Silenciadas – Histórias de violência na sala de parto

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Gabriela Varella Marcela Lima

Silenciadas Histórias de Violência na Sala de Parto

São Paulo, 2015 2

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Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo Faculdade Cásper Líbero Reportagem: Gabriela Varella e Marcela Lima Diagramação e arte: Ricardo Napoli Revisão: Alain François 4

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SUMÁRIO Agradecimentos | 11 Introdução | 13 O preço da gravidez na adolescência | 17 A mãe que virou doula e as intervenções de um parto normal | 37 Duas cesáreas e um parto humanizado depois dos 40 anos | 49 Quando o trauma é a cura | 67 Um ponto cego em uma cesárea de emergência | 89 Enfermeira e vítima de violência obstétrica | 107 Um passeio com o recém-nascido para longe dos braços da mãe | 123 Entendendo a violência obstétrica | 146 Sobre as autoras | 153 Entrevistados | 155 6

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Este livro-reportagem ĂŠ dedicado a todas as mulheres

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AGRADECIMENTOS

Somos gratas a Ana Lúcia Keunecke, por encher de luz questões ainda obscuras em relação à violência obstétrica e por compartilhar sua história pessoal, essencial para dar os primeiros passos na criação da ONG Artemis. A organização não governamental apura denúncias e tem um trabalho transformador na luta contra casos abusivos nos partos. Aos familiares e amigos, que ofereceram apoio emocional e encorajaram para que continuássemos coletando histórias que pudessem frutificar em relatos humanos e reais. À professora Bianca Santana, pela paciência, franquezas e horas de aconselhamento e direcionamento para os caminhos de construção do livro-reportagem. Este projeto precisou de força para ser personificado em palavras. Às mulheres vítimas de violência obstétrica, que compartilharam suas histórias pessoais e dores, transformadas em atos corajosos por conseguir expor memórias de feridas que ainda voltam a se abrir. Somos gratas pela confiança. 10

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INTRODUÇÃO

Assim como os bebês, este livro-reportagem foi gerado para poder nascer. O que motivou essa gestação foi a realidade de que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. É o que mostra a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, publicada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. Ainda segundo o estudo, as agressões mais comuns são gritos com as pacientes, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e negligência médica. Em voga, o assunto violência obstétrica tem sido explorado de maneira crescente, principalmente pela mídia, por especialistas na área da saúde e por ONGs de Direitos Humanos. O processo de gestação permeia também o nascer de novas mulheres, que podem passar a se perceber como mães. A maternidade envolve alegrias, emoções e medos que geram cicatrizes e mudanças pessoais durante o seu desenvolvimento 12

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— tanto antes quanto após o parto. Ouvimos oito histórias de

profissionais para ponderar como a violência é vista no âmbito

mulheres que se sentiram violentadas e silenciadas no dia do

jurídico, como o tema é tratado na área da saúde e do ponto

nascimento de seus filhos. Uma delas ficou guardada conosco,

de vista psicológico. Os sete hospitais acusados, quando

a partir do pedido da entrevistada para não ser exposta. As

procurados e questionados sobre o posicionamento profissional

outras sete compõem este livro.

de seus médicos e atendimento à parturientes, não deram

Há muitas outras mulheres que poderiam ter suas histórias contadas aqui: mães e filhas que, de geração em geração, tiveram seus bebês de maneiras dolorosas.

nenhum retorno até o término da elaboração deste projeto. A reconstrução das histórias foi feita a partir da percepção de cada mulher, que não se sentiu protagonista do próprio parto

Um dos casos mais marcantes divulgados pela imprensa

e que, com muita força, superou o trauma da violência à sua

foi o de Adelir Carmem Lemos de Góes. A Justiça do Rio

maneira. Durante as entrevistas, as personagens compartilharam

Grande do Sul determinou que a moradora da cidade de

medos e momentos íntimos, com o intuito de alertar outras

Torres fosse submetida a uma cesariana contra a sua vontade,

mulheres para que estas não passem por situações parecidas.

por acreditar que a gestante e o bebê corriam risco de morrer.

O objetivo deste livro-reportagem é de expor uma

Levada à força para o hospital, a parturiente foi submetida

realidade mascarada pelo mito de que, se o bebê está saudável,

a uma intervenção cirúrgica. A notícia gerou indignação

não importa como foi o parto, nem o estado emocional e

nacional, que culminou no movimento “Somos Todas Adelir”.

físico da mãe. Excessos e atendimentos desrespeitosos com a

Em 11 de abril de 2014, um ato nacional em 32 cidades foi

parturiente contrariam evidências científicas. O propósito deste

organizado, a fim de conscientizar sobre a violência obstétrica

livro é que, para além da informação, o relato se torne parte do

e protestar contra o que ocorreu com a gaúcha.

processo da cura de mulheres. Das que falaram e das que lerão.

Mas afinal, o que é violência obstétrica? O termo é caracterizado pela apropriação do corpo da mulher e do momento do parto por médicos e outros profissionais de saúde. Com isso, ocorre a perda da autonomia da parturiente por meio de um atendimento sem humanização, com um consequente impacto emocional e, muitas vezes, físico. Ouvimos cinco 14

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O PREÇO DA GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

T

udo era dor. A cor das paredes era de um pêssego desbotado, que combinava com a cama antiga e o banheiro asqueroso, de azulejos azuis típicos de um hospital; um ambiente nada familiar. A dor da

contração não se concentrava apenas no ventre. Queimava por todo o corpo, desde o dedo do pé até o último fio de cabelo. A televisão era um mero objeto adjacente, já que não havia controle remoto. E ligar o aparelho sequer passou pela cabeça de Paola Rodrigues, uma jovem de 16 anos prestes a dar à luz. Ela sempre imaginara como seria o parto, mas nunca poderia adivinhar que seria tão… solitário. E doloroso. Algumas horas antes, sua sogra, Dona Lúcia, não havia deixado de estar ao seu lado um segundo sequer. Tudo mudou quando a adolescente teve de ser transferida para a tal sala de internação. — Não, ela não pode entrar. São normas do hospital, não é permitida a entrada de acompanhantes — disse uma

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funcionária que pouco ou mal olhou para os olhos da grávida adolescente, em um hospital de Pindamonhangaba, no interior de São Paulo. A jovem desconhecia que a lei lhe garantia o direito de um acompanhante no trabalho de parto, durante e no pós-

contato visual. — Provavelmente nunca sentiu dor na vida. Branquinha, mimada e riquinha — tachou a outra. — Já vai passar. Tenta relaxar! — disse a mais delicada de todas.

operatório. É a lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Segundo

As tais contrações mais dolorosas começaram após certo

o artigo 19-J, os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde

soro ser colocado em suas veias com o intuito de hidratá-la.

(SUS), da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir

Hoje, aos 22 anos de idade e mais informada do que quando

a presença, junto à parturiente, de um acompanhante durante

era adolescente, tem certeza de que o líquido inocente continha

todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

ocitocina sintética, medicamento utilizado para estimular

Atendida por uma médica plantonista, pois o profissional

contrações uterinas. Naquela madrugada, apesar de não saber o

que acompanhou o fim de seu pré-natal tinha viajado a São

que estava acontecendo, Paola tinha uma convicção: algo estava

Paulo, a adolescente se sentiu ainda mais desprotegida. Após

errado. Suava muito, sentia vontade de vomitar a todo momento.

um exame de toque, foi constatado que não havia dilatação

O pânico já havia tomado conta de seu corpo sem pedir licença.

e que o líquido amniótico estava limpo e cristalino. Ao final

Abafava os gritos de dor em um travesseiro, também já banhado

do rápido atendimento, Paola foi encaminhada para o quarto,

de suor e lágrimas que escorriam por suas bochechas.

onde pensou que iria dormir e descansar até a hora da cirurgia.

Não houve preocupação com o seu bem-estar ao longo do

Desamparada, a única atenção que recebeu foi de uma

trabalho de parto. A recomendação da Organização Mundial da

enfermeira que deixara um cobertor no leito, apesar do calor

Saúde (OMS) é de monitorar física e emocionalmente a mulher

infernal que fazia no quarto. Era dezembro, em pleno verão.

ao longo do processo até o término. A obstetra e professora de

Quando ainda tinha forças para mendigar algum tipo de

Ginecologia e Obstetrícia Melania Amorim explica o problema:

satisfação, Paola recebeu descaso e risadas de escárnio.

“A principal complicação foi esse tempo que ela passou com

— Deixa de fazer escândalo, não está doendo tanto

ocitocina e sem ausculta. Porque o hormônio pode deixar a

assim. Na hora de fazer não gritou, né? — respondeu uma das

contração muito intensa e diminuir o aporte de oxigênio para

enfermeiras que entrou abruptamente no quarto, sem fazer

o bebê. Falando de violência obstétrica, temos que evitar as

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intervenções desnecessárias, mas valorizar as necessárias. Não

forma abrupta. Ainda que estivesse a caminho de uma cesariana,

auscultar o bebê e deixar a mulher sozinha é um fator de risco”.

a enfermeira pediu para que Paola abrisse as pernas. Foi depilada

Paola permaneceu sem atendimento durante cerca

com uma lâmina de barbear à moda antiga. Os procedimentos

de três horas. Depois de muitas tentativas de pedir à médica

foram feitos sem aviso ou qualquer consentimento, o que vai contra

plantonista que fizesse novamente um exame de toque e

as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS),

verificasse a dilatação, ouviu respostas grosseiras ou piadas.

segundo a qual, a sonda urinária é frequentemente utilizada de

Estava sem ninguém para perguntar se tudo corria bem ou

modo inadequado, as raspagens rotineiras de pelos púbicos são

acompanhar a evolução do trabalho de parto.

ineficazes e, preferencialmente, deveriam ser eliminadas.

Tinha dado entrada no quarto às 3h. A partir das 4h e

O médico apareceu em cerca de quinze minutos. As

até o relógio marcar 7h, ninguém apareceu. Das 6h em diante,

enfermeiras ajudaram Paola a deitar-se na maca. “Eles me

a gestante estava letárgica; tão exausta de conter gritos, de sentir

largaram sozinha por horas e depois correram comigo. Isso

medo e dor, que não se movia. “Eu não tinha mais forças para me

não fazia sentido.” O exame de toque não foi feito e a dilatação

mexer na cama.” Então, em meio ao vazio e ao esquecimento, a

após horas de espera no quarto era desconhecida.

porta se abriu. Uma voz alegre anunciou que estava na hora de realizar os procedimentos da cesárea. Era o médico. Paola não respondeu. Não por raiva, mas porque mal tinha energia para fazê-lo. Quando foi orientada a ir ao

O noivo, Carlos Henrique, de 23 anos, havia chegado. Paola pedira que passasse a noite em casa. Segundo ela, não havia o que ele pudesse fazer, a não ser descansar para conhecer sua filha e cuidar dela durante a recuperação da noiva.

banheiro, não sabia de onde tirar forças para caminhar. Ao

A caminho do centro cirúrgico, cada luz que enxergava

urinar, percebeu grande quantidade de muco e sangue. E era

enquanto estava deitada na maca fazia com que sentisse o

tanto que, por mais que soubesse ser consequência natural

coração subindo pela garganta. Conduzida à sala de cirurgia,

da saída do tampão mucoso — que sela o colo do útero e é

a primeira atitude dos enfermeiros foi a de colocá-la sentada

liberado antes ou durante o trabalho de parto —, não estava

para aplicar a anestesia. Quando se deitou novamente, sentiu

certa de que era só isso.

amarrarem seus braços. “É a coisa mais angustiante que existe

Ao voltar para o quarto, deitou-se na cama e teve introduzida uma sonda urinária até a bexiga sem anestesia, de 20

na face da Terra. Sabe quando o seu rosto coça? A anestesia dá coceira. E não tinha como coçar o próprio rosto!”. 21


Depois, a usual cortina azul apareceu para lhe tapar a

também pode levar a complicações. De acordo com o projeto,

visão. Com os braços amarrados e sentindo que mexiam em

o apoio de um acompanhante é eficaz para aliviar a tensão

seu corpo, Paola via apenas luz e o tal pano. Ouviu piadas,

e, consequentemente, o desconforto. Não foi o que aconteceu

conversas sobre churrasco e até sobre caipirinha. Não sentiu

com Paola. A jovem mãe continuava sem informações, não

mais dor, mas repuxões. Era como se estivesse sendo sacudida.

sabia o motivo que a levara à cesárea de emergência e se sentia

Depois, algo se perdeu. Sentiu o bebê saindo de dentro da sua

sozinha, sem ao menos enxergar o rosto do bebê. Do seu bebê.

barriga, com certa estranheza; estranheza maior ainda porque

— Olha só a sua filha! — disse um dos médicos, que

não havia choro. Até onde sabia, toda criança nasce chorando.

permitiu um vislumbre da criança em seus braços. Antes que

Esperava que sua filha emitisse algum som rapidamente. Não

pudesse assimilar os traços de Laura, a menina foi levada com

foi o que aconteceu.

a justificativa de que precisava de cuidados. Estava pálida, com

O desejo de se levantar e questionar sobre o estado

uma mistura de sangue na pele.

de saúde da filha tomava a menina de 16 anos. Onde estava

Como se a missão naquele momento estivesse cumprida,

a menina? Por que não estava chorando? Mas não podia, já

Paola começou a perder controle sobre os atos. A pressão subia

que estava amarrada e exausta após uma noite conturbada,

e a última coisa de que se lembra é de um aviso prévio antes de

permeada por dores e gritos abafados no travesseiro. Sabia que

ser medicada. Apagou.

estava anestesiada, sem o movimento das pernas — o corpo já não lhe respondia os comandos. Naquele momento, a culpa já se apoderava de sua mente. Culpa de ter engravidado. Culpa de ter matado a sua

Quando abriu os olhos, estava em outro ambiente. Já

filha. Foi então que percebeu uma movimentação de médicos

haviam-se passado cinco horas desde o parto. Ao perguntar

e enfermeiros de um lado para o outro no centro cirúrgico.

sobre a filha, a família ficou ansiosa. “Fico imaginando como

De acordo com o Manual do Parto Humanizado do Projeto

foi difícil para eles ter de me avisar que a Laura estava na UTI

Luz da JICA (Agência de Cooperação Internacional do

Neonatal.” No momento da notícia, estavam o noivo, a tia do

Japão), o círculo vicioso de dor, medo, tensão e dor impede

rapaz, Amélia, e a sogra. Pediram para que não ficasse nervosa,

que ocorra o processo fisiológico do parto normal, o que

mas contaram que a recém-nascida tinha defecado dentro da

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barriga e respirado tudo. Em outras palavras, o mecônio —

rua, achar que eu era uma vagabunda. Isso me deixou com

primeiras fezes do bebê — estava grudado dentro dos pulmões

medo que as pessoas me vissem grávida.”

da menina, que não conseguia respirar direito.

Sem conseguir assimilar a situação, a adolescente

Paola não sabia o que isso acarretaria. Em outras

se levantou e foi direto para a UTI. Durante a dolorosa

circunstâncias, o mecônio poderia ter sido liberado apenas por

caminhada, ao passar pelo saguão do hospital, encontrou o

maturidade intestinal do bebê. Quando a função placentária é boa

pai e a família dele. Ninguém estava ali para vê-la, mas para

e o líquido amniótico normal, ele consegue diluir o mecônio. Na

conhecer o filho de um primo que acabara de nascer. Antes de

situação extenuante a que Paola fora submetida, Laura podia ter

entrar no elevador, a jovem mãe teve a infelicidade de ouvir de

eliminado as fezes por estresse. “Existe a possibilidade, dependendo

uma tia extremamente religiosa que o incidente com Laura só

da função útero-placentária e de como está a ausculta, de o bebê

havia acontecido pois ela não era casada. “Com filhos fora de

eliminar mecônio por uma situação de sofrimento. A hipoxia, que

relacionamento costuma acontecer isso, porque não é correto, é

é a diminuição do aporte de oxigênio, vai levar ao aumento do

pecado.” Depois de ouvir tais palavras, a adolescente se desfez

peristaltismo intestinal e ao relaxamento do esfíncter”, explica a

em lágrimas e seguiu, ainda mais angustiada, para a Unidade

ginecologista obstetra Melania Amorim.

de Terapia Intensiva. Foi só então que conseguiu observar a

Para distinguir as duas situações, é necessário avaliar a

filha pela primeira vez.

quantidade e o aspecto do mecônio, além da frequência cardíaca

Laura era extremamente ruiva. O cabelo tão alaranjado

fetal. Se os batimentos estiverem satisfatórios, as primeiras fezes

que lembrava uma cenoura. O nariz era do pai, sem dúvida

são um sinal de alerta. No entanto, Paola ficara sozinha durante

alguma. Os olhos, extremamente azuis. Quando se aproximou

horas, sem o monitoramento cardíaco de sua filha.

e segurou a mão diminuta de Laura, poderia jurar que ela

A mãe da adolescente, que tinha histórico de distúrbios

correspondeu o ato com um sorriso. Os médicos disseram ter

psicológicos, entrou no quarto descontrolada. Apontava o dedo

sido um espasmo do rosto. Com poucas horas de vida, a menina

e dizia que a culpa era da filha. Foi expulsa do hospital. Aos 15

tinha tubos introduzidos no nariz e na boca, além de eletrodos

anos, a adolescente engravidara e ainda se sentia extremamente

por todo o corpo. A médica explicou que era grave, mas existiam

culpada, sendo acusada e lidando com o terror psicológico da

casos parecidos em que os bebês haviam sobrevivido.

mãe. “Eu tinha certeza de que iriam jogar pedras em mim na 24

Paola se apegou aos casos de sobrevivência. O leite 25


desceu no primeiro dia, mas não podia ser dado à Laura por

Àquela altura, os médicos já haviam avisado que ela poderia

estar contaminado por medicamentos. A filha era alimentada

ter graves sequelas, porque o nível de oxigenação no cérebro

por sonda. Inexperiente, sentiu dor ao retirar o líquido branco,

era baixo.

espesso e medicamentoso com a ajuda de duas tias de seu noivo.

A mãe pedia por qualquer tipo de intervenção divina.

Como não havia banco de leite no hospital e o líquido que saía

Olhava para o aparelho que marcava o nível de oxigenação e

dos seios de Paola estava repleto de remédios, o alimento não

pedia aos céus que o número se estabilizasse. A médica que

pôde ser aproveitado, sendo descartado posteriormente.

cuidava da situação clínica da filha de Paola sugeriu que era

— Qual é a sensação que ela tem? — questionou Paola à pediatra que estava de plantão. — De afogamento — respondeu prontamente a médica, sem emoção.

melhor guardar a imagem da criança daquela maneira e ironizou sua gravidez durante a adolescência. Que pensasse melhor da próxima vez. A mensagem foi clara: o bebê não sobreviveria. A família do noivo, católica, chamou um padre para

No segundo dia da pequena na UTI, Paola ainda estava

batizar a menina e conversar com a jovem. “O padre foi mil

no hospital. A filha fazia fisioterapia para exercitar braços e

vezes menos duro comigo do que as enfermeiras e os médicos,

pernas, além de exames e testes para verificar os batimentos

mesmo sabendo que eu tive uma filha enquanto adolescente e

cardíacos e o nível de oxigenação. No terceiro dia, Laura parou

fui contra todos os preceitos da religião.”

de responder aos estímulos dos familiares. Quando teve de voltar para casa, a jovem não conseguia mais dormir, nem parar de pensar na sensação de afogamento pela qual, de acordo com a médica, a filha passava. Lembrava-

Paola acordou às 3h30 do sexto dia com a sensação

se do barulho dos aparelhos: bip, bip, bip. Apesar de deixar a

de sufocamento. Durante cerca de um minuto, não conseguia

UTI Neonatal, carregava consigo as impressões, os sons e as

devolver o ar aos pulmões. Ela sabia: Laura havia morrido.

sensações para casa.

Levantou e começou a se arrumar. Enquanto isso, ouviu o

No quinto dia, a coloração da pele de Laura era arroxeada. A recém-nascida não conseguia mais fechar a boca, a saliva pendia junto ao aparelho que a auxiliava a respirar. 26

telefone tocar e o sogro se aprontou para dar a notícia. Quando ele abriu a porta, não foi necessário dizer o que havia sucedido. 27


— Espero vocês no carro — disse ao pai do noivo, sem rodeios.

seguida de violência obstétrica e morte neonatal.

Foi naquele dia que Paola tomou uma das decisões

Com o ex-noivo, a jovem conviveu mais um ano e meio

mais difíceis de toda a sua vida. Não havia tido a chance de

depois da morte de Laura, mas não tiveram mais do que quatro

pegar a sua filha no colo. E o fez, mesmo que a menina já não

relações sexuais. Nos três anos subsequentes, continuou com

respirasse mais. Pediu às enfermeiras que não aprontassem o

episódios de síndrome do pânico e depressão; a jovem carrega

corpo do bebê, ela tomaria todas as providências necessárias.

marcas de cicatrizes nos braços e pernas. Teve gastos altos com

Limpou cada pedacinho do corpo pequenino e sem vida. “Eu

remédios psiquiátricos. Parou de estudar durante esse tempo.

sei que não deveria ter feito, porque não teria ficado tão mal,

Sobre os relacionamentos, ela diz que contribuíram para que

mas eu nunca havia pegado minha filha no colo.”

se sentisse bonita e acalentada, mas que eram problemáticos.

No velório, não conseguiu chorar. Simplesmente não

Aos poucos, conseguiu se reerguer e terminar o ensino médio.

tinha forças para tanto. Dispensou boa parte da família de

Ficar grávida na adolescência é uma situação de maior

seu pai, que não havia oferecido nenhum apoio e sequer a

vulnerabilidade. Para muitas, essa nova situação significa

visitaram quando estava grávida. Ainda tinham sido capazes

deixar de ir à escola, assim como no caso de Paola. De acordo

de aborrecê-la a caminho da UTI, sem qualquer sensibilidade.

com um relatório anual da Situação da População Mundial

Após o corpo de Laura ser velado, Paola foi para casa.

do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), da

Ficou por algum tempo sem falar. Um ano sem sair de casa e

Organização das Nações Unidas (ONU), 12% das adolescentes

com sintomas de síndrome do pânico, sem conseguir dormir.

brasileiras entre 15 e 19 anos tinham pelo menos um filho em

Teve depressão. Tentou o suicídio algumas vezes. Em uma

2010. “O corpo de uma adolescente está em desenvolvimento,

delas, quase fraturou a coluna.

também emocionalmente e socialmente. Muitas vezes, ela não tem estabilidade financeira. Passar pela gestação ainda acrescenta uma série de frustrações pelo plano que a família fazia para essa adolescente, pelo desejo pessoal dela. É muito

Paola Rodrigues, 22 anos, sofre de insônia desde a morte

sofrida a vivência da gestação quando não programada. Existe

de sua filha. Os olhares furtivos enquanto conversa denunciam

esse julgamento social de que ela fez algo que não deveria. Se

as marcas de uma gravidez que a surpreendeu aos 15 anos,

depois, por algum motivo, acontece um desfecho ruim com o

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bebê ou uma complicação, entra nesse pacote de julgamentos.

social da prefeitura para checar a integridade física da paciente

Falando de uma situação hipotética, uma adolescente está

e colher os dados do óbito da recém-nascida. “Eles me fizeram

mais disposta a isso”, explica Heloisa Salgado, especialista em

contar. Foi a única coisa que fizeram: mandar alguém pra que

psicologia da infância, mestre e pesquisadora da Faculdade de

eu contasse de novo e revivesse o que tinha acontecido.”

Saúde Pública de São Paulo.

A violência obstétrica não se restringiu ao parto, mas

Em resposta aos pedidos da mãe da pequena Laura,

também ao pré-natal. A jovem sofreu de incontinência e

o hospital alegou não ter encontrado o prontuário de parto.

infecção urinária, síndrome do pânico, não se alimentava

“Um dos motivos de eu querer a documentação do meu parto

direito e teve incontáveis princípios de aborto durante os nove

é para saber tudo com detalhes”, conta Paola. Segundo Ana

meses de gestação. Ao saber da gravidez, os familiares da jovem

Paula Meirelles, coordenadora do Núcleo Especializado de

se sentiram decepcionados. Tinham a esperança de que ela

Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria

terminasse os estudos, cursasse engenharia ou administração

Pública de São Paulo, a instituição de saúde não pode se negar

e trabalhasse no comércio ou na indústria. Desta forma, a

a entregar o documento para a mãe que deseja saber como foi

gestação de Paola foi tomada pelo medo de não ser alguém na

o seu parto. No entanto, há prazos para que a mulher que se

vida e de andar pelas ruas da cidade em que morava. Tal pavor

sinta lesada possa exigir seus direitos na justiça. Para conseguir

de locais públicos se justificava pelos momentos aterrorizantes

uma indenização, por exemplo, o período é de até três anos

pelos quais passava com a mãe, que fazia questão de dizer

para o estabelecimento hospitalar privado e de cinco anos para

repetidamente que ela era uma vagabunda e que todos na

o público, ambos contados desde a ocorrência dos fatos. “Por

cidade também pensavam isso.

exemplo, tem crime que se em até 6 meses você não fizer o

Em um município pequeno, onde um assunto não

B.O. [boletim de ocorrência] e não representar, você perdeu o

demora a se espalhar, a adolescente preferiu não lidar com

seu direito. Então por mais que eles sejam obrigados a manter

olhares de reprovação e se manteve reclusa em casa, deprimida

seu prontuário, nesse sentido não vai te ajudar muito”, afirma

e frágil, contando apenas com o apoio da família do noivo.

Ana Paula.

Poucas são as fotos de recordação da gravidez. Nestas, Paola

Após o falecimento da menina, a instituição apenas realizou um procedimento padrão: enviar uma assistente 30

está cabisbaixa, envergonhada e visivelmente deprimida. Uma gestação conturbada, que parece não ter 31


sensibilizado nem o médico que a atendia. Com um tratamento

se por não querer outro parto naquele mesmo lugar que lhe

pouco familiar, as consultas eram física e psicologicamente

causara pesadelos e só trazia lembranças de sofrimento e dor.

dolorosas para alguém que já passava por dificuldades.

O parto deveria acontecer longe de todas aquelas recordações.

Escolhido por atender pelo plano de saúde, o profissional não

Paola descobriu que havia sido submetida à violência

a olhava nos olhos e mantinha a mesma rotina em todas as

obstétrica quando se mudou para Santo Antônio do Pinhal. Até

consultas, que não passavam de cinco minutos: ele perguntava

então, não conhecia o termo. Entrou em grupos de maternidade

se havia acontecido alguma coisa, aferia a pressão, verificava os

nas redes sociais, estudou e criou blogues. “Foi aí que tive

batimentos cardíacos do bebê e pesava a paciente.

coragem para contar. Sei que não tem como procurar justiça

Três dias antes do parto, Paola decidiu trocar de

porque já passou o tempo. Não existe uma cura absoluta dos

médico, desta vez por um que lhe pareceu mais atencioso.

traumas da violência obstétrica. Existe você aprender a conviver

Uma impressão, apenas. Todavia, ela se lembra com carinho

com aquilo e tentar mudar a realidade. O melhor remédio para

da enfermeiras do hospital onde foi atendida antes do parto e

se tomar sobre isso são doses homeopáticas de mudança. Você

diz que foram as profissionais mais caridosas que encontrou

vai mudando aos poucos, tentando transformar. No fim, quem

durante aquele período turbulento.

sabe, encontra a solução.” Menos conturbado que o parto de Laura, o nascimento de Helena também foi permeado de violência obstétrica. O único médico obstetra disponível no plano de saúde da jovem

Quase cinco anos depois, Paola engravidou. Helena

era aquele que havia feito seu pré-natal na primeira gravidez.

Rodrigues dos Santos, menina saudável de dois anos, é fruto

Mesmo mais madura e esclarecida, o pavor tomou conta de

do relacionamento de Paola com Marcelo, com quem morou

sua mente devido ao trauma da primeira gestação. Foi então

até julho de 2015 em Pindamonhangaba. Durante a segunda

que um dos médicos optou por marcar uma cesariana. Helena

gravidez, no entanto, não conseguiu permanecer na cidade e

completara 39 semanas na barriga da mãe.

morou com o companheiro em um pequeno apartamento em

Depois de uma consulta às 15h, na qual teve aferida sua

Santo Antônio do Pinhal, cidade próxima, também no interior

pressão e seu peso verificado, sem exame de toque, Paola se

de São Paulo, para que pudesse ficar perto da mãe. Mudou-

preparou para a cirurgia que aconteceria às 19h. No horário

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marcado, ela colocou a camisola do hospital e aguardou no

de 52,3% em 2010 para 53,7% em 2011. Estimativas da OMS

quarto, enquanto assistia à televisão até que o médico estivesse

indicam que o nível chegou a 55% em 2014. Paola foi mais

pronto. No entanto, mais uma vez, não pode ter consigo um

uma cesariana na agenda do obstetra.

acompanhante durante o pré-parto.

Desde o trauma, a jovem de 22 anos sofre de insônia

Ao deitar na maca, crise de pânico. A caminho do

crônica. Pesadelos com o corpo de Laura a impediram de

centro cirúrgico, a situação piorava, enquanto via as luzes no

dormir durante anos. Hoje, após tentar vários tratamentos, o

teto e se lembrava, angustiada, do primeiro parto. Na sala de

pavor e o medo ainda lhe tomam a mente. “Já se foram seis

cirurgia, sozinha, ela perdeu o controle sobre os pensamentos

anos e eu ainda não consigo dormir. Tudo o que aconteceu na

e foi tomada pelo medo. O suor lhe escorria e empapava os

época foi muito nebuloso.”

cabelos. Os músculos de todo o corpo tensionados, a dor era

Sua sensibilidade ao escrever atingiu a outras pessoas.

insuportável. Para aplacar o sofrimento e prepará-la para a

Um de seus blogues, Cartas para Helena, está em processo para

cirurgia, aplicaram-lhe a anestesia.

virar livro e até peça de teatro. Ele surgiu como um aporte para

Marcelo esteve presente apenas na sala de parto, quando

a angústia: Paola tinha certeza de que morreria, tamanho era

a cesárea se iniciou. O anestesista empunhou seu smartphone e

o trauma após as complicações na primeira gravidez. Então,

começou a mostrar aos dois fotos de Santo Antônio do Pinhal

queria deixar um compilado de memórias para a segunda filha.

e de algumas de suas aventuras radicais. Em meio às fotografias

Para aplacar a dor da saudade e cobrir as tentativas de

e à conversa, Helena nasceu. E chorou, para alívio dos pais,

suicídio após a morte de primeira filha, a mãe fez uma tatuagem

que também se entregaram às lágrimas.

no antebraço. A imagem é da árvore da vida, que mescla suas

Para ela, o segundo parto foi “menos pior”, mas não o

raízes com as cicatrizes dos cortes e um fio desenhado em cor

ideal. “Qual é o nosso parâmetro para nascimento de bebês?

vermelha. O fio, por sua vez, simboliza o mito chinês do destino,

Sofrer, perder criança ou sofrer um pouquinho menos.” Com

cuja história é que todo ser humano que nasce na Terra tem um

um histórico de pressão alta e cesárea prévia, a escolha da

fio vermelho amarrado aos pés. “Ele passa por todas as pessoas

cirurgia pelo médico aconteceu novamente. Em meio a uma

que você vai conhecer ou tocar de alguma forma. Ele pode se

epidemia de cesáreas pelo mundo, sinalizada pela Organização

esticar ou se emaranhar, mas jamais partir”, explica Paola.

Mundial de Saúde (OMS) em 2015, o Brasil sofreu um aumento 34

Mãe e filha estão emaranhadas pelo fio, que jamais se 35


partirá. Paola explica que a marca precisava ser feita em sua pele. E, mais do que isso, que era necessário dar um significado a tudo o que aconteceu. “A marca que a vida da Laura deixou comigo é muito mais que um laço de mãe e filha, uma cicatriz de cesariana ou minhas marcas de suicídio. É sobre não

A MÃE QUE VIROU DOULA E AS INTERVENÇÕES

desistir. Persistir. Continuar. Eu sobrevivi. E ela me ensinou a

DE UM PARTO NORMAL

viver, mesmo não estando fisicamente perto.”

Depois da anestesia, Marília não sentiu mais nada da cintura para baixo. Não pôde participar do parto de forma ativa. Um pano azul foi colocado em suas pernas e lhe tapou a visão. Uma enfermeira pedia que a gestante, mesmo sem sensibilidade, fizesse força. O anestesista fez a manobra de Kristeller, na qual o obstetra ou um auxiliar se apoia em cima da barriga da mulher durante o parto para fazer pressão no fundo do útero; o procedimento pode causar danos à mãe e ao bebê, além de lesões. Enquanto isso, um corte. Sem consentimento, uma episiotomia — incisão na região do períneo, que consiste em ampliar o canal do parto durante o período expulsivo e que é frequentemente utilizada de maneira inapropriada e rotineira, segundo a Organização Mundial da Saúde — foi feita. Em seguida, o obstetra empunhou o fórceps, instrumento cirúrgico que funciona como uma pinça para extrair a criança e pode causar ferimentos na mãe e no bebê. Sem enxergar os movimen36

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tos do médico, nem sentir o corpinho de Murillo, ela deu à luz.

toque e o de cardiotocografia, método de avaliação do bem-estar

Apenas no vídeo registrado por Julio, seu marido, Marília assistiu

fetal. No entanto, o médico constatou que ela não estava tendo

a todos os procedimentos que foram feitos.

contrações e que a dilatação era de apenas um centímetro.

E assim, o menino veio ao mundo. Passou um tempo no

— Mãezinha, a contração dói muito e ela é ritmada. Então

colo da mãe e depois foi levado para ser cuidado pelas enfermei-

você só volta aqui quando as contrações estiverem com intervalo

ras. Ao perceber que, após o nascimento, o médico continuava

de cinco em cinco minutos — aconselhou o profissional.

com os movimentos por detrás do pano azul, Marília quis saber o que se passava. — Eu tive de usar o fórceps. Você tem um ossinho na bacia que não deixou o Murillo passar — disse o obstetra.

— Eu estava sentindo, mas no hospital as contrações pararam. Você acha que eu viria de Osasco para São Paulo se realmente não estivesse com dor? — respondeu Marília. De volta a Osasco, cidade onde mora o casal, Marília

Só então é que teve o conhecimento sobre a episiotomia real-

almoçou. Um suco de abacaxi com essência de menta fez com

izada. Quis saber quantos pontos havia levado. “Cinquenta pontos”,

que ficasse nauseada. Às 13h, começou a sentir fortes dores e

riu o médico. Até hoje, ela não sabe se a resposta foi uma brincadeira.

percebeu o intervalo entre uma contração e outra diminuir. A

A piada, no entanto, diz respeito a uma intervenção feita

dor só aumentava.

sem consentimento, o que entra em discrepância com a ética mé-

Neste meio-tempo, Julio fazia massagem nas costas da

dica. “Nenhum obstetra ou profissional de saúde envolvido na

esposa. O chuveiro também era refúgio, onde a água quente

assistência pode fazer uma cesárea ou episiotomia contra a von-

escorria pelo corpo e aplacava a dor. Tudo de modo instintivo,

tade da mulher”, afirma a obstetra e professora de ginecologia e

nenhuma pesquisa sobre parto havia sido feita durante toda

obstetrícia Melania Amorim.

a gestação. “Às vezes, eu me sinto até meio burra, como se tivesse culpa de tudo o que passei. Na nossa cabeça, nós pensamos que o médico sempre vai ajudar e esclarecer dúvidas, então não pesquisei sobre amamentação ou parto. Não procurei

Em 19 de setembro de 2012, aos 30 anos de idade, Marília

informação achando que os médicos me dariam esse suporte.”

acordou com dor e pediu ao marido que não fosse trabalhar. Di-

À espera do intervalo indicado pelo médico, Marília fi-

rigiu-se ao hospital em São Paulo, onde foram feitos o exame de

cou em casa. Era madrugada e o período entre as contrações

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variava entre seis e quatro minutos. A parturiente não sabia que

banheira, eu teria ido. Eles têm aporte para isso.” No quarto,

já era hora de ir para o hospital e aguardava o espaço de cinco

ficou o tempo todo deitada até a chegada de um obstetra que

minutos indicado pelo obstetra. Quando o tempo caiu para três

ela nunca havia visto. O profissional desconhecido, anestesista

minutos, a duração do encolhimento do útero já durava cerca

da mesma equipe do médico que acompanhou seu pré-natal,

de um minuto. Com muita dor, ligou para o médico e avisou

apresentou-se. Perguntou à parturiente se desejava anestesia.

que iria ao seu encontro.

Segundo o marido, ela disse que sim. A esposa não se lembra.

A caminho da instituição de saúde, as contrações eram

Após a aplicação do medicamento, o obstetra chegou ao

cada vez mais intensas. Após preencher os papéis da materni-

quarto e, sem falar diretamente com a grávida, apenas lançou

dade, Marília esperou pelo atendimento, feito por uma enfer-

um olhar preocupado ao ter um vislumbre dos equipamentos.

meira obstetra, que fez o exame de toque.

A agonia tomou o corpo anestesiado de Marília.

— Nossa, o seu colo do útero está apagadinho... — disse a profissional que fazia a consulta.

— Os batimentos cardíacos do Murillo estão caindo — analisou o médico durante o exame de cardiotocografia.

O colo do útero estava fino, o que era bom sinal. A en-

Assustada após ouvir tal frase, um pano azul foi colo-

fermeira disse que se estourasse a bolsa da gestante naquele

cado em suas pernas e lhe tapou a visão. Assim, o menino nas-

momento, ela entraria em trabalho de parto. “Se estava tudo

ceu. A mãe só pôde ver o nascimento e as intervenções pelas

bem, para que estourar a bolsa? Foi o que eu pensei na hora.”

quais passou no vídeo gravado por Julio.

De lá, na companhia do marido, Marília já foi

A analgesia, recurso utilizado para aliviar a dor durante

encaminhada em uma maca para o quarto onde seria feito o

o parto, não deve causar bloqueio motor. “É preciso verificar

parto. Entretanto, tudo foi diferente do que havia visto quando

a conduta: a anestesia não foi a mais adequada, porque ela

foi visitar o hospital pela primeira vez. “Eu me lembro de fi-

foi paralisante. Se os batimentos cardíacos começaram a cair

car apaixonada por lá porque tinha um quarto com banheira,

após a analgesia, o correto seria verticalizar ou colocar o útero

hidromassagem e cromoterapia. Na minha cabeça eu ia poder

para a esquerda, ver se a pressão está normal, expandir, dar

andar, não precisaria ficar deitada, mas não foi nada disso que

líquido para a mulher e administrar o oxigênio. Se for no pe-

aconteceu. Acredito que não utilizei o que o hospital oferecia

ríodo expulsivo, há indicação de fórceps ou vácuo, mas não de

por conta do médico. Se ele quisesse ter deixado eu ir para a

episiotomia”, explica a obstetra Melania Amorim.

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Durante o processo, os profissionais conversavam de

para a cama pelas enfermeiras. A princípio, pensou que pudesse

forma descontraída sobre assuntos que não diziam respeito ao

ter sido porque sentiu os pontos, nunca havia sido suturada.

parto. Enquanto examinavam o bebê, uma enfermeira atendeu

Foi examinada, à procura de alguma hemorragia no pós-par-

ao celular. O clima parecia de descontração — mas nenhuma

to, mas o porquê de tantos desmaios não foi encontrado. “Eu

palavra foi dirigida ao casal.

achava estranho porque minha mãe falava que teve parto nor-

Após o nascimento, Murillo ficou no colo da mãe e

mal e logo depois levantava, ficava em pé, estava bem.”

foi amamentado. No entanto, enquanto estava com a criança

Depois da transferência para o novo quarto, à tarde, o

nos braços, uma fraqueza tomou conta de Marília, que só teve

menino ficou o tempo todo com os pais. Entretanto, toda vez

tempo de dizer a Julio que pegasse o bebê, pois iria desmaiar.

que se levantava, a pressão da puérpera caía e ela desmaiava.

E desmaiou. A enfermeira deitou a maca e pediu que a par-

Começou a imaginar que era porque ficara deitada durante

turiente, mesmo com a consciência abalada, respirasse fundo.

muito tempo. Então, mudou de posição na cama: passou um

Assim, adormeceu.

dia todo sentada. Com a bandeja no colo, pronta para almoçar,

No pós-parto, a promessa feita pelo hospital antes da

desmaiou na poltrona. E foram assim os três dias no hospital.

internação não foi cumprida: mesmo que não houvesse vaga

Somente no sábado, último dia antes da alta, o obstetra

em um quarto que o plano de saúde cobrisse, ela seria colocada

que fez o parto de Murillo foi visitá-los. A mãe relatou o mal-

em um apartamento particular, sem qualquer custo, até que va-

estar, ouviu do médico que era algo normal e teve alta. Quaren-

gasse um outro local. No entanto, entre 5h e 6h foi levada para

ta e cinco dias depois, Marília voltou ao consultório para pegar

um leito onde não podia ter mais de um acompanhante. Lá,

a receita de um anticoncepcional. O profissional analisou o

percebeu que não poderia ter tanta atenção das enfermeiras.

corte, que já havia cicatrizado, com um olhar de desaprovação.

“Como eu não tinha conseguido dar de mamar no dia anterior,

“Olha, eu tenho que te falar uma coisa. Você ficou um pouco

eu ainda não tinha entendido direito a pega. O Murillo ficou

larga, um pouco frouxa.”

nervoso, eu fiquei nervosa, e aí teve uma hora, depois de muito custo, que eu consegui dar o peito para ele.”

As palavras lhe faltaram. Pensou que, com a cicatrização do corte, tudo havia voltado ao normal. “Não soube o

A fraqueza da madrugada permaneceu durante o dia.

que falar. Eu me sinto uma anta, porque não soube como rea-

Ao tomar banho, Marília novamente desmaiou e foi levada

gir. A gente comprou uma cesta de presente, achando que ele

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tinha sido o melhor médico do mundo.”

bri que tudo o que ele fez foi uma violência obstétrica e en-

Ao voltar para a mesa, o médico perguntou se ela dese-

tendi que foi um efeito cascata. Ele me deu a anestesia: a partir

java ter outro filho. Como respondeu que sim, o questionamen-

do momento que ele me anestesia, ele me paralisa; se ele me

to que veio a seguir fez com que sua ficha caísse. “Só não pode

paralisa, ele interrompe o meu trabalho de parto. Se parar o

ser de madrugada, né?!”, pediu o obstetra, em tom de brinca-

trabalho de parto, a criança está querendo fazer força, vai ficar

deira. A impressão foi a de tê-lo acordado de madrugada, de

cansada e vai ter queda nos batimentos cardíacos. Se ele não

tê-lo tirado da cama para que fizesse seu parto e, por isso, ela

está fazendo força, os batimentos cardíacos estão caindo, tem

pensava ter sofrido tanto. No entanto, o médico se adiantou e

de tirar a criança logo. E a melhor forma de tirar uma criança

justificou a frase antes que Marília pudesse formular uma res-

logo é… fazer o corte e a manobra.”

posta. “O problema não é ser de madrugada, o problema é ser

Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz analisou as

na quarta-feira, porque nesse dia estou de plantão e tive de sair

condições de parto de 23.894 mulheres. A manobra de Kris-

correndo de um hospital para o outro.”

teller foi utilizada em 37% delas, mesmo que o Ministério da

Durante toda a gravidez, sempre que pedia para ter um

Saúde condene a prática devido à ineficácia e riscos à saúde da

parto normal, a mãe de Murillo percebia uma resistência do

mãe e do bebê. Da mesma maneira, a episiotomia foi realizada

médico. “Ele não me tratou bem, tinha alguma coisa errada ali.

em 56% das mães. Em 92% dos casos, as mulheres foram sub-

Durante a gestação toda, ele dava uns cutucões com relação à

metidas à litotomia, que é a posição menos recomendada para

cesárea, dizendo que era melhor porque conseguia agendar.”

o parto: deitada de barriga para cima, com as pernas apoiadas

A falta de informação em relação às evidências que

em estribos.

levaram a um parto cirúrgico são desconhecidos por muitas

Em uma destas imersões, durante um curso lecionado

mulheres. O obstetra Jorge Kuhn ressalta que, sem o conheci-

pela parteira mexicana Naolí Vinaver, Marília contou que

mento das práticas, muitas mulheres sofrem violência obsté-

havia sentido muita fraqueza no pós-parto. Na opinião de

trica. “Elas acreditam estar passando por um procedimento

Naolí, a gestante deve ter sofrido uma hemorragia durante os

normal”, explica. A partir daquela consulta, decidiu-se por não

procedimentos invasivos feitos pelo médico, como o uso do fór-

voltar mais ao consultório daquele obstetra. Foi pesquisar para

ceps. Com isso, as peças se encaixaram com maior facilidade.

entender se tudo o que havia acontecido estava certo. “Desco-

Julio contou à esposa que em um certo momento durante o

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parto esqueceu que não poderia passar por onde o médico fica-

Hoje, aos 32 anos, a mãe de Murillo acredita que a que-

va. Ao andar durante alguns segundos pela área ocupada pelo

da da bexiga poderia ter sido evitada. Havia evidências de uma

obstetra, ele se recorda de ter visto alguns lençóis jogados ao

frouxidão muscular e o pedido de fisioterapia foi negado. Além

chão com bastante sangue. As descobertas vieram aos poucos.

disso, a episiotomia e o uso do fórceps foram cruciais para que

Depois de um tempo, descobriu que sofria de prolapso

o problema se agravasse, acredita. Além disso, combinar um

genital, conhecido popularmente como “bexiga caída”, que

fórceps com episiotomia aumenta o risco de laceração de ter-

é um distúrbio provocado devido à fragilidade dos músculos

ceiro e quarto grau, lesão do períneo que pode envolver o ânus

que constituem o assoalho pélvico, e foi procurar o porquê.

ou o espaço entre o reto, o útero e a vagina.

Consultou-se com outros dez ginecologistas que atendiam pelo

Marília entrou para a estatística do estudo “Indicações de

convênio médico. Todos foram unânimes: disseram que era

parto a fórceps”, de 2011, no qual se afirma que um em cada dez

normal isso acontecer com quem faz parto normal, porque

partos é um parto vaginal operatório. Foi verificado que há ne-

afrouxa os músculos do assoalho pélvico, porque Marília havia

cessidade de programas de treinamento da prática do instrumento,

feito muita força e, por fim, por carregar um bebê. Mas o que

que, embora potencialmente perigoso em mãos de obstetras inex-

fazer? A ideia era conseguir um encaminhamento para fazer

perientes, pode ser necessário até para evitar uma cesariana, na

fisioterapia uroginecológica, especialidade que atua no trata-

qual existe um risco maior de hemorragia. “Se o bebê estiver mui-

mento dos distúrbios perineais e no fortalecimento da muscu-

to baixo e for preciso apressar o parto, quando a mãe não pode

latura pélvica.

ficar em esforços expulsivos demorados ou existe uma frequência

Antes de ficar grávida, Marília já sofria de incontinência urinária. Durante toda a gestação, a situação continuou e foi

cardíaca fetal não tranquilizadora, é mais seguro fazer um fórceps ou vácuo”, explica a obstetra Melania Amorim.

então que, após conversar com uma amiga fisioterapeuta, teve a ideia de procurar a Casa da Mulher, em Osasco. No entanto, precisava de um encaminhamento médico, que não lhe foi dado nem durante nem após a gestação. Para todos os profis-

Descobriu-se e se fez doula, capaz de ajudar mulheres

sionais, a única solução seria uma cirurgia, que impossibilitaria

a terem seus filhos de maneira natural, sem intervenções

um próximo parto normal.

desnecessárias. Hoje leva uma vida mais saudável, sem quase

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nenhum medicamento, com uma aposta na cura pela alimentação e com o uso de óleos naturais. Quem se beneficia disso é Murillo, que parece gostar dos carinhos dados pela mãe. O menino é quem lembra e pede aos pais que deem a ele as cápsulas de óleo de alho, que fortalecem a imunidade. “Eu quero um parto humanizado, quero parir do jeito

DUAS CESÁREAS E UM PARTO HUMANIZADO DEPOIS DOS 40 ANOS

que eu quiser. No início, eu fiquei um pouco traumatizada, não pelo que passei, mas em relação ao que tinha acontecido com a minha vagina. Demorei a ter relações sexuais, não por dor, mas porque comecei a me sentir realmente meio larguinha. Está diferente, sinto a minha bexiga até hoje.” A experiência do parto, para ela, pode ser definida uma onomatopeia: blá-blá-blá. Um eco de palavras avulsas, que não diziam respeito a quem deveria ser protagonista do parto.

M

onica Uratsuka D’Avila sabe bem onde é seu lugar: lutando por seus direitos e o de outras mulheres. Aos 41 anos, com três filhas e duas histórias de violência obstétri-

ca, ela aprendeu que sua voz tem poder. E muito. Deu à luz três meninas: Isabele, de 10 anos, Rafaela, 5, e Laís, que completou 1 ano. A última gestação e o parto foram perfeitos, segundo ela. “Sou militante de humanização do parto”, conta. Laís nasceu em casa e foi direto para os braços da mãe. A família estava reunida. As meninas tomaram suco de melancia preparado pelo pai, Monica ficou à vontade e até cochilava entra uma contração e outra. No período expulsivo, teve duas microlacerações e optou por não fazer a sutura, por ser algo que acreditou ser meramente estético. Não queria nenhuma intervenção desnecessária. Foram 37 horas de trabalho de parto, sendo 19 horas de maneira ativa, com con-

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trações regulares. O obstetra especializado em parto humani-

matura. Mesmo assim, veio ao mundo com 3,1 kg. Nas contas

zado Jorge Kuhn ressalta que existem técnicas para preparar o

da obstetra, o bebê já estava pronto, com 40 semanas. A mãe

períneo e diminuir chances de laceração, como massagens com

só foi descobrir isso mais tarde, quando parou para verificar a

lubrificantes empurrando o músculo para baixo ou o uso do

contagem da médica. “Eu era ingênua”, diz. Ainda assim, o

aparelho epi-no, uma espécie de balão de silicone que pode ser

obtetra Jorge Kuhn só tentaria a indução a partir de 41 sema-

inserido na vagina e inflado até distender a musculatura, além

nas. “Em uma gestação de risco habitual, é importante fazer da

de verificar a dilatação.

maneira mais tranquila possível, com dois dedos — se o colo

Sobre o período expulsivo e as lacerações, conta que ouviu um

do útero estiver dilatado — ou um dedo para descolar a bolsa e

pequeno barulho que denunciou o corte durante a passagem da filha.

começar o trabalho de parto. No caso de uma gestação de alto

Um ploc. No momento, isso nem a preocupou. Não sentiu a dor da

risco, como no caso de mulheres hipertensas ou diabéticas, é

laceração: “Você quase não sente lá embaixo”.

possível fazer com 40 semanas. O passar da data não significa

Nem sempre foi assim. Com as primeiras filhas, Monica até tentou argumentar, mas não teve conversa: foi cesárea.

que é necessário fazer uma cesárea”, explica. Com uma barriga tão grande, que mais parecia gestação

— Você não vai entrar em trabalho de parto.

de gêmeos, durante uma avaliação no consultório e nenhum

— Mas não dá para induzir?

sinal de dilatação ou contração, a médica determinou que Is-

— Ah! Nem adianta porque o colo do útero não está fa-

abele nasceria naquele dia. Terminaria as consultas e faria a

vorável. Se a gente tentar induzir, não vai funcionar – a médica

cesariana de Monica. Veio a internação. Em uma sala peque-

encerrou a conversa.

na, na companhia de três macas e um banheiro minúsculo

“A médica era um doce, mas cesarista.” A mãe de

acoplado, um soro foi introduzido em sua veia.

Monica, Cláudia, havia passado por três cirurgias. Se a mãe

A parturiente questionou se poderia sair daquele cômo-

não conseguira parir, a obstetra acreditava que geneticamente

do. Não teve permissão, pois estava com soro. Se poderia beber

não seria diferente com a paciente.

água? Não. E comer alguma coisa? Estava com fome. A resposta

Mesmo com a resistência por parte da profissional de

continuava sendo não. O marido poderia visitá-la? Não, pois

saúde, Monica cruzou os dedos e esperou pelo parto normal,

poderia tirar a privacidade de outras grávidas. Tudo contra o

que não veio. Isabele nasceu na 36ª semana de gestação, pre-

que recomenda a OMS, que preconiza o respeito à escolha da

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mulher em relação ao acompanhante e coloca a restrição de co-

olhos da menina e fez aspirações no nariz e na garganta.

mida e líquidos durante o trabalho de parto como inadequada.

A avó, incomodada por Monica não ter nenhum conta-

O obstetra Jorge Kuhn considera tal ato uma violência obstétri-

to com a filha, tirou a recém-nascida dos braços da enfermeira

ca. “A mulher pode optar por comer e também ingerir líquidos,

e a levou até a mãe. Após um contato rápido, a menina foi

que são muito importantes durante o processo. Além disso, o

levada para o berçário, a obstetra terminou os procedimentos e

trabalho de parto pode durar muitas horas. Em média, 12 horas

fez a sutura dos pontos.

quando é o primeiro filho. Ficar sem se alimentar e ingerir líquidos todo esse tempo é realmente uma violência.”

Durante a troca de plantão, uma enfermeira apareceu na sala de repente e perguntou se ela estava sentindo as per-

Das 14h às 23h, cinco grávidas passaram rapidamente

nas. Não estava. Ainda assim, foi levada para o quarto. Eram

pela sala para fazer um exame ou outro. Nenhuma permane-

2h.“Fui para uma sala de espera, sem nenhuma enfermeira à

ceu. Não havia telefone ou outra distração. Quando chegou

vista. Me cobriram, ninguém me avaliou. Fiquei mais três ho-

o momento da cirurgia, Monica não foi orientada sobre a

ras ali.”

anestesia e não fez nenhum teste prévio antes da aplicação. Na

— Posso tomar água?

sala de cirurgia, encontrou o marido e a mãe, que é médica.

— Não.

O procedimento foi incômodo. Sentia-se completamente impotente, não sabia o que estavam fazendo com o seu corpo. Só sabia que sentia muita dor. “Estou ficando sem ar!”, reclamou.

— Por quê? — Você pode passar mal por causa da cirurgia — sentenciou a enfermeira.

Isabele, que estava encaixada, foi empurrada para cima

Escondida, a mãe de Monica conseguiu pegar um gelo

para que a cesárea pudesse ser feita. “Aquilo é sufocante, a sen-

para que a filha chupasse e sentisse um alívio da sensação de

sação é de que você vai morrer.” Não ouviu conversas, só con-

garganta seca. Às 7h, após passar dezessete horas sem ingerir

seguia se concentrar na dor. Tampouco ouviu respostas para a

uma gota de água e sem poder se alimentar, o café da manhã

sua reclamação. Em meio à angústia, Isabele veio ao mundo.

chegou ao quarto. A filha, no entanto, não chegava. Mais uma

Antes que conseguisse um vislumbre do bebê, a médica

vez, Cláudia desdobrou-se para perseguir alguma enfermeira

se afastou com a criança para fazer todos os procedimentos.

e conseguir trazer a pequena aos braços da mãe. O bebê havia

Sem o consentimento da mãe, instilou nitrato de prata nos

nascido às 23h e ficara sem mamar durante nove horas. “Eu

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não sei se ela teve dificuldade para respirar quando nasceu ou

pro. Você não quer, mas é obrigada.” No início da gestação, foi

algum outro problema. Sabia que ela deveria estar com fome.”

acordado que, “se tudo ocorresse bem, o parto seria normal”.

Então, Isabele foi levada para o quarto. A partir daí, Monica pediu para que a filha ficasse e esta não saiu mais dos seus braços e da companhia da família.

Algo não ocorreu bem. — Como você quer que eu faça quando entrar em trabalho de parto? Eu te ligo quando começarem as contrações? — questionou Monica, que estava com sete meses de gestação. — Mas você quer entrar em trabalho de parto? Aquela pergunta fez com que respirasse fundo para assimilar.

“Se acontecer alguma coisa com a Rafaela, nosso casamento terá sérios problemas”, disse enfático Raul, seu marido. Monica engoliu em seco. “Aquilo acabou comigo”, conta.

— Claro que sim. — Ah, mas se passar das 40 semanas eu não espero — decretou o obstetra.

Cinco anos depois de passar pela experiência da cesari-

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)

ana, ela esperava pela segunda filha. A ideia de ter um bebê

divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

próximo ao primeiro parto logo fora abandonada, já que a dor

(IBGE), em 2015 sobre uma coleta de dados no segundo se-

do corte da cesárea havia permanecido por algum tempo. Além

mestre de 2013 em 62 mil casas do país, 53,5% das mulheres

disso, teve fibromialgia, uma síndrome que provoca dores no

tiveram o parto marcado com antecedência, ainda no pré-natal.

corpo, o que também contribuiu para adiar a nova gravidez.

Durante a gravidez, Monica conversou pela internet

Depois do tratamento, Rafaela foi planejada. Enquanto ela es-

com uma mulher que havia tido suas filhas em casa. Por meio

tava se preparando para vir ao mundo, Monica foi pesquisar

das redes sociais entrou em contato com o tema pela primeira

sobre o assunto. Saudável, aos 36 anos ainda sonhava em ter

vez. Visitou um consultório conhecido por ter uma médica

um parto normal. Dessa vez, conseguiu segurar a cirurgia até,

especializada em parto humanizado. Conheceu o trabalho da

pelo menos, as 40 semanas completas.

obstetra e professora Melania Amorim, especialista em casos

Diante de tamanha pressão psicológica do marido e dos médicos, Rafaela nasceu após uma cesárea em um dos hospitais mais caros da zona sul de São Paulo. “Foi como um estu54

de obstetrícia baseada em evidências. Aos poucos, apaixonouse pelo assunto. No entanto, o marido era contra que a esposa desse à 55


luz em casa, porque tinha medo da possibilidade de que algo

Na última consulta de pré-natal, no dia 23 de junho de

desse errado durante o processo. A parteira com que Monica

2010, o médico disse que a previsão era para o dia 12 e que já

havia conversado não aceitava auxiliar no parto nessas con-

havia passado da hora de o parto ter acontecido. “A escolha é

dições. “Se é casada, mora na mesma casa que o pai da crian-

sua, mas por mim você já estaria internada. Eu já estou ner-

ça, ele tem que estar de acordo. Senão, não fazemos”, afirmou

voso”, pressionou o médico.

a obstetriz. A gestante questionou se o parto não poderia ser

Era uma quarta-feira. O marido deu a palavra de ordem:

feito em outro lugar e obteve novamente um não, pois o marido

esperaria apenas até sábado para levá-la ao hospital e fazer a in-

não estava de acordo.

dução do parto. “Eu queria fugir, eu não estava nem perto do tra-

Monica se sentiu completamente desanimada e teve de

balho de parto.” Tomava chá de pimenta todos os dias, rezando

recorrer novamente a um hospital. Trocaram, ela e o parceiro,

aos céus para que o as contrações começassem. Não começaram.

de plano de saúde para que o parto coubesse no orçamento.

Sábado foram ao hospital. A enfermeira, que parecia a

Ainda assim, a gestante escolheu o médico a partir da opção

favor do parto normal, aplicou o remédio e fez recomendações

de poder fazer um parto normal. “A cesárea prévia não é um

de exercícios para favorecer a indução. Quando as contrações

problema. É só monitorar”, garantiu o obstetra procurado.

começaram, a sensação era de dores seguidas umas após as out-

Com 38 semanas de gravidez e 18 kg a mais, tudo estava

ras. Fez a cardiotocografia. Tudo estava indo bem. Uma hora

fantástico: não tinha diabetes gestacional nem pressão alta. O

e meia depois, os profissionais do plantão mudaram. E assim,

médico, ao realizar a ultrassonografia, indicou que já estava

a enfermeira que estava acompanhando o caso foi substituída

na hora de Rafaela nascer. “Fiz as minhas contas e eu não es-

por outra.

tou com 40 semanas, estou com 38. Eu já te falei que fiz as

“Sou testemunha de que o toque pode ser feito sem ser

contas da minha filha e ela nasceu de 36 da última vez”, disse

doloroso. Essa enfermeira que fez o toque fez de um jeito que

Monica nervosa. A pressão, então, passou a acontecer dentro

doeu e muito.” Tentou mudar de posição. A contração já du-

da própria casa. O marido queria a cesárea. A mãe da gestante,

rava três ou quatro minutos.

que é médica, também. “Para eles não fazia diferença. Eu já

— Não posso ficar de lado?

estava mergulhada nas informações. Sabia de todas as possibi-

— Não. O toque é assim mesmo.

lidades de risco, até as mais cabeludas.”

— Mas está doendo…

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— Tem que aguentar! — vociferou a enfermeira. — Só um dedo de dilatação? Seu colo está alto, não vai dar certo.

— Não. Se for para anestesiar, é para fazer a cesárea — finalizou o obstetra.

Para tentar acelerar o processo, a grávida foi para o chu-

Assim, sentindo-se pressionada psicologicamente por

veiro. Uma hora e meia depois do exame de toque, a bolsa se

dois lados, o da família e o do médico, a gestante finalmente

rompeu. Desejava ir para a banheira, mas só poderia após ter

cedeu. Foi colocada em uma maca e encaminhada para o cen-

quatro centímetros de dilatação e ainda não havia passado de

tro cirúrgico. Tremia, não por dor ou reação à anestesia, mas

um centímetro e meio. Fez exercícios na bola, tentou algumas

por puro nervosismo. Estava apavorada por se lembrar da dor

posturas de yoga, mas não tinha mais forças para andar.

que sentira na última cirurgia, com os pulmões comprimidos

Passava de 22h. O médico fez um novo exame de toque: Monica estava com três centímetros de dilatação. — Já que não posso ir para a banheira enquanto não

pela manobra que empurrava o bebê para cima. “Meu marido foi se arrumar para entrar na sala de cirurgia. Quem segurou a minha mão foi o médico.”

chegar aos quatro centímetros de dilatação, o que você acha de

Novamente não houve teste anestésico, tampouco uma

fazer uma analgesia para ver se reduz a contração? — sugeriu

consulta com o anestesista para saber se tinha alergia a algum

Monica, sentindo que não iriam esperar pelo desejado parto

medicamento. A pressão foi aferida e o anestésico injetado,

normal e que seria encaminhada para a sala de cirurgia.

sem a parturiente parar de tremer. A sensação de sufocamento

— Não, se for para aplicar uma anestesia, é para você

pela qual passou durante o parto de Isabele tomou seu corpo

ir para a cesárea. Não vou fazer uma anestesia em você para

novamente, como pressentira. Teve um ataque de pânico. Du-

parto normal — sentenciou o médico.

rante a cesariana, os enfermeiros que estavam na sala de cirur-

O problema não era a dor, que já durava cerca de cinco

gia tentaram acalmá-la até que o marido chegasse.

horas. Ela sabia que poderia ficar ali, em trabalho de parto, por

A incisão foi feita de maneira rápida. Rafaela veio ao

mais umas treze horas tranquilamente. No entanto, não era o

mundo às 23h27, com 4,135 kg, e ficou com a mãe durante

que o médico nem seu marido desejavam.

uma hora e meia na sala de cirurgia. “Deixa ela comigo. Não

— Se você está com tanta dor assim, vamos para a cesárea — pressionou o companheiro. — Vamos tentar… — pediu Monica, ainda com esperanças. 58

tira ela de perto de mim”, pediu. O “bebê gigante”, como foi chamado pelos profissionais que acompanhavam o procedimento, permaneceu nos braços 59


da mãe enquanto a placenta era retirada e a sutura era feita.

propício. É preciso deixar mãe e bebê ficarem juntos no con-

“Tentei colocá-la para mamar, e ela levou quase meia hora

tato precoce pele a pele”, confirma Melania Amorim.

para conseguir.”

Entre 1h30 e 3h, a mãe de Rafaela e Isabele ficou sob

Monica pediu que não fosse aplicado nitrato de prata

observação. Sem atendimento, sem comida, sem água. Cerca

— solução aquosa utilizada na prevenção de conjuntivite bac-

de cinco mães estavam ali, deitadas, sem sentir as pernas. As-

teriana, também chamado de Método de Credé — nos olhos

sim como no primeiro parto, o movimento dos membros infe-

de sua filha. Para tanto, entregou com antecedência um docu-

riores de Monica demorou a voltar.

mento ao hospital, juntamente com um exame ginecológico

Às 4h, a puérpera foi para o quarto, onde pôde nova-

que provava que a mãe estava saudável e proibia a aplicação

mente ter a filha nos braços. Às 6h, a menina foi levada para o

do líquido.

berçário com a justificativa de não ter passado por alguns pro-

A prática é realizada para a prevenção da conjuntivite

cedimentos de rotina. A mãe foi atrás, apesar de sentir dores no

gonocócica, causada por gonococos, que pode ser transmitida

local da incisão. E deu de mamar. Sentiu-se estranha. “Percebi

pela mãe durante o nascimento, no contato vaginal. No en-

que aquilo não estava prestando. Olhei para a cara da minha

tanto, a gonorreia é uma doença rara e a chance de as bactérias

filha e pensei ‘é outro bebê, não é o meu bebê’.”

serem transmitidas durante uma cesariana é ainda menor. “A

Em casa, Monica teve o apoio da mãe e da sogra para

aplicação de nitrato de prata deve ser discutida com a mulher

cuidar de Rafaela. No entanto, tudo era difícil. O diagnóstico

e outras substâncias podem ser usadas e que não são tão agres-

veio em seguida: estava com depressão pós-parto. Não sentia

sivas, como a eritromicina. É bom pactuar com o casal o que

vontade de dar carinho ao seu bebê e cuidava dele apenas por

eles querem e avaliar o risco”, explica a ginecologista obstetra

saber que era seu. E se culpava por isso. Só desejava que todas as

Melania Amorim.

vozes da casa saíssem e a deixassem em paz, livre de julgamentos.

Ainda que seja necessária a aplicação, a recomendação

Quando o apoio foi embora, Monica conversou dire-

do Ministério da Saúde para recém-nascidos saudáveis é o

tamente com o marido, contando a ele tudo pelo que estava

contato pele a pele durante a primeira hora de vida. “O mé-

passando. Desejava fazer um tratamento psicológico. Foi ao

dico deve postergar esses procedimentos rotineiros, inclusive

psiquiatra apenas para conseguir o encaminhamento para a

para pesar o bebê. Não há urgência e aquele não é o momento

psicoterapia. Não queria tomar remédios.

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A mãe explicou a Isabele que não se sentia bem e pediu

mentosa, muito menos a do hormônio do anticoncepcional.

que ela fosse boazinha. Durante o tratamento, o casamento

Uma falha na tabelinha — método anticoncepcional não mui-

entrou em crise. Monica foi franca com o marido. “Se você

to confiável, baseado no controle da fertilidade — levou a uma

não tivesse forçado a barra na hora do parto, tivesse me dado

terceira gravidez. Nas duas semanas seguintes à descoberta,

tempo, talvez eu não estivesse com depressão pós-parto.”

Monica sentiu pânico novamente, mas lutou contra os traumas

Frequentou o psicólogo por quase dois anos. Durante o

anteriores para se manter forte.

primeiro ano de vida de Rafaela, mãe e filha ainda não haviam

Conseguiu o tão sonhado parto humanizado após a

criado um vínculo afetivo tão forte. A ligação finalmente

idade considerada ideal por muitos obstetras, inclusive aque-

começou a se formar quando a menina deu os primeiros pas-

les que também afirmavam que não conseguiria parir. O parto

sos; Monica, depois de muita luta, estava se recuperando do

natural, segundo o ginecologista obstetra Jorge Kuhn, especial-

trauma. “Tem muita coisa que é da personalidade dela, mas

ista no assunto, vai além de ter um bebê sem intervenções mé-

tem muita coisa que digo que foi do ano que perdi.”

dicas. “A melhor definição para parto humanizado seria aquele no qual se respeita as escolhas da mulher. Aquele em que ela é protagonista, e nós [médicos] somos as pessoas que vão estar dando uma ajuda a esta mulher. Então, ela define como e onde

Aos 41 anos de idade, Monica Uratsuka D’Avila trabalha em casa fazendo locuções. Tem um miniestúdio, onde

pretende dar à luz — seja no próprio lar, em uma casa de parto ou em algum hospital.”

grava seus trabalhos. O relacionamento com Isabele e Rafaela

Após o caso de depressão pós-parto, Raul não impôs

é de cumplicidade. Com Laís, há cuidados maiores, pois ela

mais a sua vontade e apoiou a esposa. “Não interessa se eu acei-

ainda é um bebê. A relação é de cuidado mútuo entre mãe e

to ou não aceito, a decisão é dela”, disse após duas traumáticas

filhas. Um jeito de viver que deixou para trás as sombras da

cesarianas. Uma amiga indicou a parteira Ivanilde Rocha, que

depressão pós-parto e o peso da culpa por ter sofrido violência

foi a escolhida para fazer ajudar na chegada de Laís ao mundo.

obstétrica.

O trabalho de parto latente, quando a gestante começa

Até 2014, não usou nenhum método contraceptivo.

a sentir contrações ritmadas, se iniciou às 6h do dia 26 de no-

Quis superar a depressão sem nenhuma interferência medica-

vembro, um domingo. Enquanto esperava, Monica passou o

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tempo bordando e saiu para votar.

havia sofrido tantas intervenções nos partos anteriores, prefe-

Nos primeiros minutos de domingo, iniciou-se o parto

riu deixar como estava. “Tudo o que eu quis fazer e o que eu

ativo, que tem como característica contrações regulares, de

não quis fazer foi respeitado. Poderia ter sido assim desde o

cinco em cinco minutos em média, e que vão ficando cada vez

primeiro. E aí você tem mais noção de como aquela coisa besta

mais próximas e intensas. Às 6h, quando o tempo entre as con-

de me deixarem 20 horas sem tomar água, praticamente, não

trações caiu para três minutos, a gestante ligou para a parteira,

faz sentido. Meu marido fez suco de melancia para mim. Eu

que não demorou a chegar. Do chuveiro, ela ia para o sofá, e

dormi. Fiquei extremamente à vontade em casa.”

de lá para o chuveiro novamente. E assim era um ciclo para amenizar as dores.

A mãe é adepta das fraldas de pano. Acompanha grupos de incentivo ao parto humanizado nas redes sociais. Levanta a

A parturiente foi examinada e estava com seis

bandeira do protagonismo da mulher e, mesmo com todos os

centímetros de dilatação. Enquanto Ivanilde enchia a banhei-

percalços, manteve-se firme. Impôs suas vontades e conquistou

ra no meio da sala, Raul arrumava as meninas para levá-las à

em seu terceiro parto o que não havia conquistado nos outros.

escola e Monica voltava para o chuveiro, pois já estava havia mais de 24 horas em trabalho de parto e se sentia cansada. Quando a banheira ficou cheia, o intervalo entre as contrações já era de um minuto. A gestante foi para a água, que estava em uma temperatura de cerca de 40 ºC. Às 11h, Rafaela voltou da escola e entrou na água com a mãe. Isabele também ficou por ali. Ambas acompanharam quase todo o trabalho de parto. Às 19h35, Laís veio ao mundo com 3,445 kg. Assim que a criança nasceu, foi para os braços da mãe. Monica sentiu uma pequena laceração, mas não quis ser suturada. “É funcional ou é estético?”, perguntou para a parteira. A resposta foi que era apenas um problema estético, que não iria interferir nas atividades do dia a dia. Desta forma, a parturiente, que já 64

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QUANDO O TRAUMA É A CURA

M

ilena Albergaria fechou as pernas com força, sentindo que as contrações pareciam ficar ainda mais desconfortáveis com o esforço. Com o suor a escorrer pela testa, sa-

bia que tentava resistir em vão. Uma enfermeira e uma obstetra seguraram suas pernas abertas e outra profissional de saúde imobilizou suas mãos, a pedido da médica que faria o procedimento. Ela não questionou se a grávida queria. Se poderia ter essa atitude. Não explicou a necessidade. Disse que faria e ponto final. “Me senti estuprada”, disse. Apesar da semelhança, o fato era que a médica havia decidido acelerar o trabalho de parto. “Vou estourar a sua bolsa”, disse. Claramente sem consentimento, a mulher que empunhava o objeto pedia a ajuda das assistentes. “Segurem!”, mandou, enquanto colocava uma espécie de palito de plástico esterilizado no meio dos dedos

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indicador e médio, introduzindo na vagina da grávida para que

A pré-eclâmpsia é a hipertensão arterial depois de cer-

atingisse o seu objetivo. Tudo isso durante um exame de toque

ca de vinte semanas de gestação, que pode estar associada à

e uma contração, o que fez com que fosse ainda mais doloroso.

presença de proteínas na urina, acompanhada de inchaço nos

A justificativa posterior ao ato foi que o trabalho de par-

membros inferiores. Por isso, precisava de um acompanha-

to de Milena não estava evoluindo. Uma pesquisa da Fundação

mento criterioso do obstetra para não evoluir para eclâmpsia.

Perseu Abramo respondida por duas mil mulheres mostrou que

De acordo com estudo publicado em julho de 2006 na revista

menos da metade das parturientes foram esclarecidas sobre to-

Femina, da Federação Brasileira das Associações de Gineco-

dos os procedimentos obstétricos feitos em seus corpos: 45%.

logia e Obstetrícia (Febrasgo), a incidência de pré-eclâmpsia varia entre 2 a 8% das gestações. A hipertensão arterial específica da gravidez também é uma das principais causas de morte materna e com taxa de morbimortalidade perinatal no mundo,

O pré-natal foi tranquilo. Milena chegava ao consultório

variando entre 5 e 20%.

com muitas dúvidas sobre o parto. Contava o que sentia, ques-

A irmã já havia passado por isso, o que a motivou a

tionava sobre o que lia. A médica, atenciosa, era o mais didática

manter a calma e procurar os cuidados necessários para uma

possível, o que deixava a grávida aliviada apesar do diagnóstico

gravidez regular. “A médica viu que a minha pressão não es-

de pré-eclâmpsia. A maternidade do Sistema Único de Saúde

tava baixando e decidiu me encaminhar para uma maternidade

(SUS) era especializada em casos de alto risco, o que explicava

especializada em casos de risco”, conta. Para Milena, foi um

consultas demoradas e longas esperas para o atendimento. Isso

alívio. Ela cancelou o plano de saúde e começou as consultas

não a aborrecia: “Eu tinha a consciência de que, assim como

pelo SUS. Engordou apenas 5 kg, devido à orientação da nu-

eu, as grávidas tinham muitas dúvidas. Adoraria que a médica

tricionista, seguida à risca. Participou de palestras sobre ama-

que fez o meu pré-natal tivesse feito o meu parto”, lamenta.

mentação e pós-parto, que sempre incentivavam a presença da

As primeiras consultas haviam começado pelo plano

família para auxiliar as gestantes.

de saúde. A pressão arterial de Milena oscilava e a médica do

No dia 1º de junho, por volta das 8h, sentiu os primeiros

plano de saúde deu a notícia de maneira agressiva. “Você pode

sinais do trabalho de parto. Milena chegou a ir ao hospital, mas

morrer!”, disse a obstetra.

ainda só tinha um centímetro de dilatação. Decidiu caminhar,

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“para ver se a força da gravidade ajudava a aumentar as con-

muita dor de cabeça — insistiu. Ao menos, queria poder enxer-

trações, o bebê a descer e a dilatar mais”. Às 17h, reclamou

gar a filha quando nascesse.

que precisava ser examinada novamente. A internação lhe foi negada, devido à lotação no hospital. Após muita insistência e um novo exame de toque, a

— Tudo bem. Mas a responsabilidade é sua… — alertou a enfermeira. — Posso ficar com o prendedor de cabelo?

gestante permanecia com um centímetro de dilatação. Voltou

— Não pode usar nem levar nada! — a enfermeira ficou

para casa e torceu para que o trabalho de parto engrenasse de

de braços cruzados, observando enquanto a grávida se despia.

madrugada, com um clima mais ameno e o hospital mais vazio.

As roupas da mãe e do recém-nascido não poderiam ficar no

“Seja por intervenção divina ou sorte”, Milena sentiu as con-

hospital, sem nenhuma satisfação do porquê. Eram muitos

trações aumentarem consideravelmente por volta das 3h, até

“nãos”, todos sem explicação.

que as dores se tornaram insuportáveis. De carona com sua

“Ela ficou ali, de cara feia. E ainda tive que me despir

mãe, não tiveram problema algum para encontrar uma vaga

na frente dela”, conta. A mãe da grávida, Dilmar, estava junto

e estacionar próximo ao hospital. “Estava vazio, tudo lindo.

com a filha atrás do biombo e também se sentia desconfortável

Naquele momento, eu tinha quatro centímetros de dilatação”,

com a intimidação. Na época, a gestante ainda alisava os cabe-

conta.

los. Queria ficar com os fios presos para se sentir mais à vonAntes de dar início aos procedimentos de internação, a

parturiente foi submetida a uma entrevista, com o intuito de

tade, para que não entrassem nos olhos sem pedir licença ou grudassem na sua pele molhada de suor.

saber se ela tinha algum histórico de aborto, cesárea anterior

Teve de vestir uma camisola que deixava toda a parte

ou outros filhos. “Fizeram algumas perguntas muito estranhas.

traseira descoberta. “Uma camisola erótica”, descreve. “Eu es-

Questionaram se eu tinha todos os dentes na boca. Nunca me

tava gorda, prenha, inchada. Aquilo me sufocava e espremia

esqueci, porque perguntaram duas ou três vezes e até hoje não

o meu peito, a minha barriga e a minha bunda ainda ficava de

sei o motivo”, diz. No meio de uma contração, a resposta “sim”

fora”, conta. A situação piorou quando teve de sentar em uma

soava como um resmungo, uma resposta involuntária.

cadeira de rodas com os trajes impostos pelo hospital. A pele

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Após a avaliação, a grávida foi conduzida à sala de pré-parto.

grudava na cadeira. “Eu queria ir andando. Não tinha nenhu-

— Preciso ficar com os meus óculos. Sou míope e tenho

ma proteção na cadeira. Fiquei com nojo”, lembra. Não teve 71


escolha: ou as pessoas observavam sua intimidade de perto ou

enfermeira justificou a atitude afirmando que alguns acompan-

iria sentada. Escolheu a cadeira.

hantes furtavam toalhas. O cuidado com a possível tragédia

Impaciente, foi conduzida a uma sala de enfermagem e

era tanto que, enquanto tomava banho, as duas auxiliares ob-

respondeu ao mesmo questionário. Mal conseguia raciocinar, já

servavam cada movimento da grávida. “Temos que ficar aqui,

que respondia às perguntas entre uma contração e outra. A avó

porque você pode escorregar ou passar mal”, disse uma delas.

e o pai da criança, Tiago, não puderam acompanhá-la. “Nós te-

O ambiente era extremamente limpo e espaçoso. Enxugou-se

mos consciência de que é lei, mas a sala de parto é pequena para

com uma camisola e vestiu outra, sempre com a sensação de

acomodar todo o mundo”, tentou justificar a assistente social

desconforto por usar aquele traje.

do hospital durante uma audiência anterior ao parto, na qual Milena tentara exigir a presença de um acompanhante.

Quando deitou na maca, teve de colocar outros acessórios: touca na cabeça, proteção nos pés, um aparelho para

A justificativa, no caso de ter um homem como acom-

monitorar os batimentos cardíacos que ficava preso ao polegar

panhante, era a de tirar a privacidade das outras mulheres. Na

e outro para aferir a pressão arterial. “De tempos em tempos,

sala do trabalho de parto, apenas mulheres tinham permissão de

aquilo inchava no braço, às vezes no meio de uma contração,

acompanhar as gestantes. E apenas em casos específicos, como

doía muito. Eles deixavam apertado demais, eu estava agoni-

para ficar com menores de idade ou com alguém que tenha dis-

ada”, conta. Sem trocar meia palavra, uma enfermeira fazia o

túrbios psicológicos, como fobia de hospital — tudo compro-

exame de toque e saía da sala.

vado por exames. “Quando entrei na sala de parto, entraram

O lugar era pequeno e Milena dividia o ambiente com

umas sete ou oito pessoas lá dentro. Tanta gente, e ainda tinha

uma desconhecida, que acabara de passar por uma cesariana de

espaço para a minha mãe e para o meu marido. Cabia, sim.”

emergência. Esgotada, dormia com uma sonda dependurada em

“Você tem que ir tomar banho”, instruiu uma das en-

um saco plástico com urina, em um leito a dois metros de distân-

fermeiras. Milena foi conduzida ao banheiro, mesmo tendo

cia. “Enquanto estava na parte da admissão, ouvia o choro dela

se banhado antes de sair de casa. “Não me perguntaram em

no biombo ao lado por estar em trabalho de parto com seis me-

nenhum momento se eu queria. Mas não me incomodei,

ses de gestação”, diz. Por um tempo, ainda conseguiu tirar um

porque aliviava as dores na lombar”, diz. Não ofereceram

cochilo ou outro durante as contrações. Com a evolução do tra-

toalha, mas sim outra camisola para que pudesse se secar. A

balho de parto, sentia uma vontade incontrolável de gritar. “Eu

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ficava pedindo desculpa a cada contração, porque sabia que ela

“frêquencia cardíaca fetal não tranquilizadora”. A obstetra e

podia estar incomodada. Era uma coisa que eu não tinha con-

professora de ginecologia e obstetrícia Melania Amorim expli-

trole”, desabafa. Em apoio à companheira de quarto, a puérpera

ca que “podem ser alterações cardíacas do feto por hipoxia ou

sorria e dizia que estava tudo bem, que ficasse à vontade para gri-

não sinalizar nada grave”. Muitas situações podem levar a tal

tar. Ainda assim, Milena não se sentia confortável. Continuava

diagnóstico. “Existe a possibilidade de ser porque a mãe está

pedindo perdão a cada grito de desafogo.

deitada de barriga para cima, o que comprime os grandes vasos

A gestante seguiu na peregrinação até as 7h. O plantão

e diminui o retorno venoso para o coração, que manda menos

havia mudado e uma enfermeira queria checar se ela já havia toma-

sangue para a periferia e para o útero. Outro exemplo é de o

do banho. Respondeu que sim. Neste momento, uma funcionária

bebê estar tirando uma soneca durante o trabalho de parto. São

recém-chegada ao hospital — não se sabe se era enfermeira ou téc-

muitos falsos positivos”, complementa.

nica de enfermagem — foi apresentada ao corpo médico. Na sala

Uma gravidez de alto risco tem maior chance de ter

adjacente, a parturiente conseguia ouvir os burburinhos enquanto

um comprometimento do fluxo placentário, de acordo com a

aproveitava os momentos de paz para descansar.

profissional. “Alguns bebês não toleram a diminuição do fluxo

Após alguns minutos inexatos, uma enfermeira apare-

sanguíneo que ocorre durante a contração e podem desenvolver

ceu com um soro suspeito, segundo Milena, de conter ocitoci-

padrões de frequência cardíaca fetal não tranquilizadora”, afir-

na sintética. Após introduzir a agulha em sua veia, sentiu as

ma a obstetra. “Como é imprevisível e não sabemos o grau de

contrações aumentando gradativamente. “A dor foi se intensifi-

reserva que todos eles têm, recomenda-se que ausculte. Se a

cando aos poucos. Depois, aumentaram o gotejamento.”

frequência estiver boa, não há motivo para dizer que o bebê vai

Quatro exames de toque foram feitos nesse meio-tempo,

entrar em sofrimento fetal só porque está no canal de parto.”

o que deixou a grávida angustiada. “Você já está com dilatação

A frase de ordem da médica foi o gatilho para uma crise

completa. Tem que fazer força para chegar logo no expulsivo. Se

de choro. Desamparada, sem poder andar nem levantar para

não fizer isso, seu bebê pode entrar em sofrimento fetal. Agora,

ir ao banheiro, Milena entrou em desespero e já se sentia po-

é com você”, sentenciou a obstetra e, em seguida, saiu da sala.

tencialmente culpada por poder fazer algum mal à filha. “Me

O sofrimento fetal leva a entender que o bebê está em

ajuda! Me ajuda!”, gritava a plenos pulmões. A enfermeira no-

profunda angústia. Para evitar confusão, adotou-se o termo

vata parava na frente da porta e olhava com uma expressão

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que lembrava piedade. Abaixava a cabeça e ia embora, como

para furar a membrana. “O problema é que durante a con-

se fosse impedida de entrar para oferecer ajuda. Mais tarde,

tração você não quer que ninguém te toque. Não suportei de

Milena recebeu um breve carinho na cabeça, demonstração de

dor”, diz Milena. Quando fechou as pernas e segurou as mãos

solidariedade por parte da profissional de saúde.

da profissional de saúde, em um reflexo involuntário, é que se

Quando pediu para ir ao banheiro, colocaram um penico de aço inox abaixo de suas pernas abertas e mandaram que

deu o episódio no qual enfermeiras a seguraram para que pudessem fazer o procedimento.

fizesse xixi. “Três pessoas olhavam enquanto esperavam que eu

Colocaram a aparadeira para que o líquido escorresse após

mijasse ali, na frente delas. Não consegui”, conta. Sentia frio e

estourar a bolsa. A médica e suas auxiliares saíram do quarto logo

o ar-condicionado contribuía para que ficasse angustiada. De-

depois, deixando a grávida sozinha. Talvez pelo estresse causado

sistiu de pedir auxílio e fez as necessidades na própria maca. A

pela violência, as contrações pioraram. “Me estupraram, largaram

urina se misturou com o líquido amniótico e escorreu para o

o corpo e me deixaram lá sem ninguém”, descreve.

chão, para desgosto da obstetra. A parturiente sentia sede, mas

Enquanto Milena sucumbia na maca, a mãe da colega de

não queria beber água para que não refletisse em bexiga cheia.

quarto que fora submetida a uma cesárea vinha fazer uma visita.

Após o parto, a médica ainda viria questionar sobre o

Homens desconhecidos, que faziam uma reparação qualquer den-

motivo de um xixi fora de hora e lugar. “Eu estava tão fraca,

tro do hospital, iam e voltavam pelo corredor, passando em frente

sem comer, que não tinha forças nem para falar.”

à porta do quarto, que permanecia aberta. Sentindo-se esgotada,

— Por que você fez xixi na maca? — vociferou.

arrancou a touca e todos os acessórios que se prendiam ao seu

“Eu não estava disposta a urinar com todo o mundo me

corpo. Isso alertou a equipe médica, que se preocupou ao perceber

olhando, com aquela aparadeira fria. Pedi para ir no banheiro

que o aparelho de monitoramento cardíaco parara de detectar o

e não deixaram, com a justificativa de que a minha filha pode-

bip-bip costumeiro. “Acho que pensaram que eu tinha morrido.

ria nascer no vaso e morrer. Então, decidi urinar ali mesmo”,

Correram para colocá-lo novamente no meu dedo e me cobriram

pensou. No entanto, não conseguiu verbalizar.

com um lençol”, relembra.

Mais tarde, o momento de estourar a bolsa amniótica.

Quem demonstrou um gesto de solidariedade foi a mãe

A médica explicou que teria de fazê-lo com a ajuda dos dedos

da gestante ao seu lado, que tentou acalentá-la no momento

e do tal objeto de plástico, que funcionaria como uma agulha

de desespero. “Depois de tudo que tinha acontecido, eu não

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estava mais nem aí. Arranquei tudo”, diz.

Sentindo que as últimas energias se esvaíam do corpo, a

Por volta das 16h, uma médica que encontrara durante

grávida estava com tontura. Não conseguia abrir os olhos. Du-

o período de admissão estava chegando para um novo plantão

rante o caminho no corredor até a sala de parto, permaneceu

e reconheceu o rosto de Milena. “Mãe, você ainda está aqui?

com as pálpebras fechadas, como um mantra para que con-

Já era para você ter saído!”, aproximou-se e segurou a mão

seguisse aguentar firme.

de Milena, enquanto afastava as pessoas da equipe que se

Esgotada, escutava os burburinhos ao chegar na sala

aglomeravam em torno da maca. “Você já deveria estar com o

de parto. Tinham conduzido Milena até a sala errada. “Não,

seu bebê no quarto, descansando”, disse, serena.

esta sala está sendo preparada! É na outra, o médico está

— É, você pode ter o seu bebê logo para poder ir ao quarto logo para comer. — intrometeu-se outra médica. — A última coisa que estou pensando agora é em comida. Eu quero ter minha filha e acabou. — respondeu a parturiente.

esperando”, ouviu. Quando chegou ao lugar certo, informaram que ela teria de fazer o esforço de mover o corpo novamente para outra maca. De olhos fechados, utilizava a perna para explorar

— Olha, já tive dois filhos. Sei que é difícil, é muito

o novo leito para o qual seria conduzida. Não podia parir na

complicado. Você vai precisar se esforçar. Vamos tentar, vou

posição que lhe apetecia e era obrigada a ficar sempre com a

ver como é que está a sua força. — disse a médica que segurava

barriga virada para cima.

sua mão.

“Abre o olho! Abre o olho!”, mandava o médico que

Com o apoio emocional, Milena se sentiu mais disposta.

estava na sala de parto, sentado e com os aparelhos cirúrgicos

Com apenas um esforço, o bebê ficou encaixado e pronto para

em prontidão. Com a roupa cirúrgica, máscara e touca, só era

nascer. “Com esta médica, só precisei fazer uma força”, conta.

possível enxergar seus olhos verdes cintilantes por trás de ócu-

“Corre, o bebê vai nascer”, gritou uma profissional de saúde, que logo se apressou em trazer uma maca para a grávida. Com o bebê encaixado, teve de fazer o esforço de pas-

los redondos. — Você tem que passar, senão vai ter o seu bebê aí, de forma desconfortável!

sar de uma maca para a outra. “Virei de lado, porque não es-

— Eu preciso respirar… — disse Milena. Estava ofegan-

tava aguentando de dor. Ainda tive que fazer tudo isso sem

te. O verde da parede e branco das luzes se misturavam. Com

força, para o bebê não nascer ali.”

fotofobia, Milena estava sensibilizada e não conseguia olhar

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diretamente para a luz.

chorava. “Creio que não fosse necessário. Isso me fez perceber

— Estou sentindo muita dor. — reclamou.

que eu só precisava ter um apoio para ter parido. Em menos de

A obstetra autora da frase sobre “só depender dela para

meia hora, aquela médica conseguiu me ajudar.”

o parto ser realizado” voltou a falar algo. “Você não pode tomar

A recém-nascida foi levada e a mãe ainda sentia as con-

anestesia. E não pode fazer cesariana porque você é gordinha.

trações, mas não explicaram que aquilo era comum, devido

Tem muita gordura abdominal, sua recuperação seria muito

à necessidade de expulsar a placenta. A menina nasceu com

demorada”, argumentou.

3,310 kg e media 43 centímetros.

A paciente não entendia o porquê dessa frase. “Não pedi cirurgia nenhuma e ela veio com esse discurso. Eu estava com muita dor, pensava e não tinha forças para responder.” A obstetra que chegara para o novo plantão carregou Mile-

— Relaxe, Milena. Você tem que me ajudar para poder ver logo a sua filha — disse o médico. — Agora você vai vê-la relaxar, doutor. — outra enfermeira chegou com Laisa no colo e colocou-a nos braços da mãe.

na até a maca, mesmo que aparentasse fragilidade por ser peque-

A enfermeira tinha razão. Com a filha por perto, a

na e magra. A grávida pediu anestesia, mas não teve o pedido

puérpera conseguira relaxar enquanto o médico terminava de

concedido. A equipe apenas insistia para que fizesse força.

costurar o corte da episiotomia e puxava a sua placenta para

E fez. Na terceira tentativa, pontualmente às 17h15, a

fora. A enfermeira apertava a barriga de Milena e isso a inco-

pequena Laisa veio ao mundo. O corte do cordão umbilical

modava, porque ainda tinha contrações e sentia os coágulos de

precoce e a episiotomia vieram no pacote, feitos pelo médico

sangue escorrendo pela vagina. O bebê foi colocado em uma

que estava na sala de parto, após anestesia local. De acordo

espécie de encubadora ao lado e chorava inconsolavelmente.

com o Ministério da Saúde, o clampeamento do cordão um-

Vez ou outra, quando a mãe conversava, o choro cessava. Em

bilical deve ser tardio, o que significa que é recomendado es-

meio ao cansaço, a voz falhava. E a inquietude do recém-nasci-

perar o término da pulsação, na qual o sangue é transferido da

do voltava a preencher o eco na sala de parto. “Eu ficava me re-

placenta até o corpo do bebê. A transferência do líquido pode

cuperando para conseguir falar com ela para que não chorasse.

aumentar a reserva de ferro na criança em até 50%.

Foi muito doloroso”, descreve.

Foram nove pontos de sutura, o que fez com que a

Após o término da sutura, o médico saiu da sala e deixou

puérpera questionasse o porquê do corte no períneo enquanto

a parturiente sozinha com as enfermeiras, que davam instruções

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sobre o bebê. Milena estava esgotada e tentou prestar atenção

ra vez. O banho foi com água fria, para que estancasse o san-

por minutos que pareceram longos. Perguntou sobre o índice de

gramento. A enfermeira tinha o chuveirinho nas mãos e apon-

Apgar da filha — método amplamente utilizado para avaliar as

tava o jato para suas partes íntimas, pedindo que ela “abrisse as

condições do recém-nascido, e que leva em consideração ritmo

pernas” para poder enxaguar.

respiratório, frequência cardíaca, tônus muscular, reflexo e cor do

A puérpera utilizava uma camisola que não cobria todo

recém-nascido, de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria

o corpo, porque os outros trajes oferecidos pela instituição

— que estava entre 9 e 10, uma avaliação considerada ótima.

ficavam extremamente justos. Usava de maneira invertida e

Angustiada, perguntou se poderia tomar banho e recebeu

tinha de ficar embrulhada em um lençol para cobrir a parte

uma resposta positiva, o que a deixou mais tranquila. No caminho

frontal do corpo, o que era desconfortável e frio. A recém-

do corredor, a filha ficou entre as suas pernas, longe das mãos que

nascida estava de fralda, envolta apenas em um cueiro da

não conseguiam alcançá-la para que a acalentasse.

maternidade. Só depois pôde usar um macacão emprestado

Ao chegar no quarto, duas enfermeiras tomaram o bebê

de outro bebê, oferecido gentilmente por uma das mães que

nos braços para dar o primeiro banho. “Mãe, abre o olho. Veja

estavam na maternidade. Só na manhã seguinte é que Dilmar

como estou dando banho porque, no próximo, vai ser você”,

conseguiu levar as roupas ao hospital, após insistir muito com

incentivavam. No entanto, Milena estava esgotada e mal con-

a assistente social.

seguia vislumbrar o que estava acontecendo.

Ainda assim, em comparação com outras mães, Milena

Ofereceram comida e ela beliscou, mas não sentia fome.

era privilegiada. Isso porque estava próxima de uma sala de

Estava ansiosa para poder amamentar a filha, mas sabia que só

enfermaria que tinha suprimentos como absorventes, fraldas e

poderia levantar quando se sentisse forte. Apesar dos sintomas de

algodão. Além disso, podia tomar mais de um banho por dia:

tontura, mentiu para poder tomar banho e pegar Laisa nos braços.

estrategicamente, o primeiro ocorria bem cedo. O segundo, à

— Você só pode levantar da cama se não estiver se

tarde, após o horário de visitas, quando sobravam lençóis. O

sentindo tonta. — orientou a enfermeira.

local era reforçado com barras nas laterais, para prevenir que-

— Estou bem. — disse.

das. Todavia, não existia privacidade: a todo momento, pode-

Era uma desculpa para poder ter Laisa nos braços duas

ria aparecer algum profissional de saúde. Todos tinham pressa

horas após o nascimento e oferecer o leite materno pela primei-

e não podiam esperar o término do banho: ficavam ali, fazendo

82

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perguntas enquanto ela estava nua. “Eram quatro pessoas no

violência obstétrica, mas ficava chateado quando Milena

mesmo quarto jorrando sangue pelas pernas e que precisavam

queria alertar todas as mães sobre o problema que ela havia

tomar um banho muito rápido.”

passado. “Não gostava de ficar ouvindo, mas hoje em dia dis-

O marido só pôde aparecer no primeiro horário de visi-

cute um pouco sobre o assunto”, conta. Com 28 anos, ela mora

tas, a partir das 17h e permaneceu uma hora. Milena estava fi-

em Salvador e se separou do marido em agosto, mas a relação

cando irritada e sua pressão subia. “Isso acontecia só porque eu

entre eles permanece saudável. Laisa, com 4 anos de idade, fica

não queria ficar no hospital.” Foi obrigada a permanecer 6 dias

a maior parte do tempo com a mãe.

em observação, dividindo o quarto com três mulheres. A rotina

A experiência traumática fortaleceu Milena como pes-

era exaustiva e ela mal dormia. Além de precisar amamentar,

soa e como mulher. Descobriu-se feminista e engajada no

alguém aparecia a todo momento, fosse um especialista ou uma

movimento de humanização do parto, o que a levou para uma

faxineira, que precisava manter o local limpo. As luzes fortes

área de trabalho completamente nova: a saúde. Abandonou a

que iluminavam o quarto não podiam ser apagadas, o que era

faculdade de produção audiovisual no final da gravidez e pre-

estressante e causava desconforto para mães e recém-nascidos.

tende se tornar enfermeira, para então se especializar em enfer-

Uma série de ordens eram despejadas sobre as grávidas,

magem obstétrica e fazer um curso de doula, profissional que

que não encontravam tempo de sossego. Bastava que mudasse

acompanha a grávida, oferecendo apoio psicológico e físico

o plantão e um novo médico vinha checar os pontos. “Abra as

durante o trabalho de parto, como a utilização de massagens

pernas”, “feche as pernas”, “coloque a coberta”. No sexto dia,

relaxantes para aliviar a tensão durante contrações. “Quero

mãe e filha foram liberadas: finalmente iriam para casa.

fazer alguma coisa de fato, não só ficar no ativismo de internet. Fazer a diferença de alguma forma para alguém”, conta. Chegou a passar em sétimo lugar no curso de enfermagem em uma faculdade na Bahia, mas só pôde cursar quatro

Quatro anos depois, Milena ainda sente dores durante

meses por não ter conseguido o Fundo de Financiamento Es-

as relações sexuais devido à episiotomia. “É um lugar sensível,

tudantil (FIES). Atualmente, deu início ao curso de técnicas

que ainda machuca.”

de enfermagem, para conseguir um emprego na área, pagar a

O marido compreendia e respeitava a sua dor após a 84

sonhada faculdade e se tornar enfermeira. Enquanto isso, per85


manece imersa em livros e artigos científicos.

Negra, tem um black power que não é forte só pelo nome.

Milena conhecia os horrores que algumas mulheres pas-

Ela resolveu deixá-lo livre das químicas para poder empoderar

savam na hora do parto, mas não sabia nomeá-los. Descobriu

a filha, Laisa, que já ouviu comentários depreciativos sobre o

o termo violência obstétrica quando foi comprar um sling —

seu cabelo crespo. “Incentivamos a autoestima e a ensinamos a

espécie de tecido envolto na mãe para carregar o bebê — com

ter orgulho da sua cor e do seu cabelo”, diz.

uma doula. Pesquisara muito sobre o desenvolvimento fetal, mas não sobre os direitos que tinha enquanto grávida.

Para Milena, a maior lembrança da violência obstétrica foram as luzes que a perseguiram por todos os lugares. Desde o

“Esse sofrimento me fez valorizar todos os tipos de ma-

dia do trabalho de parto até hoje, nunca deixou de sentir dores

ternidade, ser solidária às dores de outras mulheres. A violên-

na lombar. “Não sei se foi a posição, que eu não podia mudar.

cia me fez mais humana e mais forte em todos os sentidos”,

Foi muito desconfortável. Quando sinto cólicas menstruais,

diz. Por ironia do destino, o curso de doula que fará em 2016

elas refletem nesse lugar”, conta. Se pudesse personificar toda

será no mesmo hospital no qual deu à luz, que atualmente

a violência a que foi submetida em algo substancial, não tem

procura maneiras de implementar o parto humanizado. “Seis

dúvidas: “seria um grito, um berro”. Que hoje ela transformou

meses depois, transformaram o hospital. Hoje há o direito ao

em luta.

acompanhante e uma doula voluntária”, diz. Nos corredores da instituição na qual foi violentada, a mãe de Laisa pretende oferecer sua força de trabalho e apoio a outras gestantes em troca do curso gratuito. “Vou até lá para fazer o que poderiam ter feito por mim. Tenho uma necessidade de alcançar esse objetivo para poder curar as minhas feridas.” Ao conseguir superar as dores, Milena quer escrever o seu relato de parto e entregá-lo à médica que disse, com frieza, que a vida de Laisa dependia apenas do esforço da parturiente. “Um dos meus sonhos é entregar para ela e sair, batendo o cabelo”, brinca. 86

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UM PONTO CEGO EM UMA CESÁREA DE EMERGÊNCIA

N

a sala de cirurgia, tinha apenas uma visão periférica embaçada através do olho esquerdo. Assustada, Gabriela tentou avisar que havia algum problema, mas a médica afirmou que

tal situação era comum. “Isso é normal. A visão deve voltar em dois ou três dias, quando sua pressão normalizar”, disse a profissional. Sem o marido ao lado, a parturiente passou todo o procedimento ouvindo reclamações da obstetra e do anestesista, com a pressão nas alturas, sem companhia e sem enxergar direito. No dia do nascimento de Paula, o que deveria ser um momento de felicidade foi um tempo de solidão e medo. Esperou o período indicado pela obstetra, mas nada de a visão voltar. Doze dias após a cesárea, procurou um oftalmologista. O especialista a acalmou e disse que ela voltaria a enxergar quando a pressão arterial normalizasse sem a medicação, após um ou dois meses, no máximo. 88

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Novamente, o período se esgotou, mas o previsto pelo

que só teria a pressão aferida, um remédio receitado e nada

último médico não aconteceu. Ao se consultar com outro

além de indicação de repouso. Ela não fazia ideia de que a

profissional, foi informada de que havia sofrido uma atrofia

filha, Paula, nasceria naquele dia.

irreversível nos nervos óticos. Outro especialista foi procurado,

Gabriela havia se planejado para ter o parto no SUS (Sis-

mas este apenas confirmou o que a paciente temia: ela havia

tema Único de Saúde) em Manaus, cidade onde mora, mas como

perdido a visão do lado esquerdo.

era difícil marcar consultas e fazer o pré-natal pela rede pública, contratou um plano de saúde na vigésima segunda semana de gravidez. E foi por isso que ela foi até um hospital privado para se consultar depois do susto: para ser atendida prontamente.

Com 37 semanas de gestação, durante o almoço de Dia

Moradora da capital do estado do Amazonas, cidade

dos Pais, Gabriela Andrade sentiu um mal-estar e uma dor de

quente em qualquer época do ano, a gestante ouviu durante

cabeça tão fortes que a impediam de raciocinar. Era como se

o seu pré-natal que a presença de pontos luminosos, um dos

um cisco atrapalhasse a visão em um dos olhos. Ela foi até o

sinais de pré-eclâmpsia, devia-se ao calor. O mesmo acontecia

banheiro, olhou no espelho e não encontrou nenhum corpo es-

quando dizia estar ficando inchada. “Ela [a médica] era aten-

tranho aparente. Foi então que a gestante entrou em estado de

ciosa, mas não tirava dúvidas sobre o básico, o que acontece no

alerta e pediu que o marido a levasse urgentemente ao hospital

país todo. Consulta rápida: afere pressão, mede barriga, pesa,

mais próximo, uma instituição privada que atendia o seu plano

passa exame. Não sanava dúvidas, nem nada.”

de saúde, onde chegaria com maior rapidez. Era um domingo, dia 12 de agosto de 2012.

As consultas no mesmo hospital em que deu à luz começaram no quinto mês de gestação, sempre acompanhada

Durante a gravidez, a jovem de 21 anos, traços indígenas

pelo marido. Antes, as visitas ao médico eram feitas na rede

e cabelos cacheados leu alguns artigos e, assim, percebeu que os

pública, em um posto de saúde. No pré-natal, foi ignorado

sintomas podiam ser um sinal de pré-eclâmpsia — hipertensão

um fator de risco importante, já que a mãe de Gabriela teve

arterial que ocorre depois de vinte semanas de gravidez, em

hipertensão arterial específica da gravidez. Nenhum exame

uma paciente que antes não tinha pressão alta, de acordo com a

para rastrear pré-eclâmpsia foi feito, apesar de o organismo da

obstetra Melania Amorim. Estava preocupada, mas imaginava

gestante indicar que algo estava errado.

90

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No domingo, que começou com comemoração, o que

fermeira passou pela gestante e disse que ela teria de ser trans-

aconteceu fugiu aos planos feitos pela grávida e por Silvio, seu

ferida para um hospital público. “Não vão autorizar a cesárea

marido. “Chegando lá, eu soube que já teria que ficar interna-

e seu marido não tem dinheiro para pagar pelo parto”, disse a

da porque a médica desconfiou de pré-eclâmpsia e Síndrome

profissional de enfermagem.

HELPP”, diz. Caracterizada pela hemólise, elevação das enzi-

Sozinha em um cômodo apertado, mas vazio, a par-

mas hepáticas e redução na contagem de plaquetas, a síndrome

turiente ficava ainda mais nervosa. A sala de pré-parto era

HELLP é uma forma grave da pré-eclâmpsia.

pequena, as paredes de um verde claro e os leitos separados

E foi então que todo o pesadelo começou. No pronto-

por biombos acortinados. Por esse motivo, os médicos impe-

socorro, ela foi encaminhada para o centro de obstetrícia, onde

diam a presença de homens como acompanhantes, mesmo que

foi atendida por uma profissional de plantão que não deixou

fosse legal. “Não tinha nenhuma grávida pra justificar o que

o marido acompanhar a consulta. Devido ao fato de o plano

ela disse pra proibir a presença do Silvio, só uma moça chegou

ainda estar no período de carência, a parturiente foi constran-

pra ser avaliada quando eu já estava saindo pra cirurgia.”

gida desde o início do atendimento.

Da última maca, ao lado do banheiro, a jovem via a sala

Assim que a obstetra pegou em mãos o cartão do plano

toda. Silvio estava do lado de fora, na recepção, e não sabia

de saúde, começou a reclamar. “Ela foi logo dizendo que

ao certo o que estava acontecendo. Só via os funcionários

aquele era o plano de saúde que mais dava dor de cabeça, que

do hospital entrando e saindo, sempre ao telefone, para

era cheio de carência. Ficou reclamando”, conta Gabriela.

tentar a autorização para a cesariana. A parturiente também

“Eu não vou fazer um parto de graça. Isso é golpe para ganhar

acompanhou essa movimentação, mas no corredor ao lado, e

o parto”, vociferava a médica. “A sua barriga está muito pequena.

ouviu muitas reclamações da obstetra durante os telefonemas.

Você não come? Seu filho vai nascer desnutrido”, continuou.

Enquanto isso, pediam ao marido da gestante um cheque-

Depois da consulta, ainda nervosa depois de ouvir a

caução, uma medida ilegal nesse contexto. Em 29 de maio de

rispidez da profissional de saúde e com o nível de pressão arte-

2012, foi publicado no Diário Oficial da União o acréscimo do

rial marcando 14/9, Gabriela ficou em observação para que

Artigo 135-A ao Decreto-Lei Nº 2.848, que proíbe a exigência

sua pressão fosse aferida e os batimentos cardíacos do bebê fos-

de cheque-caução ou qualquer garantia como condição para o

sem auscultados com frequência. Nesse meio tempo, uma en-

atendimento médico-hospitalar emergencial, sob pena de três a

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doze meses de reclusão, além de pagamento de multa.

sobre o problema de visão, mas ouviu que era temporário e

Gabriela se estressava, ficava ainda mais nervosa e a

continuou a ser ignorada durante a cesárea. Mesmo com medi-

pressão aumentava. Após um lapso de consciência, a médica

cação e monitoramento da pressão, o procedimento cirúrgico

solicitou exames de sangue, que confirmaram o diagnóstico de

por si só apresenta um risco de hemorragia três vezes maior

síndrome HELLP. Foi então que, com urgência, a parturiente

do que no parto normal, segundo a obstetra e professora de

foi preparada para a cirurgia. “Não checaram se eu tinha

ginecologia e obstetrícia Melania Amorim. “Eu deveria ter

dilatação, porque em nenhum momento ela cogitou o parto

sido medicada desde a hora que eu cheguei lá; eles demoraram

normal, a indução, nada.”

muito para administrar o sulfato de magnésio e foi por isso que

A jovem se trocou, vestiu uma bata verde com abertura

o quadro se agravou”, diz Gabriela.

nas costas. Uma enfermeira aplicou sulfato de magnésio para

A pressão da gestante continuava a subir mesmo com

tentar estabilizar sua pressão. “Dá um mal estar enorme, um

a administração de sulfato de magnésio, enquanto ela ouvia a

calor, como se tudo estivesse queimando por dentro, uma sen-

médica e o anestesista reclamando por atender uma paciente

sação estranha.”

cujo plano ainda estava no período de carência. O diálogo

O caminho para a sala de cirurgia era um corredor lon-

acontecia na sala de cirurgia, mas as palavras não eram dirigi-

go, com o chão gelado — a parturiente estava apenas com um

das à grávida, nem para informar sobre o estado de saúde do

propé, uma proteção para os pés que não protege do frio. Nesse

bebê. “Era como se eu não estivesse lá.”

tempo de caminhada, ela não sabia se segurava o soro que lhe fora injetado ou a bata, para que não abrisse.

“Na próxima reunião eu vou reclamar. Espero que essa cesárea não seja descontada do meu salário”, dizia a médica,

No centro cirúrgico, Gabriela se sentia mais aflita

enquanto manipulava os instrumentos que trariam Paula ao

vendo todos aqueles equipamentos e instrumentos. Ela estava

mundo. O anestesista também não parecia nada feliz, pois não

sozinha, com profissionais nada acolhedores, sem noção da

estava de plantão no dia e teve de sair de casa para atender

gravidade da situação e com muito medo. “Não tinha ninguém

Gabriela. A única profissional que ofereceu algum conforto à

pra me dizer que ia ficar tudo bem. Pode parecer besteira, mas

grávida foi a enfermeira.

isso faz diferença, sabe?” Ao ser colocada na mesa de cirurgia, alertou a obstetra 94

A parturiente olhava de forma fixa para a luz, enquanto ouvia as frequentes reclamações dos médicos, os barulhos dos 95


instrumentos cirúrgicos e os bips intermináveis dos aparelhos.

sem cobertores extras, até que apareceu uma profissional de

Volta e meia, tentava buscar nas telas das máquinas a quanto

saúde e anunciou que estavam apenas esperando um maqueiro

estava sua pressão, mas sem êxito.

para levá-la para o quarto.

Foi então que a manauara sofreu a atrofia dos nervos

O alojamento conjunto era espaçoso, mais duas mães e

óticos e perdeu a visão do lado esquerdo. Pouco antes de ti-

seus bebês dividiam o ambiente. O leito era desconfortável, com

rarem a menina, a mãe teve um mal-estar devido à manobra de

uma escadinha que dificultava a saída. A televisão ligada inin-

Kristeller. A pressão que lhe fizeram na barriga causou falta de

terruptamente em um volume extremamente alto não deixou

ar e vômito. Gabriela sentia, sem dor, os movimentos da mé-

que a puérpera dormisse durante a internação. Silvio não foi

dica dentro de seu corpo. Sentiu puxarem algo de dentro dela,

autorizado a entrar como acompanhante, por ser homem, e foi

enquanto a maca balançava.

a mãe de Gabriela que entrou no lugar do genro.

Às 16h45, Paula veio ao mundo com 2,086 kg. Quando

Somente duas horas depois da cesárea é que Paulinha

nasceu, a pequena não foi para os braços da mãe. Devido à

— como é chamada pela mãe — foi para o quarto. Devido ao

pré-eclâmpsia que não havia sido diagnosticada durante o pré-

efeito da anestesia, a jovem não podia levantar a cabeça, sentar-

natal, a menina teve restrição de crescimento e foi encaminha-

se ou mesmo segurar a filha para amamentar. Outro fator

da ao berçário para ser examinada, quando foi constatado que

que a afligia era o tamanho do bebê. “Ela era tão pequenina,

não havia sequela nem dificuldade respiratória. “Eu tive muito

magrinha, parecia que ia quebrar.”

medo de morrer, cheguei a pensar que nunca mais veria o meu marido, a minha família, que nem veria a Paulinha.”

Sem auxílio, o leite também não havia descido ainda. A menina não teve acesso ao colostro, um líquido de coloração

Após o procedimento, a jovem mãe foi levada para a sala

amarelada, rico em nutrientes, que, em geral, desce após o par-

de recuperação, um lugar pequeno e gelado. Lá, ficou sozinha,

to e que auxilia no fortalecimento do sistema imunológico do

sem atendimento algum. Sem enfermeira, sem médico, sem

bebê. Sendo assim, Paula tomou a chamada fórmula infantil,

companhia, ela apenas ouvia o som de uma televisão ligada

uma mistura feita para substituir o leite materno. Mesmo de-

próximo ao local e que transmitia a cerimônia de encerramento

pois, ao chegar em casa, a puérpera também não conseguiu

dos Jogos Olímpicos de Londres. Enquanto escutava ao longe a

dar de mamar. “Ela não pegou o seio, eu não tive orientação

festividade, o tempo parecia não passar. Gabriela tremia de frio,

no hospital para corrigir a pega e o meu leite acabou secando

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logo, sem o estímulo.” Após a cirurgia, o tratamento diferenciado continuou.

trocavam lençóis e faziam a higienização do ambiente. Sem qualquer avaliação médica, ela recebeu alta.

Gabriela ficou em um quarto coletivo, em que as enfermeiras

Ao chegar em casa, a preocupação era com o ganho de

só apareciam quando ela reclamava de fortes dores de cabeça

peso de Paulinha e com a visão do olho que não voltava. A

e dizia enxergar pontos luminosos. Então aferiam a pressão

menina se alimentava bem e não houve complicações, mas o

e confirmavam que estava em níveis elevados, como 15/10 e

problema no olho esquerdo da mãe não se resolvia. Além do

18/10, e davam dois comprimidos de um medicamento utili-

fator visual, que dificultava nas atividades diárias e no cuida-

zado no controle da hipertensão.

do à filha, também havia o abalo emocional. O puerpério e o

Foram dois dias de internação, com minutos marcados

pós-operatório foram complicados. As transformações físicas e

para a visita do marido. No domingo, Silvio conheceu a filha e

psicológicas já intensas somaram-se à recuperação da cirurgia

teve de ir embora logo. Nos outros dias, o tempo de convivência

e à falta de visão de um lado. Tudo era mais difícil. A cegueira

entre a família era escasso. Sem visitações mais longas do es-

em um dos olhos alterou a sua percepção de espaço. “Eu levei

poso e com esporádicos encontros com os profissionais do hos-

um tempo até me acostumar. Lembro que no início eu acorda-

pital, a puérpera passava a maior parte do tempo sozinha. Dois

va com a esperança de abrir os olhos e enxergar como antes, eu

obstetras passavam pelo quarto onde ela estava, examinavam

andava e tinha medo de cair, esbarrava na porta ou na parede.”

outras mulheres, mas ignoravam sua presença. “Não vi meu

Com dificuldades para dormir, a mãe foi diagnostica-

prontuário, não falavam nada, não perguntavam nem o meu

da com depressão pós-parto. Estimativas oficiais avaliam a

nome”, conta. O único conforto foi ter a filha o tempo todo ao

incidência de depressão pós-parto entre 10 a 20% das novas

seu lado: a pequena só deixava o quarto para tomar banho.

mães. No entanto, segundo o livro Depressão Pós-Parto, de 2002,

Na terça-feira, dois dias depois do parto, aguardava a

profissionais de saúde estimam números mais elevados, de

autorização de um médico para deixar o hospital pouco de-

quase 60%, pois muitas mulheres não procuram ajuda profis-

pois do almoço. Entretanto, uma enfermeira deu o recado de

sional. “A depressão é uma tristeza, uma frustração. Também

que Gabriela já poderia ir embora, pois o quarto tinha de ser

existe o estresse pós-traumático pós-parto, que é um transtorno

esvaziado para receber outras mulheres. Mesmo que mãe e

de ansiedade. As mães estão a todo momento na iminência de

filha ainda estivessem no cômodo, funcionários já limpavam,

que algo ruim possa acontecer, revivem o trauma que aconte-

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ceu. O apoio é fundamental para que ela possa se restabelecer e

no hospital, levava todos os traumas e dores consigo. Não era

se adaptar. A mulher é o tempo toda julgada por todos que es-

possível se consultar com um psicólogo, pois era difícil encon-

tão ao seu lado. As pessoas não legitimam a tristeza e a insatis-

trar um horário no período em que o marido estivesse em casa

fação da mulher, ela não se sente no direito de ficar triste”, diz

para ficar com a menina.

Heloisa Salgado, especialista em psicologia da infância, mestre e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo.

Somente sete meses após o parto, recuperou-se da depressão. Por meio do blogue Cientista Que Virou Mãe, após uma

Na época, Silvio trabalhava apenas meio período, o que

ação do Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher,

confortava a esposa. Ainda assim, ficava sozinha durante a maior

em 25 de novembro, ela descobriu ter sofrido violência obsté-

parte do dia, enquanto o marido estava trabalhando e, nesse meio-

trica. Desde então, começou a se informar sobre o assunto e

tempo, só conseguia chorar e tentar cuidar da pequena.

publicou seu relato em um grupo de apoio de uma rede social.

Nas primeiras semanas, Gabriela demorou a estabelecer

A partir do depoimento, uma advogada orientou que denunci-

um vínculo com Paula. Não raro, acordava com a sensação

asse o caso no Ministério Público, Agência Nacional de Saúde,

de que a filha não era sua e tinha alucinações, procurando a

Ministério da Saúde e Agência Nacional de Vigilância Sani-

criança pela casa. “Eu procurava nos lugares mais absurdos.

tária. Tudo pela internet. “Pensei que ia demorar para ter um re-

Dentro do guarda-roupa, procurava na cama. Ela não dormia

torno, mas um mês depois recebi uma intimação do Ministério

na cama com a gente, mas mesmo assim eu a procurava debaixo

Público para ir lá dar o meu depoimento. Foi quando deram

da cama. Uma coisa horrível, eu não conseguia dormir, tinha

início ao inquérito.”

medo de pegar no sono e acordar assim, com essas coisas.”

Gabriela contratou um advogado, que deu entrada no

Após três meses sofrendo em casa, procurou um psiqui-

processo de indenização contra o hospital. Até o momento,

atra, que receitou um ansiolítico, droga usada com a finalidade

ainda não aconteceu nenhuma audiência. O hospital deu a

de reduzir a ansiedade, agitação ou tensão. O remédio, no

primeira contestação, na qual negou tudo o que fora denuncia-

entanto, deixava a mãe sonolenta e estressada, o que tornou

do. “Tiveram a cara de pau de dizer que eu tive direito a acom-

mais difícil a tarefa de cuidar da menina. Deixou de tomar o

panhante, sim, que o meu marido estava do meu lado”, conta.

medicamento por conta própria, pois sentia que aquilo não lhe

Na resposta, a instituição disse ainda que não tem arquivado o

fazia bem. Sem contar para ninguém o que havia acontecido

prontuário e que a falta desses registros não significa que houve

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alguma falha no atendimento. No documento, o hospital cita

caso para a justiça. “Quando me perguntavam, eu dizia que

os prêmios que ganhou e fala sobre a tradição e qualidade no

tinha dado tudo certo e não entrava em detalhes”, diz. Quando

atendimento, argumentando que toda essa infraestrutura foi

começou a contar tudo o que aconteceu dentro do hospital,

utilizada no atendimento dado à mãe de Paula.

Silvio também disse como se sentiu naquele momento. En-

Em um contraponto, a obstetra e professora de gineco-

quanto estava do lado de fora, preocupado com o que estava

logia e obstetrícia Melania Amorim acredita que perder o pron-

acontecendo com a esposa e a filha na sala de cirurgia, os fun-

tuário dentro do hospital já é negligência. “Para entender o que

cionários da instituição de saúde pediam um dinheiro que ele

aconteceu, é preciso pegar o depoimento da mulher e o de cada

não tinha.

médico que estava envolvido na assistência. Por meio da data

Como ambos não sabiam que o bebê nasceria naquele

do nascimento, é possível exigir que o hospital diga quem era

dia, saíram despreparados. Sendo assim, ele teve de ir até sua

a equipe que estava de plantão. Também existe o registro do

casa para buscar trocas de roupa para ambas. Ao voltar, soube

centro cirúrgico e da sala de parto, que normalmente tem a

que a filha já havia nascido e que a cesariana estava no fim.

hora, o tipo do parto e quem o fez. Existem várias maneiras de

“Não era o que a gente tinha planejado. Ele passou a gestação

recuperar, mesmo sem o prontuário. Esse prontuário, até para

toda ao meu lado — consulta, ultrassom — e aí, no último dia,

o médico, é uma ferramenta de defesa”. O findar da história

foi excluído.”

ainda não aconteceu. Quando saiu a contestação, ela chorou copiosamente, sentiu-se mal e pensou em desistir, mas logo mudou de ideia. “Demora, é cansativo, mas é o que o que eu sempre digo para

Mais de dois anos depois, no dia 1º de março, em um

as outras mulheres que sofrem violência obstétrica: que cada

domingo, nascia Ricardo, o segundo filho de Gabriela. A ci-

denúncia é importante, e que se a gente for parar por causa das

rurgia foi realizada no mesmo hospital em que Paula nasceu,

respostas dos advogados, porque eles não vão admitir o erro

mas com um tratamento totalmente diferente. Foi internada no

dos clientes, aí é que a realidade não vai mudar mesmo.”

sábado, novamente com sinais de síndrome HELLP.

A família, inclusive o marido, só soube que Gabriela

Desta vez, o pré-natal foi mais preciso e humanizado.

havia sofrido violência obstétrica quando ela resolveu levar o

O plano de parto já estava pronto antes de ela engravidar. Pro-

102

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curou uma hematologista por conta própria para investigar

aberto contra a instituição, Gabriela percebeu que foi tratada

trombofilia — alteração na coagulação sanguínea que resulta

de maneira diferente. Pôde ter a companhia do marido durante

em um maior risco de trombose — e investiu em um tratamen-

todo o tempo. Enquanto recebia anestesia, Silvio massageava os

to preventivo à base de cálcio, devido ao diagnóstico de pré-

ombros da esposa. “Eu não conseguia ficar na posição correta

eclâmpsia. “Os meus exames deram muito mais alterados na

para aplicar, estava tensa. Ele ajudou e o médico também me

segunda gestação, mas eu não tive nenhuma sequela.”

mostrou qual era a posição para ficar.”

Durante

a

gestação

e

no

pós-parto,

teve

o

Ricardo nasceu saudável e foi direto para o colo da

acompanhamento de uma doula, alguém que aconselha,

mãe, assim que veio ao mundo. “O que faz a diferença é a

acompanha e assiste gestantes. Luciana e Gabriela se

informação, não só para a mulher, mas para o acompanhante.”

conheceram por meio das redes sociais e se tornaram amigas.

Professora particular de inglês, deixou de dar aulas

A partir dessa amizade e dos diálogos frequentes, a doula se

durante a gravidez e ainda não voltou a lecionar, pois quer se

dispôs a acompanhar a gravidez gratuitamente, o que deixou

dedicar mais às crianças e acompanhar de perto o crescimento

a manauara emocionada, pois não tinha como pagar pelo

delas. Ativa em grupos que tratam do parto com respeito, foi

atendimento. “O apoio emocional foi muito importante.”

convidada para participar de rodas de conversa em apoio à

Internada no sábado devido ao aparecimento de

humanização. “Isso foi o que mais me ajudou no meu processo

sinais de síndrome HELLP, a gestante ficou em observação.

de cura: compartilhar o que eu vivi e aprendi pra tentar evitar

Fazia ultrassonografia com Doppler, um exame classificado

que outras mulheres passem pelo mesmo que eu.”

pela obstetra Melania Amorim como “o melhor método

Em junho, o Ministério Público Federal entrou em

para avaliação da vitalidade do bebê”. O procedimento não

contato com a manauara, em busca de novas denúncias. Uma

invasivo avalia o crescimento do bebê, a quantidade de líquido

reunião aconteceu no dia 11 de setembro para tratar do tema

amniótico, o amadurecimento da placenta e o fluxo sanguíneo.

violência obstétrica, a fim de convocar uma audiência pública

No domingo, após ser constatada uma alteração nos exames, a

sobre violência obstétrica em Manaus. Estavam presentes

equipe médica optou pela cesariana.

Gabriela, a advogada que assumiu o processo, uma doula e uma

Desta vez, nada de constrangimento e humilhação

psicóloga de um grupo de apoio à gestação e ao parto do qual

por parte dos funcionários do hospital. Com um processo em

participa. O encontro foi regido pela procuradora responsável

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pelo inquérito que investiga as maternidades manauaras, que prometeu apoiar campanhas de conscientização. “Saí de lá cheia de esperança.” Em uma perícia requerida pela juíza responsável pelo processo contra o hospital, será feita uma avaliação e um

ENFERMEIRA E VÍTIMA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

relatório. “Esse relatório é feito a partir de questões elaboradas pelos advogados, para provar que a perda da visão tem relação com a demora no atendimento, que poderia ter sido evitada com a medicação correta etc.” A jovem pretende fazer um curso de doula, mas ainda não vai exercer a profissão enquanto os filhos forem pequenos. “Viver tudo isso fez com que eu descobrisse a minha força e entrasse nessa luta.”

V

iviane Pereira não teria filhos. O veredito já estava dado por ela mesma: aos 40 anos, se ainda não havia acontecido, não havia motivos para insistir. Depois de dois meses em Barueri, saindo

de São Paulo, embarcou em um relacionamento. “Por causa da idade, a minha menstruação não era regular. Com isso, não achei que ficaria grávida”, diz. Ainda assim, ficou preocupada com o atraso de três meses e apagou a dúvida com um teste de gravidez de farmácia: o resultado foi positivo. Atônita, não conteve a ansiedade e foi fazer o exame de sangue no mesmo dia, para evitar um possível erro. “Não foi planejado, mas foi muito bem-vindo”, conta, sem conseguir conter o sorriso. Estava grávida de três meses. Seis meses depois, ela estaria deitada em uma maca de hospital, sozinha, muito diferente do que havia idealizado após sua atuação profissional em um hospital público como enfer-

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meira. “Tudo o que tinha visto caiu por terra. A gente dava

de janeiro de 2015, a enfermeira foi ao banheiro e percebeu

atenção para a mulher, sabe? Explicava por que era necessário

que não era só urina que escorria por entre as pernas. Quando

fazer o procedimento, deixava ter a presença do acompanhan-

se deitou novamente, deu-se conta de que um fluido até então

te. Nada disso aconteceu. Fiquei superdecepcionada.”

desconhecido escapava nos lençóis: a bolsa amniótica havia se

A gravidez aos 40 anos transcorreu tranquilamente.

rompido. Ainda não sentia nenhuma dor ou desconforto, mas

Ainda assim, a gestante tinha medo de que fatores de risco

como estava perdendo líquido, foi ao hospital na companhia

pudessem afetar sua gestação. De acordo com dados coletados

do marido para checar o que estava acontecendo e se o bebê

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre

estava bem.

2003 e 2012, a quantidade de mulheres grávidas entre 40 e 44

— Você está com medo?

anos passou de 53 mil para mais de 62 mil, o que corresponde

— Estou supertranquila – disse a ele.

a um aumento de 17,6%.

Era verdade. Como enfermeira em uma maternidade de

Como havia se mudado recentemente e cancelado o con-

Osasco, já conhecia os procedimentos, o que a deixava mais segura.

vênio médico, a primeira consulta do pré-natal foi no bairro do

Na instituição, o médico que a atendeu durante a inter-

Campo Limpo, em São Paulo. Com cinco meses de gestação,

nação explicou que a bolsa havia se rompido e que ela estava

transferiu o atendimento para Barueri, utilizando um cartão

com três centímetros de dilatação. “É apenas um furinho. En-

adquirido na instituição municipal Ganha Tempo para utilizar

tão, vamos terminar de romper”, disse. Com o consentimento

os benefícios públicos da cidade.

da gestante, o profissional de saúde fez o procedimento e a en-

Saudável, a grávida tinha boa alimentação e praticava

caminhou para a internação. “Tire a sua roupa, joias e tudo o

exercícios regularmente, como hidroginástica e caminhadas, o

que você tiver. Entregue para o seu acompanhante, porque nós

que explica o traço bem definido de seus braços esguios. Que-

vamos te internar”, sentenciou.

ria parto normal e não havia contraindicações. “Eles [os médi-

Naquele momento, já ficou alarmada. Se lhe pediam

cos] falam que é uma gravidez de alto risco após os trinta anos,

que entregasse seus pertences, era porque Maurício não pode-

mas a gestação foi supertranquila. Sempre quis parto normal e

ria acompanhá-la, conforme esperava que acontecesse.

estava bem preparada.” Com 38 semanas de gestação, na madrugada do dia 5 108

— Mas, por lei, posso ter um acompanhante no pré-parto, no parto e parto imediato — argumentou. 109


— O hospital não permite — foi a justificativa que recebeu.

Vez ou outra, alguém aparecia para verificar a dilatação

“Achei que seria só chegar, explicar que é lei e pronto.

ou auscultar os batimentos cardíacos do bebê. Foi quando houve

Todos falavam bem dessa maternidade”, diz. Insistiu para que

a troca de plantão. “Chegou uma médica superestúpida, gros-

o companheiro fosse até a recepção, que chamasse por alguém

sa”, conta. A profissional de saúde não conversava, a não ser a

que pudesse liberar a entrada. Queria estar com ele, principal-

a parturiente perguntasse algo. Ao conferir quantos centímetros

mente na hora do parto. “Tudo bem”, respondeu Maurício.

tinha a dilatação do colo do útero, não informava. Chegava,

No entanto, ele levou todos os pertences, inclusive o celular da

abria as pernas da gestante de forma autoritária e introduzia os

mulher. Viviane estava sem a possibilidade de se comunicar,

dedos em sua vagina. Tudo isso em silêncio, o que causava uma

vulnerável e sozinha.

“dor insuportável”, segundo relata. Com a bexiga cheia e sem

Quando chegou à sala de pré-parto, “um ambiente pesa-

conseguir usar o banheiro, teve de ser usar uma sonda.

do” com outras cinco mulheres esperando para dar à luz, a

O pânico começou a tomar conta de Viviane. As con-

equipe médica introduziu em sua veia — sem consentimento

trações pioravam, e ninguém lhe dava satisfação alguma. “Es-

— um soro com ocitocina sintética, hormônio utilizado para

tava apavorada. Afinal de contas, eu não sabia como estava o

acelerar o trabalho de parto. “Fiquei só sete horas em trabalho

bebê”, conta. A ausência de informações sobre sua saúde e a

de parto. A ocitocina não era necessária”, acredita.

do filho começava a deixá-la desconfortável. E então a médica

Como estava sem o resultado do exame para identificar

aparecia novamente. Sem pedir licença, retirava o lençol e abria

a presença de estreptococo do grupo B, bactéria que coloniza a

as pernas da grávida abruptamente para verificar a dilatação,

região vaginal e retal da mulher e pode ser transmitida ao bebê

na frente de outras mulheres que estavam na sala. “Um monte

durante o período expulsivo, também teve de tomar antibióti-

de mulheres juntas, nenhuma privacidade”, relembra. “Essa

co. Enquanto isso, esperava, mas ninguém da equipe lhe dirigia

médica fez um exame de toque tão dolorido, mas tão dolorido,

a palavra ou sequer mantinha contato visual. Conversou com

que a minha vontade era levantar e ir embora. Ter esse neném

outras mulheres, que relataram estar havia doze horas ou mais

na minha casa, eu mesma fazer o parto.”

naquela mesma sala. “Elas estavam lá sem falar com nenhum

À medida que o tempo passava, as contrações aumen-

parente, sozinhas”, lembra. “Se perguntavam ou reclamavam,

tavam e a dor começava a ficar mais forte. Sentia sede, mas

também eram maltratadas.”

a água demorava a chegar. E gemia, o que deixava a equipe

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médica incomodada, lançando olhares cortantes à mulher que esperava pelo nascimento do filho.

deslocou-se para a maca na qual foi conduzida até a sala de parto. O local não era muito espaçoso, mas acomodava outras

— Nossa, mas você está com tanta dor assim? Desde a

três mulheres, que a observaram durante o período expulsivo

hora que eu cheguei, você não para de reclamar — queixou-se

com uma expressão de pânico. Ao chegar, foi obrigada a se

uma auxiliar de enfermagem.

deitar novamente e abrir as pernas na frente de outras pessoas.

— Você tem filhos? — questionou Viviane.

“Tive que fazer força ali, na frente de todo o mundo. Outra

— Não.

mulher, que estava na minha frente, assistia toda aquela situ-

— Então não imagina a dor que estou sentindo!

ação. Eu estava me sentindo invadida.”

Após a reclamação, a médica reapareceu na sala e au-

Mal havia se acomodado nos lençóis, a médica esbrave-

mentou a quantidade do soro com ocitocina sintética que es-

java. “Faz força!”, gritava enquanto a grávida tentava encon-

tava ligado à bomba. Viviane já estava com oito centímetros

trar uma boa posição para parir. Não deu tempo. “Se você não

de dilatação. “Começou uma dor insuportável”, conta. Um

fizer força, vou ter que puxar esse bebê com fórceps!”, prague-

último exame de toque foi feito para constatar que atingira a

jou. Viviane se sentiu mal. “Fiquei louca. Achei que ela fosse

dilatação ideal: dez centímetros. A obstetra se dirigiu ao corpo

puxar o meu bebê e me arrebentar inteira. Estava apavorada,

médico e avisou: “prepara a sala de parto, porque ela já vai gan-

porque a minha mãe teve um parto com fórceps e quase mor-

har”. Naquele momento, o que passou pela cabeça de Viviane,

reu”, lembra.

num piscar de olhos, foi: “Não acredito que é ela quem vai fazer o meu parto”.

Sentia dor e queria um acompanhante por perto, alguém que oferecesse um apoio e incentivo para aliviar o es-

Não havia contado para ninguém que era enfermeira e que

tresse causado por aquele ambiente. Não conseguia pensar em

sabia muito bem o que estava acontecendo por ali. Tinha medo.

mais nada: a tranquilidade do pré-natal e a experiência como

“Acho que seria pior. Quanto mais você reclama, mais maltratam

profissional de saúde havia se esvaído, dando lugar ao desespe-

você. Eu estava apavorada, não tinha a quem recorrer.”

ro que a preenchia. Uma auxiliar, em um ato de humanidade,

“Explica para ela como fazer força”, ordenou a médica

tentava tranquilizá-la enquanto a médica continuava aos gritos.

a uma auxiliar de enfermagem, sem dirigir a palavra a Viviane.

Viviane nada ouvia, mesmo que estivesse lá. Estava tão petrifi-

Com a ajuda das profissionais, que a seguravam pelos braços,

cada que não se manifestou enquanto lhe aplicaram anestesia

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local. Um médico praticamente deitou sobre o seu corpo para

— Ele está bem? — preocupou-se.

empurrar sua barriga para baixo com o antebraço, causando

— Está — confirmou a pediatra.

uma sensação de mal-estar. Era a manobra de Kristeller, que

“Assim que ela o colocou em cima de mim, esqueci de

pode causar fraturas e lesões graves na mãe ou no bebê. “Não

tudo. Só queria segurá-lo”, conta. Naturalmente, o filho tateou

tinha necessidade nenhuma daquilo. Fiz só quatro forças e o

em busca do seio da mãe para mamar. Enquanto curtia os

bebê nasceu”, explica Viviane. O relógio marcava 10h28.

minutos preciosos com Mauricio, a médica insistiu em esbrave-

Não sentiu a dor da episiotomia, porque estava sob o

jar. “Só estou tirando a placenta!”, disse. Viviane não entendeu

efeito da droga. Até então, não sabia que havia sido submetida

o motivo daquela bronca, já que não havia reclamado a respei-

ao corte no períneo. O procedimento pode causar inchaço, in-

to de nada. “Mas não estou falando nada”, sentiu vontade de

fecções e outras complicações. A técnica não deve ser utilizada

responder. Enquanto isso, a pediatra pedia licença para levar a

rotineiramente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) pre-

criança para a maternidade, com o intuito de realizar procedi-

coniza que seja feita de forma restrita: em 10% dos casos. A

mentos rotineiros.

obstetra e professora de ginecologia e obstetrícia Melania Amorim

“Agora você fica quieta aí, que vou suturar”, ralhou a

ressalta que “o procedimento de rotina não é necessário e pode ser

obstetra. Foi naquele momento que Viviane se deu conta do corte

prejudicial”, segundo evidências científicas. Foi o que aconteceu

no períneo. Ao término dos pontos, a profissional deu as costas e

com Viviane: na mesma semana, ela teria de voltar ao hospital

saiu da sala. As auxiliares da equipe a limparam e a conduziram

para tratar uma inflamação na região do períneo.

até a sala de pós-parto. Sequer sabia o nome da médica. “Só fui

A pediatra neonatal tomou o recém-nascido nos braços,

descobrir quando tive alta e vi no meu prontuário.”

mas a mãe não tinha certeza sobre o que estava acontecendo.

Uma hora após o nascimento de Mauricio, a puérpera

Pelos burburinhos alarmantes e estresse da equipe médica,

tomava banho com a ajuda das enfermeiras. “Vai almoçar, que

parecia que ele mal chegara ao mundo e quase havia escor-

nós vamos trazer o seu filho para você cuidar”, orientaram. Era

regado. “Ouvi uma frase parecida com isso, mas não consegui

o que mais queria naquele momento. Obedeceu. No entanto,

entender muito bem”, relembra. Não soube exatamente o que

enquanto terminava o prato de comida, houve uma surpresa

aconteceu, mas não chegou a perguntar. O filho estava agora

desagradável: uma hemorragia.

em seus braços, seguro. 114

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A mãe de Viviane tomou o pequeno Mauricio nos braços, trocou o menino e ajudou a filha a se sentar para poder alimentálo. “Passei o resto do dia com ele ao meu lado, mas tinha que As técnicas que a acompanhavam chamaram uma enfer-

chamar alguém sempre que precisava amamentar.”

meira obstetra para socorrê-la. Viviane teve de ser submetida a um processo conhecido como curagem, no qual são retirados manualmente os restos placentários, com os dedos do profissional de saúde envolvidos em gazes. Apesar de ser um méto-

O pai da criança, também Maurício, trabalhava em uma

do doloroso, a enfermeira era “atenciosa e boazinha”, lembra

cidade próxima, Jundiaí. Após a tentativa frustrada de per-

Viviane. Seu descontentamento era de que o trabalho anterior

manecer ao lado da parceira durante o parto, ligava incessante-

deveria ter sido feito de maneira adequada para evitar aquela

mente ao hospital para saber sobre o andamento do trabalho

situação. “Quem tinha que ter limpado para isso não acontecer

de parto. “O meu filho nasceu às 10h28. Quando o pai ligou,

era a médica. Isso causou a hemorragia”, acredita.

às 13h, ainda falaram que não tinha nascido”, conta a mãe.

Não conseguia permanecer em pé porque desmaiava.

Quando a avó do recém-nascido foi até a instituição de saúde,

Levantar a cabeça já era um esforço que não conseguia fazer

ela que lhe deu a notícia e avisou que podia ir à maternidade

sem que a tontura aparecesse. Pediu para que trouxessem o

conhecer o filho, à noite. Como visita, mas não como pai. “Só

filho. “Elas falaram que iam dar a fórmula [leite artificial] a ele.

podia vir uma vez ao dia e não podia permanecer no quarto”,

Eu não queria.”

lembra Viviane.

— Você ainda está passando mal — negavam.

Dois dias depois, a mãe teve alta, mas não escapou por

— Quero dar de mamar — reclamava Viviane.

muito tempo das paredes esverdeadas do hospital. Sentia dor

Só por volta das 14h15 a mãe conseguiu ver o recém-nas-

ao caminhar, ao sentar para amamentar, e não encontrava

cido novamente, mas não poderia segurá-lo. “Não pega, você

posições confortáveis para dormir. Urinar, então, era pratica-

ainda não consegue ficar de pé”, alertavam. Mauricio ainda

mente impossível. “Na segunda-feira, o Mauricio nasceu. Na

estava embrulhado no cobertor do hospital e só foi agasalhado

quarta, fui embora. Na quinta, voltei ao hospital porque não

quando a avó chegou ao quarto de visitas, trazendo as roupas.

aguentava de dor onde fui cortada”, relembra. Foi bem aten-

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dida por um médico que, ao examiná-la, constatou o inchaço.

Mas é algo que, do mesmo jeito que aparece, após a adaptação

Prescreveu um anti-inflamatório forte, que aliviou os sintomas

deve desaparecer”, explica Heloisa Salgado, especialista em

ao longo de 15 dias.

psicologia da infância, mestre e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A depressão foi uma barreira fatigante a ser superada, também com a ajuda de conversas e do apoio do companheiro.

Dois meses após o nascimento e das violências obsté-

Atualmente, mora na companhia do marido, do filho e da en-

tricas que relatou ter sofrido, Viviane ainda não conseguia

teada de 17 anos, com a qual se relaciona muito bem. “Eu cos-

se lembrar do episódio sem que as lágrimas transbordassem.

tumo dizer que ganhei uma filha a mais”, conta.

“Não é possível. Vou ficar assim até quando? Após tudo o que

Sentia vontade de voltar ao hospital e falar com a médica.

aconteceu, o meu filho ficou bem”, pensava. Não se sentia no

Hoje, ainda sente um mal-estar ao lembrar dos acontecimentos.

direito de ficar chateada, mas era incapaz de guardar natural-

“Sabe quando você se sente ofendida? Eu me senti mal. Você está

mente aquelas memórias.

ali, frágil, e a pessoa te tratando que nem um lixo. Foi horrível.”

O caso de Viviane pode ou não estar relacionado a

Em uma consulta de retorno ao ginecologista após o

um baixo-astral comum que atinge as novas mães. Estima-

nascimento de Mauricio, Viviane contou sobre a episiotomia

se que 85% delas passem por uma tristeza logo após o parto,

sem consentimento. “Pelo tamanho do bebê, pelo pré-natal,

em período conhecido como o baby blues ou blues pós-parto,

por tudo... Não precisava de nada disso. Ele nasceu com peso

desencadeado por altos níveis de hormônios que caem muito

[3.195 kg], tamanho [45 centímetros] e tudo ideal”, disse ele.

depressa, segundo o livro Depressão Pós-Parto, de 2002. “É es-

“Infelizmente, é protocolo. Vão cortando, não têm paciência”,

perado fisiologicamente e emocionalmente, no primeiro mês, a

lamentou o médico. A puérpera confirmou o que já sabia: a

possibilidade de a mulher apresentar sinais que podem ser con-

pressa para o nascimento havia feito com que fosse submetida

fundidos com depressão. Ela fica mais chorosa, insegura, pode

àquelas intervenções desnecessárias.

ter dificuldade para dormir. Seu corpo está se adaptando, ela

Um mês após o parto, ainda sentia que “alguma coisa

está se acostumando àquele bebê, à amamentação, à privação

estava fincando” na região do corte no períneo. Era a cicatri-

de sono e os hormônios estão completamente desregulados.

zação. “Demorou uns dois meses para ficar tranquilo”, lembra.

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Sua percepção é de que o procedimento não havia sido grande,

necessário. “Bastante” é o advérbio que ela utiliza para carac-

mas fundo, a ponto de ter cortado o músculo. Quando reto-

terizar a intensidade do impacto que a violência teve em sua

mou sua vida sexual, tinha sensações de secura e desconforto,

vida. “Não sei se volto a trabalhar com isso para ajudar outras a

além da mudança no aspecto da vagina, que denunciava que

não passarem pelo que passei ou se abandono, se mudo de área”,

a sutura não fora bem feita. “Ficou horrível. O meu marido

diz. A incerteza é fruto de sua indignação e dissonância com

não percebeu nada, mas eu sinto que mudou. É o meu corpo”,

a realidade das maternidades. “Não importa se ficou grávida

desabafa. Não pensa em ter outro filho, mas diz que escolheria

porque quis ou não, se tem um filho ou dez. Não interessa. A

uma equipe médica na qual confiasse, provavelmente em um

gestante está ali para ter um atendimento humano.”

hospital particular. “Teria uma segurança a mais para não passar por isso.” O bom plano de parto e a escolha da equipe médica

Quer volte aos centros maternos ou não, Viviane carrega marcas de quando presenciou partos e testemunhou violências — e de quando foi silenciada e violentada.

são considerados essenciais pela obstetra Melania Amorim: “Negociar isso na hora de parto e ficar enfrentando a equipe quando está numa situação de vulnerabilidade é muito ruim. Algo que também pode coibir a chance desses abusos é a presença do acompanhante e de uma doula.” Viviane havia conversado com outras mulheres antes de escolher o local do nascimento e todas haviam elogiado o serviço. “Elas achavam tudo aquilo normal, mas eu sabia de tudo o que estava acontecendo”, pondera. Tendo conhecimento profissional de causa, ela julga que a intimidade com as maternidades a fizeram sofrer mais. A palavra que descreve sua memória de forma bem mais sólida é descaso. Em sua visão, estava à mercê da má vontade de enfermeiras e obstetras, que só apareciam quando estritamente 120

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UM PASSEIO COM O RECÉM-NASCIDO PARA LONGE DOS BRAÇOS DA MÃE

D

uas enfermeiras pegaram Harieth pelo braço, ergueram-na e foram carregando a gestante durante o trajeto até a sala de parto. No meio do longo corredor, outra contração veio. A parturiente sen-

tiu vontade de fazer força e agachou instintivamente. “As enfermeiras me ergueram e cada uma deu uma joelhada na minha perna para fechar. A cabeça já estava ali, quase para fora, e elas fecharam a minha perna. Nessa hora, elas acabaram me arrastando o resto do trajeto, porque eu não consegui mais andar”. Ao chegar ao local onde seria feito o parto, foi colocada em posição ginecológica em uma maca com apoio para as pernas, enquanto as enfermeiras seguravam os seus braços para trás. O médico apenas informou que daria anestesia para realizar uma episiotomia — corte na região do períneo que pode causar inchaço, inflamação e até infecção no local. Nesse meio tempo, entre a anestesia e episiotomia, veio

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outra contração forte e Harieth fez força. A cabeça de Isaque já

26 anos de idade, constatou que ela estava com dois centímetros

estava para fora e a mãe teve o instinto de sentar e ir com a mão

de dilatação e que estava tudo bem com o bebê. Com 40 sema-

para pegar o filho. Ao ver que ela quase tocava o bebê, o obstetra

nas de gestação, a bolsa se rompeu no hospital assim que a

afastou a mão da paciente, com o argumento de que contaminaria

consulta chegou ao fim. “Eu vi que o estagiário ficou com cara

a criança. “Nossa, ele deu um tapão na minha mão.”

de assustado na hora que rompeu a bolsa. Ele levou um susto,

As enfermeiras puxaram a parturiente para trás e seguraram os braços dela para que não tentasse encostar no filho novamente.

arregalou o olho, tipo ‘o que que vou fazer?’. Aí ele foi chamar o professor”. O médico responsável pediu que Harieth fosse para casa e ficasse por lá durante cerca de quatro horas. Quando se encaminhava para a saída, foi surpreendida pelo obstetra. “Nós estamos com problema de superlotação em Cuiabá, com mui-

Em 11 de maio de 2011, Harieth Limeira chegou com

tas mulheres dando à luz essa semana. Inclusive aqui também

contrações não ritmadas e desconforto ao hospital público

está com superlotação e não vou poder te aceitar”, lamentou.

onde fez o pré-natal, em Cuiabá, Mato Grosso. Com síndrome

“Até daria para você ir para casa, mas por conta da situação,

dos ovários policísticos — distúrbio que interfere no processo

sugiro que já vá atrás de outro lugar”, orientou o médico.

de ovulação e leva à formação de cistos, devido a um dese-

Sem qualquer encaminhamento, a grávida logo pensou

quilíbrio hormonal —, ela fazia tratamento com pílula anticon-

em sua segunda opção: outro hospital público, humanizado e

cepcional. Para engravidar, parou de tomar a medicação que

com uma sala de pré-parto mais bem preparada. No entanto, o

impossibilitava a gestação e controlava os sintomas da doença.

mesmo profissional de saúde que lhe negou atendimento afir-

Dois anos se passaram até que viesse a notícia de que um bebê

mou que na outra instituição de saúde a situação também era

crescia dentro dela. Nesse meio-tempo engordou e chegou a

ruim. “Lá está pior, não vai adiantar você ir para lá.”

pesar 115 kg.

A caminho de outra maternidade, a parturiente ligou

Quem a levou até o local foi uma amiga de infância,

para o marido, Rodrigo, e pediu que pegasse as bolsas com

Juliana, já que o marido não havia chegado do trabalho. Lá, foi

as roupas dela e do bebê. Já em casa, ele esperou pela carona

atendida às 19h por um residente, que examinou a grávida de

oferecida pela amiga do casal, que levara Harieth ao hospital.

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No carro, durante o trajeto, o intervalo entre as contrações não

Nem o marido nem a amiga. Nenhum deles poderia en-

duravam nem um minuto e as dores aumentavam. Ao chegar,

trar, mesmo que o direito a acompanhante no pré-parto, parto

ela não precisou aguardar por muito tempo na fila. Juliana, que

e pós-parto seja garantido por lei. Em meio às dores e con-

a acompanhava, era estudante de medicina de uma faculdade

trações, a imposição do hospital foi acatada. “Toda a violência,

particular conveniada à casa de saúde. Sendo assim, tinha livre

tudo começou nesse outro hospital.”

acesso às instalações e conhecia as pessoas que lá trabalhavam;

A parturiente não pôde entrar com nada além de uma

foi ela quem preencheu a ficha enquanto a grávida aguardava

sacolinha com uma fralda e uma troca de roupa para o bebê.

pelo atendimento. Às 20h30, ao ser chamada para a consulta

Roupas, celular ou outros pertences deveriam ficar do lado de

no pronto atendimento, a gestante levou consigo uma lista de

fora, com os parentes. Do hospital, a grávida recebeu um par

medicamentos aos quais era alérgica. “É, você tem que ter par-

de sandálias e uma camisola pequena, que mal lhe servia. Era

to natural mesmo, sem nada de intervenção”, constatou o mé-

obesa e precisava de uma vestimenta maior. “Me deram uma

dico. A parturiente respirou aliviada, pois era o que desejava e

camisola bem pequena, que tapava só a minha barriga, como

tudo a fazia crer que assim seria.

se fosse um aventalzinho. Atrás, era tudo aberto.”

Mesmo com a superlotação, o processo de internação

Pouco antes de seguir para a sala de pré-parto, os profis-

foi rápido. A dilatação já havia chegado aos seis centímetros e

sionais de saúde informaram a ela e à família que a visita só

Harieth sentia bastante dor. No entanto, no momento em que

aconteceria no outro dia, às 14h. A gestante teria de esperar até

se preparava para ser internada, recebeu a informação de que

esse horário para ter, além da companhia de pessoas queridas,

não poderia ter a companhia do marido.

seus pertences e roupas de volta.

— Mas vocês sabem que é lei? — questionou a gestante.

Sentindo-se sozinha, Harieth seguiu para o elevador

— Sim, nós sabemos que é lei, mas o nosso pré-parto

que dava acesso ao andar de cima em uma cadeira de rodas,

não é preparado, tem outras mulheres lá também, às vezes até

apenas com uma enfermeira. Após subir, seguiu por um longo

sem roupa. Ele não pode entrar — sentenciou uma enfermeira.

corredor que dava acesso às salas de parto, enfermaria e ao pré-

— Então tudo bem, eu entro com ela — disse a amiga.

parto, onde ficaria. “Eu tive um sentimento de abandono, o

— Não pode entrar acompanhante — finalizou a profis-

psicológico ficou bem abalado. E hoje, estudando, aprendendo,

sional de saúde. 126

vejo que isso foi prejudicial até para o trabalho de parto.” 127


Na sala onde foi instalada, havia quatro leitos, sem cortina

turiente saiu para caminhar pelos corredores algumas vezes e

ou divisão entre eles. Dois já estavam ocupados e mais tarde

se sentiu constrangida, pois a camisola cobria somente sua bar-

chegaria outra gestante. Cada uma delas era acompanhada e

riga e deixava as costas — e todo o resto — de fora.

examinada com frequência por um médico residente. As paredes

Durante o atendimento, a médica residente que acom-

eram de um bege claro, típico de hospitais. Eram dois banheiros,

panhava a evolução do parto de Harieth mostrou-se atenciosa e

mas somente em um deles havia chuveiro com água quente; no

respeitosa. Ficou ao lado dela durante quase todo o tempo em

outro, existia apenas um cano que derramava água fria.

que a gestante permaneceu na sala de pré-parto, auscultava o

Harieth ficou em uma cama em frente ao aparelho de

bebê com frequência e fazia o exame de toque apenas quando

ar condicionado. Mesmo com o calor habitual da capital ma-

a paciente pedia. “Ela foi muito querida, acho que foi a única

togrossense, a parturiente sentiu frio, pois o ar gelado vinha em

referência que eu tive de atenção ali dentro.”

sua direção. Desta forma, pediu aos funcionários do hospital algo para se cobrir, mas recebeu apenas um lençol. — Vocês podem me dar pelo menos mais um lençol para eu pôr por cima? — pediu. — Não. Estamos sem lençol, a lavanderia não entregou — sentenciou uma enfermeira. Assim, seguiu com frio e mais dor, devido à diminuição do intervalo entre as contrações. Também sentiu fome e sede

O mesmo não aconteceu com o médico que estava de plantão e acompanharia o seu parto. O tratamento dado à parturiente foi grosseiro, visto que repreendia os gritos que ela emitia. — Fica quieta aí, porque está atrapalhando o resto do povo. Na hora de fazer você não gritou! — vociferou o profissional de saúde. — Você não estava lá para saber. Como você afirma isso? — respondeu prontamente a parturiente.

por muitas horas. Pediu um copo de água muitas vezes, pois

Quatro horas depois de Harieth ter dado entrada no

sentia a garganta seca. Em um momento de desespero, chegou

hospital, pediu novamente que a residente fizesse o exame

a solicitar que lhe fosse dado um algodão ou uma gase molhada,

de toque. Como a profissional em formação não teve certeza,

só para que umedecesse a boca. Todos os pedidos foram nega-

chamou o plantonista. Sem calçar a luva completamente e

dos. “Acredito que desidratei muito, porque todas essas horas e

com pouca delicadeza, o médico protegeu apenas os dedos e

eu sem tomar nada, eles não me davam.”

constatou uma dilatação de sete centímetros. “Ele veio com a

Dentro do hospital, para ajudar na hora do parto, a par128

cara toda amassada, brava, dava para ver que estava bufando. 129


Foi bem bruto na hora de fazer o toque. Doeu, foi grosseiro.”

Depois do soro, Harieth não conseguiu mais se levan-

A gestante pediu que fosse colocada ocitocina sintética

tar do leito, devido ao incômodo e às dores. Só sentiu vontade

em suas veias para acelerar o trabalho de parto, mas o pedido

de fazer força às 2h. A residente pediu para fazer o exame de

foi negado, com a explicação de que o obstetra esperava até

toque, informou que a dilatação era total e foi avisar o médico,

doze horas de trabalho de parto para injetar o medicamento.

que demonstrou nervosismo. “Não, não vou fazer o parto dela.

“Enquanto isso, você vai ficar aí, então não adianta você fi-

Manda chamar o outro que pôs ela para dentro, colocou um

car berrando, ficar gritando, que eu não vou vir, eu não vou te

monte de restrição. Eu me nego.”

atender, você fica aí.”

Os funcionários do hospital se apressaram para chamar

Durante o período que precedeu o parto, a residente

o médico que havia atendido a parturiente no pronto atendi-

pedia que Harieth fizesse força quando viessem as contrações,

mento. Quando o profissional chegou, a criança estava nascen-

com a explicação de que isso ajudaria a aumentar a dilatação.

do, mas a sala de parto estava ocupada. “Fecha aqui, vamos

Quando a parturiente não obedecia e sentia um alívio da dor,

fazer o parto aqui mesmo na sala do pré-parto”, ordenou o

os residentes pediam que ela continuasse com o que haviam

médico a uma enfermeira. Tentou auscultar o bebê, mas sem

pedido, senão o trabalho de parto não iria evoluir. “Essa força

sucesso. Nervoso, ele suava, mesmo com o ar-condicionado

me deixou fraca, até mesmo por eu já estar sem alimentação,

voltado para o leito da paciente. Assim que conseguiu verificar

sem hidratação.”

os batimentos cardíarcos da criança, constatou que a frequên-

Mais tarde, sentiu vontade de ir para o chuveiro, a fim de

cia estava alta.

aliviar as dores. Lá, ficou por cerca de meia hora, até que outra

A contração vinha, a paciente fazia força e o obstetra

gestante pediu para se banhar. Como não havia água quente no

tinha a impressão de que o bebê nasceria, mas ele voltava para

outro banheiro, teve de sair, mesmo que a contragosto. Com

dentro. O médico pediu que a mãe não segurasse e fizesse mais

muita dor, deitou-se novamente na maca e apagou. Acordou

força. “Foi umas três vezes assim, ele voltava bem alto.”

apenas quando foi colocado um soro com ocitocina. “A resi-

E foi então que o obstetra, com aparente desespero,

dente não me falou se eu tinha desmaiado ou não. Acredito

disse a Harieth que ela teria de passar por uma cesariana. “A

que desmaiei, porque não vi quando colocaram, ou só dormi

gente não sabe por que ele está voltando tão alto. Então vamos

por conta do cansaço.”

ter que fazer cesárea. Sei que você tem várias alergias, mas

130

131


vamos ter que arriscar uma anestesia.” A parturiente olhou para o profissional de saúde, sem responder, mesmo que ele cobrasse uma resposta imediata. Sem o seu consentimento,

porque você é muito alérgica — explicou o médico. — Mas você não falou que ia ser natural, que você não ia fazer nem episiotomia? — questinou Harieth.

pediu que fosse cortado o soro com ocitocina e que chamassem

Dizendo que não havia outro jeito senão aquele, o

o anestesista. “Meu filho, nasça, porque não vamos para a

obstetra fez o corte. Durante todo o parto, ele raramente se

cesárea”, a gestante pensou consigo.

dirigiu à paciente. “Ele só conversava consigo mesmo e com as

Era madrugada, o anestesista estava dormindo. Nesse

enfermeiras. Comigo, não conversou nada.”

meio-tempo, entre ele acordar e ir até a instituição de saúde,

Isaque, como seria chamado pela mãe, estava com

veio uma contração forte. Médico e paciente sentiram que

circular de cordão. O cordão umbilical dava duas voltas em

o bebê nasceria naquele momento e ouviram as enfermeiras

torno do pescoço do menino. Ao tentar retirar, o profissional

gritarem que a sala de parto havia sido liberada. A ordem

girou a criança ainda dentro do corpo da mãe. “Ih, lacerou!”,

do obstetra era ir imediatamente para lá, mas a grávida não

exclamou o obstetra. Além do corte na região perineal, Harieth

conseguia se mexer, sentia as pernas travadas. “Nessa hora, a

sofreu uma laceração. “Ele não me falou o grau, mas hoje eu

sua bacia está tão dilatada, seu quadril está tão dilatado, que

vejo, pelo que já estudei e pesquisei, que deu de grau três para

você não se mexe.”

cima.” Isso significa que a lesão do períneo pode ter envolvido

O profissional de saúde pediu que as enfermeiras

o ânus ou o espaço entre o reto, o útero e a vagina.

buscassem uma cadeira de rodas, mas não havia nenhuma

Enquanto o médico se livrava das voltas do cordão, as

disponível no andar. Como não dava tempo de procurar outra,

enfermeiras que a carregaram continuavam a segurar os braços

pediu que a paciente fosse andando até o local onde seria feito

da parturiente, depois que ela tentou colocar as mãos em seu

o parto, mesmo que Harieth não conseguisse caminhar.

filho. Novamente, veio outra vontade de fazer força. A gestante

Depois de ter as pernas fechadas de maneira abrupta

se sentou e viu o bebê sendo retirado, mas não pôde tocar

pelas profissionais de enfermagem durante o caminho, foi

no filho, pois continuava sendo segurada. “Até tentaram me

quase arrastada até a sala de parto. Lá, soube que seria feita

segurar para trás, mas forcei para sentar, porque eu queria ver,

uma episiotomia para facilitar a saída do bebê.

queria participar.”

— Vou dar menos anestesia para não correr riscos, 132

Às 3h45, no dia 12 maio de 2011, Isaque veio ao mundo 133


com 3,080 kg e 46 centímetros. Harieth não teve o contato pele

nenhum acompanhante para fazer isso por mim.”

a pele imediato com o recém-nascido, viu apenas o menino

Harieth escutou o choro do filho e se sentiu mais

nascendo e sendo levado da sala de parto por uma enfermeira. Ele

aliviada. Depois de passar pelos procedimentos-padrão, Isaque

não chorou ao nascer, o que preocupou a puérpera. O obstetra

foi vestido pelas enfermeiras e levado à mãe. Enquanto isso, o

também não informou se a criança estava bem e seguiu com os

médico tentava retirar a placenta. Sem sucesso, o profissional

procedimentos. Clampeou imediatamente o cordão umbilical, o

de saúde pediu que uma enfermeira massageasse a barriga da

que vai contra a indicação do Ministério da Saúde, pois o corte

puérpera, o que causou muita dor. “Doeu muito, eu senti muita

precoce pode privar o recém-nascido de receber até 25% do

dor de ela apertar, de ele puxar, como se fosse arrancar todos os

sangue e nutrientes da placenta. A recomendação é de esperar que

meus órgãos fora. Sabe quando você puxa uma corda e alguém

o cordão pare de pulsar, o que pode levar de 1 a 3 minutos.

solta, você dá aquela ida para trás?”.

Enquanto isso, fora

Assim que a placenta foi retirada, Harieth teve uma

da sala de parto, o bebê

“Imaginar que uma

hemorragia forte. No momento da complicação, vinte minutos

passava

mulher precisa ser

após o nascimento de Isaque, uma enfermeira voltou para a

que são feitos de forma

cortada

seus

sala de parto com o bebê. A parturiente viu de relance a ima-

padrão em recém-nasci-

genitais para permitir

gem da mulher, pois o médico pediu que o bebê fosse levado

dos. “Eu não conhecia os

passagem do seu fil-

dali devido ao risco de contaminação. Quando a profissional

procedimentos de rotina,

ho é, para mim, o ab-

de saúde saiu, o obstetra pediu a ela que levasse a criança até

como aplicação de nitrato

surdo dos absurdos,

o pai.

de prata, de vitamina K,

porque a mulher foi

Surpresa, a mãe de Isaque argumentou que não havia

todos eles”, conta. “Tam-

feita para parir, caso

ninguém da família no hospital. Para sua surpresa, ouviu que o

bém não teria como falar

contrário não estaría-

marido, sua mãe e a amiga, Juliana, estavam por lá. Uma sen-

‘não quero’ e eles não faz-

mos aqui até os dias

sação de tranquilidade tomou conta da parturiente. “É aquela

erem, porque não podia le-

de hoje”, opina o ob-

coisa do sentimental, se você sabe que tem alguém ali, perto,

vantar da mesa de parto e

stetra Jorge Kuhn.

pelo menos próximo de você, mesmo sem ver, se sente mais

pelos

métodos

ir atrás deles. Eu não tinha 134

nos

segura. Eu passei o trabalho de parto todo achando que eles 135


não estavam lá.” Assim que o médico terminou de costurar o corte, a

“Eles já vão embora e o neném já vai vir para você”, sentenciou a enfermeira.

puérpera perguntou quantos pontos tinham sido dados, pois

Já de volta à sala, a mãe não pôde ver o bebê imediata-

percebeu que ele utilizara duas caixas de sutura. “Internos não

mente, como prometido. Os funcionários do hospital saíram

tem como eu saber, mas externos foram oito”, disse.

para passear com o recém-nascido, que vestia uma calça e uma

Assim que os procedimentos acabaram, as enfermeiras

camisa de botões. “Meu filho nasceu muito quietinho, muito

levaram Harieth novamente para a sala de pré-parto. Devido

bonzinho, calminho, aquela cara de calmo, de paz. Acharam

à hemorragia, sentiu tontura ao levantar. Tentou sentar na ca-

bonitinho e saíram para passear”, conta. “Eu só ouvia o ba-

deira de rodas, mas, devido à obesidade e ao quadril que con-

rulho do povo falando que ele era lindo”, completa.

tinuava dilatado após o parto, não coube. As profissionais de

Ainda no hospital, por ter lido bastante sobre parto,

saúde prometeram buscar outra de tamanho especial. No en-

percebeu que havia sofrido violência obstétrica. Já conhecia o

tanto, uma enfermeira dizia pelo lado de fora da sala, que a

termo e se sentia impotente por não poder fazer nada para mu-

tal cadeira estava quebrada. Como desejava voltar logo para o

dar aquela situação. Porém, ainda acreditava que os médicos

quarto, Harieth se dispôs a ir andando, mesmo após ter sofrido

sabiam o que era bom para ela e para o bebê.

uma hemorragia e ter sido suturada.

Não conseguiu relaxar enquanto não teve o filho nos

A caminhada de volta até a sala de pré-parto foi lenta

braços. Do nascimento de Isaque até ela poder tê-lo nos braços,

em um longo corredor. Ela ainda vestia a camisola que não

cerca de uma hora se passou. Às 5h, Isaque foi levado ao quarto e

lhe servia, toda aberta nas costas, e tinha um lençol no meio

a enfermeira aconselhou que a puérpera amamentasse a criança

das pernas devido ao sangramento. “Você tem que andar segu-

o quanto antes, mas sem dar instrução para tanto. Tentou, em

rando aquele lençol, com ponto, com camisola que não serve,

vão, colocá-lo no seio. Pôs o dedo nos lábios do bebê, mas nem

com tudo. Tem que ser contorcionista, tem que ter dez braços

isso o fez abrir a boca. Pensou, então, que ele não estava com

para segurar.”

fome. “Ele só sugava a língua como se estivesse mamando.”

Durante o caminho, pôde ver a família, pois a porta que

Às 6h, houve troca de plantão. Outra enfermeira insis-

dava acesso à recepção estava aberta. Harieth pediu para ver a

tiu que Isaque tinha de mamar e colocou o bico do seio de

família antes de entrar no quarto, mas teve o pedido negado.

Harieth na boca do recém-nascido novamente. No entanto, ele

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continuava sem sugar o leite materno. Às 7h30 a puérpera pôde

A parturiente pôde ficar com a mãe durante todo o dia,

tomar banho, enquanto as enfermeiras cuidavam do bebê. Não

mesmo que a instituição não permitisse. Mãe e filha dividiam

havia comido nada desde o dia anterior. No pós-parto, pediu

as refeições durante o dia, para que Ivanilda não precisasse sair

água, mas não foi atendida.

do quarto. “Para ninguém reclamar da minha mãe, quando

Enquanto se banhava, viu uma enfermeira entrar e per-

vinha uma enfermeira, ela dava uma passeada no corredor. Ela

guntar sobre as fraldas de Isaque, pois ele havia feito cocô.

ajudava outra mãe, cuidava de um neném, auxiliava a outra a

Como no início do atendimento só pôde levar uma roupa e

dar banho.”

uma fralda, não tinha outra para colocar. No hospital, alguém

A comida chegou somente ao meio-dia. Harieth alimen-

cedeu uma às funcionárias do hospital, mas de tamanho P, e fi-

tou-se, deu banho no filho e banhou-se também. As enfermeiras

cou grande no menino. Como não havia outra opção, ele ficou

insistiam que Isaque tinha de mamar, mas o menino continu-

assim até que os parentes de Harieth pudessem levar a bolsa

ava sem abrir a boca. Mesmo sem alimentação, o bebê não

com seus pertences.

chorava nem gemia. “Foram e mediram a glicemia. Não estava

Às 9h30, as enfermeiras que agora cuidavam das

baixa ainda, mas já estava começando a querer baixar.”

puérperas conseguiram um copo com água e outro com leite

Para alimentar o filho, a mãe teve de ir até banco de leite

para Harieth. Nada mais, mesmo após ela ter ficado tanto tem-

no andar de baixo. A caminhada do quarto até o elevador foi

po sem se alimentar. Outra mãe mais experiente, que ganhava

dolorosa devido aos pontos, mesmo que a distância não fosse

o quarto filho no mesmo hospital, havia levado um celular es-

grande. No local, uma auxiliar conseguiu que Isaque abrisse

condido no sutiã. Emprestou-o para a nova amiga e instruiu

a boca por meio de estímulos e instruiu a mãe de primeira

que ela pedisse que entregassem as roupas na recepção.

viagem a amamentar.

Às 11h, aproximadamente, um quarto coletivo foi

Harieth recebeu alta na sexta-feira, por volta das 13h.

liberado. Juliana, a amiga que tinha acesso irrestrito ao hospi-

Passado algum tempo, resolveu olhar o prontuário e percebeu

tal, levou as roupas e um jaleco a mais; a vestimenta serviria

que o tempo registrado de internação era maior que o real.

para fazer com que Ivanilda, mãe da puérpera, também con-

“Eles marcaram quarenta horas de pós-parto e eu fiquei cerca

seguisse ter livre acesso às instalações do hospital, já que a

de trinta horas. Como a alta foi antecipada, meu filho estava

visita seria liberada somente às 14h.

com icterícia e eles não viram.” Um dia após a liberação, a mãe

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percebeu que a pele do recém-nascido estava amarelada e ficou

a sogra que sentia fortes dores de cabeça e pressões na nuca.

em estado de alerta.

Como esta é hipertensa, aconselhou que a nora se consultasse

No domingo de manhã, voltou ao hospital com o filho,

e tivesse a pressão aferida.

mas Isaque não pôde ser atendido. Quem tinha direito a atendi-

Ao chegar ao consultório, o médico disse que não po-

mento era ela, devido ao resguardo, e tal situação só poderia ser

deria atendê-la, pois no período de resguardo ela só poderia

resolvida em uma policlínica. Graças ao encaminhamento de

se consultar no hospital onde teve o filho. Sem opções, pois

uma das médicas da instituição em que estava, o atendimento

tinha de ficar com o filho que estava internado, insistiu para

foi agilizado. E lá foi a puérpera, que ainda sentia muita dor no

que o atendimento fosse feito. E foi. A pressão da puérpera

local dos pontos. Com medo de que o bebê fosse contaminado

marcava 18/9. O profissional de saúde receitou um diurético,

naquele ambiente, a atendente preencheu a ficha rapidamente

mas reiterou que ela deveria voltar à instituição de saúde re-

e levou para a médica.

sponsável pelo parto recente, o que só poderia ser feito se o

Durante a consulta, o menino foi diagnosticado com

filho fosse transferido para lá.

icterícia neonatal (descoloração amarelada da pele e de outros

Às 21h, ainda com muita dor de cabeça, pediu que

órgãos, uma das características da hiperbilirrubinemia), um

aferissem sua pressão novamente. Como ainda estava alta, teve

fenômeno fisiológico frequente em recém-nascidos. No caso de

um medicamento receitado, tomou, mas sentiu-se mole, sem

Isaque, por não ter havido tratamento desde o início, foi indi-

conseguir falar, nem levantar. Mesmo após o fim do horário de

cada internação, mas o único local que poderia recebê-lo era o

visita, a sogra e o marido de Harieth continuavam com ela. Era

pronto-socorro da cidade. “Naquele momento, o meu céu desa-

Rodrigo que pegava o filho quando ele chorava e levava até a

bou, porque o pronto-socorro aqui é calamidade total. No tempo

mãe, pois a puérpera não tinha forças.

da minha gestação, a UTI neonatal foi interditada duas vezes.”

Na troca de plantão, às 23h, uma enfermeira pediu que

A médica deu um encaminhamento e entrou em conta-

o pai de Isaque fosse para casa. Ele insistiu que ficaria e teve a

to com uma amiga que trabalhava no local para onde o bebê se-

autorização da pediatra para cuidar da esposa e passar a noite

ria levado. Lá, foram pedidos exames e o bebê foi internado às

no hospital. Durante a noite, como não havia lugar para sen-

14h, mas estava bem. A mãe é que teve complicações. Às 18h,

tar, o pai do menino saiu para procurar algo e encontrou uma

no horário de visita, Harieth reclamou para o marido e para

cadeira de plástico, onde dormiu por algum tempo. Em um

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momento que a mulher precisou de ajuda e companhia para ir

mais o líquido materno e também fez com que ela ficasse ainda

ao banheiro, a profissional de saúde retirou o assento. O jeito

mais frustrada.

foi dormir em pé. “A madrugada inteira ela perturbou. Não deixou a gente descansar.”

Quando a mãe de Rodrigo foi embora, tudo piorou. Harieth passava o dia todo deitada, no quarto, levantava apenas

Durante a noite, por ter ingerido medicamento diuré-

para cuidar do filho. Foi diagnosticada com depressão pós-

tico, teve de ir muitas vezes ao banheiro. A maca era alta e

parto, mas não rejeitou o recém-nascido. Limitava-se a passar

não tinha escada para tornar a descida menos abrupta. Desta

horas sem comer nem tomar água, com um cansaço extremo.

forma, a puérpera sentiu que alguns pontos haviam se rom-

“Teve dia que meu esposo chegava às 17h30 e eu me dava con-

pido. De manhã, como não tinha condições de dar banho, as

ta que não tinha comido nada ainda.”

auxiliares de enfermagem se ofereceram para fazê-lo. Às 11h, a mãe de Rodrigo voltou para ajudar a cuidar da nora.

Não é regra, mas mulheres com quadro de depressões anteriores têm uma chance maior de desenvolver um quadro

Três dias se passaram até a alta de Harieth e do bebê.

de depressão pós-parto. “Não é porque a mulher teve um par-

Embora a pressão alta da mãe e a icterícia do recém-nascido

to ruim que vai ter depressão, mas muitas têm referido que o

fossem controladas, a volta para casa foi complicada. Ela sentia

fato de ter tido um parto que gerou uma experiência negativa,

muitas dores, não tinha vontade de levantar da cama, não con-

de trauma, está associado a quadros de tristeza maior. Se não

seguia comer. Como ela não pôde voltar ao hospital, Juliana, a

amparada ou eventualmente tratada, pode desencadear uma

amiga estudante de medicina, examinou os pontos e garantiu

depressão. Não é uma coisa só que vai levar à depressão pós-

que a cicatrização era boa, mesmo que a dor fosse intensa.

parto: é multifatorial”, explica Heloisa Salgado, especialista

A recuperação foi dolorosa. A puérpera não conseguiu se sentar durante uma semana após o parto e passava a maior

em psicologia da infância, mestre e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo.

parte do tempo deitada. Somente um mês depois é que pôde

Harieth teve de encarar a depressão de maneira forçada,

ficar sentada sem sentir tanto incômodo no local do corte. Du-

porque a casa estava bagunçada e era ela quem arrumava tudo,

rante esse período, teve a ajuda da sogra para cuidar do filho.

além de cuidar do filho. Ao poucos, conseguiu fazer as tarefas

Devido a uma redução nas mamas, tinha pouco leite e teve de

diárias e se sentiu menos cansada e deprimida. A cura veio

dar leite artificial para o bebê, o que levou Isaque a não querer

apenas pouco mais de três anos depois, com acompanhamento

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psicológico e cerca de um ano após ter feito uma cirurgia bariátrica, um procedimento de redução do estômago, em 2013.

Hoje, aos 31 anos de idade, residente em Várzea Grande, também no Mato Grosso, Harieth Limeira consegue falar sobre o nascimento do filho de forma aberta, sem tanta dor. Isaque tem quatro anos e é um menino saudável. Há cerca de dois anos, troca experiências com outras mães pela internet e procurou se instruir mais sobre o parto. Começou a comercializar fraldas de pano e, a partir de então, teve mais contato com outras mães e com o parto humanizado. Procurou ajudar as amigas que tinham medo do parto normal e fez um curso de doula recentemente. É artesã, vende doces sempre que possível e também fraldas de pano. Depois de transformar a dor em ajuda ao próximo, afastou o trauma do parto e deseja ter outro filho. “Fiquei traumatizada com essa violência, com tudo o que eu sofri, sim, mas cresceu em mim a vontade de ajudar outras mães.”

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ENTENDENDO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

O QUE É A violência obstétrica é o desrespeito à mulher — e ao bebê — durante o pré-natal, parto, aborto ou pós-parto. É quando ela se sente ferida na autonomia sobre seu corpo, suas emoções ou sua sexualidade. Acontece quando profissionais de saúde realizam intervenções ou procedimentos sem informar e/ou receber o consentimento da mulher. Negar água ou comida durante o trabalho de parto; imobilizar braços e pernas ou mandar fazer movimentos que causem desconforto físico ou psicológico; negar informação ou a presença de acompanhante durante o trabalho de parto; fazer cesárea ou recorrer a procedimentos como a episiotomia — corte na região da vagina — por conveniência médica são exemplos de violências obstétricas percebidas pelas mulheres. Como ainda não existe um conceito legal de violência obstétrica no Brasil, há resistência do Judiciário em aplicar punições às instituições de saúde, de acordo com a coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo,

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Ana Paula Meirelles. Para ela, no entanto, o momento é de

dica para fazer a cesárea, o profissional deve explicar quais são

conscientização do judiciário, da área de saúde e, principal-

os riscos envolvidos e apresentar um relatório detalhado junto

mente, das mulheres. “Acredito eu que daqui um tempo o ju-

ao partograma;

diciário comece a olhar com outros olhos, as mulheres também

Ter um partograma é importante. Ali estão to-

comecem a se fortalecer e a acreditar no sistema de justiça e

das as informações sobre a saúde da gestante, as quais podem

buscar isso como uma solução”, diz Ana Paula.

ser utilizadas pelo obstetra, mesmo que ele não tenha acompanhado todo o pré-natal. Para que haja maior possibilidade

DIREITOS DA MULHER

de o plano de parto ser respeitado, é indicado protocolar o documento no hospital onde vai ocorrer o parto;

A violência obstétrica é uma realidade que acontece em

A cesariana sem indicação clínica, que coloca

todo o Brasil. De acordo com uma pesquisa da Fundação Per-

em risco a saúde da mãe e do bebê, é uma violência obstétrica.

seu Abramo, uma a cada duas mulheres é vítima de violência

O Brasil é campeão mundial de cesáreas, chegando a uma taxa

obstétrica. Toda mulher tem o direito a um parto respeitoso e

de 84% na saúde privada e 40% na rede pública;

estar informada sobre os seus direitos é importante para evitar

Exigir a cópia do prontuário de atendimento na

que procedimentos sejam realizados sem o consentimento da

instituição de saúde. Este documento fica no hospital ou casa

mulher. Saiba o que pode auxiliar:

de parto, mas a cópia da paciente é um direito que não pode ser negado;

Pedir a divulgação dos percentuais de cesari-

Toda mulher tem o direito garantido pela Lei

anas e partos normais por estabelecimento de saúde e por

Federal nº 8.080/1990 de escolher um acompanhante durante

médico. Assim, a parturiente pode escolher por comparação

todo o período do trabalho de parto, parto e pós-parto, seja em

qual profissional atende melhor os seus interesses. O hospital

instituição pública ou privada. Ela pode pedir ao acompanhan-

tem o prazo de 15 dias para entregar as informações. A reco-

te que leve o termo impresso e, se for negado o direito, ele pode

mendação, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)

entrar em contato com a ouvidoria do hospital imediatamente;

é de que apenas 15% dos nascimentos de bebês sejam realizados por meio deste procedimento. Em casos de indicação mé148

A parturiente que não deseja os procedimentos

rotineiros realizados com o recém-nascido nos hospitais pode 149


conversar com o médico antes do parto. A mãe tem o direito de

Defesa do Consumidor) de cada região do país.

negar a aplicação do colírio de nitrato de prata, por exemplo,

É importante definir a responsabilização que a mulher

assinando um termo de consentimento que é oferecido pelo

deseja buscar do profissional ou instituição de saúde, segundo

próprio hospital;

a coordenadora do NUDEM, Ana Paula Meirelles. No caso

O aplicativo “Parto Humanizado”, criado pela

de responsabilização criminal, o primeiro passo é verificar se o

ONG Artemis, foi elaborado para orientar mulheres grávidas

comportamento praticado cabe dentro de algum crime existente

que desejam parto normal e querem evitar a violência obstétri-

(como lesão corporal, injúria ou difamação, por exemplo). Se

ca. Além de ter a possibilidade de elaborar um plano de parto, a

for o caso, o próximo passo é fazer um Boletim de Ocorrência.

plataforma alerta sobre procedimentos médicos desnecessários

Em circunstâncias de danos morais em consequência de

e oferece maneiras de denunciar.

abalo psicológico ou até de danos materiais, o caminho indicado é um processo cível. Para tanto, nesse caso, é necessário

COMO DENUNCIAR

contratar um advogado. Se a mãe não tiver como contratar um advogado para cuidar do caso, pode falar com a Defensoria

Não existe uma ferramenta específica para denunciar

Pública, que oferece auxílio gratuito, independentemente de

exclusivamente a violência obstétrica no Brasil. Mesmo assim,

atendimento público ou privado. Para acionar o serviço, é pre-

se a mulher tiver o direito violado, a denúncia pode ser feita

ciso que a renda familiar seja de até três salários mínimos.

ligando para 180 (disque violência contra a mulher) ou 136

Em ambas as situações, é importante ter em mãos o

(disque saúde). Em último caso, ainda no hospital, quando a

prontuário e, se possível, outros documentos, como plano de

parturiente tem os direitos cerceados, pode ligar para a Polícia

parto, além de apresentar testemunhas.

Militar, no número 190.

Outra forma de denunciar situações de violência obsté-

Se a ocorrência de atendimento for feito por plano de

trica é por meio do site do Ministério Público, seja estadual

saúde, a denúncia também pode ser realizada na Agência

ou federal, que pode servir como material para ações públi-

Nacional de Saúde Suplementar (ANS): 0800-701-9656. Em

cas futuras. A ONG Artemis também recebe denúncias pelo

instituições particulares, a ouvidoria do próprio hospital pode

Facebook e colhe depoimentos pelo site http://artemis.org.br.

ser um caminho, além do Procon (Fundação de Proteção e

Os dados são encaminhados para órgãos de imprensa, para o

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Ministério Público Federal, para o Ministério Público Estadual ou para a Defensoria Pública, com a intenção de coibir as ações ou realizar ações públicas. “A Artemis é uma aceleradora social, que trabalha em prol da autonomia feminina, de uma forma ampla para prevenir e erradicar formas de violência”, diz

SOBRE AS AUTORAS

Ana Lúcia Keunecke, diretora jurídica e negócios da Artemis e ativista do parto humanizado.

Gabriela Varella é de São Paulo, nascida e criada na capital. Estudou jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e trabalhou em redações como Revista Pais & Filhos, da Editora Abril e revistas Crescer e Época, da Editora Globo. O interesse em direitos humanos e, mais ainda, em um recorte específico nos direitos da mulher, surgiu quando percebeu a falta de espaço de assuntos de cunho feminista na mídia tradicional. O livroreportagem Silenciadas — Histórias de Violência na Sala de Parto nasce com a ambição de fazer um recorte de histórias e dar voz a mulheres que, assim como a sua mãe, não tiveram o parto que desejavam; algumas, sem sequer saber que isso é um direito. Marcela Lima é natural de Alfenas, mas viveu a infância e adolescência em Campos Gerais, ambas cidades do sul de Minas Gerais. A autora estudou jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e já trabalhou em redações como Catraca Livre, iG, O EsFontes: Cartilha sobre violência obstétrica disponível em partodoprincipio.com.br; Folder de violência obstétrica

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elaborado pela Associação Artemis em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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tado de S.Paulo e TV Globo. O interesse sobre Direitos Humanos foi crescendo ao longo dos anos, com um auge em 2014, quanENTREVISTADOS

do fez o 1º Curso de Informação sobre Jornalismo e Direitos Humanos, organizado pela Oboré e pela ONG Conectas. Ao surgir a oportunidade de escrever um livro, Marcela uniu os estudos ao interesse por feminismo. E assim, em parceria com

Ana Lúcia Keunecke, diretora jurídica da ONG Artemis e

Gabriela, nasceu a ideia do livro Silenciadas — Histórias de Vi-

ativista do parto humanizado no Brasil.

olência na Sala de Parto. Ana Paula Meirelles, defensora pública coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM). Heloisa Salgado, psicóloga especialista em Psicologia da Infância, mestre e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo. Jorge Kuhn, médico obstetra da Casa Moara em São Paulo (SP), professor de Obstetrícia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em parto humanizado no Brasil. Melania Amorim, ginecologista obstetra e professora de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), professora de pós-graduação em Saúde Materno-Infantil do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e pós-doutorado em Saúde Reprodutiva pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 154

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