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PARA Severino e Francinete, meus pais, pela dedicação Samelly Xavier, pela compreensão Biana Alencar, por acreditar Alan Ribeiro, por tornar possível 3
Apresentação
A coletânea de delírios narrativos do(s) eu(s) lírico(s), definição do próprio autor, aborda o cotidiano, ou melhor, as inquietações cotidianas. Nestas narrativas, que por diversas vezes se deslocam do domínio da ação para o da descrição de impressões e sensações ou para a autorreflexão acerca dos sentidos e da prática da escrita, o autor revela sua relação com o mundo. Após dois descolamentos da retina, que limitaram sua percepção visual, Sidney começou a escrever. E é com muita naturalidade que afirma que a dimensão imagética de sua obra se deve a esta perda, uma obviedade, segundo ele, que acompanhou o seu processo de descoberta como escritor. A olho nu, através do caráter autorreferente e autorreflexivo dos textos e do tratamento imaterial dado às ações, mesmo as mais cotidianas, lança o leitor para a zona de contato entre o mundo físico e o universo da linguagem, nos permite experimentar uma tessitura de sentidos entre o provável, o (não) visto e o imaginável.
Anderson Marcos
SUMÁRIO I – ACROMÁTICO – 06 Abstrato – 11 Cronológico – 14 Absorto – 18 Partido – 20 Ávido – 22 Redimido – 31 II – CONVERGÊNCIA – 34 Virtual – 38 Sorriso – 40 Equívoco – 43 Começo – 45 Fugaz – 47 Final – 48 Desamparo – 51 III – REFRAÇÃO – 53 Recado – 58 Névoa – 60 Reflexo – 64 Socorro – 66 Cicatriz – 68 Grito – 73 IV – ESPECTROS – 76 Vermelho – 80 Laranja – 82 Amarelo – 84 Verde – 86 Azul – 89 Índigo – 91
Violeta – 94
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I ACROMÁTICO
“Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.” Em O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro
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Acromático
Decepcionado, mas resoluto. Desiludido, porém decidido. Determinado aos extremos, mas farto de estar entre eles. Quero ou uma coisa ou outra, sempre as duas, de vez em quando nenhuma, mas nunca um pedaço de cada. Quero tudo. E quero nada. O meu desejo segue na inversa proporção do meu alcance. Estou constantemente ligado ao inatingível, preciso esticar meus braços para senti-los úteis, para que os possa ver. Ainda assim não os vejo. Tenho braços e nada abraço, pra não parecer que eu me contento. Eu não me contento. Deixo tudo solto. Gosto quando tropeço, pra me apoiar com os braços que estendo e não uso. Porque não os vejo, e assim os sinto. Que nada vejo, não aprendi a usar os olhos. Os tenho, mas não os quero. Aliás, os quero, e por já tê-los, não os uso. Então tateio, por não querer tanto ter braços. Tropeço, bato com o dedão na quina da parede, e caio. E no mesmo instante que amaldiçôo a dor, agradeço a queda. Me apoio com os braços, que não os quero, mas os tenho e não sei me livrar deles. Os braços são como olhos cegos que enxergam mais, mesmo cegos, do que olhos que enxerguem. Que nos braços há mais sangue. Gosto de sangue, porque o sinto, mas não o vejo. Porque ele não se mostra, a não ser que o forcemos. Não o forço, ele corre em mim e eu corro dele. Inunda meus braços com mais calor que meus olhos, que são só gelatina, translúcida e fria, sem cor. Estou satisfeito por ter vasos e em mim nada florescer. Se floresce, não frutifica, se frutifica, logo apodrece. Tenho pressa e sangue, e braços e olhos. E de nada me servem, senão para estar assim decepcionado, desiludido e resoluto. Decepcionado pelas 7
coisas que sinto, não vejo e me queimam: estou a detestar meu sangue. Desiludido pelas coisas que vejo e não alcanço, de certa forma longe ou perto demais pra que as queira: me coçam furiosamente os braços. E resoluto em não querer mais ver de tudo. Por isso, vou abrir os olhos. Abrir os olhos é limitar-se a ver só o olhável. Preciso saber como é não ter todas as possibilidades, pra que eu finalmente seja forçado a fazer alguma escolha. Escolho sempre não escolher. E tenho estado de tal forma indeciso, que resolvi limitar-me. Pra que possa expandir alguns desejos na medida da impossibilidade de outros. Pra que eu não tenha tudo, por não poder ter tudo. Pra que eu não queira tudo, por saber que não há mais tudo. Pra que haja apenas uma porção do que me prende ao modo como me vejo. E me vejo de relance, pra não me saber por inteiro. Pra que eu não seja todo. A existência pressupõe uma preocupação sutil com algo que não se sabe o que é, mas que é tão marcado e pesado que não deixa livre a memória de ter um cerne que precise de alguma preocupação. Um incômodo leve em algum lugar profundo na minha nuca me faz movimentar as pontas dos meus dedos. Eis o meu cerne, que justifica minha existência – e a existência dos meus braços que não os quero ver: eu também precisava ter dedos. Mas explicar é tentar em vão compreender, e iludir se. É por não compreender o incômodo leve que meus dedos se movimentam; é por não compreender a razão pela qual eles se movimentam devido ao incômodo que eu os permito movimentarem-se. É por não compreender que posso indagar, sem pretensões de saber, só pra movimentar as pontas dos meus dedos e deixar que o incômodo leve se manifeste. Se eu me perguntasse o porquê dos meus dedos se movimentarem quando tenho o incômodo, estaria tolhendo a liberdade deles, de modo que eu não permitiria que eles fossem para aquilo que são. Se eu inquirisse o porquê do incômodo leve em algum lugar profundo vir em minha nuca em certas ocasiões, não estaria lhe sendo 8
receptivo. Suponho que o incômodo se aloje no mesmo lugar em que se alojam os questionamentos, e suponho que seja uma sala abafada, escura e apertada, de modo que não há lugar para ambos sentarem-se lado a lado. Então escolho o incômodo, que é mais simpático. O incômodo me deixa de tal forma à vontade a ponto de eu esquecer que sou eu quem lhe hospeda em algum lugar profundo na nuca. Do mesmo modo, há uma justificativa para o correr do meu sangue: para que o incômodo não se limite apenas a algum lugar profundo em minha nuca. E talvez por isso não seja mesmo bom enxergar o sangue a arrastar o incômodo por certas partes mais proeminentes. A beleza do incômodo é não se saber como este chega a certas partes proeminentes. A têmpora, por exemplo, me salta constantemente. É como o bip do microondas, que anuncia o fim de um processo para o começo de outro, mais intenso. A têmpora revela o incômodo leve: avisa que está pronto pra ser consumido nas pontas dos meus dedos. Desconsiderar o latejo da minha têmpora seria como obrigar o incômodo a dividir com os questionamentos o quarto escuro em algum lugar profundo em minha nuca, eles que são atraídos pelo soar da têmpora, pelo aroma do sangue quente a latejar. Dessa forma, tenho que o sangue, que não vejo e que me salta a têmpora, seja algo além de um líquido colorido que me preencha: é mais um incômodo amplificado que me esvazia das coisas que penso. E não obstante, não consigo observar justificativa para meus olhos, que os não quero por já tê-los. São duas esferas insensíveis e pálidas, preenchidas por algo que não corre, sequer tem cor. Não se movem além de um eixo de rotação curto e paranóico. Não há incômodo nos meus olhos, de modo que eles não revelam sequer uma ínfima parte do meu cerne. O olho é qualquer coisa, por ser indiferente, por não ter sangue que esquente nem promover movimento nos dedos dos braços. Os olhos são duas bolas de gude avulsas entre minhas têmporas, alheios, preocupados somente em mostrar o olhável. Mas é disso 9
que eu preciso, por ora: limitar-me ao olhĂĄvel. De modo que passo a relevar meus olhos. Decepcionado, desiludido e decidido a me ater a certas possibilidades, em detrimento de outras. Necessito de tudo ou nada, pra que nĂŁo me reste qualquer coisa, pra nĂŁo estar indiferente.
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Abstrato
E saiu de casa esperando um milagre. Choveu na madrugada de seus sonhos e a manhã vinha fresca e indecisa, sombra vem, sombra vai. Vez em quando o sol batia agudo na pele clara. Logo depois, um ventinho gelado lhe cutucava pra dizer que outra nuvem passava. No silêncio do dia sem termo, caminhava e esperava um milagre. Sentou-se no primeiro lugar seco que vencera a noite, onde o pouco calor já subjugara a umidade. Nenhuma pessoa comum passava. Eram todos fantasmas surgidos das suas alcovas escuras. Mas eram brancos e frescos feito o dia que começava a semana do recém chegado mês. Preguiçosos, sem dúvida, mas vivos. Fantasmas de todo início. Não eram seu milagre. O sol vinha, queimava, mas outra nuvem passava. A manhã ia correndo lenta, cinco vidas naquele banco, e somente uma hora se passara. Cinco vidas lhe cruzaram inteiras, fizeram reverências, acenaram, chegaram mesmo a lhe tocar, cumprimentando-lhe. Cinco vidas lhe passaram, só não lhe passava o tempo. Ainda poderia acontecer um milagre. No caminho da rua cinza, grandes paredes cinzas se erguiam. A vida ia cada vez ficando mais concreta. O sol vinha, e então era expulso por outra nuvem, e assim o dia se ia construindo. Por trás do cinza, o sol se levantava. Por entre o cinza, mais cinza o caminho se cumpria. Ele marcava bem o passo, pra ouvir o estalar do espaço po r debaixo dos seus pés. Tudo é concreto, mas era preciso um milagre. 11
Outra vez o sol teimou. Arregaçou instintivamente as mangas do casaco, como preparando-se para colocar a mão na massa que não previra manejar. Bem à sua frente, como esperando aquele exato gesto, pousava um carro de mão na calçada dura, diante da casa incompleta. Construindo seu universo, a velha mulher pediu-lhe ajuda. No carro de mão, um fardo pesado demais, nele toda a potencialidade do concreto, pó que aguarda a alquimia da cidade para se enrijecer. Todo ele feito cinza, o fardo pesava demais para o pobre entregador, também muito velho. E a manhã ia ainda intermitente por trás do céu, como todo jovem. Ergueu o fardo com algum esforço, mas para a juventude o cinza do mundo pesa feito pluma. Pousou-o no lugar indicado, e, voltando coberto de Deus-te-abenções, ofegou por merecimento e justiça. Muito obrigado, Disponha, Deus te acompanhe... Mas pra onde? Rumou pela reta aberta da rua de calçamento seguindo o caminho, sacudindo residuo que tinha ficado na roupa. Era sua recompensa poder se sacudir do pó concreto. Levantou a cabeça e percebeu: estava exatamente no meio da rua, na faixa central. De um lado e de outro, tudo real. Deus te acompanhe... A rua cinza toda ao seu dispor. Bem adiante, sem prédios nem torres, apenas casas baixas do bairro baixo da cidade baixa, o céu da manhã sem termo se levantava numa única nuvem espessa e cinza. Deus te acompanhe, se consolou. A nuvem de concreto virou chumbo e caiu pesada por através da sua vista. A manhã finalmente se decidira. Ensopado até os olhos, passou pela porta de entrada da casa onde um dia morara. Deu seu adeus ao murinho no qual sentava-se com a vizinha nas noitinhas frescas, ao sofá do pai, ao espelho da mãe, à flor que tinha plantado e que jamais nascera. Seguiu reto, silencioso, em direção ao cinza do horizonte do 12
primeiro dia. Caminhou concreto pela cidade que, mais cinza, mas menos concreta, agora fluĂa. E Deus me acompanhe.
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Cronológico
Vítima desavisada de uma distonia cronológica, foi em busca das respostas para seus enigmas vitais nos lugares mais insólitos. Sobretudo sabia que era necessário um mergulho profundo, sufocante e inútil. Tinha uma resignação incontida, quase ingênua, para o fato desta busca não vir a render resultados práticos. Enquanto não sabia a hora certa de começar, tampouco tinha ideia de que tempo era aquele, ou qual era o seu tempo. No pulso, um relógio analógico, mostrando linhas vermelhas e pontos profundos, girava convulsivamente os ponteiros que, espetados em seus olhos, embaralhavam-lhe a vista. Julgava necessário preencher certas lacunas em seu calendário pessoal para poder conhecer-se melhor. “Mostre-me os verdadeiros desejos desta pessoa” tornou-se sua frase de espelho. Lembrava que, há algum tempo – quase remoto, ainda recuperável –, tinha desejos fortes e convulsivos, não metas nem alvos, apenas pretextos, por vezes ganhados, outras, inventados, para continuar uma transição que não compreendia. No entanto, em algum momento indefinido e súbito, vira-se descrente, acometido de um descaso pessoal inédito e, em certo ponto, até mesmo interessante. Alguma indiferença viera junto, o que fez da contagem do tempo algo menos linear. E o espelho, que apenas mostrava-lhe estranheza simpática – sorriso fácil de boa educação –, passou a transmitir traços duros e linhas tortas. Nem si, nem outrem, procurava, agora, em meio a ilusões ópticas em vidro metalizado, resquícios de sonhos
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que deveriam estar em qualquer lugar profundo de seu calendário. Quis voltar a desejar intensamente, antigo costume seu que o identificava para si mesmo. Sabia que esta era algo como andar de bicicleta: depois que aprendemos, nunca esquecemos, no entanto, se paramos durante, caímos. Tentou por diversas vezes retomar o ritmo das pedaladas. Era coisa pra muito tempo, muita prática. Não tinha mais paciência que lhe servisse de rodinhas auxiliares, logo, desceu da bicicleta e resolveu caminhar arrastando-a. Seus desejos, agora, tinham um peso incômodo e, muito mais grave, não pareciam em nada autênticos como antes (mesmo nos casos dos desejos inventados de outrora). E toda vez que retentava, era o mesmo déjà vu. Como se vivesse um dia intenso e cansativo, terminasse-o aliviado e, ao acordar, dar-se conta de que era o mesmo dia, de novo e de novo. Mas envelhecendo a cada dia que não passava. Precisava sentir-se leve novamente. Mas, ao que parecia, todas as suas tentativas não faziam nada além de atar-lhe mais e mais a pesos de consciência. Faltava-lhe algo de autopiedade, que se fora com algumas folhas do calendário já perdidas numa ventania confusa. Ao ver páginas de seus dias soltas, aleatórias mesmo naquela atmosfera densa, quis ser como a própria contagem de seu tempo, leve feito uma folha de calendário que se precipita ao sabor das brisas. Não era possível, sabia disso. Mas resolveu desejar, era preciso desejar alguma coisa. Sua distonia cronológica já o enlouquecia de um modo que, em face da menor possibilidade de recolar as folhas perdidas com o vento, de ajustar seus ponteiros, de tirar aqueles ciscos crônicos de dentro de seus olhos, jogava-se sem abri-los nos mais profundos abismos.
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No último deles, caíra intensamente. Queda infinita e brusca que terminou logo no início, sem aviso. Entre paredes espessas e horizontes ocultos, perdeu-se numa escuridão abismal tão profunda, que cada movimento seu por através dela pressupunha um esforço inédito, como caminhando no fundo de um oceano sem nome. Sentiu medo e sede. Foi quando constatou sua distonia cronológica aguda. Necessitou de um brilho desconhecido que seus olhos já não mais possuíam, por estarem vazados pela incisiva ação dos ponteiros de seu relógio. Um brilho que, por mais insano que soe, jamais necessitara. Brilho nevoento e frio, neon brilhante que anunciaria sua disponibilidade, neon de uma cor silenciosa e indecisa, nem verde nem azul, a cor que, neste entremeio, levanta discussões de pontos de vista. Neon avariado, que, ao invés de emitir continuamente um cintilar mudo e seguro, piscava frenético, confundindo, ofuscando, iludindo. Saiu deste último abismo, sem ver como. Ainda hipnotizado pelo piscar de seu neon, julgou que precisava apressar-se, e oscilar tal qual aquelas suas duas lampadazinhas. Ora claro, ora oculto, acelerou suas pesquisas, e, para finalmente chegar a algum resultado prático quanto a seus enigmas vitais, partiu sem método para experimentar. Vulnerável, a céu aberto, tudo que conseguiu foi formular mais perguntas essenciais e desnecessárias, providenciais e descartáveis. Como não tinha tempo para cogitar mais detidamente sobre elas, somente passava os olhos, correndo, em fuga. Confiava nos olhos, apesar do defeito no neon. Pensou que, em plena luz do dia, um defeito da lâmpada não fosse perceptível. De fato, não foi. Contudo, o cerne de sua busca, esta necessidade de ajustar a hora, esta angústia que destoar do tempo em que se encontra lhe causava, este abismo entre o 16
que foi e o que tem tornado-se, a questão principal de sua procura exigia tão somente algo invisível, simples e óbvio : paciência. Tão óbvia que ainda não se revelou à luz do neon, oculta sob a claridade do dia.
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Absorto
Se não era medo, tinha medo do que então podia ser. Um grito agudo perfurou a música que tapava seus ouvidos, e ele não tinha certeza se tapar os ouvidos era a melhor forma de fechar os olhos. Mas não teria outra alternativa, fechar os olhos já não funcionava. Mesmo pelo contrário, se alhear tornara-se sua melhor maneira de estar atento, o que lhe dava algumas dores de cabeça. Como algo bem no interior de sua consciência quisesse lhe mostrar que perceber precisava ser dolorido. Então escutava música para calar a dor. E só poderia não funcionar. Como uma cadeia, a dor que sente seria sempre a dor que ouviria que seria também então a dor que sentiria daí em diante. O mais conveniente : parar. Mas de que jeito? Quem o cutucaria nos ombros e o despertaria do transe? Ele queria tanto saber se tinha medo. Queria, com todas as suas forças, descobrir se aquele zumbido no fundo de seu estômago era mesmo a iminência de um desastre que ameaçasse sua sobrevivência, ou se era apenas o corpo reclamando do almoço que já devia ter sido assimilado. E nada fora ainda assimilado. Quando ele aprenderia que digerir requer tempo e vísceras? E quantas vísceras mais ele teria de esperar pra saber se continuaria atento? Um súbito lampejo de esperança vez em quando lhe ofuscava. Mas era tão fugaz que não conseguia capturá-lo. Então tentou escutar de novo e de novo a mesmíssima música, num desespero de transformar som em luz e agarrar a esperança. E se a esperança fosse apenas um tipo de medo mais abnegado, ele estaria salvo. 18
Mas, assim como não queria ter medo, tampouco se conformava em perder a fé, que também é um tipo de esperança, esta mais exigente. E ter fé então passaria a ser mais um ofício do que um recurso. E ter esperança seria o medo de não acreditar. A música terminava e recomeçava, e a cada vez ele se ouvia obrigado a acreditar em coisas como o futuro e a derrota. Porque não precisaria de esforço algum para crer em vitórias, já que em sua mente quase dormente de dor, vencer era chegar ao presente, e o presente era sua maior garantia de que ele vencia. Quando pensava em futuro, não conseguia descartar a possibilidade de que eles, o futuro e si mesmo, não chegassem ao status deste tão tácito agora que acabou de passar. Outra vez a música recomeça, com sua agradáve l redundância, e a cada repetição do refrão ele se tornava mais alheio, e se absorvia mais em questões desinteressantes, como dar um rosto ao seu medo. E se o medo fosse o seu outro eu? E se temer fosse só ele mesmo, mais escuro, dentro de uma casca cuja cabeça doía? Ter dois corações que batessem num peito apenas, que ideia tão romântica... Caberia romantismo em seu medo? E sua esperança, que diria ela sobre a possibilidade de uma ilusão? Fez, então, a pergunta: Esperança, o que você me diz de eu acreditar que tudo vai dar certo? Ela jamais lhe respondeu, porque então a pergunta já era um modo de a esperança, que era fé e era medo, ter fincado em seus dois corações medrosos um fio verde de promessa de um tempo presente ainda por vir.
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Partido
Exausto de tatear em busca de alguém em quem pôr a culpa por seus mal fadados intentos, sentou-se ao banco de plástico barato de um bar fuleiro, em meio a companhias ruidosas e coloridos ácidos, como para esquecer-se dos olhos, das imagens confusas, dos traços disformes, dos personagens de poemas em linha torta, de seu mundo sem rostos. Embriagou-se de leve para lembrar-se de estar sempre alheio a tudo aquilo que não fosse ele mesmo. Estar distraído. No entanto, com a boca ocupada no copo, e antes que conseguisse selar de fato sua vista, o colega da mesa o avisou que seu olhar estava a embaçar-se. E a esfera, antes repleta de reflexos, tornara-se, então, opaca. Seu olho mudara de cor, o que, no entanto, não o surpreendeu. Apenas lamentou que seu estado interior fosse já tão evidente. Vitima de si mesmo, do descaso e do desleixo, da inexperiência e de algum desespero pela ideia de fracasso, e do gosto amargo que fica na boca por jamais ter provado qualquer doce, por não agüentar mais suspirar, resolveu respirar. Inventou novas formas para arejar a bomba bolorenta do peito, e foi com uma sirigaita que encontrou os ventos da mudança. Alias, com duas. Como apenas servisse para apresentar-lhe todos os prazeres que sua classe oferecesse, Suzana, prostituta que se orgulha do oficio, serviu-lhe por um único dia. No dia seguinte, teve de trocá la por aquela que, então, seria sua companhia até que a morte os separasse. Gostou da sensação de aconchego de
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Monica em seu bolso. Tudo o que precisava era mesmo esta constante disposição e a desnecessidade de falar. Naquela casa morava, com sua família, também uma ave já velha e muito barulhenta. Agressiva e traiçoeira, ela apenas dava-se com ele, e mesmo essa relação era recortada de beliscões, um sadismo amoroso. Já cansado de tanto ouvir o grito irritante de um animal que desprezava, desejou, não sem algum remorso subliminar, que o bicho morresse logo. Como alguma divindade o tivesse ouvido, a ave, empoleirada no seu dedo, achou de morder-lhe por carinho em hora inadequada e com força excessiva. Por causa do ancestral impulso de autopreservação humana, o pássaro fo i jogado longe e com impacto. Soltou um último pio, mas não morreu. Ele arrependeu-se de ter querido o bicho morto, embora o sentimento de pena não o tivesse feito gostar mais do animal. O silêncio da ave, então traumatizada, deixou seqüelas, danos irreversíveis, nos ouvidos dele. Além de tudo, mais este incômodo. E por culpa de um pássaro.
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Ávido
A sede o levou a esbarrar na estante de livros esquecidos. A dor no ombro lembrou-lhe outra angústia, o que lhe fez parar um minuto para aproveitar melhor a ânsia. Três ou quatro afagos para descobrir que aquela raiva não lhe pertencia, mas apenas ao seu ombro agredido. Numa constante, seus sentimentos eram apenas a semelhança de outros, do passado ou de agora, e, de fato, sentir esta raiva passageira foi o modo de ele se submeter à sua insatisfação. Exigir demais lhe pesava como nenhum crime jamais pesaria nas costas de um inocente, porque exigir demais lhe trazia uma frustração crônica da qual ele, por alguma razão muito íntima, não fazia questão de se livrar. Empenhado em aliviar a dor, o que ele queria, em verdade e a despeito de toda sua conhecida angústia, era que sua frustração não fosse um problema. Ouvira mesmo dizer que problemas são apenas a interpretação pessimista das situações que, em essência, não são boas nem más. E como não suportasse essa implacável imparcialidade do mundo, estendeu o braço para dar fim ao fato tolo de ter-se machucado por uma distração que não merecia sequer sua indiferença. Estendendo o braço, encostou na lombada áspera de um livro empoeirado, o que lhe chamou atenção somente depois de um longo instante. Se era verdade que ele não pretendia descobrir um livro ao erguer o braço – porque, de fato, erguer o braço fora um gesto para acobertar –, também era verdade que, diante da possibilidade de seu gesto encontrar um obstáculo, este não poderia ali ser outra coisa senão um livro. Por saber sem olhar o que sua mão 22
encontrara foi que ele abriu os olhos ainda fechados pela obrigação da dor. Mas depois de longo momento de descoberta, ele meio que desaprendeu a ser o que vinha resignadamente sendo, o que não lhe deu outra opção senão deter-se a este mesmo instante. Desse modo, e já liberto do ombro dolorido, pegou o livro entre as mãos, com ares de profanação, depois do esforço quase divertido de descolá-lo do móvel. Como se aquela peça, ao invés de anexo, fosse parte constitutiva da estante. Uma hipótese: se por acaso ou crueldade, ele retirasse um parafuso da base da estante, toda ela desmoronaria sem culpa. E esse poder que o livro áspero acabara de lhe oferecer, de repente, não coube numa única mão. Como quem suplica, ele sustentou o livro com as mãos juntas em concha, e logo não era mais súplica o que a cena mostrava, mas gratidão. Ou, ao contrário, arrogância, pela imensidão de possibilidades, com a força que o gesto de tirar o livro da estante despertava. O que importava agora era o peso de uma obviedade: é preciso dar uso às coisas, para evitar os desperdícios. Entretanto, mais atento ao fato grave de que se ele não fizesse algo daquele livro, jamais se perdoaria, por ter deixado passar uma oportunidade de força tão infinita, foi que ele resolveu abrilo. E, com isso, quase nada até aqui fará muita diferença. Tampouco fará diferença o que dizia o livro, ou menos ainda importa que ele não tenha lido sequer uma linha daquele volume. Abrir o livro – em nome daquela força nova, ele decidira – não podia agora ser uma experiência cognitiva. Abdicou assim de toda a sua inteligência e se dedicou a perceber fisicamente todos os aspectos da matéria que compunha suporte para uma abstração totalmente dispensável. Entre seus dedos, as páginas amareladas estalavam e cheiravam a mofo muito novo. De repente, um motivo mais grave para ignorar as palavras daquele livro : 23
uma folha branca, quase nova e até cheirosa, por entre as páginas: Sobressaltou-se. O que então aquele pape l abandonado entre mofo e esquecimento seria, senão a promessa de outra vida e outro mundo suspensos? Sequer teve o cuidado de recolocar o livro na estante. Aliás, colocar o livro de volta na estante seria a renúncia de sua nova força, e ele ainda não era forte o bastante para renunciar a um poder. E porque era fraco e por não haver ali outros moveis onde ele pudesse não sucumbir, por não fazer a menor diferença o que acontecesse com o livro, contanto que a estante não voltasse a ser íntegra e indestrutível, ele simplesmente largou o livro no ar. O objeto depositado com violência contra o chão frio e liso. Empenhou-se totalmente ao novo mundo pendurado em sua mão esquerda. A folha A4 dobrada duas vezes e sem nenhuma impressão de máquina. Como segurando uma relíquia de valor incalculável, ele pouco a pouco perscrutou as duas faces exteriores da dobra, repletas de marcas feitas por uma mão humana e, quem sabe, viva. Não havia sequer uma letra, nada que fosse reflexo de uma verbalização. E, num assomo, ele se apaixonou por aquela mão humana que se preocupara em não escrever palavras dentro de um livro. Como somente os apaixonados são capazes das mais insanas agressões, ele resolveu não abrir aquela dobra por enquanto. A promessa do esgotamento. Ao vasculhar pouco a pouco todos os centímetros quadrados do novo mundo infinito, descobriu que, talvez, aquela mão humana precisava muito se apegar a uma lembrança. Um, dois, três, quatro eram os desenhos de uma mesma moldura, e ele soube que se tratava de uma moldura daquelas que penduramos na parede por causa do floreado nas bordas e porque ele também já sabia que ninguém se esforçava para deixar algo tão bonito senão para estar à mostra. Mas eram quadros em branco, vazios no miolo das 24
bordas. E se de repente aquela mão humana se sentisse vazia como o que desenhava, ele pela primeira vez não se importou com simbolismos. É certo que jamais descobriria realmente, então também pela primeiríssima vez ele não se incomodou em estar iludido. Mas era sem ilusão alguma que ele se entregava cada vez mais àquele estado de investigação que jamais poderia ser confirmada. Então seguiu em frente ao papel e se decepcionou ao ver quatro outros pares de corações que, apesar de não estarem simetricamente ligados às quatro molduras, não podiam mentir no que de fato queriam dizer, afinal de contas, os números coincidiam. Então achou que seu erro fora crer que qualquer memória coubesse em quatro segmentos de reta unidos por ângulos retos. E porque se enganara com a solidão daquela mão humana, ele começou então finalmente a barganhar sozinho e fazer acordos que somente um apaixonado não percebe serem inverossímeis. Que a sua melhor mão humana amava alguém, e que esse amor merecera uma moldura, disso ele agora jamais teria dúvidas. E esta noção lhe obrigou a sucumbir à sua inteligência, maior das burrices que um apaixonado poderia cometer. Racionalizando, dessa forma, viu que, por ser tão óbvio o fato de um desenho de coração significar amor é que aqueles desenhos poderiam não querer dizer amor, enquanto que a moldura inevitavelmente implicava na ideia de memória, concluiu. É que ele não conseguia aceitar que aquela sua mão humana fosse capaz de se valer de um clichê tão vulgar. Procurou então salvação em outros traços ali, mas não havia agora alternativa senão dar um salto no escuro. Precisava arriscar tudo o que ganhara até então, tudo o que aquela mão humana lhe dera, se não quisesse perder este tudo por pura falta de mais provas. Encurralado, teve que desdobrar o papel.
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Por sorte, o que havia na segunda dobra não era necessariamente a sua derrota. Agora havia letras ao invés de desenhos. Se ate então ele se tinha apaixonado pelo fato de uma mão humana ter se preocupado em não escrever dentro de um livro, qual não foi a sensação de plenitude instantânea quando viu que esta mesma mão, para lhe surpeender, escrevera onde não se esperaria palavras. Precisou sentar-se. Eram letras sem palavras, na verdade. Exausto de buscar um lugar, desmoronou no chão frio, cruzou bem as pernas, como numa meditação. Em colunas, lia-se as associações, número um letra A, número dois letra D, número três letra B, e assim até chegar a trinta. A maioria das alternativas descartadas com um xis decepcionado. Isso tudo à esquerda da face nova na qua l agora havia um vinco para delimitar os hemisférios do novo mundo. À direita, outra prova de fracasso, uma equação inacabada da qual o xis jamais deveria ter saído para anular tantas questões do gabarito ao lado. Aliás, era com angústia fascinada que ele lia os traços mal calculados de sua mão humana, e compreendia o quanto xis jamais seria. E se de súbito ele tentasse corrigir a equação, o mundo chegaria ao seu tão temido termo. Como não tinha força alguma, apenas inteligência, ele não ousaria enfrentar o fim. Riu -se com esse último pensamento, porque então descobriu que, afinal, ser inteligente era apenas o modo pelo qual exercia sua preguiça. Também lhe pareceu vulgar manchar a folha que tão dedicadamente uma mão humana preenchera com o cuidado de registrar o fracasso em um teste que talvez a tivesse levado para a Lua ou Nova York. Mais importante do que para onde fora, o que aquela mão humana deixara já o nauseava um pouco. Haveria ali uma mensagem? Foi quando encontrou, quase escondida no canto inferior direito, uma tímida flor de miolo azul-caneta e nove pétalas apertadas. Soube que eram nove pétalas por ter sucumbido outra vez, resignado com o novíssimo hábito 26
de relacionar uma coisa aparentemente sem sentido a algo que, com algum trabalho minucioso, possa desvelar uma mensagem. Da mesma forma ele também soube que a flor estava rodeada por dez folhas tão mal desenhadas que só viravam folhas por sua boa vontade. Número nove letra flor, número dez letra folha... Mas de que isso importava mesmo, meu deus? Não importava, era um buquê e precisava recebê-lo. Aceitou finalmente o presente, mas não sem algum remorso. Pois era até quase um insulto aceitar um presente de alguém a quem você jamais pensou em presentear. Um sobressalto: injustiçado, precisou apoiar-se, mas ao invés de encontrar o frio duro do chão liso, tocou novamente na aspereza esquecida do livro derrubado. Ele despertou novamente. Seria amor? Essa coisa que vibra é amor? E se fosse, seria amor mesmo um sentimento? Então amor não passava de uma palavra? Por alguma razão, o ombro acordou para a dor ancestral. Seu maior erro fora ter dado atenção à sua dor. Pela dor ele agora chegava ao ponto de concluir que amar não poderia ser jamais uma questão de sentimentalismo. E ousou pensar mais: o amor nem de longe era para os românticos. E era para ele? Era amor a uma raça o que o movia desde a época das explosões? Ele começou a se sentir um revolucionário, por julgar ter descoberto um sentido primordial: amor, não podendo ser apenas um sentimento – o que o tornaria não mais do que um termo misturado a tantos outros do dicionário –, só poderia mesmo ser uma atitude. Lindo, perfeito... E agora? O que fazem aqueles que agem nesse sentido? Foi só então que, num súbito gesto, quase num pasmo, afastou com pressa a sua mão daquele livro. Com o movimento, o objeto foi arrastado e as páginas ásperas lixaram o chão liso, como num ruído de unhas numa lousa. O que lhe trouxe outra satisfação incontável. Mas precisou controlar-se, porque se 27
amor era mesmo uma atitude, seria uma muito grave, que lhe exigiria uma sobriedade incompatível com este deleite que lhe abria um sorriso ao ver o livro estorvado ao pé dos rascunhos no cesto. Ainda sem se iludir, ele voltou-se para o papel dobrado. Então pareceu-lhe ter se passado milênios desde a última vez que o vira. O que lhe deu a impressão de saudade, e como somente sente-se falta do que é amado, de novo estava sem outra saída senão desdobrar aquela folha pela última vez. Única atitude digna de seu amor. Foi fácil desdobrar o papel por inteiro. Por um instante durante a talvez falsa sensação de facilidade, ele duvidou do papel. Mas possuir o papel e tocar no papel e ter uma mão humana escrito num pape l esquecido entre páginas ásperas não seria a prova de que o amor era uma atitude possível? Porque tinha dúvidas, sentiu-se fraco. Tão mais fraco do que alguém incapaz de renunciar verdadeiramente a uma força. Ele era fraco a ponto de não suportar a facilidade com que descobriu a última camada daquele papel. E também apenas os verdadeiramente fracos como ele se esquecem que nada pode ser realmente aquilo que vemos ou sentimos ser. Não sendo aquele papel verdadeiramente fácil de ser desvelado, seria então um insulto ao seu amor verdadeiro tê-lo subestimado? Que castigos aguardavam aqueles cujas impressões não correspondiam à realidade das coisas imaginadas? Decerto seria o peso de uma realidade incontestável. Sentiu que o fim então chegara, e que seu gesto final estava apenas sendo adiado. Só depois desta lucidez foi que ele finalmente olhou para a última e mais ampla face do papel.
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Com um alívio: desdobrar a folha fora a atitude mais difícil da qual até então ele precisara dar cabo. Também afinal, não estava sequer perto de ser alguém pronto para esse tipo de sacrifício. Não era algo bonito. Ele quase riu de quem alguma vez achou que o amor fosse uma atitude digna de filmes e livros e músicas. Ele viu que teria de abdicar deste amor que com tanto esforço acabara de inventar, o qual com tão pouca força acabara de tornar digno. Enfim sustentar certa atitude era para poucos iniciados. Isso porque misturado aos quatro vincos em cruz estava outro par de molduras, outro par de flores com nove pétalas rodeadas por outras tantas folhas mal desenhadas. Mas tudo isso não importava mais. Amparado pelas certezas que tinha, ele não suportou enxergar que a sua mais nova melhor mão humana tinha escrito duas palavras no mais íntimo e profundo âmago de seu melhor papel. E porque não eram letras avulsas, relacionadas a números sem carga, aquelas nove letras cometiam, juntas, o pior pecado da humanidade: elas faziam uma pergunta. Com ares de decepção, procurou relevar. Então aquela mão humana pecara. Que grande coisa? Ensaiou alguma indulgencia, pois lembrou-se de que acabara de aprender a não racionalizar, porque amar era um ato e não um pensamento. Poucas pessoas que ele conhecia eram capazes de amar “apesar de”. Apesar das palavras e do ponto de interrogação, ele fez um esforço último para não perder a sua preciosa mão humana. Foi a sua última atitude. Nesse meio tempo, ele odiou ter uma memória, porque além de o amor ser uma atitude e de que era preciso sempre amar “apesar de” e não “por causa de”, lembrou-se também que era fraco e que isso aparentemente jamais mudaria. E se uma grande força era exigida para se renunciar a um poder, 29
e se mais força ainda era necessária para se abster de sua racionalidade, que era outra força sua, ele não conseguiria então medir o quanto lhe faltava para chegar ao nível de alguém que ama “apesar de” e é feliz com isso. Como não queria obrigar-se a amar sem felicidade, ele, a cada vez que lia aquelas nove letras perguntando, ficava um pouco mais certo de que precisava da separação que todos tanto evitam por acreditarem que amor é coisa única. Essa noção de preciosidade o incomodava a tal ponto, que ele não teve dificuldade alguma em resolver-se: estava disposto a cometer a maior ofensa que já cometera contra algo que amasse – ele responderia àquela pergunta. E depois disso, o fim não poderia mais ser adiado. Aliviou se. Antes de responder, procurou reparar bem nos desenhos das letras, mas não era possível. Não havia imagem alguma naquelas palavras, senão o sinal que as findava. Um pouco enfurecido pela interrogação tão bem delineada por aquela mão humana, ficou mais certo de que realmente ali não poderia haver futuro. E tudo acabaria, e nada terminaria. Ele levantaria, recolocaria o livro desimportante no espaço vazio que deixara ao retirá-lo, e ao passar pelo cesto no canto, o papel forjado daquela mão humana se tornaria apenas mais uma bolinha dentre as tantas que, não sendo de todo um desperdício, tampouco são o que exibimos depois do trabalho pronto. E saindo do cômodo, iria finalmente matar a sede que o trouxera ali, porque era caminho. E como já sentia uma sede de eras, apressou-se, mas não sem solenidade, ao seu gesto mais generoso de fraqueza. Leu em voz alta – o que era apenas um sussurro – a grande ofensa daquela mão humana: “Até quando?”. Respondeu lhe, noutro sussurro: “Não mais”.
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Redimido
E então ele descobriu que toda aquela sua veemência era apenas solidão. Assustou-se no começo, afinal de contas, estava perdendo algo forte de sua personalidade, mas então deu-se conta de que não era algo tão forte, apenas era a única face de sua personalidade à qual dava vazão. Desconhecia todas as sutilezas de seu próprio eu. Depois o medo foi virando uma noção tão nítida das coisas, algo assim tão translúcido quanto o vento, vinda ironicamente dessa sua nova forma de ignorar. Experimentou finalmente o doce privilégio de não querer saber, e assim se libertou das coisas que não eram suas, inclusive tanta veemência. De fato, agora ele sabia, só era firme no que dizia porque o que dizia não lhe pertencia, tomava emprestado da imaginação, esta que, principalmente no caso dele, não se encaixava no que se pode chamar de particularidade. Não, aquilo que inventava, sem saber-se inventando, era fruto tão somente da vontade de não ser o que realmente era. Aliás, mais que isso, suas teorias vinham mesmo do desejo involuntário de tornar-se algo além dele mesmo, porque autopiedade sempre fora seu forte. É bem verdade, a pena não alavanca atitudes, pelo contrário, ela as empaca. E por sentir-se num atoleiro sem corda a que se agarrasse, seu consolo era maldizer a terra e a água, que juntas formavam uma lama a afogá-lo, porque estavam unidas. E saber que a lama da qual não se livrava era mesmo a prova de que a união fazia alguma força contra ele que, sozinho, achava-se invencível por ter muita opinião, saber disso o endurecia.
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Como achando que ter a resposta na ponta da língua fosse a corda que o libertaria, descobriu que, na verdade, trocava seis por meia dúzia. Em vez de se afogar na lama, se enforcava cada vez mais forte. Na corda da sua imaginação, um nó errado e estaria degolado para sempre. Mas houve um tempo em que ele se cansou de tanto se puxar pra se salvar. Reparou que era mesmo impossível. Ouviu dos reais gênios (aqueles que não eram ele), os da Física principalmente, ouviu deles que por uma lei natural alguém não se pode erguer puxando os próprios cabelos. Como, então, não podia salvar-se puxando a própria corda, esperou que outra mão aparecesse. E não podia deixar de se irritar por não ser suficiente sua imaginação para que isso finalmente se realizasse. Forjar o formato dos dedos, desenhar o antebraço, nada adiantava. Descobriu que especulações não salvam vidas, apenas as adiam. E por falta de recursos e escassez de alternativas, resolveu esperar. É como todo mundo sabe: na lama, quanto mais nos debatemos pra subir, mais somos tragados pro fundo. Isso devia estar escrito em todos os livros, ou ao menos num que fosse de leitura fundamental à sobrevivência, ele concluiu depois que, por puro acaso, uma mão o salvou. As pessoas esquecem do óbvio, isso é um crime, que quase o matou. E se foi preciso ter lama pelo nariz para finalmente descobrir a beleza oculta nas verdades prefabricadas, agora ele podia, enfim, respirar aliviado. Sereno, sem a urgência de sempre, ele agora experimenta a paz de quem não anseia por paz, e acha até que já ouviu essa frase em algum lugar, mas não se importa mais em descobrir se está lembrando ou inventando. Sua veemência diluída. Aquela necessidade de originalidade barata – ele descobriu e ri-se agora, condescendente consigo mesmo –, aquela mania de originalidade que ele tanto perseguia era, afinal, recalque. E então ele já não mais precisa estar 32
constantemente provando-se forte, pois que, de fato, ele ficou mais forte por não querer mais isso. Ser forte nem sempre implica em ser mais feliz, quantos bebês já se foram vistos infelizes por terem poucos anticorpos? Ele queria a felicidade oculta na fragilidade dos bebês, a felicidade que termina quando a doce inocência acaba. Ele queria a felicidade inédita da ignorância, e por não saber que era esse o seu desejo, por tampouco saber que essa felicidade tão simples existia, enfim, por acidente foi que a encontrou. E a noção das coisas tão nítidas quanto o vento lhe atingiram tão profundamente, que ele sentiu-se privilegiado por sentir-se tão feliz e, além disso, ter a consciência de que essa felicidade não era forjada por suas teorias. E, tão feliz, ouviu dizer que felicidade alguma dura muito. Num flash de lucidez, percebeu docemente e com alguma tristeza benévola, serem esses que dizem isso os mais infelizes. Como não aceitando que esta sensação tão nova e simples fosse frívola, e como querendo provar aos desiludidos – enquanto exdesiludido que era –, como querendo provar que aquela felicidade era para todos, ele resolveu ser feliz plenamente, sem pensar nisso. E por mais que insistissem os desesperançados, ele experimenta o que antes nunca vivera. E então ele viveu feliz enquanto era feliz, e isso era mais que suficiente.
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II CONVERGÊNCIA
“Ou pressagiava o que viria também de fora e seria completo, pois são completas as coisas quando acontecem depois de anunciadas por dentro, criando um estado capaz de receber o que virá de fora.” Em O Marinheiro, de Caio Fernando Abreu
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Convergência
Houve um quê de impaciência indeterminada que me influenciasse. Houve um quê de raiva morna e densa que me denunciasse o fato de eu ser influenciável. Tinha me cansado de pudores triviais. Todo pudor, em maior ou menor grau, não passa de uma banalidade sádica que serve para preencher lacunas inexistentes e criar lacunas novas e desnecessárias. E de lacuna em lacuna, torce-se o tornozelo na inevitável buraqueira. Meu tornozelo não me carrega para lugares que eu não ordene, no entanto, e pro meu azar, há percalços, calçadas esburacadas. Houve um bueiro infinitamente profundo no meio de uma, e caí tão intensamente que cheguei a ralar levemente os joelhos. Desabo em tantos rasos, que me perco em superfícies tolas. Há de ser-se um tanto superficial para com os pudores banais que acabam com as articlações. Meu passo, compassado como de um bêbado dum final de tarde duma quarta-feira, costuma trazer-me pedrinhas aos sapatos. Escrúpulos inconvenientes como cisco no olho que não enxerga. Elas entram incisivas e agudas, e no mesmo instante aquele incômodo de qualquer situação que não me deixe tranqüilo vem rasgante como tivesse sido lançado obliquamente numa lâmina d’água pra que quicasse. O escrúpulo que quica no lago não afunda sequer quando para. Mas a pedrinha penetra, incisiva, sobe pela batata da perna e vai instalar-se em qualquer lugar profundo na minha nuca. De novo o sangue corre, o olho gira, os dedos se inquietam, mas, ineditamente, o tornozelo inchou. Pura dor de tornozelo. Pudor de torcê-lo num bueiro tão fundo e sufocante, que não chega a cobrir minha cabeça. Desmanchar um pudor é arriscar-se a ampliá-lo, porque o pudor se estabelece a partir de certa arrogância gratuita e, em certos casos, inofensiva. Ao contrariar um arrogante 35
corre-se o risco de tornar-se arrogante também, pela simples sensação de orgulho próprio que esta vitoriazinha inspira. Ou o contrário. Não há lógica que guie os escrúpulos, muito menos uma que conduza esta raiva morna e densa em algum lugar profundo da minha nuca. Se eu soubesse que peitar a arrogância de um pudor fosse causar me esta raiva indefinida, teria tentado evitar a impaciência original, embora saiba que não teria conseguido. Presumo que o fato de eu ser influenciável venha justamente desta não disposição em esperar, o que torna o produto pronto e embalado muito mais convidativo do que intentar produzilo com as próprias mãos. O problema é ter de lidar com a insatisfação depois. Nunca abri uma embalagem pronta que contivesse o que eu esperasse do conteúdo dela. No entanto, nunca consegui produzir algo que condissesse com a ideia que inspirasse a minha manufatura. Suponho que eu necessite de mais alguma maturidade desconhecida que me dote de certa maestria manual, e é tão inusitado contatar isso, que chega a mexer com aquele meu orgulho próprio que ganhei quando da minha vitória sobre alguma arrogância de pudores. Julgava que meu tato fosse aguçado, haja visto a minha vista não haver o suficiente que me console. Devia estar mesmo enganado, ou então apenas superestimando meus sentidos convencionais. Ainda não desvendei como se faz uma boa leva de escrúpulos e pudores, e sinto-me gasto demais pra recomeçar qualquer processo de aprendizagem. A impaciência indeterminada tem essa capacidade de alterar o curso do tempo, porque não importa o quanto me digam maduro, julgo-me sempre um nível inferior a alguma sensatez fundamental, e mesmo quando me tenho pela mais alta maturidade e discernimento, sempre surge um bueiro de calçada a me sussurrar que certas atitudes tão elevadas não passam de disfarce para um medo juvenil de ser-se juvenil. E possa ser este o ponto da minha falta de habilidade: mãos jovens ou velhas demais não têm muita coordenação, seja pelo hábito 36
ainda não fundamentado, seja pela exaustão que o hábito provoca. Mania inconveniente de estar em dois extremos ao mesmo tempo. Este incômodo me desperta a vergonhosa vontade de ser, por alguns momentos imprecisos e imprescindíveis, de certo modo medíocre, em sentido absoluto. O dicionário que me valha: preciso mesmo é ser sem relevo, comum, ordinário, vulgar, mediano, meão, ou coisa pior. Mas não tão pior, que é pra eu não correr o risco de chegar novamente perto de outro extremo. Um dia, tentaram me ensinar que tudo tinha seu tempo, e só esqueceram de me dizer quando é isso. Talvez eu estivesse muito ocupado pra descobrir o momento exato, tentando tirar a pedrinha que entrava no meu sapato. Outro dia, ou talvez tenha sido naquele mesmo dia, quiseram m e convencer de que eu sou a pessoa certa pra qualquer pessoa, e foi engraçado perceber como eu só sirvo pro outro, nunca pra quem me disse. Mas então, de novo, tentaram me persuadir a achar que buscar demais faz as coisas fugirem do meu alcance, que eu preciso saber esperar, que meu querer é forçação desesperada. Não sei quando fo i exatamente, mas depois de alguma recorrência monótona, aprendi sozinho que esperar cansa mais. Disto advém esta impaciência indeterminada que denunciou a minha face influenciável. Só posso concluir que ser impaciente, sendo assim tão ideal como me dizem ser, é jogar este minha perfeição alheia no bueiro de toda calçada lacunosa. Eis o motivo mais íntimo de minha incompreensão, essa percepção aguda de não saber-me nem ver alguma possibilidade remota de tornar-me paciente o bastante para ser ideal a esse outro que está em algum lugar, guardando sua aparição para quando eu começar a esperá-lo. Só resta saber se este outro tem a calma que me falta, uma vez que, apesar dos sábios conselhos, também não conseguiram me ensinar ainda como se passa a esperar bem.
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Virtual
Na minha solidão tardia de sempre, transito avulso entre combinações de cores e linhas de resolução, em busca de fragmentos tácitos de um incômodo irreal, virtualizado em cada plaquinha que sobe, deletado em toda rolagem abaixo. Vejo meus anseios transmutados em abreviações que não condizem com a extensão do que teclo, meu modo particular de expressão impressa não impressiona tanto quanto espero. Há sempre o botãozinho vermelho-sangue marcando com um X o lugar preciso que me afeta. Quando deixarei de viajar em rotas iluminadas pela janela da qual espio covardemente enquanto navego? Se é de dentro que a luz parte para clarear as águas em grande rede, como poderei eu me desapegar do veículo no qual viajo? Se tenho medo de descer do barco, jamais mergulhare i profundamente nesta rede que, ao invés de me envolver e balançar, me enrosca, prende e sufoca. Feito peixe que, mesmo não podendo respirar fora d’água, nadou, nadou em direção à margem, deliberadamente, só pra morrer na praia. E ainda tem este silêncio agudo, craquelado de quando em quando por meus dedos numa prancha detentora de chaves que não sei combinar adequadamente. Deve haver algum código indecifrável que me faça libertar desta cadeira giratória, esse circulo vicioso. Alguma senha inquebrável, tão oculta que deve ser a coisa mais óbvia do mundo. Meu aniversário, o nome do cachorro que um dia pretendo ter, meu super-heroi favorito, ou o grande amor da minha vida... Impossível. Insuportável paradoxo... Ora, se bem me recordo que comecei esta viagem surreal em busca desse 38
alento que muitos dizem irreal, ideal. Se esta fosse uma possibilidade para a senha, não haveria mais necessidade de senhas. Estou preso e não sei sequer em que lugar; posso ir a todos! Ao alcance da mão direita: Ásia, Oceania, Lituânia e o copo d’água que pouso à frente, pra não ter que percorrer a infinda distância até a cozinha, se acaso tiver sede no meio do caminho. Caminho sozinho por hiperestradas superlotadas, nas quais não há tropeços, não há buracos, não há falhas nem defeitos. Me misturo a semideuses invioláveis forjados em megabites intocáveis. Não acharam, na Terra, matéria digna o bastante para os seus Avatares. Mias doença do que vício. E das piores, por sinal. Vírus incurável. Infecção irreversível. Sei que não fui vítima de Cavalos de Tróia. Não me chamam a atenção, estou farto de presente de grego... Suponho mesmo que tenha sido contagiado muito antes, lá bem no começo, na época do “I love you”. Meu pobre sistema operacional, apesar de tão frequentemente atualizado, não consegue programar vacina pra este mal ancestral.
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Sorriso
Sorriu, e no instante em que seus lábios se fizeram sorriso, já não era mais isso. O olhar intenso de quem vê o sonho ser melhor do que os fatos distorceu a pura e simples convenção de sorrir para as boas notícias do outro. Outro, sempre o outro. Fazer tudo em função do outro, pensar no outro a cada passo, cada moção do braço. Está me vendo? Tomara que sim, foi meu melhor movimento. Será que gosta? E se não gosta, que faço? Mudo, ando diferente, balanço um pouco a cabeça, então olho pros lados. Nada? Nenhum elogio? Tanto esforço, tanta técnica, e ele olha para a desconhecida da rua? Ele não gosta... Uma onda fria no estômago, outra quente na espinha, e seus imperceptíveis pelos se eriçaram numa angústia incontida e injustificada. Precisou sorrir. Um sorriso que a agredia toda em sua arrepiação. Sentiu-se infiel consigo mesma, desleal. Ouvira, absorta naquilo que julgava ser seu bom senso, a boa notícia do outro. Ah, o outro que a fizera subitamente enxergar que o seu bom-senso era puro idealismo disfarçado de autoconfiança, pura má interpretação de gestos e flores, olhar deturpado dos beijos no rosto e dos abraços calorosos. Com aquele sorriso, então, os beijos, abraços, flores e gestos tornaram-se frios e sólidos feito o cano de uma pistola engatilhada. A iminência da explosão fumegante que a mataria por seu próprio punho, o dedo rijo em volta do gatilho. A raiva de si e do outro que de si não se percebe, nem dela. Cego. Burro e cego. Pior que ambos : lindo.
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Teve de sorrir, e em cada músculo que se moveu forçadamente corria a vontade de cuspir-lhe a face imperdoavelmente satisfeita, grata e sonhadora à sua frente. O outro com a alegria cruel de sua descoberta, impiedoso com sua boa notícia. Como pôde? Tanto lhe fiz por bem! Por querer-te com tal intensidade que em uma simples amizade não cabe! O que precisava para mostrar-te que não é mais teu afeto apenas que eu quero? Mas teu corpo alto e magro, teu lábio grosso e ressequido. Que faltou para que eu deixasse claro que, já há algum tempo, só te acompanhava em horas vadias para que pudesse, vez por outra, no desgoverno dos movimentos, roçar de leve meu braço no teu, sentir, por um instante fugaz e intenso, tua pele de cor estranha misturada à minha da cor comum de toda amiga? A raiva do sorriso, o ódio pelo outro, por aquela indiferença a tudo dela, pela maneira leviana com que o outro havia dito a sua boa notícia, o tom de naturalidade, com a saitsfaçao de quem consegue finalmente compartilhar um presente grande demais. Como se, ao dizer-lhe aquilo, o presente ficasse ainda maior e mais digno de ser dividido. Como se aquilo, aquele presente que ele a entregava, fosse o presente desde sempre esperado sem reais esperanças. Por que somos amigos? Por que sou tua amiga então, se tudo que você faz eu vejo como quem fizesse fosse o homem perfeito, que não é amigo de ninguém, que a si mesmo basta-se, por todas o quererem e ele não perceber querer-se mais, por quê? Por que resolvi ser eu a amiga do meu homem perfeito e acabar com a possibilidade de por ele ser escolhida e, desse modo, jamais me aproveitar do que a perfeição masculina teria a me oferecer? Por que sou obrigada a servir de satisfação falsa ao meu homem perfeito, a sorrir-lhe com sua novidade que me agride?
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Sorriu, e na obrigação de sorrir ao outro que sorria desobrigados sorrisos a ela, em virtude daquela inadmissível sua boa notícia, não conseguiu ela conter o impulso nervoso, a ordem involuntária vinda do músculo involuntário (a bomba, a pistola engatilhada) em direção à têmpora aflita, irrigando de fúria a mente nervosa que, num lampejo elétrico de neurônios em frenesi, ordenou um braço delicado e branco a erguer a mão que tantas vezes envolvera a do outro – o outro, ele, a ideia do outro apressou o processo –, explodiu a mão na maçã do rosto dele que, tão alegre de amor novo, recém descoberto e recém correspondido, passou, em um segundo silencioso e agudo, daquela cor estranha dos desejos dela a um rubro latejante, vivo. O rosto, agora arregalado de estranheza, voltou da explosão e ficou-se num grito mudo, no qua l escorriam da carnosidade abundante dos lábios do outro o pasmo da incompreensão. Sorriu, ela, então, outro sorriso, aliviado, mas insatisfeito.
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Equívoco
Fez-me mal a confusão. Repare comigo, você jogou em mim as palavras, me cobriu com elas e, sem alguma explicação, saiu, como se apenas aquelas palavras fossem tudo que era preciso dizer. E eu já me acostumei a não te pedir explicações. E, mais do que costume, me contentar com o que você me dá é quase uma questão de sobrevivência. O que eu não sabia, meu bem, é que aquele seu lançar súbito foi apenas falta de tempo e não desnecessidade de argumentação. “E o que eu faço depois disso?”, foi o que sobrou avulso entre minha boca e a tua nuca forte quando você se virou, mudo, para o outro lado. E eu fiquei todo aquele dia sem saber o que fazer com aquilo que achei ser um presente. O presente não era meu, meu bem, o bem que você me faz tampouco é meu também. Compreenda, eu achei que era brinde quando era apenas uma amostra grátis. Percebe a diferença? Brinde é de quem ganha, não precisa de apreciações. Amostra grátis é o teste pra ver se o produto é bom mesmo. O triste, meu bem, o triste e o sublime disso é que era bom mesmo. Mas não era meu. Era apenas a tua mania de só oferecer o melhor do que você tem pra dar. E como eu gosto disso, gosto tanto disso que quase me arrependo de ter ficado triste porque aquele último poema não era pra mim. Quase me arrependo de estar decepcionada. Não se preocupe, meu bem, vai passar. É só que tem coisas pequenas que são grandes demais pra serem maiores do que precisam. Há-de se tomar cuidado com as combinações, 43
três letrinhas podem tanto levantar muralhas como desmoronar dias de sol. Amo. É bem verdade, o amor não está nas três letras, mas na língua da qual surgem. Só que tem tanta coisa entre minha língua e meu amor, que não me bastam os beijos, eu preciso de palavras. E você tem a mania de brincar com meu amor através delas. Confesso, meu bem, estou triste, desiludida. Me perdoa, meu bem, estou sendo injusta. O fato de ter sido o primeiro a quem você mostrou seus versos devia me servir de alguma coisa. Querendo ou não, fui eu quem fez a leitura original. Estar em primeiro nem sempre significa ter ganhado, tanto é que não fui eu que ganhei aqueles seus versos. Eu criei-lhes um sentido, e o verbo virou carne, mas o sentido me escapa, porque surgiu de mim, mas não surgiu pra mim. Deve ser assim que Deus se sente no pôr-do-so l dos Sábados. Deus criou o mundo e os homens, mas, à noite, quem descansa no seio de Eva é Adão. Obrigado, meu bem, pois mesmo me equivocando consigo amar-te mais. Foi como eu te disse, um dia desses, bem na aurora dos nossos tempos, “Fez-me a vida uma aventura errante/ de repente, não mais que de repente”. Errar é preciso, meu bem, e é precioso. De fato, fez-me mal a confusão, mas faz um bem tão maior te amar.
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Começo
Eu me acostumei contigo, e foi tão simples que não pod e ser nada além de amor o meu hábito de te aturar. Você é tão difícil, às vezes. Contigo desenvolvo o meu lado mais tolerante, e por isso mesmo você é imprescindível. Não me envergonho de reconhecer que me aproveito do que você me proporciona. Você cumpre bem o papel ao qual te incumbi mesmo a contragosto seu. Eu te admiro tanto, se você soubesse! Ah, se você ao menos imaginasse que toda essa imagem superior que fazem de mim é apenas camuflagem para uma fraqueza vergonhosa que não existe em você – é meu refúgio. Se sequer você imaginasse que meu avanço aparente foi fruto sortudo de minha própria solidão, e que agora que você está perto, perdi a mania de querer estar sozinho. Se você ao menos desconfiasse duma ínfima porção da dependência que desenvolvi depois que você chegou, você me pediria perdão, pois não se julgaria capaz daquilo que é capaz já sem saber. E eu não suportaria ver você sentir-se menor, porque você significa tanto, que imperdoável mesmo seria eu te provocar esta mentira. E te amar me faz um bem danado, suportar em você o que geralmente muito me irrita em todo o resto compensa tudo, porque foi te amando que aprendi a me amar, a me suportar. Tento absorver de alguma forma esse seu dom de agüentar todos os meus maus tratos e voltar deles imune, de não se abater com meu sadismo insistente, e de cuspir sadismo em troca, sem descontos nem ressalvas comigo. Somos vitimas integrais, algozes impiedosos de nós mesmos. Ah, e que 45
teimosia a sua! Que quando te machucam, você ri na cara de quem te machucou, para só depois chorar no escuro a dor que disfarça. Que grande insistência essa a sua de parecer invulnerável, e pagar toda a minha violência exatamente com a mesma moeda. Você é tão difícil de lidar, contigo experimento a regra do retorno, tudo que te ofereço volta para mim em igual intensidade. Pois te amo por ter aprendido com você a perdoar o pior de mim.
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Fugaz
Mesmo o mais bem construído hábito satura. E te aturar tem me enfadado. Admirar-te já não é espontâneo. Olho-te e me vejo refletido, sempre. Todo mundo necessita de uma trégua de si mesmo. Se é melhor cada um pro seu lado? Não! Para os lados os reflexos se acompanham. Recuemos diante do nosso espelho, sigamos caminhos opostos. É o que nos convém agora. Me mostraste: por enquanto, preciso renunciar ao melhor de mim.
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Final
Outro dia estava lendo qualquer coisa e viu, de sobressalto, a palavra ultimato. Quando descobriu no dicionário, percebeu com algum orgulho próprio que estava imune a certo tipo de conflito. Só assim para não conseguir se comover com uma morte ou um abandono, ou mesmo uma traição, que também é tanto uma forma de morte e um tipo de abandono. Quando ela descobriu, era mesmo um pouco tarde. Acreditava que não havia algo no mundo que fosse absolutamente irreversível. E por mais importante que algo ou alguém se fizesse, nada era insubstituível – essa era a sua fórmula de sobrevivência. Não porque gostasse de frases de efeito. Coisa de coerência: não permitia dar a s i mesma muitas importâncias, por estar consciente de perdê las. Muito além de um derrotismo, tinha já observado que, por tudo ter que acabar, o mais honroso a se fazer era não mendigar a ausência dos finais. Por isso ela estava constantemente substituindo sua vida por outra vida, antes que a vida anterior acabasse. Covarde: uma coisa é aceitar um término, outra bem distinta é suportá-lo na pele. Ela era sensível demais, o que não deixava que se apegasse. Ou melhor, se apegava com tanta facilidade, que qualquer estranho já se tornava motivo para um sofrimento qualquer. Mas aquele rapaz, deus do céu, quem era aquele rapaz mesmo? Ela se perguntava pela terceira vez nas ultimas doze horas. E tentava se lembrar de algum momento assim bem denunciativo que lhe fosse capaz de apontar com segurança: apesar do nome e da profissão e do lugar de origem: ele era este rapaz. E só poderia não funcionar. 48
Quando achava que estava tomando uma atitude lógica, descobria o quanto a lógica é irônica. Então, por não querer sofrer com os finais, ela acabava tudo. E sofria, afinal, quem não sofre é mais infeliz do que quem sofre. Como formulasse uma filosofia a partir deste seu modo de proceder, ela não teria mesmo oportunidades para coisas drásticas. Pela terceira vez se decepcionou. Só então ela se deu conta do quão sério era seu grau de alheamento. Fez somente o que se espera de alguém traído: pôs numa balança os seus esforços e os esforços dele. Não conseguiu evitar o riso. Fizera muito por merecer. Mas que tipo doente de pessoa consegue conviver bem com o fato de, apesar da fidelidade e do carinho e do hábito agradável dos encontros diários, conviver com a ideia de ser trocada por outra desconhecida sem sequer a dignidade de uma advertência? Se ela pudesse dizer que estava sofrendo por algum motivo, o motivo seria somente esta falta de sinais indicativos. Não era sofrimento o que experimentava, era o peso da lógica irônica. No seu lado da balança havia afeto, apego e admiração por alguém que facilmente poderia lhe despertar apego, afeto e admiração. Do lado dele, no entanto, ela notava agora um amontoado de pesados sapos: enquanto ela amava um homem absolutamente amável, ele se sacrificava todos os dias um pouco para transformá-la em amante, com todas as imperfeições, principalmente aquela maior imperfeição de estar ela constantemente a evitar um f im que chegaria em tempo apropriado. Constatando que, afinal, a relação tinha sido para ela uma oportunidade de alivio, enquanto que para ele vinha sendo um exercício de tolerância, constatando esta enorme injustiça foi que ela admirou seu agora ex. E celebrou a existência da outra, e comemorou a mentira e agradeceu por 49
ter chegado meia hora antes do combinado. Ela se adiantara – então soube – não porque planejasse uma surpresa vã. Mimada e covarde, apenas não estava disposta a esperar ainda trinta minutos. Como a causa e o efeito de sua descoberta fossem o mesmo fato, e como essa relação, em última instância, fosse expressão máxima de sua filosofia, ela não poderia nem faria mesmo questão de alimentar uma indignação. Para evitar os desperdícios, deu cabo da seqüência lógica : toda traição tem por conseqüência um ato qualquer de fúria. E ela não sendo de dramas e não merecendo um centavo de piedade, não tendo direito algum sobre o lado dele da balança, não sendo de grandes atos, ela perguntou pela quarta vez: quem era mesmo aquele rapaz? Decepcionada, entendeu que isso não era despeito. Pesquisando em suas lembranças, deduziu, por obviedade, que não conseguia lembrar-se de quem era o rapaz com quem namorava há catorze meses porque todo este tempo estava pondo em pratica a sua filosofia e, apesar de saber sua altura e tipo sanguíneo e sorvete favorito e quantas vezes ele hesitava antes de entrar debaixo de um chuveiro gelado, ela fazia questão, há catorze meses, de manter o caráter meramente burocrático deste conhecimento. E porque ela já se habituara tanto em não insistir, soube que nada seria capaz de fazer. Foi quando finalmente o lado da balança dele fez tanto peso, que os cordões a sustentá-lo partiram-se. Ela balançava, do seu lado, agora leve, sem o peso de uma relação e sem a ira contra uma traição. E já que se tratava de mais um fim, e já que ela nunca conseguiria tocar o coração de alguém porque tinha uma filosofia, pendia a seu lado, arquitetando a melhor maneira de terminar a próxima coisa que acabaria para ela. 50
Desamparo
Quando eu chorei à porta da cozinha, não era bem tristeza, ainda que o rosto molhado fosse inconfundível. É que por acidente tocou a nossa música e eu não consegui responder que “sim” ou que “não”. Tenho este problema horroroso de me esquivar, e quando me perguntaram sobre você, só consegui dizer “ainda”. E de repente eu me vi, pela primeira vez desde você, pela primeira vez em muito tempo, falando de você na terceira pessoa. Eu acho que chorei por pura gramática. Um dia me disseram que amor que é amor dura para sempre, que se acabar, jamais fora amor. E isso é tão injusto comigo. Mas eu fingi acreditar quando me disseram. Ora, é isso que se faz, não é mesmo? A gente finge que acredita, finge que ouve, finge que não liga. Amor é renúncia, me disseram também. Nisso eu creio sem motivos. Porque só consigo amar me privando, mas você não tem nada a ver com isso. Então lembrei que eu tinha um copo d’água na mão e que tinha gente no quarto e que eu, meu deus!, não estava em casa, e que meu pranto me sabotou. Mais forte do que a música fora a coincidência: a playlist da dona da casa estava no aleatório. Mais pelo golpe do que pela consciência, eu chorava com um copo d’água na mão, só pra não dizer “vou à cozinha chorar um pouco”, porque isso a gente não diz mesmo. A gente só faz e finge que bebeu água e se renuncia outra vez. Não é amor o que eu tenho? Então por ter enfim, e a despeito do que eu queria, o frio na barriga sumido eu não amei nunca? Eu lhe garanto que sede não era o que me 51
segurava em pé com o copo na mão. E se eu disser o que era, toda vez que tentar, vou mentir. E, se acaso não mentir, vai ser injusto, porque não há nada que redima um coração desligado sem motivos. Eu não sei o que me fazia doer mais, se era o fato de ouvir a música mesmo da cozinha, ou se era a luz do dia pela janela zombando da minha postura. Você não tem a menor culpa do dia estar nem tão quente nem tão frio, e ter nuvens boas que tapam o sol mas não escurecem a rua. Coincidências, só pode ter sido isso: assim como aquela música tocou naquele preciso momento, agora algo desapareceu e não importa quando, já que, ou hoje ou em cem anos, teria sido uma infâmia sempre. E a culpa é minha e eu sou inocente. Quando eu me lembre i de você, depois de uma noite de febre, me decepcione i tanto. Amor não é pra se lembrar, é pra não esquecer, outra coisa que também já me disseram. Então eu coloquei a culpa na febre e na dor de cabeça. Mas segurando aquele copo d’água eu me dei conta de que meu choro era somente outro esforço desesperado para continuar me lembrando de você. A febre fora só uma doença comum, sem significado superior algum. Isso eu temo com todas as entranhas. Que esse amor até hoje tenha sido apenas uma febre. Se for esse o caso, nunca mais terei coragem de me permitir amar ninguém, porque não é caridoso você só conseguir passar adiante uma doença. E depois você se cura, e aí? Espera a próxima, que vai durar menos porque seu sistema fica mais e mais resistente a cada vez? E se meu amor for mesmo de febre, só conseguirei ser feliz quando finalmente me disserem que amor é para sempre mesmo quando acaba. Mas isso ninguém diz porque é doloroso demais. E, afinal, meu choro à porta da cozinha alheia era tristeza.
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III REFRAÇÃO
“[...] então o que eu pergunto, se não somos o extremo menor desta cadeia de movimentos dentro de movimentos, o que eu gostaria de saber é o que é que se move dentro de nós e para onde vai [...]” Em A Jangada de Pedra, de José Saramago
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Refração
Sinto um ciúme infundado e totalmente justificado. Porque muito me afeta um qualquer ser que não seja meu, mas que me pertença por pura e simples clandestinidade afetiva. E quanto mais não possuo o que tenho, mais vejo que não possuir é a melhor forma de tê-lo. O ciúme vem deste impasse fundamental: o que é meu só o é por esta nomeação que lhe dou, e o que não é meu não o é por pura falta de algum motivo essencial que me impulsione a declará-lo como tal. De modo que, de um jeito ou de outro, nada tenho, felizmente. Ter é, por definição, não possuir. O ter é aquele estado retórico convencionado publicamente, não significa nada. Possuir vai além, transcende, por não mover uma palha exterior. Tudo que possuo existe tão somente no meu labirinto interior, que é calmo e monótono, cuja entrada é guardada pela esfinge enigmática, mas permissiva, que releva qualquer resposta absurda para os seus enigmas mais elaborados. Sendo assim, possuo infinitas coisas que não me pertenceriam por meios lícitos ordinários. E o fato fatal de afirmar que os possuo os destitui automaticamente de minha posse, por estarem se tornando públicos. Com alguma sorte e muita insistência, minhas posses, depois de hoje, me abandonarão, por terem virado convenção repetida e difundida. Eis o meu modo, desesperado e melodramático, de dizer que estou farto de carregar comigo este ciúme infundado e justificado. Tenho pra mim que a maneira mais efetiva de livrar-se de um incômodo é repetir suas causas diversas e irritantes vezes, de modo que a ressonância faça o trabalho de limpar o sentido que se faz do incômodo, feito piada sem graça, feito 54
palavra esquisita, feito música marcante. É conselho dos mais velhos, escutar mais, falar menos. É explicação para a anatomia, ter dois ouvidos e apenas uma boca. Tenho dez dedos, devo escrever mais do que ouço, muito mais do que falo, mas nunca, jamais, devo escrever mais do que sinto. Meus incontáveis poros vencem de lavada a mediocridade de uma dezena de agrupamentos de ossos articulados. Pretendo ser constantemente assim: falar pouco, ouvir menos ainda e sentir muito. Dor, prazer, frio e este ciúme que incomoda e preenche. Incomoda por não ser meu, já que a partir de agora apenas o tenho, não o possuo. Preenche porque há muito pretendo que se faça minha posse este qualquer ser que sequer terei realmente. É bem simples, existe um paradoxo. Pra que a convenção pública fosse possível, teríamos de ser, em algum grau, semelhantes em realização, mas sermos, em outro grau, distintos em forma. No entanto, somos, eu e este incômodo que me provoca ciúmes, de tal forma tão idênticos, que jamais nos repeliríamos, e, por outro lado, há entre nós uma disparidade tão óbvia, que nunca nos atrairíamos. Ou vice versa, esta coisa de opostos e magnetismo não é tão evidente. Se a Física explicasse tudo, eu seria infeliz, por não poder pensar que a questão é simplesmente resultado de um capricho de qualquer força superior que me colocasse em lugares errados nas horas exatas, ou que me apresentasse a melhor maneira do pior modo. Assim, só posso presumir que este incômodo tem a única finalidade de me provocar o ciúme, pra que eu possa sentir-me desligado dos fundamentos científicos banais que, travestidos de lógica depois de alguma recorrência e aceitação maciça, todos insistem em esfregar na minha cara. Gosto da sensação de estar acima do que não tem começo nem fim, o que não me faz, contudo, sentir superior a isso tudo. Sentir-se maior do que algo, por mais grandioso que o algo seja e independente da amplificação que a comparação provoque, é ainda limitar-se. Não afirmo que 55
não ter dimensão seja algo sublime, ao contrário, suponho que seja o pior castigo a qualquer coisa; seria como não existir, só que em excesso. Existir pressupõe uma limitação qualquer, um não poder, um bastar, um não ser suficiente, um acabar. Só que comparar-se com algo é colocar-se, inevitavelmente, num estágio inferior ao algo comparado, mesmo que a comparação lhe seja favorável. É admitir que há algo em si que não está no lugar certo, está no outro quando deveria estar em si. Preciso fixar bem essa ideia: me comparo por julgar meu o que vejo no outro. Porque deve ser mesmo este o motivo do meu ciúme, o ponto que o justifica. O meu possuir não me basta neste qualquer ser que me incomoda, julgo intimamente que nele existe a potencialidade do meu ter, de tê-lo, e, no entanto, ele não dá vazão a esta potencialidade. Não deixa de ser uma inveja indomada e jovem, o que torna o ciúme ainda mais insuportável. Este qualquer ser que me incomoda tem a habilidade de esconder-se por eras e voltar em milésimos de segundos, mostrando-me, com uma placidez insuportável, a mesma figura de eras atrás. E eu, que envelheço a cada momento que não passa, a cada instante que perpetua-se inerte, eu que estou constantemente criando uma nova ruga pra todo suspiro de alívio que dou quando lembro de ter esquecido o incômodo, eu ainda me assusto com a denúncia que sua figura me traz: a cruel ilusão de que jamais vou superar este incômodo. E ainda pior do que esta ilusão é o fato incontestável, cabalmente provado pela sua figura sempre fresca na minha mente, de que este qualquer ser, a despeito do todo o meu impasse ter/possuir, me sorr i indiferente, por sequer cogitar que me provoque qualquer inquietação. Falando assim, o incômodo parece tratar-se de alguém, alguém que pudesse cogitar algo. Não é. Aliás, é alguém, mas nem é também. Que o incômodo existe, isto é fato. Que o ciúme se instala, isto está claro. O que não compreendo é como este qualquer ser, que só é alguém por eu dar-lhe um nome e uma casca, se me confunde comigo. 56
Eis o infundamento deste ciúme: não se pode trair a s i mesmo. O ciúme é apenas aquele momento em que se verifica a iminência da perda de uma posse, não de um ter. Se possuo o algo, não o posso perder pra mim mesmo, uma vez que perder para mim significa, em conseqüência lógica, ganhar para mim. De modo que meu ciúme vem de lugar nenhum e gira em 360 graus. E mesmo isso não é motivo para alarde. Posso perder o que possuo, mas não posso ter o que possuo. Para a realização plena da posse seria necessário uma reciprocidade mínima deste qualquer ser que me incomoda. Não há. Ou melhor, há sim, mas não da forma ideal para que me impulsionasse a proclamar publicamente o meu ter do incômodo. É sempre pouco demais. Me apego a sensações tão ínfimas que venho sofrendo de uma insatisfação crônica. Mas já aprendi que a maneira mais fácil de livrar-se de uma dor constatadamente incurável é subjugá-la com outra dor maior que a oculte, que torne secundária a primeira dor. Preciso abandonar esta mania inútil de me contentar com migalhas que disputo com os pombos de toda praça, e me fartar em quaisquer atos que me libertem deste qualquer ser que me incomoda, para que o ciúme, ainda que venha sobre os atos compensatórios, seja menor o suficiente para que mais este incômodo me passe despercebido, para que fique secundário, recluso em qualquer lugar que o abafe.
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Recado
Avisa a ele que todo dia tem gente nova por lá. Diz que, uma hora ou outra alguém vai reparar. Não é possível, não pode haver tantos cegos. As pessoas ainda prestam atenção. Só porque ele não se acostumou a movimentar o olhar, não significa que o mundo inteiro seja bitolado. Avisa também que ele precisa ir mais cedo, e com mais calma, que é pra dar tempo de todo mundo se habituar com ele, e também não ficar aquela coisa apressada, desesperada; afinal de contas, demonstrar insegurança não é muito convidativo, e todo apressado não prova ser muito seguro. Tem ainda a questão da aparência... Pede pra ele não carregar muito nas cores, tons leves são sempre mais receptíveis. Há muito já se notou que contraste demais ofende. Entre duas coisas, até que não... Mas contrastar tudo com tudo é exagero. Exagero é sempre prejudicial, principalmente nesses assuntos. Diz ainda que não apareça com cara de sono, nem de olhos arregalados. Feições fortes espantam. Que não faça muito barulho, seja calmo e silencioso. Que observe tranqüilo, e, se tiver sorte, alguém vai parar na frente dele. Diz ainda que não precisa ficar esperando muito ansiosamente que parem, isso é motivo pra nem lhe perceberem. É preciso ser tranqüilo. Mas é como eu disse, é muita gente que circula por ali, e não pode haver tanto cego assim junto. Nem ele pode ser assim tão invisível. Avisa ainda que é pra ele não se mostrar demais, se expor. Abrir se é perigoso, deixar à mostra é ficar vulnerável, e por mais cara de mau que ele tenha, ninguém vai acreditar que ele não seja vulnerável, se estiver todo predisposto. Eles 58
procuram segurança, e ninguém muito extensivo é de todo confiável. Mas alguém há de reparar nele. Não é possível! É gente demais, há de ter quem repare. Só que é preciso que ele seja mais ponderado. Diz pra ele não falar demais, pra não dar muito nas vistas, não demonstrar o que ele procura. Um suspensezinho é instigante. A curiosidade não mata gato nenhum, isso é bobagem. Só que não há gato que vá fuçar em casinha de cachorro! Não pode sair assim mostrando os dentes pra quem passe na frente, se é que você entende o que eu quero dizer... Ele tem que ficar meio ocluso, assim, um tanto dissimulado até, por que não? Não mentir, ocultar. Às vezes um segredo é mais seguro do que várias verdades. Não é pra ele se anular, claro que não. Só pra se camuflar... Feito camaleão, se adaptar ao tronco no qual se apóia. Isso traz mais durabilidade. Diz a ele que não se desespere, não. Tem muita gente por lá, não pode haver tanto cego num lugar só! E se ele insiste em chamar de cego quem não o vê, conta pra ele que cego é ele que não vê que tá todo desajeitado... O pessoal não leva a sério quem não se encaixa, quem fica desse jeito, assim, todo estranho, cheio de opiniões, de preferências, de marcas pessoais. Diz pra ele que ele tem que se encaixar; tá muito rebelde, muito alternativo. Faz o seguinte: diz pra ele vir falar comigo, que eu ensino a ele direitinho como ele precisa ser pra que o pessoal o veja. Não é possível, não há tantos cegos assim num lugar só. Ele que não se apresenta da forma mais visível.
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Névoa
E como recuperar dois dias inteiros, sem saber onde ficaram? Em que parte do caminho atrás de mim estarão eles, soltos em meio a esta névoa na qual venho envolvido já há algum tempo também perdido? No meio do caminho de uma quarta-feira descobri que já a sexta se ia acabando sem que eu percebesse, sem que ao menos minha noção de tempo fosse de algum modo relevante. Tem ideia do quanto isto é melancólico? Essa coisa de o tempo passar a despeito de nós o contarmos. Eu tenho a impressão de que se o homem jamais tivesse inventado os números, nós seríamos um pouco mais tranquilos. E o maior erro foi aplicar a ideia abstrata de contagem a outra ideia impalpável de tempo. Depois disso, nada foi o mesmo. Do contrário, eu não estaria tão incomodado em ter perdido dois dias, o que, se parar para pensar, não significa nada. Em termos práticos, dois dias são quarenta e oito horas nas quais qualqu er coisa pode acontecer – e se nada aconteceu, o que está incluso nas possibilidades, por que lembrar dessas horas? Mas é que geralmente muitas coisas acontecem. Só que medir os acontecimentos tomando como parâmetro um número duplamente intangível me parece pouco, tão pouco que se torna muito importante. Mas vejamos ainda, será mesmo que é o tempo o que contamos quando nos lembramos dos dias que vivemos? Porque, veja só, não importa o quanto me digam sobre como o tempo passou independente de eu não lembrar de ele ter passado, eu não vou ter envelhecido dois dias agora, simplesmente porque eu não me recordo. Eu me poupei dois dias inteiros? Será 60
que isso pode fazer bem? Então deve haver uma resposta simples, e por esta razão totalmente ignorável. Quem conta o tempo são os calendários. Eu, pelo menos, posso começar a acreditar agora que não estou contando tempo, mas memórias. Isso me soa tão óbvio que posso até me desculpar por esta perda de tempo, com certeza algum filósofo já escreveu isso. Mas a repetição seria também uma forma de ganhar ou perder tempo? Se eu não me lembro, de que valeu então? Me lembrei daquela pergunta básica de primeira aula de Introdução à Filosofia: se uma árvore cai no meio de uma floresta e ninguém a vê nem ouve, a árvore caiu de fato ? Sim, com certeza, o mundo respira a despeito de eu saber disso. Ou não? Será? Mas por que eu vim parar nesta pergunta mesmo? Acho que estou começando a me contradizer, uma hora digo que só o que existe é o que lembro, e depois falo duma árvore abstrata numa floresta fictícia. Deve ser a força do hábito. O que faz uma pessoa esquecer dois dias inteiros é o que me incomoda mesmo. Da quarta para a sexta, nada aconteceu? Seria isso possível? Será que sequer um galho seco não despencou de um carvalho no mundo inteiro em dois dias? Mas outras coisas caíram e eu soube. Como, por exemplo, o centésimo copo de vidro que quebrei. O silêncio no qual as coisas se escondem dentro desta névoa me irrita um pouco. Tenho pra mim que a névoa é uma forma desesperada de ser invisível, tão desesperada que se contrai, e torna-se, senão absolutamente visível, ao menos divisável. O que atrapalha a visão, claro, o invisível existe para não ser visto e a nevoa quebra esta lei. O copo de vidro também. O vidro é tão mais concentrado, que seu desespero torna-se frágil, quebradiço.
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Um copo de vidro dentro da névoa é um insulto imperdoável, a névoa torna o vidro outra vez invisíve l contra sua vontade, o que contribui para os acidentes. Noventa e nove copos eu quebrei, e em cada uma dessas vezes eu me enfureci por não poder ver o copo dentro da névoa. Noventa e nove vezes perdi a oportunidade de ver o que era divisável mas estava invisível por estar sobreposto a algo que se tornara também divisável. Mas na centésima vez tive uma surpresa, e não xingue i ninguém quando o copo se desfez no chão. De repente eu vi, sim, na névoa insuportável eu vi que um copo quebrado é o retorno à paz. Porque quando fui tentar juntar os cacos, percebi que não poderia juntar os cacos que agora estavam realmente invisíveis, porque o vidro se descondensara. Era como se o copo tornasse-se agora também parte da névoa que eu jamais poderia agarrar com as mãos, embora ela estivesse tão solida em meu redor. E por assim dizer eu julgo que fui me conformando com o fato de não enxergar nada por estar enxergando tudo. E por assim dizer fu i aprendendo a caminhar por entre a névoa, e por algum motivo não me preocupei mais em pisar nos cacos que não poderiam me ferir, pois de cacos passaram a gotículas, tão miúdas mas tantas, que jamais me cortariam a pele, embora me embacem a vista. Então, por não precisar mais me preocupar, eu segui e perd i a noção do tempo. Na verdade, não bem a noção do tempo, mas vale a analogia. Eu abandonei mesmo a noção do espaço. Deve ser por isso que perdi sem perceber dois dias inteiros, fui caminhando e caminhando, e na névoa o caminho não é divisável como um copo de vidro em dias claros. Na névoa o caminho só pode ser nevoento como a névoa, e por esta razão nunca se sabe bem quantos passos já nos afastamos do começo ou a quantos passos estamos do 62
fim. No mais das vezes, julgo mesmo que não haveria fim e por isso não parei de andar. E quando finalmente a névoa se desfaz por um instante é que percebi como estava enganado sobre o quanto andara, para mais ou para menos. Provavelmente eu andei dois dias a mais do que meus pés, e provavelmente muita coisa de fato aconteceu durante quarenta e outro horas de névoa perdida. Quantas árvores não foram derrubadas sem que ninguém soubesse, e quantos copos de vidro mais se despedaçaram e se misturaram à névoa. E, mesmo, para quê tentar recuperar dois dias, quando pode-se tentar não perder mais dois adiante? Certamente não serei capaz de delimitar quantas coisas aconteceram em quais momentos, não conseguire i organizar a memória cronologicamente. Mas quem faz isso é o relógio – que não tem muita utilidade numa névoa. A memória serve para coisas mais importantes.
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Reflexo
Hoje de manhã eu acordei e demorou um tempo pra eu me lembrar onde eu estava. Aí a vista foi clareando e eu fui reconhecendo o lugar. Esse mínimo instante de amnésia fo i tão bom. Depois eu vi que estava no meu quarto mesmo, feito ontem e antes de ontem e desde sempre. Estava amanhecendo ainda, eu quase nunca acordo cedo, sempre depois do meio dia. Aquela luz fraquinha quase deixou o lugar diferente. Veio uma alegriazinha bem estranha. Eu não reconheci o quarto. Ou reconheci, mas era tão bom vê lo diferente, que era quase como se eu mesma fosse outra, mais amena e suave. Só que o sol foi subindo, e a minha vida foi voltando. Entende? Eu fiquei quase outra, e o sol me tirou isso, me mostrou meu quarto, aquele lugar de todos os dias. Será que você já sentiu isso? Esse gostinho do novo, e quando você se prepara para engolir vem a memória e te abre a boca e tira o gosto à força. Era fresco, suave. E eu não consegu i mais dormir. Bem, eu acho que mesmo você também não conseguiria voltar a dormir depois de um desgosto instantâneo. É bem isso que eu sinto, sabe? Estou desgostosa sem saber o que fazer, o que dizer. E parece que quanto menos eu tenho a dizer, mais eu falo. Por favor, não se canse de me ouvir, tenha paciência. Você é minha única esperança. De resto, não sobrou ninguém. Eu acordo todo dia no mesmo quarto de sempre e sempre só. Parece que o mundo inteiro está despovoado e cabe todo aqui. Você percebe essa gravidade? O mundo inteiro sou só eu, deitada e ausente 64
naquela cama que já está carimbada com a forma do meu corpo. Eu me levanto e vejo lá o espaço vazio no formato de mim e é como se eu mesma me estivesse abandonando no meio do mundo inteiro desértico do meu quarto. Só me sobra você, entende? A minha sorte, a minha salvação é você. Meu último refúgio é você. Nunca me deixe! Não se canse de mim. Só tenho você e é até triste eu reconhecer que, não fosse você estar aqui bem na minha frente, eu não teria ninguém, porque mesmo essa necessidade de eu me expressar com alguém não é suficiente para que eu me sentisse disposta a ir muito longe por alguém. Não se canse de mim! Você é quem me tira desse mundo vazio. O único motivo que me faz querer levantar da cama e arriscar reabandonar-me sempre é saber que aqui do lado, quando eu abrir a porta que há dentro da porta desse meu vazio mundo, você está sempre aí, logo acima da pia, entre escovas e xampus, a refletir comigo tudo o que digo, todo o meu anseio. Não me abandone!
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Socorro
Mas apesar de tudo, preferia acreditar que algo muito impressionante fosse acontecer de repente. Nem era tão chegado em histórias de super-herois, até porque não achava atraente que somente uns poucos privilegiados detivessem em suas fantasias a possibilidade de mudar o mundo. No entanto, quem nunca sonhou em ser salvo talvez não saiba o valor do alívio. Portanto, era quase uma necessidade vital atribuir a qualquer um, a qualquer coisa, a condição de seu herói. Sem peito de aço ou supervelocidade, lento e fraco que fosse, mas um heroi corajoso o bastante para lhe dizer que seu destino não está escrito, mas sendo escrito. Como aceitando, cada dia um pouco mais que realmente era questão de destino, tentava agora suportar o fato de não saber – ao passo que escrevia – qual era o seu destino. Um quase escritor desesperado, perdido entre as letras que tentava organizar inutilmente, por falta de inspiração, ia vagarosamente posicionando cada pedaço de seus quereres em sequência, de modo a formarem uma unidade lógica. Quase sempre interrompido por pontas soltas e rachaduras, seu mosaico não parecia formar figura alguma. Cansou das metáforas, foi então que passou a querer ser salvo. Mas salvo do quê? Perguntava-se ao mesmo tempo em que ia identificando dolorosamente, e com delícia, que o perigo que corria consistia unicamente em permanecer sem uma salvação qualquer. Querendo sair de onde estava pelo perigo em si de estar onde se está. Pensou bem. Sim, é possível uma mudança. Mas como chegara a esta conclusão tão obviamente quase agressiva, jamais entenderia. Porque, 66
apesar de esperar que as coisas impressionantes lhe tirassem de sua aparente inércia, nunca lhe passaria pela cabeça constatar que se tratava de um ciclo vicioso: estava esperando ser salvo pelo fato de ainda não ter sido salvo. E quanto mais não lhe salvassem, mais ele precisaria de salvação. A lógica das coisas óbvias é tão difícil de decifrar, que cansamos dela e passamos a nos preocupar com coisas mais elaboradas, vazias em essência, mas tão mais volumosas, mais palpáveis do que a lógica. Ia percebendo cada vez mais involuntariamente o valor de ser simples, que sua nova e inédita simplicidade era tão legítima a ponto de não lhe permitir descobrir os motivos que lhe estavam levando a ela. Cada vez mais crente de que as coisas impressionantes que ansiava eram muito mais próximas do que a própria ânsia emanada de seu peito, cada minuto mais próximo de não precisar ser salvo lhe dotava de um superpoder quase inalcançável: o de conhecer-se a si mesmo sem se fazer qualquer pergunta. Sem indagar, nem questionar, apenas esperando um herói, foi que conseguiu finalmente ser salvo de sua própria armadilha. Passou então, impressionantemente, a admirar os super-herois de mentira, esses de tal modo simples a ponto de serem os próprios inimigos e jamais serem derrotados pela autoestima. Via com fascínio: o pior veneno para o super extraterrestre era a única substância que viera junto com ele de seu planeta. Via isso, mas não pensava nisso. Era bom apenas não se sentir tão sozinho nessa batalha constante de não ser vilão. Pois os vilões jamais admitem que precisam ser também salvos. Foi bom saber, também uns poucos privilegiados guardavam nos seus disfarces o seu pior inimigo, e o venciam. De repente, algo impressionante aconteceu. 67
Cicatriz
De pé diante do espelho, apertou bem o punho direito, e como certificando-se de que aquilo não se resumia a uma vontade, fez mesmo questão de sentir a dor das pontas geladas em sua palma enclausurada. Era quase um prazer aquela dor. Só não o era completamente porque sentir um prazer agora seria um contrassenso. Noutra época, tinha imaginado para si um grandioso momento e não nutria ilusões: o momento precisaria ser ruim, sem qualquer tipo de compensação, para que seu esforço valesse de algo. E tudo o que mais queria então era algo valioso para sentir-se outra vez humano, pois, apesar de não lembrar quando, tinha aprendido que nós criamos noções de valor arbitrárias para, assim, fazer com que as coisas não pareçam tão arbitrarias. A crueza da vida sempre o espantou. Não foi com tranquilidade que ele recebeu a implacável noção do óbvio no dia em que negou a uma mulher faminta um pão que ele não comeria, mesmo também estando com fome. E porque há de se ter fome é que comemos, e se não o fazemos, morremos, e se morremos sem tentar não morrer, acabamos com um dos sentidos que damos à vida. Ele achou que o melhor mesmo era ser arbitrário e procurar valores para enganar o obvio que tanto incomoda o estômago. Ou mesmo era outra noção grave de duplo padrão que o assombrava, já que, possuindo ele um pão velho que não comeria, negou-o por mero hábito ou por pura descrença na mulher. Depois do quê, fora à despensa apanhar um pacote de biscoitos o qual desperdiçara a metade. Então a fome não é a mesma para todos, ou não urge com tanta 68
intensidade em uns quanto em alguns, ou mesmo ele apenas sofria da fome fútil que não mata se a deixamos viver. Mas, afinal, era uma noção de realidade preciosa o que lhe fazia apertar a chave com força dentro do punho. Queria evitar estar lúcido, essa lucidez que o tornara guloso e egoísta e que não lhe fazia bem. Tentou lembrar-se da última vez em que tinha posto em prática sua juventude ainda pela metade, mas tudo o que lhe vinha à cabeça era o pedido negado àquela mulher que podia estar por um fio e ter naquele pão a salvação – não para a fome, que desta nunca estaremos salvos –, mas talvez a pudesse ter salvado de um completo desamparo dos que só podem concluir, por tudo o que vivem, que a esperança não compensa, nem jamais compensará, porque sequer um pão estorvado lhes cai nas mãos em súplica. Por não ter pensando em nada disso ele descobriu que seu único modo de exercer sua juventude até agora fora através da leviandade. E mais essa noção clara outra vez o incomodou, porque ele se esforçava demais para que sua lucidez não absolvesse sua pouca idade. Por saber-se leviano e incapaz de esconder isso de si mesmo, ele forjava uma alienação que lhe dava força maior para apertar entre os dedos a chave que, sem jamais conseguir, tentava penetrar no vigor de sua pele nova. Ele e sua pele e seu punho e seu forte instinto de autopreservação sabiam que aquela chave não seria motivo de sangue. E mesmo que sangrasse, seu corpo ávido por regenerar-se o privaria logo de uma dor tão necessária. Então procurou no rosto uma marca que lhe desse motivos para acreditar que estivesse perecendo pelo tempo, mas sabia que era cedo demais e que, no máximo, aproximando bem os olhos ao espelho, bem capaz seria de encontrar, com sua retina joven e a total transparência da gelatina, uma minúscula imperfeição no vidro que o refletia. 69
E como de fato encontrou um sutilíssimo arranhão, com sua pupila enorme quase encostada ao espelho, brincou de imaginar que, ao invés do objeto, aquela cicatriz era sua por estar, ainda que provisoriamente, estampada em sua imagem. Não brincou por muito tempo. Uma náusea o tomou ao perceber que, encontrando-se no espelho, a ranhura estaria em tudo o que refletisse, e a ideia de que uma cicatriz pudesse ser compartilhada o constrangeu. Acreditava que ganhar cicatrizes, ao invés de ação acidental, tratava-se mais de uma genuína atitude de amor próprio. As marcas serviam para que uma pessoa soubesse que se amava a ponto de se marcar para sempre com cada gesto de autoafeto. Chorar, assim, ao invés de um pedido de socorro, passava a ser uma celebração do corpo e da dor e da avidez. Porque, de algum modo, nós, que nos consideramos seres tão psicológicos, não suportaríamos jamais sermos totalmente abstratos, e precisamos dessas atestações físicas para sentirmo-nos reais. O que é isso? Ele perguntou-se, olhando para a palma da mão, onde se viam a chave quase engastada na carne e as marcas da pressão da matéria contra a matéria, marcas rasas e que apenas ardiam. Então é isso que existir é? De certa maneira, ele não se convenceu de que não ser abstrato se resumia a um ardor na palma da mão e um desejo de cicatriz na memória. Passou a chave para a esquerda e repetiu a brincadeira, enquanto tentava encontrar novamente o arranhão do espelho. Nesse ínterim, calculava quanto tempo mais teria de viver até ser físico o bastante para sentir-se real. E se eram cicatrizes o que ele precisava para sentir-se vivo o suficiente a ponto de tocar-se e acreditar que aquilo que sentia era seu si mesmo, se era uma coleção de marcas o que lhe garantiria a sensação de pertença, teria ele de ir lutar numa guerra, ou algo do tipo? Se fosse assim, estaria perdido, porque tampouco possuía um espírito de luta assim tão rigoroso. Tudo de realizáve l 70
que sua abstração conquistara até então era um anseio quase selvagem de não ser apenas uma mente que pensa. Só o que obtivera como resultado de seu pensar fora a descoberta e a constante reconfirmarão de sua lucidez implacável, prova de que ele sabia de si. Mas o saber de si só adiantaria realmente quando aplicado a algo palpável. De modo que ele cultivava a ideia fixa de que precisava envelhecer o quanto antes. Apenas assim suas chances de se privar das abstrações seriam mais preponderantes. A mulher a quem negou o pão velho era mesmo a prova desta teoria, pois se, naquele dia, ele já fosse velho e, portanto, verdadeiramente faminto, não teria tido tempo para pensar. A fome atormentando um corpo já atormentado por estar gasto demais teria sido o modo pelo qual ele, que hoje só existia porque sabia disso, teria passado a existir por ter fome e dor, o que o teria deixado, assim como aquela mulher, dependente de um pão velho e do dono do pão velho. Então seu corpo não mais lhe pertenceria, mas ao dono do pão que lhe negaria, pois existir também é uma renúncia. E porque seu corpo não seria mais seu é que ele seria dono de si como jamais fora, já que uma posse pressupõe a luta entre quem possui e quem quer passar a possuir. Empenhado em se pertencer, ele poderia então cobiçar, de porta em porta, o pão negado, e cada vez que lhe negassem, estaria um passo mais próximo de sentir uma fome e uma dor mais reais. Dor não apenas de fome, mas desamparo e da angústia de quem estaria, a cada pão negado, um pouco mais distante de uma esperança. Queria logo estar velho e desesperado, para finalmente poder desejar essa redenção essencial. Sua juventude lhe parecia um desperdício enorme de esperança e pães, desperdício tão injusto, que quase se esqueceu da força com que pressionava a chave em sua mão. Liberou a pressão num sobressalto e sentiu o meta l 71
agudo descolando-se da pele tรฃo elรกstica. Levou a palma para bem perto dos olhos saudรกveis e viu que quase tinha perfurado a impermeabilidade de seus poucos anos. Um ponto vermelho quase sangrou. Lanรงou a chave longe, com a forรงa de um rapaz contrariado.
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Grito
Quem nunca chorou não conhece na pele o frescor duma brisa a evaporar-lhe a lágrima. E já tão cedo aquela menina três lugares à minha frente parecia ter aprendido a viver. Antes de eu próprio aprender, não costumava reparar nessa mudez aguda do lamento. O choro da menina era alto e, por isso, mudo e, por isso mesmo, ensurdecia a meia dúzia de passageiros. Se julgo que aprendi a viver é só porque tenho enxergado através do meu choro a lágrima alheia, e aquele seu grito intermitente me fora a prova definitiva de que por trás de toda cortina d’água há sempre uma gruta mais úmida e mais intensa, e de que, mesmo que eu não conseguisse, ao menos não mais temia cruzar a entrada da minha própria caverna. Era nítido o incômodo. Tínhamos subido no mesmo ponto, eu, ela e a mulher que a carregava. Eu observara o esforço constrangido para cruzar a roleta junto com a criança que ainda não era gente o bastante pra cobrarem-lhe uma passagem. E agora que posso contar o caso daquele grito, posso também afirmar, sem medo dos julgamentos, que não me arrependo de não tê-las ajudado. Desde a travessia, a menina chorava, seus dedinhos ficaram presos dura nte o giro. E então eu descobrira a injustiça: a humanidade da criança reverberava pelos metais do ônibus. A sua humanidade excedia, incômoda, aquela meia dúzia de pagantes dali. Um dia me haviam dito que era preciso ser alegre pra enxergar os fatos. Mas os fatos são translúcidos. Quando minha filha me deixara pra lidar sozinho com a 73
transparência de sua falta, percebi que tentar enxergar os fatos não compensa. Havia uma verdade mais densa denunciada no grito daquela menina no ônibus. Se me perguntarem se era bela, eu lhes responderei que sim. Tinha a beleza dolorosa de quem vive, de quem chora. Seu rosto não me mostraria nada que eu já não soubesse, havia mesmo mais sobre ela ecoando em toda a superfície do veículo do que eu pudesse enxergar nos traços frescos de sua face. Em certo ponto o choro cessara, virara soluço exausto, ofegante. A tranqüilidade sussurrou entre os passageiros. Era insuportável. Cogitei, sim, me aproximar mais um pouco, sentar no banco imediatamente atrás do dela, dar-lhe um beliscãozinho para lembrar-lhe a dor, e repetir o ato sempre que ela se acalmasse. Estava viva, afinal. Eu estou vivo, afinal. É preciso suportar a espera de quem não va i voltar, chorar a vida que ficou – no grito da menininha –, chorar pelo silêncio que se foi. No entanto, e para o meu alívio, o alívio dela não durava muito. Se me permitem mais uma analogia – pra que a minha história não seja abortada no meio do caminho –, a memória é uma lavadeira traiçoeira, nos torce até a última gota pingar, até estarmos apenas úmidos e podermos ser expostos ao sol: a prova de fogo. Uma arrancada mais forte, ou então se o ônibus freasse de chofre, enfim, quase todo movimento reavivava o grito dela. E essa intermitência fo i o que arrastou a viagem por séculos a fio. Parava-se num ponto, a mudez aliviada. Subidos todos os que esperavam, a arrancada e de novo o grito. Calma e grito, calma e grito. Mesmo agora, contando isto, não sei onde estou, se parado esperando que subam, ou se em movimento, correndo contra o choro. Sei que estou indo pra casa. E tivesse sido isso há algum tempo, não me interessaria. Mas ela se foi, 74
nos meus braços e silenciosa. Foi-se como os que desciam do ônibus, aliviados, enfim o silêncio e o conforto da proximidade de casa, a morada à vista. A meia dúzia de gente se esvaia, ficamos sós, eu e a menina no colo de uma mulher. O grito era então cada vez mais baixo, mais conformado, a dor se ia passando, a memória se ia abrandando. Mas o grito ressoava ainda, impresso de alguma forma nas paredes do ônibus. Aflito e nervoso. Vivia, mas parava de chorar. O consolo era a lágrima que corria no rosto, e ao expô-lo à janela, o frescor viria certo, junto com a visão do caminho de casa. Mas ainda era cedo pra descer e encontrar minha filha. Verifico, com alguma tristeza – essa que me faz chorar –, que há ainda alguns pontos até o meu final. Porque eu aprendi a viver.
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IV ESPECTROS
“Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e o chamaram de Aquele Homem. Não tinham mentido. Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer ‘um rosto bonito’, mas quem disser ‘o rosto’ morre, por ter esgotado o assunto.” Em O Ovo e a Galinha, de Clarice Lispector
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Espectro
Minha própria companhia me chateia dizendo verdades. A companhia alheia não basta. Clarice me instiga, mas verifico-me entre um fato sonoro anterior e outro que ainda está por vir, e o sussurro, que muito me interessaria, não ouço. Um silêncio incômodo grita agudo entre meus fatos, penetra pelos meus tímpanos e ecoa grave, sombrio, no espaço vazio entre o que os olhos não vêem e o que o coração pressente. Em certa época recente havia tido a impressão de estar protegido por algum cinismo benévolo, quase mortal. Pensado assim por alto, poderia confundi-lo mesmo com inocência, ou ingenuidade, dependendo do ponto de vista adotado. Pontos de vista são perigosos. Mas o mais agradável não seria não ter olhos, e sim apenas não ter pontos. Nem tão inocente, nem tão ingênuo, apenas cínico, vinha fazendo questão de não associar o perigo à causa do perigo. Todo cinismo pressupõe um nível de cegueira fundamental e voluntário, não se trata em nada de pontos, o que a vista alcança é somente um geral embaçado e oco. Aquela brincadeira de figurinha de chiclete: no meio do tumulto, onde está o personagem? O cinismo é a preguiça de procurar, jogar a figurinha fora sem olhá-la. Num nível mais avançado, é rasgar a embalagem do chiclete junto com a própria figurinha. No nível em que eu me encontrava, jogava o chiclete fora só por tê-lo já aberto, não suspeitava desse joguinho ocluso que o envolvia, não havia motivos para suspeitar isso. Era mais seguro. Tenho que a noção das coisas torna as coisas dolorosas. Quando por acidente descobri todo aquele jogo que envolvia o chiclete, engasguei. Porque tentei mastigar sem saber que não podia engolir, e enquanto procurava convulsivamente 77
na imagem, esqueci a goma na boca. Hoje o que me sobra é este entalo macio que não me deixa mais seguro. Inseguro e só. Como associando o engasgo a toda a multidão aglomerada no quase três-por-quatro da figurinha, torneime claustrofóbico. Engraçado pensar que um cínico cure o cinismo com claustrofobia, ou o oposto. Não consigo definir se estou mais doente agora do que antes, estou mesmo mais vulnerável – o que não me define por saudável, isto é fato. De modo que tornei-me o oposto do que vinha sendo. Logo, percebo que estar claustrofóbico seja algo como que a punição de meu cinismo anterior. Eu queria acreditar mais nas forças sobrenaturais para poder afirmar que isso não passa de uma espécie de castigo, ou, no mínimo, uma brincadeira de muito mau gosto de quem controlasse estes acontecimentos determinantes, até um humor negro. Contudo, nem mesmo a ideia de causa-efeito, que é mais cientifica, me convence muito. È que a claustrofobia tem o efeito colateral de causar certa descrença. Além disso, esse não-bastar de ar, mesmo em locais abertos e ventilados, torna a convivência comigo mesmo tarefa sufocante, por suposto, já que, além de tudo, estou vulnerável. Não há uma relação direta entre a vulnerabilidade e a asfixia, mas as coisas são todas meio obliquas quando incomodam, vão assim meio que em curva fechada e desembocam num sinal vermelho que nunca abre. Então eu fico ali, parado, esperando, vendo que há a luz verdinha. E nunca ver a luz verdinha se ascender me deixa inquieto. Em intervalos regulares, o vermelho passa pro amarelo, coisa sem lógica, mas ainda me faz ter a esperança tola de que depois o verde acenderia. Porém o amarelo volta pro vermelho e eu apenas olho. Pareço não ter aprendido a ordem convencional das luzes. E enquanto olho, verifico-me só, e minha companhia me incomoda, porque estou num veículo fechado e tornei-me claustrofóbico demais para dividi-lo com quem quer que seja. Não há espaço para mim mesmo fora de mim, e certo 78
recalque desse mim-mesmo o faz dizer-me verdades incômodas. A companhia alheia não chega nunca, ninguém sequer bate no vidro vendendo chicletes. Nem ao menos tenho a figurinha abarrotada de gente pra me distrair enquanto o sinal nunca fica verde, enquanto sufoco-me comigo mesmo no veículo que não se move. Sinto falta de ser cínico, ao menos serviria pra não dar ouvidos ao meu próprio sermão.
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Vermelho
Tinha uma força que talvez desconhecesse, mas não era exatamente isso que procurava entender. Dedicado a um estado tão perturbador quanto admirável, tentava sua façanha jamais realizada. Agarrado àquilo que talvez representasse seu maior apoio, pasmou ao virar-se e ver o quanto as suas erupções lhe haviam consumido. E se ao menos seu pasmo fosse calmo, haveria alguma chance de retorno. No entanto, contorcido e teso, sentiu o terror do vermelho borbulhante que, afinal de contas, fervia somente por sua culpa. Muito mais do que o efeito, aquele vermelho era também a própria causa desta sua inércia. E se tivesse tempo para dar se ao luxo de contemplar uma memória, teria se lembrado de que até instantes atrás poderiam acusar-lhe de qualquer crime, menos o da inércia. Mas como até então estivera sem tempo nem curvas, não haveria um porquê para lembranças. Sendo assim, seu trajeto se resumira a ângulos, cantos e pontas que acumulavam aquela aridez sanguínea. E ainda : se ele sequer fosse suficientemente leve de espírito, ao menos teria desconfiado de tudo isso, e perceberia que ter sido tão sanguíneo lhe trouxera a este estado de estupefação convulsiva que não lhe permite respirar mais. Entretanto, uma coisa é a ideia, outra inviável é ela ser aplicada por alguém sombras e preso pela própria contração conseguiria identificar uma ideia dentre
diferente e mais que, rodeado de muscular, sequer vários objetos. É 80
preciso determinado nível de desprendimento para atribuir nomes às coisas. Mas como esperar desprendimento dele que, aparentemente fincado no solo, ao fim de seu caminho, apenas percebeu sem entender que alguma coisa não estava certa? E essa ignorância essencial era o motivo pelo qua l ele franzia tão rigorosamente a testa, como quem sofre um surto de ira. Mas pobre, pobre dele, não era ira o que tingia seu chão de vermelho. Declarar seu atual estado como sendo um flagelo do corpo capaz de condenar o espírito trata-se de um reducionismo que somente um ignorante como ele seria capaz de cometer. Então era a mera raiva de qualquer coisa o que o intensificava na paisagem de ta l maneira, que ele se confundia com um arbusto ou um tronco? Não, mas isso ele ainda não tinha como saber. A sua força – essa estranha sensação que o fazia contorcer-se em dúvidas – era mesmo o fruto de um processo ligeiramente mais profundo, um tom mais denso do que a superficialidade de uma poça vermelha no chão. E se disséssemos que ele, enfim e dolorosamente, acabara de ter seu primeiro e rudimentar modo de pensar, estaríamos sendo-lhe somente justos. Para chegar a um estado em que pudesse associar o calor pulsando em suas têmporas à cor do chão que pisava, cor esta que, sendo mais e mais pisada, irá tornar-se cada vez mais quente e menos rasa, para esse simples e tortuoso exercício de autoconhecimento ele precisou cruzar uma vida inteira de pés descalços e solos ásperos. E somente o atrito é capaz de aprofundar cada vez mais este vermelho que, sem a quantidade fundamental de dor e culpa, seria somente um amarelado vago, resquício do escarlate diluído num líquido transparente e insípido o qual não poderíamos chamar de memória.
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Laranja
Sobretudo era uma urgência. Como se misturando-se, algo novo surgisse do encontro. E para misturarem-se era necessária uma fome que não teria um nome, mas a cor de uma avidez quase sublime, mesmo selvagem, mas ainda assim sutil. E se essa avidez precisasse de um termo, então não haveria mesmo o encontro, porque, pela posição em que se encontravam, a coisa menos importante para o sucesso de um encontro era saber o que exatamente estariam fazendo. Sem rodeios e quase colidindo, a sua fome exigia deles uma atenção alaranjada e quente. Uma insatisfação convulsiva que se estampava nas curvas e nas sombras, estas últimas que, tão famintas quanto os próprios dois corpos que lhes davam forma, insinuavam-se muito menos escuras e muito mais alaranjadas do que seriam normalmente, não fosse a denúncia irrefutável de que dois corpos ali se atraíam com tanta força, que sequer a luz lhes impediria de tentar fundirem-se até as suas abstrações. E como outra lanterna queimando em tom de fogo lhes alertasse, e como se de repente houvesse um excesso que precisasse ser sanado, aproximaram-se com uma fúria vermelha e uma rapidez amarela, numa empreitada quase indivisável de reduzirem-se, essa necessidade extrema que se tem de ousar a unidade entre mais de um objeto. Mas como transformar dois mundos de cores tão distintas em mundo único que não denunciasse a quase ofensa de um passado dividido? E como permanecer assim de tal maneira próximos a ponto de se confundirem os limites e, se fosse o 82
caso, mesmo o melhor dos observadores não conseguisse distinguir os dois tons ancestrais daquele laranja urgente que ansiavam? E só porque a luz que os revelava era árida o bastante para não admitir uma mentira, mesmo envolvidos em uma fome que lhes arrancaria a pele – se a pele não fosse tão importante para esta tentativa de soma que os reduziria –, mesmo juntos com tal força e empenho capazes de dar ao laranja da sua fome qualquer cor mais insaciada, mesmo tendo estes dois corpos se abstraído a tal ponto de se dedicarem apenas ao sobressalto da própria matéria, ainda assim a luz que lhes mostrava o quanto sua fome era urgente também lhes decretava que, não importando com qual zelo ou qual medo, laranja mesmo seria apenas o estado provisório que sua gula lhes emprestaria, a guisa de fome genuína. Sem sustos, mas com ofensa, descobriram então que, apesar de sua pele quase em carne viva pelo atrito, estariam eternamente em dois espaços diferentes, cada qual com seu tom; e também que se tentassem, munidos de um desespero, transformar seus tons para que, algum dia muito remoto, esses tons fossem tão parecidos que os corpos não precisassem apelar para a fome e a gula, mesmo com todo o empenho de uma cor urgente, aqueles dois corpos jamais conseguiriam a proeza de evitar que a luz – tão impunemente desvendadora – lhes esfregasse na sua sombra impalpável o fato eterno de serem dois e não serem da mesma cor.
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Amarelo
De braços abertos, ela esperava cheia de anse ios. O que mais vinha querendo ultimamente era mesmo sentir esta calma que apenas a certeza da alegria traz. Mas, muito longe de ser tranqüila, sua calma exigia dela um esforço extremo e uma predisposição estóica. E parar ao meio da estrada apenas para aguardar a alegria também já era um jeito de alcançá-la. Isto ela desconfiava, mas não procurava mesmo compreender, coisa que atrapalharia todo seu processo. Despida e despojada, seu único rudimento de raciocínio era manter os braços abertos a despeito da dor deste exercício. E se pudesse ver-se agora, perceberia que não estava totalmente nua. Apoiada em uma seda amarela que, caída, ocultava seus quadris, pendurada pelas pontas em cada uma das duas mãos tão distantes – se quisesse enxergar a si mesma veria esta ilusão. E veria que não havia mais ninguém naquele descampado. E se precisasse, veria que à sua frente toda uma estrada se afinava para, com algum desprendimento, servir-lhe de futuro. O que ela não fazia era se preocupar com hipóteses de sua realidade quando, envolta e sem frio no amarelado de seus anseios, podia muito mais do que ser feliz: podia ser livre. E porque achava que a liberdade precisava ser rápida como um raio de sol e direta como uma rua deserta, ela tentou dar um passo. Só para testar aonde queria chegar. Só para certificar-se de que sua liberdade, de fato – e como garantiam os contos de fada e as teorias matemáticas –, havia inúmeras casualidades possíveis, até mesmo a 84
casualidade de se dar apenas um passo, porque estar solto é isso: só ir adiante meio metro por não haver a obrigação de alcançar infinitudes. De repente toda a extensão da estrada pareceu-lhe um enorme desperdício, o que a satisfez tanto, que não conteve o impulso de girar, com um movimento tão ágil que só podia ser amarelo, a seda em volta de si. E agora abraçada dos ombros ao umbigo, sentia-se mais nua e mais leve e menor. E por se reduzir ela conseguiu finalmente sentir o formigamento: desde que pretendera aquele passo, a perna estava pendente. E, suspensa, ela encontrava-se solta o bastante para dar-se o direito de achar que só se conservara assim equilibrada tanto tempo porque, afinal, uma seda amarela lhe comprimia. Envolvendo-a, o brilho da cor que não tem freios lhe mantinha no seu centro gravitacional. E a dormência da perna era também uma prova de sua liberdade: se ela quisesse, poderia baixar o membro e sentir melhor a cócega dolorosa. E devia ser mesmo assim que as coisas certas precisariam parecer: como um amarelo que, sem meio termo, afaga e molesta. O que não lhe impediu, contudo, de ousar. Sabia que quando pousasse o pé na estrada cinza e lenta, quando abrisse novamente os braços e estendesse o ligeiro amarelo do tecido, quando estivesse outra vez tão nua, que só haveria o céu azul e lento a cobrir-lhe a pele, quando se entregasse inteira a si mesma, aquele anseio que a fizera parar no meio do nada finalmente acabaria. Então ela ousou tanto, que não fez nada disso. Enrolada no tecido, saltou para o lado e sentou-se abraçando os joelhos. Estava então livre o bastante para compreender que, por mais amarela que sua alegria fosse, nada compensaria o sem-cor de ansiar por uma felicidade que já chegava, porque ela era calma e solta para escolhê-la. 85
Verde
Se alguém a visse, diria, com razão, que ela sofria de um frio muito íntimo e agudo. Como quem se encontra no entremeio do calor e do desamparo, naquele limite tênue de uma região que, apesar de consumar certa atmosfera acolhedora, também não se priva de sua parcela sofrível. E tão agarrada que estava a si mesma, quem a visse porventura – e dessa vez injustamente – a acusaria de uma súplica urgente. Mas era apenas ansiedade disfarçada sob a face serena de uma oração. Não era uma espera o que lhe acanhava. Sobretudo, esforçava-se para anular o fato irrefutável de que, atrás de si, imensa parede a separava do seu maior gesto de desprendimento. Porque isso era o mal mais necessário: grudada à solidez brutal, apertava bem as mãos uma na outra, como se esse gesto valesse de substituto a qualquer experiência mais edificante. Experiências estas que lhe dariam as forças necessárias para erguer, ela mesma com aquelas tensas mãos, sua própria muralha. Mais amadurecida que um fruto caído, não se contentava com a impossibilidade que certas vontades suas lhe causavam. Como querendo tanto abocanhar um ato tão suculento quanto o próprio fruto de sua maturidade, sempre dava com os dentes na rigidez verde daquilo que ela não era ainda capaz de consumar. Então toda a sua maturidade soou-lhe como bloqueio de maturidade, aplacada pela parede que lhe encurralava impassível, numa altivez que só poderia ser verde, porque, até então, tudo o que ela tinha visto de mais inevitável lhe riscara a vista com a imparcialidade de uma folha nova ou 86
de uma maçã verde, esta última que, mesmo verde, adoça a boca, já que a maturidade, afinal, residiria na imparcialidade da cor. Enfim, assim como a pedra e o cal que lhe impediam de regressar, também ela se impedia de ir adiante, uma vez reconhecendo que não era ainda capaz da imparcialidade dos frutos e das folhas novas. Só que ela também se lembrou que uma maçã poderia ser vermelha e, sendo vermelha e estando verde, a imparcialidade desta se resumia a uma promessa de sabor. Quando seria a vez em que ela finalmente experimentaria a satisfação de, não se valendo de subterfúgios corantes, estar imparcial e clara e, ainda assim, sentir-se viva e livre até mesmo para regressar? Encostou suas costas com maior força contra a parede, e teve a leve sensação de que a cor da tinta era absorvida pelo casaco tão preto que escondia uma pele tão branca, que poderia ser facilmente pintada de verde. Como entendendo o que queria dizer esta força de reação, e como concluindo que sua brancura não poderia ser imparcial, ela aliviou o peso de uma muralha inteira sobre suas costas e, um passo mais longe da espera, soltou as mãos. A imparcialidade funcionava tão bem na atmosfera verdejante que, ao largar-se do abraço de si mesma, o frio do qual lhe acusariam foi passando como passam as folhas numa brisa muito seca. E numa brisa muito seca é que podemos enxergar que o ar é tão colorido que não se deixa enxergar, porque dentre suas cores está também a imparcialidade. E se ela conseguisse um sopro que fosse, estaria menos suplicante um tom. Pensou que sua vida toda tinha resumido-se a um pedido. Não estar constantemente a pedir por uma coisa única. Sua vida lhe pareceu, no sussurro duro da imparcialidade, ela toda um pedido em si. Mas o que ela pedia com sua vivência, não conseguiu divisar. Deveria estar escrito na parede às suas costas. Esta 87
ideia lhe tomou de antecipação, pois se ela se virasse e não visse escrito ali, verde no verde, do que sua experiência prescindia, ela não teria forças para voltar ao seu caminho. Por isso ela, agora com as mãos soltas, transformou o abraço em afago e, gentilmente, como quem tem receio, apalpou sem jeito o concreto às suas costas. E se ela declarasse que era capaz de sentir o verde em suas mãos, nós apenas poderíamos lhe ser indulgentes o bastante para acreditar. Como quem finalmente encontra a resposta, ela percebeu que sua súplica era mesmo um modo, lento e absorto, de evolução. Contudo, se quisesse estar tão disposta quanto o doce controverso de um fruto que é verde por ser imparcial, se desejasse estar isenta o bastante para ser carregada pela dureza de uma brisa seca, ela teria que abster-se da concretude de uma parede e dedicar-se, sem anseio, a uma oração que fosse tão caridosa a ponto de não pedir coisa alguma. Redimida, então, ela juntou novamente as mãos.
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Azul
Desapontada, ela quase se precipitou. Mas não era tristeza o que sentia. Seria mais uma melancolia cristalizada, que de tão habitual se tornara mesmo seu modo de ser alegre. E com essa alegria que só ela tinha, celebrava a vida desejada, a vida inalcançada. No entanto, ela se perguntava o que fazer, uma vez que alguma lei de ordem natural lhe obrigava a descer invariavelmente, eternamente para baixo, quando, na verdade, seu desejo maior era de levantar-se para além de seus sonhos, subir, subir tudo que se havia para subir, e, assim, esconder-se no azul dissimulado pelo cinza eventual das nebulosidades. E porque queria pertencer àquele azul, e porque tinha a necessidade de sentir melhor o vento – este tão azul, que os olhos não podem enxergar –, escolhera o mais longo de seus vestidos, cuja cor não poderia ser outra. Aliás, de tanto querer chegar ao azul inalcançável, ela nunca se dera conta de quantas cores perdia, e esta perda era talvez o que agora, inconscientemente, lhe causava o desapontamento. Era melancólica, alegremente melancólica, mas diante de seu abismo jamais titubeara. A não ser agora que, pela primeiríssima vez, por alguma razão inexplicável, reparou no tom vivo e quente de seus cabelos. E de repente o esforço de uma vida inteira tornou-se pura ilusão. Como queria ela chegar ao infinito, se sequer reparara nas suas próprias erupções, ela que desde sempre achara-se plácida como águas frias? E de súbito o vestido perdera o propósito. E num pasmo suas águas já não eram mais plácidas, e como só se enxerga o azul da água se esta estiver imóvel, já não havia agora mais razões para se 89
apegar a cores. Mas a questão era: como largar um hábito que a conduzira desde sempre, hábito esse, inclusive, responsável direto, num assomo de ironia, por provocar a própria culpabilidade do hábito? E era inútil lutar contra aquilo que lhe definia. Era preciso querer o azul, disso não poderia abrir mão, do contrário, deixaria de se reconhecer, e quem não se reconhece não existe, e quem não existe está fadado a uma infelicidade cega e negra. Que não é azul. Fosse o caso de tentar dar forma a seu gesto mais decisivo, fosse ela ousada o bastante para dar o passo mais definitivo e começar finalmente a sua subida para desbravar as tantas nebulosidades que entorpecem e corrompem seu azul, se ao menos ela fosse tola o bastante para, depois de tudo, enfim tentar, agora somente veria seus longos fios escarlatinos profanando o silêncio da imensidão do seu avanço. Então ela foi finalmente tola. E por causa disso é que foi capaz de não cair. Mais ainda : enquanto subia, o vento ultra-azul empurrava seus cabelos para trás, a vermelhidão dela confortavelmente relegada ao passado. Como se sentindo plena, a subir sempre, olhou para baixo e viu o azul de um oceano finalmente em paz. Azul e em paz. Entre uma massa cinza e outra, seus cabelos ficavam cada vez mais úmidos e, portanto, de um tom cada vez mais escuro. É certo que jamais chegariam a ficar azuis : outra lei natural não permitiria. Mas ela não poderia mesmo querer que seus furores se confundissem com a pureza de sua subida. E o vestido, também cada vez mais azul intenso de umidade, dançava calmo, como quem diz que era para ser assim desde o início. Era felicidade aquele azul, não mais alegria ou melancolia. Quanta diferença há entre um tom de azul e outro. 90
Índigo
O homem era a criança. A mulher, o adulto. Enquanto ele tentava, alongando-se ao máximo, alcançar a criança, ela corria, absorta, da mulher que provavelmente lhe daria incômodas respostas. E como não quisesse as respostas, ela se esquivava como podia das ondulações do adulto. A ligação dos dois era como um líquido que não se abnega o bastante a uma forma. E mesmo que o fizessem, qualquer forma que se dessem exibiria uma indefinição de água domada. Uma indefinição de cor sem nome, como quem chega ao centro de uma relação, e como deste centro não se pudesse decidir para qual dos infinitos vértices verter-se. Assim despejados em sua condição, a dedicação materna l com que ele estendia os braços para a criança ocultava mesmo determinado tipo de punição que ela não estava disposta a admitir, à qual ela não podia sucumbir, porque aquela criança ainda era jovem e não conhecia as nuances que a execução de sua existência poderia assumir – algumas delas, condenáveis. E se a mulher quisesse afinal dar o braço a torcer e sucumbir a um capricho dele, estaria se reduzindo e perdendo a pouca forma que, com muita força e debilmente, conseguira forjar para si. O homem, perdido entre as infinitudes de uma infância, desde sempre considerava-se pertencente a uma casta, e o gesto do adulto lhe aparecia agora como conseqüência de uma visão limitada das cores. Se quisesse ser obediente, a criança deveria abster-se do que promulgara até então, e precisaria assumir outra forma, 91
o que não devia ser difícil, pois estavam eles tão dispostos um ao outro, que não se definiam e perdiam-se em sua liquidez de céu escurecido. Em sua cor de céu molhado, o adulto – com o amor que cabe ás mães – procurava os meios para convencer o pequeno homem de que, apesar das incertezas e das informalidades, se alguém lhe dissesse, por exemplo, que azul lhe caía melhor, aquele homem teria de aceitar isso não como quem se abstém, mas como quem compreende a ingenuidade alheia sem a presunção de exaltá-la. Mas o que a mulher não compreenderia é que, tão criança e tão cheia de possibilidades, aquele homem não queria – mesmo que por engano – estar tomado pelos decretos de um azul que não era seu, porque desde que nascera – e fazia mesmo pouquíssimo tempo – tinha uma tendência tão exuberante para o roxo. Então como desenvolver uma justificativa que convencesse o adulto de que, ainda que infantilizada, esta criança estava pronta para ser diferente daquilo que lhe originara, sem destruir com tal resposta uma vida inteira de convicções – nem todas equivocadas – da mulher que até hoje se dedicara tão resignadamente a dar um tom àquele pequeno homem? Como não houvesse, em todo um espectro de probabilidades, a exata explicação, tudo o que a criança pôde fazer foi dar ao adulto sua melhor verdade. E enquanto ela dizia-se mais perto do céu do que do azul, mais íntima da flor do que do violeta, o adulto – apoiandose em sua mais elevada noção de sacrifício, afinal ele era mãe – esforçava-se para não desmoronar, porque, no fim das contas, por mais maleável que alguém se conserve, todo fluxo precisa de uma tangente que lhe dê limites. Não querendo se espalhar e perder-se pela superfície plana da surpresa, ele endureceu-se em seu resoluto azul – às mães 92
está reservado este direito, pois também são homens como todo ser humano. Também este ato indecifrável tornou os dois mais centrados em sua relação, mas não menos escorregadios. E se eles rumassem agora para o mesmo lado, tudo acabaria, porque juntos e fluidos, se confundiriam. E ainda: indo para o mesmo lado, e se fundindo, agravariam o tom de sua fuga, o que sujaria a fluidez anil de seus corpos sem nome. E se eram de tons diferentes, apesar de concordarem pertencer a uma única cor, o melhor mesmo seria separarem-se, como seres líquidos que eram, para que nem ele, a criança entusiasmada, se ferisse com a seriedade escura de um azu l quase roxo, e nem ela, o adulto ensimesmado, se sentisse fracassada por não poder recolocar-se e recolorir-se. Coisa mesmo natural: o tom claro conseguiria tornar-se escuro com tempo e recursos a propósito, mas o escuro está fadado a não regressar a uma clareza ancestral, porque é adiante que se flui.
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Violeta
Implacável, o pôr do sol lhe pertence. E tão seu que é, pode mesmo dar-lhe a cor que quiser. Assim: durante todo o trajeto, vários tons se apresentarão, e ele se deterá somente naquele que mais lhe edifica. Sua destreza está nessa capacidade de dominar um fenômeno sem mover um dedo. Ele usufrui deste direito sem pudores, dá pra ver pela segurança com que, à beira de um abismo, ele assume a leveza do rochedo e se confunde com a pedra, tão bem sentado e em tão boa harmonia com a matéria. Quase etéreo. Mas, ainda que relaxado e em paz, prepara-se com certa apreensão para o momento tão fugaz em que os raios se alongarão de tal forma a tornarem-se violetas. Precisará de uma atenção sobre-humana para capturar, com sua meditação, o preciso instante em que, disfarçado de lua gélida, o astro se confundirá com seus próprios pensamentos. Querer o fugidio lilás, que só aparece hora sim hora não, ao nascer da vida e ao pôr-se da esperança, aguardar esse relance é o seu melhor modo de estar sozinho e deixar para trás um continente inteiro de cores em conflito, aceitar este arranjo é a melhor forma de manter-se saudável o bastante para suportar o peso de um pôr do so l roxo e tão infinito, que duraria somente o tempo de um desejo. Sobretudo, está alheio. O que não lhe torna indiferente. Em sua meditação, contempla com doçura a beleza de uma calmaria de água limpa. Mas principalmente considera que, além do espelho à sua frente, atrás de si existe uma atmosfera inteira de irmãos de cor que lhe precedem e, 94
portanto, são de sua responsabilidade. Acima de tudo – afinal, está no topo de um rochedo muito alto –, ele ganha a consciência, dolorosa e saborosa consciência, das cores ancestrais. E não vacila. Haverá apenas um instante invisível, e para poder divisá-lo será preciso abster-se da dúvida. O modo como ele fará por merecer as poucas flores de luz que o so l oferece em seus extremos, o jeito de ser digno das violetas de uma sublime evocação astral será a total crença nele mesmo e em sua própria força. Ele tem uma força que ainda não domina, apesar da solidez de pedra de sua concentração. Enquanto aguarda, lembra com doçura a vez em que esteve prestes a cair e, tendo se salvado mais por acreditar do que por ter energias, conseguiu usufruir do sobressalto dos ameaçados. Essa alusão ao quase é a sua maior garantia de que está disposto a arriscar toda a sua sensibilidade, tão disposto a ponto de aguardar a hora lilás que poucos sabem existir. É no quase não existir das flores roxas do sol tão amarelo que fica branco, é por quase não haver quem descreva o milésimo de segundo em que toda a vida aparece em efeito negativo que ele não titubeia. Por haver a possibilidade de não conseguir o enlevo almejado é que ele não duvida. E não se pergunta de que jeito consegue este ato cabal de fé cega, o que, é claro, a fortalece ainda mais. Sem enxergar que o vermelho já passou do amarelo depois de uma longa hora alaranjada e quente, ele apenas concentra-se no objetivo ao final do arco. E como estará quase totalmente escuro quando tudo ficar lilás, ele precisa ir treinando bem as pupilas, para que se abram muito e recebam o pouco de violeta que o sol dá. É tão pouco, que quase ninguém faz questão de descrever : “minha vida mudou durante um pôr do sol violeta como as 95
flores da minha infância”. Eis a razão. Quase todo mundo esquece que depois do laranja o sol fica realmente amarelo, como se uma criança o tivesse colorido, e depois va i esverdeando invisivelmente até ficar azul de solidão. Além disso é o que conta. Quase duro de tão azul escuro, o astro parece querer lhe escapar. Mas ele não permitirá. Nem que tenha de suportar uma vida inteira de ofensas. Mártir de si mesmo, ele permanecerá ali sentado, com seu desejo a guisa de meditação. Quanto tempo, já se sabe: muito pouco. E tão pouco durará para sempre, mas quase ninguém va i saber, porque a raridade daquele tom consiste exatamente na sua capacidade de existir tanto, que fica invisível.
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