De cicco, shelton lugar certo na hora errada

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SHELTON YGOR JOAQUIM DE CICCO

LUGAR CERTO NA HORA ERRADA: etnografia da construção da identidade homossexual

MARÍLIA 2014


Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e CiênciasCampus de Marília

SHELTON YGOR JOAQUIM DE CICCO

LUGAR CERTO NA HORA ERRADA etnografia do processo de construção da identidade homossexual ou cartografia dos devires de homens homossexuais em Marília

Monografia de Conclusão de Curso apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Campus de Marília, para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Área de concentração: Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Andreas Hofbauer

MARÍLIA 2014


De Cicco, Shelton Ygor Joaquim. D294l Lugar certo na hora errada etnografia do processo de construção da identidade homossexual ou cartografia dos devires de homens homossexuais em Marília / Shelton Ygor Joaquim De Cicco – Marília, 2014. 116 f. ; 30 cm. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2014. Orientador: Andreas Hofbauer 1. Etnologia. 2. Homossexualidade – Marília (SP). 3. Pessoas LGBT. 4. Homossexuais masculinos - Identidade. 5. Homofobia. I. Título. CDD 306.7662


ADVERTÊNCIA Todos os nomes próprios foram ocultados, tanto nomes de pessoas como nomes fantasias de estabelecimentos comerciais. Única exceção feita aos nomes de cidades e logradouros e de personagens cujo trabalho seja veiculado em mídia pública.


SHELTON YGOR JOAQUIM DE CICCO

LUGAR CERTO NA HORA ERRADA Etnografia da construção da identidade homossexual ou cartografia dos devires de homens homossexuais de Marília Monografia para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais, na área de concentração Antropologia Social, apresentada e aprovada na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP – campus de Marília, em 17 de Dezembro de 2014.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Orientador: Andreas Hofbauer, doutor em Antropologia, UNESP/Marília

_______________________________________________________________________ 2º Examinador: Luís Antônio Francisco de Souza, doutor em Sociologia, UNESP/Marília

_____________________________________________________________________ 3º Examinador: Sérgio Augusto Domingues, doutor em Antropologia, UNESP/Marília

Marília, 17 de Dezembro de 2014.


Para AmĂŠrico Carlton Marisa Romolo Rosenilda


AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer às pessoas que me concederam entrevistas, sem a disposição de meus interlocutores jamais seria possível produzir este trabalho. Espero que este lhes amplie o entendimento do mundo social, como tentei fazer, insistentemente, como se tentasse desesperadamente salvar alguém. A esses meus interlocutores lindos e mui caros que concederam entrevistas, muito obrigado!: RBP, VR, MGS, MS, MC, JB, CEB, RM, MSM, GB, CJ, JGJ, VVJ, CAQO, LCLS; e aos que se dispuseram, muito solícitos, em contribuir, mas não o fizeram. Também aos amigos e amigos de amigos em cuja balada meti-me para fazer participação observante: AYI, CC, JJ, RG, RS, JV, DSS & LS, ABM, JS, TA. Espero que este trabalho lhes contemple. Ao meu orientador, Andreas Hofbauer, com quem contraí grande dívida pela paciência de apresentar-me à criatividade e à potencialidade que surgem quando nos liberamos dos -ismos “coloniais”. Também aos/às professores/as que tiveram a disposição de ouvir meus devaneios teóricos; aos/às colegas da FFC e especialmente àqueles do Grupo Enfoques Antropológicos e do PIBID/2012 – a esta comunidade, ofereço esta monografia. Um agradecimento especial a Sérgio A. Domingues pela ajuda com o pensamento deleuzeguattariano. Reconheço ainda minha dívida com os meninos do Rio: CCTL e HS, que me recepcionaram. Não poderia esquecer VH, cujos preceitos, por vezes cáusticos para mim, me fizeram enxergar sutilezas da sociedade. Há tantas outras pessoas mais que eu precisaria citar, que moraram comigo ou estudaram na mesma faculdade e que eu deveria recordar aqui mais pelos afectos doados e recebidos do que por qualquer outro vínculo... mas tenho medo de esquecer-me de alguém e assim ferir as pessoas, pelo que registro apenas este agradecimento de maneira esparsa.


Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. – Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998: p. 13. O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade infinita nos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã [...]. É a linguagem que fixa os limites […], mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado. […] todas estas inversões, tais como aparecem na identidade infinita têm uma mesma consequência: a contestação da identidade pessoal de Alice, a perda do nome próprio. […] Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas. – Gilles Deleuze. Primeira série de paradoxos: do puro devir. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, EdUSP, 1974: pp. 2-3. Não há, nem na terra nem mesmo no sistema planetário divino entre os deuses, existência que esteja liberada da influência destes três modos nascidos da natureza material. Assim, a ti o mais confidencial dos conhecimentos confidenciais foi descrito por mim; deliberando sobre isso tudo, executa-o como tu quiseres. Abandonada toda variedade de religião, venha a mim para rendição e eu livrar-te-ei de todas as reações pecaminosas; não se preocupe. Mahābhārata: Bhagavad-gītā, 18:40, 63, 66

(न तदस्त पपसथिवव् वा सदसव देवेषु वा पनु ः । सतव् प्रकप सतजकमक ुि ् वदेसेः ्वासत्त्रिसेगणुि कः ४४०॥४ इसत ते जानमारववत् गह्य ु दह्य ु तर् मवा । सवमपशवकतदशेषेण वथिेच्छसस वथिा कुर ४६३४ सवधि मानि पररतवजव मावेक् शरण् व्रज । अह् तव् सवपि ापेभव् म्क्षसवषवासम मा शचु ः ४६६४)


RESUMO Trata-se de monografia apresentada para conclusão do curso de Ciências Sociais, modo bacharelado. Este trabalho foi construído a partir de etnografia de população de homens homossexuais de Marília (SP), vivenciando principalmente seus momentos de lazer em locais de frequentação pública, além de entrevistas individuais. O objetivo é explorar as principais particularidades da população mariliense em relação a outras cidades e alguns problemas sociais suscitados pelos interlocutores, buscando ainda propor ações para enfrentar os problemas. Abordou-se os temas apresentados com base na noção de identidade, almejando demonstrar que a sociedade produz multiplicidade de (homo)sexualidades. Procura-se refletir a respeito de preconceitos entre heterossexuais e homossexuais e entre os próprios homossexuais consigo mesmos, tentando compreender o fenômeno a partir de sua produção social enquanto peça integrante da homossexualidade mariliense. Destarte, introduz-se questões gerais de pesquisa, em seguida o campo e as territorialidades; a partir de uma instituição, descreve-se algumas práticas coletivas e processos pelos quais passam os agentes entre descobrir sua sexualidade e declararem-na a outrem; finalmente, retoma-se as questões iniciais e arrisca-se algumas propostas de ação. Palavras-chave: etnografia; homossexualidade; multiplicidade; identidade.


ABSTRACT This monograph was presented for graduation of Social Sciences, bachelor mode. This work was built from ethnography of gay men population from MarĂ­lia (SP), mainly experiencing their leisure time in public places, and individual interviews. The objective is to explore the main particularities of the people from MarĂ­lia compared to other cities and some social issues raised by the speakers, yet searching to propose actions to solve the troubles. It addressed the subjects presented based on the notion of identity, aiming to demonstrate that society produces multiplicity of (homo)sexuality. Wanted to reflect on prejudices between heterosexual and homosexual and among homosexuals themselves, trying to understand the phenomenon from its social production as a compounding piece of homosexuality from MarĂ­lia. Thus, it introduces general research questions, then the field and territoriality; from an institution, it is described some collective practices and processes through which homosexual people pass between they discover their sexuality and declare it to others; finally takes up the initial issues and risks some proposals for action. Keywords: ethnography; homosexuality; multiplicity; identity.


SUMÁRIO 1. Introdução: objeto, problema e método desta pesquisa........................................................12 Parte I: territorialidades e itinerários 2. As gays, as boates, os closes... .............................................................................................36 2.1 A balada como fato social total...........................................................................................37 2.2 Lazer e trabalho...................................................................................................................38 2.2.1 Recrear-se em Marília......................................................................................................41 2.3 Histórico da boate de Marília..............................................................................................45 2.4 Bar e balada.........................................................................................................................48 3. A balada LGBT: máquina desejante em suas peças..............................................................52 3.1 Produção de diferenças.......................................................................................................55 3.2 A sociedade cindida em dois...............................................................................................57 3.2.1 A categoria “discreto”......................................................................................................59 3.3 Classe desunida e massa em processo.................................................................................61 Parte II: desterritorializações e devires 4. Pré-balada..............................................................................................................................64 4.1 Armário, guarda-roupa ou penteadeira?..............................................................................65 4.1.1 Discriminação e imposição..............................................................................................67 4.2 Conhecendo pessoas...........................................................................................................68 4.2.1 Problemas consigo mesmo e problemas dos outros.........................................................69 4.3 Ser uma bicha de condições................................................................................................70 4.4 Ir a outras cidades...............................................................................................................72 5. Durante a balada....................................................................................................................76 5.1 Chegar e ahazar...................................................................................................................77 5.2 Hecceidades........................................................................................................................79 5.2.1 Lembranças de uma pintosa.............................................................................................81 5.2.2 Devir-drag........................................................................................................................82 5.2.3 “Fazer a linha (de fuga)...”...............................................................................................83 6. Pós-balada.............................................................................................................................86 6.1 Desconstruindo a balada “GLS”.........................................................................................87 6.1.1 Segunda-feira cedo: trabalhar...........................................................................................90 6.1.2 Homossexuais preconceituosos........................................................................................91


6.2 Linhas de fuga.....................................................................................................................93 6.2.1 Limites do sistema fechado local.....................................................................................93 6.3 Recriar-se na balada............................................................................................................94 7. Lugar certo, na hora errada...................................................................................................96 7.1 O mito da sociedade sem mal em linha de fuga..................................................................96 7.2 O ser feminino.....................................................................................................................99 7.3 “Ninguém tem de dizer que é heterossexual”...................................................................100 7.4 Identidade abstrata microtransformações concretas..........................................................103 Referências bibliográficas.......................................................................................................106 Anexo 1 – Instrumento de coleta de dados.............................................................................111


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1. Introdução: objeto, problema e método desta pesquisa Em Junho de 2013 o Brasil assistiu e participou de numerosas manifestações em prol dos direitos sociais. Começaram nas capitais (São Paulo, e a seguir as demais) e alastraram-se por outras cidades. Marília (SP) não foi diferente. Em uma noite de Sábado, 13 de Julho de 2013, em uma sede da igreja Assembleia de Deus, Marília recebeu a visita de Marcos Feliciano, pastor, então deputado federal e naquele ano presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH). A figura controvertida ficou conhecida pela homofobia que impregnava seus discursos, além de propostas políticas que eram claramente antilaicas. Por acaso essa igreja que o recebeu era vizinha do prédio em que aluguei um quarto. E é óbvio que o pesquisador, que tingira o cabelo de rosa recentemente, desceu à rua, não para ver o pastor, mas para juntar-se aos manifestantes na esquina de casa. A rua tinha sido fechada dos dois lados do quarteirão, de um lado pelo corpo de bombeiros e de outro pela polícia militar. Eu estranhei a pequena quantidade de gente no ato – cerca de trinta pessoas. A maioria era de estudantes de minha universidade, meus colegas de curso. Vi alguns gays (poucos) e algumas lésbicas (também poucas e em geral aparentando cerca de quarenta anos). Essa manifestação feneceu e eu mesmo me cansei e voltei para dentro de casa – nada aconteceu comigo, mas tive de encarar sozinho a barreira de policiais para poder adentrar o quarteirão. No fim da noite uma moça que estava dentro da igreja expressou-se de alguma maneira e o pastor deu-lhe voz de prisão. Havia uma página na rede Facebook marcando a manifestação contra o pastor, como havia outras para cada manifestação. No dia seguinte, nem a página existia mais. Por que essa “manifestação” foi um tal fracasso? Por que tão pouca gente compareceu, sendo que todos os meus amigos homossexuais participaram das outras manifestações? Há de fato algo muito errado com a bicharia de Marília ou eu realmente não entendi como funciona a


13 sociedade? Como pode acontecer de aquele pastor assumir a presidência da CDH mesmo todos conhecendo o discurso de ódio propalado por ele? Eu não deixaria ele sambar na porta da minha casa passar em branco; descobrirei como funciona o agenciamento do preconceito e do discurso homofóbico e buscarei os agenciamentos capazes de destruí-los... Desde que iniciei os estudos com orientadores na graduação, primeiro por ter sido contemplado com bolsas de permanência estudantil e depois por interesse próprio, a questão da identidade chamara minha atenção. A diferença entre o primeiro ano de graduação e o quinto é, além de um milheiro de livros lidos, que passei da questão meramente abstrata para a reflexão sobre uma concretude. Essa concretude, os sujeitos pesquisados, nunca foram claramente delimitados e, no fundo, eu jamais recortei claramente a questão. Não obstante, este trabalho almeja este esforço de clareza e delimitação, o que parece ser um dos objetivos que esta etapa acadêmica encerra. Quando eu desenvolvi esta pesquisa, ela exigiu de mim uma liberdade que eu não soube usar. A consequência foi um limite do campo e dos dados. Eu só consegui chegar a certos lugares, certas pessoas, em certos momentos. Só consegui trazer a ti que me lês algumas cenas “abertas”, isto é, que sucedem em locais públicos. Poderia justificar isso dizendo que recortei os objetos e campos a fim de delimitar o problema, mas a verdade é que me prendi a apenas um lugar (a balada) e isso debilitou, ao meu ver e ao de outrem, o produto ora presente. Outras perdas e danos afetivos, sociais e psicológicos foram consecutivos, o preço pago pelo contágio com toda uma multiplicidade de devires. Talvez eu mesmo tenha estado no lugar certo, mas na hora errada... Como ficará claro, o grupo escolhido para estudo goza da maior afinidade com o autor. Em verdade, o autor é um nativo, um integrante do grupo. Talvez alguns obstem que a proximidade social acarreta em subjetivismos, senso comum justificado, falta de objetividade, vinculação política nublando o compromisso com o conhecimento, entre outros problemas científicos e acadêmicos. Replico desde já três razões contra estes óbices: 1) este trabalho visa estabelecer o ponto de vista do “outro” com base na interpretação que este lhe dá, isto é, visa levar a sério o que o outro fala, porém de uma maneira politizada, o conhecimento ora produzido está comprometido com a compreensão ampla do mundo social e do grupo enfocado, mas um conhecimento descolonizado. 2) Os créditos científicos (para não dizer objetividade), espera-se assegurá-los pelo rigor teórico e metodológico; julgo ainda que a Antropologia Social dentre as Ciências Sociais é a área mais desenvolvida deste ponto de vista e mais apta a lidar com os empecilhos que lhe impõem, a si como a outras Ciências


14 Sociais, as ciências duras, quer dizer, o trabalho etnográfico aprendeu de seu objeto a lidar com essa particularidade sem cair em argumentos de autoridade etnográfica e científica. 3) Quanto à proximidade do autor e do objeto, além da proposta de um saber descolonizado, sabe-se que a personalidade do autor confluiu para as escolhas teóricas, mas este trabalho científico pretende servir à sociedade, inclusive e em especial à ultra-acadêmica; ele vai de encontro a um problema da sociedade contemporânea, não a uma vaidade do autor. Por fim, o fato de o autor ter estampado na pele as marcar do processo social que estará sob análise não macula os méritos científicos, antes tem a virtude da clareza desencantada do fenômeno. A clareza é uma virtude aqui pois indica a imersão do pesquisador no trabalho; e o desencanto não é desvirtude nem contrário à clareza porque tem a ver com a concretude do acontecer social, desgarrado de qualquer tipo de ideologia que não interprete o mundo sem os pés no chão – ideologia que, por definição, não daria conta da complexidade social nem das particularidades do objeto, uma vez que tais ideologias não comportariam a diversidade social e por isso mesmo seriam imposições extragrupais, quiçá um ardil para colonizar um saber e um grupo. Defino o problema: como os processos de construção da identidade coletiva do grupo de homossexuais pode combater o preconceito e a discriminação? Relendo agora este trabalho, devo anotar que a resposta dada ao problema partir de uma descrição das identidades ou devires homossexuais enquanto um processo social amplo que um agente atravessa. Talvez a maior lição e resposta dada pelos interlocutores seja que, antes de destruir os preconceitos, os nômades precisam deixar de ser preconceituosos entre si, é mister que os afectos contagiem todo o grupo em toda sua multiplicidade, a fim de que a máquina de guerra escapa à reterritorialização compulsiva no campo heteronormativo. Calcado na noção deleuze-guattariana de multiplicidade, dentre outros pressupostos, a identidade é o fenômeno social da diversidade de opções sexuais e suas expressões nas atividades e nas performances de gênero (BUTLER, 2003). É a identificação (HALL, 2003) de um agente com certas socialidades. Há multiplicidades de agenciamentos das homossexualidades em tudo quanto os homossexuais fazem (ainda que isso não lhes seja exclusivo). Assim, uma identidade é um platô, uma estabilização momentânea de intensidades. Tal platô é produto da máquina social e nela está inscrito. Na medida em que este agenciamento contém possibilidades de desterritorialização, ele surge como ato de produzir a máquina social. Partindo desses pressupostos, a identidade é um processo de


15 desterritorialização de intensidades que seguem no sentido de reterritorialização em outro ponto. O devir homossexual pode acontecer de qualquer jeito, há multiplicidade de devires. Entretanto, havendo segmentos inflexíveis em nossa sociedade, os devires percorrem um certo sentido. Isto que será explorado nesta monografia, evidentemente sem abranger todas as multiplicidades, porém mostrando os limites até onde a máquina social permite os agentes irem sem destruí-la e daí procurarei as maneiras de rompê-la. Por isso o problema da produção de diferença (identidades sexuais) está ligado à possibilidade de desmantelar o preconceito a partir da declaração dos próprios agentes de que são homossexuais. Veremos a seguir conceitos de identidade e pressupostos de gênero de que me servirei ao longo do trabalho. Tentarei fazer as mediações entre eles e seus quadros teóricos com a proposta esquizoanalista. O tema deste trabalho é a construção da identidade e de quais modos esse construto afigura-se individual e coletivamente. Sendo tal o tema, um conceito antropológico que pareceu apropriado para o estudo foi o de identidade à maneira de Barth (1998) porque busca traçar a dinâmica da identidade em um processo de atribuição e reivindicação de uma identidade – e aqui creio que já se evidencia que a fronteira entre os grupos envolve os agentes internos e externos concomitantemente no processo de construção da identidade. Assim, uma identidade abarca determinados símbolos, como se selecionasse signos culturais para identificar grupos, e surge em contraste com outras, sendo os agentes e suas interações a concretude da identidade enquanto ação social (em sentido weberiano). No caso da identidade de homens homossexuais, como parece óbvio, o sinal cultural selecionado para produzir a diferença (e posterior identificação, no sentido de Hall) é a sexualidade. O que não é tão evidente é que “sexualidade” mobiliza bem mais do que intercurso sexual – e neste trabalho estamos interessados diretamente nesses fatos (linguagem êmica, indumentária, performances, dentre outros). Como é possível efetuar a identificação pela sexualidade? Que símbolos os agentes de dentro do grupo dos homossexuais e os de fora (os heterossexuais) enxergam? Quanto aos aspectos individuais e coletivos, talvez Barth deixe-os de lado momentaneamente naquela obra por razões de síntese teórica. Eu, todavia, trago esta ênfase intragrupo pelas características do objeto que foi pesquisado e pela problemática que suscitei junto à literatura – a problemática está mais afim com Butler, com a questão das execuções de gênero e, amiúde, na produção de diferença a partir das performances de gênero. Importa ainda apontar, de passagem, os trabalhos de antropólogos brasileiros sobre


16 identidade, pois delineiam o aspecto político da identidade. Manuela Carneiro da Cunha (2013) e Roberto Cardoso de Oliveira (1976) realizaram estudos etnológicos com base em teorias da identidade e etnicidade para demonstrar as fronteiras étnicas de grupos indígenas brasileiros. A necessidade de estabelecer elementos concretos (objetos materiais mesmo, se possível) que atestassem a etnicidade de grupos tornou-se capital, e continua a sê-lo, quando se foi demarcar terras para reserva indígena. Quer dizer, há pelo menos dois grupos com um interesse que converge quanto ao objeto: brancos e nativos precisando de terras, uns para o agronegócio, outros para subsistência conforme sua cultura. Outrora quando da “ressurgência” de grupos étnicos, nativos ou quilombolas, a questão fica mais tensa e controversa: pode alguém voltar a assumir uma identidade de um grupo que até então estava incógnito? E como é possível provar a veracidade do fato? Este aspecto da negociação política e suas regras tácitas sobre as fronteiras identitárias aparece nesta pesquisa na medida em que abordo a diversidade social do processo de identidade e corrobora em perquirir a resposta ao problema. Contudo, deixamos de lado uma coletânea de paramentos, indumentárias, cânticos, ritos e rituais de todo tipo em prol de uma multiplicidade de modos de devir-homossexual que não é abominação nem doença, é continuação da mesma máquina social, quer dizer produto dos contágios e afectos, modificados segundo cada hecceidade e cada agente. Qual é a concretude sobre a qual aplicarei estes conceitos? Um primeiro recorte do objeto, que define as pessoas a participarem da pesquisa, é o conceito de identidade, que delimita um grupo. O grupo será o dos homossexuais. A categoria, em seu uso quotidiano, detém abrangência imensa, quase (presunçosamente) universal, indo desde o nível local até o internacional. Para os fins deste trabalho e por questões teóricas e metodológicas, o grupo será restringido à escala local, à cidade de Marília (SP) mesmo. Coletei entrevistas e sucedeu que só as consegui de homens homossexuais. As razões não são claras para mim mesmo. Iniciei com meus amigos mais próximos e passei aos amigos de amigos. Não tenho amizade e nem contato com lésbicas e não conheço travestis de Marília – aliás este fator de desconhecimento sinaliza para agenciamentos característicos de Marília, veremos isso em outro capítulo. No final, o grupo foi limitado aos homens homossexuais residentes em Marília, sem mais agentes. Porquanto o grupo específico que é alvo deste estudo é definido pela opção sexual, 1

1 Há interlocutores que rejeitam dizer que sua sexualidade seja uma opção, afirmando mesmo que se nasce em tal condição. Ninguém nasce homossexual, devém-se. Importa assinalar que “opção” sexual é o termo preferido


17 requer teorias que abordem as desigualdades e discriminações sociais que estão embasadas no sexo biológico para atribuir papéis, ou melhor, identidades de gênero. Pode-se dizer, assim, que o objeto é a identidade sexualizada dos agentes; ao passo que o problema é apreendê-la como um processo social (e jamais biológico ou psicológico); com o objetivo de compreender os mecanismos do preconceito e propor formas de superá-lo. A área de estudos é a de gênero e sexualidade, pois que “identidade sexualizada” aqui remete às performances de gênero; e dentro da área, o tema da economia política de produção social da diferença, daí o foco na homossexualidade masculina como processo. Vamos por partes. O problema da identidade homossexual é que o termo está circunscrito ao corpo, mais precisamente ao órgão genital. De parte da abominação cognitiva que é reduzir um humano a sua genitália, ao emular esta conceituação, o senso comum ativa o sistema sexogênero (RUBIN, 1993): um sexo é, por definição morfológica, penetrante, o outro, penetrado. Deriva daí o machismo. Esta é a base tácita da hierarquia social com base no gênero: se você nasceu para ser penetrado, pode realizar tais e tais atividades; se nasceu para penetrar, realizará outras. Esta redução está vigente em praticamente toda a estrutura social ocidental. O trabalho de Bourdieu (2002) tem a qualidade de ter estudado isto, tornando este fato estrutural (por definição, quase inconsciente) visível até mesmo, por exemplo, nas relações de trabalho. Mas ao conhecer a reflexão de Mariza Corrêa (1999) e sua crítica a Bourdieu, o problema do conhecimento social estruturado e estruturante fica quase fora de cena. Primeiro há a questão da universalização de uma particularidade cultural (efeito do estruturalismo). Depois os conceitos-limites, de rigidez categórica como imperativos universais, arquitetados dentro dos parâmetros daquela vertente antropológica que acabam dificultando, às vezes impedindo, o desenvolvimento do entendimento dos fenômenos sociais. Para ser mais específico, a crítica pós-estruturalista visa superar a estrutura binária dos sexos, para não deixar variantes de sexualidade e gênero serem tratados como desvio nem ligar uma a outro inexoravelmente. Tendo em vista esta crítica, o problema da identidade homossexual afigura-se mais abstrato: uma pessoa pode ser rotulada pela sua sexualidade, bem como por seu gênero, e esse por mim e por setor do movimento LGBT (grupo SOMOS, por exemplo; confira Facchini, 2005), em lugar de “orientação”. Isto porque o último denota algo cognato e inato do agente, biológico portanto, e advém da teoria da sexualidade freudiana que postula, entre outras coisas, que a homossexualidade é um estágio em que a sexualidade humana “pára”, “estagna” e não “amadurece” – como se fosse flor – a ponto de não chegar à heterossexualidade. Já assinalei que não me importa a presunçosa “origem” da sexualidade, apesar disso, tomo como axioma que a sexualidade é sociogenética e não psicogenética, como quereria Freud, permitindo-me assim buscar o processo em nível social e cultural. Essa é minha opção política.


18 rótulo pode significar divergência frente ao padrão da sociedade, podendo a pessoa ser violentada física e simbolicamente. Como se constitui o sentido desta ação social, o que legitima o preconceito e a violência? Esta parece ser uma das perguntas mais complexas da contemporaneidade – e, com certeza, eu não possuo a resposta. No entanto, eis que ouso investigar o processo de construção dessa identidade que tem tão amplos poderes sobre a vida e a morte de pessoas. Sem embargo, faço-o com a humildade de uma monografia. Há então um novo recorte, que deriva de uma cisão conceitual. Se o termo sexo está sendo tratado pelas pessoas como o aparato biológico, como estão sendo operacionalizados os conceitos de gênero e sexualidade? Provavelmente, tudo esteja mesclado na categoria sexo. Façamos distinções. Joan Scott define gênero como “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (SCOTT, 1995: pp. 86-9). Então, pela primeira proposição do conceito, podemos depreender que o gênero é como uma extensão do sexo biológico sobre as relações sociais, como um princípio de classificação à Durkheim ou ideologia à Dumont ou mesmo produção de diferença à Lévi-Strauss. A segunda proposição é como consequência ou efeito da primeira, se a diferença biológica ajuda a constituir e organizar as relações sociais, classificar e valorar atividades, o gênero estabelece relações de força, de disputa até. Deste ponto de vista, o gênero é uma construção social ou a implicação social de feições corporais sobre as próprias pessoas. Este conceito ajuda-me a compreender o problema da pesquisa, o da identidade “sexualizada” ou de gênero e demonstrar a produção de diferenças e as desigualdades justificadas por elas. Outra noção de gênero é encontrada na obra de Butler (1993, 2003) e está apoiada na noção de performatividade. Porque o agente passaria pelos processos de vivência e assim iria construindo um corpo sexuado, conforme as experiências acumuladas. A performatividade remete aos índices desse corpo que constrangem o agente a determinados atos (performances). Performatividade é assim não um “ato” singular, por ela ser sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas, e para a extensão que ela adquire enquanto ato estável no presente, ela esconde ou dissimula as convenções de que ela é uma repetição. Ainda mais, este ato não é primariamente teatral; de fato, sua teatralidade aparente é produzida para a extensão que resta [para] sua historicidade dissimular. […] Dentro da teoria do ato de fala, performativo é aquela prática discursiva que ativa ou produz aquilo que nomeia. De acordo com a capitulação bíblica de performatividade, i.é, 'haja luz!', parece que é em virtude do poder de um


19 sujeito ou seu desejo que um fenômeno passa de nomeado para existente. (BULTER, 1993: pp. 12-3. Tradução nossa)2

Prosseguindo na sua discussão, a autora chega a algumas implicações dessa reformulação de performatividade: a) performatividade de gênero não pode ser teorizada apartada das práticas regulatórias dos regimes sexuais; b) a agência condicionada pelos regimes de discurso/poder não se confunde com voluntarismo, individualismo nem consumismo e não pressupõe de maneira nenhuma um sujeito que escolhe; c) o regime da heterossexualidade opera para circunscrever e contornar a “materialidade” do sexo, que é parte da hegemonia heterossexual; d) a materialização das normas requer processos identificatórios pelos quais se assume as normas, e esses processos precedem a formação do sujeito, mas não são executadas [performed] por um sujeito; e) os limites do construtivismo são expostos nas fronteiras da vida corporal em que corpos deslegitimados ou abjetos deixam de ser contabilizados como “corpos” (BUTLER, 1993: p. 15). Gênero e sua performatividade, portanto, estão nos usos do corpo, nos trejeitos, no linguajar, na indumentária; e conceituados dessa maneira permitem incluir e analisar multiplicidade de execuções e sua produção a partir das diversas relações existentes em um contexto . Agora qual a relação entre gênero e sexualidade? Sexualidade não é (apenas) copular. Qualquer ser vivo pode utilizar seu órgão. Humanamente, a sexualidade tem a ver 3

com o significado atribuído histórica e socialmente pelas pessoas a atos tais que classificados como sexuais. Obviamente se são assim classificados é porque mobilizam determinada região do corpo. Contudo, a forma que tomam os atos sexuais humanos é rica de significados que, muitas vezes, antecedem e geram efeitos posteriores ao intercurso e é então que entram em jogo outros signos que estão além da genitália. Sexualidade pode ser analisada como uma gramática, com regras de interpretação de sinais diacríticos para estabelecer certa comunicação com pessoas determinadas. Ainda mais, sexualidade diz respeito às relações sociais e aos atos de agentes, os quais, de alguma forma, estão significados pelo sexo, são 2

3

Em inglês no original: Performativity is thus not a singular "act," for it is always a reiteration of a norm or set of norms, and to the extent that it acquires an act-like status in the present, it conceals or dissimulates the conventions of which it is a repetition. Moreover, this act is not primarily theatrical; indeed, its apparent theatricality is produced to the extent that its historicity remains dissimulated. [...] Within speech act theory, a performative is that discursive practice that enacts or produces that which it names. According to the biblical rendition of the performative, i.e., "Let there be light!," it appears that it is by virtue of the power of a subject or its will that a phenomenon is named into being. No dicionário, a entrada desse verbete é reduzida a esta face do fenômeno “condição de sexual; sexualidade, sexo” mas o dicionário pode ser generoso na medida em que não vincula sexo e gênero ao passo que o senso comum não é tão generoso assim. Fonte: FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio século XXI escolar: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


20 antes relações sociais que envolvem o intercurso. Foucault (2012) ensina que a sexualidade, no Ocidente, tornou-se um campo de saber-poder. Quer dizer, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, a classe burguesa apropriou-se dos meios de produção, inclusive de produção de saber. O saber médico chamou para si a autoridade para prescrever a sexualidade saudável – sua referência era a sexualidade burguesa, patriarcal, machista, familiar, heterossexual, “puritana” etc. Assim, esse rizoma da sexualidade configurou instituições para educar o corpo e os prazeres. Divergir da norma aqui significaria afrontar a ordem estabelecida, e a medicina viria corroborar a criminalização e cura dos “desvios”. Isto posto, a sexualidade surge como campo em disputa. Tal esforço de conceituação e diferenciação visa inscrever a questão da sexualidade no quadro teórico de gênero. A conceituação acima está afinada com a discussão de Judith Butler, em seu Problemas de gênero (2003). Nestes ensaios, a autora levanta questões que diversas teorias de gênero suscitam, às vezes implicitamente, e não resolvem. Quando Butler lança luz nesses pontos opacos das teorias, surge a necessidade de flexibilizar o conceito de gênero. Por fim, o que sucede é que gênero requer romper com a estrutura biológica e passar a ser encarado como uma performance. O termo português para esta palavra pode ser desempenho ou execução, guardando relações semânticas com espetáculos, palcos e encenações, como as representações de Goffman (1972), mas também cumprimento de um script. Importa ressaltar o aspecto semântico porque auxilia a apreender o caráter cultural e 4

simbólico do gênero e das relações sociais embasadas nele; outrossim, por preciosismo de minha parte, prefiro grafar em português algum dos termos listados acima em lugar da palavra inglesa, sem prejuízo do rigor conceitual. Para este estudo, Butler contribuiu para pensar o gênero além das questões sexuais. Há mesmo quem diga que a autora inaugura a corrente teórica queer ou ainda pós-feminista. Sua reflexão foi-me muito cara para compreender o gênero como um aspecto constituinte do sujeito, como uma temática e problemática maior do que “as relações de desigualdade entre corpos”. Gosto mais ainda do subtítulo do livro de Butler Feminismo e subversão da identidade (op. cit.) porque sugere que as relações de gênero são encenações consideradas pelo coletivo como atributos da identidade de gênero (na verdade o sexo, para o senso comum). Subverter ou não colaborar com o script de gênero normativo seria subverter a identidade. Quer dizer, se a identidade é construída pelo que as pessoas intragrupo 4

Fonte: Minidicionário Michaelis inglês-português/português-inglês. São Paulo: ed. Melhoramentos, 1989.


21 reivindicam e pelo que as pessoas extragrupo imputam-lhes. Há um processo dialético que engloba e ressignifica ou exclui atributos. Tais podem ser a própria sexualidade, mas também valores, respeito, materializados em signos como a linguagem, os trejeitos, os hábitos – os de fora veiculando outros significados sobre os mesmos significantes – que demarcam as 5

fronteiras identitárias. No caso concreto dos homossexuais, o que lhes imputam os de fora é por vezes reapropriado e perde a carga pejorativa (pelo menos no contexto interno), ao passo que essas ressignificações podem ser evocadas para afastar do grupo (e do indivíduo de dentro) características presumidas pelos de fora. É o que narra a história do movimento homossexual no Brasil e nos EUA (FACCHINI, 2002; FACCHINI; SIMÕES, 2012; KATZ, 1996). Parece-me então que uma maneira acessível de registrar e analisar este processo de construção da identidade seria a corporalidade. Em Antropologia, especialmente, pode-se encontrar uma copiosa bibliografia sobre o corpo. Não é o momento de dialogar com esses autores, mas posso adiantar que Mauss (2003), por exemplo, explica o quanto o corpo é social e carrega as marcas do grupo. Assim sendo, os usos do corpo, desde os trejeitos e indumentária até a própria sexualidade, podem ser uma fonte boa para estudar a identidade sexualizada. Note-se ainda que literatura antropológica que aborda questões de corpo e gênero tomam por objeto mais restritamente as travestis (ver: BENEDETTI, 2005; e para transexuais: BENTO, 2006); talvez haja azo de dialogar com tais etnografias adiante, mas apenas transversalmente para não fugir do tema. Brevemente introduzidas as principais teorias que ajudaram a construir o objeto e o problema, creio poder sistematizá-los. O objeto , já expliquei, é o grupo dos homossexuais de 6

Marília, estritamente entre dezoito e quarenta e dois anos de idade – dos mais velhos, limitase a faixa etária por razões de desconhecimento do autor, isto é, o pesquisador não tem amigos mais velhos que 42 anos; já os menores de dezoito anos de idade demandariam autorizações dos responsáveis e dificuldades burocráticas que preferi contornar para evitar impropérios. Tal objeto será abordado pelos conceitos de identidade, gênero e sexualidade, conforme expus. Esta escolha justifica-se frente ao problema da pesquisa. Como se dá o processo de tomar para si a identidade sexualizada e quais as implicações para o agente? Finalmente, todos estes recortes justificam-se, ainda diante da problemática, em tentar ampliar a compreensão do 5 De fora do grupo, isto é, heterossexuais. 6 Vale a pena ressaltar que o objeto é uma construção teórica do autor, a categoria grupo, com seus recortes, premissas e atributos foi moldada pelo pesquisador. As pessoas são a concretude dessa abstração, são sujeitos da pesquisa e não objeto.


22 mundo social no que diz respeito aos mecanismos do preconceito e o sentido que faz para os agentes essa ação social, o preconceito, e o que pode ser feito pelos agentes para superá-la. Todas as teorias escolhidas caminham na mesma direção. Como se vê, o que está em questão em momento algum foi a origem presunçosa da sexualidade. Para mim é quase axioma que a sexualidade é fruto das relações sociais, sendo ela própria uma relação social. A questão maior é conhecer o porquê de rejeição da diversidade social, especificada na sexualidade. Junta-se aqui o objetivo mais geral da pesquisa: compreender o processo de construção coletiva de uma identidade para perquirir possibilidades de desconstrução do preconceito – devidamente mediado pelas características do objeto apontado acima. Pretendo futuramente trabalhar para ampliar o entendimento sobre esse fenômeno e portanto começo aqui com um estudo sobre os agentes-alvo do preconceito e as particularidades antropológicas do grupo. Como eu disse antes, a identidade é uma questão política e envolve a construção dos sujeitos, donde me vem que empreendo aqui o fundamento de uma pesquisa maior. Os objetivos específicos são:  Descrever o(s) processo(s) de um indivíduo identificar-se e declarar para si e para outrem uma identidade sexualizada; Como vimos junto às teorias de gênero, o sujeito é histórico e suas bases não são biogenéticas nem psicogenéticas. Têm antes a ver com o entorno social do agente, com suas condições sociais. Analisaremos depoimentos do processo de declaração (para si e para 7

outrem) e veremos que é condicionado pela história e condições materiais do sujeito, sendo portanto sociogenético. Isto não quer dizer pesquisar a origem da sexualidade, mas como o agente aprende a lidar com sua variedade. Em termos deleuze-guattarianos, cartografar a desterritorialização no sentido de agenciamento da homossexualidade, em toda sua topografia.  Comparar particularidades, singularidades de identidades individuais com a coletividade, com aspectos genéricos; Já que o estudo partirá do conceito de identidade, entendida como um processo de imputação e reivindicação de atributos, precisaremos descrever o que os agentes admitem como parte de uma identidade homossexual, o quanto convergem e divergem suas opiniões. Mas quer dizer, cada indivíduo modifica mais ou menos esses atributos, dando à identidade genérica (no duplo sentido de “geral” e de “gênero”) uma nuance pessoal; e, simultaneamente, há atributos que ele não pode denegar segundo sua vontade, talvez não por coerção de grupo, 7 “Declarar-se” é preferido por mim ao invés de “assumir-se” pois este denota e conota culpa, ao passo que aquele sugere expressar sentimentos.


23 mas pela tentativa do próprio indivíduo de enquadrar-se em padrões culturais que serão importantes para estabelecer seus contatos, para ser considerado um par. Até porque a identidade coletiva é uma abstração antropológica que serve para auxiliar na compreensão da realidade social. No lugar apropriado estudaremos este ponto. Novamente sendo esquizoanalista, estudarei o rizoma que a identidade do indivíduo faz com a do coletivo.  Analisar a economia dessa construção em seus efeitos estruturais. Tomei a identidade como um processo de troca, uma negociação de atributos e “vantagens” políticas. Sendo assim, cumpre descobrir o que está em jogo na definição das fronteiras, os objetivos dos agentes quando almejam subverter os aspectos negativos e as formas que encontram de superar os problemas que enfrentam (preconceito). Paralelamente, para entender esta economia política será preciso contextualizá-la na estrutura da sociedade brasileira: conservadora e patriarcalista, fortemente machista nas relações sociais. Essas relações sociais condicionam a ação dos agentes e precisamos explorá-las para avaliar o quanto eles avançam no processo de transformação da visão sobre a homossexualidade em derrocada do preconceito, até que ponto eles subvertem as ideias-valores ou adequam-se-lhes para transmitir uma imagem de “decência”. Sobre este ponto, importa desvendar os segmentos rígidos e flexíveis para conhecer o circuito de produção (produção, troca e consumo) e as linhas de fuga. Espero que tenha ficado clara a justificativa das escolhas teóricas e dos recortes do objeto perante o problema da pesquisa. Os objetivos aqui delineados estão atrelados às mesmas teorias e justificados pela questão social urgente (preconceito). Também justifica-se, a metodologia adotada, pela característica do “objeto” de estudo (pessoas e processos sociais). Revisemos a metodologia. O procedimento adotado, próprio da Antropologia, para levantar uma dúvida sistemática, coletar dados e analisá-los foi a etnografia. Portanto, este trabalho apresentará trechos ricamente ilustrados com descrições de práticas do grupo, acompanhadas das explicações etnológicas, isto é, interpretadas conforme o ponto de vista nativo. Certamente não sou a autoridade etnográfica que vai reportar o que viu. Antes, a proposta desta pesquisa é levar ao conhecimento da sociedade a cultura do grupo pela voz do próprio grupo. Não que tenha sido eleito representante do grupo, mas por ser integrante dele, ouso propagar um conhecimento descolonizado. Retratar os fatos da vida de homossexuais com suas próprias razões culturais de ser; afastando a heterossexualidade compulsória, os machismos e


24 conservadorismos de que a sociedade brasileira está eivada – é a isso que chamo saber descolonizado. Para coletar dados fiz observação participante nos locais de lazer exclusivos ou preferidos dos homossexuais (alguns bares e baladas). Lugares que eu mesmo frequento e onde supostamente exerce-se a homossexualidade em público. Foi mister ainda coletar depoimentos individuais de agentes que participam do meio, tanto para saber das pessoas o que elas acham de uma identidade grupal e como encaram a identidade que tomaram para si. Tais depoimentos são riquíssimos de vivências de todo tipo que exemplificam e demonstram a concretude dos fatos. Quero dizer, os relatos dos agentes são experiências de relações problemáticas que envolvem o gênero e a sexualidade (biológica e social) que sinalizam para as características das relações sociais e para sua divergência ou convergência formando o sujeito, limitando-o ou emancipando-o. Compõem assim parte da resposta ao problema da pesquisa e ao mesmo tempo suscitam outros problemas – que ficarão para uma oportunidade futura. O instrumento de coleta de depoimento foi um questionário de duas questões. A primeira situando culturalmente o participante: idade, sexo, opção sexual, características familiares, onde nasceu e morou, emprego e trabalho, formação acadêmica, religiosidade, estado civil. Estes dados ajudam a contextualizar as proposições dos agentes, a compreender determinadas posições. Por exemplo, se ele for de classe média e tiver família nuclear e afirmar que não se identifica com a identidade do grupo homossexual porque acha que ele não tem de ser “escandaloso” ou travestir-se para combater o preconceito porque nasceu homem e deve “honrar o que tem no meio das pernas” (Marcelo) , certamente sinaliza para as ideias8

valores da classe social dele e que “estruturam” sua apreciação das atitudes conforme a ideologia da classe social. Aplico assim o princípio ensinado por Marx e Engels (2007) de buscar o homem real com suas ideias enraizadas no seu meio material, ou seja, contextualizo historicamente os dados. Também lapidei os dados tendo o cuidado de repetir similar roteiro de questões com cada participante. É a segunda questão, que na verdade é um tema para iniciar o diálogo. Na maioria das vezes comecei perguntando quando e como e pessoa deu-se conta da sexualidade e depois se ela identifica-se com a identidade do grupo. Deixo entretanto a pessoa divagar e contar tudo que quiser na ordem que lhe ocorrer. Abre-se mais espaço para a pessoa pensar e 8

Quando ocorrer um nome entre parênteses no texto, estou indicando o cognome que atribuí ao interlocutor, de cujo depoimento extraí uma citação.


25 encadear fatos com questões sociais. Faço as perguntas da pesquisa, um pouco adaptadas: acha que existe uma identidade do grupo? Em que você reconhece-se ou não nela? Acha que os hábitos tipicamente homossexuais contribuem para inverter a carga negativa do grupo? Cuido ainda de anotar tudo no netbook. Usualmente pesquisadores gravam o depoimento e depois transcrevem-no. Preferi transcrever direto para economizar tempo e porque realizamos as entrevistas, na maior parte das vezes, em minha casa, sendo mais cômodo, inclusive para os participantes. Abaixo, um quadro em que calculo as frequências das variáveis da primeira questão das entrevistas. Na primeira coluna “Variável” consta a variável, na “Tipo” constam tipos da mesma variável. Em “Frequências”, aponto o número de ordem da entrevista em que ocorreu a variável; seguido da soma comparada com o total (Σ), isto é quantas vezes cada variável apareceu dentro dos dezesseis casos; e a frequência propriamente estatística em porcentagem (%). Houve uma décima-sétima entrevista, muito cara, de um proprietário de uma boate. Não está inserida aí porque as questões foram totalmente outras, sobre concorrência e história da balada em Marília. Quadro 1: Variáveis e frequências censitárias da população Variável Sexo, ou gênero

Cor da tez (autodeclarada) Religião

Nº da entrevista

Σ

%

Masculina

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16

16/16

100

Feminino*

7

1/16

6,25

Homossexual

1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 11, 12, 14, 15, 16

12/16

75

6, 13

2/16

12,5

Heterossexual

9, 10

2/16

12,5

Bicha-bofe

1, 4, 7, 14

4/14

28,57

Gay-gay

2, 3, 5, 6, 8, 11, 12, 13, 15, 16

10/14

71,43

Branca

1, 4, 6, 9, 10, 12, 16

7/16

43,75

Negra

2, 11, 14

3/16

18,75

Parda

3, 5, 8, 13, 15

5/16

31,25

Amarela

7

1/16

6,25

Católico

1, 2, 3, 4, 5, 7, 10, 13, 16

9/16

56,25

Espírita

8, 11, 15

3/16

18,75

Sexualidade Bissexual

Idade**

Frequências

Tipo


26

Família*** Situação civil Empregado Escolaridade

Ateu/Agnóstico

6, 9, 12

3/16

18,75

Wicca

6

1/16

6,25

Umbanda

6, 14

2/16

12,5

Nuclear

1, 3, 4, 5, 11, 12, 13, 15, 16

9/16

56,25

Monoparental

2, 6, 7, 8, 9, 10

6/16

37,5

Aparental

14

1/16

6,25

Solteiro

1, 2, 3, 5, 7, 8, 10, 12, 13, 14, 15, 16

12/16

75

Namorando

4, 6, 9, 11

4/16

25

Sim

1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 15, 16

12/16

75

Não

4, 9, 10, 14

4/16

25

Médio

7, 9, 10, 12, 14

5/16

31,25

Superior

1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 11, 13, 15, 16

11/16

68,75

Nativo

5, 8, 10, 11, 12, 14

6/16

37,5

10/16

62,5

13/16

81,25

3/16

18,75

Migrante 1, 2, 3, 4, 6, 7, 9, 13, 15, 16 Locais de moradia**** Mora com os pais 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16 Mora sozinho

1, 2, 13

Fonte: construída pelo autor a partir das entrevistas. *Não tive entrevista de mulher. Este agente fez uma brincadeira jocosa dizendo que era mulher. Ver tabela 2 infra. **É conhecida a cisão etária entre as pessoas que operacionalizam um modelito bicha-homem e as que assim fazem com o gay-gay (ver infra. Tento aqui expressar esse qualitativo. Ver infra 3.2. ***Nuclear: pai, mãe e filhos, família resultante de um único e mesmo casamento. Monoparental: família em que os cônjuges divorciaram-se ou algum deles faleceu. Aparental: pessoa não cresceu com os pais por qualquer motivo. ****Nativo: nasceu e vive em Marília. Migrante: nasceu em outro município e veio morar em Marília.

Na sequência, o quadro 2 expõe os dados da primeira questão das entrevistas. Transcrevo as respostas originais na coluna “Data da entrevista e características culturais”. Viso explicitar os perfis dos interlocutores para situar o leitor. Doravante, quando eu citar algum trecho, remeterei aos cognomes constantes neste quadro. A coluna “Nº” indica o número de ordem da entrevista; a coluna “Cognome”, o nome que inventei para cada interlocutor. Quadro 2: Caracteísticas culturais de cada interloutor Nº

Cognome Data da entrevista e características culturais

01

Rafael

15-07-2012: sexo: masculino; idade: 36; cor da pele: branca; família: nuclear, pais nunca se separaram; de onde vem? de Assis [SP], morei em várias cidades, boa parte [da vida] em Assis. Em 2006 vim para Marília Religião: Católico – reafirmei a fé há uns 3 anos, por curiosidade.


27 Formação: Superior: bacharel em ciências da computação. Empregado? Editor de imagens. Nada a ver com a formação superior. Faltou empenho; Situação civil: Solteiro.

Vinícius

16-08-2012: sexo: masculino, homem; cor da pele: moreno; idade: 21 completos; religião: católico não praticante; formação: superior completo: design gráfico; empregado? Designer (autônomo); família: mãe divorciada, casal de irmãos, todos estudados, infelizmente [sou] o mais novo; de onde vem? mudei de Garça [SP] para Marília, por uma oportunidade de emprego. Perspectiva de mudar daqui. Mudei para ter liberdade. Situação civil: Solteiro.

Mário

26-02-2013: sexo: masculino; idade: 21 anos [22 em maio]; cor da pele: pardo; família: nuclear; casados desde sempre; de onde vem? moro em Oriente [SP], morei em Campinas [SP] dos 18 aos 20 anos; religião: Católico, ex-evangélico holling. Formação: Superior em curso: administração. Empregado? Almoxarife em uma escola de Marília; promoter de balada. Situação civil: Solteiro.

Marcelo

27-02-2013: sexo: Homem; idade: 27 [vai fazer 28]; cor da pele: branco; família: nuclear; filho único; de onde veio? de Americana, há 21 anos, morei em várias cidades porque os pais separaram e voltaram duas vezes; religião: católico, frequentei quadrangular também, porque as pessoas das famílias levavam ora na católica ora na neopentecostal; formação: fiz um ano de seminário diocesano, houve problemas com os colegas que me incriminaram, mas eu não sabia da minha sexualidade; no seminário religioso dei-me conta de que era homossexual. Concluí filosofia no seminário; faço “superior de tecnologia em produção sucroalcooleira”. Empregado? Disponível para o mercado de trabalho – por ocasião do estágio e das pendências financeiras na universidade. Situação civil: Namorando há um ano e meio.

Mateus

20-04-2013: sexo: masculino; idade: 22; cor da pele: parda; de onde vem? Marília; família: mãe; pai falecido; religião: católico; empregado? Estagiário no setor administrativo de uma empresa; formação: técnico em administração e em secretariado; segundo ano de faculdade de administração; situação civil: solteiro.

06

Jairo

07-05-2013: sexo: masculino; idade: 28; cor da pele: branca; de onde vem? Nasci em São Paulo [SP], vim para Marília aos 11 anos, mudança por doença respiratória; família: mora com mãe e avó, vivi com meu pai em São Paulo, mas ele já tinha outra família, sempre morei com elas desde que me mudei; religião: agnóstico, wicca-umbanda; empregado? Professor português, libras e intérprete, bicos; situação civil: namorando há cinco anos.

07

Ademir

02

03

04

05

31-05-2013: sexo: de dia menos homem, à noite mulher; idade: 25 [na verdade 28]; cor da pele: amarela; de onde vem? Nasci em Lins, [morei em] Guaimbê [SP], Marília; família: minha mãe separou e casou de novo; religião: católico; empregado? Sim, não é o emprego dos sonhos, mas, por enquanto, é o que tem para hoje; situação civil: solteiro, estamos aí de


28 madrugada tentando pegar os boy magia, está difícil, tem gente fazendo por R$1,99; formação: técnico de enfermagem, faculdade trancada.

Celso

02-06-2013: sexo: masculino; idade: 31; cor da pele: pardo; de onde vem? Marília; família: separados, moro com mãe e avó, sou filho único; religião: originariamente espírita; empregado? Suporte administrativo [contrato indeterminado]; situação civil: solteiro; formação: superior: processos gerenciais.

Rodrigo

02-06-2013: sexo: masculino; idade: 19; cor da pele: branco; de onde vem? São Paulo, com dez anos vim para Marília; família: órfão de mãe, moro com pai e irmã; religião: considero-me ateu, não tenho crença em nenhum deus. Algum contato pretérito com catolicismo; empregado? Pedi demissão para poder estudar; situação civil: solteiro quase namorando; formação: ensino médio completo.

10

Marcos

21-08-2013: sexo: masculino; idade: 18; cor da pele: branca; de onde vem? Marília; família: moro com mãe, avó é vizinha, criado pela avó porque minha mãe começou a trabalhar. Mãe separou quando eu tinha quatro anos. Problemas com bebida [da parte do pai]; religião: católico; empregado? não; situação civil: solteiro; formação: ensino médio completo, técnico em secretariado, técnico em enfermagem em curso. Penso em fazer faculdade de enfermagem.

11

11-10-2013: sexo: masculino; idade: 35; cor da pele: negra; de onde vem? Marília, nascido e mal criado aqui; família: família nuclear; religião: originalmente católico, depois presbiteriano, atualmente espírita Guilherme kardecista; empregado? Sim, coordenador comercial, trabalho viajando; situação civil: namorando; formação: superior completo em enfermagem, sistema de informações, pós-graduação em urgência.

12

Caco

17-10-2013: sexo: outros [brincadeira] masculino; idade: 29; cor da pele: branco; de onde vem? Marília; família: pais separaram quando tinha doze anos, voltaram quando tinha 18 anos; religião: mente aberta, aberto a qualquer religião, aceito e respeito mas prefiro não ter religião porque acho que ela complica a vida das pessoas, uma preocupação a mais, desnecessária. Identifico-me com o espiritismo talvez porque seja a única crença que aceita a homossexualidade; empregado? Funcionário público – agente de organização escolar, e cinema independente; situação civil: solteiro; formação: ensino médio completo e cursos técnicos em administração, secretariado.

13

Juliano

05-11-2013: sexo: masculino; idade: 37; cor da pele: parda; de onde vem? Marília, morou em Vera Cruz dos dez aos trinta anos de idade; família: nuclear, duas irmãs, sou o mais velho; religião: católico não praticante; empregado? Sim, secretário; situação civil: solteiro; formação: superior completo, administração; faz curso técnico em segurança do trabalho, já possui técnico em contabilidade, histotecnologia.

14

Valério

08

09

07-11-2013: sexo: masculino; idade: 18; cor da pele: mulato; de onde vem? Marília, morei um ano e meio em Suzano, moro no sítio por razões de saúde; família: perdi a mãe com um ano e oito meses, fui morar com


29 os avós maternos, meu pai deixou-me com os avós; religião: candomblé e umbanda; família parte umbandista, parte neopentecostal, parte satanista; empregado? não; situação civil: solteiríssimo; formação: ensino médio, cursando 3ª série.

15

16

Caio

15-11-2013: sexo: masculino; idade: 24; cor da pele: pardo; de onde vem? Lins; morei até os dez anos de idade; veio para Marília por uma questão pessoal do pai; família: nuclear; religião: católico, nunca me senti católico, desde pequeno via as coisas, pressentia e queria entender o porquê de tudo isso. Frequentava a igreja evangélica [neopentecostal], mas só sentia sono. As pessoas me convidaram a ir à católica, e senti necessidade de me batizar na católica. Fui me afastando. Sempre curioso quanto ao que me acontecia. Comecei a ver algumas coisas sobre o espiritismo. empregado? sim; situação civil: solteiro; formação: administração com ênfase em comércio exterior [superior completo].

Leonardo

sexo: masculino; idade: 27; cor da pele: branco; de onde vem? São Paulo, morei até os treze anos, Campos Novos Paulista por sete anos, vim para Marília com 19 ou 20 anos; família: nuclear, pai faleceu recentemente; religião: católico não praticante, gosta de espiritismo, lendo sobre umbanda; colégio católico semi-interno; maçom; empregado? Sim, supervisor de turismo; situação civil: solteiro; formação: superior completo em turismo.

Fonte: construída pelo autor a partir das entrevistas.

Revisando esse processo, atinjo um amadurecimento antropológico. Isto é, as condições de pesquisa. Já anotei que escolhi uma população restrita a uma cidade, onde resido. Essas entrevistas e roteiros não foram o que eu esperava. De início, as pessoas dispuseram-se a colaborar. Ofereci-me para ir até suas casas ou mesmo pagar um passe de ônibus para que viessem até mim. Não deu certo. Sempre havia muitas coisas para as pessoas fazerem e minha pesquisa foi ficando em segundo plano. Os amigos e conhecidos diziam que era porque trabalhavam e estudavam, ocupando dia e noite e não existindo tempo hábil. Nos finais de semana, as pessoas estavam em outras cidades ou fazendo seus trabalhos, provas e TCC, não se podendo dedicar cinquenta minutos (tempo estimado para uma entrevista) ao meu próprio TCC. Alguém argumentou que era por timidez das pessoas. Eu discordo, se fosse timidez eu nunca saberia que eram homossexuais, pois seriam enrustidos e não nos teríamos conhecido nos meandros LGBT. Falta de tempo? Pode ser. Mas eu mesmo trabalho e estudo e arrumo tempo para pesquisar. Também não se pode alegar desinteresse, uma vez que as pessoas demonstraram curiosidade em participar e conhecer meus resultados. Houve mesmo flexibilidade de horário: fizemos entrevistas de madrugada. Entrevistei mais de uma vez alguns interlocutores, chegando a mais de três horas ininterruptas de diálogo. Tentei resolver o


30 problema do tempo construindo um instrumento de pesquisa, sacrificando a espontaneidade de uma entrevista, um questionário para dissertar. Enviei-o por correio eletrônico para algumas pessoas com termo de esclarecimento, livre consentimento e instruções. Nunca os recebi de volta. Ainda mais: certa feita fiz um cálculo estatístico do erro a fim de determinar uma população mínima. Encontrei algo em torno de oitenta pessoas para um erro de 0,05%. De nada vale reproduzi-lo aqui, pois que se consegui dezesseis entrevistas foi muito. O anexo 1 contém o questionário que elaborei para enviar por correio eletrônico; ele mostra o roteiro de temas seguido por mim durante as entrevistas. Felizmente, em pesquisa nada é perdido. Nem a ausência de interlocutores, nem mesmo aquela entrevista cujo interlocutor fez pilhéria das questões (entrevista nº 7). Tudo isso sinaliza para as temporalidades dos agentes. Minha carta na manga seria a observação participante. Não é simples assim: se não encontrei as pessoas para entrevistas, tampouco pude ir com elas a um bar por exemplo e fazer as perguntas ali, sem caderno nem computador. Perguntas “óbvias” sobre o que as pessoas fazem a nossa volta, para captar a interpretação do sujeito interagindo com a sociedade. Outrossim houve as vezes que quis ir à balada com as pessoas e não pude por doença, falta de dinheiro, estar atarefado ou em outra cidade ou ainda porque foram para outra cidade e eu não caberia no carro. Sorte foi que não começamos essa pesquisa em 2013 e temos, portanto, material e conhecimento acumulado dos cinco anos anteriores (desde 2009), quando me mudei para Marília a fim de cursar a graduação em Ciências Sociais. As entrevistas supriram a observação na medida em que eu embuti situações hipotéticas para o interlocutor dizer o que faria ou explicá-las. E as entrevistas foram supridas pela observação, quando não pude entrevistar a pessoa mas encontrei com ela no bar ou na balada. Quiçá esta rudeza encarada pelo pesquisador faça parte do ofício de etnografia. Metodologicamente, aprendemos de Severino (2003) como construir objeto, problema, objetivo e justificativa de pesquisa científica. Sem embargo, a etnografia passa no crivo da biografia do pesquisador (PEIRANO, 1995). As condições de pesquisa retroalimentam a teoria antropológica. No meu caso particular, apesar de prezar por uma linguagem floreada, com narrador em primeira pessoa, polifonia e estilística própria; prefiro uma estrutura mais rígida de texto. Isto é a forma da escrita, domesticando a subjetividade em prol da clareza. Por outro lado, a personalidade forte do pesquisador cunhou um texto um tanto bruto. Os termos nativos são muito valorizados (como fez Malinowski), mas também são traduzidos (como fez


31 Evas-Pritchard), tece-se um diálogo entre o êmico e o ético (como fez Sahlins). Assim, a forma da escrita etnográfica surge em uma brecha, quando se aproximam alguns estilos, autores e teorias. O mesmo pode ser dito da construção do conceito que é o objeto desta pesquisa. Ele surge quando eu aproximo teorias e conceitos. Este processo foi observado por Foucault quanto ao campo de saber-poder da sexualidade (FOUCAULT, 2010; 2012). De mais a mais, a sexualidade não existe em si, apesar de tentar desterritorializá-la na análise que eu empreendo, sabe-se que o capitalismo utiliza-a para promoção mercadológica (MACRAE, 2005; SIMÕES; FRANÇA, 2005) além das questões de saber-poder explicitadas por Foucault (op. cit.). É como um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995) que está por toda parte, unindo esquizofrenicamente coisas que se nos apresentam como apartadas e fazendo e refazendo infinitas relações entre si de maneiras diversas. Durante e após a coleta pude verificar modas da população no tangente ao objeto e ao problema da pesquisa. Fui assim reajustando as perguntas e organizando as questões teóricas conforme proposições repetiam-se mais frequentemente. O desenvolvimento do trabalho fará a conjugação das hipóteses respaldadas nas teorias com os dados obtidos, preparando para arriscar conclusão de ordem local e geral. Considero ainda que as técnicas utilizadas são coerentes com a metodologia porque afastam as precipitações individuais do pesquisador quando excitado pelos fatos. Isto é, trazem opiniões diversas para confrontar as crenças científicas do pesquisador sem contudo podar a realidade para que caiba nas teorias. Importa, por fim, ressaltar a fundamentação dos conceitos e premissas teóricas nos próprios dados; tanto para ficar com os pés no chão e não devanear em abstrações e generalizações, como para dar concretude aos argumentos. O problema da pesquisa foi recortado com o quadro teórico, mas este quadro será alargado ou reduzido sempre que a realidade exigir. Assim também os conceitos escolhidos para analisar os dados estarão em questão todo o tempo, jamais podendo deslegitimar um dado empírico por não o abarcar. Tal postura não é ecletismo nem relativismo absoluto mas um esforço para ser contemporâneo à realidade social estudada, sem engessá-la. Porque o compromisso aqui assumido é o de ampliar nossa compreensão do mundo social e por isso a realidade manda na pesquisa. Finalmente, algumas observações sobre as notações adotadas e um tratado sobre o pajubá. Quanto à voz narrativa, é usual nos textos acadêmicos o uso da primeira pessoa do plural. Em Antropologia, no que concerne às questões etnográficas, é comum o uso da


32 primeira pessoa do singular. Por razões de estratégia expositiva (ver infra, 2.1) escolhida, por privilegiar a polifonia (autores, interlocutores e o próprio pesquisador) e o estilo um tanto dialogado do texto, ocorre ora aparecer primeira pessoa do singular (eu) – ao longo de todo o texto, por ser a etnografia uma experiência muito particular e notadamente quando descrevendo alguma situação observada. Ora a primeira pessoa do plural (nós) – que vem retomar o diálogo com o/a leitor/a, apresentando-lhe alguma proposição, e mais raramente sinalizar para o rizoma pesquisador-interlocutores ou pesquisador-autores. Vez por outra sucede ainda que seja impessoal – por ser reflexivo ou por tratar-se de situação instável ou tempo incerto, pessoas desconhecidas etc.. Também temperei meu texto com meu humor sarcástico e irônico, não poupei risos porque a gente se ri de si mesmo. Ressaltando: não é que eu utilize mal as vozes e tempos verbais, isto depende se rumino comigo mesmo um assunto ou se exponho-o a ti, leitor/a. Com relação à questão da estilística. Eu não escrevo exclusivamente para ser técnico, mas também para ser palatável. Já dizia a poetiza via rede virtual: as más línguas falam de mim, as boas me percorrem. Se fosse para escrever apenas para público especializado, eu sentiria como se extraísse os dentes de meus entrevistados. Não que eu acredite que este trabalho, best seller que é, venha a ser amplamente divulgado e consumido. Mas eu quis escrever em português e não em sociologuês – sem prescindir da precisão e rigor conceituais e científicos. E confesso que tenho um vício de linguagem – preciosismo: “requinte ou sutileza excessiva no falar e no escrever”. Isso pode insinuar que um tal rebuscamento esconda uma 9

linguagem afetada, artificial, cheia de sutilezas e vazia de conteúdos. Gostaria de arguir que o rebuscamento é um mecanismo de controle da polissemia do idioma, e de mais, não se trata de outro idioma e por isso mesmo uma tal dificuldade deveria ser superada pelos lusófonos nativos – gosto de escrever em estilo barroco. Outra face daquele vício é a mania de traduzir para o português expressões inglesas já naturalizadas. Exemplo: performance – execução, atuação. Performance é também um conceito de Judith Butler muito caro para minha análise. Traí mesmo assim o jargão acadêmico pelo vernáculo. Em alguns pontos, para manter a precisão conceitual, utilizei o termo inglês, mas nem por isso deixei de grafá-lo em itálico. Palavras usadas corriqueiramente em inglês foram traduzidas sem aviso: shopping center virou “centro de compras” e show, apresentação. Grafei os nomes de dias das semanas e às vezes o nome de meses com inicial maiúscula. Há muitos outros nomes grafados com inicial 9

Fonte: FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio século XXI escolar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 551.


33 minúscula em português, procedi diferentemente por serem objeto de estudo ou pelo menos coordenadas para a cartografia aqui proposta e por serem nomes próprios. É engraçado as críticas incidirem sobre esses dois pontos, a voz do narrador e o estilo, mais acidamente sobre o primeiro. Em português há apenas duas vozes (ativa e passiva)... é realmente obscuro e complexo o modo como escrevo? Isso que te escrevo, a ti parece arrogância? Gostaria que não parecesse; eu não sou arrogante, apenas caleidoscópico, reflito multiplicidade de vozes. De resto, minhas notações não têm segredo. Palavras estrangeiras em itálico. Muito excepcionalmente, itálico para destacar um termo ou locução, devidamente sinalizando se a ênfase é do pesquisador ou do interlocutor ou de autor. O texto ficou carregado de citações longas de trechos de entrevistas. Adotei a normalização proposta pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Inseri uma advertência no começo da obra, porém não custa remarcar: todos os nomes próprios foram trocados, exceto os de canais e redes virtuais e personagens bastante conhecidos. Mantive o mesmo cognome para o mesmo interlocutor. Assim, “Vinícius”, por exemplo, é a mesma pessoa em qualquer ponto do texto. O mesmo vale para os nomes fantasia de estabelecimentos comerciais. Nessas citações, as reticências (...) intercaladas diretamente nos períodos expressam suspensão momentânea do próprio interlocutor. Reticências entre colchetes ([…]) anotam supressões feitas pelo pesquisador tãosomente por razão de espaço. Quando me aprouve marcar um sinônimo ou termo implícito, para fins de clareza e contextualização dos assuntos tratados nas citações, acrescentei o termo entre colchetes. As pessoas comentam comigo, depois de corrigirem um texto meu por exemplo, que não entendem algumas letras pontuadas no meio de referências indiretas: “v.”, “cf.”; são abreviações usuais de “veja”, “confira”, dentre outras. E assim acontece com a expressão “à Marx”, que parece francês (à la Marx) e em verdade é apenas supressão do português “à moda de Marx” ou “à maneira de Deleuze e Guattari”. Arvora-se a questão espinhosa do pajubá. Pajubá ou bajubá, nome de idioma africano que serve, no Brasil, em meio à comunidade LGBT a nível nacional, de título a um conjunto de termos veiculados com alguma exclusividade por homossexuais. Esta linguagem êmica compõe um corpo de tal monta que deu origem a um dicionário. Mas é um corpo sem 10

órgãos: regionalismos, sincretismo de palavras de idiomas africanos e euroamericanos (anglossaxãs em peso), neologismos, palavras inventadas, locuções portuguesas cujo sentido é 10 LIB, Fr; VIP, A. Aurélia: a dicionária da língua afiada. S/l.: Editora do Bispo, 2006.


34 conjuntural. Portanto, não se trata de uma língua, à moda de Saussure (1975). Embora eu e meus interlocutores digamos “língua dos viados” (mais etnocêntrico impossível), não se trata de um corpo fechado de signos que ganham sentido uns em relação aos outros (SAUSSURE, op. cit.). Uma certa amapô que se queria antropóloga tentou desqualificar minha pesquisa 11

partindo do conceito saussuriano de língua. Quem gonga agora sou eu: nunca disse que 12

existe uma língua à Saussure; tombo-te mais uma vez: trata-se de linguagem êmica à Sahlins 13

(2008) e o potencial que eu exploro é o quanto as locuções exprimem desterritorializações. Agora, se tu não compreendeste a lição que te dei, não posso fazer nada por ti. Sou maldito a ponto de não traduzir o pajubá, ao passo que traduzi o inglês. Pajubá, como instituição coletiva holística e absolutamente desterritorializada, não tem grafia normativa. Cada um escreve de um jeito. Tudo que pertence a viado, com efeito, deve ter algo para chamar atenção: as pessoas grafam muitas palavras com “y” arbitrário: “lyndamente”; e grafam quase fonemas hieroglíficos para denotar o exagero da pronúncia: “travestchy”; ainda pode-se escrever errado adrede – se comparado aos arbítrios do português normativo – algum acontecimento que consagrou o neologismo: “fyntchy reais” [=R$20; referência: reportagem sobre a querela entre um homem e uma travesti, acusada por ele de ter roubado R$40, enquanto ela replicava que ele não quis pagar o programa]. Esses foram mantidos para mais 14

desterritorializar, ou, como dir-se-ia em pajubá, para acabar com a academia. Grafo eu “pücumã” [=peruca] e outras palavras com “ü” para denotar a variação de pronúncia entre “i” e “u”. Última palavra sobre o pajubá. É importante notar que são veiculadas locuções nominais. Tais locuções descrevem execuções de papéis e de gêneros. Decerto, constituem prescrições de performances (BUTLER, 2003), lembrando a lição de Bourdieu (2001): descrever é prescrever (v. infra 5.2). É nesse sentido que elas são caras a esta pesquisa, enquanto aproximação entre linguagem êmica e práxis. Aliás note-se o que explica Valério: “A verdade é que tem um bordão famoso, mas você tem que ouvir da boca de uma trava [diminutivo: travesti] famosa, mundialmente conhecida. Nany People que criou todos [os bordões].” É a origem da linguagem: o próprio ato – hecceidade por excelência. No fundo, as palavras são as mesmas, são as coisas que mudam; isto é, as palavras são emprestadas do 11 Do pajubá: mulher. Oscilando entre travesti e outros significados. Aproveito aqui a linguagem êmica para replicar algumas críticas de pares acadêmicos que não são do ramo, isto é, não partilham o pajubá. 12 Pajubá: fazer pilhéria. 13 Pajubá: menosprezar. 14 “Vanessão”: <http://www.youtube.com/watch?v=OjdFsDo3hjY> acesso em: 28-01-2014.


35 português, o contexto ressignifica-lhes, cada agente em cada situação retrabalha o linguajar e os trejeitos conforme suas intenções específicas, variando conforme o que está em negociação – essa é a chave de entendimento da linguagem na Antropologia e que a dona brochasca não ganhou. Também não se deve cair no truque que o mar de nomes prega nos novatos desavisados. Certo é que a cada dia nascem numerosas nomenclaturas para cada prática. Isto não quer dizer que cada prática constitua uma nova identidade sexual, como um filósofo que se quis esquizoanalista acreditou. Essa multiplicidade faz rizoma com a multiplicidade de devires homossexuais (e heterossexuais também). O processo gerativo de palavreado êmico em pajubá parece, grosso modo, metáfora e metonímia conforme a lição do estruturalismo (LÉVI-STRAUSS, 2008). Esta monografia foi estruturada de modo a iniciar pela exposição do conceitoproblema que motivou a pesquisa (introdução), que surge como um grito, repentino e esquizoide. Depois de construir o objeto e o problema, passamos a exploração do campo em que o pesquisador estudou (capítulo 2) e suas peculiaridades geográficas e itinerárias; é aí também que exponho a estratégia discursiva. Segue-se uma espécie de desdobramento do campo que relaciona as práticas dos agentes com suas representações e os problemas gerais colocados por eles (capítulo 3); aqui eu construo uma proposição teórica para ler os acontecimentos a partir da estratégia discursiva; este construto (v. 3.2 passim) permeará todo o texto. A partir daí, passo a descrição do processo de desterritorialização da identidade heterocentrada e reterritorialização no devir homossexual (capítulo 4). O processo é complexo e alguns aspectos dessa multiplicidade são explorados para explanarmos as condições de possibilidades dos devires homossexuais (capítulo 5). Depois vêm alguns pós-efeitos, resignações com sabor amargo, conseguintes da saturação das possibilidades (capítulo 6). Nas conclusões (capítulo 7) o grito que abriu a monografia já declinou em uma canção fúnebre, apresento algumas conclusões dos agentes sobre o sentido do processo de identificações, sintetizadas por mim, e aponto algumas sugestões – quiçá por demais pessoais – sobre a contemporaneidade desta pesquisa e das potencialidades antipreconceito, que era o objetivo subjacente.


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2. As gays, as boates, os closes... É com uma alegria tão grande! Que venho, em pajubá , ou em linguagem êmica, 15

dizer algumas palavras. Mas é óbvio que estou brincando. Quero tombar

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o discurso

preconceituoso em seus fundamentos e mostrar para aquelas recalcadas e enrustidas como se faz e para quê eu vim. Digo “eu”, embora este texto não seja “meu”; antes é uma cartografia 17

que agrega as produções desejantes e os devires locais. Você achou que por causa dessa história de burocracia e metodologia eu não apresentaria mais monografia, mas eu estou aqui, mostrando para você, “discreto” penoso que mucama em mercado e faz a fina na rua, 18

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fingindo que não é da congregação , mas fica na rua da frente da boate esperando um vip e 20

quando entra, morfa. Para gongar o discurso, estudaremos a população a nível local e 21

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relacionaremos os dados com fenômenos correlatos em nível midiático nacional e internacional. Começarei por expor aspectos particulares da população pesquisada, compondo uma cartografia do grupo e das máquinas sociais que produzem os devires homossexuais locais. 15 “Pajubá” é o nome de um idioma africano. Aqui se refere a uma linguagem êmica, contendo palavras de diversos idiomas e não sendo uma língua no sentido saussuriano – ista diferença conceitual não é clara para alguns pares acadêmicos. 16 Termo êmico: rebaixar; menosprezar. 17 Frases de efeito evocadas com muita frequência pelos nativos. 18 “Discreto penoso”, em pajubá, seria o gay enrustido que se intitula discreto e que se esforça para manter essa autoimagem. Mais tarde estudaremos em detalhe esse tipo (v. 3.2.1 infra). 19 Conjugação de “mucamar”, isto é, ser mucama, trabalhar, penar. 20 “Fazer a fina”: locução que designa uma héxis de discrição, ou uma indiferença falsa para com situações adversas. “Congregação”: comunidade de homossexuais – note-se o jogo com o nome de uma igreja neopentecostal. 21 “Vip” ou “viado impossibilitado de pagar”: bilhete de entrada franca na boate; “morfar”: transformar-se, revelar-se, exteriorizar o lado travesti. Este período inteiro remete às dificuldades de ordem burocrática e metodológica enfrentadas por mim e veiculada como razão de inconclusão do trabalho. 22 Pajubá: fazer pilhéria.


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2.1 A balada como fato social total Marcel Mauss (2003) propôs o conceito de fato social total para explicar sistemas de prestações totais. No Ensaio sobre a dádiva (op. cit.), o autor estuda o sistema de trocas de sociedades melanésias e do noroeste americano, e de passagem os resquícios da instituição social total em algumas sociedades ao longo da história e no ocidente. Importa, para os fins desta monografia, reter que a instituição total mobiliza a sociedade inteira em sua realização. A partir desse conceito, proponho a balada como fato social total, isto é, um fenômeno cujo acontecer converge ações de todos que dele participam. Em verdade, eu utilizo o fato social total como um recurso conceitual e analítico para abarcar as multiplicidades etnografadas de modo holístico. Outrossim, situar a balada, local de festa e lazer, como fato social total sugeriria uma centralidade, que não se confirma na realidade, mas está presente em algum discurso homofóbico, ainda que sutilmente. Mais uma vez, o recurso discursivo permite-me mostrar a complexidade de ações prévias e posteriores a uma balada e como a vida de uma pessoa não pode ser resumida ou centrada em um evento desse tipo. Além de que a máquina balada está inscrita no socius e sendo assim é produto-produzir dele mesmo (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Portanto, a balada, como fato social total, pressupõe uma rede de ações para acontecer, longos preparativos, atos particulares, quase rituais, regras que guiam as trocas materiais, afetivas, corporais e simbólicas. Veremos adiante neste capítulo como a sociedade total, em nível de país capitalista, organiza intervalos de lazer e trabalho que formam espacialidades e temporalidades que caracterizam a vida de qualquer pessoa, não exclusivamente de homossexuais, de tal modo que o lazer de heterossexuais e homossexuais é similar. Não restando respaldo ao argumento de que homossexuais são mais festeiros porque promíscuos, segundo discursos homofóbicos. De mais a mais, o objeto de estudo é constituído de múltiplos aspectos e meu ímpeto em abranger, não todos, mas boa parte deles requer uma estratégia que contemple os objetivos da pesquisa com suas condições de execução. Claro que não se trata de uma pesquisa peremptória; muitos agentes ficaram de fora da pesquisa por razões que eu desconheço, embora eu tenha palpites para explicá-lo. Assim, esta monografia principia um projeto provisório de pesquisa, sem esgotá-lo. Não é por isso que eu procederei de modo menos audacioso.


38 Nestor Perlongher (1987) desenvolveu seu trabalho em sentido próximo ao que proponho aderir aqui. Estudar a prostituição viril (michês) requeria persegui-la nos antros frequentados pelos agentes. Isso o levou a historiografar a desterritorialização e reterritorialização do chamado gueto em que transitavam homossexuais, ou seja perquirir os locais e os itinerários dos agentes. Ceteris paribus, etnografar devires homossexuais impõe passar pelos itinerários dessas pessoas. Detalhe que meu foco é o processo de participação do agente no grupo, a identidade como processo de vir a ser, daí a alçada grupal e coletiva em lugar de uma prática específica. O trabalho de Perlongher valeu-se dos percursos e territorialidades que os diversos agentes constituíram e a partir daí delineia-se a máquina social que produz aqueles devires. Mais uma vez convergindo com o autor, a proposta de cursar os itinerários e apreender as territorialidades em Marília vem de encontro à constituição de agenciamentos pela máquina social. 2.2 Lazer e trabalho Considerando que nossa sociedade agencia relações de produção capitalistas, no sentido marxiano, o trabalho alienado acaba por opor-se ao próprio agente e, enquanto atividade específica, com horário e local tais, opõe-se a outras atividades. Lazer seria o oposto de trabalho e assim os locais e horários de um e outro também seriam opostos. Esta temporalização é do tamanho da semana: de Segunda-feira à Sexta-feira (às vezes até Sábado) trabalha-se; aos Sábados e Domingos recreia-se. Ainda quem trabalha na Sexta-feira (e no Sábado) tem a noite livre. Eis porque a balada sói acontecer na noite de Sábado. Igualmente, local de trabalho não é de lazer; a balada, embora empresa, não é o local de trabalho de quem está se recreando. Todas as pessoas estão abrangidas pelo capitalismo e por essa temporalização e espacialização, assim os locais e horários de lazer – enfatizemos: Sexta-feira e Sábado à noite – são os mesmos para todos. Retomando a noção de fato social total, vê-se que tudo está programado para que a balada aconteça no fim de semana à noite, interrompe-se o trabalho e inicia-se o lazer, as pessoas saem do quotidiano (profano) e penetram o extraordinário (sagrado). Pode-se dizer mesmo que a sociedade mobiliza todos os seus esforços para que as baladas aconteçam – e não só as baladas, mas todas as opções de lazer. Comum é, de certa forma, as pessoas terem receio perante aquilo que lhes é estranho. Por isso mesmo um heterossexual fala com temerosidade dos âmbitos frequentados por


39 homossexuais. Mal sabe tal agente que os homossexuais fazem as mesmas coisas que ele para recrear-se. Isto é, o desconhecimento do que o “outro” vive e sua vivência de um ideário heteronormativo levam-no a pensar que o “outro” faz coisas totalmente diferentes. O trabalho na sociedade capitalista organiza e padroniza formas de lazer. Quando se pergunta a um agente qualquer (heterossexual ou homossexual) sobre seu lazer, esta pessoa pode elencar bares, boates, passeios, centros de compras etc. Tal lazer deve ser compreendido no intervalo dos dias da semana de trabalho e os de não trabalho, a maioria das vezes situados no final de semana, Sexta-feira, Sábado e Domingo. Essa situação dos dias próprios ao lazer explica as opções de lazer: na Sexta-feira trabalha-se durante o dia, mas a noite está livre e, muitas vezes, o Sábado inteiro é dia de descanso. Como não se terá de levantar cedo e trabalhar de novo no Sábado, atividades podem ser estendidas noite a dentro na Sexta-feira. Caso trabalhe-se no Sábado, esse esquema de adentrar a noite tendo o dia seguinte livre, o Domingo, e repete-se no Sábado em lugar da Sexta-feira. O Domingo é de modo geral sem opções de lazer – quase todos descansam e não trabalham neste dia – e sabese que o dia seguinte será de retomada das atividades de trabalho, como se a impiedosa e temida Segunda-feira viesse às pressas, como se as pessoas não tivessem conseguido descansar do trabalho.

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Esta disposição de atividades de trabalho e atividades de lazer em horários invertidos explica as opções de lazer. Eu citei bares, baladas ou boates (parece não haver distinção semântica entre estes dois termos) que são os atrativos oferecidos e mais comumente citados na cidade em que pesquisei. São atividades noturnas e características do fim de semana (incluindo ou não a Sexta-feira). Cinema, encontros em praças, passeios, visita a centros de compras, são opções que têm restrição de horário, exceto, talvez, passeios e encontros em praças que são locais públicos. Rara vez há eventos de grande porte na cidade, mostras musicais, feiras, parques de diversões, circos, quermesses, exposições agropecuárias e afins. Nestes casos a cidade se mobiliza para comparecer nos eventos; por exemplo, a empresa de ônibus circulares local dispõem linhas temporárias especiais cujo itinerário atende exclusivamente aos locais de evento, inclusive ultrapassando o horário de funcionamento ordinário, que termina à meia-noite – aqui já se pode ver como o lazer de uns está ligado ao 23 Pode-se encontrar a qualquer tempo na rede Facebook um quadro de caráter cômico que relaciona os dias da semana com as postagens de cansaço ou animação. A Sexta-feira já era saudada na Quinta-feira e as pessoas dizem coisas como “força, amanhã é Sexta-feira”. Na Segunda-feira todos dizem estar mortos de cansaço e na Terça-feira já se pergunta pela Sexta-feira. A Quarta-feira é monopolizada pelo futebol. No Domingo as queixas de que Segunda-feira chegou muito rápido. Há também numerosíssimas caretas que vão expressando sorrisos mais intensos conforme o fim de semana aproxima-se.


40 trabalho de outrem. Todos os eventos acontecem invariavelmente no final de semana e à noite. Até as festas juninas de escolas, bingos, peças de teatro, musicais preferem esse período. Podemos entender essa preferência de período se lembrarmos que em atividades eventuais, principalmente aquelas empreendidas por moradores da própria cidade, só poderão ser desenvolvidas em horários de não trabalho. Sendo assim, o “fim de semana”, como a própria “semana”, é uma periodização do tempo construída socialmente. Em nossos dias, a semana é matizada por períodos de trabalho em oposição aos de não trabalho e lazer, repouso ou ócio. Claro que há toda a história dessa periodização no Ocidente, relacionando ritos e mitos das religiões diversas a dias específicos de começo e fim (recomeço), e igualmente estudos importantes sobre o tempo e sua representação social feitos por numerosos antropólogos, mas não cabe abordar isso aqui. Mas quem trabalha? Trabalha aquele que foi expropriado dos meios de produção da sua própria subsistência e precisa vender sua força de trabalho para comprar mercadorias que supram suas necessidades e carências, diria Marx (2009). Essa categorização é genérica. Devo inserir um recorte para poder analisar um aspecto interno à classe trabalhadora. Há homens e mulheres “heterossexuais” e “homossexuais” na classe trabalhadora. Portanto, heterossexuais, gays e lésbicas trabalham de Segunda-feira a Sexta-feira e utilizam o fim de semana para lazer. Note-se ainda que as opções de lazer de uns e outros estão circunscritas à mesmíssima periodização e oposição entre trabalho e lazer, estando equiparados quanto à classe social e às condições de lazer e distinguindo-se quanto à sexualidade e ao gênero. Sendo mais estruturalista, a produção de diferenças elege a sexualidade em vez do posse ou não dos meios de produção para emular as regras das relações sociais. Parece claro agora que a questão do trabalho e da condição de classe pode ser obscurecida pela diferenciação das sexualidades. A necessidade “trabalho” é recoberta pela diferença “sexual”; o “lazer”, que é necessidade tanto quanto o “trabalho”, é sexualizado. Isto é, as pessoas precisam trabalhar como precisam recrear-se; porém, se as pessoas são antes identificadas como ou “heterossexuais” ou “homossexuais” de que como “trabalhadoras”, a questão das necessidades humanas fica em segundo plano. As pessoas não veem as outras como “trabalhadores recreando-se”, mas como “gays recreando-se”. Daí vem que o lazer é sexualizado, ou melhor, a sexualidade é associada ao lazer. Analisando então o lugar do lazer na sociedade brasileira, encontramos uma oposição


41 binária e uma periodização dos dias da semana a partir do trabalho. Compreendendo como a ética sexual recorta e abstrai a questão do trabalho na identificação de agentes, vimos a ligação entre atividades de recreação e sexo (sexualidade e promiscuidade) sobrepondo-se ao trabalho e classificando lugares e atividades em “heterossexuais” ou “homossexuais”. Como ocorre esse processo de guetização? Por que ele é operacionalizado pelos agentes? Não construamos uma análise que tome a parte pelo todo, a balada pela sociedade. Minha hipótese é a de que, de acordo com Simões e França (2005), o gueto serve sim como elemento de socialização e arrefece sentimentos de culpa, cooperando com a autoaceitação e o reconhecimento de uma identidade. Como este fenômeno não se dá dentro de casa, mas na rua, pode ser atrelado ao processo do movimento de libertação e visibilidade homossexual e isto é uma afronta ao primado da masculinidade (exclusivamente heterossexual) (BOURDIEU, 2002). Por isso, há essa tendência conservadora que tenta disfarçar e reprimir a diversidade cultural, escondendo-a dentro de casa, no armário se possível. É mister compreender as relações entre os guetos e as representações sociais, com o objetivo de agir frente ao preconceito e desconstruí-lo. 2.2.1 Recrear-se em Marília Também é recorrente entre os moradores da cidade queixarem-se de que há escassas opções de lazer. Sumariamente: centro de compras, cinema, restaurantes, bares, bistrôs e boates. Eventualmente, feiras, exposições e apresentações ditas culturais (musicais, artísticas etc.). Novamente, todas as pessoas estão cerceadas às mesmas ocasiões, espaços e tempos de lazer, independente de sua sexualidade. Há uma diferenciação, contudo, de pelo menos duas das opções acima: bares e boates homossexuais (as demais, que se presume serem heterossexuais, não ganham adjetivo nem complemento nominal). Essa distinção é problemática: por que não é preciso dizer que um lugar é para heterossexuais frequentarem? E por que se diz “bar gay”, como se a empresa física tivesse sexualidade e vida, em vez de “bar para gays”? Nunca se ouviu falar (em Marília), inversamente, em bares “lésbicos”. Obviamente não há segregação e impedimento de gays irem a boates “heterossexuais”, e vice-versa. Porém existem preferências e afinidades que direcionam a escolha do local para lazer em função do público que se espera encontrar. Tal aspecto problemático não é o enfoque desta pesquisa, embora esteja presente, ainda que implícito, na discussão sobre produção de diferença. Vale anotar a lógica do suplemento


42 (DERRIDA, 2004) ou dildotectonia (PRECIADO, 2002) operacionalizando essa distinção: uma boate deve ser taxada de “gay” para que a outra seja imaculada e autorizada, pretensamente universalizada, “hétero”. Eis aqui uma deficiência da instituição total. Deixa a desejar. Se as opções de lazer são poucas, considerando o universo dos moradores de Marília, ao nível da população, isto é, para o grupo de homossexuais, há uma única opção. A única boate declaradamente LGBT de Marília é alvo de críticas (veremos esse aspecto detalhadamente em outro capítulo), mas sendo a única, é o lugar para as pessoas frequentarem. É o que tem para hoje, como se diz em linguagem êmica. Uma observação importante: Deleuze e Guattari (2010) apontam o processo da máquina desejante como produto-produzir, isto é, em síntese conjuntiva, a dualidade lazertrabalho é o produto do processo social e ao mesmo tempo o ato de produção do mesmo processo. O trabalho (ou o lazer, não importa qual vem primeiro) gera um fluxo, durante os dias úteis da semana, que é cortado pelo lazer no final da semana. Esta anotação é importante desde já pois está implícita em minhas hipóteses e premissas e guia a análise no sentido de comprovar a sociogênese da identidade homossexual, esta entendida como rizoma de identificações, agenciamentos das pessoas, e produto da máquina social que ela mesma (re)produz; a balada produz a homossexualidade e o trabalho cessa-os. O mapa abaixo, em duas páginas, foi confeccionado por mim através do GoogleMaps e consta as manchas de lazer noturno, do circuito homossexual em especial. Todos os pontos são aproximados e anexatos. A seção seguinte narra o histórico das baladas e bares LGBT, o mapa vem ilustrá-lo.


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Fonte: GoogleMaps. Elaborado pelo autor com base nos dados etnogrรกficos.


45 2.3 Histórico das boates Apesar de não ser nativo de Marília, embora resida aqui há cinco anos, eu mesmo vi as transformações do lazer LGBT da cidade. Meus interlocutores, em entrevista e informalmente, viveram essas transformações e registram até mesmo processos anteriores a minha chegada. Para contextualizar melhor o objeto de estudo, faremos breve escorço histórico dessas idas e vindas, de 2009 até o presente (Janeiro de 2014). De parte dos bares e boates, há algumas festas de médio porte, em chácaras ou sítios nas redondezas da cidade. Tais festas são esporádicas. Havia, por exemplo de exceção, uma que se intitulava “Arco-íris” e era periódica, cujo organizador relatou-me que atraía gente da região inteira e deixava a boate Teatro sem público. Motivo pelo qual recebeu numerosas ameaças e encerrou as edições da festa. Atualmente acontecem algumas festas, uma ou duas vezes por ano. Estas também ocorrem em locais circunvizinhos da cidade. Minha argúcia de pesquisador e grande sorte enquanto agente inserido, até certo ponto, no meio LGBT levaram-me a conquistar uma entrevista marcante. Trata-se do proprietário de uma boate de Marília. Esta entrevista não foi como as outras, sobre a história de vida da pessoa; versou sobre a empresa dele. Um homem de 42 anos, com nível superior completo e vários outros cursos. Trabalha no ramo de lazer noturno há mais de quinze anos. Ele revelou que foi pioneiro em lazer LGBT em Marília. Copiou sim alguma coisa de boates de referência (na época, as de São Paulo/SP) e foi muito copiado na redondeza. Não relatarei sobre as concorrências e outros problemas pois ele esquivou do assunto e eu respeitei-o. Porém, obtivemos por exemplo o dado de que, há quinze anos atrás, não havia boates LGBT no interior do Estado e quando as havia, eram fora das cidades. Isto é verossímil: a boate Sinuosa em Bauru jaz na beira da rodovia; a Estrela em Araçatuba, em uma chácara oculta na rodovia; dentre outras que desconheço ou são pretéritas e foram mencionadas por ele. O próprio empresário abriu a primeira sede na cidade universitária, em um recôndito perto da rodovia; passando em seguida para a região central da cidade, onde funcionou por mais de dez anos. Reconhece ele ainda que essa marginalização factual das boates representa o preconceito e expressa o medo dos agentes em exporem-se. A própria música, nos inícios, era variadíssima, tocava de todos os gêneros para agradar a todos, conforme relatou, e só muito depois o gosto pelo pop arraigou-se em Marília. Prova-se assim o quão incipiente são as pessoas LGBT de Marília, em termos de socialidade, conforme as queixas dos interlocutores (v. capítulo 6). E corrobora e respalda minha hipótese de um processo ainda em curso na


46 cidade que conduz os devires homossexuais segundo um agenciamento limitado, provinciano. Foi meu primeiro ano na universidade e em Marília, o de 2009. Os antros LGBT de Marília eram dois: um bar chamado Jurema, cujo apelido da dona servia-lhe de topônimo e a boate Teatro, empreendida por um homem e seu namorado. Estes dois locais funcionavam semanalmente. O bar era mais frequentado às noites de Sexta-feira. Chamei-lhe aliás de topônimo porque ele ficava no final de uma ladeira por onde transitava todo tipo de gente e era comumente referido por “bar da Jurema”. A boate, por sua vez, funcionava às noites de Sábado e concentrava o público. Era comum ouvir as pessoas dizerem que “a Jurema, de Sábado, é mais para os casais”, sendo que era muito menos movimentada nesse dia e por isso mesmo mais propício ao namoro. Na virada para 2010 a Jurema encerrou suas atividades. Os rumores foram de que a dona decidiu fechar o bar por conta das muitas brigas na rua. Entretanto, houve quem dissesse que os moradores do prédio em cujos pés estava instalado o bar fizeram um abaixo-assinado solicitando a extinção do bar. Marília ficou sem bar “LGBT” até 2012. No fundo, esse rótulo é tão arbitrário do ponto de vista da produção de diferença, na lógica do suplemento, como aventado acima (DERRIDA, 2004; PRECIADO, 2002), mas sobretudo do ponto de vista de o lugar ou seu empreendedor declararem que é para o público LGBT. Surge sempre essa controvérsia: “a dona é lésbica, mas o bar não; vai todo tipo de gente lá, mas predominam homossexuais”. É como se o/a dono/a almejasse preservar a imagem do recinto, e a sua própria, ou não insinuar que se trata de um local restrito a homossexuais. Ainda em 2010, o casal que organizava a Teatro separou-se. Não fui entrevistar o dono do recinto, porém veiculou-se todo tipo de fofoca acerca dos motivos da separação. Fato é que seu companheiro abriu uma nova balada, chamada Datura. Com relação à concorrência entre as boates, Datura era mais bem localizada: na beira de uma rodovia, de fácil acesso, maior, mais bem equipada, com infraestrutura e atrações melhores; ao passo que a Teatro situava-se bem no centro da cidade, longe das rodovias e em uma ruela um tanto oculta, era pequena, feia, suja, fedida, inundava, mal equipada etc.. Inicialmente, o dono da Teatro 24

reagiu com promoções, preços baixos, entradas francas; sucessivamente até resolver mudar de sede e de nome, passou a chamar-se Califórnia. Saiu do centro e instalou-se perto de uma avenida importante para acesso entre a cidade universitária, onde jazia a Datura, e o resto da cidade – mesmo assim, difícil de localizar e rua de mão única. Malgrado o lugar fosse assaz 24 Estes juízos são recorrentes nas entrevistas. Terei ocasião de entrar em detalhe no capítulo apropriado.


47 grande e espaçoso (quatro salões grandes), a música, os funcionários, a própria balada, até os frequentadores, eram os mesmos. O afã da novidade da Califórnia não subsistiu ao da Datura. Outrossim, Califórnia fez promoções e entradas gratuitas até mudar de sede e nome mais outra vez. Foi para as proximidades de outra rodovia em outra entrada de Marília, em um edifício imponente de três andares, com sacadas, onde funcionou outrora uma boate “comum”. Passou a chamar-se Dama Louca. Não houve azáfama pela “novidade”. Em duas semanas, trocou de nome, na verdade de firma, vinculando-se a uma outra boate com sede em Araçatuba (SP) e utilizando seu nome, qual seja, Estrela. Por fim, os boatos rezaram que o dono mudou-se para Araçatuba para trabalhar com os donos da Estrela, extinguindo suas atividades em Marília. Durante 2011 a boate Datura foi monopólio regional, com atrações de alta qualidade e vultoso giro de capital. Passou ainda a funcionar às noites de Sexta-feira como bar aberto e franco e aos Sábados de noite como balada. Segundo os interlocutores, o bar superava por vezes a balada, era preferido por muitos. Eu mesmo tive algumas de minhas noites mais agitadas naquele bar. Porém, ao que tudo indica, o ex-namorado do dono da antiga Teatro, após vencer a disputa, desinteressou-se e vendeu o negócio. Uns diziam que para o dono de uma casa noturna para homens, um puteiro. O negócio foi vendido e revendido, ao passo que a qualidade das atrações declinou e mesmo se converteu ao público heterossexual, notadamente masculino – evidências: apresentações de atrizes de filmes pornográficos. Não obstante, isso demonstra a falta de opções de lazer. Remarca ainda a curiosa arbitrariedade do rótulo “boate gay” e a relação entre atração da noite e público-alvo. Quero dizer, diferenças específicas entre boates “hétero” e “gay” são materializadas nas atrações. Isto ficará mais claro em outro lugar. Somente em 2012 apareceu um bar “gay”, também empreendido por uma mulher lésbica, sem declarar o recinto especial para homossexuais, mas cujo público era mormente homossexual. Chamava-se bar Rainha. Em comparação com a finada Jurema, que era em uma quebrada de Marília, Rainha situava-se a meio caminho do centro e naquela avenida importante que liga a cidade universitária ao restante da cidade, onde outrora situou-se Califórnia. Também difere sua programação, que abrange horários variados entre tarde e noite e vários dias da semana, não exclusivamente Sexta-feira. A despeito disso, seu pico de movimento era a noite de Sexta-feira. Importa anotar de passagem que se costuma dizer que são lésbicas o grosso do público do bar.


48 Já a velha Datura prosseguiu nessas idas e vindas de empresários. Houve um segundo momento de grande desenvoltura da balada quando um grupo de gays, todos cabeleireiros, passaram a executar eles próprios as apresentações da casa, montando-se como drag queens. Aparentemente, fizeram-no por vontade própria, mas recebendo emolumentos e vantagens e privilégios (vips, camarotes, consumações etc.). Quando os meninos cansaram-se, pararam com esse agenciamento e a balada recaiu em um marasmo. O ano de 2013 assistiu ao próprio bar Rainha decair numericamente, com pouco movimento. Datura manteve as atividades e a carência de atrações. Certamente o fato de eu ter desenvolvido a pesquisa de campo neste ano levou-me a saber de algumas festas, Paraíso Rosa, por exemplo. Não tive ocasião de ir à festa por calhar de ser um final de semana em que eu voltei de uma viagem ao Rio de Janeiro, em que prestei um concurso de ingresso em um programa de pós-graduação e outro para docente de uma escola, e aqui chegando encontrei minha universidade saindo da greve e os/as professores/as solicitando trabalhos para fechar o semestre. Sem prejuízo, encontrei ainda mais um bistrô, em uma avenida central que termina em um centro de compras, chamado Colher de Chá, novamente, um recinto em que o dono ou dona não é homossexual e nem o lugar, mas o público, embora bem diversificado, concentra 25

gays e lésbicas. Vim saber mais recentemente de um novo bistrô no centro da cidade, em um setor em que há muitos bares e bistrôs, intitulado 24, e cujo público é homossexual – este último bistrô ainda não conheço. E para fechar o ano e minha pesquisa com chave dourada, ressurgiu das cinzas a antiga Teatro – o que ninguém esperava, foi um badalo! Com o mesmo nome, e mesmíssimos dono e quadro de funcionários – e mesma decoração, aparelhagem, jogo de luzes, músicas etc. – na sede da Datura. Nesta data que escrevo estas linhas (Dezembro de 2014), faz cerca de dois meses que a Teatro retornou. Ainda um pouco com ares de novidade e saudosismos – na verdade apenas saudosismo. 2.4 Bar e balada Vemos, a partir deste histórico e das considerações precedentes, que o lazer de homossexuais de Marília passa pelo circuito bar-balada, sendo um tanto polarizado, isto é, concentrado em uma ou duas opções de lazer. Parece-me que essa configuração bar-balada e o 25 Preferi “dono/a” por “proprietário/a” por desgostar do segundo termo, que remete às relações de propriedade privada. O mesmo ocorre aqui e ali com os termos “ocasião” e “oportunidade” – tenho asco deste último por denotar astúcia das pessoas.


49 vaivém intermitente entre bares e baladas que inauguram e encerram alternadamente é uma particularidade da cidade de Marília. Além disso, ao sexualizar o lazer, este fica restrito a essas duas manchas, compondo o circuito bar-balada-centro de compras. Não entrei no detalhe antes, mas as pessoas vão ao centro de compras no Domingo. Pelo menos é o que dizem, eu não pesquisei neste campo. Concomitante aos focos fixos de lazer, os bares e baladas, acontecem outros eventos chamados “culturais” porque voltados para música, cinema, teatro – periódicos mas escassos e este último notadamente debilitado pela reforma em eterno porvir do teatro municipal. Dentre todas as opções, apenas os bares e baladas, vez por outra, ganham a alcunha de “gay”, com toda animosidade entre o proprietário e a imagem do estabelecimento e as desventuras entre um termo masculino e não feminino (“lésbica”) ou uma sigla mais ampla (“LGBT”). Como se sabe, é diferente dizer “gay” e não “lésbico” pois sugere exclusividade de público masculino; e também “GLS” (gays, lésbicas e simpatizantes) caso exclusivo e machista (prepõe os homens homossexuais) e não “LGBT” (lésbicas, gays, bissexuais e trans-), caso mais inclusivo. Descrever a balada como fato social total é considerar esta máquina de lazer e a síntese conjuntiva bar e balada e centro de compras. Para uma balada acontecer é necessário que uns trabalhem (bar, segurança, transporte público) enquanto outros recreiam-se (público), a sociedade toda acaba envolvendo-se na realização das baladas. No sentido de devir (ver infra nota 28), a balada de um homossexual acontece mobilizando sua família, seus amigos e o conhecimento social que o agente detém. Quer dizer, os modos de contágio com o devir homossexual em Marília dependem de determinadas hecceidades que, outra vez, necessitam de esforços da sociedade inteira para realizarem-se. Isto é grosseiro, veremos em detalhe adiante. Eu estou considerando o dia em que acontecem (Sexta-feira, Sábado, Domingo), evidentemente há outros pontos, por exemplo, no Domingo, ir à feira no centro da cidade e não ao centro de compras – estes dois, novamente, não recebem o adjetivo “gay” nem “homossexual”. Assim nossa trajetória passa por lugares sem adjetivo e com adjetivo, focando os que o têm. Como se observou, o produto bar-balada é ato de produzir (DELEUZE; GUATTARI, 2010) bar e balada enquanto circuito homossexual e atividade própria dessa sexualidade. Não há o mesmo fluxo e atividades no bar e na balada. O bar, na Sexta-feira, é ponto de encontro para as pessoas conversarem. Percebe-se nitidamente que as pessoas vão em


50 grupos de amigos ou casais para encontrarem-se e dialogar. Talvez o ambiente aberto influencie nessa escolha de ações, mas é fato que as pessoas falam do bar como local de encontro entre amigos para prosa e descontração. As pessoas chegam e sentam-se entorno de uma mesa com bebidas. Contrasta com a balada: as pessoas podem ir em grupo, mas circulam e dançam, não param. Na balada acontece maior interação entre as pessoas. Há sim quem vá apenas dançar e distrair-se; e há igualmente quem vá para procurar relações mais íntimas com outrem. Várias vezes ouvi pessoas reclamarem que foram ao bar e não conheceram nem ficaram com ninguém (o que raramente acontece); e outras tantas vezes ouvi que o bar não é exatamente o melhor lugar para conseguir isso. São partes distintas do mesmo processo: prébalada (bar), durante a balada (boate), pós-balada (centro de compras?). Adiante veremos detalhadamente cada seção. É difícil determinar se esse fluxo é particular de Marília. Quando eu estive em Londrina (PR), um amigo levou-me a um bar e a uma balada. Marília e Londrina divergem em tamanho e estão longes entre si à distância de um estado, contudo convergem em etos: apenas um bar e uma balada “gays”. E o mesmo movimento: Sexta-feira, bar; Sábado, balada; e, da maior importância, as mesmas atividades: bar-descontração; balada-interações. Ninguém fica com ninguém no bar, ao contrário do que acontece na balada, semelhante a Marília. Se fosse comparar com Bauru (SP), que não é tão longe, aliás assaz frequentada por marilienses, diria que o fluxo reproduz-se em parte: Sábado-balada, Domingo-centro de compras e que talvez a causa disso se atribuísse ao fato de serem as mesmas pessoas, isto é, marilienses em Bauru. Em tempo: não há, normalmente, marilienses em Londrina. Há a possibilidade de irmos mais longe: no Rio de Janeiro (RJ) pude participar do mesmo movimento: Sexta-feira à noite os bares da rua Farme de Amoedo, em Ipanema, lotam de homossexuais – diferença: as pessoas ficam umas com as outras nos bares e nas ruas. No Sábado à noite, os locais 26

preferidos pelos solteiros são, entre outras opções, as boates – diferença: raramente fica-se com alguém na balada, segundo relatos. São Paulo (SP) difere de todas ainda: há circuitos e manchas (MAGNANI, 1996) em que passam os/as homossexuais que funcionam em dias e horários variados, independente do final de semana na maioria dos casos e abarcando até mesmo a utilização do espaço público para socialização e interação – coisa que inexiste em Marília. Igualmente complicado comparar Rio de Janeiro com qualquer das outras cidades citadas. Apesar da diversidade entre elas, desde o tamanho, o estado, a variedade de opções de 26 Este termo em seu uso corriqueiro abrange interações entre beijar-se até outras intimidades.


51 lazer, até a presença de estrangeiros, o processo aproxima-se em alguns pontos, em suas atividades e períodos. Isso posto, eu tenho motivos para concordar com Deleuze e Guattari (2010; 1996) no que tange aos fluxos de intensidades e em certos segmentos moleculares sendo apropriados e enrijecidos pelo capitalismo. Se existe uma sociogênese da homossexualidade (como de todas as sexualidades, aliás), ela se dá entre os segmentos duros da sociedade, os binarismos machofêmea e homo-hétero. Produzir homossexualidade é produzir heteronormatividade e a máquina de sexualidades funciona com dois organismos (macho e fêmea). No dizer de Deleuze e Guattari (2010: pp. 369-70) o conjunto molar, dos grandes números, das médias estatísticas tem a ver com o segmento duro, resistente à mudança, da sociedade; ao passo que o conjunto molecular embrenha-se na direção das singularidades, nas suas ligações à distância e ordens diversas, remetendo ao segmento flexível pelo qual pode passar mudanças (linhas de fuga). O preconceito ocorre entre a máquina binária da sexualidade; o devir homossexual, enquanto máquina de guerra, pode escapar do binarismo do organismo, desterritorializar-se e passar entre os pontos. A partir da lógica do suplemento (DERRIDA, 2004), a sociedade toma os

segmentos

flexíveis

e

incorpora-os,

tornando-os

rígidos

(reterritorialização

operacionalizada pelo aparelho de Estado que captura a máquina de guerra nômade). O fluxo bar-balada pode ser a diferença transformada em repetição por conta desse esquizoprocesso. Porém, as micropolíticas e desterritorializações dão-se em nível local, cada uma segundo suas condições de possibilidade. Em Rio de Janeiro há muitas baladas (“gays”), bares (“gays”), bistrôs (“gays”), cinemas (“gays”), centros de compra etc.; em Marília existe um bar “gay” e 27

uma balada “gay”. Adiante veremos, a partir de bibliografia específica, diferenças profundas entre devires homossexuais de Marília e de outras cidades (Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro) corroborando com a hipótese de transição entre os modelitos bicha-bofe para o gaygay, proposto por Fry (1982) e as questões micropolíticas de agenciar linhas de fuga à heteronormatividade e ao preconceito, problema de minha pesquisa.

27 Eu estou inserindo o predicativo com aspas por causa daquela questão da arbitrariedade desse sobressignificante; e entre parênteses porque há os lugares sem predicativo também, de modo que não estou sendo exclusivo.


52

3. A balada LGBT: máquina desejante e suas peças Mas eu também quero pintar um tema, quero criar um objeto. E esse objeto será – um guarda-roupa, pois que há de mais concreto? Tenho que estudar o guarda-roupa antes de pintá-lo. Que vejo? Vejo que o guarda-roupa parece penetrável porque tem uma porta. Mas ao abri-la, vê-se que se adiou o penetrar: pois por dentro é também uma superfície de madeira, com uma porta fechada. Função do guarda-roupa: conservar no escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das coisas. Relação com pessoas: a gente se olha ao espelho da parte de dentro de sua porta, a gente se olha sempre em luz inconveniente porque o guarda-roupa nunca está em lugar adequado: desajeitado, fica de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido e desastrado, sem saber ser mais discreto, pois tem presença demais. Guarda-roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. (LISPECTOR, Cl. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 82)

Quem participa de uma instituição, compartilha códigos. Como funciona, nas suas linhas gerais, este fato social total, a balada? Tranquiliza-te; dá-me tua mão e eu devagar introduzir-te-ei, como fiz com meu ex-namorado e com alguns amigos, da mesma forma como meu ex-namorado pegou em minhas mãos para que eu, medroso, entrasse na piscina. Para pintar aqui este tema-objeto, antes, estudá-lo-emos: que vejo? Vejo que uma balada 28

compõe-se de no mínimo três segmentos: pré-balada, balada e pós-balada. Rigorosamente, o termo “balada” especifica o fato social total, o conjunto de ações e pessoas, o agenciamento rizomático que se relaciona aos tempos e espaços de lazer. Já o termo “boate” designa em particular o âmbito a que as pessoas dirigem-se, o lugar das práticas.

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28 Esta oração foi poetizada adrede, parafraseando a epígrafe extraída de Cl. Lispector. A propósito, “pintar” parece ser termo muito conveniente para nomear o ato descritivo e analítico aqui concretizado em letras. 29 A esse respeito, “balada” também nomeia um tipo de canção e composição que se caracterizam pelo


53 Simões e França (2005) trazem uma descrição de atividades de lazer de homossexuais, analisadas da perspectiva do gueto como forma de resistência e lugar de autoaceitação e reconhecimento. O capítulo relaciona uma série de jargões e o lazer de um estilo de vida homossexual. Neste capítulo ainda, os autores exploram a atribuição de papéis sociais aos homossexuais, no caso um “gueto homossexual” que, segundo eles, viabiliza a convivência e atenua momentaneamente os estigmas, podendo-se ali encontrar parceiros e vivenciar a sexualidade (com amigos ou amantes), reduzir os sentimentos de culpa e reforçar a autoaceitação etc.. “O que chamamos de 'gueto' é algo que só pode ser delimitado ao acompanharmos os deslocamentos dos sujeitos por lugares em que se exercem atividades relacionadas à orientação e a prática homossexual.” (p. 310). A questão do gueto é a construção de um grupo que é ator político. Outra questão é a importância do mercado na promoção e difusão de imagens, estilos, hábitos etc. associados à política de identidade. Funciona como uma combinação de mecanismos de diferenciação e tendências favoráveis à integração social de homossexuais. Em outro lugar, Simões (2004) explora outros matizes do gueto, como a idade e os ideais de corporalidade, desejo e afeto que entram em conflito por variarem segundo a faixa etária. Tais questões podem ser lidas como aspectos da construção de ambientes de lazer, do desejo materializado em mercadorias, sendo como um estilo de vida pautado no sexo. Conforme Simões e França (op. cit.) apontam, o desenvolvimento mercadológico entorno do gueto viabiliza outras relações entre o grupo de homossexuais e heterossexuais (compra e venda, por exemplo). Minha pesquisa aponta o mesmo processo em Marília (SP) – em andamento e não tão complexo e desenvolvido quanto em São Paulo. Há um problema: o de uma leitura tendenciosa sobre essas atividades e o gueto. As pessoas “de fora” do grupo acham, segundo o seu senso comum, que o estilo de vida de homossexuais é essencialmente leviano e promíscuo, preenchendo os agentes seu tempo diário de vida com prazeres proporcionados pelos corpos de outras pessoas ou complementos ilícitos, quando não de ócio. Decerto Simões e França conhecem esse ponto de vista preconceituoso e evidentemente não foi a intenção dos autores suscitar em nenhum momento essa leitura a respeito de homossexuais. Todavia, é uma perspectiva recorrente às pessoas

sentimentalismo ou por emoções (boas ou más) passionais. Eu jogo aqui com essa sinonímia e ainda com o detalhe de a cantiga do tipo “balada” tradicionalmente comportar três estrofes e eu, por meu turno, construir a balada em três partes. Poeticamente, um devir homossexual seria uma balada, uma narrativa sobre vivências intensas.


54 comuns, até mesmo homossexuais encaram algumas vezes as atividades do gueto desse jeito; 30

e isso tem implicações. Quiçá a apropriação defasada do gueto LGBT pelo mercado, em Marília, seja um fundamento para a desqualificação atribuída ao gueto. Pretendo abordar nesta seção algumas das formulações mais comuns que equiparam o lazer de homossexuais à promiscuidade presunçosamente atribuída a essas pessoas, demonstrando como esse viés estrutura as relações sociais e as fronteiras entre heterossexualidade e homossexualidade. Seguindo o mesmo movimento de Simões e França, meu objetivo é explicitar a importância da construção coletiva de identidades homossexuais, mostrando que há várias coisas envolvidas com o lazer e o trabalho de qualquer pessoa. No fundo, o enfoque sobre o tempo e o espaço de lazer desenvolvido aqui acabou caindo em segundo plano frente à pesquisa e minha monografia para conclusão de curso. Sem embargo, a reflexão é correlata aos objetivos da pesquisa, parecendo ser pertinente a presente empresa. Simões, França e Macedo (2010) estudam momentos de lazer dos jovens no centro de São Paulo e exploram diversas categorias sociológicas que se entrecruzam no acontecer social. É interessante notar como o contexto valoriza ou desvaloriza a mesma categoria ou ainda como uma mesma categoria pode ter valor em situações diversas, sendo devidamente mediada e articulada com outras. Exemplo, dentre outros fornecidos pelos autores: cor/raça (sic) que para as pessoas no baile funk denota sensualidade e proximidade em termos de classe social, também denota sensualidade no âmbito homossexual. Para nós importa reter a diversidade de categorias sociológicas sendo mobilizadas pelos agentes em um mesmo pedaço que carregam uma alcunha genérica, no nosso caso sendo a (homo)sexualidade preponderante na taxação de um espaço e seus agentes. Em nossa pesquisa, tomamos a construção da identidade do grupo homossexual como objeto e a análise do lazer em locais públicos é uma perspectiva possível para o estudo. Mas na medida em que adentramos o lazer, afastamo-nos da identidade e o diálogo com os autores mencionados acima trouxe essas questões. Parece que eles aventam de modo menos denso a questão do trabalho – que é o período de não lazer – a que todos os agentes estão submetidos. De mais a mais, não falar do trabalho pode causar a impressão de ócio e nesse sentido as ações que afirmam a identidade homossexual (o próprio local de lazer e as atividades realizadas ali) podem arrefecer em subverter os aspectos depreciativos atribuídos à 30 Ver infra seção 6.1.2.


55 identidade sexualizada. Assim, lazer e trabalho deveriam ser tomados conjuntamente na reflexão sobre subversão da identidade (estigmatizada).

31

Para prosseguir, precisamos conhecer a fundo os locais e as práticas que se intitulam “balada GLS”. Traremos a seguir algumas cenas da balada em Marília e alguma comparação, quando oportuna, com demais localidades. O objetivo é contextualizar as questões que propusemos. No caso de Marília não haveria um centro específico que reunisse opções de lazer (como ocorre em Rua Augusta e alguns parques na capital paulista), uma mancha no sentido de Magnani (1996). Há bares e boates espalhados pela cidade toda, com alguns pequenos aglomerados de todo tipo de pessoas – um rizoma por excelência. Assim, os atrativos comerciais noturnos podem ser encontrados em grandes avenidas bem como em ruelas remotas – caso da única balada direcionada especificamente ao público LGBT. Todo mundo sabe que grupo nenhum é homogêneo. Não procederei a uma tipificação dos homossexuais que vão ou deixam de ir à balada, mas trabalharei a questão como multiplicidade, isto é, as diferenças intragrupais acumuladas sobre os mesmos pontos e ao decorrer do mesmo processo; em outras palavras, diferenciações emuladas pelas pessoas em relação às mesmas atividades. Assim, a balada enquanto fato social total pode ser compreendida como um processo de produção de socialidade. Um tal processo tem características específicas, particularidades engendradas a partir das condições de possibilidade do acontecer social em Marília. Efetivamente, trata-se de diferenciações endógenas, e outras operacionalizadas internamente, porém de origem exógena que configuram problemas sociais. Importa pois compreender como esses problemas sociais têm a ver com a organização do grupo, portanto, de que modo são questões sociológicas. Na sequência, veremos de passagem alguns desses problemas. Eles dar-nos-ão coordenadas para topografar os devires homossexuais marilienses. 3.1 Produção de diferenças Interessa as diferenças entre os próprios homossexuais. No fundo, o que descobri foi uma associação com algumas críticas ao sistema local (veremos abaixo: futilidade, ser efeminado e ostentação) e, corroborando às vezes com essas críticas, gentes que se enquadram no modelito bicha-homem e as do entendido-entendido (FRY, 1982). Então interessa-nos suas 31 Subversão da identidade estigmatizada, a fim de que em seu lugar erija-se um processo em que os agentes reconheçam-se em símbolos que não os depreciem.


56 relações com outros fenômenos locais. Segundo Fry (op. cit), haveria historicamente um modelito de relação homossexual mais hierárquico que é o bicha-homem. A bicha é sempre a efeminada, a afetada, que ostenta sua sexualidade publicamente, seria (exclusivamente) passiva. O homem seria o “macho de verdade” da relação, discreto e másculo, dito não homossexual porque, apesar do intercurso homossexual, ele seria (exclusivamente) ativo e portanto isso viria reforçar sua virilidade (FRY, 1982: 90). Este conjunto teria, arqueologicamente, o modelo heterossexual machofêmea como tipo base, e traria desse modelo as mesmas relações hierárquicas: o homem manda, como o macho heterossexual, e a bicha obedece, como a fêmea. Gostaria eu de acrescentar ainda que este modelito bicha-homem é heteronormativo por excelência. Já o modelito entendido-entendido (eu direi gay-gay por praticidade gráfica e por ser uma categoria nativa mais próxima do que a de “entendido”, em desuso atualmente) comporse-ia de dois gays, nenhuns sendo bicha nem homem, mas um casal paritário, talvez mesmo esteja pressuposto que ambos exerçam os dois papéis sexuais. Nesse sentido, o modelito afasta-se do seu arcaico, no entanto contemporâneo, bicha-homem, símile do casal heterossexual, e distancia-se ainda mais deste último, mais vetusto e mais compresente ainda, para abrir possibilidades para outras formas de relações sociais. A paridade de relações e papéis desse modelito seria pautada na igualdade de direitos políticos e sociais. Evidencia-se que o contexto de lutas sociais, unificadas no vetor contra a ditadura militar, faz-se presente neste aparato teórico (v. FRY, 1982: 110). O enrijecimento da teoria do conhecimento parece ter apanhado a antropologia interpretativa ensaiada pelo autor (idem, p. 111). Fry está demasiadamente inglês para nosso sabor. Encerra com uma indagação: “[...] qual a sua especificidade [a da sexualidade] em relação aos demais comportamentos sociais?” (id., p. 112) e a pressuposição admitida ipsis litteris de que Freud teria razão em situar a sexualidade como base da psique e da sociedade, donde advém que as noções de hierarquia e igualdade estão encerradas no sexo e na consciência profunda (e coletiva?) das pessoas (id. ibid.). Introduzo, contudo, uma mediação relativa a meu problema de pesquisa: a historiografia de Fry trata de sistemas de classificação cuja base é a noção psicanalítica de orientação sexual (cf. FREUD, 2006). Embora ele esteja interessado nessa constituição histórica da identidade homossexual, nas conclusões do texto sinaliza de passagem o conflito prático vivenciado pelos agentes que veiculam os conceitos médicos e caem em becos teóricos e epistemológicos que dificultam sobremaneira a superação das malditas dualidades


57 antinômicas e, como afirma Fry, sua descrença na mudança. Parece que por isso mesmo não avança sobre a constituição da identidade sobre outra base, qual seja, as performances de gênero (BUTLER, 2003). Sabemos que esta teoria é posterior às questões vivenciadas pelo autor. Porém devemos colocar o problema em outros termos: uma parcela do movimento LGBT (grupo SOMOS) decidiu, nos idos de 1980 chamar de “opção sexual” em oposição à “orientação” psicanalítica e seus pressupostos normativos (FACCHINI, 2005). Bem, parece que podemos decidir em que sentido epistemológico enveredar: normativo (FREUD, 2006) ou rizomático (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Precisamente aí podemos pensar uma linha de fuga e a questão da identidade mostra-se contemporânea em todo seu potencial micropolítico. Ser menos heteronormativo é uma linha de fuga a todo um conjunto de ideias-valores que organizam a sociedade capitalista. Trinta anos depois, podemos encontrar mudanças consideráveis e persistências, curiosamente com distribuição geográfica (semelhantes à que o próprio Fry aponta) tendo o sentido centro-periferia ou capital-interior do estado. Os autores com quem dialogamos acima são equânimes quanto ao processo de, ainda que relativa e limitada, desestratificação das relações entre heterossexuais e homossexuais e no meandro dos próprios homossexuais entre si. De outro lado, não é possível ignorar os microfascismos, produção de vulnerabilidade e acirramento da violência letal em que algumas linhas de fuga convertem-se. Chegaram a Marília os ecos da abertura política; chegou também a transição entre um e outro modelito. Tal trânsito ainda está em processo e é fundamental para compreender os devires homossexuais possíveis no platô Marília. Estar em processo não significa asseverar um enfrentamento diário interpares a respeito de que estrutura de relações sociais é mais favorável ao grupo. Quer dizer que coexistem ambos os modelitos, eles interpenetram-se e surgem nuances, novas relações, multiplicidades de sexualidades e identidades. Vejamos algumas especificidades de Marília. 3.2 A sociedade cindida em dois Não é suficiente dividir o mundo entre homossexuais e heterossexuais. Em Marília, o grupo de homossexuais pode ser caracterizado como dividido em outros dois segmentos: um mais heteronormativo, operacionalizando o modelito bicha-homem e sendo aversivo às especificidades dos homossexuais (gíria, trejeitos, hábitos de modo geral etc.); outro mais despojado, executando um modelito mais próximo do gay-gay e adotando, em várias nuances, performances não heteronormativas. Quando eu propus etnografar a construção da identidade


58 coletiva, tinha em mente suscitar as instituições e práticas específicas de homossexuais ou aquelas que, consideradas em conjunto, moldam a homossexualidade. A identidade apareceria na medida em que eu detectasse com quais desses aspectos sociológicos as pessoas identificam-se. Sendo essas identificações, no sentido de Hall (2003), o fenômeno da identidade a nível individual; e as representações coletivas, classificações e instituições reconhecidas coletivamente, a identidade a nível coletivo. Bem, sucedeu que as pessoas declaram-se “homossexuais” e, contudo, a classificação é binária antagônica, quase excludente, em termos de ideias-valores. Cumpre asseverar ainda que o pesquisador está operacionalizando essa divisão como síntese e construto que auxilie a sistematizar e compreender os princípios que organizam a sociedade local. Ninguém está totalmente em um ou outro pólo. Mas tenho razões para crer que o processo social segue o sentido de desterritorializar-se do modelito heteronormativo e reterritorializar-se no outro. Aliás a proposta de pensar tal micropolítica passa por e mesmo propõe essa desterritorialização. Eu não gostaria de aprofundar mais essa secção intragrupo. Trata-se antes de uma multiplicidade de homossexualidades. Com efeito, ao primeiro grupo, o mais próximo do modelito bicha-homem, chamarei de grupo dos homossexuais, por conta do formalismo da nomenclatura, muito adrede dos preceitos guardados por essas pessoas; ao segundo, o mais próximo do modelito gay-gay, chamarei grupo dos gays, por causa do despojamento requerido para a pessoa autodeclarar-se bicha ou viado e não secamente homossexual. Gay e homossexual são termos sinônimos e eu escolhi-os a fim de não prescrever uma separação; ainda jogando com as palavras, existe a distinção conceitual entre eles, isto é, “homossexual” é um termo originalmente psiquiátrico cuja história é carregada de pressupostos de normalidade e desvio (FOUCAULT, 2012; FRY, 1982; KATZ, 1996; GAGNON, 2006) e “gay”, significando “feliz, alegre”, supõe a desterritorialização semântica. Ainda mais, os agentes desconhecem essa historicidade dos conceitos, parecendo crer que “homossexual” é mais polido e elegante do “gay” – ou seja, não há sinonímia; é essa sutileza que percebi e serviu para registrar a cisão. Não estou desvalorizando a significação construída socialmente em favor da “verdade” científica, porém era necessário desconstruir o senso comum dos agentes (apenas aqui neste texto) para os objetivos desta pesquisa, sem por isso violentar o conhecimento social. Da afecção e contágio entre os conceitos do pesquisador e os dos interlocutores houve essa involução que modificou ambos os lados e veio este palavreado ora apresentado (homossexuais e gays).


59 O grupo dos homossexuais, com relação à balada e às opções de lazer ditas “gays”, é mais reservado. Constroem graves críticas ao ambiente da boate e às práticas propiciadas por ele. Dizem-se não efeminados e criticam duramente quem executa uma performance desse tipo. Ser efeminado aqui está equiparado com ser passivo e indiscreto e promíscuo e afrontoso etc. em alguns casos extremos, o sexo está contra o gênero: “[...] nasci homem, vou honrar o que eu tenho no meio das pernas [sic], e vou morrer homem.” (Marcelo). Isso se desdobra 32

ainda em machismos sutis e homofobia interna – os próprios homossexuais dizem-se homofóbicos, mas contra os efeminados (veja seção 6.1.2 infra). Aliás qualquer dos termos pode ser tomado em qualquer tempo, pois estão todos interconectados, rizoma sincrético. Ao passo que o grupo dos gays é despojado, abandonaram os espartilhos dentro do armário de que saíram. Vão à boate e igualmente a qualquer outro lugar. Nem por isso compartilham todas as práticas efetivamente “promíscuas”. Boa parte não é, inclusive, efeminada. Alguns são mais vaidosos e há mesmo quem se declare “homem feminino”. 33

Neste meio, a produção do desejo passa pela máquina da execução de gênero muito mais do que pela máquina da corporeidade. Como diria Gagnon (2006), as pessoas atraem-se pelo gênero e não pelo sexo físico. Tais oposições prolongam-se até fora do grupo, entre quem prefere declarar-se homossexual e quem prefere nada declarar. Doravante, a definição do que é ser homossexual, a fronteira da identidade massificada – porque, para a heteronormatividade e pela lógica do suplemento (DERRIDA, 2004; PRECIADO, 2002), não há homossexuais como não há sexualidades, mas apenas a heterossexualidade e a massa amorfa alheia que lhe serve de justificativa – está sob disputa constante. Fora da balada, ou seja, no emprego, quiçá na rua ou em casa, todo mundo sói interagir a partir do jogo mostrar-esconder a sexualidade. É o limite do sistema social em Marília. 3.2.1 A categoria “discreto” Por falar em definição e fronteiras, há quem não se defina e viva no limiar dos grupos dos heterossexuais, homossexuais e gays, tal como postulei acima. Uma categoria intrigante e assaz veiculada em Marília é a de “discreto”. Ser discreto, não nos deixemos enganar, não é meramente não se declarar gay ou, em se declarando, não incorporar os 32 No contexto em que ele enunciou isso, estava me narrando como foi o processo de aceitação da homossexualidade por parte de seus pais, conforme contou-me, eles só tranquilizaram-se depois de ele explicar-lhes as coisas nos termos que transcrevi acima. 33 Vale a pena ressaltar, esta classificação é êmica, reproduzida pelo autor.


60 trejeitos “propriamente” homossexuais – até porque, parece ser conhecimento tácito, há quem se declare para qualquer um e não seja efeminado, quer dizer, não há unidade homossexual, a multiplicidade de homossexualidades aborda todas as variações sem anulá-las. A noção de “discreto” está associada, com efeito, pelas pessoas comuns, à discrição do agente. O pesquisador, entretanto, notou que ela remete a um discurso que está em cima do muro das duas identidades (heterossexual e homossexual) e que faz bricolagem de aspectos dos grupos homossexuais e gays revestidos em indumentária heteronormativa. Um “discreto” pode ser aquele menino de corpo todo trabalhado na academia, que namora uma garota, é grosseiro e machista e homofóbico, porém, na cama, é passivo e inclusive pode vir a gostar de usar uma calcinha. É um exemplo exasperado, e há mais: um discreto não frequenta os 34

redutos “gays”. Ele pode ser contatado pelas redes virtuais, pelos bate-papos, pelos aplicativos para homens homossexuais dos smartphones. Tal pessoa enuncia, desde o apelido adjetivado pela categoria, nas redes sociais, que é X discreto. Quando começa uma conversa com fins orgásmicos, pergunta: “você é discreto?” e se não for discreto, entenda-se absolutamente não efeminado, não há intercurso. “Alguém sabe de você?” - além de si mesmo, é autoevidente que as demais pessoas com quem já houve intercurso sexual sabem-no. “No sigilo” - ninguém pode saber, porque “ninguém sabe de mim”, certamente nem o próprio agente. Não tivemos interlocutor “discreto” que se deixasse entrevistar. Os outros entenderam a categoria com sinônimo de “enrustido”, sem por isso ser algo particular de Marília, como me parece: “Já ouvi falar em Bauru [termo “discreto”], mas a pessoa não sai de Marília. Em Suzano é encubado.” (Valério). Infelizmente não tivemos ocasião de perguntar isso a um “discreto” em Rio de Janeiro ou São Paulo. Silva ([1958] 2005) e Guimarães (2004), embora não problematizem especialmente esta categoria, registram o fato como uma preferência circunstancial; e eu poderia inferir daí que, dada conjuntura repressiva dessas etnografias, todo mundo devia ser minimamente discreto, em sentido lato. No contexto de Fry (1982) e MacRae (2005), o “discreto” sinalizaria para a controvertida figura do bissexual (inexistente para alguns) e que foi alvo de animosidade no movimento homossexual então incipiente e continua sob suspeita dos agentes até nossos dias. A alternativa de Perlongher (1987) parece mais perspicaz: por que o michê, o prostituto que atende homens, não é homossexual (em suas falas, eles não se reconhecem como homossexuais)? Porque se trata de 34 No diário da garota de programa Bruna Surfistinha (SURFISTINHA, 2005) há um comentário similar sobre os “machões” que pediam para serem penetrados. Essa prática chama-se “inversão”, aludindo aos papéis sexuais. A opinião da autora é que eles não se aceitam enquanto bichas [sic].


61 uma prostituição viril. Vimos, não obstante, que a virilidade, bem como a masculinidade e promiscuidade, não é distintivo de homossexuais e heterossexuais. É o negócio do desejo produzido entre as máquinas sociais. Eu queria saber o que passa na cabeça dessa pessoa. Como que a pessoa é a personificação da Lady Gaga [espalhafatosa, gosta de chamar atenção?] e tem a cara de pau de dizer que é discreta? Ou a pessoa realmente não sabe ou não tem desconfiômetro. Mas as bichas sabem. Elas falam discreto para ter uma chance de pegar. Tem bastante e que é discreto mesmo. Questão pessoal, de trabalho, de ser hostilizado pelos amigos héteros. Acho que por esse motivo. Casados também. Também que é, mas não gosta dessa frescura que é o meio GLS. (Leonardo)

Parto da premissa de que as sexualidades são produzidas por máquinas sociais tais que as inscrevem (DELEUZE; GUATTARI, 2010). O caso da categoria “discreto” em Marília, e talvez alhures, é outrossim um produto-produzir de desejo, ser discreto é produto desta estrutura social e é o ato de reproduzir estas mesmas relações sociais. Uma última consideração quanto aos “discretos” é que exprimem justamente a separação de águas, a fronteira disputada diariamente entre as identidades e a manutenção da heterossexualidade, ainda que como discurso normativo, referência centralizada e única. A personagem “discreto” é assim a catarse das ambiguidades e múltiplas relações e variações que a sociedade de Marília produz. O desejo de participar da balada fora da balada, estar no lugar errado, na hora certa, experimentar e vivenciar o desejo homoerótico sem ser gay é como aprisionar um devir esquizofrênico? Impossível responder esse problema sem etnografar outros agentes (lésbicas, travestis, etc.). E impenetrabilidade quer dizer também a fronteira entre os dois – e quer dizer que aquele que está sentado sobre a fronteira, exatamente como Humpty Dumpty, está sentado sobre o seu muro estreito, dispõe dos dois, senhor impenetrável da articulação de sua diferença (“eu posso, entretanto, me servir de todas a meu bel-prazer”). (DELEUZE, 1974: p. 27)

Uma outra leitura da “discrição” pode ser feita, ainda com ajuda de Gilles Deleuze, a partir do manter-se na fronteira das identidades. Tal posicionamento torna o agente impenetrável, não se pode atravessar as suas aparências sem seu consentimento, porque, como ele está no interstício, serve-se de sentidos das duas identidades (heterossexual e homossexual). Humpty Dumpty opõe a impassibilidade dos acontecimentos às ações e paixões dos corpos, a incomunicabilidade do sentido à comestibilidade das


62 coisas, a impenetrabilidade dos incorporais sem espessura às misturas e penetrações recíprocas das substâncias, a resistência da superfície à moleza das profundidades, em suma, a “dignidade” dos verbos às complacências dos substantivos e adjetivos. (id, pp. 26-7)

Não é simplesmente servir-se de ambos regimes de signos, é também opor os problemas sociais que alguém “indiscreto” enfrentaria às paixões suscitadas pela sexualidade. Decorre ainda que, sendo “discreto”, a pessoa escaparia dos problemas, podendo desfrutar da promiscuidade. 3.3 Classe desunida e massa em processo Todas as personagens do platô social mariliense convivem e ocupam pari passu os mesmos espaços. Já salientei a não homogeneidade de categorias e adiante exploraremos em detalhe algumas faces dos devires. Uma última questão a ser apontada é a constatação dos agentes de que o grupo de homossexuais é muito desunido. O termo “grupo” empregado por mim focaliza alguma precisão conceitual, entretanto os agentes verbalizem o termo “classe”. Essa desunião exprimir-se-ia desde a homofobia interna (que ninguém acha que é fator de desunião, mas que este pesquisador sabe-a como distinção e diferenciação sociais, portanto desigualdade) até ao fato de as pessoas não valorizarem as opções de lazer locais, preferindo ir a outras cidades e desferindo assim o golpe de misericórdia na classe desunida local. Para os agentes, o aspecto problemático remete à desunião em si, à falta de solidariedade interpares frente às demandas coletivas. Do ponto de vista antropológico, o que salta aos olhos do pesquisador é a grande dificuldade das pessoas em operacionalizar categorias sociais assaz diversas e aparentemente incompatíveis entre si. A “classe homossexual” é desunida desde o princípio quando distingue entre “homossexuais” e “bichas” (na verdade a diferenciação entre heterossexuais de homossexuais já engendra desunião, desigualdade). O problema antropológico não é a desunião em si, nem frente ao “outro”; tal problema está no nível da representação coletiva. Nem solidariedade mecânica nem orgânica – esta aliás parece mais afim com as representações coletivas, pois que as pessoas concebem um sistema com peças complementares que organizam o todo –, antes uma solidariedade rizomática: as sexualidades não brotam de um solo heterossexual e depois ramificam-se nos desvios. Há o rizoma das sexualidades, engendrando multiplicidades de sexualidades, unindo quaisquer categorias a quaisquer formas de práxis. Para nós, a massa, conceito historicamente oposto ao de classe, não é desunida, é desorganizada, não forma um organismo, podendo ser


63 um corpo sem órgãos. Não por um defeito, mas porque é ainda exterior ao aparelho de captura da heteronormatividade. Reciprocamente, unir-se para enfrentar o “outro” é inserir-se no código binário e nas regras do Estado. Importa conceber o grupo de homossexuais como máquina de guerra (DELEUZE; GUATTARI, 1996) se o objetivo for descobrir como operacionalizar a multiplicidade para fugir aos segmentos duros da sociedade, suas discriminações e violências. Tampouco a proliferação diária de termos, classes, sectos, categorias, conjuntos, grupos, filos, clãs, hordas, fratrias, comunidades, castas, estratos, setores, segmentos etc. etc. dentro da categoria mais ampla “homossexuais” que abarca todos os demais termos, pode ser compreendida senão como máquina de guerra que escapa à captura normatizante. Quero dizer, pode acontecer a algum filósofo querer-se esquizoanalista e, olvidando da premissa inicial (um rizoma nega uma arborescência), venha a crer que cada subgrupo nascente é uma ramificação de homossexualidade (com a pressuposição inaudita de que esta se ramificou da heterossexualidade). Eu devo recordar-te de que os nomes dos “fetiches” não são mais do que diversidade de práticas sexuais, cujo potencial de subversão das identidades (v. PRECIADO, 2002; BUTLER, 2003) é tal que fez até mesmo tu pasmares frente à fluidez da máquina de guerra. Portanto, a massa é desterritorializada e está em processo. Não é desunida per se, é desorganizada frente aos centros de poder. Há multiplicidade de sexualidades (inclusive a própria heterossexualidade) e cada agente vivencia seus devires. Cumpre então perscrutar outra maneira de pensar que não recaia na “classe desunida” nem na ingenuidade de tomar termos um em contraste com outros, isto seria o pensamento do Uno a partir de vários sujeitos e, assevero, não há uma sexualidade, há multiplicidades de sexualidades.


64

4. Pré-balada Funciona de Sábado à noite para Domingo. Vez por outra funcionava como bar na Sexta-feira à noite, tendo cessado essa atividade recentemente. A programação da balada tem uma moldura padrão que se altera extraordinariamente em feriados prolongados; abrindo nas vésperas e dias seguintes etc.. Abre às 23h30 de Sábado. Mas a balada não se reduz ao evento. Há preparativos da parte dos agentes antes, durante e após a balada. Em geral as pessoas banham-se, produzem-se, às vezes levam a noite toda para maquiar-se (homens e mulheres), vão à tarde comprar uma peça de roupa nova para utilizar na balada. Isso individualmente. Acompanhadas, as pessoas fazem o que acabamos de referir, só que se ajudam umas às outras a produzirem-se. Pode ser também que se faça jantar ou tomar um lanche na rua (mais comum entre namorados/as) ou fazer um “esquenta” – reunir-se em uma casa ou bar e começar a beber; esta prática justifica-se perante o altíssimo preço das doses de bebida dentro da balada, às vezes equivalentes à metade do preço de uma garrafa da mesma bebida. Como eu disse, há preparativos para ir à balada. Não é simplesmente arrumar-se e chegar lá e entrar. Ainda mais em se tratando de uma instituição total, como quero demonstrar. A pessoa precisa interiorizar o etos do grupo e o grupo deve também interiorizar o indivíduo. O agente exterioriza o grupo e o grupo externaliza-se no indivíduo. Para a pessoa agenciar algum

devir

homossexual,

precisa

antes

desterritorializar-se.

“1º

teorema

[de

desterritorialização]: Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos:” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, vol. 3: pp. 36-7. Ênfase dos autores) agente-boate, pessoa-amigos. “E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou


65 mais antiga:” (id. ibid.) o grupo serve de territorialidade nova ao indivíduo, que perdera a sua, e este também serve de nova territorialidade àquele. Veremos por quais desterritorializações os agentes passam para irem à balada.

35

4.1 Armário, guarda-roupa ou penteadeira? Sugiro que, via de regra, a pessoa identifica-se com determinados agenciamentos e atividades em sua adolescência e só depois de construir para si uma identidade (homossexual) vai à balada. A pessoa “sai do armário”? Só se tiver um conhecimento prévio do que está “fora do armário”. Talvez na verdade seja um guarda-roupa de onde se tira um ou outro traje conforme a ocasião. Ou seria uma penteadeira, que a pessoa descobre que serve para sentar-se e produzir-se? Um guarda-roupa com espelho na porta e apetrechos de maquiagem nas prateleiras? Como se dá esse processo de autoconhecimento? Perguntei a meus interlocutores como e quando eles deram-se conta, “tomaram consciência”, identificaram-se (ou foram identificados) em sua homossexualidade. Novamente, rizoma por excelência, foram múltiplas maneiras e caminhos. Tem gente que “sempre soube”: Desde de pequeno, desde os sete anos eu já sabia, era evidente, só que nunca deixei nada transparecer. Que inclusive, minha mãe foi me entupindo de coisas para fazer e não tinha tempo para pensar nisso. (Vinícius) Desde a infância. É aquela coisa de achar o amiguinho bonitinho, aquelas brincadeiras de criança. Tive [problemas], porque a família, até que você abra para eles: “o negócio é assim, pára de me encher o saco!”, cobra namoro, presença feminina. Para mim não foi sacrifício porque nunca tive nada contra mulheres, cheguei a ser noivo. Mas sabia que não era aquilo que queria para sempre. Hoje é 100%. Até gostei de uma ou outra menina. Mas resolvi parar com isso, não gosto de enganar ninguém. Ser de propósito. (Guilherme) Sempre soube. Não tinha consciência do que era. Sempre me senti atraído pelos meninos, desde pequeninho mesmo. Mas não tinha consciência do que era, porque eu era ensinado a gostar de menina. Mas eu gostava quando por exemplo … queria tocar os meninos, beijar os meninos e não as meninas. Não tinha consciência do que era, fui tomar consciência depois. (Caco) […] então para mim era natural. Não sabia o que significava aquilo. (Caio) Desde que me conheço por gente [refere cinco anos de idade]. As professoras fofoqueiras chamam a mãe na escola. Falaram que em todas as 35 Lembrando o jogo de palavras entre balada como tipo de festa e local de lazer, boate; e balada como narrativa, apropriada por mim como história de vida, cartografia de devires.


66 brincadeiras eu ficava junto das meninas; e quanto aos brinquedos do gênero masculino, eu não estava nem aí. (Leonardo)

Esta constatação em tão tenra idade está em cinco das dezesseis entrevistas que consegui (31,25%). Não aprofundarei análise sobre este dados, não estou procurando a origem presunçosamente inata do desejo. Cumpre contextualizar as citações. A família de todos, exceto a de Vinícius, é nuclear e os pais nunca se separaram. Vinícius e Guilherme declaramse negros, Caio, pardo, e os outros dois brancos. Todos, menos Caco, têm nível superior completo (graduação). E todos estão empregados. Por isso não se deve deixar crer que houvesse qualquer trauma de infância ou “família desestruturada”, falta de estudo e desemprego, nem quiçá abjeção (supostamente inata) pelo corpo fêmea para engendrar a homossexualidade. Mesmo as experiências mais graves de abuso e tentativa de suicídio, são situações extremas e decorrentes de circunstâncias específicas. Nem todo mundo, por outro lado, “sempre soube”. Parece que houve sim um processo de autopercepção, em geral na época do ensino médio. Depois, no limiar do primeiro processo, um de compreensão e autoaceitação. E tenho razões para acreditar que o mesmo sucede com qualquer pessoa. Um heterossexual que me concedeu entrevista relata que Houve um questionamento da minha parte quando esse assunto foi suscitado na escola. Não lembro, comecei a me questionar sobre isso. Alguma hora me veio essa questão. Eu me cobrei e busquei ter certeza do que eu era, do que eu queria. Na época eu cheguei à conclusão de que era hétero porque gostava de garotas, sempre gostei. Nunca tive atração por alguém do mesmo sexo ou outras coisas. Simplesmente me imaginei ficando com outros homens e não me achei capaz. Claro que isso foi se concretizando porque meu convívio social me fez hétero, porque vivi com pessoas normalizadas em hétero. Tenho certeza que foi uma escolha. Me escolhi hétero por não estar acostumado… porque desde pequeno não tive homens por perto e isso não era normalizado. Acho que isso criou uma barreira para mim. (Rodrigo)

Para os fins desta pesquisa, interessa a sexualidade enquanto vivência coletiva. Ninguém pratica intercurso grupal, mas as pessoas recebem rótulos e papéis sociais que são sexualizados. Como eu estudei acima, a produção de diferenças, embora traga à baila a sexualidade, é antes um problema de gênero porque põe em questão as atuações dos personagens (BUTLER, 2003). Essas performances também serão aprendidas do grupo. O agente desterritorializa-se dos habitus heteronormativos junto de seus pares. Isso não é mecânico e simples assim, óbvio dizer. Há nuances e agentes mais ou menos desterritorializados. Destaco alguns fatores que concorrem para a composição da identidade individual: a) socialização com pares; b) maneira de lidar com conflitos. Nesse sentido, a


67 identidade seria síntese dialética da individualização e socialização; o indivíduo deveria aprender a operacionalizar e partilhar os símbolos e significados do grupo.

4.1.1 Discriminação e imposição A desistência é uma revelação. Desisto e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono. (LISPECTOR, Cl. A paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, 2009: p. 177)

Na continuação do devir homossexual, a pessoa passa por momento, ao que tudo indica, decisivo – mas não peremptório – entre os fins do ensino médio e princípios da vida adulta. Há as dificuldades com os colegas de escola. Alguns as resolvem pela ocultação da sexualidade, outros pela imposição de si como pessoa. Corrobora com isso a situação do agente dentro da casa dos pais: declarar-se homossexual pode valer uma passagem só de ida para fora de casa. Também a postura da pessoa vai se constituindo na interação com outros homossexuais. [Como você acha que alguém se descobre gay? Perguntei eu.] De repente a pessoa se vê atraída pela vontade de sexo. E quem está oferecendo esse sexo? Uma pessoa do mesmo sexo. Inicialmente por brincadeiras. Aí a pessoa topa. Vai lá, faz, vê que gostou. Eu já perguntei para as pessoas como foi a primeira vez, foi no mesmo sentido. Alguém falou alguma coisa de brincadeira, misturou com o sexual e rolou. Mas tem de ter algo anterior. (Rafael)

Park (1991) explorou de maneira brilhante essa iniciação e as “brincadeiras de adulto” (o autor não usa este termo, estou o aproveitando do interlocutor supracitado) no Brasil. O mérito de sua pesquisa é demonstrar como o campo histórico e o campo social constituem o campo do desejo em detrimento do psicológico e psicanalítico. A sexualidade também é um campo de conhecimento (cf. FOUCAULT, 2012) e enquanto conhecimento comporta estruturas de subjetivação e legitimação (cf. BERGER; LUCKMANN, 2011). Não interessa aqui a origem da sexualidade, interessa este campo enquanto condicionador das possibilidades sociais.


68 Eu escondia de todo mundo, da família inteira, só minha mãe sabia, mas eu não queria que ela soubesse. Soube me impor na escola: sou gay, quer ser meu amigo, ok, eu sou assim, se você me ofender vou te ofender também, se quiser me bater vou te bater primeiro, vou zoar primeiro para não me zoarem. Era um menino que era gay só que não era zoado e os meninos conversavam normalmente porque a gente curtia a mesma música, a gente fazia grupo de boa, não sofri bullying. Depois que comecei a me impor isso não existiu mais. (Caco)

O primado da masculinidade também força os “homens” a reconhecerem alguém como pessoa. Quando eu estagiava no modo Licenciatura de Ciências Sociais, observei no pátio da escola, na hora do intervalo, que um menino declaradamente gay brigava e batia e – fato da maior importância – não apanhava. É o mesmo fato relatado por Caco. Semanas depois, na boate, encontrei com ele e conversando descobri que ele era cabeleireiro e eventualmente drag na Datura. 4.2 Conhecendo pessoas Quando o agente tem idade suficiente para sair à noite, passa a conhecer pessoas e daí então a desterritorialização intensifica-se, especialmente se a pessoa for economicamente independente. Ao passo que se passeia com os amigos em bares, festas, baladas, vai se conhecendo mais e mais pessoas do meio LGBT. Diz-se que é perceptível quando o agente é um neófito porque os trejeitos são assaz contidos: fica em silêncio, observa muito, não apreende certas deixas sutis particulares ao ritual de interação. [Qual você acha que é o impacto do grupo sobre o indivíduo? Perguntei eu] Total. Do jeito de vestir principalmente, no pensamento em comum, porque o grupo acaba fazendo uma linha de pensamento. Mesmo conflitando em algum momento, acabam todos acreditando. E você acaba tendo um comportamento igual perante a sociedade. Só que também acredito que a pessoa é mutante, hoje está pensando uma coisa em comunhão com o grupo dela e de repente muda. Principalmente na adolescência, a pessoa não se estabilizou no que pensa e uma hora chega a pensar diferente do grupo e procurar outro grupo que ela se enturme, o que faz ela mudar todos os conceitos. Até que na fase adulta ela fica mais individualista e não precisa tanto do grupo. Por isso que eu acho que o gay efeminado, as poques 36, não serão assim a vida toda. À exceção talvez das travestis, que serão travestis a vida toda. Porque a poque não tem mais a referência do grupo, passa a ter a referência de si mesma, então para ela não é mais interessante parecer a poque, e é melhor se adequar ao grosso da sociedade. (Rafael) 36 Poque-poque: epíteto para o gay efeminado e espalhafatoso, circunstancialmente também denota promiscuidade de conduta haja visto que “poque-poque” é uma onomatopeia de algo pingando ou quicando de um lado para o outro, tanto por gostar de chamar atenção quanto por ir de um corpo a outro.


69 As linhas de comportamento (GOFFMAN, 1972) serão aprendidas uma a uma, junto da linguagem êmica e dos trejeitos. Com relação a estes dois últimos, os indivíduos parecem ter mais liberdade de executá-los ou não, conforme prefiram mais ou menos “discrição”. Quanto às primeiras, refiro-me a relações específicas que todos entendem, embora nem todos as veiculem. São símbolos significantes que orientam, mesmo que tacitamente, a ação dos agentes. “2º teorema [de desterritorialização]: de dois elementos ou movimentos de desterritorialização, o mais rápido não é forçosamente o mais intenso ou o mais desterritorializado.” (DELEUZE; GUATTARI, ibid. Ênfase dos autores.). Não é porque alguém se tornou economicamente independente antes de outrem que este será menos desterritorializado do que aquele. Embora a pessoa não dependa dos pais, pode estar muito mais atada ao modelito bicha-homem ou não utilizar a linguagem êmica, nem aderir aos trejeitos do que o faria a pessoa economicamente dependente. “De forma que o mais rápido conecta sua intensidade com a intensidade do mais lento, a qual, enquanto intensidade, não o sucede, mas trabalha simultaneamente sobre um outro estrato ou sobre um outro plano.” (id. ibid.) Vale notar ainda que dos dezesseis entrevistados apenas três moram sozinhos (81,25% moram com os pais). Primeiramente muda o palavreado, gírias, forma de se dirigir às pessoas, expressão facial, corporal, você começa a fazer parte do grupo e você tem que mudar para fazer parte do grupo. […] Outra coisa: quanto mais pessoas você conhecer, mais importante você é. Porque, aquela pessoa que conhece tudo, ela nunca está sozinha, sempre tem um lugar aonde ir, um lugar para frequentar, uma festa, isso nunca vai faltar. Por agir dessa forma, a gente percebe que a gente deixa de ser desejado em lugares onde os frequentadores são hétero. Por quê? Como já teve essa mudança, a voz afina também, não tem como, acaba fazendo com que você fique visado e você deixa de ser uma boa companhia principalmente para os homens. (Mário) Eu assumi com 18, conheci meus amigos com 23 anos de idade, nesse período 18-23 eu ainda convivia num mundo hétero, com amigos héteros, e era uma coisa morna. Depois me encontrei enquanto gay. Encontrei meu espaço. (Celso)

4.2.1 Problemas consigo mesmo e problemas dos outros Esse trânsito conturbado entre a casa e a rua, entre ser gay “publicamente” ou apenas “em particular” parece um processo característico da modernidade urbana. O mesmo processo é retratado em seriados televisivos (exemplo internacional: Queer as folk). Também em letras


70 de músicas de drags, brasileiras ou não, é retratado, um tanto sarcasticamente, esse processo Exemplo brasileiro: Silvetty Montilla, em faixas como Sou travesti; Não sei dublar tange o problema da sobrevivência após declarar-se gay ou executar uma performance travesti. Silvetty é emblemática dada sua popularidade entre os gays (devo remarcar, os gays do Estado de São Paulo, em Curitiba (PR) ela é praticamente desconhecida); além disso, a personagem participa de ações políticas pró-diversidade. O filme Orações para Bobby 37

38

aborda a transformação dos hábitos de Bobby quando este se muda de cidade e passa a conviver com os pares. “A aceitação sempre foi supertranquila por parte de todos; o que foi mais zica [= problemático], foi em casa com meu pai e com minha mãe. Familiar, amigos, foi supertranquilo.” (Celso) As falas dos agentes afirmam que a (homo)sexualidade deve passar a ser problema dos outros, e não nosso, isto é, de si mesmo. Isto significa que a pessoa descobre que os discursos infernais são a mesma história que a da tartaruga falsa (CARROLL, 2009: pp. 104 ss.): quando Alice pergunta ao grifo qual o problema da tartaruga, ele responde-lhe: “É tudo fantasia dela: não tem problema nenhum.” (id. ibid: p. 110) É realmente o caso de a pessoa parar de culpar-se e reconhecer-se em um grupo. Mas isso pressupõe deixar de ter problemas consigo mesmo. O autoconhecimento que leva à autoaceitação. Parece platônica uma tal proposição, contudo é o que os agentes dizem. “Antes de me assumir, tinha problemas comigo mesmo. Depois, é como se eu aceitasse aquela minha condição e passasse a viver bem com aquilo. E procuraria minha felicidade independentemente de sexualidade. Isso foi fundamental para mim.” (Celso) Esta história não é única. Repete-se em oito das dezesseis entrevistas (50%).

39

Na verdade quando eu me assumi para mim, e resolvi acabar com os problemas que me causavam, isso eixou de ser um problema meu e passou a ser das pessoas. É o que eu sou, é uma questão de aceitação, não de escolha. A partir do momento em que essa aceitação deixou de ser um problema para mim, é como se eu tivesse passado a bola. Deixando de ser um sofrimento para você, você melhora enquanto pessoa. Você não luta mais com o quê você é. (Guilherme)

4.3 Ser uma bicha de condições Este título de seção remete a um dos vários bordões êmicos. O ponto de partida dele 37 Cf. sua biografia e alguma postagem sobre atuação política em seu sítio: <www.silvettymontilla.com.br>. 38 Orações para Bobby. Russell Mulcahy (dir.). Daniel Sladek et al. (prod.). EUA. 89 mins. 2009. 39 A verdade é que todos viveram histórias de inaceitação e incompreensão, cujo amargor trava a língua, justamente com os pais. Eu não quis perguntá-las aos interlocutores, não teria estômago para ouvir e depois verter aqui, também há alguma ética êmica tácita de não se tocar nesses assuntos.


71 é a drag Silvetty Montilla que faz exibição, em todas as suas apresentações, de algum acessório ou indumentária que conota riqueza. Verdade ou não, fato é que ela sempre diz algo como “não posso fazer nada por vocês, a vida está difícil para todo mundo – não para mim, que continuo não sendo uma bicha de close e sim de condições”. Por ser personagem caricata, essa ostentação de riqueza material soa como ridícula. Há uma pergunta inversa a essas afirmações da drag, qual seja: se está em tão boas condições econômicas, por que faz apresentações em boates? Absorvido, o bordão passa a ser utilizado no dia a dia: tudo que a pessoa vai fazer – reforçando o bordão – realiza-lo-á tão-somente porque tem condições. Só um puf [= borrifada] do meu perfume, querida, seu salário inteiro. Só este penteado que eu fiz no Bitch's Hairstylists, [custou] vinte apartamentos em Itaquera. (Ademir) Querida, só a tinta do meu pücumã [= peruca, na verdade o próprio cabelo], [custou] dois apartamentos em Ipanema. (Pesquisador) Se eu uso Doce da Cabana, é porque os clientes me dão. (Marcelina Chave de Venda)40 Só esse anel no meu dedo, 86 apartamentos em Jaú. (Silvetty Montilla) 41 Neste verão eu resolvi fazer algo de diferente: resolvi ficar na minha casa, na minha piscina, nesse verão maravilhoso da Europa, da Espanha. […] E ainda teve boatos que eu estava na pior. Se isso é estar na pior, porra, que quer dizer estar bem? (Luísa Marilac)42

Este último trecho, extraído do vídeo de Luísa, circulou tanto pela rede que não poderia deixar de citá-lo. As pessoas, inclusive os próprios homossexuais, compreendem esses bordões e seu uso em circunstâncias de brincadeira entre amigos e de afronta a outrem como ostentação. Pode-se mesmo repreender alguém, dizendo: “olha a ostentação, hein!”. Talvez ninguém perceba que essa afronta responde à hipótese de que homossexuais são mal sucedidos. Para ser um pouco marxista, diria que não é simples alienação pelo fetichismo da mercadoria, mas também exteriorização do ser (capitalista) e da distinção (MARX, 2009). Não é algo individual nem particular a homossexuais. A sociedade capitalista ostenta, historicamente, seus bens materiais. Homens capitalistas exibiam suas esposas recobertas de joias até as vésperas da Primeira Grande Guerra. As nações participavam das “Exposições universais” para exporem seus avanços tecnológicos. Estátuas e monumentos em diversas 40 Vídeo parodiando as propagandas eleitorais gratuitas: <www.youtube.com/watch?v=kUAtAgNWsEE> acesso em 18 de Janeiro de 2014. 41 Frase recolhida pelo pesquisador durante uma apresentação da personagem em boate naquela cidade. 42 Vídeo publicado em: <www.youtube.com/watch?v=ikzC29rV75A> acesso em 18 de Janeiro de 2014.


72 cidades expressam de maneira gigantesca não só riqueza e luxo (Dubai), mas também liberdade (Estátua da Liberdade) e outras ideias-valores (penso na Praça do Pacto Federativo, na Rua da Independência em Rio de Janeiro, além das numerosas imagens de D. Pedro I e II e outros vultos da história do Brasil). Neopentecostais hodiernos não perdem a oportunidade de dizer que Jesus através de sua igreja concedeu-lhes carro, casa, emprego etc. O funk também tem apelado à ostentação. De mais a mais, no capitalismo a ostentação está ligada a demonstração de que um modo de vida é melhor que outro. No caso dos homossexuais, mostra que todos trabalham (duro), todos podem consumir (poder aquisitivo) etc.. É evidente que uma tinta de cabelo não custa dois apartamentos em Ipanema; embora não seja um ritual agonístico, essa ostentação também quebra com o prestígio. Seria esse outro indício de alguma relação de igualdade interpares? Ou deslocamento de valor dos bens para as pessoas? No fundo, o “ter condições” é linguagem êmica e, portanto, remete aos contextos em que é veiculado. Tem a ver também com saber (e poder) aproveitar uma festa, bar, balada, pois paga-se para entrar nestes lugares, consome-se bebidas e alimentos, gasta-se com deslocamento. Agrega-se a isso estar minimamente bem vestido (preferencialmente roupas da moda e maquiagem). Um neófito aprende essas coisas pela convivência. Quando acham que Marília oferece más opções, buscam-nas fora. 4.4 Ir a outras cidades O melô de sair no fim de semana começa na Sexta-feira à noite, como já indiquei. Conforme a pessoa adentra nas relações com os pares – e em certa medida assim faz para poder participar delas –, envolve-se mais com as atividades. Se calhar de as pessoas não apreciarem a apresentação daquela noite na Teatro, vão para as cidades vizinhas. A boate de Marília é cara e não tem boa infraestrutura, de modo que as pessoas não gostam dela. Quem gosta muito são os amigos do dono. Evidentemente, quando eu digo que a infraestrutura não é boa, faço referência ao que se encontra em outras cidades (notadamente Bauru, que é referência próxima dos agentes) e ao que os interlocutores dizem. Infinitamente superior. Se você for numa capital, é claro que você vai ver boate gay superbem estruturada, belíssima, acolhe com conforto todo mundo. Mas a maioria delas no interior [do estado] são precárias, fedidas, com pouco investimento. Enquanto as baladas héteros... [risos] a gente tenta falar bonitinho [sobre o assunto para o entrevistador], não vai o negócio [balada hétero]. […] Acho muito descarado você querer enganar as pessoas.


73 A Teatro era isso. Estava caindo aos pedaços, chovia lá dentro, alagava, fedia. Faliu. (Celso)

Celso aí fala sobre a antiga sede da balada, também chamada de inferno. À época da entrevista (02-06-2013), Teatro ainda estava extinta e, além de sua má fama, apenas Datura estava em funcionamento, aos trancos e barrancos também. Ele conhece as mais famosas boates LGBT de São Paulo. Outros interlocutores também conhecem boates de São Paulo e alhures. Marília tem um déficit, porque não tem praticamente [boates e bares LGBT]. Tem o [bar] Rainha, só que infelizmente o pessoal não prestigia o bar. Essa semana só tinha nossa mesa [dele e de seus amigos]. Quando tinha Datura bar era muito bom, mas não sei o que aconteceu, as bichas sumiram. […] As bichas vão muito para Bauru, para a Sino [diminutivo de Sinuosa, boate de Bauru] e festas que tem na região. Dão preferência a isso, não prestigiam o que tem em Marília. E acaba acontecendo isso que tem em Marília. Mas é porque também as bichas são muito de status. Querem postar que foram para Bauru, não sei para onde. [...] Muito pessimismo. Dá até ódio. A pessoa prefere parar no posto da BR [rodovia] do que ir à boate, porque acha que está flop [= vazia, ruim, parada]. Como a pessoa tem a cara de pau de falar isso? Você faz a sua balada! Independente da quantidade de pessoas! Eu odeio balada lotada, você não consegue pegar bebida, aquele monte de gente drogada, suada. (Leonardo)

Este mesmo Leonardo conhece boates em São Paulo e no exterior (Argentina, EUA, França). Cabe anotar que não é só em Marília que as pessoas hesitam para ir à boate, com dúvidas sobre a frequência de pessoas. O sítio Vimeo dispõe vídeos de Las Bibas From Vizcaya em que fizeram redublagem da conversação de alguns capítulos de telenovelas. Em um deles, há uma carruagem parada em frente a um salão. As duas senhoras espiam a entrada e se perguntam sobre o que terá na boate aquela noite e se tem alguém lá dentro. Inclusive uma pede a outra que entre na rede pelo celular e procure o panfleto, ao que a outra responde que não tem rede móvel: “deve ter alguma lesada com wi-fi sem senha por aqui.” De parte da 43

paródia, o vídeo foi feito por gays (percebe-se pela voz e pelo uso intenso de pajubá) e é endereçado a gays, pois que insere questões práticas que têm lugar no meio LGBT: balada e o rizoma balada-pessoas, passando pelo dilema da porta da balada “será que vai dar gente? O que tem para hoje?”. As pessoas sabem que o quórum depende de quem fará a apresentação da noite. Nesse sentido, o pesquisador cansou de ouvir de seus amigos, quando decidindo aonde sair no Sábado à noite: “Vai ter Silvetty na Sinos, quem é de Marília vai para Bauru ver Silvetty.” ou ainda “Vai ter Léo Áquila em Araçatuba, por isso a Reviravolta está com pista 43 <http://vimeo.com/lbfv> acesso em 10 de Janeiro de 2014; refiro-me ao capítulo 2 de “Bafo a bafo”.


74 free [= entrada franca], porque quem mora em Birigui [onde fica a Reviravolta] vai para Araçatuba que é a 10 km de lá.” e aí os panfletos disponibilizados no perfil das boates na rede Facebook divulgam a programação: quem fará o show, se haverá promoções, horários, preços etc. Mário, outro interlocutor muito experimentado, ao ser indagado sobre semelhanças e diferenças entre Marília e Campinas e o que isso influiu em seu modo de vida respondeu: Como pessoa e gay. Processo de libertação e independência dos meus pais. […] Vestibular e acabei arrumando emprego e fiquei por lá. A vida gay de Campinas é totalmente diferente da de Marília. O público gay de Marília é fissurado, é fixado na margem, onde você ter é mais importante do que você ser. Essa é a imagem de Marília. O gay de Marília tem que chegar na balada com o melhor carro e ter o melhor corpo. Já a vida gay de Campinas é totalmente diferente porque os gays lá não estão mais preocupados com imagem, mas com relacionamentos. É um público maior, de faixa etária mais diversificada e lá eles estão preocupados em encontrar alguém para formar família. Tem gente interessada na imagem sim, mas isso vem diminuindo. Fora que tem muito mais lugares para frequentar, muito mais gente que você conhece, é totalmente diferente. (Mário)

Nesse sentido, não é apenas dar close na balada. Há outras relações que as pessoas buscam fora de Marília. Sem embargo, os agentes também compram entrada de camarote para ostentar a pulseira na boate. *** Os pontos elencados na primeira metade deste capítulo são abstrações do pesquisador para reconstruir um “roteiro” de devir-homossexual. Pode ser qualquer outro em ordem diversa, importa que são acontecimentos que acometem os agentes em média; por isso mesmo se aproveitou para generalizar o processo de identidade. Os elementos da segunda metade são especificidades que em Marília ganham destaque por razões sociológicas. Quer dizer, “ter condições” e “ir a outras cidades” (que denota as “condições”) são fatores de prestígio para os gays de Marília. Não para todos, evidentemente, mas é fato social, praticamente senso comum, que essa maneira de relacionar-se (mostrando que pode pernoitar em Bauru ou São José do Rio Preto) recebe destaque. Até quem não liga importância à estrutura da boate, mas à companhia bela dos/as amigos/as comenta e conhece essa valorização. Por alto, podemos então principiar a vislumbrar como as máquinas sociais cunham os gays e depois introduzemnos, dentro deles e eles próprios, determinadas maneiras de agir e pensar (cultura à Geertz,


75 1978) que perfazem um processo de identificação particular. E já que viver nos tirou o sono, vamos para a boate...


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5. Durante a balada Achava mágico aquilo tudo. Deslumbrei com tudo. Achei que tinha mil possibilidades para eu ser feliz. Via as pessoas felizes e achava que podia ser feliz também. Que o mundo era maior do que eu pensava. (Celso)

Começa à porta. Às vezes forma-se grande fila ante a porta. Há promoções do tipo “pessoas com RG de tal cidade não pagam o ingresso até 00h30”. Na entrada, a drag hostess (anfitriã) recepciona, cumprimenta, brinca, tira sarro das pessoas que se aproximam. Nossa! Você saiu do inferno hoje? Onde você arrumou essa blusa horrorosa? Em que loja você deu a elza [= roubou] nesse apatá [= sapato]? De onde você veio [diz ela a um visitante que lhe é desconhecido]? De São Paulo [responde ele]. Segurança! Segurança! Socorro, isso rouba! [paráfrase de bordão de Silvetty Montilla]44

Estas frases são bons exemplos da recepção animadíssima à porta da balada. Ninguém se ofende, ou pelo menos ninguém consterna ofender-se com a jocosidade da anfitriã. Mais tarde, pelas 2h, ela fará uma apresentação breve para “abertura” da balada. Ela subirá no palco com os gogo boys e dançará uma música que tematiza em algum sentido a balada, sendo precedida por uma gravação curta de uma voz masculina narrando: A partir de agora, sua noite terá um toque a mais de prazer; nessa noite suas sensações ficarão à flor da pele; seus sonhos e desejos se tornarão realidade. Solte-se! Entregue-se! Sinta-se! Você está na Datura. 45

Quer dizer, é a abertura da balada que convida as pessoas ao lazer, à descontração, à 44 Estas frases recolhi-as esparsamente da hostess na portaria da Datura. 45 Texto audível em qualquer vídeo disponibilizado no perfil do Facebook e no YouTube pela casa noturna.


77 diversão. Na verdade, desde antes de as portas abrirem-se, a música já toca. A drag então agitaria os ânimos. Também se diz por exemplo que ela é a referência da mostra, ou show, ou da diversão/liber(t)ação. De fato, o gogo boy e a gogo girl são objetos secundários das exibições. Assim, as pessoas adentram, conversam, encontram-se, bebem, dançam, fumam, etc. Quando a balada funciona como bar, acontece tudo pari passu; à exceção de que não há apresentação de drag nem gogo boy/girl, nem DJ e nem a pista fica aberta e o ingresso é franco. Sabe-se que a noite é longa e há várias atividades e personagens. Há quem frequente o dark room para procurar um/a parceiro/a para intercurso sexual casual e anônimo (este espaço foi encerrado há pouco tempo), ou apenas para “olhar”, ver o que se passa e rir. O rir perpassa quase todas as atividades. Mais tarde, 4h aproximadamente, ocorre outra apresentação, de outra(s) drag(s), ou qualquer entretenimento (não necessariamente erótico). A partir daí, o fluxo da balada muda: as pessoas já estão mais alcoolizadas, cansadas ou desesperadas em busca de algum intercurso mais íntimo. 5.1 Chegar e ahazar

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Aquela descrição é do programa da antiga Datura. Em Outubro de 2013 a Teatro renasceu e instalou-se onde era Datura. Particularmente, acredito que nada mudou desde sua sede primeva: mesma decoração, mesmos aparelhos de luzes, mesmos funcionários e mesmíssima lista de músicas vetustas. Mas, como ensinou Leonardo “você faz a sua balada”. Como as pessoas fazem-na? Estudaremos algumas baladas – outrossim, há multiplicidade de baladas, uma para cada agente, como há multiplicidade de devires. Você percebe o novo gay e o antigo. Você olha e fala “você é muito estranho; você é diferente; você é quieto”. Ele estuda tudo que está em volta, porque ele quer entrar no padrão. (Mário) Eu não fiz julgamento de ninguém nessa época. Eu aceitei todo mundo. Fui [bem aceito]. Porque, na verdade, a gente leva os nossos princípios em todos os lugares que a gente vai. Então quando a gente descobre esse mundo diferente, não dá para tirar isso fora, foi isso que meus pais me ensinaram. Quando eu conheci essa diversidade de pessoas eu interagi com todo mundo. Claro que o preconceito existe até ou mais entre nós. (Celso) 46 Ahazar, ressignificação do verbo arrasar na acepção de causar impacto, surpreender um público.


78 Ninguém se desterritorializa sozinho e ninguém chega sozinho na balada. Até chega, mas acaba se envolvendo com os demais. E ninguém dá close sozinho, só o faz se tiver alguém para prestigiar (uma ação é social quando dirigida a outrem, diria Weber (2009)). Lembra-nos Goffman (1972) que nas interações face a face sucedem séries de atos e melindres em manter a pose (take a stand) e prosseguir segundo regras tácitas do grupo. Por isso todo aquele aprendizado, exposto sumariamente acima, é importante. A propósito do close, não é todo mundo que dá close. Dar close é uma hecceidade agenciada pela pessoa no lugar certo e na hora certa. Não pode ser um, mas deve ser O Close; adentrar em uma balada ou bar ahazando, bem vestido, em destaque, fazer barulho como que sendo anunciado. Por que alguém iria à balada em Marília? A música, só. E a apresentação das travas [ou drags, que são mais comuns]. Das companhias, dos friends [amigos/as]. A música mesmo; gosto da pista de dança, encho a cara e vou. Ver as pessoas, fazer um network [rede de relações sociais], porque lá você encontra todo mundo. E para dar close. Tentam, não conseguem, não sabem fazer o close. (Leonardo)

Dois lados da mesma moeda: close bem feito é positivo para a pessoa. Após a entrevista, Leonardo mostrou-me uma página de rede virtual em que qualquer pessoa faz perguntas a alguma outra que cadastra o perfil lá. E ele mandou-me o endereço eletrônico de uma pessoa e disse: “está vendo? Isso é dar o close.” Não que fosse algo dileto e extraordinário, era o perfil de um menino bastante conhecido no meio LGBT de Marília. Infelizmente perdi o endereço, porém recordo um exemplo: “P: é verdade que você já deu para Marília inteira? R: Querida, se atualiza, eu já estou no ranking internacional”. O lado negativo é quando a pessoa tenta dar close e comete algum deslize que quebra a interação (cf. GOFFMAN, 1972) e pode vertê-la em chacota, podendo atrapalhar todas as interações seguintes e quiçá requerer muito trabalho para voltar ao estado, digamos, comum. Eu creio ainda

que

essa

hecceidade,

como

outras,

representa

um

grau

(altíssimo)

de

desterritorialização, pois que para o agente emular um tal devir, antes precisa deslocar sua “moralidade” e sair do território heteronormativo (onde um close poderia vir a ser causa mortis), e ainda subverter sua identidade, ressignificando-a. Isso não é exclusivo ao nível local: Silvetty Montilla (closíssima) em entrevista no Pânico na Jovem Pan comenta e explica que não basta apenas vociferar palavrões, é o contexto que os torna risíveis e não toscos ou


79 moralmente reprováveis. A própria transformista canta, em todas as suas apresentações, uma 47

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paródia que versa “gongar, cortar e tombar toda bicha pintosa que me der close”. Há diversidade de coisas para fazer em uma balada. São também múltiplas formas de fazer as mesmas coisas. Executar alguns papéis e vivenciar algumas hecceidades é indicativo de que a pessoa está integrada ao grupo, há identificação com outrem. Deste ponto de vista, a identidade de homens homossexuais não é una, é múltipla; cada identificação é válida e produzida pelas mesmas máquinas sociais. Ainda, identidade aí aparece como processo de recriar-se, reinventar-se. O exemplo eleito nesta monografia foi um contexto de lazer específico (boate, balada), daí o jogo de palavras (ver seção 6.3 infra) entre recriar-se e recrear-se, mostrando que as identidades fazem rizoma com o lazer. 5.2 Hecceidades Deleuze e Guattari abordam um tipo de individuação muito especial: a hecceidade. Já vimos que um gay sozinho não é um gay. Da mesma maneira, para que alguém seja uma drag, um gogo boy, até uma pão-com-ovo, é preciso que haja a matilha. Parafraseando os autores, uma balada, uma música, um remix, um encontro, aquele menino, aquele namoro, aquelas férias cazamyga; cada acontecimento tem sua singularidade de realização e compõe-se das 49

intensidades particulares experimentadas por cada um. Embora uma mesma drag reprise sua apresentação, cada uma é única. Não só pela performance, indumentárias e coreografias especialmente preparadas para cada ocasião, mas por haver uma multiplicidade de eventos e acontecimentos refazendo o devir-drag. Seu estado de humor, a viagem entre cidades, pessoas que conhece. Ser drag em Marília é diferente de sê-lo em Bauru, e Silvetty apresentar-se em Bauru é diferente de fazê-lo em Jaú. Assim também devir gay em Marília é assaz diferente de devi-lo em São Paulo. E na mesma São Paulo, nos idos de 1970, difere do que era nos 1990. Uma entrevista muito cara 47 Disponível no Youtube: <http://www.youtube.com/watch?v=Z2N_kqMHXg8>, acesso em 27 de Janeiro de 2014. Também o documentário O riso dos outros (dir. Pedro Arantes. 2012) ao longo do qual transparece o aspecto político das ideias-valores mobilizadas pelo ator comediante. Agradeço a Rodrigo (Xmitão) a indicação deste documentário. 48 A controvertida nomenclatura não nos pode enganar. Eu próprio já me referi à mesma personagem como drag enquanto ela autorrefere-se como transformista. O que me parece é que, no fundo, transformista é a mesma coisa que drag; apesar da animosidade quanto à origem e significação precisa deste último. Comumente, entende-se como sigla de dressed as girl (vestido como garota). Outro termo com os mesmos sentidos performáticos e controverso: crossdresser, “transvestido” ou “vestido ao contrário, de atravessado”, abrevia-se cd. Note-se ainda, como já assinalei a respeito do pajubá, que cada termo remete a contextos e execuções específicas – crossdresser remete a um fetiche sexual, enquanto drag, a uma apresentação pública. 49 Cazamyga: contração de “com as amigas”, ou seja, o grupo de amigos.


80 que me foi concedida foi a de um proprietário de boate de Marília. Tal entrevista me deu conhecer, por exemplo, que no interior do estado de São Paulo, nas cidades que possuem uma boate LGBT, têm-nas situadas às periferias urbanas, margens de rodovias e entradas ou saídas da zona rural. Veja-se: Araçatuba – boate Estrela fica beirando a rodovia, fora da cidade, e a via de acesso é de terra; São José do Rio Preto detém uma boate que é referência interestadual e que jaz à beira da represa, afastada da cidade, quase em Minas Gerais; em Bauru, em sua boate mais popular (inclusive ao público mariliense), chega-se pela rodovia que margeia a cidade. Datura e a atual sede da Teatro em Marília seguem este padrão. O detalhe revelador é que, nos anos 1990, conforme o interlocutor, estas boates apareceram e instalaram-se à periferia urbana por medo, por opressão materializada e espacializada, por reclusão de segurança. Teatro foi diferente pois que em meados dos 1990 instalou-se no centro de Marília, onde permaneceu por mais de dez anos. A sede atual visa o acesso fácil (rodovia que liga Bauru, Assis e Ourinhos, passando por Marília) e ponto privilegiado (cidade universitária – todas as cidades vizinhas cedem ônibus para lá, todos sabem onde ficam as universidades e hospital universitário). Perlongher (1987) analisou esta cartografia no centro de São Paulo e outrossim Guimarães (2004) nas praias da zona sul do Rio de Janeiro. Em ambos os trabalhos transparece o movimento de “varrer” para um lado e outro determinadas populações (exemplo paulistano: boca do lixo e boca do luxo). E no caso das mudanças mais recentes de Marília, pode-se comparar com o movimento “do gueto ao mercado” delineado por Simões e França (2005) sobre o texto de MacRae (ibid., passim). Talvez seja oportuno recordar que as classificações sociais são históricas e portanto constantemente atualizadas. Retomo isto aqui porque, como comentei na introdução, identidade não tem a ver com classificação social. O problema (social) das classificações é o valor atrelado a cada categoria e os limites e possibilidades que cada valor acarreta. A identificação com os devires homossexuais passa sim pelas classificações sociais gays, mas elas são atuais – funcionam em ato, são atualizadas. Destarte, uma maricona em 1950 é diferente de uma em 2010. E quiçá o novinho de 50

1950 seja a maricona de hoje. O exemplo temporal permite complexificar a classificação quando observamos que em 1950 havia uma multiplicidade de maneiras de devir gay (veja: SILVA, [1958] 2005) que involuíram (no sentido deleuze-guattariano) até os dias de hoje. 50 Maldosamente: bicha da terceira idade.


81 Todos os interlocutores relatam que em um tempo de cerca de dez a quinze anos a sociedade mudou bastante e os gays ganharam muita visibilidade e aceitação (ver a propósito seção 7.1 infra). A partir disso, poderia deduzir a proliferação diária das classificações sociais. Seja como for, há multiplicidade de maneiras de devir homossexual e às vezes essas maneiras ganham um nome (classificação). Voltando ao conceito de hecceidade, a particularidade de execuções de gênero e sexualidade de cada um, em cada tempo e em cada lugar desencaixa a classificação do agenciamento. Ser poque-poque é uma hecceidade porque ganha lugar e participação específica na balada mariliense, nas noites de bar, boate e nas maneiras de devir gay que Marília produz dentro de seus limites. 5.2.1 Lembranças de uma pintosa Fui à boate em um Sábado. Encontrei um menino que mora na rua de casa, com quem costumo manter conversa e ele apresentou-me aos seus amigos. Dentre eles estava aquele mesmo garoto que mencionei acima quando falava sobre dar close. A conversa estava animada e eu interagindo e ao mesmo tempo refletindo e analisando as identificações das pessoas. Ele contou uma balada em que comparecera dias antes, comentando sobre um bar novo em que a bicharia estava se reunindo ultimamente: Eu fui no Bazuca [bar na cidade universitária] na Sexta-feira, eles fecham lá em volta e fazem um tipo de rave, fica [aberto] até o outro dia. Na semana passada eu estava lá, quando eu vi que amanheceu, falei: “espera aí, que horas são?”. Eram seis da manhã, eu tinha de trabalhar às sete. Peguei um mototáxi e voei para meu serviço. Cheguei lá, olhei para um lado, para o outro, não tinha ninguém, joguei padê51 no teclado [do computador] e cheirei ali mesmo. Era meio-dia eu estava sambando na cara da minha chefe [exasperação denotando o efeito do complemento ilícito]. Ela olhou para mim, falou: “que foi? Está doido?”, eu disfarcei: “nada, é porque é Sábado”.

Se fosse qualquer outra pessoa em outra ocasião, a tônica sobre o evento seria grave. Mas em se tratando de quem era e da circunstância, fazer pilhéria da situação é como que condição de continuar a devir pintosa. Está tudo aí: o close, a pintosa, a música, a boate, o Sábado, a roda de gentes. Aí já o agente e o acontecimento confundem-se. Não se sabe o percurso de vida, de reconhecer-se gay e exteriorizar isso da maneira como o faz, porém descobre-se que esta é uma das possibilidades de devir gay. A hipótese deste trabalho está afinada com a proposição de Deleuze e Guattari sobre devires (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 1996, vol. 4, cap. 10); assim, qualquer devir é uma involução que é produzida por 51 Pajubá: cocaína.


82 contágio, por afecção. O que significa que não há tendências inatas, nem falta de estrutura familiar, de educação, nem carência de nada que conduza alguém a ser homossexual. Vir a ser homossecual é um processo. Está portanto acometido a mudanças paulatinas. Parece que, como vimos em 4.1, os acontecimentos atravessam o agente e o devir deste vai involuindo. Grosseiramente: há o desejo, passa-se por uma escola, uma amizade, uma paixão; sucede a intensificação do desejo pelo contágio com essas afecções e daí o devir tomar rumos diversos conforme cada hecceidade. 5.2.2 Devir-drag Datura fazia uma abertura da balada com uma performance da drag hostess (anfitriã) ao som de Sober (Sóbria), música da cantora P!nk. Se Datura ainda existisse e essa drag não tivesse ganhado o presentinho, eu poderia entrevistá-la a respeito dos significados que 52

atribuía à execução e à música. Minha análise da letra foca nos versos iniciais da primeira estrofe e nos finais do refrão: “eu não quero ser a garota que ri mais alto nem a garota que nunca que estar sozinha […] por que eu sinto que a festa acabou? […] como eu me sinto bem sóbria?” . 53

“Ângela. – Falando sério: o que é que eu sou? Sem resposta. Então tiro o corpo fora. […] Eu sou nome. Eis a resposta. É pouco.” (LISPECTOR, 1999: p. 45) Esta citação parece sinalizar bem o que é uma hecceidade e um devir-gay. Sabe-se de Silvetty pelo nome, renome, brocardos. Conhece-se Datura pela abertura e apresentação da anfitriã. Recorda-se da Sinos pelas experiências sexuais dentro do labirinto. É pouco; há muito mais que produz cada indivíduo. Jairo analisa a drag a partir da noção de clown [palhaço; em inglês na sua fala], em que a figura caricata e tristonha subverte a situação de marginalização em riso e humor e ganha os palcos e aplausos. Para este interlocutor, a drag teria um papel fundamental na desconstrução do preconceito. Na mitologia homossexual (ver infra seção 7.1) essa interpretação associa-se a outra, a qual prega que desde que a parada do orgulho LGBT em São Paulo é um evento aberto ao público e uma vez que as família vão e participam do evento, interagem e visualizam a diversidade social e desnaturalizam o preconceito para

52 Expressão parecida com “presente de grego”, ganhar presentinho ou ser mordida pelo bichinho da goiaba equivale a contrair HIV. 53 Em inglês no original: “I don’t wanna be the girl who laughs the laudest or the girl who wants never be alone […] why do I feel this party is over? […] how do I feel this good sober? […] ”


83 naturalizar a diversidade. Pode ser uma maneira de mostrar que travesti não é bagunça, este 54

texto mesmo almejou demonstrar isso quando se registrou que os homossexuais também trabalham. Infelizmente cabe a mim desencantar este mito: família nenhuma vai à parada. Sem embargo, ver e compreender que uma figura, uma personagem, uma hecceidade encerra mais possibilidades de socialidade é fundamental para desarmar o preconceito, nos termos de reconhecimento, identificação e subversão da identidade. 5.2.3 “Fazer a linha (de fuga)...” Goffman (1972) explica que nas interações face a face as pessoas tendem a manter uma linha de comportamento, como que previamente aprendida e estruturada, um script ou performance, para ser mais butleriano, adequada à ocasião. Em pajubá há multiplicidade de linhas que alguém faz e refaz, de propósito ou não, conveniente ou não, e singulariza um evento em hecceidade. E na verdade cada linha é uma hecceidade porque existe independente dos agentes, ganhando nova maquiagem a cada manifestação. Há dois vídeos no sítio YouTube intitulados GLOSSário (gloss é um apetrecho 55

líquido que tem a mesma utilidade do batom; percebe-se a mescla de palavras) em que duas drags (e na sequência outras mais) apresentam um palavreado básico em pajubá e seu significado em português. Mais do que simples glossário, o vídeo tem a qualidade de trabalhar hecceidades de drags, locais e tempos (praça à noite) e a jocosidade que é o principal elemento significativo. Em determinado momento, as “linhas” são apresentadas com performances breves. “Fazer a linha ryca”, uma drag anuncia; em seguida aparece outra muito bem vestida e joga dinheiro para o ar. “Fazer a pêssega” – a parece uma sentada em silêncio, sem interagir, como se nada estivesse acontecendo. Ninguém sabe qual a origem dos termos. Percebe-se que são situações materializadas que ganham individualidade (hecceidades) e um nome que remete a um suposto fato original. Olhares destreinados e não nativos talvez passem despercebidos pelos nomes artísticos empregados. Por exemplo: “Gisele Almodóvar”; suponho “Gisele Bicha” (paráfrase de G. Bündchen) acrescido de sobrenome de diretor português de filmes que exploram temas freudianos de sexualidade. Apesar de minha análise do cognome, a intenção dele é ser caricato. Com efeito, ao deparar-se com a figura da drag com um nome 54 Brocardo êmico equivalente a dizer que não se está de brincadeira, que o assunto é abordado com seriedade. 55 <www.youtube.com/watch?v=KvpBG0izseM> e <www.youtube.com/watch?v=EatalBYtEaQ> é importante conhecer também os cometários do diretor FaBinho Vieira (2012) <www.youtube.com/watch? v=kMMOZP0mIeY> acesso em 27 de Janeiro de 2014.


84 deste associado até o pesquisador ri. A escolha de um vídeo disponível na rede é para evidenciar uma comunidade de linguagem êmica, pois que este autor escreve estas palavras em São Paulo (SP) em 2014, ao passo que o vídeo fora gravado em Estado do Nordeste brasileiro em 2012. Sucede, como é de esperar-se, variações de pronúncia, grafia e significado de termos. Contrapartida, um comediante apresentou um quadro humorístico que parafraseia a linguagem êmica. Trata-se de uma escola de bichês (língua dos homossexuais, embora 56

ninguém a chame assim). Esta tentativa – penosa – de caracterizar a linguagem alcança a 57

sorte de conseguir associar hecceidades, atuações, sutilezas às palavras. Peca por não trazer à cena outras ocasiões que não são debochadas e nas quais se emprega o pajubá. O mesmo ator parodiou o vídeo de Luísa Marilac , misturando a personagem com Osama Bin Laden. E na 58

verdade aquele vídeo faz uma bricolagem de outros tantos de gays e travestis que se tornaram conhecidos e cujos motivos arrolados singularizaram-se e ressurgem em multiplicidades de hecceidades. Mais importante para esta pesquisa é descobrir de que maneira as execuções de gênero estão unidas a acontecimentos, palavras e atos. A emancipação humana começa pela emancipação da mulher em relação ao homem, como dizia Marx; e todos os devires passam por e devem ser compreendidos através do devir-mulher, como ensinam Deleuze e Guattari. Também assim desvencilhar os preconceitos de cada performance de gênero e de cada sexualidade enviesaria o devir-drag. Quiçá a maior lição que aprendemos nesta pesquisa foi a de que enquanto os homossexuais forem preconceituosos com suas multiplicidades, a homofobia vigorará (ver a propósito a seção 6.1.2 infra); como se o oprimido tivesse passado para o lado do opressor. Portanto, não é suficiente fazer a linha assumidíssima, nem a linha discreta, é mister fazer linhas de fuga. Carece-se de enxergar as possibilidades de desterritorialização de tal máquina de guerra que é a multiplicidade de devires homossexuais. O posicionamento divergente entre os interlocutores comprova como a socialização com diversidade permite à pessoa reconhecer o “outro” e identificar-se com o grupo; isto é, os interlocutores que são mais despojados são também os mais experimentados, ao invés, os mais recatados e são os preconceituosos e que menos multiplicidades viram. Não, eu não cheguei até aqui para julgar ninguém. Entretanto, é esta a constatação 56 <www.youtube.com/watch?v=8XRu-poqHSg> acesso em 27 de Janeiro de 2014. 57 Termo êmico: muito esforçada e de resultados medíocres, risível portanto. 58 <www.youtube.com/watch?v=wUxkhM9QYNQ> acesso em 27 de Janeiro de 2014.


85 que se obtém em Marília. Convém aceitá-la como existente e real para mudarmos de posição. O objetivo era mostrar como as execuções de gênero que declaram sexualidades outras podem desconstruir o preconceito. As hecceidades estudadas aqui são apenas os exemplos mais vulgarizados e hostilizados e que acredito concretizarem o rizoma de corpo-gênerosexualidade-desejo-preconceito, sendo um bom exemplo para pensar em qual o sentido sociológica da ação de preconceito e propor desterritorializações. A balada não acaba, continua; vamos para o after...

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59 After parties: festas após a balada, ou simplesmente qualquer atividade que se segue à noitada: lanchonete, feira, festa, casa de alguém, churrasco, igreja etc.


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6. Pós-balada A balada não se resume, pois, à dança dentro do recinto; envolve uma série de atos, quase um ritual, antes e depois do principal. Depois de dançar e beber até clarear o dia e a música parar, continua o programa. Então as pessoas vão para alguma lanchonete que por ventura esteja aberta, feira, motel, hotel (quando se vem de outra cidade), casa de amigos. Por vezes a festa ou a bebedeira prossegue, há até quem saia da balada e vá para a igreja. Nos dias seguintes, as fotos e filmagens do fim de semana são divulgados, pelos curadores da boate e pelos/as frequentadores. Mostra-se, assim, os equipamentos utilizados. Os gays que vêm de outra cidade, vêm de carro (mais raramente de moto e ônibus), geralmente grupos de amigos que dividem os gastos com a viagem. Se vierem de ônibus, permanecerão na cidade, em hotel ou casa de amigo ou ficante, ou na rua mesmo até o ônibus passar. Já aqueles que moram em Marília, porém em bairros afastados (lembrando: a própria boate é descentralizada) ficam em chusmas nos pontos de ônibus circular e lotam o veículo 60

nas primeiras voltas. É comum ouvir e ver michês, travestis, assaltantes (“trombadinhas”) vagando pelas ruas derredor da balada. Também sucedem tráficos de ilícitos e (muito raramente) furtos dentro da balada. Parece caber aqui uma réplica: mas você só pesquisou na boate? É bem, eu operacionalizei recortes conceituais no objeto. Optei pela mancha de lazer que mais concentrasse homossexuais. De outra parte, meus amigos e os amigos de amigos têm preferência pelo ambiente boate. Há ainda razões pessoais difíceis a mim mesmo para compreender que calharam nesta hecceidade e devir balada, coisas de que só me dei conta depois da pesquisa concluída e que não te dizem respeito. Deixei a realidade conduzir esta 60 Estar em bando parece ser uma estratégia de defesa ou de seguridade para não ser assaltado nem molestado.


87 pesquisa, tentei permitir uma liberdade que não eu não soube dar para apreender o processo de identidade. Felizmente, em pesquisa nada se perde; entender de que maneira este conhecimento ficou limitado permite ultrapassar os limites e expandi-lo ainda mais em outra ocasião. 6.1 Desconstruindo a “balada GLS” Desde que o movimento homossexual ganhou expressão no Brasil, aproximadamente no final dos anos 1970 (FACCHINI, 2005), expressões que designam lugares ou atividades de homossexuais passaram a ser veiculadas quotidianamente. Quero dizer, a partir dos fins dos anos 1970, com a abertura democrática e os confrontos da comunidade contra o Estado, o “meio GLS” ganhou expressão pública e midiática, através de folhetos, revistas, a própria parada etc.; e nesse contexto a “balada GLS” tornou-se mais conhecida. Foi, aliás, por isso que preservei “GLS” em lugar de “LGBT”, querendo chamar a atenção para uma categorização social datada historicamente. Quando um heterossexual fala sobre a balada que gays e lésbicas preferem frequentar, ele diz “balada GLS” ou “balada gay”, quando um homossexual refere-se à mesma, diz apenas “balada”. A distinção entre uma boate e outra a partir de seu público-alvo é assaz recente e é por isso que ainda apresenta traços machistas, às vezes até homofóbicos, em suas verbalizações do dia a dia. Grande parte das pessoas não está acostumada a ver gestos homoafetivos ou homossociais pelo longo tempo em que essas relações ficaram veladas e pela estrutura da 61

dominação masculina que informa os agentes a terem inimizade para com as pessoas de mesmo sexo que o seu; dentro das especificidades históricas do Brasil (PARKER, 1991). A balada LGBT é um recôndito homossexual, e lugar em que eventuais heterossexuais não aparecem inadvertidamente; geralmente estes vão em casais à balada e aqueles que são “simpatizantes” chegam mesmo a participar de eventos sociais de maior envergadura, como a parada do orgulho LGBT. Os “nativos” respondem, quando perguntados sobre o que acham da balada, se gostam, frequentam e porquê, nos casos afirmativos, que vão à balada porque é onde mais há homossexuais e porque “em Marília não tem nada para fazer [no fim de semana, horário para o lazer]”. O fato gritante de haver muitos deles lá e isso os atrair não se deve a uma pretensa 61 Um exemplo da extrema “cautela” com que esse tipo de relação social é popularizada pode ser lido em BORGES, L. S. Lesbianidade na TV: visibilidade e “apagamento” em telenovelas brasileiras. In: GROSSI, M.; UZIEL, A. P.; MELLO, L. Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.


88 inclinação à cópula. A balada é um meio de sociabilidade. Como os nativos estarão aos pares, podem usar o linguajar que quiserem, as gírias, trejeitos, assuntos, comportamentos, indumentárias entre outras coisas conforme seu próprio etos, sem preocuparem-se com as consequências – refiro-me à violência ou discriminações por parte de heterossexuais. Um agente deu-me um relato interessante e complexo sobre o quê na balada o atrai, talvez seja proveitoso citar-lhe mais detidamente. Ele tem 21 anos e relata que não ia à balada LGBT: Não gostava de ir, não tinha interesse em ir. Não faço nada homossexual. Não ia à boate. Se fosse numa hétero, aí sim. Não me sinto bem em lugares hétero, ainda mais boates. Até porque gosto de dançar música eletrônica. Querendo ou não, é muito descontraída a boate homossexual, ao contrário da hétero. Gosto [de ir à balada] para me descontrair, para eu espairecer, me divertir, rir, mas não é um lazer que eu vá praticar sempre. (Vinícius)

Depois ele explicou que amou a música típica quando foi pela primeira vez, além da possibilidade de ficar à vontade sem ninguém incomodar – isto é, desinibir-se das sanções heteronormativas. Ele admite que não tem trejeitos que pudessem identificá-lo à primeira vista como gay, mas também que ele não conta para outrem que é gay, “Porque eu tenho que falar que eu sou homossexual? Um hétero não tem de dizer que é hétero, porque eu tenho que dizer: 'olha, eu sou homossexual, viu'?” . Especificamente, ele “escondeu as coisas” até 62

completar 18 anos e ir morar fora de casa, mudando-se para Marília. Foi após essa mudança que ele passou a frequentar a balada LGBT. Sou amante de música eletrônica. Eu até iria em boate hétero para curtir a música, porém, não é a mesma coisa que curtir o mesmo tipo de música na [boate] LGBT. Não preciso ficar preso naquela coisa de machão para ninguém desconfiar. Eu ainda não tive problema nenhum com minha sexualidade [frente a amigos e familiares], com o resto do mundo não sei como vai ser. Não sei como será num lugar hétero. Eu me assumi para muita gente próxima e, tipo assim, quando a gente é pequeno, injetam na gente que “é errado, vai para o inferno”, mas a gente cresce e vê que as opiniões [nossas próprias] mudam. Claro que não vou anunciar no jornal. Mas as pessoas próximas têm direito de saber. Porque as pessoas vêm perguntar “e aí, as menininhas?” e eu odeio isso profundamente. E até hoje para quem eu já falei, que não tinha motivo para contar isso, contei “porque quero que você saiba”. (id.)

Efetivamente, quando homossexuais mais discretos vão pela primeira vez a uma 62 Ver infra seção 7.4.


89 balada LGBT ficam quietos, observam, demoram a desfazer-se o habitus heteronormativo. Não é que haja uma forma específica de sociabilidade homossexual, o caso é que o processo de “desamarrar-se” das proibições da masculinidade heterossexual é lento (SIMÕES; FRANÇA, 2005). É esse aprendizado de uma sociabilidade particular que não inibe afetos, gestos, etc. que atrai os homossexuais à mancha (MAGNANI; TORRES,1996) em que seus pares reúnem-se. Deixar de lado as preocupações do trabalho torna-se mais fácil e completo na medida em que se sai, ainda que temporariamente, do estado de vulnerabilidade e vigilância constante do dia a dia “público”. Nesse sentido também a identidade homossexual vem a público e reconquista esse espaço para si. Da mesma forma que o lazer heterossexual não se reduz à busca pela cópula, assim também acontece com o lazer homossexual. Ademais, eu escolhi uma mancha dentro de um circuito mais amplo, para utilizar a terminologia de Magnani (op. cit.). Isto é, homossexuais não se recreiam exclusivamente, nem muito menos vivem, na balada. Pode ser que se objete que o tipo de música que toca em balada LGBT é “homossexual”. Certamente existem preferências por gêneros tais como pop e drag music, mas em uma balada LGBT também se toca outros ritmos que estejam em moda (por exemplo soul, jazz, rock e “sertanejo universitário” – que encontra em Marília uma proliferação inusitada). E homossexuais não 63

sabem apenas o caminho da balada, podem tomar um ônibus ou seu próprio automóvel e ir a uma mostra musical, restaurante ou cinema. Finalmente, recordemos que há pessoas trabalhando no funcionamento da balada: seguranças, DJ, gogo boys, drag queens, bar men, faxineiros. No caso local, a maior parte desses trabalhadores são heterossexuais. Parece que eles não se incomodam com o público (senão, não haveria tranquilidade no local), mas a questão da identidade sexual fica em segundo plano frente à necessidade do trabalho, como tentei mostrar acima. Isso nos levaria a outras questões sobre trabalho e lazer que ficarão para outra ocasião. Há, então, outras manchas e também outros atrativos de lazer da cidade que eles partilham com os heterossexuais da mesma forma que compartilham a necessidade de trabalhar. Se o trabalho enquadra as pessoas na mesma periodização da semana, com dias de lazer intercalando dias de trabalho, o lazer é tido pelos homossexuais como tempo para 63 É da maior importância relembrar o relato de um proprietário de boate LGBT pelo autor entrevistado: as boates no interior do Estado de São Paulo, que surgiram em meados dos anos 1990, situavam-se sempre às margens das cidades, próximas às rodovias, segundo ele, como maneira de ocultar um pouco o antro. Com relação à música, tocava-se, ainda segundo seu relato, todo gênero de música, porque, conforme explicou, as pessoas estavam começando a sair para um local exclusivamente para homossexuais e não podiam chamar demais a atenção e nem havia essa predileção pelo pop, que é recente.


90 fruição, assim como o é para os heterossexuais. No fundo, a forma de organizar o lazer é fruto das mesmas relações capitalistas de trabalho; e os ditos preconceituosos estigmatizando e desqualificando o lazer (e consequentemente o trabalho) dos homossexuais sinalizam para a luta política pelo espaço público, disputado em termo de identidades sexuais e sociais. Considerando,

finalmente,

que

a

definição

das

fronteiras

entre

lugares

“heterossexuais” e “homossexuais” e entre os comportamentos “heterossexuais” e “homossexuais” é uma construção vivenciada todos os dias e dá sentido a várias relações sociais, importa atentar para a política dessas diferenciações. O caso do lazer, que esteve sob análise, pareceu-me bom para interpretar a política das fronteiras porque o lazer é uma relação comum a todas as pessoas, bem como o trabalho, como se viu. E a compulsoriedade em definir claramente as fronteiras não resiste a uma crítica queer: a heteronormatividade é uma relação de construção de diferenças, que as organiza de modo a sempre ser o referente central, único e genuíno. Heterossexualidade, no singular, sem caber plurais nem variedades, e acusando os “desvios” como seus “opostos”, isto é, a porosidade das categorias homossexuais (ativo, passivo etc.). As falácias proferidas sobre a homossexualidade fraquejam da perspectiva geral do trabalho-lazer, e da perspectiva particular do gueto, na medida em que os simbolismos não heteronormativos escapam às classificações estanques, subvertendo o estigma da identidade homossexual e quiçá os objetivos da identificação heterocentrada. 6.1.1 Segunda-feira cedo: trabalhar O tempo cíclico lazer-trabalho recomeça em seu segmento mais rígido. Sai-se do profano e retorna-se ao sagrado. Como eu disse, todos trabalham. Balada no Sábado? Todas vai! Trabalhar Segunda-feira? Todas vai também!

64

Novamente, uma multiplicidade de

maneiras de lidar com o ambiente de trabalho, mais normativo do que heterossexual: Eu noto que um dos preconceitos que gays carregam é ser barraqueiro. E um empregador não quer uma pessoa assim briguenta e eu já vi pessoas falando “fulano brigou porque é gay”, “gay gosta de barraco”. Acho que o gay assumido tem dificuldade por isso. No meu caso, eu não assumi porque notei que meus patrões são preconceituosos, que fazem piadinhas de gays direto, então não tem porquê contar. (Rafael) As poque-poque são cabeleireiras. Eu sempre tive cargos bons dentro de empresas. (Mateus)

Quando o agente fica atado ao segmento duro, molar, de resguardar-se, assume o 64 “Todas vai”, bordão êmico, com silepse de número.


91 ponto de vista do outro, tornando-se preconceituoso para com os pares – mesmo sabendo que todo mundo tem de trabalhar. 6.1.2 Homossexuais preconceituosos Em um vídeo postado no Youtube, Christian Pior replica e critica a maldade peculiar 65

dos gays em botar defeitos e desqualificar uns aos outros: como pode esse grupo exigir respeito e lutar contra o preconceito se as pessoas são preconceituosas entre si? – indaga ele, ceteris paribus. A personagem Christian Pior é emblemática pela atuação na TV, no programa Pânico na TV pelo humor cáustico e trejeitos exagerados em algum sentido. No momento de retorno ao rizoma trabalho-esconder os próprios homossexuais exteriorizam preconceitos internos, endógenos ao grupo. Aqui não há preconceito de ter preconceito: Não me identifico, porque é difícil o meio ser homogêneo. Conversando com um amigo ele me interrogou sobre isso, ele disse “Rodrigo, você gosta de sentir-se mulher?” Eu não. “Você gosta de gírias?” Não. “Eu também não, se for assim eu sou homofóbico, e você também”. Eu me considero homofóbico. [Por quê?] Porque eu respeito o meio e as pessoas, mas não concordo com os atos deles. (Rafael) Sim. Eu tenho preconceito. Acho que se cada um ficasse na sua seria melhor do que cada um ficar cuidando da sua vida [da de outrem?] etc.; vem aquela coisa de querer se passar por mulher. Uma coisa é você se divertir, outra é se passar por algo que você não é simplesmente para se aparecer. (Mateus) Aí que está o problema: as bichinhas para caralho, é o que tudo mundo acha que a gente vai querer ser. Até minha mãe. É isso que me deixa com raiva, não desmerecendo, até porque se não fosse por muitos gays afeminados assim, talvez não tivéssemos tantos direitos, porque eles enfrentaram o pesado. Porque o quê a TV mostra? O viadinho todo florido. O que a sociedade pensa? Que somos todos viadinhos floridos. Que eu não posso ter uma vida normal, de homem normal e gostar do mesmo sexo. Nunca brinquei de Bárbie, faço academia, sou técnico em informática, pratico esporte para caralho, sou baterista. Não falo “sou gay”, mas “sou homossexual” porque gay é muito colorido. (Vinícius) […] eu acredito que é a maioria, porém, por culpa desses que são escrachados, que são ativistas, eles lutam por um direito que é do grupo tudo, mas aqueles que pensam como eu, assumido-enrustido, a gente não dá a cara a bater, não luta pelos direitos por causa deles, porque eles nos escandalizam, nos denigrem, passam para a sociedade uma imagem que eu não tenho. (Marcelo) 65 A réplica está em: <http://www.youtube.com/watch?v=BNscTR43fRo&list=PL4D55097110CCD6F6>. O vídeo estopim, em: <http://www.youtube.com/watch?v=bMjlHzySvQg>. Acesso em 29 de Janeiro de 2014.


92 Devo dizer, antes do mais, que ninguém quer ser mulher, nem mesmo as travestis (v. BENEDETTI, 2005). Isso é um reles mito compulsoriamente heteronormativo e confusão entre sexo e gênero (sem mencionar a dicotomia e o binarismo). Os homossexuais são identificados por outrem como um todo homogêneo de frescura e escândalo, como relatado acima. Conhecendo essa identificação perniciosa, os agentes fazem por escapar-lhe: seja ocultando a sexualidade e os trejeitos que a denotam, seja declarando-se e demonstrando uma masculinidade viril. A história de vida dessas pessoas é marcada pelas discriminações com base na indução de que um gay vira uma travesti, portanto todo gay quer ser mulher. Isso não se verifica na realidade, está calcada, aquela indução, na crença de que a sexualidade deriva do corpo (FOUCAULT, 2012; LE BRETON, 2008). Uns homossexuais são mais másculos, outros mais femininos; eis outrossim a heteronormatividade infiltrando-se no meandro gay e operando seu malefício secreto. Há mais: essa esquizofrenia de ser gay, aceitar-se e ser preconceituoso com pares é engendrada pelo capitalismo. Explico: todos trabalham, a rigidez dos segmentos de produção de emprego é o fundamento do controle do capital sobre as relações de trabalho. Isto é, o modo de produção capitalista subjuga os trabalhadores aos proprietários, às moralidades dos proprietários. Desde o problema de uma generalização forçada que identifica todos os homossexuais através de uma indução falsa, até as portas da luta contra o preconceito, há discriminação. No primeiro caso, trata-se da mente coletiva heterocentrada que acredita que todo “desvio” é idêntico, não percebendo que na verdade há um passeio esquizoide entre as máquinas sociais que inscrevem as homossexualidades. Como (todos) os homossexuais sabem que essa pré-noção existe no senso comum, cuidam de evitar os caminhos e sinais que operacionalizam essa identificação. Mas daí também a interiorização do discurso do “inimigo” captura a máquina de guerra e a lei marcial obriga os agentes a coagirem os pares a serem heteronormativos, ainda que em momento específico. A raiz amarga do preconceito que perfura historicamente o rizoma das homossexualidades está no solo do machismo e patriarcalismo da sociedade brasileira (PARKER, 1991). Homossexualidade na matriz hermenêutica da sexualidade brasileira tende a ser equiparada a “querer ser mulher” (FRY, 1982) – talvez daqui nasça também a invisibilidade lésbica.


93 6.2 Linhas de fuga O objetivo desta pesquisa foi procurar linhas de fuga ao preconceito. Frente ao preconceito interno, descobre-se que não basta desterritorializar-se, fazer rizoma com os fluxos de possibilidades entre trabalho-heteronormatividade e lazer-homossexualidade. Subverter a identidade é mais complexo. Nesse sentido, o radicalismo de Beatriz Preciado (2002) parece ter razão em propor práticas subversivas, desterritorializar o próprio corpo ou, para ser deleuze-guattariano, produzir um corpo sem órgão. Adrienne Rich já alertava para a heterossexualidade compulsória entre as feministas (RICH, 1980), tão compulsória quanto o trabalho desde sempre e hoje mais do que nunca. Compulsoriedade, mais ainda, parece ser a tônica da sociedade do orgulho em que vivemos. Não orgulho no sentido libertador empregado pelo movimento LGBT, mas no sentido ostensivo: orgulho de ser heterossexual, orgulho de ser violento, orgulho de ser racista, machista, homofóbico etc. Para a máquina de guerra que existe em potencial nos devires homossexuais não ser capturada pelo aparelho de Estado faz-se mister um radicalismo de não se identificar com a estrutura binária masculino-feminino. Como diria Monique Wittig, um gay não deveria ser um homem, no sentido de não se submeter aos segmentos rígidos do que a sociedade entende por ser um “homem” (WITTIG, 1980). 6.2.1 Limites do sistema fechado local Eu estava sendo utópico. Lembrei-me agora do que Vixnu disse a Arjuna: “Não há, nem na terra nem mesmo no sistema planetário divino entre os deuses, existência que esteja liberada da influência destes três modos nascidos da natureza material.” (Bhagavad-gītā: 18, 40). O sistema social local tem limites claros. Apesar das desterritorializações entre modelito bicha-homem e gay-gay, a sociedade cinde-se em duas metades; ficando a menos heteronormativa atrelada à balada e seu espaço e tempo sagrados (fim de semana). Muito embora máquina de guerra que escapa às normatizações do aparelho de Estado, a massa em processo é multiplicidade que não enxerga a fluidez entre os segmentos duros – na verdade derrapa neles para recair na máquina produtiva de emprego. Pela metade do grupo dos homossexuais, as relações estão regradas pela heteronormatividade e pelo machismo; pela metade do grupo dos gays, as relações regem-se pela máquina de produção de emprego e pelo rizoma emprego-normatividade, com sua dupla articulação heteronormatividade-futilidade… Marília absolutamente desterritorializada? Quiçá em 10.000 depois de Cristo. Nem Campinas,


94 nem Bauru são absolutamente desterritorializadas. Os limites do sistema social são o próprio sistema social. Ele fecha-se em si mesmo, todos os interlocutores veem: as pessoas são provincianas. As possibilidades são determinadas porque as pessoas pensam nas raízes do sistema social e não no rizoma que interliga fenômenos locais a outros alhures. Condições de possibilidades outras estão latentes nas homossexualidades enquanto máquina de guerra. Sendo nômades, os devires homossexuais não podem ser homogêneos. Não é por isso que a revolução molecular deixa de acontecer. Os limites têm a ver com o socius inscriptor. O inconsciente molecular que se prende sem perceber ao binarismo sexo-gênero e que fenece na crença de que gays querem ser mulheres. “A cada um, seus sexos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010: 390 e passim). 6.3 Recriar-se na balada Quem nasceu primeiro: o indivíduo ou a sociedade? O que vem antes da balada? Vem uma balada outra. Antes do agente ir para a balada há todos aqueles preparativos que estudamos no capítulo 4. Para chegar na balada homossexual, o agente passa pela balada “hétero”, quer dizer, o devir homossexual inscreve o devir heteronormativo pretérito. O vir a ser gay de alguém se intensifica com sua desterritorialização. Essa desterritorialização culminaria, como propus, na balada LGBT. Não há unicidade, como não há um devir homossexual nem uma balada. Há multiplicidade de baladas, numerosas para cada devir. Isto posto, o platô balada parece ser o foco de estabilidade do fenômeno homossexualidade. O apocalipse dos devires acontece em alcateia na balada. Não há gay sem gays. A potência de máquina de guerra está encerrada no platô balada pois é o ponto em que as pessoas recriam-se. O lazer sagrado toma o lugar do trabalho profano, a pessoa transforma-se junto do grupo, conquanto as pessoas recreiam-se, assim também elas recriam-se. É micropolítico pois cada indivíduo trilha uma senda de desterritorialização, podendo ir além ou permanecer aquém das fronteiras entre heterossexuais e homossexuais e entre homossexuais e gays. Mas ninguém se desterritorializa sozinho, ninguém vai à balada sem passar pelos amigos. O afecto percorre esses extremos. Por isso as artes marciais não invocam um código, […] mas caminhos, que são outras tantas vias do afecto; nesses caminhos, aprende-se a “desservir-se” das armas tanto quanto servir-se delas, como se a potência e a cultura do afecto fossem o verdadeiro objetivo do agenciamento, a arma sendo apenas meio provisório. Aprender a desfazer, e a desfazer-se, é próprio da máquina de guerra: o “não-fazer” do guerreiro,


95 desfazer o sujeito. Um movimento de descodificação solda a ferramenta a uma organização do trabalho e do Estado (não se desprende a ferramenta, só é possível compensar-lhe a ausência). (DELEUZE; GUATTARI, 1996, vol. 5: p. 68)

Desfazer-se, despir o código heteronormativo e deixá-lo no cabide. Parece ser este o caminho do afecto e a consequência da balada, naquela acepção de enredo. Os afectos evocados pela balada levam o agente a soltar-se do extremo “trabalho”, abandonando as ferramentas de que se serve para agir ali enquanto precisar, para encetar o extremo “lazer”, cunhando armas que não estão presas a códigos. Mesmo continuando a trabalhar após a balada, o devir homossexual, uma vez aprendido, continua. Agenciá-lo inclui outrossim dar o truque no emprego, enquanto ambiente heterocentrado, para escapar, assim que possível, 66

para o espaço liso que permite ação livre, na balada com os amigos.

66 Locução do pajubá: equivalente àquele jeitinho brasileiro.


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7. Lugar certo, na hora errada Quer ver como continua? […] Tudo acaba mas o que te escrevo continua. […] O que te escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua. (LISPECTOR, Cl. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998: pp. 94-5.)

O objetivo era mostrar a construção da homossexualidade e sua heterogeneidade interna e deixar assaz claro o caráter circunstancial do fenômeno. Daí nosso título: “lugar certo na hora errada” faz alusão ao modo como as pessoas são rotuladas conforme as ocasiões; uma situação hipotética em que alguém vai a um bar, ou qualquer outro local de convívio, sendo o lugar certo porque é o ponto de encontro social, porém ao adentrar o local, como que a pessoa é surpreendida por alguém de fora do grupo (ou de dentro) que depois divulgará sua “identidade”; tendo a pessoa assim visitado o lugar certo, mas no momento errado porque foi flagrada por outrem de modo que foi taxada. Como “a ocasião faz o ladrão”, aqui também a circunstância fez o sujeito. Para ser mais deleuze-guattariano, a hecceidade é certa, o momento errado; outrossim, os fenômenos acontecem em sua singularidade e cada agente experimenta-os em multiplicidade de maneiras, sendo que, se fosse em outro lugar ou outro tempo, a hecceidade levaria a outros agenciamentos, diferentes da forma que tomam em Marília. 7.1 Mito da sociedade sem mal em linha de fuga Treze dos dezesseis entrevistados (81,25%) relataram que haverá mudanças sociais tais que os homossexuais virão a ser compreendidos e respeitados por todos. Curioso notar que o tema aparece logo na primeira metade de cada entrevista. Na verdade é o primeiro ponto que os interlocutores referem. Eles parecem não se dar conta disso; é como um inconsciente lévi-straussiano (LÉVI-STRAUSS, 2008), não pensado e entretanto referência


97 implícita e constante. Por isso mesmo estou chamando tal referência coletiva de mito da sociedade sem mal; em Antropologia social um mito não é falso pensamento, é uma forma de significar o mundo e as relações sociais, válida porque organiza concretamente o mundo social. “Sociedade sem mal” alude de certa forma ao mito da “terra sem mal” dos Guarani; aproveito a alusão para pensar esse mito contemporâneo como linha de fuga aos segmentos rígidos e aos flexíveis que recaem em microfascismos. Deleuze e Guattari (1996, vol. 5) postulam a máquina de guerra como exterior ao Estado e trazem a contribuição de Pierre Clastres como confirmação dessa exterioridade (id: p. 13 ss.). A sociedade é contra o Estado na medida em que não delega seu poder a algo que lhe é exterior, na medida em que não se submete ao regimento de terceiros (CLASTRES, 2003). Com relação à ação política de homossexuais, a máquina de guerra, cujos contornos tentei delinear ao longo do trabalho, está nos agenciamentos que desterritorializam as práticas sociais identificadas como homossexuais. A identidade está em disputa na medida em que uns e outros tentam defini-la. Sua fluidez de máquina de guerra encerra a potencialidade de não ser absorvida pelo capitalismo e suas máquinas de sobrecodificação (cf. DELEUZE; GUATTARI, 2010; 1996). O mito, como inconsciente coletivo (LÉVI-STRAUSS, 2003), remete à percepção virtual pelos agentes de que há algo em disputa e que de alguma maneira esse algo escapa aos aparelhos de captura. Alguns de meus interlocutores corporificam hábitos assaz desterritorializados e verbalizam conclusões retiradas de sua vivência. Essas conclusões catalisam com brio o processo de identidade. Melhor correr todos os riscos do que enfrentar isso no futuro. O mundo está mais aberto para receber isso. Uma certa parte da sociedade acha isso gratificante. (Mateus) Ninguém põe um filho no mundo para ser gay. Eu não poria um filho no mundo para ele ser gay. [Por quê?] Pelo preconceito. Claro que se ele fosse... eu saberia da situação para ele ou ela. Não ia querer pelo fato da sociedade e do preconceito que ia enfrentar, até pelo sofrimento que eu tive até hoje, não ia querer meu filho passando pelo mesmo. Às vezes nem passaria, uma geração mais evoluída […]. (Vinícius)

Há pelo menos duas crenças que mobilizam duas práticas de ação: uma mais despojada, atrelada ao modelito gay-gay; outra mais resguardada e ética (no sentido moral), atrelada ao modelito bicha-homem. Essas crenças decorrem do conjunto de ideias-valores do grupo dos homossexuais ou do dos gays, como descrevi em 3.2. Ambas as crenças convergem


98 quanto ao resultado esperado, qual seja, a sociedade sem mal. Eu acredito que esse coletivo de homossexuais que pensa parecido e de gays que não sejam tão afeminados – porque delicados vão ser mesmo por natureza –, eu acredito que é a maioria, porém, por culpa desses que são escrachados, que são ativistas, eles lutam por um direito que é do grupo todo, mas aqueles que pensam como eu, assumido-enrustido, a gente não dá a cara a bater, não luta pelos direitos por causa deles, porque eles nos escandalizam, nos denigrem, passam para a sociedade uma imagem que eu não tenho. Eu acredito sim que temos de ter os mesmo direitos que os heterossexuais em locais públicos, mas […] quero me casar no civil e tenho a pretensão de me casar no religioso. Acredito na causa deles, mas não na [forma?] ... porque o homossexual não é isso que eles estão pregando e aí eles acham que homossexual é isso, que tem que fazer isso, escândalo, vestir-se de mulher, para afrontar as demais categorias que não são homossexuais. Só porque as outras nos negam o direito de amar, de casar, enfim. (Marcelo)

No caso de Marcelo, ele está referindo episódios de ação afrontosa contra os preceitos cristãos. Adiante em seu relato, ele menciona um vídeo sobre esse tipo de afronta. De minha parte, recordo quando estava no Rio de Janeiro e o amigo que me recebera contou que, durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), houve ocasião de um grupo de homossexuais (gays e lésbicas) realizarem um beijaço na praia de Copacabana, ao que os peregrinos – eu quis dizer peregrindrs – cercaram o grupo e rezaram. Foi também durante a JMJ que os aplicativos para gays dos smartphones ficaram lotados a ponto de não aparecer gentes a mais de trezentos metros de distância.

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É como se a identidade homossexual fosse inexorável e inescapável e irreversível. Nesse sentido, o mito, pensando a si mesmo, descobre que algo tem de ser feito. O que me parece, é que a identidade constitui devires nômades e as ações dos agentes a partir dela ganham um sentido comum – a sociedade sem mal –, divergindo quanto à via de ação. Se a via for permanecer no nomadismo, teríamos uma ação exterior ao Estado e a identidade subverter-se-ia; caso a via seja adentrar o aparelho estatal, em suas vias burocráticas e regimentadas, a máquina de guerra passa a ser exército e a ser limitada pelo Estado. Como observaram Deleuze e Guattari (2010), o capitalismo só se expande até onde pode, não excede seus limites a fim de não se dissolver. De maneira similar, é a apropriação do gueto pelo mercado, se não é possível extinguir o vício, institucionaliza-se-o, o Estado captura a máquina 67 “Peregrindr” é o brilhante neologismo de meu amigo carioca, justapondo “peregrino” a “grindr” (aplicativo de smartphone para gays). Como se sabe, os aplicativos para gays captam e exibem um número máximo de perfis por distância; assim, quando se atinge esse máximo, não se passa de x metros – 300m, por exemplo. Em outras palavras, muitos gays peregrinaram – só de Marília saíram quarenta ônibus.


99 de guerra e fá-la trafegar por espaços estriados (PERLONGHER, 1987; MACRAE, 2005; SIMÕES; FRANÇA, 2005; FOUCAULT, 2012).

7.2 O ser feminino Depois de toda essa balada, espero que tenha ficado bem claro que gay não vira travesti nem quer ser mulher. Obstar-me-iam: e que dizer dos efeminados? Vimos que não há grupo homogêneo, nem um devir singular de homossexualidade. Que eu não posso ter uma vida normal, de homem normal e gostar do mesmo sexo. Nunca brinquei de Bárbie, faço academia, sou técnico em informática, pratico esporte para caralho, sou baterista. Não falo “sou gay”, mas “sou homossexual” porque gay é muito colorido. Andar rebolando, a voz às vezes já acabou entregando, gesticulações, falas, o jeito de falar, um viadinho já não gosta tanto de esporte, [ele pediu para eu não usar viadinho, porque é maldade, é feio] aquela coisa mais agressiva, como boxe, lutas, um afeminado já se importa mais com questões estéticas, se preocupam demais, não vou cruzar a perna e ficar lixando unha... até o próprio nome já diz “afeminado”, tem um toque feminino. Eu não tenho, até tenho uma hora ou outra, mas não ao ponto de eu querer ser uma mulher. Me sinto muito bem sendo homem. Até porque se eu quisesse um afeminado, eu pegaria uma mulher que é a mesma coisa. (Vinícius) Não sinto vontade de me travestir, de tirar fora [o pênis]. Não sinto necessidade disso. Meu temperamento, meu gênio, às vezes algum trejeito, acho que se assemelham mais aos de uma mulher. Claro, uma mulher sem TPM. Me acho mais parecido com minha mãe do que com meu pai, hétero do tipo comum: rústico, ignorante... limitado. (Caio)

Vinícius é enfático em dizer que suas atividades não são “gays”. Ele não é efeminado e pelo visto não gosta de quem o seja. De Caio também não se pode dizer que seja efeminado, mas delicado, ou em suas palavras: “Me vejo um homem feminino. Porque eu sou um homem, nasci homem; só que ao mesmo tempo tenho gostos femininos: sinto atração por homens... em algumas situações eu me assemelho a uma mulher”. Se vale para comparar, ambos são versáteis, mas Caio prefere ser ativo e Vinícius, passivo. As razões disso não vêm ao caso, têm a ver com a história íntima de cada um, que o pesquisador conhece por conta da amizade de longa data. O “problema” do ser efeminado perfaz herança histórica do machismo e virilismo brasileiros (v. PARKER, 1991) e está presente desde a contribuição pioneira de Silva ([1958] 2005) sobre comportamentos, no seu dizer, discretos ou ostensivos. No caso particular de


100 Marília, ambas as coisas são contemporâneas e a sociedade cindida em dois (homossexuais e gays) reflete isso. A chave de entendimento é a atribuição de papéis de gênero à execuções do mesmo. Quero dizer, o problema só surge quando a maneira de a pessoa expressar-se e interagir, sua performática (BUTLER, 2003), é presa inexoravelmente a um corpo, que é sobrecodificado, sexualizado, encaixado no binarismo macho-fêmea para determinar daí as ações permitidas e a forma de realizá-las. Porquanto “ser” feminino é pensar dualidade pétrea macho-fêmea, inscrição biológica do corpo, enquanto o agente vem a ser alguém. Ser feminino implicaria um estado de gravidade, sem transformação. Mas o que de fato acontece é que as pessoas devêm femininas, ou masculinas, como devêm homossexuais ou heterossexuais. O critério é um arbítrio institucionalizado. Nenhum homossexual (aliás, parece que nem mesmo transexuais, cf. BENTO, 2006) imita uma mulher, não há copia; é um agenciamento que pode passar pelo simulacro de mulher, como pode passar por quaisquer outros. A dualidade macho-fêmea e os papéis de gênero que se lhes atribui escondem a multiplicidade de performances. Dentre a multiplicidade de devires homossexuais, pode calhar de alguns fazerem rizoma com o simulacro feminino, mas sem prender-se a ele, pois neste caso deixaria de vir a ser. (cf. BUTLER, 2003; DELEUZE, 1974: p. 2) Grande parte das questões suscitadas pelos agentes podem ser compreendidas a partir da cisão entre homossexuais e gays, entre performances e micropolítica. Vimos que os do grupo dos homossexuais apontam o problema nos gays ostensivos, para usar terminologia de Silva ([1958] 2005), nos “atentados” públicos à moral (notadamente, os agentes doem-se pela religião). Ocorre que a construção da sexualidade passa pela microfísica médica e pelos modos à mesa ensinados nos internatos (FOUCAULT, 2012), e não (ao menos não exclusivamente) pelas grandes narrativas. É como se agir pela política institucional limitasse a ação às ferramentas disponíveis para trabalhar, ao passo que o desejo e os afectos escapam pelas linhas de fuga existentes entre as instituições duras, molares e as mais flexíveis, moleculares; ponto em que o agenciamento político torna-se microscópico. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, vol. 3) 7.3 “Ninguém tem de dizer que é heterossexual” Por que eu tenho que falar que eu sou homossexual? Da mesma forma que um hétero não tem de dizer “eu sou hétero”? (Vinícius) Seria viver esse lado homossexual na clandestinidade. Isto é, não precisar


101 dizer aos quatro cantos que sou gay, mas apenas a quem me interessa, tanto com palavras como com gestos. (Rafael) Você tem que se assumir para você, não para os outros. (Mateus) Ninguém pergunta para você “você é hétero?”; acho que tudo tem sua medida certa, seu contexto certo. (Jairo) [sou] Gay assumido. Não fico carregando crachá, se perguntar, falo; se não, não interessa. (Guilherme) Não acho que gay tem de que ser diferente. (Rafael)

O curioso fenômeno de declarar-se homossexual a quem interessar possa é acompanhado dessa “ética” tanto mais curiosa de igualdade entre diferentes. Ninguém que seja heterossexual precisa chegar em alguém e declarar sua sexualidade. Por que o homossexual teria de fazê-lo? Segundo Foucault (2012), o mecanismo da sexualidade é antes o de fazer falar do que reprimir, e sobretudo fazer aqueles que desviam do padrão (heterocentrismo) falarem. É que a exceção, devidamente coletada e etiologizada, vem confirmar a regra. O mecanismo saber-poder da ciência médica constituiu uma sexualidade como normal (e normativa). Historicamente, este cuidado para com os perversos estigmatizou as demais sexualidades; donde vem o fazer falar, o comunicar como que em tom de advertência aos demais que se coloca fora da regra. Importa também a distinção semântica entre “assumir” e “declarar”: “assumir” remete a admitir que se tem culpa, assumir a prática de um crime (veja-se os exemplos do confessionário em Foucault, passim op. cit.), como se fosse crime ser diferente e como de fato as diversidades são vez por outra criminalizadas; “declarar” sinaliza para o ato de esclarecer, em especial, evidenciar para alguém o que se sente, por exemplo declarar o amor ao próximo, seja quem for (veja-se essa distinção assinalada lindamente por Daniel Q. Galvão em Caros amigos, Março/2013). Talvez os interlocutores não tenham estudado Foucault nem história da sexualidade para apreender o fato como disputa de áreas de saber-poder. Sabem eles, contudo, que é um tratamento desigual entre as pessoas e que pressupõe algumas coisas que não se confirmam na realidade. Acreditar que o gay vai insinuar qualquer coisa a um homem heterossexual (v. 4.1.1 supra), ou que todo gay quer ser mulher (v. 4.2.1 e passim). É que eu acho mais fácil não chocar uma pessoa e não brigar com ela porque ela não gosta daquilo, do que bater de frente. Não preciso chocar minha mãe, por exemplo. Acaba acontecendo naturalmente, você nem chega a pensar em agir para não chocar, é automático. (Rafael)


102 Dependendo do tempo de convivência comigo, porque eu peguei várias gírias [pajubá]. Todo mundo na empresa sabe, mas não porque eu contei. Se as pessoas perceberem de uma forma ou de outra, não vai ser porque eu contei, não vai ser surpresa para ninguém. (Vinícius) Deixo as pessoas tirarem suas próprias conclusões. (Mateus) Também acho [dever-se-ia] assumir quando é necessário. […] Tem gays que, quando assumem, do nada faltam botar uma camiseta “sou gay”; acho que não há necessidade de fazer isso. (Jairo)

O que transparece é a crença homogeneizadora, por parte de heterossexuais, historicamente formulada pela ciência médica, de que homossexuais são todos iguais; e o problema interno dos que acreditam que ser espalhafatoso é desnecessário ao lado dos que acreditam ser isso necessário. Quanto à crença de que o gay deve ser escandaloso, minha hipótese é que tal fenômeno é sociogênese de uma classificação coletiva, novamente informada pela medicina, embora inconsciente desse fato. Por ser classificação coletiva, o próprio homossexual adere a ela. A desterritorialização desta classificação não é acessível a todos. Meus interlocutores possuem, quase todos, nível superior completo (onze de dezesseis ou 68,75%), eu traria um corte de classe social para corroborar a hipótese. Já se observou que os ativistas dos movimento LGBT e pioneiros na desterritorialização do modelito heteronormativo e do bicha-homem tinham acesso a capital cultural e social que deu respaldo a tais desterritorializações (v. FACCHINI, 2005; SILVA [1958] 2005; GUIMARÃES, 2004; FRY, 1982; PERLONGHER, 1987; KATZ, 1996). Escuto muito falar que “se estou numa rua e vejo dois homens se beijando, ah eu vou quebrar os dois”, mas duas mulheres ou um homem e uma mulher não apanham. E os direitos são iguais nos três casos. (Jairo) Não sou rico, mas sempre convivi com pessoas de classe, cultura. Não é preconceito da minha parte; por conviver com pessoas desse tipo, a gente acaba tendo uma concepção diferente. Eles [gays espalhafatosos] são de um mundo diferente do meu. […] Eu trato todo mundo igual, cada um tem seu comportamento, temperamento, sua cultura; não vou pedir para ninguém mudar, cada um tem sua personalidade. (Caio)

Quer dizer, o preconceito homogeneizador informado pela ciência médica e o corte de classe são compresentes das cisões internas do grupo. Já estudamos esta questão, do ponto de vista da estrutura das relações interpares na seção 3.2 supra e passim. Como vimos, não há uma única e exclusiva maneira de devir homossexual. O processo que constrói a identidade de cada agente passa por determinações singulares – as hecceidades que estudamos acima


103 testemunham algumas modalidades. Identidade homossexual pode parecer um conceito monolítico. Entretanto, a cada devir, um nome, isto é, pari passu, “a cada um suas sexualidades” (GELEUZE; GUATTARI, 2010: p. ). Trabalhar o conceito de identidade vinculado ao de multiplicidade foi a estratégia que me permitiu demonstrar os processos de identidade em suas singularidades e seu agenciamento maquínico comum. As distinções dos corpos dão-se a partir do movimento ou repouso e não em relação à substância, quer dizer, de as pessoas desterritorializarem-se mais ou menos, de elas modificarem mais ou menos a heteronormatividade e os modos de devir homossexual. Se há um limite ao conceito assim abordado, este é dado pelo próprio acontecer social: a sociedade em Marília concede tais possibilidades de movimento e limites de velocidades e não outros que São Paulo, por exemplo, permite. O que surge como devir homossexual em Marília é produzido pela mesma máquina abstrata mariliense de sexualidades binárias.

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7.4 Identidade abstrata e microtransformações concretas A vinheta do conceito de identidade no Brasil esteve desde o início imbricada nas pesquisas etnológicas e compreensão do conflito entre nativos, negros e brancos no país (vejase: OLIVEIRA, 1976; CUNHA, 1986). Isso firma no senso comum acadêmico que identidade é conceito para estudar indígenas. Na Europa e também no Brasil este conceito serviu para estudar populações migrantes e o fenômeno das ressurgências étnicas, sob a égide da etnicidade à Barth (1998) (veja-se: HALL, 2006; POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). E nos EUA, desde os primórdios da Escola de Chicago, o conceito auxiliou a estudar fenômenos sociais em meio urbano, ligados a grupos, delinquência, migrantes etc. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). Na Antropologia urbana do Brasil houve ecos do conceito para estudar populações de bairro e relações de violência, além de outros temas como pobreza, classes, partidos e política, movimentos sociais (veja-se: CARDOSO, 1986; ZALUAR, 1984). Tudo isso para alertar que identidade é um conceito demais plástico se não for operacionalizado como categoria analítica, conforme apontam Brubaker e Junqua (2001). Sem desprezar tal crítica, e sem fazer alarde, propus que essa abstração revelaria um processo e em seguida que este processo detém potencial de desterritorialização e fuga ao preconceito. Grosseiramente, o devir homossexual intensifica-se com a articulação entre tomada de consciência do desejo e as condições de possibilidades de o agente desterritorializar-se em 68 Se Marília é outrossim terra de dinossauros, este fóssil o doutor Nava não encontrou: a pedra rígida de apenas duas faces que é a sexualidade humana sedimentada, esquecida e soterrada há milhares de anos.


104 algum sentido. É que como o socius inscreve esse desejo entre estruturas morais rígidas, molares, as possibilidades de agenciamento são encontradas pelos indivíduos em cada grupo menor, desde a família, a escola, os amigos, nos pontos, digamos, móveis, molares. São as linhas de fuga através das quais o desejo pode ser agenciado. Pode ser qualquer sentido, embora meus interlocutores tenham, via de regra, continuado o devir no sentido de desligar-se do aparelho normativo e ligar-se (sem perceberem) à máquina de guerra que é a identidade homossexual. Eu descobri a identidade como máquina de guerra na medida em que a desterritorialização desloca o agente de seus hábitos e ideias-valores heterocentrados para os locais de convivência de homossexuais – o local em que isso é possível em Marília, ao que tudo indica, é primeiro os amigos gays e depois o circuito de lazer. A pessoa desterritorializase agenciando hábitos, linguagem êmica (corporal e verbal), símbolos e fazendo rizoma com a balada e os pares. Essa série de aspectos seria o objeto identidade em sua concretude; a balada, enquanto instituição total, é a expressão da identidade na medida em que é agenciamento da multiplicidade de trocas pelos agentes nos seus possíveis devires. Se calhar de o agente reconhecer-se nessas linhas de fuga, acontece a identificação com o grupo, as práticas, a balada enfim. Da mesma maneira que o agente reconhece, a partir da convivência com os pares, que seu devir não é doentio nem uno (SIMÕES; FRANÇA, 2005), mas repete-se em multiplicidades de devires; assim também ele operacionaliza identificação (HALL, 2003) com o que o devir homossexual faz rizoma (balada, linguajar, postura etc.). Quer dizer, o agente descobre que não precisa virar travesti , que pode (e será coagido a) trabalhar como qualquer 69

pessoa, que ele não é sozinho no mundo e que não há uma única maneira de agenciar o devir homossexual. Se a desterritorialização pode levar o agente a essa subversão da identidade através das suas práticas, então tomar para si a identidade homossexual é colocar-se na máquina de guerra. Agenciar a identidade é a linha de fuga contra o preconceito. Dependendo da vivência do agente, antes, durante e depois da balada, ele enverada no devir homossexual pelo viés do grupo dos homossexuais ou pelo do dos gays. Os agenciamentos são passionais, são composições de desejo. O desejo nada tem a ver com uma determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado. A racionalidade, o rendimento de um agenciamento não existem sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos 69 “Torna-se” travesti para o senso comum. Para nós o devir-travesti é um dentre multiplicidade de sexualidades.


105 que o constituem, tanto quanto ele os constitui. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, vol. 5: p. 67)

Identidade, deste ponto de vista, é um processo que envolve muito mais que a abstração do pesquisador. Envolve conjunto de códigos corporais, simbólicos e linguísticos. É nesse sentido que identidade tem a ver com performance (BUTLER, 2003) e consiste em um agenciamento que desterritorializa o agente, sendo enfim uma possibilidade de subversão da identidade (outrora estigmatizada) e dos preconceitos a ela anexados (PRECIADO, 2002). Analisar a população homossexual como grupo nômade, como máquina de guerra, permite operacionalizar a identidade como arma nômade, desde que ela seja multiplicidade de afectos, desde que os agentes permitam contagiar-se por eles.


106

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111 ANEXO 1 – Instrumento de coleta de dados Questionário para coleta de dados para realização de trabalho de conclusão de curso

70

I. Instruções 1. Caro/a interlocutor/a, por favor leia previamente e com atenção o termo de consentimento livre e de esclarecimento sobre a pesquisa que faremos. É imprescindível que você esteja a par da ética da pesquisa e consinta em ceder os dados, não sendo obrigado/a a consentir e podendo encerrar a entrevista no momento em que bem entender; 2. Faça tudo sozinho, não peça opinião de ninguém; 3. Anote a hora que começou a responder e a hora em que terminou. Seria preferível fazer tudo de uma vez só. Anote ainda onde você respondeu e se estava fazendo outra coisa ao mesmo tempo; pode fazer outra coisa ao mesmo tempo, mas seja atencioso/a; 4. Leia as questões e escreva sua opinião. Não economize palavras. Se você achar a linguagem muito difícil, ou não tiver certeza do que eu pergunto, por favor, entre em contato. Às vezes a pergunta é afirmativa (o que você faz quando vai à balada?) mas sua resposta pode ser negativa (não vou à balada por causa disso e daquilo). Será um prazer esclarecer-lhe; 5. Sinta-se à vontade para citar nomes de pessoas ou empresas, ou omiti-los, especifique do que se trata e dê exemplos de ocasiões práticas que você vivenciou. Depois de dar sua opinião, explique porquê você pensa assim (ex.: gosto de balada. Por quê? O que você encontra lá que lhe agrada?). Este procedimento é de grande importância para a qualidade da pesquisa e para a correta compreensão de seus dados por parte do pesquisador; 6. Por gentileza, não altere a formatação do documento nem o divulgue de maneira nenhuma a ninguém. Reciprocamente, eu guardarei sigilo absoluto sobre toda informação registrada aqui; 7. Quando você terminar de responder, por favor, envie-me de volta o arquivo. Não se incomode com a linguagem, com possíveis erros de português, palavrões etc. para mim são mais importante seus relatos, opiniões e informações do que a correção ortográfica. Não tenha receio de parecer contraditório, as perguntas não tem uma ordem de assunto e essa impressão é comum. Além disso você não será identificado. Escreva à vontade, não se intimide, não se 70 O presente questionário foi elaborado por Shelton De Cicco, estudante do 5º ano de Ciências Sociais, modo Bacharelado, na Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp, campus de Marília. O objetivo é realizar um pré-teste de instrumentos de pesquisa qualitativa para controle dos dados coletados para a monografia e aferição de hipóteses. Correio eletrônico: <s_de_cicco@hotmail.com>.


112 acanhe, não tenha pudor e não economize palavras. II. Termo de livre consentimento e esclarecimento 1. Pelo presente instrumento, Shelton De Cicco, estudante de Ciências Sociais, modo bacharelado, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Unesp, campus de Marília, RA126411-7CSC, doravante denominado pesquisador, esclarece a ________________________________, doravante denominado/a interlocutor/a, os objetivos da pesquisa ora realizada, conforme as condições de ética científica. 2. O/a interlocutor garante que atende a todos os requisitos para participar da pesquisa, de acordo com os procedimentos éticos, legais e científicos, a saber: a) ter dezoito (18) anos de idade completos na data da pesquisa ou mais; b) responder individualmente às questões; c) residir em Marília ou frequentar a cidade para lazer ou estudos ou trabalho. 3. Fica acordado entre as partes que não haverá emolumentos pela participação na pesquisa. 4. O/a interlocutor/a concorda em ceder as informações sob condição de anonimato e sigilo por parte do pesquisador, permitindo a este citar suas respostas entre aspas (“”) e com um código arbitrário que indique ao pesquisador tão-somente de que entrevista se trata sem contudo revelar quem lha concedeu. 5. O/a interlocutor/a compromete-se a responder individualmente e não divulgar este instrumento, nem seu conteúdo, objetivos e afins; e o pesquisador fica limitado a utilizar as informações prestadas apenas e unicamente para os fins desta pesquisa, não podendo valer-se delas para nenhum outro sem solicitação prévia e consentimento expresso do/a interlocutor/a. 6. O/a interlocutor/a conhece o objetivo da presente pesquisa, qual seja: coletar dados para verificar hipóteses em monografia; e concorda em colaborar voluntariamente. 7. O pesquisador dispõe-se a prestar esclarecimentos porventura necessários, a qualquer tempo, durante ou após a pesquisa; comprometendo-se ainda em ceder ao/à interlocutor/a o material resultante da pesquisa (monografia) em parte ou no todo, quando requisitado pelo mesmo; mas apenas direta e pessoalmente ao/à interlocutor/a. 8. O pesquisador aceita que o/a interlocutor cesse de responder ao questionário quando lhe for conveniente, deixar de responder algum quesito, omitir nomes de todo tipo, segundo seu entendimento. 9. O pesquisador compromete-se ainda a manter sigilo absoluto das informações prestadas e a ocultar sempre qualquer nome próprio, natural ou jurídico, a fim de não comprometer o/a interlocutor/a nem suas informações. 10. Por estarem as partes de acordo, firma-se o presente Marília,

de

de 2013.


113

III. Questões Hora de início:__h__min; local: ____; está fazendo exclusivamente a entrevista? ___; data: __-__-2013. A) Sobre você: 1.

Sexo: ; idade: ; cor da pele (a que você definir) ; onde nasceu? ; mora em

Marília desde quando? ; com quem você mora? ; por onde já passou antes de Marília? ; descreva a composição de sua família (pai, mãe, divorciados, viúvos, irmãos/ãs etc.) ; tem religião ou se identifica com alguma religiosidade? (pode citar mais de uma) ; está empregado/a? Qual o emprego? ; situação civil (casado/a, solteiro, namorando) ; qual sua formação? Especifique. . B) sobre sua vida social 2.

Como você define sua opção/orientação sexual? Explique.

3.

Quantos anos você tinha quando se “descobriu” assim?

4.

Teve problemas consigo mesmo/a quando entendeu isso?

5.

Como você aprendeu a lidar com sua opção sexual? Quem o/a ajudou?

6.

Você é assumido/a? Para quem você assume, ou em que ocasiões você

demonstra ser homossexual? 7.

Como foi o processo de assumir-se dentro da casa de seus pais? Como você

resolveu os conflitos (se houve conflito)? 8.

Que idade você tinha quando começou a sair? Quando você começou a sair,

seus amigos eram gays/lésbicas? Conte como foi. 9.

Quais suas opções de lazer? O que você gosta de fazer no tempo livre (fim de


114 semana, por exemplo). 10.

Gosta de balada LGBT? Você já foi em baladas fora de Marília?

11.

Como foi a primeira vez que você foi a uma balada LGBT? Conte sua

experiência. O que chamou sua atenção no lugar e nas pessoas? 12.

Você se surpreendeu com a variedade de pessoas do “mundo LGBT” (ativos,

passivos, poque-poques, afeminadas, drag queens, pães-com-ovo, enrustidos, etc.)? 13.

Desses tipos, quais você gosta e quais você não gosta? Explique por quê.

14.

O que você acha das drag queens? Gosta dos shows?

15.

E sobre os gogo boys/girls?

16.

Fale sobre as travestis.

17.

Sobre os michês.

18.

Compare a estrutura das baladas: espaço na pista, bares, música etc.

19.

Já foi ao dark room?

20.

Conhece alguém que o frequenta? Sabe por que essa pessoa gosta?

21.

Percebeu mudanças em si mesmo/a quando começou a sair com gays/lésbicas?

Palavreado, gíria, vestimenta, hábitos em geral? Explique. 22.

Você entende pajubá (bajubá)? O que acha dele?

23.

Acha que as opções de lazer de gays/lésbicas são diferentes das de


115 heterossexuais? Por quê? 24.

Você já teve problemas com sua sexualidade? Que tipo de problemas? Como

resolveu-os? 25.

Seus amigos/as tiveram problemas? Conte um pouco. Compare com sua

26.

Como foi sua relação com o que as religiões, a sua em especial, dizem sobre a

história.

homossexualidade? 27.

Acha os/as homossexuais promíscuos/as? Por quê?

28.

Os/as heterossexuais são promíscuos/as? Por quê?

29.

Que tipo de problemas você já enfrentou/enfrenta por causa de sua opção

sexual? Como lidou/lida com eles? 30.

Em que situações sua sexualidade é posta em questão e gera problemas (em

casa, no trabalho, na rua, na faculdade)? Por que você acha que isso acontece (especifique cada lugar)? 31.

Quando você começou a sair com gays/lésbicas, passou a compreender-se

melhor? Por que você acha que isso aconteceu? 32.

Acha melhor assumir ou esconder? Por quê?

33.

Você desgosta de algum tipo de homossexual (gay muito afeminado; lésbica

muito máscula; travestis; enrustidos/as etc.)? Por quê? 34.

Você acha que homossexuais exageram em demonstrar que são? Em que

exageram? Acha isso bom ou ruim quando se trata de desconstruir o preconceito? Explique.


116 Dê exemplos. 35.

Você nota diferença na forma de homossexuais de relacionarem socialmente?

Por exemplo, ao cumprimentar um amigo, um rapaz dá um beijo do rosto. O que você desse tipo de relação social? 36.

Que tipo de preconceitos você nota que os/as homossexuais têm?

37.

Você já percebeu que as gírias e expressões de homossexuais refletem algo que

estão fazendo? Por exemplo: alguém diz “fiz a fina” quando ficou se fazendo de difícil ou ficou sem graça mas manteve a pose; ou “deu a Elza” para dizer que alguém furtou algo. O que acha disso? 38.

E já reparou no uso do feminino para referir-se a si mesmo (estou pensando em

gays)? Por exemplo, “como você esta?” “estou melhorada”. O que pensa sobre isso? 39.

O que você acha do gay/lésbica que faz uma linha masculina (no caso do

gay)/feminina (no caso da lésbica) e faz um papel sexual “inverso”, quero dizer, do gay (passivo ou não) metido a machão, “honro o que tenho no meio das pernas”? 40.

Heterossexuais e homossexuais têm o mesmo comportamento? Em que

ocasiões? 41.

O que você achou da entrevista? O que você acha que faltou nas questões?

Poderia indicar alguém para colaborar? Hora de término: __h__min; local___; estava fazendo outra atividade enquanto respondia? ____; data: __-__-2013.


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