Bem-vindos ao cinema contemporâneo - Catálogo da Mostra

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BEM-VINDOS AO CINEMA Catรกlogo da Mostra CONTEMPORร NEO


Sumário 03 Apresentação 04 Mostra de filmes 10 Ensaios 11 Sobre Corpos e Desertos, por Erly Vieira Jr. 16 Sobre Agnès Varda, por Ursula Dart 17 Os Labirintos da Alma, por Lucas Schuina

Edição Erly Vieira Jr.

20 Atenção, Dispersão e Fluxo, por Sidney Spacini 24 O lamento dos ninfos, por Rodrigo de Oliveira

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Sobre os autores

Diagramação Sidney Spacini


Apresentação Rodrigo de Oliveira

O que faz do “cinema contemporâneo” contemporâneo? Quais de seus traços pertencem e só poderiam ter nascido neste tempo, no agora? Em que se distancia e em que se aproxima do século de cinema que o precedeu? A que desejos obedece, que vontades tem? Mais importante: que mundo enxerga, quais mundos está construindo? Não há como chegar ao coração destas perguntas sem se recorrer aos filmes. A primeira década do século XXI testemunhou a formação de uma verdadeira rede global de realizadores, presentes nos principais festivais de cinema do mundo, uma zona franca de troca de imagens e sons, partindo das cinematografias mais tradicionais, mas chegando também – e talvez pela primeira vez – de lugares onde nunca supomos sua existência. Esta mundialização real da experiência cinematográfica, no entanto, se choca com um mercado exibidor ainda funcionando sob uma hegemonia exclusivista, pouquíssimo afeita a concessões. A mostra BEM-VINDOS AO CINEMA CONTEMPORÂNEO quer exatamente trazer uma pequena porção destes filmes à luz pela primeira vez em Vitória. A mostra exibirá 10 filmes inéditos no circuito capixaba,recuperando as experiências premonitórias de Abbas Kiarostami e Claire Denis ainda nos anos 90 e chegando à confirmação dos novos mestres do cinema mundial nos anos 2000 com exemplares de Hou HsiaoHsien, Gus Van Sant e Apichatpong Weerashetakul, entre outros. Mas não basta ser apresentado a este novo cinema do mundo: é preciso puxar um papo com ele, trocar idéias, descobrir afinidades, apontar diferenças. Para isso, cada sessão dupla diária será seguida de debate com o convidado que selecionou os filmes exibidos. O cinema contemporâneo é um continente em formação, invisível para boa parte do público capixaba, mas que também precisa dele (do espectador igualmente invisível) para se construir. Primeiros e novos olhares sobre primeiros e novos filmes.


Mostra de Filmes 12 a 16 de Setembro - 2011


12 de Setembro Curadoria: Rodrigo de Oliveira

A Ponte das Artes, de Eugène Green [Le Pont des Arts, França/2004, 125 min.] Paris, 1979-1980. Dois jovens que nunca se conheceram vivem uma impossível história de amor: Sarah é cantora lírica, mas Pascal só descobre sua voz quando já parece ser tarde demais. Indicado ao Leopardo de Ouro do Festival de Locarno 2004.

Na Cidade de Sylvia, de José Luis Guerín [En La Ciudad de Sylvia, Espanha/2007, 84 min.] Um homem retorna à cidade de Estrasburgo, onde conheceu uma bela mulher seis anos antes, na tentativa de reencontrá-la. Sem pistas de seu paradeiro, ele se agarra ao nome e à memória do rosto desta Sylvia que um dia amou. Indicado ao Leão de Ouro do Festival de Veneza 2007.


13 de Setembro Curadoria: Ursula Dart

Através das Oliveiras, de Abbas Kiarostami [Zire darakhatan zeyton, Irã/1994, 103 min.] Um cineasta filma numa região marcada por um terremoto no norte do Irã, recrutando atores entre os habitantes. Dois jovens são escolhidos para interpretar o casal protagonista. Na vida real, ele está apaixonado por ela. As filmagens chegam perto do fim, e ele aproveitará todas as chances para conquistá-la. Indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes 1994.

Os Catadores e a Catadora, de Agnès Varda [Les Glaneurs et La Glaneuse, França/2000, 82 min.] A cineasta encontra catadores de lixo espalhados por toda a França. Ela começa a se perceber como uma catadora de outra ordem, experimentando pela primeira vez uma câmara digital: uma “recuperadora” das imagens que os outros não querem ver nem fazer, das imagens deixadas para trás. Eleito o melhor documentário do ano pelas Associações de Críticos de Nova York e Los Angeles.


14 de Setembro Curadoria: Sidney Spacini

Millenium Mambo, de Hou Hsiao-Hsien [Qian Xi Man Po, Taiwan/2001, 119 min.] A vida de Vicky é conturbada. Seu namorado é viciado em drogas e muito ciumento. Cada vez que ela tenta se separar dele e sair de casa, Hao-hao entra em crise e a persegue, fazendo com que Vicky volte. Mas nessas idas e vindas ela conhece Jack, um homem que cuida dela como nenhum outro. Vencedor do Prêmio Técnico no Festival de Cannes 2001.

Shara, de Naomi Kawase [Sharasojyu, Japão/2003, 100 min.] Em Nara, durante um festival de verão, Kei desaparece. Ao redor dessa ausência,o filme se organiza. Sharasojyu é o nome do jardim onde, segundo a tradição budista, Buda teria morrido ao pé de duas árvores gêmeas. Indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2003.


15 de Setembro Curadoria: Erly Vieira Jr.

Gerry, de Gus Van Sant [Estados Unidos/2002, 103 min.] Dois jovens companheiros, ambos chamados Gerry, fazem uma caminhada com um objetivo misterioso, seguindo um trilho selvagem. Após algum tempo de marcha, acabam por se desinteressar pelo que procuravam e decidem voltar, mas logo percebem que estão perdidos num terreno hostil. Estrelado por Matt Damon e Casey Affleck, o filme foi indicado ao Leopardo de Ouro no Festival de Locarno 2002.

v Bom Trabalho, de Claire Denis [Beau Travail França/1999, 90 min.] O ex-oficial Galoup se lembra dos tempos felizes passados na Legião Estrangeira, de sua vida com a tropa de homens abandonados no nordeste da costa africana, lutando a guerra e consertando estradas. Sua rotina é abalada pela chegada de Sentain, um jovem recruta promissor, com quem Galoup disputará a atenção do comandante que tanto admira. Indicado ao Urso de Ouro do Festival de Berlim 2000.


16 de Setembro Curadoria: Lucas Schuina

Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas [Stellet Licht, México/2007, 145 min.] Johan e sua família moram no norte do México. Eles são praticantes de uma seita protestante que prega vida simples e se nega ao batismo. Há ainda muitas outras regras. E contra todas elas, inclusive de Deus e do homem, Johan - marido e pai - se apaixona por outra mulher. Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2007.

Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul [Sud Pralad, Tailândia/2004, 118 min.] A vida é feliz e o amor é simples para os jovens Keng e Tong. Keng é soldado e Tong trabalha no campo. Um dia, quando as vacas da região começam a ser decapitadas por um animal selvagem, Tong desaparece. Keng parte então sozinho para o coração da floresta tropical, em busca de seu amor. Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2004 .


Ensaios


Sobre Corpos e Desertos

Erly Vieira Jr.

Dentro de uma certa vertente cinematográfica contemporânea que valoriza uma construção narrativa pautada por ambiências e por uma sobrevalorização da dimensão sensorial sob seu aspecto multilinear e dispersivo (sempre sob um olhar microscópico lançado sobre os eventos cotidianos), venho tecer algumas breves considerações sobre dois filmes que, cada qual a seu modo, exploram o espaço do deserto para criar experiências bastante pertubadoras junto ao espectador. Falo dos longos e distanciados planos-sequência que nos fazem acompanhar a exaustão dos corpos filmados, em Gerry (2002), de Gus Van Sant. E da câmera à flor da pele, que dota de extrema sensualidade os mínimos movimentos coreográficos dos soldados da Legião Estrangeira, no filme Bom trabalho (1999), da francesa Claire Denis. A experiência limítrofe do deserto Gerry inicia-se com uma estrada, no final do trajeto empreendido por um carro através das paisagens ermas. Ao som de “Spiegel im spiegel”, do compositor estoniano Arvo Pärt, temos quatro planos longos, em que um carro com dois jovens de vinte e poucos anos (ambos denominados Gerry) aproxima-se de um parque natural no meio de uma região desértica. Logo de início, já percebemos que não se trata de um road movie, mas sim de sua inversão: em lugar dos personagens em constante movimento nômade, numa espécie de rito de passagem, temos uma experiência que pretende se esgotar em si – uma espécie de trekking selvagem conduzido por ambos os Gerrys até o limite da fadiga e desidratação, numa espécie de morte anunciada (e não necessariamente física) dos corpos exauridos. Talvez aqui a pergunta central, como propõe Daniel Lins em um artigo dedicado a analisar esse filme, seja: “Que pode um corpo que não agüenta mais?” Gerry é o primeiro episódio da chamada “Trilogia da Morte”, realizada por Gus Van Sant a partir de episódios reais (os dois filmes seguintes seriam Elefante, baseado no massacre de Columbine, e Últimos dias, livremente inspirado no suicídio do roqueiro Kurt Cobain). Aqui, temos uma releitura um tanto quanto livre do trágico episódio ocorrido em Rattlesnake Canion (New Mexico), no ano de 1999, quando dois jovens, Raffi Kodikian e David Coughlin, melhores amigos desde a infância, perdem-se no deserto e caminham desorientadamente, até serem vencidos pela fadiga. O episódio culmina no (não totalmente esclarecido) assassinato de David por Raffi, a pedido da própria vítima, segundo Raffi, como forma de aliviar as terríveis dores que David sentia, acometido por um forte mal-estar decorrente da desidratação extremada. Raríssimos são os momentos em que o filme faz uso de planos próximos. Van Sant opta por manter a câmera quase sempre à distância, de modo a incrustar o corpo dos atores Matt Damon e Casey Affleck na vastidão da paisagem amplificada pelo scope (1: 2,35), enquadrada quase sempre em plano geral e percorrida por lentos travellings ou panorâmicas. Três foram as locações utilizadas aqui: o Parque Nacional Valle de la Luna, no noroeste da Argentina; o Vale da Morte (Death Valley), na Califórnia, lugar onde se registram algumas das mais altas temperaturas do planeta; e o deserto de sal em Utah (Utah Salt Flets). A rarefação que permeia as paisagens desses três desertos (diegeticamente amalgamados em um) desdobra-se numa escassez de outros elementos no decorrer do filme: apenas dois personagens e quatro ou cinco figurantes, poucas falas, poucos gestos – o que remete ao corpo dos personagens beckettianos – e ações (quase sempre andar, descansar, observar a vastidão), raramente sublinhadas pela minimalista trilha sonora de Pärt. Apenas cem planos em aproximadamente noventa e oito minutos – alguns, como aquele em que acompanhamos o dilema de um dos personagens entre saltar ou não do alto do rochedo em que ele se encontra, estendem-se por mais de sete minutos. Contudo, Van Sant permite que outras paisagens (principalmente midiáticas) sobreponham-se à quase sufocante


pobreza da paisagem física: seja na menção verbal ao programa televisivo Wheel of fortune, ou no insólito diálogo entre os dois Gerrys, acerca da conquista de Tebas empreendida por um deles na semana anterior – aqui, o que a princípio aparenta ser uma cena absurdamente beckettiana (no que se refere às peças da primeira fase do dramaturgo irlandês, como Esperando Godot), aos poucos revela-se um banal relato sobre uma partida de videogame (talvez Age of empires ou Civilization), mas que se traduz num curioso estranhamento, dado o caráter surreal que o diálogo assume junto a um espectador que não partilha da mesma intimidade que os dois protagonistas mantém entre si, e que os permite conversar sem necessariamente fazer referências explícitas e auto-explicativas sobre cada assunto. Se tais paisagens midiáticas não se fazem visíveis (nem aos nossos olhos, nem aos dos personagens) como imagens, dada a ausência física dessas mídias na paisagem desértica, elas são constantemente evocadas como memórias experimentadas pelos corpos e sentidos, uma vez que sua intensa presença no dia-a-dia dos personagens dota-as de um caráter de realidade a ser relembrado em qualquer situação, mesmo onde esses meios estejam aparentemente ausentes. Outra irrupção, desta vez no campo da paisagem sonora extra-diegética, é a da composição Für Alina, (1976), que se constitui de uma melodia mínima, percutida ao piano, dentro do estilo Tintinnabulli, tão característico de várias das obras de Arvo Part. Seu arranjo despojado (apenas um instrumento), as notas lentas, ecoando como badaladas de um sino seco, proporciona um clima introspectivo, a ampliar a constatação do personagem de Casey Affleck (enquadrado num raro plano próximo) de que, ao perceber-se perdido no deserto, resta apenas caminhar até esgotarem-se todas as forças, ainda que não encontre mais nenhum rastro ou sinal que lhe permita retornar à estrada que lhe reconduziria ao seu próprio cotidiano. Por fim, tão presentes quanto as memórias midiáticas ou a vastidão vista pelos olhos, são as miragens alucinatórias, causadas pelo calor, e aqui condensadas num belo plano-seqüência, em que vemos os dois Gerrys sentados de costas, em primeiro plano, observando um indivíduo que se aproxima deles, pouco antes de se iniciar o clímax do filme no deserto esbranquiçado de sal. A câmera acompanha a imagem do estranho andarilho a se formar, tornar-se nítida e aproximar-se dele (como se trouxesse um novo alento para os jovens desesperançados), para enfim reconhecê-lo não como um personagem novo, mas sim como o próprio Gerry interpretado por Matt Damon. Ou seja, presenciamos a transição da imagem mental desejada para uma imagem física imanente, a recordar a urgência da experiência que se desenrola sobre tais corpos. E que experiência é essa? Se o cenário do Death Valley (e o episódio de um assassinato entre amigos de infância) nos remete ao épico de Eric Von Stroheim, Ouro e maldição, as semelhanças se encerram por aqui. Em lugar de um conto moralista sobre cobiça e vingança, em que o deserto seria o espaço de um acerto de contas para além das vontades pessoais, temos no filme de Gus Van Sant a investigação de uma experiência-limite, à qual os corpos são impelidos pelo devir que os motivou a empreender o périplo inicial do deserto. Trata-se de uma experiência soberana, num sentido batailleano, em que os excessos da energia corporal brotam sucessivamente, até seu esgotamento absoluto, sob um sol alaranjado que transborda pelo céu amarelo captado pela câmera. Gastar-se como o sol, que se dá sem jamais receber – daí ser ele um modelo de potência e gasto para o filósofo francês Georges Bataille: eis a essência da soberania (conceito central no pensamento do filósofo), essa vontade de poder que intensifica a si própria, obtida nos limites do possível através do que ele denomina ser a “experiência interior”. Trata-se de uma experiência que não tem outro fim senão em si mesma: esse estado daquilo que nos escapa, e ao mesmo tempo nos desnuda, um “não-saber essencial ao saber” que suprime sujeito e objeto. Esse tipo de experiência vincular-se-ia ao gasto pródigo e desmedido de energia, numa concepção de poder e riqueza radicalmente oposta à acumulação capitalista. Ela se assume como uma recusa à conservação e ao limite, um transbordamento do ser que conduziria o homem a um “lugar de extravio”, uma cegueira dos sentidos, um desnortear que provocaria transformações profundas na imagem de si, e em suas significações – o estado de nudez, de “súplica sem resposta” que o filósofo francês o tempo inteiro afirma em sua obra. Assim, através do êxtase manifestado ao se chegar ao limite da experiência interior, ultrapassa-se o conhecimento como finalidade, além do limite (dehors) do pensamento: descarta-se a síntese, a negação do outro, chegandose ao reconhecimento do diferente, a irrupção da alteridade. Na filosofia trágica batailleana, é nesse estado do “ser sem prazo” que se estabelece o paradoxo da irredutível afirmação do outro, no extremo de uma experiência


movida pelo desejo de continuidade do ser, de supressão de limites: a recusa da Razão aponta para a soberania dessa experiência que não serve a nenhum fim, num movimento de “profunda descida na noite da existência”. Noite interior, que se contrapõe à aurora física que presenciamos no deserto de sal, filmada de maneira quase alucinatória (a princípio soando como outra miragem) pela câmera, a recortar as silhuetas dos jovens protagonistas no chão azulado e no céu alaranjado do final da madrugada. Aqui, o andar trôpego de Gerry/ Affleck, visto em primeiro plano, de costas, seguindo o caminhar constante porém indeciso de Gerry/Damon, no fundo do quadro, inicia-se numa visualidade quase abstrata, controlada pelas aberturas do diafragma da câmera a tentar compensar as mudanças de luz no decorrer do plano (que dura quase sete minutos). Presenciamos, como afirma Daniel Lins, uma involução dos corpos em tempo real – involuir, aqui, seria empreender uma dissolução da própria forma do corpo para liberar tempos. E é com seus longos planos-seqüência, a traduzirem a marcha incessante no deserto, que o filme nos conduz a uma zona de indefinição espaço-temporal que, ainda segundo Lins, traduz visualmente o desperdício do corpo agonizando. E depois dessa experiência-limite, (que culmina com o estrangulamento de um dos personagens), a descoberta da proximidade da estrada não mais surge como alívio pelo corpo sobrevivente à jornada extrema. Vista da janela do carro, à distância, sem mais reconhecer-se (ou estar incrustado) nela, cabe apenas a este corpo esperar dissipar o estranhamento que o envolve, na retomada do cotidiano pós-experiência. Um deserto sensual? É também sob uma lógica de exceder e transbordar que se constroem os filmes de Claire Denis. Diversos críticos referem-se ao conjunto de sua obra como um “cinema de sensações”, que sobrevaloriza essa dimensão corpórea/material do cinema para dali extrair uma construção narrativa em blocos que se encadeiam a partir dos afetos que deles imanam – daí, por exemplo, num texto publicado na Cahiers du Cinema, Saad Chakali, falar da recorrência, na filmografia da cineasta francesa, de uma montagem “oceânica” de planos, pautada pela dinâmica entre imersão e emersão operada no arquipélago cênico, com suas inúmeras conexões flutuantes, que evocaria o cinema de John Cassavetes e Maurice Pialat. E é através da edição que essa multiplicidade de conexões é criada, sem cronologia estrita ou necessidade de explicar/justificar uma cena: como afirma Martine Beugnet, estudiosa da obra de Denis, há sempre potenciais intercâmbios de pontos de vista, proximidades entre personagens sugeridos por cortes gráficos e aparentes paralelos visuais, mais que diálogos ou ações. Tais procedimentos, associados à adoção de uma visualidade grudada às superfícies filmadas, permite elevar as tensões entre o espaço físico e psicológico, a níveis extremos, em filmes como Bom Trabalho, realizado em 1999, e ambientado na África Oriental. Nele, vemos toda uma asfixiante atmosfera de competição, ressentimento, desejo sexual reprimido e exploração dos limites físicos (situações inerentes ao ambiente de treinamento da Legião Estrangeira) constituir-se a partir de uma visualidade que sobrevalorize os contornos e texturas sensuais dos corpos em movimento, dialogando com a beleza e aridez das formas naturais que compõem a concretude material do cenário desértico. Trata-se de uma estilização visual das formas no espaço, conjugada por uma “harmonia quase atonal” (expressão que tomo emprestada do crítico nova-iorquino Kent Jones) a interligar a extensa cadeia de imagens. Ao som da ópera de Benjamin Britten, tal estilização atinge o nível coreográfico (graças à parceria com o coreógrafo Bernardo Montet no preparo corporal dos atores), conjugando carne, céu, sol, montanhas, deserto numa paisagem que a câmera de Agnes Godard possa explorar muito de perto. Às vezes, numa distância por demais íntima, que nos permita ver a pulsação de uma veia no braço e nos faça apreendê-la como ritmo e textura puros. A repetição incansável e ritualizada dos gestos inerentes ao cotidiano militar, seja nos treinamentos ou nas tarefas de caserna, muitas vezes captados num plano extremamente próximo, por vezes permite uma espécie de suspensão temporal, abrindo espaço para uma abstração sensorial que permita ao olhar do espectador deixarse levar pela flutuação que conduz tais movimentos, tentando acompanhar a liberação da energia corporal que eles provocam. Exemplo disso está na cena da dança final, ao som de “The rhythm of the night”, hit do grupo de eurodance


Corona. Nela, o sargento Galoup (interpretado por Denis Lavant), numa pista de dança vazia, empreende um tour de force solitário, em que seu corpo, que carrega em si a memória de cada rito corporal repetido incontáveis vezes sob o sol escaldante do deserto de Djibouti, externaliza o excesso de energia acumulada, num processo catártico, desencadeado pela tensão que ronda seu iminente julgamento na corte marcial. Segundo Kent Jones, o pathos da cena estaria numa certa solidão e melancolia que permeia toda a tomada, associada à lenta construção de uma liberação incontrolável. Tal processo se consolidaria no momento em que o corpo tomba exausto num canto do quadro, em meio aos espelhos e às luzes piscando, quase desfalecido, como se já não houvesse mais energia vital alguma a percorrer seus órgãos. Martine Beugnet afirma que Bom trabalho insere-se numa tradição, dentro da obra de Denis, de filmes protagonizados por personagens que perambulam sem rumo (“wanderers”). Em lugar dos migrantes, temos aqui um grupo de homens que recusam sua própria nacionalidade em prol do ingresso na Legião Estrangeira: ou seja, continua aqui toda uma sensação de desenraizamento, de sentir-se passageiro em um território, de flânerie (no sentido benjaminiano do texto). Acredito que isso talvez justifique o fato da câmera, num primeiro momento, assumir um olhar desatento e flutuante pelos espaços, para logo depois render-se à fluidez hipnótica das formas e movimentos que se replicam incessantes, nos planos-detalhes dos corpos que repetem diversas vezes os mesmos exercícios físicos, até o limite da exaustão. Tal mudança de registro visual aproxima-se muito de uma transição entre comportamentos do olhar, que Giuliana Bruno, em seu livro Atlas of emotion, de 2002, vai identificar na passagem da visualidade óptica para a visualidade háptica, marcada por uma câmera colada à flor da pele, fazendo confundir sujeito e objeto de visão. Para a autora, o primeiro comportamento estaria ligado a uma idéia de voyeur, que assiste a tudo distanciadamente, enquanto que o segundo estaria diretamente associado ao voyageur, um olhar que desliza e passeia pelas superfícies que enxerga. O voyageur estaria associado a uma construção tátil do espaço, que ocorre de forma gradual, à medida que ele é tocado (seja pela ponta dos dedos, ou, metaforicamente, pelo olhar), percorrendo-se a superfície das imagens e suas respectivas texturas – vide, por exemplo, a maneira como nos é apresentada a caverna que os personagens exploram em Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas (2010), filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul. Exatamente por situar o espectador numa zona de imersão que, por alguns instantes, pode proporcionar um certo estado de indistinção entre si e o outro, tal condição háptica permitiria um mergulho sensorial nas imagens apresentadas, por exemplo, em Bom trabalho, potencializando o estado de quase hipnose provocado pela repetição das mínimas pulsações da carne roçada pela câmera de Agnes Godard em close ups e inserts quase abstratos. Para Laura Marks, as imagens hápticas seriam um tipo tão particular de imagem-afecção, de caráter erótico (num sentido batailleano de dissolução das descontinuidades), na medida em que elas constroem um relacionamento intersubjetivo entre a imagem e quem a vê. Ao convocar o espectador a preencher imaginariamente as fendas entreabertas na imagem, agregando memórias sensuais aos vestígios deixados por essa mesma imagem, temos uma operação de desorganização da distância voyeurista entre quem vê e o que e visto: “o erotismo aproxima tal distância e entrelaça o observador no que é visto”, afirma Marks em seu livro The skin of film (2000), um marco contemporâneo nos estudos sobre cinema e corpo. Pendular, oscilante, coreograficamente à flor da pele: como o barco que ondula nas sequências iniciais de Bom trabalho, a câmera flutua por entre closes de legionários de torso nu e cabeças raspadas (ou seja, pele pura, totalmente à mostra), ao som do trecho da ópera de Britten que se repete em ostinato. A oscilação nas águas nos faz atentar para a presença dessa câmera no ombro, como se respirasse enquanto capta as imagens. E essa oscilação se desdobra nos mínimos movimentos desses homens, cuja individualidade nos é por enquanto negado conhecer, homens que rastejam no chão sob o emaranhado de arame, que percorrem um atrás do outro os obstáculos da corrida, obrigando a câmera a toda hora subir e descer – ou ainda ir e voltar, de um lado pra outro, em pequenas e repetitivas correções de enquadramento, durante uma corrida num pequeno labirinto. Aqui, até as flexões, aos gritos conduzidas, no chão pedregoso e poeirento, ou as silenciosas marchas em fila indiana são dotadas dessa bruta sensualidade, num verdadeiro contraponto ao movimento ondulado (que aos


poucos vai se ampliando) dos ombros e quadris (mais femininos que masculinos), que vão e vem, incansáveis, ao som dos hits tocados na discoteca local. Por fim, resta ao corpo domado, disciplinado de Galoup, a tarefa de armar impecavelmente a cama, antes mesmo de, com a arma em punho, hesitar um disparo, na iminência de investir contra o próprio corpo. Acompanhamos, em silêncio, a arma ser deitada sobre o abdome, e contemplamos a veia que trepida saltitante, ritmada, ao redor do bíceps do soldado. Ritmo que se desdobra na canção de Corona, dançada numa sala de espelhos que duplica esse corpo, enquanto ele convulsiona no chão e rasteja talvez liberto (ou não) da disciplina do exercício repetido, ainda que preso às 128 BPM do compasso 4/4 do Eurodance. Aqui, a sensação de um transbordamento do corpo é bastante presente, e muito disso se deve à proximidade quase asfixiante com que a cena anterior é filmada, ressaltando a pulsação interna do corpo de forma a impregná-la na percepção do espectador – a ponto de continuar ditando a intensidade do trânsito dos afetos durante toda a duração da cena seguinte, filmada num plano de corpo inteiro. Essa tensão que se estabelece entre os planos hápticos, e seu transbordamento nas cenas não-hápticas seguintes, é um dos possíveis caminhos para se permitir uma abertura à experiência sensorial dispersiva que acredito caracterizar o cinema do realismo sensório. Trata-se de um cinema que convida a observar, seja de perto (no caso dos filmes de Claire Denis ou da japonesa Naomi Kawase), concentrando-se numa parcela do corpo que transborda o limite do quadro, ou de longe (como as teleobjetivas que abundamo nos filmes do taiuanês Hou Hsiao Hsien), numa forma de ver pela distância para perceber os diversos espaços-tempos cotidianos de maneira não-hierarquizada, dando ao olhar o livre-arbítrio de sua flutuação dentro do quadro. Em ambos os casos, a observação se faz sempre minuciosa, demorada, como se tais filmes tentassem, assim, capturar a atmosfera que impregna suas imagens. Talvez a palavra de ordem seja a de demorar o olhar um pouco mais sobre as coisas e os corpos, não como redundante ênfase narrativa, mas com certa curiosidade dispersiva – daí essa minha insistência num olhar flâneur, que não busca organizar o espaço narrativa ou descritivamente, mas deixa-se levar por ele, ao sabor do afetos, lembrando-nos o tempo todo que nossa mediação com o mundo e com as imagens passa primeiro pelo sentir (o quão demoradamente for necessário) para depois racionalizar. A partir daí, podemos pensar numa outra chave para relacionarmos a inserção entre corpos, espaço-tempo cotidiano e as diversas paisagens que daí possam porventura emergir.


Sobre Agnès Vardà Ursula Dart Assisti a Agnès Varda pela primeira vez em Barcelona. Eu cursava um máster em Documentário de Criação na Universidad Autonoma de Barcelona. É meio piegas falar em amor à primeira vista, mas não estou encontrado outra expressão, não. Confesso. Foi mesmo. Me apaixonei por ela. Aliás, pelos olhos dela. Melhor dizendo, pelo que vi através dos olhos dela. Me encantou ver alguém se colocar na sua obra. Literalmente. Sem subterfúgios, sem receios, falando em primeira pessoa. Me encantou ver um autor despir seu objeto enquanto filmava. Foi assistindo ao seu Os catadores e a catadora (2000) que me veio (sabe quando cai a ficha MESMO?) o sentido de cinema do real e do quanto uma obra pode ser autobiográfica. Junto com esta ficha, caiu de vez no estomâgo a vontade de realizar um trabalho que eu pudesse me colocar não apenas como realizadora, mas também como protagonista (e por que não?). Daí vieram Meninos e Uma volta na Lama, mas o espaço aqui não é para falar disso, não. O espaço aqui é para falarmos um pouco da nossa Varda e da sua realidade no cinema. Em Os catadores e a catadora, Agnès faz uma leitura atual da figura dos espigadores difundida no século XIX através das pinturas de pinturas de François Millet e Jules Breton. E se nas obras do primeiro, as figuras dos espigadores tenham aparecido de forma mais documental e se no caso de Breton as figuras já tenham sido apresentadas de forma mais posada (numa espécie de valorização dos retratados), os espigadores de Varda não só foram valorizados, mas apresentados em carne e osso, com suas histórias, verdades e mentiras diante a câmera mão da diretora. Varda deslocou no tempo todos aqueles espigadores e os localizou em pleno século XX (aliás os trouxe para os dias que antecediam a virada do século – o filme foi rodado no final de 1999). Sim, ela perpassou o conceito através de 150 anos. Os espigadores que entravam nos latifúndios para colher restos que haviam sobrado da colheita em pleno século XIX, estão agora em 1999, na França, colhendo batatas, uvas, resíduos das feiras, restos deixados por outros em lixeiras. O que no século XIX era entendido ação para sobrevivência, agora acrescentamos à sobrevivência física, a sobrevivência da alma. Agora temos artistas que buscam pelas ruas materiais para suas obras e a própria Varda que busca pelo mundo imagens para a construção física de seu ponto de vista. Varda escolhe suas imagens através de seu ponto de vista pessoal. É ela que enxerga os espigadores do século XIX nos campos e nas ruas do século XX (e já XXI). E assim Varda compõe sua realidade no seu cinema. Um conjunto de imagens que corroboram seu ponto de vista numa espécie de diálogo do teimoso que confirma aquilo que já havia visto antes dos outros: “não falei que era assim?”. Varda observa o mundo, observa a si mesma, interpreta, apreende e monta o jogo das imagens. Os documentaristas puristas podem dizer que qualquer outro documentarista faz o que ela faz: enquadra o que já existe. Mas Varda não apenas enquadra. Ela enquadra com seus olhos que através de sua câmera produz um resultado tão definido que parece não haver outra possibilidade. Ela acredita, vê e nos mostra, coerentemente. Esta obra de Varda traduz um conceito bastante discutido na academia. Na época que eu estudava em Barcelona, tive acesso a alguns textos que defendiam a cunha de Cinema do Real numa tentativa de substituir o termo Documentário de Criação (este termo acabava levando os desavisados a entender que alguma coisa de ficção pairavano ar). Capturando no mundo real as imagens que vão construir seu cinema, Varda produz um autêntico Cinema do Real. No caso dela o cinema do real ainda vem com um ingrediente a mais, ele vem repleto de um delicioso autobiografismo, com um retrato pessoal (com direito a moldura e tudo). E não falo isto porque a vemos mostrar suas raízes de cabelo brancas, sua pele de suas mãos (que a fazem acreditar que seu fim está próximo), sua casa, seus gatos, mas porque ela nos deixa ver o que seus olhos realmente vêem. Ela nos coloca ao seu lado na busca do que ela acreditou que encontraria. Viajamos juntos e passamos a ver o mundo como ela o vê. Se há alguma discussão sobre a existência deste tipo de cinema, Agnes Varda está aí para provar que o cinema do real está aí para ser visto e lido.


Os labirintos da alma Lucas Schuina Diversas são as manifestações cinematográficas que enfocam os aspectos religiosos e espirituais humanos. Cineastas como Andrei Tarkovsky, Robert Bresson, Carl Dreyer e Yazujiro Ozu estão entre os que dedicaram suas obras a problematizar sobre a dimensão metafísica existente em cada aspecto da vida humana, a ponto de esse aspecto tornar-se patente não apenas nas temáticas utilizadas em cada filme, como também no estilo estético formal adotado por cada um desses realizadores ao longo de suas carreiras. Este texto tem como objetivo analisar como dois cineastas contemporâneos, o mexicano Carlos Reygadas e o tailandês Apichatpong Weerasethakul, trabalham a questão do sagrado em suas obras, tendo em vista dois filmes específicos: Luz Silenciosa, de Reygadas, e Mal dos Trópicos, de Weerasethakul. Os dois realizadores, cada qual a seu modo, constroem um cinema em que a sensorialidade é valorizada em detrimento da explicação da narrativa por meio de ações ou diálogos. Predominam, aqui, elementos como construção narrativa por ambiências, ambigüidade narrativa e visual e planos alongados. Desejo individual e vontade divina Logo no início de Luz Silenciosa, somos convidados a acompanhar um belíssimo plano-sequência. Num primeiro momento, a câmera passeia lentamente em meio à escuridão por uma paisagem indefinível. Depois, já com a câmera estática, assistimos ao lento amanhecer surgindo no horizonte, com as árvores à contraluz. Num terceiro momento, a câmera se movimenta num lento travelling em direção à paisagem visada e então para, com o dia já claro, nos pastos de uma terra ainda desconhecida para o espectador. Essa seqüência inicial nos remete ao tom espiritualístico que permeará toda a obra. Ao longo do filme, Reygadas vale-se de planos alongados como o citado, nos quais a câmera contempla os personagens e as paisagens naturais como pano de fundo. Nas palavras do teórico David Bordwell, falando a respeito de Tarkovsky, uma das influências explícitas de Reygadas, é como se a câmera filmasse o Homem se movimentando em uma natureza mística, mas nem sempre acessível a ele. Luz Silenciosa é ambientado em uma comunidade menonita no norte do México. Os menonitas formam uma austera denominação protestante avessa ao progresso tecnológico. É nesse ambiente que emerge o conflito de Johan, um homem divido entre a arrebatadora paixão pela amante Marianne e seu casamento com Esther, que representa o amor familiar. Johan jamais esconde o romance extraconjugal de Esther, que se comporta de maneira resignada, apesar de sofrer internamente. Ele se sente tentado a viver com Marianne por considerála um presente divino que não deve ser desperdiçado. Entretanto, atormentado pela dúvida, nunca toma uma decisão definitiva. Como bem coloca Luanne Araújo em sua monografia sobre o diretor mexicano, Johan, o herói do filme, tem como antagonista principal a “sua própria dúvida e a fatalidade da urgência em se tomar uma decisão”. No meio de seu tormento, ele pede conselhos a duas pessoas: seu melhor amigo, Zacarias, e seu pai, que também é pastor da comunidade. O primeiro incita-o a seguir com Marianne, pois, afirma, Johan teria encontrado nela a sua “mulher natural”. O pai, por seu turno, aconselha-o a continuar com sua família, pois a amante era uma paixão passageira. E ilustra sua fala com seu próprio exemplo: ele mesmo pensou em trocar a esposa por outra mulher quando era mais jovem, mas percebeu que o romance não daria certo. Os dois momentos são filmados com a mesma parcimônia, sem pesar para qualquer dos lados. Da mesma forma acontece na contraposição das cenas em que Johan passa com sua família e aquelas em que está com a amante. Apesar da grave solenidade dos momentos em que ele está à mesa com a mulher e os filhos, existe também cumplicidade no meio familiar. Exemplo disso é a cena em que Johan e Esther dão banho nos filhos. Novamente temos a câmera filmando calmamente, desta vez apresentando os pais esfregando os seus filhos com carinho,


as crianças brincando na água inundada pelo sol. O diretor mexicano segue o postulado de Robert Bresson, outra grande influência, que diz que “a beleza dos filmes não está nas imagens, mas sim no inefável que delas emana”. Como explica Mircea Eliade, o sagrado também se revela em momentos cotidianos, como a comunhão em família. Nos encontros de Johan com Marianne, predominam os estímulos sensoriais realistas, nos quais a câmera se aproxima bastante dos corpos dos personagens. Isso não quer dizer, porém, que sejam momentos em que a carne prevalece sobre o espírito, um tema constante na filmografia de Reygadas: o sexo, que aqui não é explícito como em seus trabalhos anteriores, também apresenta a sua dimensão metafísica, na medida em que representa o prazer supremo entre duas pessoas que compartilham dos mesmos valores. Apesar de os menonitas representarem uma sociedade religiosa tradicionalista, existe um elemento nessa cultura que não pode ser descartado, como explica Luanne Araújo: a valorização da escolha individual, simbolizado pela batismo voluntário, um contraponto à doutrina católica. Nesse sentido, Johan carrega o peso da responsabilidade por suas próprias escolhas, e daí o seu impasse. Escolher viver com Marianne. No meio desse conflito, eis que Esther morre repentinamente de um infarte durante um temporal, dando a entender que a verdadeira causa foi o sofrimento diante da hesitação do marido. No velório, Johan, sentindose culpado, diz a Marianne que daria tudo “para deixar as coisas como estavam antes”. É nesse momento que Marianne entra no aposento em que está o corpo de Esther e lhe dá um beijo, ressuscitando-a. A cena faz uma referência ao desfecho de A Palavra, de Carl Dreyer, mas sem o simbolismo teológico-cristão desse filme. Ela representa a união de duas mulheres que são vítimas iguais, e não inimigas. Luz Silenciosa encerra-se com um contraponto da cena de abertura: vemos o dia lentamente escurecer na medida em que a câmera se afasta da paisagem. Eis a sugestão de um universo em que existe uma dualidade de forças: o desejo humano e a vontade divina. Floresta espiritual Vindo de um país cuja cinematografia é pouco conhecida no ocidente, o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul realiza filmes misteriosos, cheios de ambigüidades narrativas, entrelaçando elementos fantásticos e realistas. Para entender melhor as intenções desse cineasta único é preciso levar em conta o profundo amor que ele nutre por seu país natal. Os programas televisivos, as músicas, os contos folclóricos da Tailândia, lugar em que elementos surreais misturam-se naturalmente ao cotidiano das pessoas, aparecem nas obras do diretor não como aspectos secundários, mas sim como a própria musculatura desses filmes. São o que o próprio Weerasethakul (ou Joe, nome adotado no ocidente) chamou em um artigo de “fantasmas no escuro”, imagens tiradas de recordações suas e das outras pessoas. Mal dos Trópicos apresenta uma narrativa bifurcada, o que não é incomum na filmografia de Weerasethakul. E ao contrário de Luz Silenciosa, a atmosfera metafísica da obra não aparece de forma clara desde o início. O filme se abre com a citação de uma frase atribuída ao japonês Tom Nakajima, que diz que o ser humano deve controlar a besta fera que é por natureza. Logo depois vemos um grupo de oficiais do exército posando para uma fotografia com um cadáver. Enquanto um dos oficiais flerta com uma garota por meio de um walkie talkie, assistimos à partida do grupo em direção a uma floresta, quando surge no ar a música pop tailandesa, que de diegética vai se transformando rapidamente em extra-diegética. Depois, aparece em cena um homem nu também caminhando em direção à floresta, que serve como uma espécie de adiantamento da segunda metade do filme. Na primeira parte de Mal dos Trópicos acompanhamos o desenvolvimento do romance entre Keng, um soldado, e Tong, um jovem que trabalha numa fábrica de gelo. Essa primeira metade enfoca o ambiente urbano, com os personagens realizando atividades relacionadas à cultura pop, como ir ao cinema, jogar videogame, ouvir música. Joe filma essa primeira parte de maneira quase documental, registrando pormenores da vida cotidiana tailandesa. No final do primeiro ato do filme ocorre um episódio bastante significativo: Keng e Tong lambem as mãos uns dos outros, no qual é possível enxergar o mesmo realismo sensório dos encontros de Johan e Marianne, e na seqüência Tong caminha em direção à escuridão e desaparece. Depois desse acontecimento,


passamos por um breve interlúdio no qual vemos Keng andando de moto e logo posteriormente em sua casa vendo fotografias de Tong. Termina a primeira parte. O filme recomeça com novos créditos. Esta segunda parte, nomeada de “Um caminho do espírito”, é baseada num conto folclórico do tailandês Noi Inthanon, que fala sobre um poderoso shaman que conseguia se transformar em várias criaturas e andava pela floresta pregando peças nos moradores locais. O shaman, porém, teria ficado preso no espírito de um tigre depois de ter recebido um tiro. Por isso, todas as noites a fera aparece na floresta para caçar os viajantes, sendo que o espírito do shaman vagueia durante o dia. E então o filme passa a apresentar as desventuras de um soldado no meio da selva, tentando capturar o espírito do shaman durante o dia e temendo pela fera durante a noite. O mais importante a notar aqui é como Joe estabelece a floresta como o lugar do sagrado, em contraponto ao profano do espaço urbano. Segundo Mircea Eliade, o homem religioso encara o espaço e o tempo como que constituído por roturas, em contraposição ao espaço-tempo profano, que é linear e homogêneo. Assim, a partir da atmosfera mística da segunda parte de Mal dos Trópicos, a floresta torna-se um lugar qualitativamente diferente dos outros, no qual o tempo expande-se ad eternum, não tem a duração natural do tempo profano. Joe estabelece essa atmosfera a partir do emprego de planos estáticos, sem utilizar trilha sonora, fazendo um longo estudo dos sons da floresta. Somos confrontados por uma realidade misteriosa. Nessa ambientação, a história folclórica na qual o soldado é enredado serve como materialização dos conteúdos mais profundos da alma humana e enraizados no inconsciente coletivo, como explica Carl Jung. Ao final do filme, o soldado é obrigado a encarar a fera e unir-se a ela. Alguns encaram esse desfecho como a materialização das pulsões presentes no primeiro pedaço do filme. Weerasethakul afirma que as duas metades do filme são como “gêmeos siameses (não) idênticos”. Mas, há enfim, espaço para várias interpretações. O próprio Joe é um entusiasta de interpretações alternativas de seus filmes.


Atenção, dispersão e fluxo Sidney Spacini Quando tratamos de cinema contemporâneo nos deparamos com uma série de vertentes, agrupamentos criados para classificar e, em uma certa medida, entender como se configuram as tendências de uma produção audiovisual tão diversa com a qual temos contato. Um desses agrupamentos, de cunho mais autoral, seria o que parte da crítica denomina uma “estética do fluxo”, na qual a experiência espectatorial se moldaria a partir das ambiências e sobrevalorizações da dimensão sensorial. Aqui, categorias como “atenção/dispersão” são centrais para pensarmos a relação que tais filmes propõem com o espectador. Neste texto, nos concentraremos em dois exemplos: Shara (2002), filme de Naomi Kawase, e Millennium Mambo (2001), de Hou Hsiao Hsien. Antes de analisarmos os filmes, contudo, vamos rapidamente apresentar os diretores, uma vez que, em ambos os casos, suas cinematografias permanecem inexplicavelmente inéditas no circuito comercial brasileiro. Naomi Kawase é japonesa, nascida em 1969. Em 1989, Naomi terminou sua graduação em fotografia na Escola de Fotografia de Osaka. Na fase inicial de sua produção Kawase trabalhou essencialmente com documentários em 8mm. Sua cinematografia deixa clara essa ligação entre Kawase e o documentário, seja na construção das cenas – o próprio modo de filmar – seja na riqueza de elementos espontâneos e naturais (transeuntes, luz do sol, árvores e etc). O cinema de kawase é muito marcado por carregar em si muito da própria autora, tratando de temas que remontam sua vida pessoal e fortemente ligados às questões de perda e ausência – vide que Kawase nunca conhecera seu pai biológico e que . A riqueza dos filmes de Kawase vem por meio da contemplação dos espaços e dos movimentos. Um cinema “zen” por assim dizer. Muitos críticos conterrâneos de Kawase entendem seu cinema como retrógrado, por na maioria das vezes tratar de um Japão não-convencional. Kawase filma em Nara, cidade onde reside e que um dia fora a capital do Japão. Uma cidade que aparentemente parou no tempo. Alguns de seus filmes, como Hotaru (2000) inclusive denunciam o avanço da onda modernizante na região. Hsiao-hsien Hou é taiwanês, embora nascido na China continental em 1947. Hou foi morar em Taiwan junto à sua família durante a Guerra Civil Chinesa. Graduado na Academia Nacional de Artes de Taiwan, Hou começa a sua carreira como assistente de diretor na industria de cinema local. Em pouco tempo Hou começou sua produção autoral, voltada para uma série de discussões que perpassavam o campo político e econômico de Taiwan, dentro de um movimento que se convencionou chamar de New Taiwan Cinema. Pode ser citado, junto a Tsai Ming-liang e a Edward Yang (este, seu colega de geração nos anos 80), como um dos mais influentes cineastas de seu país. Contudo, apesar de ter notório sucesso de público de crítica em festivais internacionais, não tem tanta popularidade localmente. Suas construções cênicas privilegiam uma riqueza de elementos e espaços, criando camadas de objetos e ações nas quais a ação da cena se perde dentre vários outros espaços possíveis dentro de uma mesma cena. É importante notar que ambos os diretores asiáticos estão inseridos em uma lógica cinematográfica um pouco diferente do circuito ocidental. Se, no começo de sua carreira, Hou trabalhou em uma indústria local que lançava praticamente dois filmes por semana, suprindo o seu mercado com uma profusão de obras de fácil acesso e intensa adesão popular (em grande parte se tratavam de filmes musicais de orçamento médio), com o passar do tempo essa indústria se extinguiu e hoje o cinema de Taiwan se reduz a um conjunto de propostas autorais (embora obtenha bastante sucesso no circuito dos grandes festivais internacionais). O cinema japonês, por sua vez fora muito marcado, ao mesmo tempo, pelos gêneros específicos regionais e pela vertente autoral, a nouvelle vague japonesa dos anos 60. Talvez o que ligue mais intensamente os diretores seja a adoção de uma Estética do Fluxo, proposta defendida por alguns críticos de cinema da revista Cahiers du Cinema (como Stéphane Bouquet, Jean-Marc Lalane e JeanMichel Frodon, entre outros), em textos publicados no começo da década passada. Nessa estética, podemos


notar uma construção fílmica onde a mise-en-scène e a cadeia narrativa do filme estão voltadas para uma relação mais sensória e carregada de afetos para com o espectador. Uma das maiores características desse agrupamento estético é a preferência pelo uso de planos sequência longos, que contribuem para a criação da sensação de imersão no tempo do filme, possibilitando uma reflexão maior acerca dos elementos contidos na cena. Dentro da obra de Kawase e Hou podemos visualizar características que ligam as estéticas e narrativas. Os filmes de ambos apresentam uma forte ligação com cotidianos e suas peculiaridades e mais ainda no que diz respeito à relação da câmera com a ação desenvolvida pelos atores – a construção de um olhar tímido, um observador não-corpóreo assistindo o espaço e disposto a se perder nele. A construção da cena e o método técnico de obtenção desse efeito difere na obra de cada um, mas a dispersão programada, utilizada como fator de desenvolvimento de narrativa estão presentes em seus filmes de forma recorrente. Kawase lida com a câmera de forma mais íntima, personificando esse olhar e dando a ele a dinâmica de um observador que explora o espaço em que está inserido. Interage visualmente com esse espaço e se desloca livremente por ele. A construção câmera-corpo que se deixa fluir pelo espaço, numa sensação forte de presença do olhar como se o espectador fosse convidado a sentir-se de fato um corpo dentro do filme. Nesse estar/ser no filme a empatia com o espaço torna-se cada vez mais dominante na construção da relação e visualização de cenas. Isso constrói uma estética imediata de dispersão imersiva pela própria dinâmica da câmera que interage com o olhar do visualizador em um efeito que confere ao seu cinema uma espécie de visão subjetiva dos acontecimentos que se alia à visão. Hou, por sua vez, lida com construções de quadros com câmera afastada, quadros meticulosamente carregados de elementos e movimentos de câmera extremamente suaves. Podemos notar assim a presença da preocupação interativa com o olhar por meio da abertura de possibilidades de dispersão. Agora lidamos com um observador estático ao passo que lhe é apresentada uma construção do olhar extremamente difusa, de forma que o quadro seja definido como um espaço recortado e extremamente rígido, quase como se seus elementos estivessem ali compactados entre as lentes. Paradoxalmente a rigidez do quadro se deixa invadir pelos elementos extra-campo que afloram de forma insistente por movimentos e reconfigurações do espaço, o que confere às construções de Hou uma dinâmica mutável. O campo focal é só mais um detalhe dos múltiplos elementos consonantes da mise-en-scène de Hou, aderindo às formações que permitem seu espectador trafegar pelos planos e camadas que compõe de forma a estimular a dispersão espacial no processo de leitura do filme. A visualização nos filmes de Hou se assemelham a uma estrutura de microscópio. Basicamente, ambos englobam a dispersão sensorial na composição dos quadros e enquanto fator diegético, e aqui entramos numa concepção de diegese que perpassa a narrativa e cria laços com a absorção, o contato com o filme em si. A sensorialidade aflora na obra dos diretores partindo das diretrizes primárias da percepção visual (espaço fílmico, foco, composição em si) e se complementando com a dispersão gerada pelas mesmas trazendo outros efeitos de linguagem e percepção que alteram a própria cadeia narrativa. A percepção fica entendida enquanto fenômeno instável e diretamente ligado à subjetividade numa relação com o íntimo processo de fruição do espectador. Para entender melhor como se dá a dinâmica dessas relações, vamos falar um pouco dos de dois filmes de cada um dos diretores: de Kawase, Sharasojyu (2003) ; de Hou, Millenium Mambo (2000). O corpo dentro do filme A narrativa de Shara remonta a história de uma família que perde um filho (Kei), de como cada integrante da família lida com essa perda, da construção de um festival tradicional da cidade de Nara (Sharasojyu) e do romance do irmão gêmeo do filho desaparecido (Shun) com a sua vizinha (Yu). Todas essas cadeias narrativas dramáticas se entrelaçam e se transformam em uma única com a progressão do filme, que (vale a pena lembrar) carrega em si muito de uma crônica do cotidiano da vida em uma cidade deslocada da modernização frenética do japão e ainda assim com tantas peculiaridades quanto seus personagens e


suas personalidades e maneiras de lidar com a perda, o recomeço, a vida em si. No fim Shara – festival em honra à morte de Buda – mostra-se uma grande celebração à vida em sua magnitude e sua força. A renovação do ciclo, o parto que se faz presente. O início de uma vida nova é a força motriz dessa obra. Em sua estrutura, alem dos fatores enumerados acima que são inerentes às obras de Naomi Kawase, vemos aflorar em momentos pontuais imagens de elementos naturais (folhas, insetos, jardins, luz em si) que tomam instantes do olhar mas demonstram uma preocupação com uma totalidade composicional – sem ignorar o fato desses fatores influenciarem na própria dispersão programática criada como estratégia para a absorção e fruição do filme. Kawase certa vez disse a uma entrevista à revista Cinética (“O real como um milagre: seis perguntas para Naomi Kawase”, 2007) que filma a alegria de viver. Esse é o fator chave que está encodado nas sequencias de Shara: viver, reestruturar-se, voltar ao começo do ciclo, renovar-se. A dispersão se monta para deseducar o olhar do espectador quanto à espectativa de uma narrativa dura e engessada numa estética montada de forma a repetir um padrão focado em ação para que esse olhar possa ser orientado verdadeiramente para a estese de vislumbrar o mundo de forma crua – porém mediada primariamente pelo olhar da câmera. Na sequência inicial, a câmera se desloca a partir de um cômodo da casa, no qual o espectador jogado em uma visão que se desloca pelo espaço descobrindo caminhos. Somos convidados a passear pelos detalhes e texturas do espaço ao qual está sendo apresentado, numa consonância entre a vontade da câmera-corpo de visualizar esse espaço e nele criar seu ambiente e a vontade do visualizador de sentir seu olhar guiado, de se encontrar nesse espaço. A sequência inicial de Shara dá dicas sobre a proposta de relação fílmica que Kawase quer estabelecer com o espectador durante todas as sequências seguintes. Nelas, a paisagem urbana se mescla à performance dos atores de modo que essa ação do deslocamento torna-se indistinguível do todo, do ambiente que engloba a ação. Assim os atores desenvolvem uma progressão absolutamente ligada ao espaço em que estão inseridos (na segunda sequência Yu passa a olhar despercebida pelos objetos – talvez intra ou talvez extra-quadro). A representação do cotidiano nas narrativas desenvolvidas torna-se um fator de esvaziamento da ação, abrindo assim as possibilidades de visualização do ambiente apresentado conjugado à ação de forma mais acentuada. A construção se dá de forma que o contínuo repetir-se do elemento central, a ação do quadro em si, torne-se tão interessante quanto os movimentos ou planos de ação ditos secundários, nivelando assim a percepção dos mesmos por parte do espectador. O momento mais forte (talvez o ápice da exploração da estética da dispersão em Shara) trata-se da cena que representa o festival de Shara. A sequência começa em uma dinâmica de movimentos orgânicos – novamente citamos a idéia de uma “câmera-corpo” para definir esse processo – com um destaque para o uso do zoom e a construção de planos mais longos revezados com outros planos curtos caracterizados pelo corte rítmico das batidas da música cultural do festival de Shara, finalmente concretizado e representativo do final do ciclo pelo qual os personagens estiveram trabalhando durante todo filme. O festival em si é o momento do êxtase da trama, onde são concretizadas todas as perspectivas de superação de de vida nova até então anunciadas. A presença de um público dentro da cena se mostra como uma renovação da estética que Kawase constrói para a dispersão espectatorial englobando a multidão dos dançarinos, a multidão dos espectadores e a rítmica dos passos dos dançarinos num espetáculo de elementos que se misturam formando um conjunto de elementos extremamente diversificado saltando à visão. Nesse momento a câmera-corpo também se dispersa “olhando” para diversos aspectos desse espaço, onde a ação de Yu, tendendo a protagonizar a cena, tende a ser interpretada como mais uma na multidão dos elementos em profusão. Todos os personagens se confundem com o espaço, reforçando a sensação do pertencer em detrimento do agir, como uma composição natural onde os corpos seguem o fluxo da cena, que é coroada com a chuva repentina. O voyeurismo de Hou Millenium Mambo é construído em uma retrospectiva curiosa que retoma eventos acontecidos dez anos antes da narração, em 2000 – sendo que o mesmo fora lançado em 2001. É válido lembrar que mesmo que


os eventos, mesmo remontando uma pretensa retrospectiva, são apresentados de forma corrente, uma presentificação dos elementos narrativos. Acompanhamos Vicky e seu tumultuoso relacionamento com o jovem e rebelde Hao-hao. Em uma sucessão de pequenos fragmentos narrativos o espectador acompanha um amontoado de “lembranças” sobre a relação entre os dois, a vida noturna de Taipei, os problemas de ambos com o álcool e a as drogas e diversos outros acontecimentos guiados por uma narração em off geralmente fora de sincronia com os acontecimentos que são mostrados na tela. O filme passa então a tecer uma colcha de retalhos dessa histórias, crônicas individuais das relações entre os jovens que juntas fazem parte de um todo mesclado e indistiguível enquanto uma cadeia temporal única, passando por vezes a impressão de que ali há lacunas a serem preenchidas pelo espectador. Assemelha-se a um quebra-cabeças em que faltam peças demais para se criar um todo coeso, mas que pode ser ainda assim compreendido como parte de um todo maior e não demonstrado. A estética que Hou cria nesse filme é radical quanto ao uso de luzes e elementos que ganham vida em quadros extremamente carregado intencionalmente para que a atenção do espectador seja bombardeada com uma torrente informacional invasiva, enquanto a posição voyeur do espectador é multiplicada em sequências extremamente pessoais da vida dos protagonistas numa sensação de invasão plena da privacidade dos mesmos. Além dessa ênfase na situação de espectador/voyeur, estamos diante de uma obra audiovisual que transita entre o distanciamento frio da ação – tendendo a uma dimensão de análise pura do comportamento como em uma pesquisa empírica de sobre as relações e a contemporaneidade – e a abertura absoluta para que o espectador escolha os espaços por onde quer trafegar na sua experiêcia fílmica. A mise-en-scène de Hou busca um embasamento que foge ao controle da percepção do espectador libertando o olhar do foco da ação no momento em que o contato com o quadro e as ações repetitivas tomam para si o status de igualitárias para com o resto do ambiente construído pelo cineasta. Não brigando, não sobressaindo, não se escondendo no espaço. Apenas coexistindo. Fica a cargo do espectador escolher o foco de sua experiência. A construção inicial de Millenium Mambo, assim como em Shara, serve de ambientação para o espectador em relação à experiência de se assistir esse filme. Vicky - apresentada de costas para câmera - começa em um aparente eterno caminhar sobre uma passarela fechada sob uma meia luz seguida por uma cãmera distante e espacialmente referenciada como uma curva. Os padrões da música se confundem com os padrões do pavimento e do teto da passarela, enquanto o movimento relaxado de Vicky, por vezes até olhando para trás (mas não necessariamente para a câmera), soa um movimento ritmado e ditado também pela música. De fato Millenium Mambo mostra-se construído em grande parte por meio da trilha sonora eletrônica e repetitiva trazendo uma relação para com o espectador baseada nessa rítmica. Também nos vale aqui ressaltar a terceira sequência do filme, quando nos é apresentado Hao Hao. A câmera faz movimentos que acompanham a performance de Vicky ao deslocar-se no espaço e ignorar Hao Hao até que o mesmo passe a integrar a cena num movimento de foco. A questão mais importante a ser avaliada nessa cena é a capacidade da ação dos atores em relação a rítmica da trilha em uma consonância que leva o espectador a se envolver com a cena antes de se apresentar os demais elementos de cena em profusão, apresentados de forma gradual (latas, cigarro, fumaça, velas) dando origem a uma composição riquíssima de objetos a serem explorados e o tráfego do olhar torna-se possível no momento em que a câmera passa a estaticidade. O visualizador da cena já está contextualizado do espaço em que a cena se desenrola e o plano de ação dos atores em padrões permitem que o mesmo se desloque pelos elementos apresentados. Essa estética se repete em múltiplos momentos do filme, traçando essa estética de dispersão programada que, como vimos, é uma característica marcante tanto navvvv obra de Hou quanto na de Kawase.


O lamento dos ninfos

Rodrigo de Oliveira

“Imagens não identificadas se inscrevem sobre a retina, acontecimentos desconhecidos fatalmente ocorrem, palavras proferidas tornam-se a cifra secreta de um impossível saber de si mesmo. Esses momentos de “não vi, não peguei” são a cena primitiva do amador de cinema, aquela em que ele não estava quando só se tratava dele. No sentido em que Paulhan fala da literatura como de uma experiência do mundo “quando nós não estamos lá” e Lacan “do que falta ao seu lugar”. O cinéfilo? Aquele que arregala em vão os olhos, mas que não dirá a ninguém que ele nada pôde ver. Aquele que prepara para si uma vida de “observador” profissional. História de fazer seu atraso, de “se refazer” e de se fazer. O mais lentamente possível.” (Serge Daney, em O travelling de Kapò) Na seqüência final de A Ponte das Artes, o jovem Pascal finalmente é apresentado à mulher que salvara sua vida e por quem se apaixonara profundamente, mesmo que Sarah já estivesse morta quando provocou essas duas pequenas revoluções na vida do rapaz. Ele é todo projeção, expectativa, futuro. Acostumado a apenas imaginar a figura de seu amor, a lidar com sua presença fantasmática, a Pascal corresponde verdadeiramente o apelo ao imaterial, ao invisível. Sarah, pelo contrário, insiste no apelo à materialidade, ao gozo do presente, à visibilidade. Ela, aparição espiritual, é quem comanda o desejo pelo mundo-tal-qual-ele-se-apresenta, enquanto ele, carne e osso, se segura num mundo ideal do qual não pode ter certeza de que fará parte. Não há como assistir esta seqüência do filme de Eugène Green sem se lembrar de um outro confronto de amantes em posições diferentes sobre a realidade da experiência de mundo, aquele de Emmanuelle Riva e Eiji Okada em Hiroshima Mon Amour. Ela insiste em se apresentar como testemunha ocular de uma tragédia, ele nega essa possibilidade com um “você não viu nada em Hiroshima” que ecoa no encontro de Pascal e Sarah sobre a Pont des Arts. Entre os dois filmes, quase cinqüenta anos de história do cinema. Alain Resnais fala sobre a precariedade do contato com o real como salvaguardo da experiência, e Eugène Green fala sobre a precariedade da ilusão. Em ambos os casos, há um sentimento retardatário em relação à História: ela é aquilo que acontece quando lá não estamos. E ainda assim é o lugar que desejamos estar, sem nunca admitirmos exatamente que esta é uma experiência de segunda mão, que nos toca em parte, nunca exatamente nos pertence e, no limite, sequer se dá à visão. A Ponte das Artes é, entre os vários filmes que comporta dentro de si, também o filme que desconfia desse poder, ou melhor, desse “direito” ao olhar. É tudo aquilo que Pascal tenta observar num “lado de lá” inexistente, nessa outra margem do rio onde tudo será possível, e nesse trajeto quase deixa perder a chance de ser ponte, de sobreviver neste espaço entre uma coisa e outra, ali onde tudo é urgente demais para que se perca tempo com um desejo tão primário (afinal, quando o sol se pôr já não haverá sombra possível para os amantes, e assim o abraço e o toque serão perdidos). “Você não viu nada em Estrasburgo”, eis um título alternativo para Na Cidade de Sylvia, filme cuja trajetória do protagonista se aproxima cruelmente daquela de Pascal: cruelmente porque nela não há ponte – elas serão todas queimadas. Xavier, descrito pelo cineasta José Luis Guerín simplesmente como “o sonhador”, é uma espécie de encarnação da figura do cinéfilo apontada por Serge Daney na citação de abertura. Fiador inabalável de sua própria memória, atravessa seis anos obcecado por uma mulher que conhecera num bar, e quando retorna à


cidade do encontro para procurá-la, tem nas mãos mapas meticulosamente estudados, caminhos do passado refeitos em setas e direções afirmativas, domina completamente o território – mas não o rosto. Frustrado pela impossibilidade do “lado de lá”, pela impossibilidade de preencher com uma expressão humana os esboços de mulher que rabisca em seu caderno, sempre telas em branco para um preenchimento que está por vir, que está a um palmo de ser reaprendido pelo olhar, ele vaga por essa cidade com a certeza da sobrevivência pelo olhar. Como em Daney, no entanto, é incapaz de dizer que “nada pôde ver”. É assim que experimenta sua inabilidade em reprisar o momento perdido com Sylvia, voltando ao mesmo bar, falando ao ouvido de uma outra mulher talvez as mesmas coisas que dissera à Sylvia, incapaz de lidar com o presente e lutar com as armas do presente (“falar com a realidade na língua da própria realidade”, diria Pasolini). O sonhador de Na Cidade de Sylvia se transforma, ele próprio, na memória do homem que um dia fora, e perde-se do homem que é. Eterno arregalar os olhos, sem ter uma Sarah à sua frente para dizer que é importante também saber fechá-los. O “espaço do entre”, esse que Godard julgou um dia ser o verdadeiro específico do cinema, chega aos anos 2000 e a Green e Guerín como o espaço insuportável, necessário e insuportável, que nos expele, que não deseja ser habitado. Porque é justamente o espaço da consciência de uma derrota, que é de Pascal e Xavier tanto quanto é do cinema, arte do século passado: às vezes não há nada ali para se ver, e os instrumentos que desenvolvemos depois de décadas de decodificação do olhar e de domínio do drama deixam de ter serventia. E assim, viver sobre a ponte é assumir o risco de ignorar as margens, ocupar o que há entre uma imagem e outra é também abrir mão de lidar com ambas. E o que fica do mundo de A Ponte das Artes e Na Cidade de Sylvia é sempre a impressão daquilo que se perdeu de vista enquanto se buscava o invisível. São as mulheres por quem não se apaixonou enquanto projetava-se a mulher perdida, é o amor que quase se abdicou a viver no presente enquanto projetava- se o amor do futuro. Porque esses dois homens, Pascal e Xavier, tem uma natureza constitutiva radicalmente daquela de suas amadas. E, em relação a elas, serão sempre e igualmente retardatários: a alternativa é morrer, para o primeiro, e apagar seis anos de história pessoal, para o segundo. Seus lamentos, contornados por Green e Guerín, ecoam desejos de uma postura diante do cinema que é, hoje, inviável. Seus filmes convocam para uma batalha para o problema que é o real, a matéria, o agora. Não há como escapar, e por isso mesmo os mapas são ineficazes – mas mesmo Dante, quando desceu ao inferno, precisou de um guia.


Sobre os Autores


Professor de Comunicação Social da UFES, Doutorando em Comunicação e Erly Vieira Jr. Cineasta, Cultura UFRJ, Brasil. em Comunicação social - Habilitação em Lucas Shuina Graduando Pesquisador da área de Cinema Autoral Contemporâneo

Jornalismo pela UFES,

de cinema, pesquisador e cineasta. Graduado em Cinema pela UFF. É colunista Rodrigo de Oliveira Crítico na revista Cinética em Comunicação social - Publicidade e Sidney Spacini Graduando Pesquisador da área de Cinema Autoral Contemporâneo

propaganda pela UFES.

Master em cinema documental pela Universidad Autonoma de Barcelona produtora,

Ursula Dart documentarista e pesquisadora


Curadoria

Rodrigo de Oliveira Erly Vieira Jr Lucas Schuina Sidney Spacini Ursula Dart

Produção

Erly Vieira Jr Lucas Schuina Sidney Spacini Honório Filho Rodrigo de Oliveira

Assessoria de Imprensa Lucas Schuina Honório Filho

Edição de textos Erly Vieira Jr.

Projeto Gráfico (catálogo, cartaz e folder) Sidney Spacini

Agradecimentos

Alexandre Curtiss Cleber Carminati Fábio Goveia Gabriela Alves Guilherme Rebêlo José Soares (Junior) Márcia Jardim Nathan Costa Virgínia Jorge Cronópio – Discussão e Produção Literária Direção do Centro de Artes - Ufes


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