHEIRA: MILITARES PELA LEGALIDADE. P. 15

REVELAMOS A HISTÓRIA DOS INDÍGENAS NA DITADURA. P. 19

OPERAÇÃO CONDOR: UNIDOS PELA CAÇA P. 24


“Conheço muitos que não puderam quando deviam porque não quiseram quando podiam”.

MEMÓRIAS DO GOLPE

François Rabelais A frase do escritor francês, feita no século XVI, foi a base de concepção e criação da Revista Dossiê. Ao refletir o enunciado, compreendemos que o jornalismo acadêmico tem os dois grandes pontos destacados pelo autor. Querer

e

poder.

Característica

que

nos

coloca

como

protagonistas

no

processo de sustentação e manutenção da democracia. A Dossiê sempre assumiu

esse

papel

de

comprometimento

com

assuntos

que,

muitas

vezes, são difíceis de deglutir. Temas que incomodam, que provocam e causam reflexões. Se queremos e podemos, vamos fazer.

UNIDAS PELA LIBERDADE

Por mais difícil

SOBREVIVENTES DA CENSURA

que isso seja. Em 2016, perguntamos o porquê de a sociedade insistir em não falar sobre

determinados

assuntos.

Aborto,

suicídio,

política

e

religião

foram

CELEIRO DE REGIMES

alguns dos assuntos tratados. Em 2017, nos fortalecemos e questionamos a justiça: Porque aqui embaixo as leis são diferentes? No flerte entre o judiciário e a política, apresentamos um novo tempo: A judicialização da política ou politização da justiça.

FARDAS DA RESISTÊNCIA

Em 2018, a eleição para presidente levou o povo brasileiro à beira de um colapso social. A guerra de versões entre a esquerda e a direita promoveu

uma

enxurrada

de

verdade

e,

principalmente,

mentiras.

Não

demorou muito para que colocassem em xeque a existência de um dos períodos mais tristes da história brasileira: a Ditadura de 1964. De uma

INDÍGENAS: O LADO OCULTO DA DITADURA

forma leviana e desumana, desprezam os relatos de tortura, as repressões, censuras

e

até

as

mortes

ocorridas

na

época.

A

recente

democracia

brasileira pode correr riscos. É pelo medo do apagamento da história que nasce o tema da terceira edição da revista Dossiê. Abordar um assunto tão complexo e polêmico exigiu coragem. A dedicação sempre foi combustível principal dos futuros egressos do nosso curso, durante o trabalho de investigação. O principal desafio: a falta de

AS VERDADEIRAS CORES DA DITADURA MILITAR OPERAÇÃO CONDOR

documentos. Muito foi perdido ou incendiado de forma criminosa. Alguns sobreviventes do período ditatorial não estão mais aqui para contar o que viram ou sofreram. Ancoramos nosso barco jornalístico no monólito do

relatório

da

Comissão

Nacional

da Verdade.

Equipe

instituída

pelo

Governo Federal que apurou as graves violações dos direitos humanos de

QUEM DITA A JUSTIÇA PARA O DITADOR?

2012 até 2014. Ali encontramos relatos, dados e histórias. Entrevistamos personagens que viveram o horror da ditadura. Testemunhamos desaparecimentos representando

relatos e

de

execuções.

algumas

torturas

agressões,

Montamos ocorridas

um

na

época.

violência ensaio

sexual,

O PREÇO DA DITADURA MILITAR

fotográfico

Contamos

com

03 05 09 12 15 19 22 24 27 30

a

ajuda de atores profissionais e nos baseamos em entrevistas e depoimentos a

CNV.

ativa

A

prática

assegurou

a

pedagógica máxima

supervisionada

experimentação.

calcada

Nossa

na

ousadia

metodologia acadêmica,

sem abrir mão da ética, garantiu a representação de momentos terríveis que correm o risco de serem esquecidos. Se depender da gente, nossa história nunca vai morrer. Matheus Felipe Professor da disciplina Leandro Olegário Coordenador do curso de Jornalismo

EXPEDIENTE A revista DOSSIÊ INVESTIGATIVO é um projeto do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter Reis – UniRitter/ Laureate International Universities. A iniciativa surgiu da necessidade de criar um espaço de divulgação do material produzido na disciplina de Grande Reportagem. Professores envolvidos: Matheus Felipe. Editoreschefes: Ana Carolina Pinheiro, Camila Silva, Gabriele Torbis e Leonardo Dutra. Agradecimento especial a participa;áo de Diego Briáo editor convidado. Atores convidados: Yuri Amaral, Leandra Kruger, Franco Mendes e Ewillyn Lopes. Projeto Gráfico: Rogério Grilho (MT 7465). Diagramação, fotografia e edição de imagem: Shalynski Zechlinski.

FOTO: REPRODUÇÃO JORNAL DO SENADO

SUMÁRIO

CARTA AO LEITOR

1964: MEMÓRIAS DO GOLPE ANA CAROLINA PINHEIRO, BRUNA JORDANA, GIULIA MELLO E VITÓRIA GARCIA

Porto Alegre foi parte central no Golpe de 1964. Enquanto Leonel Brizola e João Goulart tentavam resistir em uma casa no centro da cidade, tropas militares avançavam em direção à Brasília, consolidando o começo da Ditadura Militar no Brasil. A movimentação no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre,indicavaqueaquelenãoeraum dia normal. Os gritos de “Presidente, Reaja!” e “Presidente, vamos fazer a resistência!”ecoavamentreamultidão queesperavaopousodeJoãoGoulart. Era31demarçode1964,dataemqueo Golpe Militar começou a tomar forma. A vinda de João Goulart para Porto Alegre já era reflexo da atmosfera de Golpe que pairava no ar. O então presidentejásabiaquenãoconseguiria conter o avanço militar se ficasse em Brasília, traçou um plano para viajar 3

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à Porto Alegre, onde havia tropas legalistas. Aameaçadegolpenãoeranovidade, masvinhaseintensificandodesdeque, alguns dias antes, em 13 de março, em um comício na Central do Brasil, no RiodeJaneiro,Jangoprometeraqueiria fazer as reformas de base, entre elas a agrária, a universitária e a eleitoral, que estavam paradas no Congresso. Como resposta, setores mais conservadores da sociedade promoveram, em 19 de março, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu mais de 300 mil pessoas em São Paulo. Mesmo com a forte oposição, em 30 de março, Jango volta a repetir seu discurso pró-reformas em um evento noAutomóvelClube,noRiodeJaneiro. A fala soou como afronta direta aos militares, que já vinham sinalizando a possibilidade de um golpe. Em 31 de março,tropascomandadaspelogeneral Olympio Mourão Filho partem da cidade mineira de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Aslembrançasdodia31demarçose mantêmfirmesemtodosqueviveram de perto o movimento que culminou no Golpe de Estado em 1964. Um dos personagens que narrou esta história é João Vicente Goulart, filho de Jango, quenaépocacontavacomapenasoito

anos. Em seu livro intitulado “Jango e eu – Memórias de um exílio sem volta”, publicado em 2016 pela editora Civilização Brasileira, João Vicente revisita a sua memória do dia 31 de março e conta que, mesmo enquanto menino, percebeu que algo estava diferente. “Não recordo aquela noite, mas de manhã já havia umas poucas malas arrumadas,carrosemotoristasàespera naportaeumaagitaçãoforadocomum, quasecorreria,parasairmosdiretopara oaeroporto.Lembro-medequenãofoi possível levar alguns dos brinquedos quequeríamos,comosemprefazíamos nas viagens ao Rio, a Porto Alegre ou a São Borja. Levávamos tudo o que queríamos, mas nessa viagem, não. Parecia uma viagem diferente. E seria diferente para sempre”. João Vicente recorda ainda como foi a viagem que o trouxe a Porto Alegre acompanhado de sua mãe Maria Thereza, de sua irmã Denize, de Virgílio, um cabeleireiro amigo de sua mãe, da babá Etelvina e da tripulação. Seu pai iria em um voo mais tarde, e deveria se encontrar com eles naquele mesmo dia. “Saímos meio apressados, meio desconfiados, pois o avião da FAB [Força Aérea Brasileira] que nos esperava no aeroporto não era aquele em que sempre viajávamos. Haviam


ILUSTRAÇÃO: SHALYNSK I ZECHLINSKI

conseguido outro às pressas para nos levar a Porto Alegre, talvez de alguma unidade que ainda se mantinha fiel ao presidente – ou melhor, que ainda estava na expectativa se o golpe iria se consumar ou não”. Entre a multidão que aguardava o avião da FAB pousar no aeroporto em Porto Alegre, estava o tenente José Wilson da Silva, junto com outros colegasmilitaresquetambémapoiavam opresidente.Apósodesembarque,Jango seguiuparaacasadoComandantedo3º Exército, na Rua Cristóvão Colombo, acompanhado por uma comitiva. Wilson estava entre as tropas que deveriam fazer a segurança do local. “Estávamos condicionados a uma estrutura vertical, onde todos esperavamsempreaordemdealguém. Como o presidente nunca foi claro e nenhum chefe maior tomou posição, os golpistas foram avançando. Foi um legítimo primeiro de abril aplicado ao Brasil” relembra o tenente. Wilson passou os dias de 31 de marçoe1ºdeabrilaguardandoaordem que deveria sair do Comando reunido na casa da Cristóvão Colombo. O tenente recorda o momento em que, vendoquenenhumaordemeraemitida dedentrodacasa,meteuamãonaporta e encontrou uma cena frustrante: Ali estava Brizola fumando, sentado na camaapoiadosobreocotovelo.Aovêlo, Brizola levantou-se e o apresentou a Jango. “Eu disse ao presidente que estávamoscomquaseatotalidadedas tropas, embora com uma minoria de oficiais,equeiríamosresistiraqualquer custo,comeleoucomBrizola,anãoser queBrizolatambém‘negasseoestribo’”, conta Wilson. O ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, vinha fazendo imensos esforços para montar uma resistênciaapartirdePortoAlegrepara reconstruir o Governo Legal.

“Fiquei irritado que ele não nos estava colocando a par da verdadeira situaçãodoquesepassavanasdiscussões ládentro.Enquantodiscutiamsabendo que Jango não queria resistir, nós estávamosenterradosatéopescoçocom comprometimentos desnecessários”, conta o tenente, que é autor do livro “O TenenteVermelho”,publicadoem1987, onde descreve o episódio. Enquanto Jango tentava resistir na casa no Centro de Porto Alegre, sua famíliaaguardavanotíciasemSãoBorja, no Rancho Grande, estância da família. Sobreanoitequepassaramnolocalsem notícias de Jango, João Vicente lembra queumjipeconseguiuchegaràsededo RanchoGrande,levandoinstruçõesdo Comandoquedeterminavamaretirada da família em 24 horas. “Minha mãe interpretou aquela mensagem como um desafio, sem saber ainda que a democracia brasileira, naquele dia, iria ruir com o golpe que atingiu o Brasil e suas futuras gerações”, descreve. Algumas horas mais tarde, o pouso dopilotoparticulardeJangoconfirmou aordem.“Defato,aomeio-dia,Maneco, nossopilotoparticular,pousounapista gramada do Rancho Grande, levando ordens de meu pai, que estava em Porto Alegre avaliando a situação e tentando resistir. Ele disse para minha mãe: – Dona Maria Thereza, dr. Jango está em Porto Alegre e não poderá vir hoje para o Rancho Grande. Ele me instruiu a levar a senhora e as crianças paraoUruguai.Dissequeasenhoranão devesepreocupar,porqueembreveele também estará lá”, conta. Em Porto Alegre, algumas horas antes, o general Floriano Machado haviaalertadoJoãoGoulart:“Presidente, tropas de Curitiba estão marchando para Porto Alegre. O senhor tem duas horasparadeixaropaíssenãoquiserser preso”. Jango sabia que o Golpe já estava consolidado. “Wilson, vai haver

derramamento de sangue e eu não queroisso.Asituaçãoéruim”,relembra o tenente. No dia 2 de abril, Jango partiu para Montevidéu, no Uruguai, onde iria encontrar sua família, que havia deixadooRanchoGrandehorasantes. Brizola continuou resistindo, deu ordensparaoscomandantesdastropas, porémhaviaperdidoasforçasedecidiu não acompanhar os militares frente à resistência.“AnegativadeBrizolaemnos acompanharfoimuitodecepcionante, pois não contávamos com mais esta. Seus comprometimentos e os nossos eram de tal forma que não admitiam a entrega de mão beijada”, lembra o tenente. Com o andamento do golpe, o tenenteWilsontambémbuscouexílio no Uruguai, onde ficou até 1971. João Goulart nunca mais retornou ao Brasil. Faleceu na Argentina, aos 57 anos, oficialmente vítima de um infarto. No entanto, teorias sobre um possível envenenamento ainda não foram ser descartadas. Em 15 de novembro de 2008, a Comissão de Anistia Política julgou o pedido de anistia movido por Maria Thereza, viúva de Jango. O requerimento foi aprovado e ela, que tambémfoianistiada,passouareceber indenização de ambos. A Ditadura Militar durou até 15 de Janeiro de 1985, quando Tancredo Neves,aindadeformaindireta,foieleito presidente.Duranteos21anosemque o Regime Militar esteve instaurado no Brasil, centenas de pessoas foram mortas ou desapareceram, enquanto milharesforamperseguidas,torturadas ou obrigadas a fugir do país. Os crimes cometidos durante este período não foram até hoje esclarecidos, e os militares envolvidos permanecem impunes.

DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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ARTE INSPIRADA NA FOTO DE GONÇALVES/ AGÊNCIA O GLOBO (EM 1968) EM UMA MARCHA CONTRA A CENSURA DO GOVERNO NA DITATURA MILITAR

UNIDAS PELA LIBERDADE LUÍSA MEIMES E SHALYNSKI ZECHLINSKI

Mulheres que fizeram de suas vidas uma resistência contra a ditadura no Rio Grande do Sul. “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, pois deles será o Reino dos céus” (Mateus 5:10)

T

erça-feira, 11 de abril – após acordar, tomar café da manhã e estar disposta a encontrar outros companheiWseria rotina acabou virando um pesadelo. Em um ponto de ônibus na Avenida Oscar Pereira, em Porto Alegre, ela esperava alguns conhecidos. A identificação para ter certeza que estava falando com a pessoa certa vinha através de uma senha, “aqui passa esse ônibus?”. Antes de qualquer palavra, a mão no ombro quebra o ritual quase que diário. Depois do toque, um “convite”: “Vamos sair daqui que o clima está pesado”. Após dizer que continuaria esperando seu ônibus, a jovem foi jogada no banco de trás de um carro e percebeu que o homem não estava sozinho. Logo ao sentar, recebeu

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um soco do motorista. Ainda tentando recuperar a consciência, conseguiu perceber o momento em que um deles tirou a peruca que estava usando. Nilce Azevedo Cardoso nasceu em São Paulo e veio para o Rio Grande do Sul em 1972, quando percebeu que a resistência estava perdendo membros no Estado. Ela fazia parte da Ação Popular (AP) – organização política de esquerda, criada a partir da atuação de militantes estudantis da Juventude Universitária Católica (JUC), que contava com a participação de pequenos agricultores e operários. Nilce era professora e tinha 27 anos quando foi levada para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) – um dos órgãos criados com intuito de silenciar quem não estava de acordo com o regime militar. Com um capuz na cabeça, é levada para uma sala vazia e escura que ficava no Palácio da Polícia. “Tira a roupa”, foi a primeira frase que ouviu, ainda paralisada tentando entender o que estava acontecendo. “Às vezes só tirar a roupa é absolutamente insuportável”, explica. A professora era uma das poucas pessoas que tinham informações sobre a estrutura do grupo de militantes e sobre o “aparelho” (lugares onde se reuniam). Durante o interrogatório,

ela resolveu falar apenas seu nome e cada vez que o pronunciava recebia um soco. “Eu era muito rígida. Achava que se entrou nessa luta, tem que aguentar. Eu tinha certeza de duas coisas: de que não ia falar nada e que ia morrer”. Logo no primeiro dia presa, os militares trouxeram os aparelhos para iniciar as sessões. Amarrada em uma cadeira, Nilce recebeu os primeiros choques: “assim que os fios encostaram em mim imediatamente eu fiz xixi, é a primeira lembrança de meu corpo gritando”. Durante seis meses de torturas com choques e pau-de-arara, entre o DOPS em Porto Alegre e a Operação Bandeirante (OBAN) em São Paulo, a militante teve o esterno fraturado (osso que sustenta o tórax). Depois ficou em coma durante oito dias por causa de uma infecção devido aos choques que recebia no útero, por meio dos fios e outros objetos que eram inseridos em sua vagina. A professora foi encaminhada para o Hospital Militar onde o médico disse que ela estava bem para continuar sendo interrogada. Hoje, com 73 anos de idade, Nilce é psicopedagoga. Na época, acabou descobrindo quem a delatou, mas diz que entende, pois o rapaz também havia sido torturado. Entre as diversas infor-


FOTO: SHALYNSK I ZECHLINSKI Nilce Azevedo Cardoso

seu corpo e sua mente sofreram diversos abusos, mas não é ao descrever as sessões de tortura que ela se emociona. A militante teve amnésia logo após os acontecimentos. Somente depois de 17 anos de sessões de psicanálise, ela conseguiu organizar os fatos de forma racional. Além de conseguir pronunciar seu nome completo sem medo de ser espancada. Bárbara Conte é psicanalista da Clínica do Testemunho e ressalta que em muitos casos, pode haver uma ruptura nas memórias. “O efeito de um trauma, que se dá por um excesso de violência no psiquismo, faz com que a pessoa chegue a uma situação onde ela rompe a possibilidade de poder organizar o que aconteceu para que possa falar sobre os fatos”. Ela ainda explica que as mulheres que passam por uma situação de abuso físico ou psicológico precisam de um tempo significativo para que consigam recuperar seus corpos como um “lugar” próprio delas novamente. “A violência que incidiu no corpo, que é um lugar de prazer e de investimento narcísico, deixa essa marca de um prazer que virou um desprazer no torturado”, afirma. A Clínica do Testemunho tem por objetivo reparar de forma psíquica o passado de pessoas que foram vítimas da violência de Estado, por meio de símbolos que restauram suas histórias de forma organizada e racional. Bárbara comenta que no início do projeto as mulheres tiveram certa desconfiança ao não conseguir distinguir o Estado que perpetuou a violência do Estado que oferecia o projeto. Ao contrário de Nilce, a advogada DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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aposentada Carmen Lopes – que também fez parte da resistência contra a ditadura –, não procurou nenhum tipo de tratamento assim que foi liberada da prisão. Com 24 anos, a jovem ficou um mês no DOPS em Porto Alegre e sete meses no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em São Paulo. Carmen não era tão ativa na militância quanto Nilce, porém integrava o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em fevereiro de 1973, ao chegar em casa, a então estudante encontrou um revólver em seu sofá. Rapidamente, ela se deparou com um militar que a esperava. Era uma armadilha. O propósito era que Carmen encostasse na arma, mas ela não o fez. Com muito esforço, ela lembra da primeira frase dita quando chegou ao DOPS: “Tira a roupa!”. Não é casualmente que partes da história de Nilce se repitam com a de Carmen. Era um padrão. A advogada conta sua história até o momento em que foi presa. Após isso ela comenta que a dor dos choques é inesquecível, assim como um dos seus princípios: “Eu nunca neguei que era comunista, sempre mantive isso em mente caso me pegassem. O resto eu apaguei”, explica. Enquanto estava presa, Carmen foi levada para São Paulo, onde seu pai a esperava em frente ao DOI-CODI. “Eles fizeram de tudo para eu me sentir à vontade para falar, quando avistei meu pai, recebi lição de moral para sair da militância”, conta. A militante não contém a emoção e a revolta ao pronunciar um nome: Carlos Alberto Brilhante Ustra. O coronel do exército e ex-chefe do DOI-CODI recepcionou a estudante. Anos depois, Ustra foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o período. Ele faleceu em 2015 sem nunca cumprir com a sentença. Carmen se revolta ao pensar sobre a história e diz que nada pode reparar o que foi feito.

REPRODUÇÃO

ARTÍSTICA,

FEITA

POR

ATORES

OFICIAIS E ENTREVISTAS REALIZADAS PELA REPORTAGEM.

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Ela afirma que o que pode começar a ser um processo de reparação são as pessoas terem consciência da história do Brasil. Vale a velha máxima – “é preciso que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Nilce compartilha da mesma visão da advogada e diz que o passado ainda está vivo: “Não houve reparação, ninguém foi punido”, afirma a perseguida pelo regime militar. Bárbara lida diretamente com pessoas que precisam recuperar seus passados perdidos para um Estado repressor. Ela afirma que o medo é um sentimento ainda mais presente entre eles. “O pavor de perder o exercício da cidadania e de direitos democráticos está de volta. O mesmo medo que fez tantas pessoas irem embora, outras pegarem em armas e outras perderem as vidas”, lamenta a psicanalista. Apesar de Nilce e Carmen terem muitas características em comum como a vontade de ainda lutar pela liberdade -, as consequências do que passaram atingiram as duas de formas distintas. Nilce leva no semblante um sorriso frouxo e na roupa preta, em forma de protesto, a frase: “Lute como uma garota”. Ela comenta que nunca deixou de ser jovem. “É um conflito, porque meu corpo já grita por 73 anos, mas eu ainda sou muito garota em termos de sonhos e alegria. Isso tudo perma-

PROFISSIONAIS,

EM DEPOIMENTOS À COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE,

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“A tortura está aflorada em nós. As pessoas não sabem a humilhação que foi uma garota ainda virgem, tirar a roupa na frente de militares”, conta.

BASEADA

DOCUMENTOS

neceu dentro de mim. Eu fiz da minha vida uma própria militância, porque só com a justiça a gente vai poder retomar a democracia”, afirma. Logo após a entrevista com nossa equipe de reportagem, Nilce arrumou as almofadas e o tapete da sala exatamente como estavam antes de nossa chegada. A ação faz parte do que ela aprendeu na militância e traz consigo até hoje - fazer com que ninguém percebesse que ali houve uma reunião. Já Carmen ainda hoje não consegue ouvir barulhos de chaves balançando. Ela conta que, quando se aproximava do horário de uma nova sessão de interrogatório, os militares vinham em passos lentos balançando o molho de chaves para que a incerteza e o medo de ser o próximo torturado aumentassem. “Eu não lembro o que eu sentia, se era medo ou coragem. Mas sei que ouvir esse barulho me arrepia até hoje”, afirma. A militante também teve problemas para se relacionar pois, em todo lugar que vai, sente que outras pessoas ficam a observando. Durante a entrevista, mesmo afirmando que gostaria de falar para alertar outras pessoas sobre o período, a advogada não soube responder alguns questionamentos sobre seu passado. Carmen é uma mulher com poucas lembranças do que passou nos porões da ditadura. Assim como o Brasil, que segue desmemoriado das próprias histórias do regime militar.

FOTO: SHALYNSKI ZECHLINSKI

ILUSTRAÇÃO BASEADA NO RELATO DE NILCE QUANDO FOI LEVADA AO DOPS

resistência no Brasil era formada por mulheres. Apesar de pouco numerosas, elas ocupavam espaços mais perigosos do que os homens, justamente por serem menos visadas. O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, explica que no Brasil os documentos da repressão não foram abertos e continuam inacessíveis. “Os poucos números existentes sobre a época foram catalogados de forma geral e segmentados por grupo político e região do país”, explica. Apesar das estimativas sobre o período, no Rio Grande do Sul - assim como em todo país -, não há um documento único que mostre exatamente quantas mulheres foram presas políticas na ditadura militar. A doutora em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em investigação sobre temas relacionados à história das mulheres, Ana Maria Colling, ressalta a dívida geracional e explica que a ditadura para elas foi tão cruel quanto para os homens. “As mulheres eram preparadas para casar e ter filhos. Aquelas que rompiam estes muros eram duplamente rechaçadas pelos militares. Elas eram desvios do feminino, se estavam na política, deviam estar à procura de homens”, explica. A historiadora ainda explica que mesmo quem se identificava com ideias políticas mais à esquerda olhava de forma assustada para estas mulheres. Mães e pais esperavam de suas filhas um bom casamento, e não militância política. “Enquanto território, o corpo da mulher sempre foi interpretado como algo à disposição do poder do outro”, ressalta. Considerada subversiva, nos meses em que Nilce ficou encarcerada,

ILUSTRAÇÃO: SHALYNSK I ZECHLINSKI

mações que somente ela sabia, Nilce tinha que fazer com que ninguém soubesse que no local determinado tinha acontecido uma reunião. Ela costumava encontrar outros militantes em um local e hora combinados para irem aos aparelhos. Era ela que ficava com a missão de organizar o ambiente exatamente como estava antes do encontro. Nada podia ficar fora do lugar. Além disso, o papel de Nilce também era o de ser invisível. “Não tínhamos normas para seguir, mas me indicavam estar adequada ao local que eu iria, se eu fosse em um lugar que estavam muito arrumados eu não podia me destacar, nem chamar atenção por não estar arrumada”, explica. A ditadura militar no Brasil se instaurou no ano de 1964, foram 21 anos de repressão, torturas e mortes em nome da ordem pública. Atos Institucionais foram baixados para que manifestações populares fossem reprimidas dentro da legalidade. Apesar de serem em menor número, nesse contexto, a atuação das mulheres foi expressiva na luta pela democracia. A repressão militar não foi a única inimiga. Dentro dos próprios movimentos políticos elas sofriam exclusão. Ao contrário disso, Nilce diz que “aproveitou” que as mulheres não tinham protagonismo para exercer seu papel na militância – passar despercebida. “Lembro que eu falava para alguns companheiros ‘chama a tua mulher’, e ele dizia que ela tinha que ficar cuidando dos filhos e da casa”, explicou a militante. Os dados sobre o envolvimento da mulher na política nas décadas de 1960 e 1970 revelam uma participação minoritária em relação a do sexo masculino. Segundo estimativa da Comissão Nacional da Verdade (CNV), 11% da


ILUSTRAÇÃO: SHALYNSK I ZECHLINSKI

OS NÚMEROS DA RESISTÊNCIA

Como uma tentativa de descobrir quantas mulheres fizeram parte da resistência contra o regime militar no Estado, a equipe de reportagem elaborou uma base de dados própria. Nomes, características e modo de participação das mulheres foram tirados de três documentos diferentes e reunidos em um.

REPRODUÇÃO

ARTÍSTICA,

FEITA

POR

ATORES

PROFISSIONAIS,

EM DEPOIMENTOS À COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE,

FOTO: KEVYN NUNES

BASEADA

DOCUMENTOS

OFICIAIS E ENTREVISTAS REALIZADAS PELA REPORTAGEM.

SOBREVIVENTES DA CENSURA HELENA RIBEIRO E VICTÓRIA MARISQUERENA

cada três pedidos de indenização foi recusado. Outro documento que integra o banco de dados é a relação de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dos 379 registros, dois são de mulheres do Rio Grande do Sul. Além disso, foram consultadas as fichas de todas mulheres presas no Estado. O catálogo produzido reúne informações de mulheres requerentes de indenização, citadas como companheiras de prisão, testemunhas, mortas, desapare-

cidas e todas que em algum momento do período militar foram presas. O catálogo, dividido em quantitativo e qualitativo, é uma forma de luta contra o déficit de dados sobre a história de mulheres na ditadura. Os números se aproximam ao máximo do real – que para sempre será incerto –, e tenta transformar essas histórias em memória coletiva do Estado. O catálogo será disponibilizado no site da Revista Dossiê Investigativo – Ditadura.

ILUSTRAÇÃO: SHALYNSK I ZECHLINSKI

No catálogo virtual Resistência em Arquivo: Memórias e Histórias da Ditadura no Brasil, disponibilizado pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, é possível encontrar 1.704 processos administrativos de indenização. Desse número, 88 processos eram sobre mulheres, onde apenas 55 delas receberam indenização como forma de reparação pelo período, como Nilce e Carmen. No documento, 31% dos pedidos gerais (homens e mulheres) foram indeferidos. Ou seja, quase um em

DOSSIÊ INVESTIGATIVO DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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Então explode uma bomba de efeito moral duplo, um ruído muito grande e sai uma fumaça rosa choque. Eles jogaram a bomba na minha direção, e eu vi que no tubo tinha um rótulo, um logotipo, duas mãos. Era o logotipo da operação chamada ‘Aliança para o progresso’, ali caíram todas as fichas e eu entendi quem dava ordens para a mão apertar o gatilho”, conta Sérgio Gomes sobre quando estava cobrindo uma passeata com mais quatro colegas para o jornal da escola, em 1967. Para ele, naquele momento ficou claro que para o exercício, seja da atividade jornalística, seja da atividade artística, era necessário a redemocratização. Na época o jornalista tinha apenas 18 anos e, desde então, resolveu lutar pelo fim da ditadura militar brasileira. O acontecimento contado pelo jornalista ocorreu um ano antes da implementação do Ato Institucional 5 (1968), conhecido como AI-5, onde foram definidas medidas como a censura prévia e tortura. Onde também se fortificou a atuação externa na tomada de decisões políticas do país. Oito anos depois, ele foi preso por razões políticas. Foi torturado por seis meses no DOI-CODI de São Paulo, perdeu amigos e colegas. Ao voltar para exercer sua profissão na Agência Folha, foi censurado de di-

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versas maneiras pelos seus chefes e persuadido a pedir demissão, mesmo já tendo sido absolvido de todas as acusações. A história de Sérgio se junta a de mais 89 profissionais do jornalismo que foram resistência ao período ditatorial e que, de algum modo, foram reprimidos, seja por censura, prisão, tortura, cassação de direitos políticos, demissão, exílio ou banimento. Os dados fazem parte da Comissão Nacional da Verdade dos Jornalistas, que no ano de 2013 realizou uma investigação sobre os profissionais da área que tiveram seus direitos humanos violados entre os anos 1964 e 1985. Através desta pesquisa foi possível identificar quantos jornalistas foram assassinados pelo regime militar. A lista conta com 27 nomes. Para o diretor da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) de Porto Alegre, Celso Schroder, esta repressão aos profissionais do jornalismo estava diretamente relacionada com o papel social e democrático do exercício.

CENSURA

“Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação”. Este é

o primeiro artigo do Decreto de lei n° 1077, datado de 26 de janeiro de 1970, dois anos após a implementação do AI5, onde é dado carta branca a censura que antes existia de forma sutil. “A autocensura nas empresas de jornalismo, de comunicação, é muito comum face que são empresas que visam o lucro. Eles vendem a informação para produzir lucro”, explica Beatriz Kushnir, doutora em História e escritora do livro “Cães de Guarda: jornalistas e censores”. Sendo assim, após a divulgação do Decreto, cabia ao Ministério da Justiça, através da Polícia Federal, verificar sempre que julgasse necessário livros e periódicos, antes de sua publicação, podendo até mesmo se instalar dentro das redações para monitorá-las. Caso existisse conteúdo ofensivo à moral e aos bons costumes, a divulgação da publicação era proibida. Nos anos iniciais ao decreto, os primeiros censores eram jornalistas nomeados por indicação, o que foi uma grande surpresa aos demais profissionais. Mas não parou por aí, os tradicionais veículos de comunicação fortaleceram seu apoio ao regime, emprestado suas dependências e materiais para tortura e prisão. Um apoio tão evidente teve as suas consequências: a imprensa tradicional que se manteve conivente ao regime


militar perdeu sua força e sua popularidade, tornando-se necessário, mais do que nunca, a existência da imprensa alternativa, para driblar a censura e informar sobre a realidade do Brasil e suas relações externas. “Os jornalistas que realmente faziam jornalismo reagiram e possibilitaram que se re-configure uma esfera pública crítica a esse estado excepcional e autoritário. E essa imprensa que vai derrubar, é a imprensa alternativa”, afirma Celso Schroder.

IMPRENSA ALTERNATIVA

Com isso, foram surgindo cada vez mais mídias para resistir ao governo e a censura. Em escala nacional, o destaque ficou para Pasquim, Opinião, Movimento, Em Tempo, Ex e Versus, que até hoje são lembrados entre as maiores publicações da época. A crítica era apresentada, em sua maioria, como opinião, charge e ironia. No Rio Grande do Sul, o cenário de resistência jornalística também ganhou espaço. Entre os principais jornais de contraponto estavam o Exemplar, Pato Macho e Coojornal, este que ficou mais conhecido por sua abordagem caracterizada por reportagens em profundidade e informativas. Um exemplo disso é a revelação de trechos do diário do general Olympio Mourão Filho, um dos militares que desencadeou o golpe de 31 de março de 1964. O conteúdo, titulado como “Verdade de Uma Revolução” foi entregue pelo próprio autor ao historiador Hélio Silva meses antes de sua morte e publicado em primeira mão na edição nº 27 do Coojornal. Apesar do primeiro exemplar ter chegado às bancas em 1976, o jornal foi idealizado muito antes. Jornalistas inconformados com a censura e o autoritarismo presente nas redações tradicionais, formaram a partir de encontros informais, uma cooperativa que mais tarde tornaria o Coojornal possível. Iniciando sua história como um boletim que circulava somente entre as redações, a cooperativa foi alcançando o sonho de produzir um jornal próprio e livre dos limites impostos a impressa. “O Coojornal representava um tipo de liberdade para exercer a profissão dentro dos parâmetros de liberdade de critérios jornalísticos. Isso fazia que os estudantes vissem o Coojornal com os olhos brilhando”, relembra Rafael, que começou a trabalhar no jornal como ar-

quivista, para posteriormente se tornar repórter. A primeira tentativa de intimidar a cooperativa ocorreu já em 1977, em resposta a uma matéria presente na edição nº 18, onde era informado que, desde o início do regime militar, o governo havia cassado os direitos políticos de mais de 4 mil pessoas. Depois da publicação, a polícia federal visitou os 33 anunciantes para que “soubessem o que o governo pensa do jornal” e, então, somente três continuaram a anunciar nas próximas edições. A partir daí as finanças caíram e fazer o Coojornal foi se tornando mais e mais desafiador. Mas, apesar do cenário desfavorável, o mensário seguia levando conteúdo de qualidade para os seus leitores. Entre as reportagens era comum encontrar entrevistas com os maiores nomes da música brasileira da época, como Chico Buarque, Elis Regina e Caetano Veloso. Também era frequentemente abordado a situação de outros países que enfrentavam ditaduras na América Latina, além de guerrilhas e movimentos que ocorrem no Brasil pela redemocratização e que não foram noticiados pela mídia tradicional. Até que uma pauta gerou um dos momentos mais tensos da história do jornal. Em 1979, um cabo do exército trouxe documentos confidenciais do governo para a redação do Coojornal. Datados de 10 anos atrás, os relatórios continham informações referentes a duas ações de combate à guerrilha: a Operação Registro, em enfrentamento a luta armada do Vale da Ribeira, em São Paulo, e a Operação Pajuçara, que resultou no assassinato do ex-capitão Carlos Lamarca. Com a publicação, veio para o jornal o que Rafael descreve como “a maior fúria do exército”. Processos foram abertos pelos militares. Primeiro, negando a veracidade dos documentos, depois, sustentando a tese de que eram confidenciais e, portanto, não poderiam ser publicados. Como resultado, quatro funcionários foram interrogados e condenados a seis meses de prisão. Rafael, por ter recebido o cabo e analisado os documentos pela primeira vez, a secretária da redação, Rosvita Saueressig Laux, o diretor do jornal, Elmar Bones e Osmar Trindade, o chefe de reportagem. Do tribunal, saíram presos Rafael e Trindade, que ficaram 22 dias até con-

seguirem um habeas corpus. Em seguida, todos os quatro foram presos, mas dessa vez somente por cinco dias. “Para mim o pior momento foi quando eu fui interrogado por um coronel do exército por mais de seis horas. Na época eu tinha 22, 23 anos e nunca tinha passado por nada parecido. Para mim foi uma tortura psicológica terrível, mas não houve nenhuma violência física”, conta Rafael. Foi o começo do fim. A cooperatiwva, atolada em dívidas e com salários atrasados, se viu sufocada como nunca antes. Empresas deixaram de anunciar e contratos para produção de informativos - entre outros serviços prestados - não foram renovados, e a Coojornal precisou fechar as portas. Essa crise também se estendeu aos jornalistas punidos, sendo que muitos deles demoraram meses para conseguir novos empregos.

A MORTE DE HERZOG

“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos ante atrocidades sofridas por outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”. Esta é a frase mais famosa do jornalista Vladimir Herzog - ou Vlado, como foi batizado -, e que, não por coincidência, resume muito bem sua essência e seus ideais. Durante o regime militar, foi torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, após se apresentar voluntariamente para depor, tragédia esta que tornou “Herzog” um nome central do movimento pela redemocratização do Brasil. Apesar de Vladimir ter nascido na cidade de Osijsk, parte da então Iugoslávia dominada pela Alemanha Nazista, em 1937, Vladimir era brasileiro. Vindo de uma família judaica, ele e os pais precisaram fugir para a Itália e, em 1942, emigrar para o Brasil. Aqui, se naturalizou brasileiro e encontrou, finalmente, um lugar para chamar de “Pátria Amada”. Criado em São Paulo, Vladimir Herzog estudou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciou sua carreira como jornalista em 1959, no jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época também, resolveu passar a assinar o nome Vladimir, por considerar que seu nome de batismo, Vlado, não era muito comum no Brasil. Mais tarde, começou DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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a trabalhar como telejornalista e em, 1965, foi contratado pelo núcleo brasileiro da BBC e se mudou para Londres. Lá, teve dois filhos como sua esposa Clarice: Ivo e André. Três anos depois retornou para o Brasil. Nesta mesma época do regresso, o governo brasileiro decreta o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), endurecendo ainda mais a ditadura militar. Entretanto, isto não intimidou Vladimir. “Colegas dele falaram assim ‘talvez seja melhor você adiar a sua volta, tá muito complicado, tá muito perigoso’ e ele falou ‘não, é mais um motivo para eu voltar para o Brasil, porque é o meu país e eu preciso ajudar a mudar esse quadro”, revela Ivo. Simultâneo a isto, de volta ao país, Vladimir voltou a exercer sua função de jornalista e passou também a ser professor de telejornalismo. Em 1975, foi escolhido por José Mindlin, então secretário de Cultura da cidade de São Paulo, para assumir a direção de jornalismo da TV Cultura, rede de televisão pública. Entretanto, o novo nomeado ao cargo não foi de grande agrado para políticos do partido de sustentação do regime militar, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

PRISÃO E MORTE

No dia 24 de outubro de 1975, quinze dias depois dos discursos, Vladimir é procurado por dois agentes em seu local de trabalho, com o objetivo de levá-lo para prestar depoimento referente sua suposta ligação com o PCB, que, na época, agia na clandestinidade. Entretanto, seus colegas de redação conseguiram negociar para que o jornalista se apresentasse voluntariamente somente na manhã seguinte. Como combinado, Vladimir chegou à sede do DOI-CODI às 8h, de onde não saiu com vida. Na época, o Exército Militar Brasileiro apresentou à família um óbito no qual constava morte por enforcamento mecânico, sustentando a versão de que Vlado havia se suicidado utilizando do cinto do macacão de presidiário. Além do óbito, também foi apresentado uma foto, que supostamente retratava o cenário em que o corpo foi encontrado. Na imagem, o jornalista aparece pendurado pelo pescoço em uma das grades de uma janela, em uma posição pouco favorável para se suicidar: com as per-

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nas dobradas tocando o chão. Em 2012, o jornal Folha de São Paulo publicou a reportagem “O instante decisivo”, onde Silvaldo Leung Vieira, autor da foto, admitiu que “tudo foi manipulado, e infelizmente” acabou “fazendo parte dessa manipulação”. “A família nunca acreditou. Minha mãe nunca teve absolutamente nenhuma dúvida. As pessoas que conheciam meu pai nunca tiveram nenhuma dúvida. Já existia um histórico do estado brasileiro inventar farsas sobre as pessoas que eles assassinavam”, conta Ivo. De acordo com ele, a principal certeza disso se dava pelo fato de o pai ser judeu e, conforme a religião, atentar contra a própria vida é um dos crimes mais graves que uma pessoa pode cometer. O sepultamento também foi uma grande prova contra a farsa. Menos de 48 horas após a morte, o rabino Henry Sobel, após tomar conhecimento do que foi constatado na preparação do corpo, descartou a versão apresentada pelo governo. Sendo assim, se recusou a permitir que Vladimir fosse enterrado às margens do cemitério, como manda a tradição judia em caso de suicídio.

MOBILIZAÇÃO DA POPULAÇÃO

A morte de Vladimir Herzog sensibilizou a população. Desde o enterro, centenas de pessoas acompanharam o caso, como retratou a fotógrafa Elvira Alegre, na ocasião em trabalho para o jornal alternativo Ex. No enterro, Ivo recorda que, mesmo com o atraso da avó mãe de Vladimir -, os funcionários receberam ordens diretas do exército para que o sepultamento fosse acelerado por medo que ocorresse algum ato político. “Minha mãe aos berros se colocou na frente do sepultamento e não deixou. Aí começou todo o processo da formação dessa heroína que é minha mãe e o fortalecimento do caso Herzog”, destaca. O ato ecumênico, realizado na Catedral da Sé, uma semana após a morte de Vladimir Herzog, também é um exemplo da mobilização da população. Na ocasião, mais de 500 policias estavam a postos para intervir caso houvesse qualquer tipo de tumulto e as ruas foram fechadas pelo então Secretario da Segurança Pública, Erasmo Dias, para dificultar o acesso ao ato. Porém, esses esforços não foram o suficiente para impedir que cerca de 8 mil pessoas

abandonassem seus veículos e seguissem a pé até a praça em frente a catedral e participassem do que se tornou a maior manifestação contra a ditadura desde 1964.

DESDOBRAMENTOS DO CASO

Em busca da verdade, a viúva Clarice Herzog não descansou desde aquele dia 25 de outubro de 1975. A primeira vitória veio em 1978, quando o juiz federal Márcio José de Morais emite sentença responsabilizando a União pela morte de Vladimir. Mas somente em 2013, após a criação da Comissão Nacional da Verdade, que a família recebeu um atestado de óbito corrigido, constando na causa da morte “lesões e maus tratos”. Atrás da abertura de inquérito da investigação da morte de Vladimir, a partir de 2009 a família também recorreu a procedimentos internacionais. Em julho de 2018 a Corte condena o Brasil por não investigar e o punir os responsáveis pelo assassinato e determina que o fato seja considerado um crime de “lesa-humanidade”. “Eu quero me orgulhar do Brasil. Eu quero me orgulhar de todas as suas instituições, inclusive das forças armadas. Mas eu não posso me orgulhar de uma que tenha assassinado meu pai. Eu preciso entender se eles acham que aquilo foi um erro, e então peçam perdão, ou se eles acham que aquilo está certo - e

ARQUIVO PESSOAL HERZOG


CELEIRO FOTO: KEVYN NUNES

DE REGIMES

JENNYFER SIQUEIRA, LARISSA PESSI E ADRIANO BAZZO

POR MAIS DE 36 ANOS FORAM GAÚCHOS QUE COMANDARAM O ESTADO BRASILEIRO. “LIDERANÇAS FORTES, DOTADAS DE CORAGEM E AUDÁCIA PESSOAIS BEM-DEFINIDAS”, ASSIM, O SOCIÓLOGO SIMON SCHWARTZAN DEFINE A CARACTERÍSTICAS DOS MILITARES QUE ERAM FORMADOS NO RIO GRANDE DO SUL. “Mesmo moribundo o soldado não tem direito de negar à Pátria, em seus dias difíceis, os serviços reclamados por ela”. Marechal João Propício Mena Barreto Em Porto Alegre, no ano de 1969, foi criado o primeiro aparelho repressivo do Exército Brasileiro e de toda a América do Sul: o Departamento Central de Informações (DCI). Subordinado à Secretaria de Segurança Pública do estado, surgiu antes mesmo de uma unidade do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) funcionar em território gaúcho. O objetivo do departamento, segundo a Subcomissão Verdade, Memória e Justiça, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, era centralizar as

ações de combate a grupos insurgentes. Seu primeiro diretor, Major Átila Rohrsetzer, defendia a tortura como método de investigação. Nenhum outro estado brasileiro teve um departamento de repressão submetido ao seu comando como o DCI. A forte presença militar no território é percebida ainda hoje. Segundo a assessoria de comunicação do Comando Militar do Sul, a região sul conta com um quarto do efetivo total do Exército Brasileiro, somando 54 mil oficiais. Além disso, possui uma das duas únicas escolas de cadetes do Brasil, o Colégio Casarão da Várzea, popularmente conhecido como Colégio Militar está localizado na região central de Porto Alegre.

SANGUE COMO FERTILIZANTE

O Rio Grande de Sul carrega a história de milhares de mortos em guerras e revoluções. Militares e cidadãos perderam as vidas em busca de poder, independência e ideais. Fatores sociais e geográficos fizeram com que o Rio

Grande do Sul se destacasse na cultura militar – muito antes do período ditatorial. A estrutura geológica de campanha proporcionou uma fronteira de fácil acesso aos países do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai). Nas guerras da Cisplatina (1825-28), do Prata (1851-52) e do Paraguai (1865-70), o contingente militar era majoritariamente formado por gaúchos. Houve ainda conflitos internos, como a Revolução Farroupilha (1835-45), a Federalista (1893-95) e a Revolução de 23. Por sua participação em eventos de luta armada, como o apoio a Revolução de 30, junto a São Paulo e Minas Gerais, Simon Schwartzman coloca o Rio Grande do Sul como uma das “Bases do autoritarismo brasileiro”, título de um de seus livros. O autor caracteriza a formação da sociedade gaúcha a partir da influência militar tanto na estrutura econômica quanto na organização social. A influência militar na estrutura econômica gaúcha também foi constatada pelo economista Luiz Roberto Targa, especialista em história regional, econômica e política do estado. No seu DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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artigo “Rio Grande do Sul, fronteiras entre duas formações histórias”, Targa relata a existência de um projeto imperial para a formação de uma classe baseada em colônias militarizadas, rurais, de pequena propriedade e de trabalho livre (não escravista). Essa força e autonomia garantiria o desenvolvimento interno necessário para promover a industrialização gaúcha. Na época, as economias dos demais estados eram baseadas em latifúndios e no sistema escravista. “A grande sacada foi investir nos pequenos proprietários, que com os investimentos, começaram a vender para o restante do país”, analisa Targa. A partir disso, o estado saiu do isolamento econômico por meio da indústria do charque, produto que permitiu a integração ao mercado nacional. O antropólogo Ruben George Oliven destaca as doações de terras feitas pela coroa portuguesa a estanceiros - que, muitas vezes, eram militares aposentados - como um dos meios de defesa do território gaúcho. Os proprietários ocupavam o território cedido, nela cultivavam e, assim, as defendiam. Mais à frente os pequenos produtores se tornariam os positivistas opositores aos grandes estancieiros, chegando ao poder através do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). “Isso permitiu que no Rio Grande Sul houvesse um partido liberal, que não saiu do império, e um partido republicano autônomo, diferente do que ocorreu no restante do Brasil”, explica Targa.

TERRA DE DITADORES

Em “A metafísica do latifúndio: o ultra-reacionário Oliveira Viana”, o historiador José Honório Rodrigues declara que, assim como Getúlio Vargas, diversos ditadores foram gaúchos. Quando não o eram, haviam sido educados na Escola Militar de Porto Alegre, chamada por ele de “escola dos ditadores brasileiros”. A política gaúcha foi marcada por uma série de governos autoritários. Por 38 anos, políticos do PRR - chamados pejorativamente de caudilhos (líder de caráter populista que exerce seu poder por vias autoritárias) - governaram o Rio Grande do Sul. O tripé do castilhismo - em referência ao primeiro líder do partido, Júlio de Castilhos - baseava-se na pureza moral do candidato, em eliminar disputas político partidárias e

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dar condições para o estado proporcionar a modernização da sociedade. Após a morte de Castilhos, o positivista Augusto Borges de Medeiros assumiu a presidência do Rio Grande do Sul, governando por quase 30 anos ininterruptos e reelegendo-se por meio de eleições fraudulentas. No entanto, o regime não era contra o povo. Segundo Luiz Roberto Targa, “era uma ditadura contra a classe dominante, os latifundiários”. Em 1928, impedido de se reeleger, Borges de Medeiros abre caminho para Getúlio Vargas, também do PRR, mantendo a hegemonia do partido em território gaúcho. Dois anos depois, ocorre a Revolução de 30, liderada pelo Rio Grande do Sul. Inicia-se a Era Vargas na República, com a tomada do quartel-general da 3ª Região Militar, atual Comando Militar do Sul. A frase “Rio Grande do Sul de pé pelo Brasil” proferida por Getúlio Vargas marca uma postura bem patriota. Segundo Ruben George Oliven, de tempos em tempos, o gaúcho teria a ideia de que seria o responsável por “botar o país em ordem”. O Coronel de Infantaria e Estado-Maior reformado Luiz Ernani Caminha Giorgis destaca que, no passado, já se defendeu a ideia de que o militar gaúcho era o melhor do Brasil, mesmo que hoje isso não ocorra mais. “Realmente o gaúcho, por sua formação, tradição histórica, passado de lutas aqui dentro contra espanhóis e internamente, parece que é mais bem preparado para a carreira militar. Mas a gente não pode dizer que nós somos melhores que os outros”, esclarece. Vargas leva a ditadura sulista a nível nacional. “De um lado fez uma série de reformas sociais e, por outro, ele foi um ditador entre 37 e 45”, explica Oliven. Entre suas medidas, estavam a extinção de partidos políticos, o fechamento do Congresso Nacional e a censura à imprensa. Hermes da Fonseca, Arthur da Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel são alguns dos exemplos de militares que deixaram o Rio Grande do Sul para espalhar por todo o país as características peculiares de governar. Durante seus mandatos encontraram apoio por seguir os valores aprendidos enquanto oficiais das Forças Armadas. Segundo o Coronel Caminha, disciplina e hierarquia são os pilares básicos do Exército Brasileiro. “Os militares elei-

tos levam as instituições para as quais foram remanejados os mesmos princípios que eles aprenderam nas Forças Armadas”, declara.

“NÃO PODEMO SE ENTREGÁ PROS HOME””

A palavra Gaúchos surge para identificar os errantes e contrabandistas de gado. O símbolo da identidade gaúcha acabou ganhando uma aura heroica de guerreiro campeiro. Em seu artigo “Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida”, Ruben George Oliven aponta uma constante atualização de discursos de crise devido ao isolamento geográfico e a perda de influência. “Nós somos brasileiros, mas nós somos gaúchos. Nós somos uma forma peculiar de ser brasileiro”, analisa. O antropólogo avalia que, mesmo após a Revolução Farroupilha, o sentimento do gaúcho de ser brasileiro por opção permanece pela “facilidade” de separar o estado do país. No entanto, Luiz Roberto Targa enxerga essa avaliação como equivocada. Para o historiador e economista, cada estado é uma sociedade diferente, possuidor de características econômicas, formas de trabalho, pensamento e ideologias próprias. “O gaúcho é diferente porque ele vai ter um papel fundamental no desenvolvimento do país”, esclarece. A professora da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Teresa Marques explica que a elite política rio-grandense teve um papel de oposição ao golpe. O discurso de uma esquerda armada, apoiado na realidade da Guerra Fria, surge em um período em que a esquerda democrática chega ao executivo com a posse de João Goulart, apoiado por Brizola. Para a doutora em Ciência Política, a presença do governador gaúcho no Uruguai tornou o país o principal pólo de exilados brasileiros e incentivou o governo a criar um serviço de inteligência no exterior precursor da Operação Condor. O presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke chama atenção para o fato do estado ter liderado a primeira resistência ao golpe. Ele conta que a guerrilha saiu de táxi de Montevidéu e tomou a cidade de Três Passos com a ajuda de um coronel motivado pelo desejo de não deixar a


ATORES

DEPOIMENTOS

VÍRGULAS NA HISTÓRIA

O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, único oficial militar apontado oficialmente pelo sistema judiciário como torturador, dedica um capítulo inteiro ao estado gaúcho em seu livro de memórias “Rompendo o Silêncio”. Em “No Rio Grande do Sul um outro modelo”, o oficial natural de Santa Maria aponta a fronteira com a Argentina e o Uruguai como o principal motivo para o estado contar com umas das maiores presenças de “terroristas” em solo nacional, depois de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Agora, o inimigo era outro. E, por estratégia, o posicionamento militar se fez necessário. Ainda por ser rota de fuga de opositores, o Rio Grande do Sul foi essencial na atuação da Operação Condor, quando o governo militar brasileiro fechou acordo com ditaduras em países vizinhos para perseguir “terroristas”. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o Rio Grande do Sul está no topo da lista de estados com o maior número de graves violações dos direitos humanos, com 39 estabelecimentos espalhados por seu território. O Coronel Caminha defende que não se pode responsabilizar a instituição pelas torturas durante o período ditatorial: “Foram de grupos ARTUR DA COSTA E SILVA PRESIDENTE ENTRE 1967-1969 NATURAL DE TAQUARI, RS

TO: REPRODUÇÃO SITE JAIRO NOGUEIRA.NORADAR

de militares e individualmente que praticaram excessos”. Como presidente da unidade gaúcha da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, Caminha auxiliou a vereadora do município de Porto Alegre Mônica Leal no processo de retorno do nome da Avenida Castello Branco. O coronel chama o período ditatorial de “Revolução de 64”. “Teve que prender muita gente, expurgar muita gente, inclusive das Forças Armadas. (...) Foi feita uma limpeza e se organizou o país”, defende. O nome da avenida havia sido trocado para Legalidade e Democracia, após aprovação na Câmara de Vereadores da capital. De acordo com o Livro “Branco da Defesa Nacional do Brasil”, após as recentes participações das Forças Armadas em Operações de Paz e em operações de Garantia da Lei e da Ordem, ficou evidente a necessidade de abordar os direitos humanos nas instituições de ensino da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Por essa razão, em 2011 o Ministério da Defesa encaminhou às Forças Armadas diretrizes de um programa especial sobre o tema para ser implantado no ano seguinte, direcionado a militares que participarão das operações. O programa também deveria ter sido implantado nas escolas militares de todo o país, a partir de 2013, de forma a cumprir convenções e tratados internacionais. “Na política, se tu acender todos os ERNESTO BECKMANN GEISEL PRESIDENTE ENTRE 1974-1979 NATURAL DE BENTO GONÇALVES, RS

refletores, falta luz ainda. Tem que estar muito claro”, provoca Jair Krischke. O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos conta que abordar a questão da ditadura no Rio Grande do Sul não é uma tarefa fácil. Considera não se falar sobre o assunto uma marca principal no estado. “Até hoje causa medo nas famílias. Então, não é dita-branda se o pavor se estabeleceu, o terror”, afirma. Provas disso ficaram evidentes na Comissão Nacional da Verdade. O Rio Grande do Sul foi o único estado em que o Exército e a Marinha não localizaram os documentos ultrassecretos solicitados do DOPS e da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC). Como forma de resgate dessa história, a Assembleia Legislativa estadual elaborou a coletânea “A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985)”, organizada pela Escola Legislativa em parceria com o departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Um dos capítulos, escrito pela professora do Departamento de História e do PPG de História e Relações Internacionais da UFRGS Claudia Wasserman, conta qual teria sido o fim dos tais arquivos não localizados: foram incinerados em 1976 a mando do governador do estado Amaral de Souza quando o DOPS foi desativado.

FOTO: REPRODUÇÃO SITE UOL

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DA

VERDADE,

E

ENTREVISTAS

POR EM

COMISSÃO

NACIONAL

DOCUMENTOS REALIZADAS

OFICIAIS PELA

FARDAS DA RESISTÊNCIA BRUNA JORDANA, GIULIA MELLO, VICTORIA GARCIA

“Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição de morrer pela pátria e viver sem razão”. A canção “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, retrata um dos períodos mais sombrios da história brasileira: a Ditadura Militar. Naquela época, não foram todos os oficiais que atuaram sob as ordens de quem governou o país. Alguns militares ousaram se opor ao regime ditatorial ao mesmo tempo em que sustentavam a farda das Forças Armadas.

EMÍLIO GARRASTAZU MÉDICI PRESIDENTE ENTRE 1969-1974 NATURAL DE BAGÉ, RS

DOSSIÊ INVESTIGATIVO

À

FEITA BASEADA

REPORTAGEM.

FOTO: REPRODUÇÃO SITE SUL 21

intervenção completar um ano sem ter enfrentado oposição.

ARTÍSTICA,

PROFISSIONAIS,

FOTO: KEVYN NUNES

REPRODUÇÃO

M

anoel andava a passos largos naquela tarde típica de verão porto-alegrense de 1966. Era sexta-feira, 11 de março. O sargento, expulso do exército por conta de suas escolhas políticas, levava consigo cerca de dois mil exemplares de recortes de jornais que expressavam os dizeres: “Fora Castello, abaixo a Ditadura”. O material, feito por ele naquela ocasião, foi sua última ação política na Capital. Os panfletos seriam entregues a Edu Rodrigues - que mais tarde foi descoberto como informante do Serviço Nacional de Informação - e distribuídos em um protesto contrário à visita de Castello Branco a Porto Alegre. Por um golpe de azar, Manoel foi pego ali mesmo, em frente ao Auditório Araújo Vianna, no Parque da Redenção, se-

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questrado por dois militares da polícia do exército. Mal sabia ele que aquela seria a última vez que sentiria o gosto da liberdade. Após a captura, o então sargento do Exército Manoel Raimundo Soares foi levado ao Palácio da Polícia, situado na Avenida João Pessoa, onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) na Capital. Ali ficou preso por mais oito dias, até que, em 18 de março, foi levado à Ilha do Presídio, hoje poeticamente chamada Ilha das Pedras Brancas. Em uma carta escrita em 18 de março de 1966, o sargento relembra esses primeiros dias: “Sujo, barbudo, com a camisa rasgada, todo machucado, fui trazido para esta ilha, onde estou até hoje”. Na primeira correspondência destinada a sua esposa Maria Elisabeth Chal-

lup Soares - carinhosamente chamada de Betinha -, datada de 15 de abril de 1966, Manoel ilustra os momentos vividos após sua prisão. “Fui levado para o quartel da Polícia do Exército, onde fui ‘interrogado’ durante duas horas e depois fui levado para o DOPS. Estou bem. Nesta ilha me recuperei do ‘tratamento’ policial”. Cinco meses depois de seu sequestro, o soldado, embora estivesse em seu pior estado de saúde, continuara resistindo aos dias obscuros vividos no interior do DOPS. Cinco meses em que seu corpo foi exposto a diversas torturas físicas e psicológicas, como demonstra a última carta de Manoel enviada a esposa, em 10 de julho de 1966: “Ainda estou vivo. A saúde que havia chegado ao meu corpo, partiu, deixando a normalidade que você tão bem conhece. Espero de todo o coração que você te-


nha recebido as cartas anteriores. Esta é a de número nove. Penso que a estas horas você deve estar chorando”. As cartas citadas nesta reportagem só atravessaram o Guaíba por ajuda de outros presos políticos. Por elas, é possível perceber a dor, a saudade e a sua vontade de continuar vivo. Além de ser exilado no presídio, Raimundo era obrigado a conviver com ex-colegas de farda, que agora lhe aplicavam as torturas. Apenas um fator colocava aqueles militares em lados opostos: a luta contra e a favor do regime militar. Era uma tarde de quinta-feira, 24 de agosto de 1966. O agricultor Leci Batalha e o empreiteiro de granja João Peixoto, moradores da Ilha das Flores, caminhavam próximo ao Rio Jacuí. Em questão de segundos, os moradores interromperam o seu percurso para observar de perto um corpo boiando nas águas do rio, entre taquareiras, próximo a uma ponte. O cadáver apresentava as mãos amarradas às costas com tiras da própria camisa, os bolsos laterais da calça puxados para fora e apenas um pé calçado com um sapato marrom. À primeira vista, já era possível identificar que o corpo exibia marcas de tortura e violência. O agricultor e o empreiteiro chamaram as autoridades locais. Manoel Raimundo Soares teve um desfecho trágico: foi morto por saber demais. O único crime que havia come-

tido foi ter protegido o esconderijo de cerca de 20 soldados que estavam em Porto Alegre para discutir junto a Leonel Brizola, ex-governador do Estado, alternativas para acabar com o período ditatorial. Sonhador e autodidata, Manoel ficou conhecido como o sargento de mãos amarradas. Até hoje ela é considerado por muitos colegas um herói que defendeu até o seu último suspiro as Reformas de Base propostas por João Goulart, à época presidente do Brasil. O acontecimento foi um dos primeiros casos de tortura e morte por parte dos órgãos de repressão sobre o qual se teve notícia na época. Anos depois, em 1973, sua viúva ingressou com uma ação judicial, requerendo da União ressarcimento das despesas com funeral e indenização por danos morais. A sentença final, em um processo arrastado e com vários recursos, só saiu em 2005. Ela morreu cinco anos depois, sem receber a reparação. Manoel não foi o primeiro e nem o último militar morto pelo regime antidemocrático protagonizado por seus próprios colegas. Antes dele, Alfeu de Alcântara Monteiro, tenente-coronel do Exército Brasileiro, havia sido o primeiro militar vítima da Ditadura no Rio Grande do Sul. No dia 28 de agosto de 1961, ele ajudou a impedir o bombardeio ao Palácio Piratini, contrariando uma ordem do Governo Federal e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Orlando Geisel.

CARTAS DE MANOEL ENVIADAS À ESPOSA ELISABETH | ARQUIVO PESSOAL

O tenente-coronel foi morto no Quartel General da 5ª Zona Aérea, em Canoas, no dia 4 de abril de 1964. Conforme depoimentos de quatro oficiais presentes, teria resistido à voz de prisão. O preço de sua resistência foi um tiro nas costas, efetuado pelo coronel aviador Roberto Hipólito da Costa. No ano seguinte, Hipólito foi condecorado com a Medalha do Pacificador, destinada a agentes encarregados da repressão do regime militar. Já Alfeu, só foi reconhecido como a primeira vítima militar da ditadura no Estado mais de cinquenta anos depois.

vo politicamente. Nesse a gente dá um tiro e diz que resistiu, porque eles já estavam preparando quem recolher na noite do golpe.”, relata Wilson. Hoje, aos 87 anos, o tenente vermelho, como era chamado pelos militares, recorda-se com facilidade como eram formados os oficiais do regime: “Os caras ficavam muito orgulhosos quando eram selecionados para fazer o curso nas escolas da América. Eram oficiais e até mesmo graduados. Eles iam para lá aprender o combate e a revolta popular, e lá eles aprenderam também os métodos de tortura. Eles voltaram para ser

tiu que havia perdido a luta e optou por deixar o Brasil. José Wilson viveu cerca de sete anos na clandestinidade no Uruguai. Sem paradeiro, o tenente passou todo este tempo pernoitando em casas de desconhecidos até que, em 1971, resolveu voltar a sua terra natal.

LEMBRANÇAS DO DOPS

Em 1971, José Wilson da Silva decidiu regressar ao Brasil. Ele entrou em contato com sua familiares, pedindo que fosse sondada a possibilidade de retornar ao País e como seria tratado.

ELE SABIA QUE O GOLPE ESTAVA POR VIR

Theodomiro prendia a respiração para não ser descoberto. O primeiro sargento era o encarregado da noite para cuidar dos armamentos que se encontravam em um pavilhão de madeira, no 19º Regimento de Infantaria, em São Leopoldo. Apenas uma parede o separava de militares que discutiam os próximos rumos do país. Foi quando ouviu o capitão Iven Chaves Rosa expressar-se irritado: “Este país só vai pra frente no dia em que for entregue de papel passado aos Estados Unidos para que o endireite!”. Era fevereiro de 1963. O episódio é narrado pelo tenente José Wilson da Silva no livro “O Tenente Vermelho”, publicado em 1987. O rapaz corria apressado pelas ruas em direção a residência do tenente Wilson para contar-lhes o que tinha acabado de ouvir. Wilson, segundo tenente do quadro de oficiais, ouviu com atenção o jovem informante. “Nós já estávamos prevendo o desenlace do golpe, a gente estava sentindo que vinha”, conta o tenente. Foi nesta mesma reunião que três oficiais conversavam sobre o que deveriam fazer com os militares que estavam na lista dos chamados “comunistas”. Correndo os olhos por aquela folha de papel, eles foram traçando o destino daqueles que se opunham ao regime militar. Quando chegaram ao nome do tenente Wilson, perguntaram-se o que fazer com “esse tal tenentinho de merda?”. “E esse tal de tenentinho era eu. Eles tinham muita raiva de mim, eu era muito ativo na época, era militante, atiDOSSIÊ INVESTIGATIVO

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ARQUIVO PESSOAL JOSÉ WILSON DA SILVA

os torturadores brasileiros”, conta. José Wilson da Silva aproveitou-se da proximidade que tinha com o General Assis Brasil e com Leonel Brizola para denunciar por diversas vezes os indícios que sinalizavam o início da tomada de poder por parte dos militares. Em uma das tentativas, recorda-se Wilson, o chefe da Polícia Federal no RS, coronel brigadiano Almeida Prado, entregou ao então presidente um relatório sobre as atividades dos militares no Estado. Após o recebimento, o presidente chamou o general Assis Brasil e disse: “Olha, general, acho que o coronel está vendo ‘chifre em cabeça de mula’”. Segundo Wilson, o problema maior era o que próprio presidente não acreditava e considerava muitos dos militares como seus amigos. Depois de tantas tentativas, sen-

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A resposta foi: como um preso político. Quando desembarcou em Porto Alegre, Wilson foi levado diretamente ao DOPS, onde ficou cerca de trinta dias. Embora tenha esperado por algo pior para aquele período, o tenente relata ter recebido um tratamento normal por parte dos militares. Hoje ele avalia que só escapou da tortura por ser tratado pela imprensa como o primeiro político exilado que regressava, o que gerou uma atenção para o governo, que procurava criar uma imagem de ser democrático. Para eles, era o início do “milagre”. “Quando eles queriam torturar presos, nos infames quartos secretos da parte dos fundos, retiravam-me para as salas e dependências da frente até altas horas da noite. Cheguei a localizar um quarto à esquerda, no fundo do corre-

dor longitudinal, onde seria o ‘gabinete de tratamento’”, relata. Em 15 de junho, ele foi transferido para a companhia de guardas, situada na rua Vieira de Castro. Lá, ele ficou em um quarto de enfermaria, chaveado, acompanhado por guardas armados com fuzis automáticos. Sua condenação estava a caminho. Foi na 5ª auditoria que Wilson recebeu a informação de que havia sido condenado a 16 meses de prisão, por segundo ele, um envolvimento imaginário. “Pois se algo fiz, e pouco, com relação àqueles atos, foi o de não permitir que outros companheiros se engajassem”, relata. Este foi o começo de um período tortuoso e cercado de dias difíceis para o tenente, que começou a passar por maus momentos e provocações. A cada tentativa de se explicar, os oficiais tomavam como rebelde sua postura e faziam de tudo para provocá-lo. O objetivo era que ele reagisse para que eles tivessem enfim um motivo para “baixar o pau”. Como prova de resistência, o tenente fez greve de fome. Ao lhe entregarem alimentos, Wilson os devolvia intactos. Com isto, vinham mais ameaças. Não aceitei as provocações, mas também não dobrei a coluna. As provocações tinham por fim castigo físico igual ao que faziam com outros, que, não se dobrando, sofreram todos os maus tratos possíveis”, conta Wilson. Após receber o comunicado de que havia sido absolvido e poderia voltar à ativa como militar, Wilson foi pego de surpresa alguns meses depois. Ele recebeu a acusação de “ter feito política brizolista e de ter participado da política dos sargentos” além de “ter tentado fazer Jango permanecer no país nos últimos momentos de seu governo”. Foi aí que o tenente sentiu que havia chegado a hora de sua exclusão. Embora tenha procurado por advogados, ele acabou sendo “enquadrado” no Ato Institucional número 5, o AI-5, o que lhe trouxe imensas dificuldades. Nesta condição, José Wilson procurou trabalhar por conta própria em diversos ramos, porém o fato de ser militar cassado amedrontava os empregadores. “A punição política tinha por fim eliminar da sociedade o perseguido, encaminhando-o à marginalidade ou à luta clandestina”, escreve em seu livro. A libertação só veio após o surgimento da bandeira da Anistia, através


O BOMBARDEIO INTERROMPIDO

Foi com dezessete anos que Almoré Zoch Cavalheiro decidiu sair de casa para entrar para as forças armadas. O sargento serviu no 9º Regimento de Infantaria (RI), em Pelotas e depois veio para Porto Alegre. Durante a Campanha da Legalidade, Almoré também lutou contra a repressão. O sargento confessa que na época não tinha consciência do que estava fazendo ao se filiar a um partido comunista: “Era muito perigoso. E eu não tinha essa consciência. Tinha perigo de ser eu expulso por saberem que eu era de esquerda”. O General José Machado Lopes, Comandante do Terceiro Exército (que na época compreendia aos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) acabou por apoiar a Legalidade e rechaçar as ordens de seus superiores, que visavam um bombardeio ao Palácio Piratini, sede do Governo do Estado. Em seus discursos Brizola convocava a população para as ruas, de modo que na ocasião, pelo menos trinta mil pessoas estavam acampadas na Praça da Matriz, em frente ao Palácio. Por todo o Estado, pelos quartéis do Terceiro Exército e pelo País, militares, políticos e civis posicionavam-se a favor da democracia e do cumprimento da Constituição. Almoré destaca a ação dos militares da Base Aérea de Canoas, na época Quartel General da 5ª Zona Aérea, que receberam ordens de bombardear o Palácio Piratini. Recusando-se a cumprir ordens absurdas, os sargentos e suboficiais da base desarmaram os aviões e esvaziaram os pneus. A atitude levou os revoltosos a prisão e posteriormente a transferência para outros postos de trabalho. “Qual será o tamanho da dívida de gratidão que o povo brasileiro, e especialmente o de Porto Alegre, tem para com aqueles sargentos, suboficiais e oficiais da Base Aérea de Canoas?”, pergunta-se.

A IMPORTÂNCIA DA COMISSÃO DA VERDADE

O Defensor Público aposentado, Carlos Frederico Barcellos Guazzelli, foi

Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (CEV/RS) de 2012 a 2014. “Na minha longa carreira de advogado e agente público, por mais de quatro décadas, a CEV/RS talvez tenha sido a experiência mais marcante”, relata Guazzelli. “O aprendizado que tive durante a atuação na Comissão sobre a resistência à ditadura e sua repressão no Brasil e, em especial no nosso estado, faz-me pensar que, na verdade, eu até então pouco sabia sobre o tema”. A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, teve por finalidade expressa reconstituir a história das graves violações a direitos humanos praticadas no Brasil, especialmente durante o regime ditatorial. Para Guazzelli, as comissões possuem uma função importante em nossa sociedade. “O próprio fato de que haja, em nosso país, atualmente, pessoas que pedem a volta da ditadura, demonstra não só a importância, como a necessidade das chamadas comissões de verdade”, comenta. Neste processo, portanto, o objetivo das Comissões da Verdade é fazer a reconstituição histórica dos crimes contra a humanidade praticados, a fim de contribuir para sua responsabilização. “Graças ao trabalho destas Comissões, milhares de pessoas, a maioria delas sequer nascida no período, puderam tomar conhecimento, pelos depoimentos e documentos entregues pelas vítimas, testemunhas e até mesmo seus autores, das graves violações aos direitos humanos praticadas no estado e no país”. Os depoimentos dos militares foram fundamentais para que a comissão conseguisse montar uma parte do quebra-cabeça. “Para a realização foi decisiva a participação do Capitão José Wilson da Silva, que desde a criação da Comissão se ofereceu para colaborar com seus trabalhos, inclusive doando livro de sua autoria, no qual são narrados importantes acontecimentos históricos, especialmente aqueles ligados ao movimento dos sargentos”, afirma.

EXPERIÊNCIAS E MARCAS

A experiência marcante de Carlos Guazzelli na CEV/RS tem um motivo de ordem subjetiva e emocional: “o impacto tremendo dos relatos que nos foram feitos tanto nas audiências públicas quanto nos depoimentos prestados na Comissão”, relata. “Uma coisa é saber que alguém foi torturado, ou mesmo

ler sobre os detalhes da tortura; outra, bem diversa e muito mais impressionante, é ouvir, de viva voz, as narrativas das próprias vítimas, testemunhas e até mesmo dos violadores”, completa. A Revista Dossiê tentou contato com o Comando Militar-Sul para comentar sobre as ações e histórias descritas pelos militares nesta matéria, porém não houve retorno até o fechamento da reportagem. Homens foram presos, torturados e até mesmo mortos por defenderem a democracia em um momento onde deveriam ser protagonistas. Armados de seus ideais, eles fizeram o que estava em seu poder para defender e restaurar a democracia no país. “Nas escolas, nas ruas campos, construções, somos todos soldados, armados ou não. Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não”. A música de Geraldo Vandré conquistou a segunda colocação do Festival Internacional da Canção de 1968. No entanto, virou símbolo de uma luta que colocou em lados opostos não só militares, mas toda a população brasileira. NO TOTAL, FORA 6591 MILITARES CASSADOS DURANTE A DITADURA

2214 MARINHA

800 EXÉRCITO

237 POLICIAIS ESTADUAIS

REFORMADOS 1312 MILITARES VÍTIMAS DA DITADURA FONTE: ONG MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS (MJDH) DOSSIÊ INVESTIGATIVO

INDÍGENAS: O LADO OCULTO DA DITADURA ALDREY DORNELLES, LÚCIA HAGGSTROM E MARIANA PAZ COMO RESULTADO DESSAS POLÍTICAS DE ESTADO, FOI POSSÍVEL ESTIMAR AO MENOS 8.350 INDÍGENAS MORTOS NO PERÍODO DE INVESTIGAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. [...] O NÚMERO REAL DE INDÍGENAS MORTOS NO PERÍODO DEVE SER EXPONENCIALMENTE MAIOR, UMA VEZ QUE APENAS UMA PARCELA MUITO RESTRITA DOS POVOS INDÍGENAS AFETADOS FOI ANALISADA E QUE HÁ CASOS EM QUE A QUANTIDADE DE MORTOS É ALTA O BASTANTE PARA DESENCORAJAR ESTIMATIVAS. (CNV, 2014B, P. 199).

3340 FAB

FOTO: LÚCIA HAGGSTROM

da Lei número 6.683, de 1979, na qual o tenente conseguiu voltar a ter os mesmos direitos que todos os outros cidadãos brasileiros.

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Minha avó se casou com um agricultor branco. Ele impedia ela de falar a nossa língua. A minha mãe só aprendeu a cultura porque a minha avó ensinava ela escondido”. Esse é apenas um dos relatos da violência sofrida pelos indígenas durante o período da ditadura ouvidos pela reportagem durante uma visita a um território indígena em Nonoai, município localizado há cerca de 430 km de Porto Alegre. Na entrada da cidade, um monumento de um homem empunhando uma lança serve como demarcação do

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território. A área de mata destinada aos indígenas disputa espaço com as grandes plantações de soja, milho e trigo. Além das plantações, uma construção que funciona como cadeia também parece deslocada ao ambiente. Herança do período militar, a manutenção das cadeias revela o profundo impacto do período para a cultura indígena. O legado que a ditadura deixou nas aldeias indígenas não pode ser facilmente apagado, o reflexo disso está, por exemplo, nas lideranças implantadas durante o regime. Capitão e major são algumas das patentes que permanecem

presentes nas aldeias. Jorge Garcia, índio Guaraní e atual morador da Reserva Indígena de Nonoai, conta que os castigos da época eram uma forma de disciplina coletiva. Expostas para o restante da aldeia, as ações de repressão passavam a mensagem de como ocorrem as diferentes torturas realizadas na época. Em 1967, o Relatório Figueiredo, em mais de sete mil páginas, descreveu as violências praticada por latifundiários e pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) contra os povos nativos de diversos postos dentro do Brasil. Jader de Figueiredo Correia foi o Procurador da República responsável pelo documento que descreve diversas denúncias feitas sobre o período em que o SPI era responsável pelos postos.

O TRONCO

Tanto nos documentos como também entre as testemunhas encontradas pela reportagem, a menção ao “tronco” é bastante frequente. Diferente do utilizado para castigar negros durante o período escravocrata brasileiro, o instrumento implantado nos postos indígenas era composto por duas taquaras fincadas ao chão. Logo depois elas eram


pensa de cabeça para baixo. “Quando o sangue subia pra cabeça, com o pé e a mão enforcados, que ficavam presos, e ele tava preteando, já, pra morrer, aí tiravam ele de lá. Nunca deixaram morrer, a polícia ficava cuidando até quando ele não aguentava mais”, relatou Garcia que atuou na polícia indígena durante o período.

“ESCRAVIDÃO”

À época, quem representava todas as populações nativas no Brasil era o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), um órgão governamental gerido por militares não índios. Durante a gestão do SPI, tribos distintas foram aglomeradas em grandes “postos” como a “Reserva de Nonoai”, comandados por representantes do regime. No Rio Grande do Sul havia quatro postos, três deles ainda existem. Nos documentos analisados, Guarita e Nonoai aparecem constantemente. A fuga dos postos era enquadrada como uma espécie de deserção, insubordinação e oposição às autoridades do posto. À

época, qualquer expressão de discordância com o governo era tida como crime. A acusação mais recorrente feita pelo povo indígena é o regime de trabalho ao qual eram submetidos em todo o país. “O chefe de posto fazia uma lavoura só e aí os índios iam todos lá. Mas se ele não ia, no outro dia ele tava preso” revela o atual Capitão do posto, Darci Salvador - que é Kaingang. Outro ponto revelado nos documentos é a falta de assistência sanitária ou social. As mulheres também eram obrigadas a trabalhar na lavoura, o que era comum em diversos postos indígenas do Estado. “As indígenas que tinham tido nenê novo há três ou quatro dias, ela era obrigada a ir pra lavoura e tinham que deixar essa criança numa sombra”, lembra Eli Fideles antigo morador da reserva. O documento revela a morte de uma índia devido ao esforço do parto e a rotina pesada na lavoura. Apesar da carga de trabalho e das condições insalubres, os índios se alimentavam do “panelão”, comida semelhante a lavagem de porco. Outros relatos denunciam que os trabaILUSTRAÇÃO: HEITOR SIMÕES

pressionadas uma contra a outra prensando os pés da vítima. Alguns relatos da utilização dessa ferramenta constam no Relatório Figueiredo. “O índio João Crespo teve a perna fraturada em virtude da utilização do referido ‘tronco’”. Segundo Jorge Garcia, que acompanhava a polícia na época, “o Joãozinho Crespo tinha fama de ser briguento” e por isso teria sido submetido ao castigo. Ele conta que a prática era muito empregada em casos de crimes violentos. Para Amanda Oliveira, historiadora formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o método “era um instrumento que servia para aleijar as pessoas” esclareceu. Ao ser perguntado sobre como o tronco funcionava, Eli Fideles descreve como a tortura ocorria. “Conforme a tua desobediência era colocado uma perna, se fosse um pouquinho mais grave eles colocavam as duas. Então com isso saia sangue pelas unhas, saia sangue pelo ‘garrão’ (calcanhar), porque ali o sangue para, enforca a perna, e ali eles ficavam dois dias... três dias... Depois que saía dali, iam pra uma enfermaria e lá ficavam até se recuperar”, relatou. Outro método muito comum de tortura usado pelos militares era o “pau-de-arara”. A técnica consistia em prender pernas e braços juntos aos tornozelos de forma que se entrelaçassem. Transpassando uma taquara por entre os joelhos e cotovelos, a vítima era sus-

lhadores eram alimentados com comida de cachorro. Ainda no relatório Figueiredo constam outras denúncias de trabalho escravo. Na reserva da Guarita ainda existe um açude que foi construído com mão de obra indígena. Em um trecho da denúncia, um índio Kaigang revela que “o açude existente em frente à casa do chefe do posto foi feito pelos índios com grande esforço e sem pagamento”. Nesse sistema, os povos nativos não podiam deixar seus postos e, se fossem encontrados fora dessas determinadas localidades, eram levados para a reserva mais próxima e condenados a penalidades físicas. Com a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), que substituiu o SPI ainda no governo militar, foram emitidos documentos conhecidos como portarias que permitiam que indígenas transitassem fora dos postos por períodos pré-estabelecidos. A historiadora alertou que não é possível confiar plenamente nos relatos. “O problema é que vários parlamentares que participaram da investigação eram ligados ao ruralismo, vários deles eram grandes fazendeiros da região”, argumenta. Ela destaca que talvez nunca se saiba realmente o que ocorria na época, e o que era uma estratégia institucional utilizada por esses parlamentares donos de fazenda, já que “muitos parlamentares falavam da necessidade de acabar com o SPI para poder fazer um avanço sobre as terras tradicionalmente ocupadas”.

CADEIA

O TRONCO ERA USADO POR MILITARES PARA TORTURAR INDIGENAS DURANTE A DITADURA DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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Durante o período em que a SPI era responsável, a prisão era uma das punições aplicadas em caso de ausência ao trabalho. “Eram celas minúsculas de poucos metros quadrados, em que a pessoa não conseguia nem se sentar nem deitar. Ela tinha que passar dias de pé ali dentro, fazer todas as necessidades”, explica a historiadora, que estuda o tema em seu mestrado. Em Nonoai, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a cela se encontrava nos estábulos. Segundo a descrição, eram celas com dimensão de dois metros por um e trinta, sem iluminação, sem aeração e onde se concentrava o mau cheiro da podridão dos estábulos e cavalariça. Eli Fideles relata a sua experiência com esse tipo de pu-

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nição “Se tava frio, enfrenta o frio com a tua coragem, nem tinha roupa. Se tava calor, tu enfrentaria do teu jeito. E eram assim as condenas”, conta. Em um trecho do relatório Figueiredo, na reserva situada em Cacique Doble havia duas cadeias como as de Nonoai. Quando a Funai assumiu, elas foram demolidas, dando lugar ao que Lourinaldo Valderez Rodrigues Veloso qualificou em seu depoimento como um “xadrez mais humano”. As tais instalações mais humanas eram um pouco maiores, o que permitia que o indivíduo pudesse sentar. Além de passarem a contar com um balde para as necessidades.

“A NOSSA HISTÓRIA É UMA HISTÓRIA QUE A GENTE NÃO PODE ESQUECER”

A frase, proferida por Eli Fideles, evidencia a luta dos Kaingang para a manutenção da sua identidade e memória. Por transmitirem sua cultura através da oralidade, de geração em geração, o que fez com que a sobrevivência de seus costumes fosse ainda mais difícil de resistir às constantes proibições impostas pelos chefes de posto. Fideles relata ainda que, mesmo nos dias de hoje, existem índios que só sabem falar português e não mais a língua mãe. “Muitos perderam o idioma porque se chegasse na hora do panelão, se tu pedisse a comida no teu idioma, tu era condenado”. Fideles acrescenta que as penalidades podiam variar entre a volta para o fim da fila do almoço, a perda da refeição ou até mesmo a cadeia. “A gente não era respeitado, apesar de que hoje a gente ainda não é respeitado”, critica. O Capitão Darci Salvador e sua família integram a parte minoritária das aldeias que, em alguma medida, luta para preservar a identidade indígena. Seu genro conta com orgulho que, aos 3 anos de idade, a filha já fala o idioma nativo. “Ela não fala o português, só a nossa língua, porque a gente não pode deixar a nossa cultura se perder”, afirma o pai da criança. Além do enfraquecimento cultural, a identidade Kaingang também guarda marcas do período militar. “Se não tivesse essa interferência militar nas aldeias, hoje, no povo Kaingang, não teria punição física. Imperaria a lógica do respeito”, afirma o antropólogo Douglas

Jacinto da Rosa, que é Kaingang da área da Guarita e mestrando em Antropologia pela UFRGS. Antes da intervenção nas aldeias, o costume era que o Pajé aconselhasse o índio sobre o que ele havia feito, de modo que o levasse a pensar e aprender com o erro cometido. Era prática da época que servidores militares do órgão indigenista instituíssem lideranças indígenas nos postos para aplicar as penas. Dessa forma, algumas das autoridades reconhecidas pela aldeia recebiam patentes militares e eram requisitados, a serviço dos administradores, na repressão aos delitos. Jorge Garcias tem 97 anos, é Guarani e integrou a polícia de repressão da época. Ele lembra que uma das ocorrências mais comuns era a embriaguez, infração para a qual era prevista a pena de cadeia caso fosse primária. “Se ele faz o crime pela primeira vez, por exemplo, ele fica pouco tempo pagando a condena, mas se acontece de novo, e mais uma vez, aumenta. E assim vai”, esclarece o morador da Área Indígena de Nonoai. Para o antropólogo, a estratégia de delegar aos próprios índios a tarefa de execução das torturas contribuiu para a perda da identidade coletiva e da confiança entre o povo e suas lideranças. “Uma das questões mais perversas era fomentar, por exemplo, que o filho torturasse o pai ou vice-versa”. Segundo o especialista, a tática permitia que os gestores não indígenas se eximissem da responsabilidade em casos de conflitos violentos. “Essas pessoas eram escolhidas para fazer um ‘amortecimento’ numa eventual revolta, mas quem estabelecia o projeto, é óbvio que são os não índios”, salienta Douglas, que também é neto do primeiro Coronel indígena do aldeamento de Guarita. Além disso, os chefes de posto estavam sempre impedindo a comunicação entre grupos de indígenas buscando diminuir a possibilidade de motins. “A gente não podia nem se ‘engrupar’ que a polícia já vinha e mandava a gente caminhar”, relembra o Capitão Darci. A história do povo Kaingang evidencia que a repressão não deixa marcas apenas da pele, mas afeta a vida em sociedade e a identidade enquanto grupo. A tribo, que é conhecida por sua característica aguerrida, é a população nativa mais numerosa e expressiva do Rio Grande do Sul. Apesar dos obstáculos, ela luta e resiste até hoje.


FOTO: JOÃO VIEIRA

As verdadeiras cores da ditadura militar JOÃO VIEIRA E CARLA FRANCO

Do vermelho sangue derramado pela comunidade LGBT ao verde que serve de esperança para dias melhores. A ditadura militar é composta por infinitas cores, todas presentes nesta aquarela de memórias de um dos períodos mais conturbados da história brasileira.

T

rinta e três anos depois da ditadura militar, a paleta de cores de Alexandre Ribondi é composta por um dos tons mais quentes do círculo cromático: o vermelho. Quando questionado sobre as mudanças em seu comportamento, o ator brasiliense não sabe a diferença entre o Alexandre do começo da ditadura e aquele que sobreviveu ao regime. “A única certeza é que me tornei uma pessoa mais forte, solidária e muito mais socialista”, afirma Ribondi. As fotos de Ribondi dizem muito sobre ele. O dramaturgo de 66 anos não vê problemas em assumir a sua orientação sexual – gay – e muito menos em aderir algumas peças do guarda-roupa feminino. Entre essas roupas, uma saia de balé azul que, de tão volumosa, deixa-o ainda mais magro do que ele já é. A experiência durante o regime destoa da postura excêntrica que ele exibe, até hoje, com tanto orgulho. Se o homem pudesse resumir àqueles

anos tortuosos em uma única palavra, esta palavra seria “tensão”. De acordo com Ribondi, estar em um bar com os amigos e, de repente, ser abordado por pessoas desconhecidas era uma experiência recorrente. Como se não bastassem os interrogatórios, os opositores ao governo eram detidos pelos militares. Ribondi foi capturado em uma destas ocasiões e não se recorda para qual local foi levado e nem por quanto tempo permaneceu preso. Entrentanto, desconfia que os militares tenham lhe aprisionado no porão de um dos ministérios do Governo, em Brasília. Os presos eram aglomerados em uma jaula, o chão do local era coberto com páginas de jornal, no espaço, os interrogatórios e torturas aconteciam regularmente. “Entre os principais métodos de tortura, destaco os choques elétricos e a roleta russa”, explica. Apesar da forte tensão, a comunidade LGBT encontrava nos lugaress destinados à diversão uma forma de re-

sistir às barbáries da ditadura Ribondi relembra que, naquela época, os LGBTs se reuniam em bares, boates e casas noturnas, locais onde os bissexuais, gays, lésbicas e travestis expressavam a sua artes “Lá nós podíamos conhecer pessoas novas, dançar, paquerar”, afirma Ribondi. Além da diversão, os espaços eram utilizados para articulação política dos grupos de resistência ao regime militar. O dramaturgo brasiliense relata que o Beijo Livre, grupo formado por homossexuais, surgiu no final dos anos 70. Este mesmo grupo encenava peças teatrais como forma resistência, apresentadas na boate Aquarius aos finais de semana.

A IMPRENSA ALTERNATIVA ESTAMPA AS CORES DA RESISTÊNCIA LGBT

Quem pensa que os jornais da época não tinham outro papel senão forrar o cativeiro dos presos políticos está DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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enganado. Por mais que a censura coibisse qualquer tentativa de oposição, os veículos que atuaram durante o regime militar eram fortes e sólidos. De acordo com o jornalista carioca, João Carlos Rodrigues, os jornais Correio da Manhã e o Estadão apoiaram o golpe contra o ex-presidente João Goulart, o Jango, mas na semana seguinte se posicionaram contra. Rodrigues reconhece a importância destes veículos no combate a ditadura, mas destaca que a imprensa tradicional não concedia espaço as pautas das minorias. Seguindo a proposta editorial de jornais como o Movimento e O Pasquim, o tablóide O Lampião da Esquina surge em 1978 para dar voz à comunidade LGBT. Apesar da semelhança entre os veículos existir, o jornal era contra o machismo do Pasquim e não compactuava com o discurso esquerdista do Movimento, que não legitimavam a luta dos LGBTs. Rodrigues, um dos colaboradores do Lampião, explica que estes jornais só mudaram o seu discurso após a publicação de uma entrevista com Fernando Gabeira. O jornalista, foi um dos guerrilheiros responsáveis pelo sequestro do embaixador norte-americano Burke Elbrick, no final de 1969. As quatro páginas de entrevista abordaram temas como o feminismo, a homossexualidade, os indígenas e os negros, assuntos pouco debatidos pela imprensa mais conservadora. Estes conteúdos mais abrangentes comprovam que a publicação periódica não se limitava as demandas do seu público alvo. “Além das pautas LGBT, O Lampião da Esquina abordava assuntos gerais, a única diferença estava no formato: todas as matérias eram produzidas conforme a ótica LGBT”, afirma Rodrigues. O Lampião da Esquina publicou 38 edições. As páginas amareladas do tablóide estampavam algumas editorias fixas, entre elas: Cartas na Mesa, Esquina e Reportagem. Sobre as outras minorias da época, Rodrigues é enfático. “Inicialmente, o Lampião namorou o movimento negro, mas essa parceria não evoluiu”, ressalta. Segundo o jornalista, os movimentos da época eram mais conservadores e queriam o reconhecimento da sociedade, enquanto os LGBTs “estavam pouco se lixando para a sociedade, eles queriam destruí-la”, conclui.

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O RELATO DE UMA SOBREVIVENTE Reconhecida pela comunidade LGBT como uma das travetis mais antigas do Brasil, Marcelly Malta relatou em depointo ao Projeto História de Vida e Ação Política”, realizado pelo Laboratório de Políticas Públicas Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS/UFRGS) histórias e as dificuldades vividas durante a ditadura militar. Aos 67 anos, Marcelly atua como coordenadora da Igualdade: Associação de Travestis e Transexuais do Estado do Rio Grande do Sul. No documento Marcelly conta que chegou a Porto Alegre nos anos 70. Aos 15 anos de idade trabalhava como auxiliar de limpeza no Complexo Hospitalar Santa Casa, onde também residia. Quando o céu porto-alegrense se pintava de laranja, Marcelly caminhava do Centro ao ponto onde se prostituia, localizado no bairro Moinhos de Vento. “A polícia não permitia a prostituição, por isso nós éramos presas e, na maioria das vezes, confiscavam o nosso dinheiro”, recorda. Após serem libertas, as prostitutas eram obrigadas a manter relações sexuais com a maioria dos brigadianos que lhes abordavam. Apesar de vender o próprio corpo em troca de dinheiro, essas relações eram, em sua maioria, forçadas. “Eu fui presa muitas vezes por não ceder às ameaças dos policiais”, relata. A prisão a que se refere no documento é o costume, espécie de detenção temporária para quem era detido por vadiagem, ou seja, fazendo programa. Marcelly relata que ganhou muito dinheiro com a prostituição e que viveu luxuosamente. Em contrapartida, ela lamenta a opressão policial que sofreu, simplesmente por ser quem é. Ao contrário do resto da população, travestis não podiam sair na rua vestidas de acordo com o gênero que se identificavam. Marcelly exemplifica a repressão que a sua comunidade sofreu relatando as diversas vezes em que foi presa entre os anos 70 e 80. “No tempo da ditadura, tu não podias andar pelas ruas como travesti”, afirma. Acompanhada de outra travesti, Marcelly Malta explica que, ao chegar na esquina da Avenida Borges de Medeiros, esquina com a Avenida Senador Salgado Filho, ambas foram agredidas

e correram até perderem os calçados. “Não adiantou! Fomos levadas ao costume pelos policiais. Naquela época, ainda éramos presas por vadiagem”, relembra. Os roxos das agressões marcaram o seu corpo e a sua alma. No início, Marcelly trabalhava “disfarçada”, prendia o cabelo e apertava os seios que desenvolvera graças ao coquetel de hormônios que tomava. Mas com o tempo não foi possível esconder o corpo feminino, assim como quem ela realmente era: Marcelly Malta. Ao longo dos anos, além de investir na “viração”, termo da época para prostituição, ela investiu na sua carreira de enfermeira. Em 1979, Marcelly foi a 2ª colocada em um concurso público para trabalhar como auxiliar de serviços médicos no Posto de Saúde da Vila Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre. A essa altura, já com a fisionomia de uma mulher, tentou a vida na Europa e regressou ao Brasil para dar continuidade a sua vida e militância. Porém, apenas em 2011, aos 60 anos, conseguiu o direito de trocar, oficialmente, o seu nome social: Marcelly Malta Scharzbold. “Sempre pensei que nenhum juiz do mundo me daria essa sentença”, declarou Marcelly ao ganhar a causa. Ela foi a segunda travesti não operada do Rio Grande do Sul a conquistar este direito judicialmente.

A AUSÊNCIA DO VERDE DAS FARTAS SINALIZADA DIAS MELHORES

O fim da ditatura militar e a ausência do verde das fardas no poder representou esperança para os LGBTs. Afinal, desde o golpe militar de 1964, o país avançou nas políticas públicas de apoio à comunidade LGBT. Alexandre Ribondi garante que, durante a ditadura, “Não havia amparo aos LGBTs brasileiros, apenas repressão sistemática e libertinagem”. Apesar da evolução após o regime ditatorial, infelizmente, nem tudo o que brota no jardim da resistência LGBT são flores. O gráfico a seguir mostra a evolução no número de denúncias sobre violência homofóbica no Brasil, entre os anos de 2011 e 2017. De acordo com o estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas – FVG, somente em 2012, o Disque 100 compilou 3.031 casos de agressão à comunidade LGBT.


OPERAÇÃO CONDOR

LUANA OLIVEIRA E MARJORIE PAULA

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m voo silencioso e estratégico. Após avistar a comida, a ave espera por dias até desfrutar do banquete. O condor-dos-andes pode percorrer centenas de quilômetros em busca de alimento, utilizando inteligência e paciência. Esses atributos podem ser diretamente associados às formas de capturas das pessoas que eram contrárias aos regimes ditatoriais. Como em 1975, quando um grupo internacional de perseguição foi formalmente criado por militares pertencentes a regimes ditatoriais do continente sul-americano. A missão era clara: perseguir, sequestrar, torturar e assassinar opositores. A alusão ao pássaro aparece no nome da ação coordenada: Operação Condor. A ave condor pode ser encontrada na Cordilheira Andina, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e outros países que formam a parte sul do continente. Assim como o pássaro, a aliança teve como característica a liberdade de percorrer diferentes países do Cone Sul. Existe um eco através do tempo, de quem sobreviveu, presenciou e militou contra o regime, tido hoje, como um terrorismo de estado da época. Torturas em um barco atracado com cheiro de morte e na espera de uma uruguaia na rodoviária de Porto Alegre por refugiados que nunca chegaram.

E OS TENTÁCULOS DA DITADURA MILITAR BATIZADA NO CHILE, NASCIDA NO BRASIL “Foi o aparelho repressivo brasileiro que criou essa prática, essa reunião de Santiago do Chile foi apenas o batismo. Se deu o nome para a criança, porque não se tinha o nome”, o relato é de quem dedicou boa parte da sua vida para estudar as Ditaduras Militares dos países do continente sul americano. Jair Krischke, historiador e integrante do Conselho da Comissão de Direitos Humanos, acredita que a Operação Condor tenha se iniciado no Brasil. Krischke explica que o Brasil já praticava desde 1970 a primeira Operação Condor documentada. Toda ação brasileira era feita em sintonia com a Argentina, com a ideia de perseguir os brasileiros que fugiam do país, sempre com muito cuidado para não deixar rastros dos sequestros. O primeiro caso documentado foi o do Coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, casado com uma uruguaia, que foi contrário ao golpe de 64. Krischke conta que o coronel foi preso junto do filho e do sobrinho. Cruelmente torturado durante três dias, só sobreviveu porque o avião usado para buscar pai e filho em Buenos Aires era o que servia ao Ministro do Trabalho, Dr. Júlio Barata, então casado com uma prima de Alencar. “Essa primeira operação acon-

tece em dezembro de 1970”, explica. W Assim como Jair, Nilson Mariano, jornalista e doutor em história, investigou e escreveu dois livros sobre a Operação Condor. O primeiro foi publicado no Uruguai com o nome de Operación Cóndor Terrorismo de Estado en el Cone Sur (1998) e outro publicado tempos depois pela Editora Vozes no Brasil, As Garras do Condor (2003). Mariano estava cobrindo as eleições eleitorais no Paraguai em Assunção durante maio de 1993, quando arquivos secretos da polícia foram descobertos. Eles continham documentos da década de 70, com base em acordos entre países do Cone Sul, dominados por regimes militares. “Paralelamente com a cobertura das eleições, fui dar uma olhada nos arquivos onde em um dos documentos, encontrei um convite para uma conferência bilateral de inteligência”, diz. Mariano aponta que este convite teria sido feito pelo serviço secreto do Paraguai para o Brasil na época.

SEQUESTRO DOS URUGUAIOS: O ÁPICE DA DESCOBERTA CONDOR

Lilian Celiberti é uma das sobreviventes da Operação Condor. Ativista uruguaia, foi militante da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), que após o golpe militar no Uruguai, passou a atuar de forma clandestina. Lilian, os fiDOSSIÊ INVESTIGATIVO

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lhos de oito e três anos e o companheiro Universindo Diaz se infiltraram no Brasil para fazer uma campanha pelo desaparecimento de militantes aliados. “A ideia era fazer uma campanha mais perto do Uruguai, que pudesse de algum modo, atravessar fronteiras”, lembra. Na esperança de que seu grito de ajuda chegasse até seus companheiros, a família percorreu pelos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, tendo como destino final Porto Alegre. Na capital gaúcha, Lilian e Universindo residiram em um apartamento localizado no bairro Menino Deus. Em uma tarde, no ano de 1978, a uruguaia saiu para ir até a rodoviária buscar familiares de desaparecidos que tinham ido em uma reunião em São Paulo. Ao aguardá-los foi pega de surpresa por um grupo de pessoas. “Logo, aparece um militar uruguaio e se identifica. Me levam para um lugar com um capuz na cabeça, e começam a me torturar”, conta. Ao ser interrogada, teve que identificar onde morava e com quem estava. “Eles acharam um papel onde eu tinha escrito para meus filhos, e ficaram surpresos que estava com meus filhos”. Lilian logo em seguida descobre que onde estava era a Central de Polícia, na Delegacia de Porto Alegre. Assim que os militares descobriram a existência dos filhos, levam Lilian até o apartamento, onde seu esposo a esperava. Os militares os levaram de volta a delegacia e depois os sequestram, levando-os clandestinamente até o Uruguai. Lilian, ao se deparar com o sequestro, arma uma estratégia para que não a levassem de volta. “Disse a eles que tinha uma reunião em minha casa, que seria sexta, nisso era segunda de manhã. Pensei que seria a melhor forma de comprometer o Brasil no sequestro e ter a oportunidade do ocorrido sair publicamente”, relata à vítima. A guerrilheira sabia do agravamento de uma operação militar entre os países do Cone Sul e, por este motivo, temia de que seu desaparecimento jamais houvesse solução. Após o flagra da mídia sobre o sequestro, os filhos de Lilian foram entregues à avó. Ainda durante a conversa, quando questionada sobre o pior momento durante os cinco anos de prisão, Lilian é categórica em dizer que foram os momentos de solidão entre os anos 1979 e 1980. “Foi um ano e meio sozinha em uma cela, e sobretudo um ano sem falar com ninguém e pratica-

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mente sem atividades, sem nada”. Um dos grandes responsáveis pela luta de Lilian é Omar Ferri, um dos fundadores do Movimento de Justiça e Direitos Humanos no estado. Contrário ao regime ditatorial, defendia aqueles que sofriam perseguições devido à opressão do sistema ditador e lutava incessantemente para protegê-los, muitas vezes os encaminhando com segurança de volta a seu país de origem ou os acolhendo no estado. Certo dia, Ferri recebe um telefonema de São Paulo. Ao atender, escuta a voz da amiga e jornalista Jan Rocha, correspondente da rádio BBC de Londres na época. No telefonema, Jan afirmava estar preocupada com os ativistas uruguaios Lilián Celiberti e Universindo Diaz, que não atendiam às ligações de amigos que estavam exilados no país. A jornalista pediu que ele fosse até o apartamento de Lilián no bairro Menino Deus, para entender o que poderia ter acontecido. “Quando cheguei lá o apartamento estava trancado, mas o zelador me afirmou ter visto mais cedo os filhos de Lilian brincando no quintal e logo vi que ele estava mentindo”, diz Ferri. Ele ainda voltou outras vezes, mas sem sucesso na busca. Depois de tantas idas e vindas ao apartamento, tendo ele relatos do desaparecimento dos uruguaios, Ferri chegou à conclusão de que tudo se tratava de um sequestro. Após o jornalista Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Batista Scalco terem ido ao apartamento através de uma denúncia anônima e terem visto Lilián mais os filhos sendo postos por militares como reféns, a imprensa começou a divulgar o caso. “O primeiro jornal a publicar sobre o sequestro foi a Folha da Tarde na época”, relata Ferri, afirmando ser o primeiro a denunciar o caso a imprensa e ao estado. Governantes da época recebiam e colocavam as denúncias para debaixo do tapete. “Eu e dona Lilia Celiberti, mãe de Lilian, fomos formalmente a Zero Hora, em 20 de novembro de 1978, ceder uma entrevista a Milton Galdino. Neste dia a avó clamava que libertasse ao menos seus netos”. Após muita luta no Brasil e no Uruguai, as crianças foram entregues a Lilia. “Após as denúncias, nasceu nossa luta aqui no Brasil sobre o esclarecimento do sequestro dos uruguaios Lilián e Universindo Diaz”, afirma Ferri, que atuou nesse enfrentamento por cerca de cinco anos. Após esse período

presos no Uruguai, os ativistas foram soltos e Omar Ferri ganhou uma ação de indenização pela defesa dos réus.

EXILADO NO CHILE, E CAPTURADO PELO CONDOR

Maeth Domingos Boff é filósofo político. Nos anos apelidados de “chumbo”, decidiu ajudar em prol dos mais pobres. Nascido em família de agricultores religiosos, aos dez anos entrou para o seminário de Caxias do Sul, na Vila Flores. Mais tarde consagra-se membro do movimento estudantil em Marau, onde concluiu seu seminário. Cristão, acreditava que poderia existir uma forma mais eficiente de ajudar as pessoas. Engajado ao movimento estudantil, Boff, ao se deparar com um sistema guerrilheiro a favor das minorias, encontra ali seu álibi para seu sonho de “Robin Hood”. Em suas discussões filosóficas e políticas junto ao movimento estudantil, Maeth conheceu Paulo de Tarso Carneiro, um jovem idealista estudante de filosofia vindo da capital. “Tarso trouxe a ideia de integrar um grupo de guerrilha, com propostas iguais às do Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e Var Palmares”. O movimento de extrema esquerda se organizava conforme ações de guerrilhas tidas em Cuba, como as urbanas para obter recursos à ação e para distribuição aos camponeses. A resistência tinha acesso a documentos privilegiados e antes de ocorrer o golpe de 1964, já tinha a informação de que iria acontecer e que haveria um apoio dos Estados Unidos. “Em 1967 à presença militar já era muito forte, e documentos comprovaram o envolvimento dos Estados Unidos, que estavam por trás de isto tudo”, afirma o filósofo. Ele ainda cita que, segundo relatos, o embaixador do país na época, Lincoln Gordon, mantinha contato direto com a embaixada americana, que apoiava a ditadura e ameaçava a qualquer momento intervir militarmente para apoiar os militares Brasileiros. Boff, assim como muitos jovens revolucionários e estudantes da época, não tinham nenhuma prática de guerrilha. Sustentados por uma elite organizada, seguiram em marcha por seus anseios. “Se propuseram a ser nossa vanguarda e acreditavam que nós seríamos o pequeno motor que move o grande motor da sociedade”, diz. O apo-


ALBERI NETO

FÉ sentado afirma que poucos estudantes receberam treinamento, como alguns primeiros guerrilheiros que chegaram a cruzar as fronteiras norteados para Cuba, onde tiveram a base das táticas de ataque comunista. As missões do grupo chamado como terroristas pelos militares da época eram claras: Teria que ser resistente, pois era preciso muitas vezes andar dias sem comer ou descansar. “Aguentamos caminhar no escuro, todos amarrados para não se perder”, diz. Relembrando que havia um revezamento de quem se posicionava à frente para guiar o grupo. Entre reuniões e saídas de campo da guerrilha, Boff não sabia quem era João, Pedro ou José. Nomes eram inventados a todo o momento. O nome verdadeiro de seus camaradas que lutaram ao lado se mantinha em sigilo total. Após um assalto ao Banco do Brasil em Viamão, tendo como um dos participantes Gustavo Buarque, primo de Chico Buarque, alguns participantes são presos, entre eles Edmur Péricles Camargo. Após se mudar para São Paulo, se envolveu pouco no movimento. “Uma das práticas do movimento era caminhar por horas, arrancando placas de veículos que nos serviam como disfarce”, lembra. Misturado a população, enxergava-se com o rótulo de terrorista. Maeth resolve sair da organização e se vê ameaçado pelos companheiros. “Eles temiam que eu os entregassem, nos viam como traidores e por sorte não fui executado”. Em seu Exílio no Chile, Maeth foi perseguido pela Operação Condor. Militares chilenos e brasileiros que ansiavam por capturar seus companheiros, o prenderam e interrogaram. Entre choques elétricos e espancamentos, o militante mantinha seu silêncio, que, de fato, na maior parte das perguntas era pertinente a sua verdade. O primeiro interrogatório feito por militares chilenos durou das oito horas da manhã até às duas horas da madrugada. Havia um navio atracado que se tornou cadeia para os presos políticos, lugar onde Maeth foi aprisionado. “No primeiro interrogatório houve ameaças, de que vendado e com as mãos atadas me jogariam no mar para que provasse que saberia nadar. Jogando-me pela escotilha, me seguravam e riam”, diz Boff. Após ser torturado, ele era jogado num depósito de prisioneiros cheirando a carne podre em um

espaço sem banheiro, onde se defecava no chão. Boff foi preso no dia 20 de novembro de 1973, onde, depois de certo tempo, foi levado para um abrigo de alto-refugiados das Nações Unidas, e ficou lá até dois de fevereiro de 1974. Após este episódio, Maeth foi para Holanda onde viveu por 20 anos. Em 1996, Boff voltou ao Brasil, para participar da política municipal dirigindo o SAMAE em Caxias do Sul.

SEGUINDO O RASTRO DO CONDOR

Durante a investigação, Nilson Mariano pôde compreender que não se tratava apenas de uma aliança entre os dois países, e sim que Argentina, Uruguai e Bolívia também estavam colaborando em bloco. Mariano explica que a operação teve três etapas consecutivas. A primeira etapa foi a formação de um banco de dados, com os nomes de todos que deveriam ser perseguidos, adversários de cada ditadura. A segunda etapa da operação se deu a interligação dos aparatos de segurança de cada país, através de conferências e troca de informações. A terceira sucedeu-se na ação além das fronteiras que permitia a perseguição de pessoas contrárias à ditadura entre estados, tendo o Chile como seu principal atuante. Em meio à perseguições e aprisionamentos, haviam práticas de tortura diárias aos presos. Mariano afirma que esses métodos variavam de acordo com as diferenças de cada país. No Uruguai, eles utilizavam a tática do encarceramento prolongado sob tortura, onde os

presos cumpriam cerca de dez a quinze anos de prisão. Na Argentina, acontecia o choque elétrico e o desaparecimento de pessoas. Cogita-se que na Argentina tenha tido trinta mil mortos e desaparecidos. “O Chile também optou pelo desaparecimento, inclusive com táticas nazistas como cremação de corpos e amputação de digitais”, relembra Mariano. Apesar dos países terem operado e trabalhado em conjunto, cada um manteve suas características de tortura. O pesquisador afirma que muitos desapareceram sem nenhuma pista ou rastro. “Muitos dos corpos foram jogados em alto-mar para que os peixes se alimentassem, outros eram postos em valas comuns onde os ossos se misturavam”, diz. Mesmo com muitas escavações e pesquisas durante o tempo, poucos corpos foram identificados; e em meio a salada de ossos subterrânea, ainda existem mistérios sobre a chacina tortuosa da época. A Operação Condor manchou de sangue a história da América Latina. Apesar da incerteza quanto ao número de mortos, o fato é que a proporção da tragédia deixou marcas que não podem ser apagadas. Ainda existem pessoas indigentes para a história, que sofreram práticas de tortura, assassinatos e perseguições através dos anos. Guerrilheiros perseguidos e torturados, historiadores, além de famílias de desaparecidos. Estes jamais esquecerão de sua crueldade e, apesar de serem ressarcidos, a marca de sangue em seus corpos e a falta em seu coração jamais será esquecida.

DOCUMENTO QUE COMPROVA A COOPERAÇÃO ENTRE BRASIL E URUGUAI, PARA A REPRESSÃO DE MILITANTES DE ESQUERDA DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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FOTO: MATHEUS FELIPE

QUEM DITA A JUSTIÇA PARA O DITADOR?

PATRICIA VIEIRA E JENIFFER MACIEL

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or mais que alguns dos magistrados presentes na sessão tivessem esperado vários dias desde a abertura daquele processo, nenhum deles esperou tanto quanto Claudia Allegrini. Há mais de 35 anos ela aguarda a justiça para Lorenzo Viñas, desaparecido em junho de 1980 ao atravessar a fronteira Argentina-Brasil. Membro da organização armada de esquerda intitulada como “Montoneros”, Lorenzo possuía cidadania ítalo-argentina, condição que garantiu um julgamento na Itália para punir os responsáveis pelo seu desaparecimento. Entre os julgados há três militares gaúchos — os Coronéis João Osvaldo Job, Carlos Alberto Ponzi e Átila Rohrsetzer —, responsáveis por entregar o militante aos repressores Argentinos. O ato fazia parte de um acordo de cooperação entre os regimes ditatoriais do Cone Sul, conhecido como Operação Condor. Embora isso represente uma possível esperança para os que buscam justiça relacionada aos crimes de Estado dos Anos de Chumbo no Brasil, nenhum militar brasileiro foi condenado criminalmente até hoje por violações aos direitos humanos nesse período.

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JUSTIÇA PARA OS DESAPARECIDOS Lorenzo partiu da Província de Santa Fé, Argentina, no dia 26 de junho de 1980, às 11h30, conforme documentos do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Ele tinha como destino o Rio de Janeiro, local onde pretendia encontrar a esposa e a filha, recém-nascida na época. Por indicação de funcionários da empresa de transportes, foi lhe dada a poltrona número 11, indicada aos passageiros considerados suspeitos pelo regime. Ele foi preso no mesmo dia, em Uruguaiana, na fronteira Brasil-Argentina. Acredita-se que ele tenha sido preso e torturado poucos dias no Brasil antes de ser entregue à repressão argentina. Depois foi levado para Paso de Los Libres, na estância “La Polaca”, local clandestino da repressão. Embora sem registros oficiais, a suspeita é que Lorenzo tenha sido morto durante um dos chamados “Voos da Morte”. A operação consiste em colocar militantes presos em aviões que realizavam sobrevoos no litoral. Depois as vítimas eram executas ao serem joga-

das em alto mar. Algumas pessoas já foram indiciadas, porém, no julgamento feito na Itália, há a excepcionalidade de se incluir os militares que participaram do caso através da Operação Condor. Após muitas investigações a respeito do sumiço, o caso ganhou representação na Itália, país em que Lorenzo tinha descendência e cidadania através da nacionalidade de sua mãe. A denúncia foi feita em 1999 por Jair Krischke, advogado e presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, que considera o processo de julgamento dos envolvidos um caso diferente, fora do amparo institucional da Lei de Anistia: “A Lei de Anistia é de agosto de 1979 e esse caso ocorreu em 1980”, afirma. Até o momento o promotor de Justiça Italiano responsável pelo caso já foi a Buenos Aires, na Argentina, coletar depoimentos. Um deles, foi o de Jair: “O processo agora, em princípio do ano que vem, lá por março deve ter sentença”, acredita o advogado. Sobre a continuidade desse tipo de investigação no Brasil, Jair afirma que existem diferenças no julgamento de importância de ações desse tipo entre os órgãos que


acompanham os casos, como o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. “Enquanto o MPF tenta, a Justiça Federal engaveta”, afirma Jair. Dessa maneira, a justiça para os desaparecidos permanece trancada em meio a burocracia jurídica. Porém, seguem expostas as marcas de tortura daqueles que sobreviveram.

A ESPERANÇA QUE ENVELHECEU

Sérgio Luiz Bittencourt, atualmente com 66 anos, nasceu e cresceu numa família de apoiadores do Partido Trabalhista Brasileiro. Na adolescência, paixão pelo Direito sempre o acompanhou, mas a repressão que existia na época de universitário foi um dos motivos para que o sonho fosse adiado. Aposentado, ele ainda planeja: “Até os 80 anos quero estar formado em Direito”, afirma. Em 1972, quase com 20 anos de idade, Sérgio foi preso. Ao sair da empresa onde trabalhava com vendas de equipamentos de escritório, foi abordado por dois agentes do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, e colocado dentro de um fusca. “Eles tiraram meus sapatos, meias, cinta, gravata, casaco e me encapuzaram”. Na escuridão, Sérgio conseguiu enxergar que o destino era a sala da tortura, lugar onde, por 12 horas, foi agredido com golpes de porrete e várias descargas elétricas, inclusive em seu cérebro. “De vez em quando eu era retirado para ser examinado e verificar se eu estava bem para poder continuar a tortura”. Ele ficou preso por dois meses e diversas vezes era interrogado com violência em troca de alguma informação que os agentes buscavam, mas ele nunca entregou nenhuma delas. “A única coisa que me mobilizava era me manter vivo”, relembra. A resistência frente aos obstáculos do passado, e sobretudo, a luta durante a ditadura militar, criaram em Sérgio uma tolerância frente a problemas menores. “Se me disserem que

De vez em quando eu era retirado para ser examinado e verificar se eu estava bem para poder continuar a tortura”.

se eu não fizer alguma coisa eu vou ser mandado embora, eu vou concordar. Que me mandem para rua então”. Em 1999, Sérgio recebeu a primeira e única indenização estadual pela violência sofrida nos Anos de Chumbo, período conhecido como a época mais repressiva da ditadura. Sobre a justiça, ele acredita que ela é possível, porém não será alcançada, até por conta da idade de alguns torturadores. Sérgio cita como misteriosa a morte de Sérgio Fleury, mais conhecido como delegado Fleury. Ocorrido no dia 1º de maio de 1979, em Ilha Bela, São Paulo, o caso tem como versão mais conhecida a de que o delegado morreu afogado em um acidente em seu iate. “Tudo indica que isso foi uma queima de arquivos, que a punição veio por outro lado”, acredita Sérgio. O coronel Paulo Malhães, torturador e assassino confesso de dissidentes políticos, também morreu de forma considerada suspeita. Em 2017, o sítio dele foi invadido por três homens durante um assalto. O coronel foi morto e os suspeitos acusados de latrocínio. Em 2014, Malhães deu depoimento para a Comissão da Verdade. De acordo com Sérgio, o coronel era honesto em suas declarações. “Contou porque ele sabia que não ia ser alcançado por nenhuma punição”, assegura. Apesar destes depoimentos, ainda existe um pedaço muito grande de histórias desconhecidas aqui no Brasil e em vários países da América Latina.

A REPRESSÃO NOS PAÍSES SOB AS ASAS DO CONDOR

Conforme o jornalista e pesquisador Nilson Mariano, um grande bloco de países em sistema de governo semelhante se formou na América do Sul sobretudo nos anos 1970. Em comum a forte repressão aos opositores. Segundo ele, os governos trataram de acabar com os grupos de guerrilheiros, para abafar qualquer tipo de oposição. “Eles não admitiam essa oposição. Perseguindo, demitindo e aplicando banimento, os expulsando do país. O principal é que essas ditaduras acabaram se unindo entre elas” explica. Conforme documentação de diversas organizações humanitárias e comissões de investigação, foram cometidas violações aos direitos humanos na Argentina (30 mil vítimas entre mortos

e desaparecidos), Bolívia (100 vítimas entre mortos e desaparecidos), Brasil (366 vítimas entre mortos e desaparecidos), Chile (2.011 mortos e 1.185 desaparecidos), Paraguai (cerca de 2 mil vítimas entre mortos e desaparecidos) e Uruguai (297 vítimas entre mortos e desaparecidos). Nesse contexto de ampla repressão é que ocorreu a chamada Operação Condor. De acordo com a dissertação de mestrado de Nilson, a cooperação entre os regimes já ocorria de maneira eventual, tendo se tornado permanente por volta de 1975 e negociada sobretudo em reuniões ocorridas no Chile. Embora o Brasil não tenha assinado o documento oficial de adesão a Operação, participou em diversas ocasiões da captura de militantes de outros países, não havendo excepcionalidade no caso de Lorenzo. “Não foi só ele, o Padre Jorge Aduro, foi pego em Uruguaiana também. Ele não estava junto do Lorenzo, estava em outro ônibus. Também era um padre que apoiava os Montoneros. Depois houve mais dois sequestros no Rio de Janeiro e no Paraná”, complementa. Nesse cenário é importante destacar o papel de protagonismo do Brasil nesse bloco ditatorial. Conforme a historiadora Ananda Fernandes, a ditadura brasileira apoiou a repressão em outros países de diversas formas. “A gente tem que levar em consideração que o Brasil foi a primeira de uma ditadura de segurança nacional no Cone Sul, enquanto que as ditaduras de Argentina, Chile, Uruguai e Bolívia foram nos anos 1970”, explica.

ANISTIA: “UMA LEI QUE LEGITIMOU A DITADURA”

A Lei da Anistia permitiu que dezenas de casos de terrorismo de Estado ocorridos entre 1961 e 1979 permanecessem impunes. Mesmo que ela tenha partido de muita luta, a Anistia tornou-se, principalmente, uma forma de proteção jurídica aos militares atuantes na tortura. Dani Rudnicki, advogado e professor universitário, esclarece que há alguns limites para a Lei de Anistia. “Os torturadores não poderiam perdoar a si mesmos, eles poderiam perdoar os outros, e se os outros quisessem elaborar uma lei depois, eles poderiam ter perdoado, mas isso não aconteceu”. Ele ainda acrescenta que, apesar da postuDOSSIÊ INVESTIGATIVO

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ra de unificação, a lei mostrou que havia uma divisão. “Os crimes de sangue não eram anistiados. Foi uma lei que veio para, de alguma forma, legitimar o que a ditadura tinha praticado e dar o benefício para alguns opositores do regime, mas não para todos”. O professor também lembra que essa legislação e o próprio período ditatorial possui diferentes entendimentos entre os juízes, procuradores e promotores das diversas instâncias jurídicas. Fato que provoca uma série de denúncias, condenações cíveis e investigações que são interrompidas por pedidos de recursos em benefícios de torturadores, bem como o próprio cancelamento da pena imposta anteriormente. Foi o caso do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. “A gente gosta de se apresentar como uma instituição una, mas na verdade existem muitos juízes com pensamentos muito diferentes”. Dani adverte que as instituições públicas, de forma geral, estão mais preocupadas com a governabilidade do país. “Eles estão mais preocupados com interesses corporativos e com aumentos salariais, do que de fato punir quem praticou atos que feriram o Estado democrático de direito durante a ditadura”. Dessa forma é muito difícil identificar qual dos poderes ou qual instância judicial é a grande responsável por determinar a impunidade da tortura do regime militar no Brasil. Entretanto, alguns membros de instituições públicas independentes, como alguns procuradores da república do Ministério Público Federal interagem de forma sistêmica para tentar diminuir a impunidade das injustiças praticadas no período ditatorial.

A JUSTIÇA E SEUS PODERES

Desde 1999, o MPF atua no oferecimento de denúncias contra militares envolvidos em crimes de Estado no período da ditadura militar. Encaminhadas às instâncias da Justiça Federal, é definido se será aberto processo ou não para uma nova investigação. Conforme documentos e releases divulgados pela Procuradoria da República em São Paulo, foram oferecidas à Justiça Federal 38 denúncias objetivando a abertura de processos de ações penais contra 59 agentes da repressão ou pessoas à serviço do Estado que violaram os Direitos Humanos de 50 vítimas. Além disso, fo-

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ram solicitadas 14 ações civis buscando responsabilização de repressores e construção de memória e verdade desse período, bem como proteção e preservação a populações indígenas prejudicadas pela ditadura. Nestas ações, sustenta-se o posicionamento da não aplicação da Lei de Anistia e o entendimento que a legislação cumpre o papel de anular os crimes de Estado do período entre 1961 a 1979. Essa atuação é baseada nas duas condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos crimes contra a vida, os quais não são passíveis de prescrição. Dani acredita que a realidade distorcida que a população brasileira tem sobre os crimes cometidos na época da ditadura militar vem em consonância com a fragilidade da memória e também da falta de justiça. Até hoje ninguém foi declarado culpado criminalmente pelos seus delitos. “Nós temos provas testemunhais, então podemos trabalhar de várias formas, mas o Brasil sempre surge com aquela ideia que somos um país pacífico, onde todos são amigos, não existe repressão nem racismo e nada fora bons sentimentos brasileiros”, condena. O livro “Crimes da Ditadura Militar” publicado pelo MPF em 2017 traz detalhes das investigações e relatórios das atuações do órgão nesses casos. O documento também ressalta que é impor-

tante saber o que aconteceu e responsabilizar os autores. “Se tivermos sorte, não repetiremos os erros do regime de exceção no futuro”. Nessa perspectiva, o trabalho da instituição tem como intenção não apenas responsabilizar quem cometeu crimes de Estado, mas impedir que essas violações aos direitos humanos voltem a acontecer no Brasil. Jair entende que a Lei de Anistia beneficiou apenas um lado da história, fazendo com que os perseguidos, presos, torturados, desaparecidos e até mortos fossem culpados por todo o extremo político e violento que marcou a época da Ditadura Militar. “A Lei de Anistia é de agosto de 1979. Em fevereiro de 1980 nós tínhamos greve de presos políticos. Por quê? Porque eles continuavam presos. Porque não foram anistiados” assegura. No ponto de vista de Sérgio, ao comparar o período com a atualidade, ele entende que os momentos econômicos são muito parecidos e acredita que a justiça pode ser feita. “Muito mais do que uma crise financeira ou política, o Brasil atualmente atravessa uma crise moral, e nenhuma nação vai conseguir evoluir ou se tornar uma nação com claros valores se a mesma continuar carregando todos esses crimes em sua consciência”. Enquanto isso, a verdade continua no escuro ao passo em que sobreviventes, ativistas e instituições tentam jogar uma pequena luz sobre ela.


PREÇO DA DIDATURA MILITAR NO BRASIL GIORDANA CUNHA E MARIANA DORNELLES

434 mortos e desaparecidos. Mais de 24 mil pessoas vítimas de perseguições por motivos políticos. Mais de 50 mil pessoas presas em poucos meses. Saldo dos 21 anos da Ditadura Militar, esses números ainda se refletem na sociedade brasileira. Mais de 20 anos depois do final da Ditadura Militar brasileira, a concepção de quem foi vítima do regime ainda não é unanimidade. Milhares de pessoas tiveram que fugir do país e deixar para trás suas famílias, outras perderam seus empregos, diversas foram perseguidas e muitas foram torturadas e mortas. Segundo a Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, que trata dos anistiados políticos, o recebimento da indenização em caráter reparatório está vinculado a comprovação ou não da ne-

cessidade do afastamento da atividade laboral durante a Ditadura. Ainda segundo o artigo 3º da Lei, a reparação econômica “correrá à conta do Tesouro Nacional”. Segundo o Ministério de Planejamento, de 2015 até setembro de 2018 já foram pagos mais de R$2 bilhões em indenizações para os anistiados políticos. Tal montante que poderia ser muito maior se fossem consideradas também as devidas indenizações morais. Apesar de os crimes terem sido cometidos durante o Regime Militar, as indenizações não são pagas pelo Ministério da Defesa. “A responsabilidade é da União, tendo em vista que os crimes foram praticados por seus agentes. Segundo a Lei, a autarquia deve buscar seu ressarcimento com os seus agentes, mas não se tem notícias de que isso já ocorreu. Então o cofre da viúva paga todos”, afirma Jair Krischke, presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos. A Comissão de Anistia foi criada em 2001 e é o órgão responsável por analisar os requerimentos de Anistia Política, emitindo os pareceres que vão subsidiar o Ministro da Justiça na hora da decisão de concessão. O integrante da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul (OAB/RS), Dani Rudnicki, explica como funciona o processo para um requerente ser declarado anistiado político: “Em primeiro lugar, você deve ter sido perseguido ou cassado de alguma forma. As-

sim se prova por qualquer meio legal e provas testemunhais. Tudo é uma questão de convencimento. Você tem que juntar elementos. Quanto mais, melhor”. Segundo Rudnicki, que também é doutor em Direito, a indenização deve ser analisada em cada caso e é preciso entender bem cada situação para não cometer injustiças, tanto para um lado quanto para o outro. Saber a proporcionalidade é um desafio muito grande dentro do Direito. O presidente da Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), Saulo Gomes, foi o primeiro brasileiro proibido de exercer sua profissão. Ele conta que, por causa da cassação, perdeu dois empregos e teve que deixar o Rio de Janeiro para se exilar no Uruguai. Atualmente, ele busca cobrar do Governo a reparação dos direitos de civis e militares que foram usurpados durante os 21 anos do Regime Militar. “De minha parte, posso dizer que foi um período de muitas inseguranças e riscos à própria vida, além dos prejuízos financeiros. A indenização é importante porque ela representa a reparação de parte dos prejuízos causados pelo Regime Militar a milhares de brasileiros”, conta o presidente da ABAP.

OS DANOS MORAIS

Os anos de tortura, sofrimento, afastamento da família e entre tantos outros quesitos não são reparados na Lei nº 10.559/2002, que prevê somente a perda da atividade laboral. Para conseguir DOSSIÊ INVESTIGATIVO

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ter os danos morais reconhecidos, é necessário que o anistiado entre com uma ação na Justiça. “O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que a reparação da Comissão de Anistia é de cunho material e não uma reparação moral pelo tanto suportado. Por isso que se ingressa com as ações judiciais”, explicou a advogada Aline Fontoura, que foi responsável por um desses casos. O cliente dela ajuizou ação na Justiça Federal de Porto Alegre pedindo a reparação pelos abalos sofridos. No processo, ele relatou que era um militante de um movimento político, e que, em janeiro de 1975, foi perseguido por agentes do governo e ficou encarcerado por 15 dias no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da Capital gaúcha, onde teria sido torturado. O processo ainda relata que além de todas as perdas materiais, ele teve seu nome veiculado na mídia de todo país como “subversivo e perigoso”, causando-lhe prejuízo. A vítima já havia sido anistiada por meio de processo administrativo na Comissão de Anistia. A Justiça Federal de Porto Alegre condenou a União a pagar R$ 50 mil por danos morais. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) manteve a condenação. A advogada disse que não é tão simples para se conseguir a indenização por danos morais, pois “existe entendimento de determinados juízes e desembargadores, determinadas composições de turmas que a indenização concedida pela Comissão já abarca a reparação moral, mas esse não é o entendimento do STJ e não foi do TRF4 nessa decisão”. Para Jair Krischke, a Comissão de Anistia deveria dar a reparação moral também. “Economizaria tempo e recurso do Estado, pois vai ser repetida numa outra instância a mesma coisa e isto custa caro. Então deveria juntar e um só ato reparar aquilo que deve ser reparado”, explicou.

LEI 10.559 DE 2002

A Lei 10.559 foi criada no dia 13 de novembro de 2002 para reparar os danos causados aos cidadãos que foram afetados pela Ditadura Militar. No artigo 2º, ela entende que são declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram atingidos por atos institucionais ou complementares, pu-

nidos com transferência, impedidos de exercer atividade profissional, punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos, entre outras abrangentes. Desta forma, a Lei prevê dois tipos de indenização: a reparação econômica e a prestação mensal. A primeira consiste no “pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição, e é devida aos anistiados políticos que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral”, sem, em nenhuma hipótese, exceder o valor de R$100 mil. Já a prestação mensal é permanente e continuada, e “será assegurada aos anistiados políticos que comprovarem vínculos com a atividade laboral”. O valor da prestação é igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse.

A RESPONSABILIDADE É DE QUEM?

Para o presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, houve absoluta e total impunidade por parte do Governo. “É vergonhoso. O Brasil é o único país da região que não puniu seus agentes. Alegando uma anistia, não puniu aqueles que praticaram crimes durante a Ditadura Militar”, ressaltou. Um agente do Estado nunca pode cometer um crime político. Portanto, pela Lei da Anistia, o agente - seja civil ou militar - estaria excluído da anistia. Ainda pelo parágrafo 2º da Lei, aqueles que cometem crimes contra a vida não estão

anistiados. “Se matar, fazer desaparecer e torturar não é crime contra a vida, então eu não entendo mais nada. Para nós, civis, se aplica o rigor extremo da Lei e para os seus nem sequer se aplica a Lei. O mais lamentável de tudo isso é que o Supremo Tribunal Federal abençoou essa iniquidade”, comentou o presidente do Movimento.

QUANTO CUSTA A DITADURA MILITAR

Mais de R$583 milhões foram pagos em indenizações até setembro de 2018. Isto é o que apontam dados divulgados pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Em paralelo, em fevereiro deste ano, a imprensa brasileira divulgou a compra de um navio porta-helicópteros do Reino Unido. Segundo a imprensa britânica, a compra do HMS Ocean custou cerca de R$378 milhões para a Marinha Brasileira. Outra informação importante é a de que, embora extinta no final dos anos 2000, a pensão paga a filhas de militares mortos custa mais de R$5 bilhões por ano aos cofres públicos. Segundo reportagem do jornal O Globo publicada em 28 de maio de 2018, o montante representa “mais do que toda a receita previdenciária das Forças Armadas em 2017, que ainda resistem em apresentar dados detalhados sobre um dos benefícios mais polêmico”. Atualmente, mais de 110 mil filhas de militares tem direito à pensão. Segundo estimativas do Exército, pelo menos até 2060 ainda haverá beneficiárias.


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