O ASSASSINO DA CRUZ Matheus Prado
Copyright © 2016 por Matheus Prado Copyright © 2016 por Maori Books Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19.2.1998. REVISÃO: Taimy Vanini LEITORES BETA: Nelson Machado, Talita Galbiati Kamyla Luqueti, Angelita Villa Weslei Morais, Maria Netta PROJETO GRÁFICO: Maori Criação www.maoricriacao.com.br www.facebook.com/maoricriacao Proibida a reprodução por qualquer meio existente ou que venha a existir sem a autorização por escrito da editora e do autor. DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Prado, Matheus, 1989 - O Assassino da Cruz / Matheus Prado. Sinop: Maori Books, 2016. ISBN 978-1-329-22729-3 1. Fantasia - Ficção adulta. Literatura brasileira. 2. Terror. I. Título. II. Série. CDU: B869.3 Direitos desta edição reservados à EDITORA MAORI BOOKS LTDA Av. dos Tarumãs - 4002 | Jardim das Nações Sinop-MT | Brasil - Fone: +55 (66) 9653-7702 contato@maoribooks.com | www.maoribooks.com
Prefácio “Então você gosta de serial killers?” “Não acho que alguém, em sã consciência, possa nutrir sentimentos respeitosos ou afetuosos por qualquer tipo de genocida. Porém, não posso negar que há, dentro de mim, um constante interesse por suas mentes e por suas pretensões”. Da realidade à ficção, da criatividade mórbida de Ed Gein até a histeria perturbadora de Patrick Bateman em Psicopata Americano (2000); da hipnótica retórica de Charles Manson (e sua família hippie/criminosa) até o canibalismo elegante de Hannibal Lecter em Silêncio dos inocentes (1991). Histórias de assassinos em série provocam um misto de sentimentos que transparecem curiosidade e perturbação mutuais. Mas, afinal, por que tanto interesse diante do que nos causa perturbação? Além das mais variadas explicações subjetivas, nosso organismo, quando confrontado com situações de medo psicológico, envolve-se de ansiedade, e então libera neurotransmissores como a noradrenalina e a dopamina; essas substâncias nos deixam mais atentos e preparados para reagir se necessário. Além disso, a dopamina (associada a drogas como a cocaína) também causa uma sensação de euforia e prazer. Observar imagens ou situações que perturbam, de certa forma, faz com que as pessoas se sintam realmente vivas. É o que faz com que indivíduos parem seus carros nas rodovias para contemplar acidentes fatais; é o que nos leva a assistir aos filmes de horror e de gore; é o que contribui para que pessoas comuns como eu, você e o autor deste livro, a quererem conhecer, entender e escrever sobre serial killers. Quando, há alguns meses, meu amigo Matheus Prado me procurou e começou a falar sobre o enredo de O Assassino da Cruz, minha primeira reação foi “estou em casa”. Levando em consideração que minha primeira leitura sólida foi O Exorcista, aos onze anos de idade, e minha primeira locação de filmes sem supervisão adulta foi O Iluminado, aos dez, posso dizer que desde criancinha estive envolvida com esse universo ficcional de terror e suspense. Quando o Matheus comentou qual era o modus operandi e as pretensões do assassino que ele havia criado, o interesse foi total e genuíno, uma expectativa que só se confirmou no decorrer e no desfecho da leitura, cujo o final surpreende pela ligação extraordinária dos fatos e pelo suspense gradativo, porém, isento de prolixidades. Tudo se passa em uma São Paulo nublada e noturna. A movimentação na Divisão
de Homicídios da Polícia Civil é grande, pois acabaram de receber um vídeo gravado em DVD. Nele, um homem vestido de preto, gravado por uma câmera profissional, em silêncio, executa um famoso juiz, e ele o faz de uma forma que choca não só a população, já que o vídeo espalha rapidamente pelas redes, mas até mesmo aqueles que estão acostumados com toda a violência e sangue expurgado pelas noites da capital paulista. E é só o começo do caos. As motivações do Assassino da Cruz, bem como a forma como ele executa seus crimes revelam todo o cuidado que o autor teve em relação à pesquisa criminal. Os assassinatos são narrados de forma visceral, atingindo em cheio nossas mentes e criando cenas que permanecem em nossos imaginários. E, se há um homem que precisa matar para sucumbir às suas necessidades, há também um homem que precisa caçá-lo para sentir-se vivo. Pedro Rocha, ou melhor, o investigador Rocha, nos é apresentado já nas primeiras linhas do livro. Por mais que Rocha possa mostrar alguma influência de outros detetives, policiais ou investigadores famosos da ficção, sua personalidade, força e agilidade originais marcam a essência do livro e o tornam uma personagem que todos desejarão ver em outras histórias. Rocha é a dor da injeção que cura a doença, é a casca da ferida que precisa ser arrancada para que uma pele sadia se forme; Pedro Rocha é o homem que abomina a corrupção e o crime, mas que admite que precisa deles, pois, se não estiver na caça, não há necessidades de continuar existindo. O Matheus explorou um gênero bem limitado dentro da literatura nacional, e o fez de uma forma tão magistral que muitos paradigmas a respeito do suspense contemporâneo escrito em solo brasileiro serão quebrados. Eu fico muito grata de ter participado de um projeto que, além de ser dotado de criatividade e objetividade, também foi extremamente pesquisado, baseou-se em conceitos de história bíblica, criptografia e criminologia. É fascinante a forma como o autor muniu-se de aprendizados sólidos para elaborar seu primeiro livro. Com pontos finais demarcando diálogos concisos e objetivos, Matheus criou seu próprio estilo de escrita. Poucos adjetivos, descrições apuradas, ênfase nas ações e nos elementos que realmente envolvem o leitor fazem com que a vontade de terminar a página, o capítulo e até mesmo o livro sejam crescentes. Recomendo que o leitor utilize-se de um bloco de anotações, pois os assuntos contemplados pelo autor são tão instigantes que haverá uma necessidade generalizada de se querer conhecê-los mais a fundo. O Assassino da Cruz é uma leitura imprescindível para os fãs de suspense, prato cheio para os que gostam de criminologia e histórias policiais, e essencial para todos que precisam de uma prova de que a literatura nacional de suspense pode ser tão ou até mais instigante do que a importada. Divirta-se, sinta medo, sinta receio e, libere sua dopamina.
O Assassino da Cruz
Parte Um
Prólogo Eu vou acabar pulando dessa janela”. Era nisso que Rocha pensava enquanto deixava o scotch deslizar pela sua garganta, destruindo seu paladar e enevoando sua mente. Ele tinha consciência de que não podia beber demais, mas não conseguia controlar seus próprios instintos. Precisava daquilo ou acabaria enlouquecendo. Também estava com fome e como não havia nada sólido para ser digerido em seus armários, supria a necessidade de seu corpo com álcool. Muito álcool. Os carros transitavam freneticamente alguns andares abaixo. São Paulo nunca dorme, como diz o clichê popular, e a visão da janela do seu apartamento de quinta categoria era a prova cabal de que tal clichê era mesmo verdadeiro. Lixeiros, prostitutas, traficantes, policiais, entregadores de pizza e uma infinidade de seres notívagos transitavam num ritmo alucinado pelas avenidas da maior cidade do Brasil, ao som de sirenes e latidos de cachorros sarnentos. “Que vida feliz”. Pensou. Afastou o rosto da janela e voltou-se para a cama desarrumada. Michelle ainda dormia. Ou fingia dormir, esperando que ele fosse ao banheiro para que ela pudesse sair sem ter que olhar em seus olhos. Em sua cabeça conturbada, Rocha só conseguia pensar que ela o visitava por pena. Transava com ele apenas para não perder a viagem, talvez. Michelle não era só uma prostituta. Eles se davam bem porque tinham muito em comum. Ela levava uma vida dupla, mas não fazia isso por opção. Durante o dia, tinha um emprego digno, que pagava um salário medíocre. Durante a noite, tinha outro emprego, este não tão digno assim, mas necessário para sustentar sua casa e sua mãe doente, que agora morava com ela. Realmente, eles tinham muito em comum. Exceto pelo fato de que, ao menos durante o dia, Michelle tinha um emprego digno, e Rocha era apenas um policial. Um policial de merda que sequer saia para as ruas. Passava o dia atrás de uma mesa cheia de papéis e burocracias tipicamente brasileiras. O emprego dos sonhos. Caminhou até a mesinha ao lado da cama. Havia poucas coisas sobre ela. Chaves, dois celulares, alguns papelotes de maconha, camisinhas, uma pistola… E o item mais importante: a garrafa de whisky. Encheu o copo muito além do que seria normal para qualquer pessoa que precisava estar de pé às 5:30h da madrugada. Mas quem iria se importar? Bebeu mais da metade do copo em um único gole. Depois olhou a hora no
celular: 03h42min. Era melhor nem dormir mais. A cada gota de álcool que entrava em seu estômago, a fome parecia ainda mais insuportável. Ele revirou todos os armários da cozinha em busca de comida, mas a única coisa que encontrou foi uma lata de milho em conserva. Nem se preocupou em conferir se estava vencida. Abriu com uma faca e comeu desesperadamente, como um cachorro de rua revirando restos no lixo. Um telefone tocou, mas não era o seu. Olhou para a cama e viu Michelle atendendo. Não era da sua conta. Voltou para sua lata de milho. Michelle se levantou vestindo apenas uma calcinha e caminhou até onde ele estava. Beijou seu rosto enquanto tentava abraçá-lo, mas seus braços eram curtos demais para envolvê-lo por completo. Rocha era um homem grande. — Eu preciso ir, Pedro… – ela disse. – Tenho um cliente. — Cliente essa hora? — Ossos do ofício. — Michelle… Você sabe o que eu acho disso. — E eu tenho escolha, Pedro? Você vive sozinho, sem nenhuma responsabilidade. Mas comigo não é assim. Eu tenho… — Eu sei bem, Michelle. Chega. Não quero ouvir isso agora. — Então por que você não me paga? Se você me pagasse, eu não precisaria atravessar a cidade às quatro da manhã. Mas se eu não fizer isso, se eu não for lá dormir com esse velhote ricaço que me ligou, nem o aluguel eu consigo pagar. — Que drama. Se eu te pagasse não seria especial. — Mas eu preciso comer, sabia? Não sou sua namoradinha. — Achei que fosse. — Olha... — Eu também preciso comer. – ele interrompeu, jogando a lata vazia na pia cheia de louça suja. Pensou em jogar no balde de lixo ao lado da mesa, mas ele já havia transbordado. – Preciso comer alguma coisa de verdade, agora. Vem comigo. Eu te levo. Ambos se trocaram e saíram. Michele vestiu um sobretudo escuro para esconder a microssaia. Rocha calçou suas botas militares, vestiu o casaco e pegou sua mochila. Sabia que não teria tempo de voltar para casa antes de ir para o trabalho, por isso decidiu levá-la. Desceram os sete andares de escada, já que o elevador estava quebrado há pouco mais de dois anos. Mas de que adiantava reclamar? Seu aluguel estava atrasado há mais tempo do que isso. Saíram do prédio e caminharam por alguns minutos até chegarem ao ponto de táxi. Embora Pedro Rocha não tivesse dito nada à sua acompanhante, ele também tinha um compromisso importante naquela noite. Algo que a envolvia, mesmo que ela jamais soubesse.
Comeram um salgadinho qualquer no carrinho de lanches do lado de fora do ponto. Rocha pagou o lanche e deu a Michelle mais algum dinheiro para que ela pudesse pegar um táxi. — Pedro… Você sabe que eu adoro ficar com você, não sabe? — Lá vem. — Não fale assim. Você sabe também que eu preciso ajudar em casa. Minha mãe está doente e eu preciso comprar remédios pra ela. E tem a quimioterapia também. O salário do jornal não dá nem pra… — E os remédios que eu consegui pra sua mãe? — Isso foi há cinco meses, Pedro. Eles acabaram em três semanas. Mas não vem ao caso. O que eu estou tentando te dizer é que as coisas estão ficando difíceis pra mim. Eu preciso arrumar mais clientes… Clientes que me paguem. — E por que você não arruma outro emprego? — Pra viver igual a você? Desculpe, mas eu já passei por muitos empregos. Tive muitos chefes que só queriam se aproveitar de mim. Já estou farta disso. Na verdade, estou até pensando em sair do jornal e investir em algo mais lucrativo. — Entendo. Não vou te julgar. — Obrigada. — Vamos. Você está atrasada. — Olha, Pedro… Me desculpe por eu te dizer isso, mas… — Não precisa se desculpar. Eu já disse que entendo. — Tudo bem, então. — Eu vou ver se consigo mais remédios pra sua mãe. Ela apenas sorriu. O abraçou e beijou delicadamente a sua boca. Fechou o sobretudo e caminhou até o taxista. Entrou no carro, dobrou à direita na primeira esquina e desapareceu. Rocha respirou fundo enquanto via o veículo se afastar. Acendeu um cigarro e deixou que seus olhos fossem guiados pelas luzes cada vez mais fracas. O frio era cortante. Ergueu a gola do casaco para proteger as orelhas e depois enfiou as mãos nos bolsos. Só então começou a caminhar na direção contrária. *** O despertador tocou exatamente às 5:30h. O som insuportável do alarme ecoou por todos os cantos do enorme e luxuoso quarto. À medida que o ruído se tornava ensurdecedor, o juiz Maurício Medeiros ia acordando. Sentia uma dor intensa nos pulsos e nos tornozelos. O lugar estava escuro e ele não enxergava muito bem. Mas logo seus olhos se
acostumaram com o ambiente e ele começou a se lembrar do que estava acontecendo, ainda que vagamente. A prostituta havia se atrasado. Quando enfim chegou, ele correu para abrir a porta. Já estava um pouco alto, afinal, havia passado o dia inteiro em um iate com alguns políticos e muitas mulheres. O dinheiro público deveria ser gasto da melhor forma possível, é claro. Quando finalmente chegou em casa, ligou para a primeira garota que viu na sua lista. Ele era insaciável e decidiu que aproveitaria ao máximo enquanto sua mulher estivesse de férias na Europa. Ela deveria estar fazendo o mesmo por lá. Mas, quando abriu a porta, foi surpreendido por uma figura estranha, quase um vulto, que usava um capuz negro. Em seguida, alguma coisa atingiu sua cabeça com tanta força que ele desmaiou. Não sabia exatamente quanto tempo havia se passado desde que fora atingido, mas, como o despertador já havia tocado e os primeiros raios de sol começavam a iluminar as grandes janelas de vidro, supôs que havia ficado desacordado por pelo menos uma hora. Tempo demais. Ele tinha uma reunião importante naquela manhã. Quando seus sentidos finalmente se ajustaram, tentou se levantar, mas viu que estava amarrado na cama pelos pés e pelas mãos, por isso a dor incessante. Enquanto buscava uma explicação racional para a situação, lembrou-se de algumas noites atrás. Estava em busca de novas aventuras e, por esse motivo, contratou uma dominatrix. Embora o sexo tenha sido extremamente prazeroso, não gostava de estar fora do controle da situação. Ela também o havia amarrado. Será que havia ligado para ela novamente sem notar? Talvez. Mas por que ela atingiria sua cabeça? Isso tinha ido longe demais. Tentou falar alguma coisa, pedir explicações, mas só então notou que sua boca estava cerrada com silver tape. O desespero agora era real. Começou a imaginar outra situação, essa não tão prazerosa assim. Nesse momento, se deu conta do líquido gelado que escorria pela lateral do seu corpo e do cheiro insuportável que impregnava o ar. Sangue. Olhou para o lado e viu a garota morta. Sua garganta fora cortada de uma orelha a outra. Seu coração quase parou. Começou a se contorcer, como se isso pudesse ajudálo a sair, mas a única coisa que conseguiu foi fazer seus braços sangrarem pelo contato com as fibras grossas da corda. — Fique calmo. – uma voz ecoou no ar. O juiz tentou reconhecer a voz, mas foi em vão. Então passou a procurar pela pessoa que havia falado. Demorou alguns segundos até avistar, um pouco mais à frente, aos pés da cama, a silhueta de um homem. Certamente era o mesmo que o atacara antes. O homem de preto estava lá, sentado em uma poltrona, com o capuz levantado até o
nariz para que pudesse fumar um cigarro. Na mão esquerda, segurava um copo. — Espero que não se importe. – o homem disse. Sua voz era mais suave do que se esperaria numa situação como aquela, mas isso não a impedia de ser fria, quase isenta de emoções. Definitivamente o juiz não o conhecia. – Eu achei esse whisky no seu bar e não resisti. Há muito tempo que não tomo nada com tanta qualidade. O juiz acenou positivamente com a cabeça. — O senhor vive muito bem aqui. Muito luxo, muita bebida… Muitas mulheres. – o homem de preto levantou o queixo, apontando a cabeça para a prostituta morta. – Garanto que muita gente queria estar na sua pele. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos do juiz. O homem de preto terminou o cigarro e virou o resto da bebida num único gole. Levantou-se e caminhou até a borda da cama. — Quer saber de uma coisa, juiz Medeiros? Eu não queria estar na sua pele hoje... O juiz voltou a se sacodir freneticamente na cama, tentando se soltar. Os nós estavam muito apertados e, novamente, a única coisa que conseguiu foi machucar ainda mais os pulsos. O homem de preto abaixou o capuz para que ele voltasse a cobrir todo o seu rosto e depois caminhou até o centro do quarto, onde havia uma grande mesa de carvalho. Sobre ela estava uma mochila preta. Ele a abriu e tirou de dentro um tripé e uma câmera digital DSLR. Armou o tripé e o posicionou nos pés da cama, próximo à poltrona onde havia se sentado pouco antes. Ajustou o foco e pressionou a tecla REC. Voltou para a mochila e retirou de dentro dela um estojo de couro preto, um pouco maior que um caderno escolar. Pegou uma cadeira e caminhou até a lateral da cama. Depositou o estojo sobre a mesa de cabeceira e o abriu. O juiz se esforçou para ver o que tinha dentro, mas não conseguiu. Isso não foi um problema, pois o homem de preto fez questão de mostrar o estojo para ele e para a câmera. Havia mais de uma dezena de bisturis presos sobre fitas de tecido em um veludo vermelho. Lâminas de diversos tamanhos e modelos, impecavelmente organizadas em ordem hierárquica. Ele retirou uma das lâminas e repousou o estojo novamente na mesa de cabeceira. Aproximou-a do peito do juiz, que se sacudia ainda mais, tomado pelo desespero. — Quanto mais o senhor se mexer, mais fácil será te cortar. – o homem de preto cochichou para que a câmera não captasse sua voz. Abriu o roupão de seda do juiz com muito cuidado, como se saboreasse cada momento daquele ritual. Deslizou a lâmina de um lado para o outro sobre a pele do homem amedrontado, sem força para cortá-la, enquanto seus olhos acompanhavam o objeto sem sequer piscar. Finalmente achou a posição ideal pouco acima do umbigo, e
então pressionou o metal com mais força contra a corpo do homem. Um filete de sangue escorreu. O juiz soltou um gemido abafado de dor. Deslizou a lâmina com uma precisão cirúrgica até que ela alcançasse a altura dos mamilos da sua vítima. O filete de sangue transformou-se numa cascata de fluídos corporais, desesperada por seguir seu caminho rumo ao chão. O homem de preto se comportava como um pintor diante de uma tela em branco. Ainda levaria alguns minutos até que o juiz perdesse totalmente a consciência. E o homem de preto estava disposto a saborear cada um destes minutos.
Capítulo Um Sede do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoas)
— É verdade isso que as pessoas estão dizendo, Duval? – o policial militar gritava. Ele parecia completamente fora de controle. – Você está querendo trazer ele de volta pra cá? — Eu não tenho que te dar satisfação sobre que eu faço ou deixo de fazer, Edmundo. Eu sou seu chefe. É você quem faz isso pra mim. – o delegado Duval respondeu. Então, encheu o copo de café e começou a caminhar de volta para a sua sala. — Você não é meu chefe, delegado. – Edmundo respondeu. – E eu só estou tentando te fazer entender que a gente não precisa dele aqui! Deixe esse caso comigo que eu soluciono. Eu e a minha equipe! — Essa não é a sua função. Investigação é com a Civil. Sua função é fazer ronda e revistar vagabundo. Eu nem sei o que você está fazendo aqui, agora... — Olha, Duval... Você sabe que ele é doente. Se acaso voltar pra cá, as coisas podem ficar muito perigosas, tanto pra ele quanto pra você. — O que você quer dizer com isso? – Duval parou. – É uma ameaça? — É claro que não! Eu só estou dizendo... Você sabe que ele não pensa antes de agir. — E você pensa muito, não é? — Olha, Duval... — Vai à merda, Edmundo. A decisão já foi tomada. O Secretário de Segurança Pública quer prioridade nesse caso e pediu o melhor homem disponível. Ele vai voltar pra trabalhar com o Thomas. — Mas não precisa trazer ele! Esse tal de Thomas dá conta sozinho. — Você nem conhece ele. — Mas eu... — Chega, Edmundo. Foda-se se você não gosta dele. Ele vai voltar e eu estou cagando para a sua opinião. Agora me deixe em paz que eu tenho muita coisa pra fazer. A minha sala está uma bagunça. O delegado desviou do policial militar e entrou na sua sala.
***
53ª Delegacia da Polícia Civil
Pedro Rocha chegou à delegacia atrasado. Isso não era uma novidade para ninguém, mas naquele dia, foram quase duas horas de atraso. A secretária pediu que ele fosse falar diretamente com o delegado Pacheco, mas ele a ignorou totalmente. Foi até a máquina de café, encheu um copo descartável e desabou na sua mesa. Havia tantos papéis sobre ela que era difícil enxergá-lo do outro lado. Aquilo era suficiente para deixar qualquer investigador maluco. Ainda mais ele, que desde que havia entrado para a polícia, se especializara em investigações de campo. Não suportava passar os dias dentro daquela sala que cheirava a mofo e naftalina. Tudo começou por causa de um assalto a banco, quatro anos atrás. Rocha, como qualquer trabalhador de classe média que se preza, estava desfrutando de seu período de almoço na fila de uma agência bancária, tentando resolver os intermináveis problemas com sua conta. Depois de duas horas na fila, pediu para que alguém guardasse seu lugar e foi ao banheiro. Foi exatamente nessa hora que tudo aconteceu. Cinco homens armados, disfarçados de entregadores, entraram na agência e renderam os seguranças. Eles conheciam muito bem o lugar. Rocha avisou a polícia pelo celular e, em dez minutos, o prédio já estava cercado. A imprensa, como sempre, chegou junto da polícia, e o alvoroço tomou conta do lugar. Os assaltantes ficaram desesperados. Ameaçaram matar todos os reféns se a agência fosse invadida. As negociações pareciam não ir para lugar nenhum. E Rocha notou que tudo terminaria em tragédia. Depois de uma discussão com o negociador, um dos assaltantes se posicionou para atirar na cabeça de uma das reféns. Rocha sabia que se não agisse, muita gente acabaria morta. Ele atirou primeiro. Um tiroteio se iniciou e a polícia invadiu. No fim das contas, apenas um dos assaltantes conseguiu fugir, mas ele levou a quantia de 150 milhões. Dois bandidos e três reféns foram mortos, e os outros dois bandidos foram presos. Um saldo positivo, considerando que havia mais de cem pessoas na agência, entre clientes e funcionários. Mas a imprensa sensacionalista agiu rapidamente e, no dia seguinte, a manchete de todos os jornais dizia: “Em operação frustrada, policial mata três reféns ao intervir em assalto”.
As famílias das vítimas e até mesmo os reféns sobreviventes engoliram essa calúnia e deram diversas entrevistas a programas de TV e jornais, alegando que um policial é que havia atirado primeiro e iniciado toda aquela tragédia. Todo mundo se esqueceu do assaltante com a submetralhadora na cabeça da senhora de 70 anos pouco antes de Rocha intervir. A polícia não arcaria com toda aquela culpa. O detetive Rocha foi responsabilizado. Para evitar ainda mais especulações, ele foi retirado das ruas. Como prova de boa-fé, seu nome não foi divulgado na mídia e ele não foi levado a julgamento. As famílias das vítimas foram indenizadas e um memorial foi construído na frente da agência. Os dois bandidos presos foram condenados, mas menos de um ano depois, já estavam livres. Nem o assaltante que fugiu e tampouco o dinheiro foram encontrados algum dia. Então o tempo passou e tudo voltou ao normal. Exceto para Rocha, é claro, que teve negados todos os seus pedidos de voltar às ruas. Agora ele passava o tempo resolvendo intermináveis problemas internos, como digitalizações de provas antigas, arquivamentos de casos, registros de BOs, notificações e, nos piores dias, atendimento ao público. O emprego que sempre fizera com que ele sentisse orgulho de si, agora só trazia frustração. Mergulhou de cabeça na bebida. Sua vida se tornou uma montanha russa, na qual ficar um dia são era um grande mérito. A bebida quase fez com que ele fosse dispensado duas vezes, mas o delegado Pacheco, em respeito a todos os seus anos de dedicação à polícia, livrou sua barra. Isso, é claro, com a promessa de que se ele aprontasse novamente, seria sumariamente demitido. Os avisos entravam por uma orelha e saíam pela outra. Naquele ano, Rocha completava vinte e cinco anos de polícia. Passara mais tempo sendo policial do que não sendo. Sabia resolver casos complicados como ninguém e amava isso mais do que qualquer coisa. Ainda assim, estava pensando em desistir. Não só da polícia, como de tudo. Há tempos que perdera o gosto pela vida e só estava tentando tomar coragem antes de fazer algo realmente idiota, como meter uma bala cabeça. Ele puxou uma das pastas de cima da mesa e a abriu. As letras dançaram na sua frente e ele quase vomitou. O whisky ainda chutava seu cérebro como uma bola de futebol. Abriu a gaveta e tirou uma cartela com alguns comprimidos. Enfiou quatro na boca e mastigou. Bebeu um pouco de café. Pegou mais dois comprimidos e olhou para os lados para confirmar se havia alguém por perto. Abriu o casaco e retirou uma garrafinha de metal onde costumava transportar uma parte da sua dose diária de álcool. Mas a garrafa estava vazia. Contentou-se com um pouco mais de café. Retirou um par de óculos da gaveta e tentou ler as páginas da pasta. As letras ainda dançavam. — Você está um lixo, Rocha. – ele levantou a cabeça e viu o delegado Pacheco
se aproximando e sentando na cadeira do outro lado da sua mesa. – Eu pedi pra Sandra te passar um recado. Ela me disse que te passou. Você se lembra? — Aquela Sandra é uma vad… — Ela passou ou não? — Sim. — E por que você não foi à minha sala? — Eu tenho muito trabalho. — Claro que tem! Olha a sua mesa! Mas se você cumprisse os seus horários e chegasse na hora certa, não teria tanto trabalho acumulado, não é mesmo? — Foda-se. — Eu preciso te lembrar de que ainda sou seu superior? Rocha revirou os olhos. — Olha… Você só está aqui por que eu enfrento um leão por dia pra salvar a sua pele. Você sabe que todo mundo queria ver você no chão. Eu te respeito, Rocha. Reconheço tudo que você fez pela gente e sei que poderia ter feito muito mais se… — Se o quê? – Rocha gritou. Todos na sala pararam o que estavam fazendo para olhar para ele. – Se eu não tivesse cumprido com a minha obrigação e salvado aquela velha maldita naquele banco? Se a culpa de tudo não tivesse caído nas minhas costas? Se esses jornalistas de merda não tivessem… O delegado bateu a mão na mesa com fúria e ficou de pé. — Olha o jeito que você fala comigo, Rocha. Quando todo mundo tentou te foder, só eu e o Duval ficamos do seu lado. Eu te aceitei aqui como um amigo. Não vem querer subir em cima de mim agora não, porra. Eu sei que você passou por muita coisa. Todo mundo passa. Se quisesse uma vida fácil, virasse caixa de supermercado e não policial. Mas não adianta passar o resto da vida se lamentando pelos cantos e nem se afogando em cachaça. Dá pra sentir o seu cheiro lá da minha sala. Rocha abaixou a cabeça. — Olha… – o delegado se sentou novamente e abaixou o tom de voz. – Eu pedi para a Sandra te mandar pra minha sala por um único motivo: pra te demitir. Eu acho que você não deve mais ficar aqui e gostaria que entendesse isso como um favor. Rocha sorriu sarcasticamente. — Pegue seu casaco e venha comigo. — Podemos conversar aqui. — Não. Não podemos. A contragosto, Rocha seguiu o delegado Pacheco até a sua sala sob os olhares de desaprovação, susto e alívio dos demais policiais. Rocha sabia que, com exceção do próprio delegado, todos ali o odiavam. Provavelmente fariam uma festa agora que ele seria demitido.
Dentro da sala, o delegado foi direto para a cafeteira particular que trouxera de casa. Não gostava do café da copeira, mas não tinha coragem de dizer isso a ela. Encheu dois copos descartáveis e se sentou. Entregou um dos copos para Rocha e pediu que ele também se sentasse. — Como eu estava dizendo, você seria demitido hoje. — Seria? — Seria. Não vai mais. — Olha, delegado, eu agradeço tudo que você tem feito por mim, mas preciso ser sincero. Eu quero ser demitido. Não aguento mais essa merda de serviço. Não nasci para ficar o dia inteiro dentro de uma sala atrás de uma mesa. Isso é serviço para gente como você. — Vou tentar não tomar isso como uma ofensa… — Pense como quiser. — O fato é o seguinte: eu não mudei de ideia. Por mim, você será demitido ainda hoje. Mas, há cinco minutos o meu telefone tocou. Era o seu amigo, o delegado Duval, da DHPP. Ele queria conversar comigo sobre você. — Como? — Ele não me explicou muita coisa, mas disse para eu te mandar para lá imediatamente. Alguma coisa aconteceu. Seu nome foi citado. — Meu nome foi citado? Como assim? O que aconteceu? — Eu já disse que não sei muita coisa. Um DVD foi mandado para ele hoje de manhã. Pelo que sei, todos os jornais da cidade também receberam. Provavelmente, o conteúdo deste DVD logo estará na internet e em todos os jornais. Parece que eles precisam que você… — Eu sou suspeito de alguma coisa, delegado? — Até onde eu sei, não… – o delegado foi surpreendido com a pergunta. – Mas… Você fez alguma coisa que possa ter te tornado suspeito? — Até onde eu sei, também não. Vai depender do quê. Não sou um santo. — Eu também não, Rocha. Ninguém é santo. Mas me mantenho dentro da lei. Espero que você também não seja um criminoso. — Eu me comporto bem, papai. — Ora… Eu vou mandar alguém pegar um carro e te levar para a DHPP agora. Seja lá o que for que esteja nesse DVD, é importante que você já esteja lá quando os jornais divulgarem. Rocha se levantou. — Espera… O que é isso aí na sua camisa? — O quê? Onde? — Na manga. É sangue?
Rocha olhou para a manga da camisa comprida por baixo do casaco e viu as machas de sangue. Pequenas e quase imperceptíveis para a maioria das pessoas, mas grandes o suficiente para chamar a atenção de um delegado. — Ah, sim… Isso aqui foi… Mais cedo. Quando eu fui fazer meu café da manhã. Cortei a mão com a faca. — Entendi… — Posso ir? — Pode sim. Procure pelo delegado Duval. Rocha saiu da sala e foi direto para sua mesa. Apanhou a arma e seu distintivo na última gaveta. Há tempos que os dois estavam lá, cobertos de poeira e totalmente sem uso. Ele não sabia bem o que o esperava, mas não estava muito confiante. Será que alguém havia descoberto algo sobre o seu compromisso daquela noite? De qualquer forma, não tinha feito nada além de justiça. Ao menos era isso que pensava.
Capítulo Dois O delegado Duval Ferreira era o que se podia chamar de um homem honesto. Em seus 33 anos de polícia, passou por praticamente todos os setores existentes antes de cursar a faculdade de Direito e se tornar delegado. Veio de baixo e lutou muito para conquistar seu lugar ao sol. Era incorruptível e, entre todas as suas qualidades, tinha certeza de que essa era a maior. Preferia uma bala na cabeça a se envolver em qualquer coisa que fosse contra a lei. Orgulhava-se disso. Quando ainda era investigador, chegou a prender o seu próprio parceiro só por suspeitar que ele estava envolvido em um esquema de milícias e grupos de execução, o que acabou se provando verdade algum tempo depois. Com o tempo, passou a ser chamado pelos outros policiais – com certa ironia, é claro – de “O Paladino Dourado”, porque se considerava o último dos bons policiais. Talvez fosse mesmo, na verdade. Era daquele tipo de homem difícil de se achar nos dias de hoje. Viera de uma família pobre, mas nunca se vitimou por isso. Jamais se envolveu com qualquer atividade ilícita durante toda a sua vida, mesmo na época em que sequer tinha dinheiro para almoçar. Possuía uma visão muito definida quando o assunto era a ética e a moralidade. Foi isso que o fez se sentir tão culpado no caso do investigador Pedro Rocha. Duval sabia que Rocha não tinha feito nada além do que seu trabalho exigia: impediu que o assaltante assassinasse aquela mulher. Seus tiros foram precisos e a balística provou que ele não atingiu nenhum refém. Mas, ainda assim, foi condenado por todos, tanto pela opinião pública, quanto pela própria polícia. No fim das contas, os verdadeiros criminosos saíram ilesos, e Rocha, ainda que de forma anônima, recebeu todo o peso da culpa nas costas. Se não tivesse agido, os assaltantes poderiam ter matado ainda mais gente, e ele seria massacrado da mesma forma, ou até pior. As pessoas são duras quando o assunto é a ação da polícia. Duval não conseguia olhar diretamente para o espelho desde então. Sentia-se sujo. Ele tentou argumentar com seus superiores quando a ordem de demitir o investigador Rocha chegou. Falou com todos, do prefeito ao governador, mas tudo que conseguiu foi o rebaixamento. Já era melhor que nada. Ao menos ele não seria demitido. Rocha foi tirado das ruas e enviado para outra DP, para trabalhar com a área burocrática dos crimes. Aos poucos, todos foram se esquecendo dele. Até aquela manhã. Policiais sempre são recomendados a não seguir uma rotina muito fixa para evitar emboscadas, mas Duval não conseguia fugir da sua. Todos os dias, levava sua
esposa para a clínica onde ela trabalhava por volta das 6:30h da manhã. De lá, seguia para a escola onde deixava suas duas filhas. Depois, passava em uma padaria, a mesma nos últimos trinta anos, e tomava uma xícara de café com dois pães-de-queijo. Chegava pontualmente às 7:30h na delegacia e tomava mais uma xícara de café antes de ir para sua sala. Mas, naquela manhã, sua rotina foi quebrada logo cedo. Pela primeira vez em sua vida, dormiu demais e perdeu a hora. Acordou às 7:15h com a ligação de sua esposa, avisando que ela já havia ido trabalhar e levado as crianças para a escola. Pediu que ele fosse para a delegacia de táxi. Uma sensação estranha tomou conta do se corpo. Não que tivesse algum tipo de TOC, mas era levemente supersticioso, e saber que havia quebrado a rotina diária o fez pensar que algo ruim iria acontecer. Apressouse o máximo que pode, e quando chegou à DP, seguiu direto para sua sala. A sensação foi confirmada. Sua mesa estava revirada. Todos os papéis estavam jogados no chão, assim como seus quadros de família e troféus de judô das suas filhas, que haviam sido retirados das paredes e espalhados pelo cômodo. Ninguém viu nada. Sua sala ficava trancada e ninguém tinha acesso a ela. A porta não estava arrombada. As câmeras de segurança não mostravam nada. Porém, o mais estranho de tudo era o envelope pardo destinado a ele que fora deixado sobre sua mesa. Dentro do envelope havia um DVD e um bilhete com a frase: “A Justiça de Deus nunca falha”. Como se o bilhete e a invasão da sala já não fossem chocantes por si só, o conteúdo do DVD se mostrou ainda pior. Muito pior. O Delegado Duval terminava de pendurar o último quadro na parede quando Bete, a sua secretária, entrou na sala. Ele sempre sabia que ela estava vindo, pois o cheiro de amêndoas de sua colônia chegava antes. Um cheiro bom. Sensual. Aliado as suas curvas, poderia enlouquecer até o mais santo dos homens. — O senhor Rocha acabou de chegar. – ela disse. — Ótimo. Traga-o aqui. Enquanto ela saía, o delegado olhou novamente para sua sala e conferiu se estava tudo no lugar. Mas não deveria tê-la arrumado. A perícia deveria ter analisado tudo antes, mas ele sabia que aquilo demandava muita burocracia e muitos problemas. Arrumou tudo sozinho e só relatou a entrega do envelope. Quem quer que tenha invadido a sala, a bagunçou unicamente para despistar a investigação ou para irritá-lo. Nada havia desaparecido. Mas agora estava tudo certo. Tudo estava em seu lugar. Sentou-se e aguardou a chegada de Rocha. Não levou nem mesmo um minuto até que ele batesse na porta. — Entre. — Bom dia, delegado.
— Bom dia, Rocha. É bom te ver! Sente-se. — Confesso que fiquei surpreso quando me falaram de você, hoje pela manhã, delegado. Há anos que não ouço seu nome e nem sei por onde anda. Achei que tivesse entrado para a política. Ouvi dizer que ia se candidatar a vereador. — Eu nunca daria certo na política. Desisti das eleições antes mesmo da votação. A polícia é minha vida e acho que vou acabar morrendo aqui mesmo. Essa é minha sina. — Cada um tem o que merece, não é mesmo? – Rocha disse. Duval engoliu a seco. — Sei que precisamos botar a conversa em dia, Rocha, mas podemos fazer isso em outro momento. Tenho um assunto sério para falar com você. Uma coisa aconteceu… — É, tô sabendo. Meu nome foi citado e tudo mais. Foi isso que me disseram lá no meu maravilhoso emprego. Lembra? Aquele que você arranjou pra mim. — Era aquilo ou nada, seu mal agradecido de merda. — Eu preferia o nada. — Então por que não se demitiu? — Eu não te daria esse prazer. — Eu não estou ouvindo isso… Eu não estou te segurando lá. Você ainda pode se demitir, se é o que quer. Garanto que ninguém vai sentir a sua falta. — É assim que… — Olha, é melhor você calar a boca. Se outra pessoa estivesse no meu lugar, você já estaria preso. Eu resolvi te dar o benefício da dúvida. Não faça com que eu me arrependa. — Certo. Por que eu estou aqui, delegado? — Hoje pela manhã, alguém invadiu minha sala. Minhas coisas foram reviradas, mas nada foi roubado. Pelo contrário. Algo foi deixado aqui. Esse envelope. Ele empurrou o envelope pardo sobre a mesa, fazendo-o deslizar até as mãos de Rocha. — Dentro havia um bilhete e um DVD. — E? — Assista – o delegado Duval pegou um controle remoto e o apontou para um aparelho de TV preso na parede à sua esquerda. Havia um homem amarrado na cama e outro homem de preto, que parecia torturá-lo com objetos cortantes. Também havia uma outra pessoa ao lado do homem amarrado. Uma mulher, provavelmente, e ela não se mexia. Talvez estivesse morta. Rocha não pronunciou uma única palavra enquanto assistia às imagens. Por fim, quando o homem de preto terminou seu serviço macabro, caminhou até a câmera e a pegou. Foi
até o corpo e ajustou o foco para que o rosto do homem fosse facilmente reconhecido. Só então sua voz foi ouvida. — Gosta do que vê, Rocha? A culpa é toda sua. Isso é só o início. A vingança é extremamente saborosa e eu estou aproveitando cada detalhe. A sua vez também vai chegar. Até logo, Pedro Rocha. Não era possível reconhecer a voz do homem. Provavelmente o vídeo havia sido editado posteriormente para evitar o reconhecimento da mesma. Mas a mensagem era clara como a água. Alguém estava muito irritado e queria vingança. — Mas que merda é essa? – disse Rocha, quando o vídeo terminou. — Esperava que você me dissesse. Parece que ele falou com você. — Isso é loucura. Eu não sou o único Pedro Rocha nessa cidade. Como posso estar envolvido nisso? — Você sabe quem é aquele homem que ele matou? — É claro que não. Deveria? — Sim. É o juiz Maurício Medeiros. Ele esteve envolvido em praticamente todos os casos de corrupção e lavagem de dinheiro que se têm notícia na última década. Mas era um homem influente e muito esperto. Nunca conseguimos acusá-lo de nada. — E daí? — Ele absolveu aqueles assaltantes que roubaram o banco quatro anos atrás. Achei que você se lembrasse. — Eu não fui no julgamento. Estava passando umas férias na cadeia. Você se lembra disso, né? Quando os milicos invadiram, pensaram que eu também era assaltante e me levaram preso. Uns otários falaram que eu tinha começado o tiroteio. — É, eu me lembro… — Ainda tem café aqui? — Ah… Claro. – o delegado chamou sua secretária pelo telefone. – Bete, traga duas xícaras de café, por favor. Obrigado. — Obrigado, delegado. Eu preciso de café toda vez que fico nervoso. — Entendo. Bom, nós achamos que esse crime tem alguma relação com aquele incidente no banco. Talvez seja algum familiar das vítimas ou um justiceiro revoltado. Vai saber... — É, e pelo jeito eu sou o próximo. — A imprensa publicou muita coisa sobre você, mesmo não sabendo o seu nome. Muita coisa vazou nessa investigação. — E quando não vaza? — Tem mais uma coisa… A secretária entrou na sala com uma bandeja. Sobre ela, havia uma garrafa térmica, um pote de açúcar e duas xícaras. Ela deixou tudo sobre a mesa e saiu
imediatamente. — Como eu ia dizendo… – o delegado se serviu e Rocha o acompanhou. Tem mais uma coisa. Nós encontramos a cena do crime há pouco tempo. Era a própria casa dele. Sua esposa está em viagem pela Europa e, ao que percebemos, ele também se aproveitou das férias dela. Havia uma prostituta morta com ele. Mas a coisa ficou ainda mais complicada quando chegamos lá. Veja. Ele retirou da gaveta uma pasta repleta de arquivos e a colocou sobre a mesa. Abriu, retirou algumas fotos e as passou para Rocha. — Foram tiradas na cena do crime. Rocha não acreditava no que estava vendo. Havia sangue em todos os lugares. Nas paredes, nos móveis, na cama, nas cortinas. Mas o pior era o que haviam feito com o juiz. — Mas que merda… — Ele foi pregado na parede. – o delegado se serviu de mais uma xícara de café. – Já estava morto quando fizeram isso, mas ainda assim é pavoroso. Ele foi pregado como Jesus, com os braços abertos e as pernas juntas, só que de ponta cabeça. Se eu tivesse que apostar, diria que isso é serviço de alguma seita sinistra ou de algum culto demoníaco. Eu mandei as fotos para os peritos, mas até agora não achamos nada relevante. Olhe essas. Ele passou mais algumas fotos para Rocha. Nessas, havia apenas detalhes do corpo. — Ele escreveu PEDRO ROCHA com um bisturi em todo o corpo do juiz. As feridas são profundas, mas também foram feitas depois da morte. Rocha estava boquiaberto e isso não era algo que acontecia com frequência. — Rocha... – Duval olhou para o investigador com um misto de misericórdia e dúvida. Mediu as palavras para que elas soassem exatamente como deveriam. – Seja lá quem tenha feito isso, tem muito ódio de você. — De mim não. Eu já disse que pode ser qualquer um. — Você sabe que é pra você. Tem milhares de inimigos. — E a cada dia que passa, descubro mais um escondido nas sombras. — Eu preciso te perguntar, Rocha… – os sentimentos de Duval guerreavam entre si, mas ele escondia isso muito bem. – Onde esteve ontem à noite, entre as 2 e 6 da manhã? — Era só o que faltava! Se quer saber, eu estava em casa, delegado. Fazendo exercícios físicos na cama. — Tem alguém que pode confirmar isso? — É claro. — Quem?
— Uma… Uma amiga. — Sei. — Eu virei suspeito agora? — Você, mais do que ninguém, sabe que eu tenho que perguntar isso. — Era só o que me faltava agora... – os olhos de Rocha transbordavam ira. — Eu preciso falar com essa sua amiga, Rocha. — Nem fodendo. — Isso é importante, seu idiota! – Duval extrapolou os limites da sua voz. Sentiu a garganta coçar e, depois de pigarrear, voltou a falar normalmente. – Pode ter alguém à solta na cidade querendo te matar. — Muito obrigado pelo aviso, mas não preciso disso. Meu pai também tentou me matar quando eu tinha doze anos e ele está na cadeira de rodas até hoje. Mas, já que insiste, a partir de hoje vou olhar para os dois lados da próxima vez que for atravessar a rua. E, se alguém tentar me crucificar na parede, juro que te aviso. Mas agora, se não se importa, eu preciso voltar para o meu emprego dos sonhos. — Não, Rocha, você não vai voltar para o seu emprego. Você vai ficar aqui na DHPP. — Estou sendo preso? — Claro que não. — E então? — Você está de volta. — Como? — Você está de volta. Vai voltar a trabalhar aqui. — Você está de brincadeira? — Eu tenho tempo para brincadeira? Conversei com o governador. Acredito que ele tenha entendido a gravidade desse caso. Solicitei o seu retorno para a minha equipe e depois de muitas recomendações, ele finalmente concordou. — Eu… Eu não sei o que dizer. – Rocha estava sem palavras. Ele perdeu a conta das noites nas quais passou sonhando com o retorno às investigações, mas os anos se passaram e a esperança foi embora. Não acreditava que voltaria. Agora, tudo estava acontecendo tão repentinamente que não sabia nem o que pensar. — Diga “muito obrigado, delegado”. – Duval disse. – Eu sei que é o máximo que pode fazer. — Mas, ainda assim, eu não entendo... – Rocha estava explodindo de excitação e, por isso, começou a desconfiar de que havia algo errado com aquela ótima notícia. – Por quê? Quero dizer, por que logo agora? — Seu amigo mascarado contribuiu muito para isso. — Claro.
— Olha… Eu sei que você ficou com raiva de mim quando tudo aconteceu, mas eu fiquei do seu lado. Passei meses tentando te trazer de volta. Mas eles disseram não. Eu quase me matei para manter sua identidade em sigilo. Os repórteres teriam arrancado sua pele se descobrissem o seu nome. E pode apostar que eles farão isso agora. Eu acho que esse crime tem alguma coisa a ver com aquele dia, no banco. É uma vingança, como o próprio assassino do vídeo disse. E quando os repórteres ligarem os fatos – e pode apostar que mais cedo ou mais tarde eles ligarão – eu quero que você esteja aqui, conosco, a salvo de tudo isso. — Que bondade a sua, Madre Tereza... — Mas não é só isso. Eu também preciso de você. Quero que ajude na investigação. O criminoso parece ser alguém que conhece os fatos muito de perto. Como eu já disse, talvez seja um sobrevivente ou um familiar de algum dos reféns mortos. Ninguém conhece mais esse caso do que você. — Você acredita mesmo que não fui eu, delegado? — Sim. – a voz de Duval era firme e decidida. Não havia dúvidas em suas palavras. – Eu te conheço há vinte anos, Rocha. Sei que não seria capaz de algo assim. Você é um idiota, mas não é um assassino. Pode apostar que todos aqui quiseram te prender quando a fita chegou, mas eu não deixei. Confio em você. — Olha… Quero dizer… Você sabe, né? — Sei. Não precisa dizer nada. — Obrigado. — Eu já disse… Não precisa dizer nada. Rocha abaixou a cabeça. — Estou indo então. – o investigador disse. — Só um minuto. Tem mais uma coisa importante que você precisa saber. – Duval disse, se servindo de mais um pouco de café. Ele sabia que a próxima notícia seria a pior que Rocha receberia naquele dia, por isso pensava na melhor forma de dizer. – E eu já adianto que você não vai gostar nem um pouco. “Eu sabia que tinha alguma coisa errada”. Rocha pensou. — Fala. – Ele disse. — Você também sabe que existe muita burocracia na nossa profissão. – Duval começou, depois de coçar a testa lentamente. – Mais do que ninguém, você sabe disso. E é claro que não seria diferente dessa vez. — Vai direto ao ponto, Duval. — Existe uma condição incontestável para a sua volta... – o delegado disse. — Que condição? — Bem... Algumas pessoas acham que você não está completamente apto para conduzir uma investigação. Não digo fisicamente... Eles têm dúvida sobre a sua
capacidade de discernir sobre o que é certo e o que é errado. — Foda-se o que eles acham. – Rocha disse. — Eu concordaria com você, mas, infelizmente não posso ignorar o Secretário de Segurança Pública. Eu tive que ceder às exigências dele. — E que merda de exigência são essas? — Você vai ter que passar por uma avaliação. Só depois disso eu vou poder te efetivar de volta nas investigações. — Isso é brincadeira, né? – Rocha disse. Seu rosto escureceu, como se uma sombra tivesse invadido a sala. O delegado, que conhecia aquela expressão melhor do que gostaria, já estava preparado para o que viria a partir dali. – Vou ter que fazer uma prova escrita? — É um pouco pior que isso. O Secretário de Segurança exigiu que você passe por uma avaliação com um psicólogo para garantir que... — Psicólogo? – o investigador gritou. — Um psicólogo da Policia Civil. — Então vocês acham que eu sou louco? É isso? – Rocha se levantou e caminhou de um lado para o outro pela sala. Ele odiava muitas coisas, mas psicólogos deveriam estar no topo da lista. – Por que você não me mandou pro Haiti ou pro Iraque, Duval? Ia ser melhor. Eu sabia que tinha alguma merda nisso tudo. Estava bom demais... — Eu não acho que você seja louco, Rocha. – o delegado disse. – Se caso achasse, você não estaria aqui, agora. Mas o Secretário não te conhece tão bem quanto eu. Você vai ter que se encontrar com um psicólogo forense nos próximos dias e ele fará uma avaliação do seu estado emocional. Só quando ele der o aval é que você será de fato efetivado novamente na DHPP. Mas você já vai assumir seu cargo agora, sem problema algum. Isso é só burocracia. — Puta que pariu, Duval! – Rocha estava eufórico. — Eu não posso fazer nada, Rocha. — Eu não sou maluco! Não preciso de um médico de malucos. — Não é esse o caso – o delegado disse, esfregando os olhos. – E, se não há nada de errado com você, então não precisa se preocupar com nada. Só precisa ir nas consultas e conversar com o médico. Simples como ir num dentista. — Eu odeio dentistas! — Então não se esqueça de dizer isso ao psicólogo. Pessoas normais odeiam dentistas. Rocha parou e olhou para o delegado, que tentava esboçar um sorriso. O investigador bufou e passou a mão nos cabelos. Pensou na garrafa de whisky no casaco, mas logo se lembrou de que ela estava vazia.
— Pelo amor de Deus, tente ficar agradecido, Rocha. – Duval disse. — Sua primeira consulta é na segunda-feira, às dez horas da manhã. Tente não se atrasar, por favor. Rocha não respondeu. — Bom... – Duval disse. – Agora que estamos acertados, só falta te dizer mais uma coisa. — Puta que pariu! – Rocha ergueu as mãos, irritado. – O que é agora? Não me diga que tem mais alguma condição? — Bem-vindo de volta, meu amigo.
Capítulo Três Pedro Rocha seguia o delegado Duval pelos corredores da delegacia. Ele olhava para cada parede, cada sala e cada mesa daquele lugar, com se não entrasse ali há um século. Tudo era nostálgico, até mesmo o som irritante dos ventiladores de teto nas salas onde o ar-condicionado não funcionava. Ou seja: quase todas. Ele sabia para onde estava indo. Para os fundos, ou para o submundo, como os investigadores costumavam dizer. Que eram as salas nas quais eles se reuniam e as investigações eram feitas. As pessoas com quem cruzava no caminho sempre tinham a mesma expressão. Espanto. Alguns sorriam sem graça e cumprimentavam desajeitados, mas a maioria só conseguia esboçar sussurros de interrogação. Ninguém esperava que ele fosse voltar a trabalhar com o DHPP algum dia e os que suspeitavam que aquela volta era definitiva, aparentemente, não queriam vê-lo por ali novamente. — Mas olha quem está aqui! Pedro Rocha! – um homem parou diante deles, impedindo que continuassem o caminho. Era um policial militar. Embora seus cabelos brancos e seu bigode desajeitado fizessem com que ele aparentasse ser muito mais velho, o cabo Edmundo Varini era poucos anos mais novo do que Duval. Ele estava na polícia há muito tempo e nunca havia se entendido com Rocha. Era por isso que o investigador não conseguia disfarçar o desconforto ao vê-lo ali. Na verdade, nem queria disfarçar. Edmundo sempre foi envolvido com esquemas de corrupção que todos conheciam, mas ninguém conseguia provar. A última esperança de Rocha era que o tempo cumprisse seu papel. O militar estava ficando velho, e pessoas velhas não duram no mundo do crime. Logo ele seria descartado pelos próprios cúmplices. — Edmundo! Eu não esperava te ver por aqui ainda. Você ainda aguenta trabalhar sem ficar parando de cinco em cinco minutos pra mijar? — Eu ainda aguento muita coisa, Rocha. Fiquei sabendo que você voltaria e quis te dar as boas-vindas. Eu sei que você deve ter pensado muito em mim nesse tempo que ficou fora. — Jamais! – Rocha respondeu. – Minha avó tinha um ditado que eu respeito muito: “Não pense no diabo que ele aparece”. — Já ouvi também. O problema é quando ele aparece em um beco escuro, sem ninguém pra te ouvir gritar. — Isso não é um problema. O meu santo é muito forte. – Rocha deu um tapinha no coldre enquanto falava. – Ainda mais quando o diabo já é um velho carcomido.
— Olha, seu... — Já deu, senhoras. – Duval decidiu intervir. Aquilo já tinha ido longe demais. – Temos muito trabalho pra fazer. A gente se vê as cinco, Edmundo. E você, Rocha, vem comigo. Por alguns segundos, o investigador ainda ficou parado, encarando o policial militar como se eles fossem dois búfalos prestes a duelar até a morte. Finalmente, desviou do oponente e seguiu o delegado pelo corredor. Uma coisa era certa: aquela discussão não havia chegado ao fim. Era apenas a calmaria antes da tempestade. Duval e Rocha pararam em frente a uma porta na qual havia uma folha de papel sulfite colada, com letras escritas com um marcador de texto vermelho: Investigador Thomas Moretto Duval bateu na porta e entrou, antes mesmo que alguém lá dentro pudesse responder o chamado. Rocha o seguiu. Na sala havia um homem sentado em uma mesa, quase sendo encoberto por papéis e caixas. Rocha achou a cena familiar. Era jovem, não deveria ter muito mais do que vinte anos, mas a primeira coisa que Rocha notou foram suas olheiras. Ele parecia não dormir há dias. “Um típico investigador”. Rocha pensou. — Como aquela linda placa na porta ali fora diz, este é Thomas Moretto. Ele é novo aqui no departamento. Veio algum tempo depois que você saiu, mas já é um de nossos melhores homens. Thomas, este é Pedro Rocha, seu novo parceiro. — Parceiro? – disse Rocha. – Como assim? Você sabe que eu não trabalho com parceiro. Não gosto desse esquema de filme americano não… — Agora você trabalha, Rocha. Políticas novas. O trabalho flui melhor. Além disso, o caso é do Thomas. Você está aqui para auxiliá-lo. — Chefe… Eu não sei se esta é uma boa decisão. – Thomas disse. Rocha o observava atentamente, tentando entender sua forma de pensar. Embora não compreendesse o motivo, começou a acreditar que ele poderia se tornar um bom policial. Seguindo os padrões de beleza convencionais, Thomas poderia ser considerado um homem mais interessante do que realmente bonito. Era moreno, bronzeado pelo sol incessante da capital paulista, e tinha leves traços latinos, talvez mexicanos, embora seu sobrenome denunciasse uma possível origem ítalo-brasileira. Falava com constância e firmeza, de modo que, se quisesse, poderia chamar a atenção para si. — Eu nunca trabalhei assim, com outro policial na minha cola e... — Você não sabe de nada, Thomas. A decisão está tomada. Os dois vão trabalhar juntos nesse caso. E vão solucioná-lo o quanto antes, eu espero. Tomem um
café juntos. Conversem e logo serão grandes amigos. — Até parece. – Thomas resmungou. — Agora eu preciso ir. Preciso saber se a gravação já foi divulgada na internet. Vou ter um dia de cão hoje. Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, ele girou nos calcanhares e saiu pela porta, fechando-a com um estrondo. Rocha e Thomas ficaram lá por alguns segundos, de pé, se encarando como dois cães prestes a brigar. Mas logo a razão tomou os pensamentos de Rocha. Ele recebera um grande presente. Estava de volta ao DHPP, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, algo que achava impossível até aquela manhã. Isso, por si só, já compensava qualquer coisa. — Muito prazer. – Rocha estendeu o braço em direção a Thomas. Não sabia se seria correspondido, mas a própria polícia o havia ensinado que, para realizar um bom trabalho, às vezes é necessário dar o braço a torcer. Era exatamente isso que ele estava fazendo naquele momento. — O prazer é meu… – Thomas foi surpreendido por aquele ato, mas resolveu entrar no jogo. Afinal, a partir de agora, os dois passariam um bom tempo juntos. — Acho melhor começarmos do início, você não concorda? — Claro. — Então me responda: você suspeita de mim? — Como? — Ora, vamos lá! O Duval falou que todo mundo que viu o vídeo suspeitou de mim. Você acha que fui eu quem matou aquele juiz? — Sendo bem sincero, não acho que tenha sido você. — Ah, obrigado. — Não agradeça. Não era você na filmagem. O homem era mais alto, mais magro e, provavelmente, mais jovem. Ele ficou mais de uma hora ajoelhado ao lado da cama. Sem ofensas, meu amigo, mas não acredito que seus joelhos sejam tão resistentes assim. Mas nada te impede de estar por trás de tudo. Seria um plano muito bem arquitetado. Você começa a matar as pessoas envolvidas no incidente do banco e deixa mensagens citando seu próprio nome. Assim, a polícia te chama de volta para ajudar nas investigações. Dois problemas são resolvidos ao mesmo tempo. Você estaria de volta ao DHPP e também teria sua vingança contra o homem que inocentou os criminosos que arruinaram sua vida. Ao mesmo tempo, com você na investigação, nós iríamos cada vez mais para trás, pois você sempre daria um jeito de nos fazer recuar, com pistas falsas e coisas do tipo. Seria um crime perfeito. — Nossa. Estou impressionado. E quem seria o homem de preto? — Pode ser qualquer um. Até mesmo um parente de uma das vítimas que você conseguiu convencer a participar do plano, para que ele tivesse sua pequena vingança.
Ou talvez seja só um bandidinho de quinta que te deve algum favor. — Para as famílias das vítimas, eu é que sou o bandido. Nem um deles faria algo assim comigo ou para mim. — Sim, eu concordo. Por isso, se eu tivesse que apostar, diria que ele é só um bandidinho de quinta mesmo. E se esse fosse o caso, você o mataria logo em seguida e desaparecia com o corpo. Nunca saberíamos de nada. — Certamente eu faria isso. Um silêncio profundo tomou conta da sala por alguns instantes. — Certo, eu só estou brincando! – Thomas gargalhou. — Claro que está. Caso contrário, eu já estaria preso, não é mesmo? — Sem dúvidas. — É uma ótima teoria… Me desculpe, mas qual é o seu nome mesmo? — Thomas. — Thomas. Era o nome do meu avô. É uma ótima teoria, Thomas. Pode ter certeza de que se jogasse ela na mídia, todo mundo acreditava. E é exatamente aí que está o furo. Eu não ligo para esse juiz e nem para os assaltantes. Por mim, eles podem viver a vida deles, desde que longe do meu espaço. Se eu fosse me vingar, seria de outras pessoas. Seria dos malditos repórteres que fizeram a cabeça de todo mundo e me transformaram no culpado. Ah, sim. Esses eu mataria com prazer. — Sério? Isso complica as coisas. — Como assim? — Venha comigo, investigador Rocha… Vamos visitar a cena do crime. Thomas dirigia a viatura. Se fosse em outros tempos, isso jamais aconteceria. Rocha não gostava de andar no banco do carona. Desde que aprendera a dirigir, não confiava em mais ninguém guiando o carro em que ele estava, independente de quem fosse. Isso gerava muitos problemas quando ele tinha que sair acompanhado nas investigações. Mas o tempo passa e as coisas mudam. Quando foi retirado do Departamento de Homicídios, o dinheiro ficou curto e ele teve que vender seu carro. Passou a andar de ônibus e de metrô todos os dias e acabou se acostumando a ser transportado ao invés de transportar. — Deve ter sido bem difícil para você quando tudo aconteceu, não é mesmo? – Thomas disse, depois de alguns minutos de silêncio. – Os outros investigadores costumavam dizer que você era uma das pessoas mais dedicadas ao trabalho que eles já viram. Eu fiquei sabendo que você nunca deixou de resolver um único caso. — Nem tudo é verdade. Eu perdi um caso uma vez… Tentei de todas as formas, mas não consegui resolver.
— Um caso? Só um? — Só um. — Isso é incrível. – Thomas disse. Ele parecia bem impressionado com o que ouvira. – Eu já vi investigadores com décadas de experiência que nunca conseguiram solucionar nem mesmo um único caso por completo. — Em toda profissão tem gente merda. Na polícia não seria diferente. Thomas gargalhou. — Você está certo! – ele tirou um maço de cigarros do bolso e colocou um na boca. Ofereceu outro a Rocha, que aceitou. Acendeu o seu com um zippo e depois o passou para Rocha. – Mas me diz… Qual foi o caso que você não conseguiu resolver? — Já faz uns quinze anos. Eu era mais jovem, mais imaturo e não sabia nada do mundo. Era um verdadeiro idiota. – Rocha acendeu o cigarro e devolveu o zippo para Thomas. – Igual a você, hoje em dia. — Ah, sim. Muito obrigado. — Uma família inteira foi assassinada no dia 31 de dezembro. Eles estavam fazendo uma pequena reunião com alguns parentes. Tudo como manda o regulamento, com todos vestindo branco, comendo lentilhas e tomando champanhe. Quando os fogos começaram, os cinco caíram mortos. A mãe, o pai, os dois filhos e a filha. Ao mesmo tempo, na frente de todo mundo. Não havia sinal de armas de fogo e nem de armas brancas. Eles também não foram envenenados, pois todos haviam comido e bebido a mesma coisa e ninguém mais na festa morreu ou teve algum tipo de intoxicação. Eles não tinham inimigos, nem doenças, nem dívidas. — Talvez tenham morrido de susto na hora em que a queima de fogos começou. – Thomas disse, com um sorriso. — É loucura, mas até mesmo essa possibilidade eu considerei. Só que aquela festa de fim de ano era tradicional. Não era a primeira que eles fazia, por isso, já estavam bem acostumados com os fogos. — Mas o que você conseguiu descobrir? — Eu descobri muita coisa, mas até hoje não sei o que era verdade e o que era mentira. Segundo relatos, o pai havia brigado com o jardineiro alguns dias antes do ocorrido. Parece que o inseticida que o cara usou no jardim era muito forte e acabou matando algumas plantas. O pai se queixou e eles caíram na porrada. Nós o interrogamos e até chegamos a prender ele por alguns dias, mas, como a autópsia não mostrou nenhum tipo de envenenamento por inseticida ou qualquer outra substância comum ao jardineiro, tivemos que deixar ele ir. A filha também havia se envolvido com um maconheiro de merda que vendia drogas na escola. Parece que ele tinha quebrado a cara dela uma vez, quando achou que estava sendo chifrado. Eu o interroguei, mas só pude constatar que ele era um idiota. Não conseguiria bolar algo tão complicado assim
nem que a sua vida dependesse disso. — Sei como é. — O último suspeito da lista era um professor universitário de química. Walmir, Wilson, Walter... Não me lembro mais do nome do cara. Parece que ele e a mãe tinham um caso, e um dos filhos dela, que era aluno dele, descobriu. O moleque começou a chantagear o professor e a mãe, exigindo dinheiro e boas notas para não espalhar a notícia. — Ele fez isso com a própria mãe? — A mãe fez muito pior com ele. Estava metendo um par de chifres na cabeça do pai dele. O moleque deve ter ficado revoltado. — Não acredito que justifique. — Não sei… Mas o fato é o seguinte. No dia das mortes, tanto o jardineiro quanto o maconheiro e o professor estavam na festa. Eu não tenho nenhuma dúvida de que foi um deles. Todos tinham um motivo e a oportunidade pra fazer aquilo. Mas até hoje eu não sei quem fez e muito menos como fez. Um dia eu vou descobrir. Tenho certeza absoluta disso. — Boa sorte para você. Na minha opinião, este é um típico caso impossível de ser solucionado. – Thomas disse. – Você sabe como é. Acontece, às vezes. — Todos os casos são impossíveis de ser solucionados. Até que alguém vá lá e solucione. É simples assim, garoto. — Se você diz… Bem, estamos chegando. É naquele prédio ali. O mais alto. Ele morava no 29º andar. Parece que chegou em casa às 22:47h e subiu direto para o quarto. Exatamente às 4:00h, as câmeras de segurança do prédio foram desligadas, mas as câmeras externas do prédio do outro lado da rua mostram o porteiro liberando a entrada para uma mulher. — Por que as câmeras foram desligadas? — Segundo o síndico, foi uma pane no sistema. Mas é óbvio que tem alguma coisa errada nessa explicação. — E essa mulher que o porteiro liberou? É a mesma que acharam na cena do crime? — Exatamente. Ela era prostituta. — E existe alguma chance dessa prostituta estar envolvida no crime? — Creio que não. Ela só estava no lugar errado e na hora errada. Ela teve a garganta cortada, mas ele não fez mais nada com ela. Simplesmente a deixou jogada na cama. Thomas estacionou a viatura em frente ao prédio. Havia mais carros da polícia lá, além de uma dezena carros de emissoras de TV e uma infinidade de repórteres gritando e se digladiando por uma informação, por menor que fosse. Rocha sentiu o
sangue ferver quando desceu do carro e viu aquilo. O sol havia dado uma trégua e ele estava sentindo até um pouco de frio. O céu cinzento denunciava que a logo choveria. Passaram pela faixa de contenção e pelo porteiro e então foram para o elevador. Enquanto subiam os quase trinta andares, Rocha se preocupava em checar todos os detalhes do lugar. Mas ele não fazia isso pela investigação. Na verdade, queria se esquecer da leve claustrofobia que o atacava sempre que entrava em elevadores. Não era nada muito forte, mas era o suficiente para fazê-lo vomitar em algumas situações. Se tivesse sozinho, certamente teria subido pelas escadas, mesmo que demorasse um dia inteiro para fazê-lo. Quando o elevador chegou ao 29º andar, Rocha quase atropelou Thomas. Estava no limite. Ele costumava rir dizendo que preferia enfrentar uma bala a um elevador. Dessa vez, não pode escolher a bala. Andou pelo corredor como se estivesse observando o local e colhendo informações, mas, na verdade, estava tentando respirar. Alguns minutos depois, quando a crise passou, se dirigiu até a porta do apartamento, onde Thomas o esperava com uma expressão confusa no olhar. — Está tudo bem? — Sim. Só estava checando algumas coisas. — Entendi. Vamos entrar. A primeira coisa familiar para Rocha, quando eles atravessaram a gigantesca porta de madeira maciça, foi o cheiro de sangue. Aquele cheiro o acompanhou por mais de vinte anos, impregnando a sua roupa, seus cabelos e sua pele. Um cheiro adocicado e enjoativo, capaz de derrubar até o mais forte dos homens. Não importava quantos anos se passassem, Rocha tinha certeza de que nunca se acostumaria com aquela fragrância mórbida. Como sempre, ver a cena pessoalmente era bem pior do que vê-la pelas fotos. Pois além do cheiro, ainda havia o clima pesado. E se o cheiro não te derrubasse, o peso do ar faria isso. Era como se todos os átomos espalhados pelo cômodo também estivessem mortos, em uma constante queda em direção ao vazio. E levavam tudo que estava no caminho com eles. Suas pernas travavam uma batalha contra a gravidade para se manterem firmes. O juiz Maurício vivia muito bem. Só o quarto onde seu corpo fora achado já era maior do que todo o apartamento de Rocha. Deveria ser um ótimo lugar para se viver. Mas, não agora, do jeito que estava. Havia sangue em todos os lugares da casa. Literalmente. Era tanto sangue que o cômodo mais parecia o cenário de um filme de terror trash dos anos 70. O branco das paredes havia dado espaço ao vermelho. Caminharam até uma enorme cama de casal. Havia o corpo de uma mulher sobre ela e, ao seu redor, dois peritos realizavam suas tarefas padrão. Um deles marcava o lugar com plaquinhas amarelas numeradas, que eram postas sobre as evidências e as
possíveis provas e o outro colhia amostras de resíduos, tecidos e fluídos corporais. No outro lado do quarto, analisando um cofre escondido atrás de um quadro, havia outro perito, o papiloscopista, responsável por procurar digitais do agressor nos objetos da casa. Um dos peritos que trabalhava ao redor da cama se levantou ao ver que eles se aproximavam. Era uma bela mulher de pele morena e cabelos encaracolados. Tinha um rosto fino e bonito, apesar do lugar e da situação. Aparentava ter pouco mais de trinta anos. — Oi, Thomas. – ela disse, estendendo a mão com um sorriso discreto. Na outra mão segurava uma prancheta repleta de papeis. — Oi, Maria. – Thomas disse, sem corresponder o sorriso. Depois se voltou para o investigador ao seu lado – Rocha, essa é a… — Nós já nos conhecemos. – Rocha o interrompeu, estendendo a mão para cumprimentar a mulher. – Há quanto tempo, Maria. Tudo bem? — Na medida do possível. – ela respondeu. Rocha notou uma certa tristeza em sua voz e ele sabia muito bem qual era o motivo. Tratou de soltar a mão dela tão rápido quanto pode. – Fiquei sabendo que você tinha voltado para a DHPP. É definitivo? — Assim espero. — Fico feliz por você. — Nós dois ficamos. — Certo. Depois vocês colocam a conversa em dia. – Thomas disse, percebendo a leve tensão entre os dois. – Vamos voltar ao trabalho. Alguma novidade, Maria? — Nada de mais, na verdade. – ela respondeu. – Até agora, já achamos uma centena de digitais, principalmente na cozinha, no quarto e no banheiro da suíte, mas não havia nenhuma na parede nos arredores do corpo. Como o juiz costumava trazer muitas... Muitas visitas, não é de se surpreender que haja tantas digitais. Eu acho que nenhuma delas é do criminoso, mas só saberemos com certeza depois das análises. Também não encontramos fios de cabelos e nem vestígios de pele nas unhas das vítimas. Tudo indica que ele foi muito meticuloso e tomou todas as precauções necessárias. — Será que ele usou algum tipo de sedativo? – Thomas perguntou. — Talvez na prostituta, mas no juiz eu creio que não. – Maria respondeu. – No exame superficial, eu encontrei um trauma bem profundo que se estende do osso temporal até o esfenoide. O legista poderá confirmar, mas isso já explica algumas coisas... — Um trauma onde? – Thomas disse, completamente confuso. — Bem aqui. – Maria passou a mão no rosto de Thomas, pouco acima da orelha
esquerda. O investigador sorriu, constrangido. — Ele foi surpreendido. – Rocha disse. – Provavelmente ouviu a campainha e quando foi atender, levou uma pancada na cabeça. Não há nenhum trauma parecido na mulher? — Não. – Maria respondeu. – Ou ela fazia parte do crime ou decidiu cooperar na esperança de continuar viva... O que não deu certo, é claro. — Eu quero dar uma olhada no corpo. Talvez seja alguma conhecida... — Não duvido. – Maria murmurou. — Ah, sim. – Thomas disse. – E aproveitando a oportunidade, Rocha, você se lembra do que me disse na delegacia sobre matar repórteres? — Sim. — Então se prepare para uma surpresa. Thomas pegou a prancheta que estava com Maria e contornou a cama, seguido de perto por Rocha. Foram até o corpo. A mulher estava de bruços, imersa em uma gigantesca poça de sangue que se estendia por toda a cama. Thomas pegou um par de luvas com um dos peritos e as calçou. Com muito cuidado, retirou os cabelos que escondiam seu rosto e o enorme corte no seu pescoço. O coração de Rocha quase parou. — Essa é Michelle Siqueira dos Santos. Vinte e cinco anos, solteira, morava com a mãe e trabalhava na redação do SP HOJE. E, pelo pouco que sabemos, também fazia umas horas extras, por assim dizer, como garota de programa. Sua garganta foi cortada com uma faca ou alguma lâmina muito afiada. Um corte muito preciso. Quem o fez sabia exatamente como matar alguém rapidamente. — Você está bem, Rocha? – disse Maria, ao ver sua expressão. Ele estava perplexo. — Eu… – o investigador colocou a mão na cabeça, como se estivesse prestes a cair. Apoiou-se na parede e dobrou levemente os joelhos. Não conseguia acreditar no que estava vendo. — Qual o problema? – Thomas perguntou. — Eu a conhecia. — Sério? — Nos conhecemos em um bar, há alguns anos, logo que… Vocês sabem. Ela era estagiária no jornal e estava tentando escrever uma matéria sobre o caso do banco. Só Deus sabe como ela conseguiu chegar ao meu nome. Acreditava que com essa matéria conseguiria ser efetivada. Ela se aproximou de mim. Eu estava abalado… Conversamos por horas sem que ela tocasse no assunto. Ao fim da noite, fomos para o meu apartamento. Eu não sei bem o que aconteceu. Bebi demais e devo ter contado tudo. Mas ela nunca publicou a matéria. Alguns meses depois, me contou sua intenção
real, mas disse que havia mudado de ideia. Disse que não teve coragem de fazer aquilo comigo. Rocha se abaixou para ficar mais próximo do rosto dela. — Meu Deus… Ela não merecia isso. — Você sabia que ela era prostituta também? — Sim… A mãe dela tinha câncer e estava muito mal. O salário dela quase não pagava o aluguel. Ela precisa de mais dinheiro. Tentou de tudo antes de seguir por esse caminho, mas não conseguiu. Eu queria ajudá-la… Mas como? O que eu podia fazer? — Você a viu ontem? – Thomas perguntou. Rocha entendeu o que estava acontecendo. Levantou-se e encarou Thomas bem de perto. — Escute bem o que eu vou te falar, moleque, porque só vou dizer uma vez. Tome muito cuidado com o que diz quando estiver se referindo a mim. Michelle era minha amiga. Apoiou-me quando ninguém mais fez isso. Podia ter me destruído, mas preferiu ficar ao meu lado. Não existia ninguém nessa cidade que eu respeitasse mais do que ela. E se você estiver insinuando que eu a matei, eu juro por Deus que… — Eu não estou insinuando nada. Você sabe muito bem como as coisas funcionam por aqui, Rocha. Essa é uma pergunta de rotina. E se você não deve nada, também não tem nada a temer. Nem a esconder. Essa investigação é minha, como você bem sabe, e eu vou até o fim para achar o culpado. Rocha ficou em silêncio por alguns instantes. — Certo. Ela estava na minha casa ontem à noite. Saiu pouco antes das quatro. Eu tinha um compromisso, por isso teria que sair, mas ela ia ficar lá. Só que ela recebeu uma ligação e eu a levei até um ponto de táxi. Foi a última vez que a vi. — Que compromisso você tinha? — Isso não importa. — É claro que importa. — Eu fui ver um amigo. Não é da sua conta. — Foi encontrar um amigo às quatro da manhã? — Vai à merda, moleque. Isso não vai levar a lugar nenhum. Eu não a matei. A melhor coisa que podemos fazer agora é ir falar com o taxista. — Quando nós sairmos daqui, vamos direto pra lá. Agora vamos ver o corpo do juiz. Mas antes de se afastarem, Rocha se abaixou novamente ao lado do corpo. Olhou para o rosto de Michelle por alguns instantes. Apesar de tudo, ela estava linda. Ele se sentia culpado. Uma sombra crescia em seu interior, inundando sua alma com ódio e desespero. Como alguém poderia ter feito mal a ela? Justo ela, que sempre sofreu para que as outras pessoas ficassem bem.
— Adeus, minha amiga. – Rocha beijou o rosto de Michelle uma última vez. O toque frio da pele gelou sua espinha. Um medo primitivo e quase incontrolável tomou conta do seu coração. Ninguém estava a salvo. Aquele assassino precisava ser detido. — Rocha? – Thomas o chamou. – Veja isso. Eles estavam diante do corpo do Juiz Maurício. Aquela era a pior cena que qualquer um deles já havia visto. O corpo fora fixado na parede com pregos de 20 centímetros nas mãos e nos pés. Havia sido despido e colocado em forma de cruz, mas os pés estavam para cima e a cabeça para baixo. Algo semelhante às típicas cruzes satânicas. Havia um corte enorme em sua barriga, que ia do umbigo até a altura da clavícula. Os órgãos internos foram remexidos e o coração foi retirado e jogado no chão. E, pelo seu estado, alguém havia pisado nele logo em seguida. Possuía cortes profundos na pele, feitos depois da morte, além de símbolos estranhos, dispostos nas mais diversas partes do corpo, como as pernas e os braços. E o mais aterrador era o nome, escrito grosseiramente com cortes angulares, que se repetia muitas vezes: PEDRO ROCHA. — Esse nunca mais vai dar carteirada em ninguém. – Rocha disse, com desdém. Thomas concordou com a cabeça. — E uma coisa não dá para negar: esse cara não gosta de você, Rocha. — Ou quem sabe, ele te ama. – Maria replicou. — É, pode ser. — Como vimos no vídeo, ele foi morto antes de ser… Crucificado. – Maria disse – Talvez houvesse mais de uma pessoa aqui, pois seria muito difícil para um único homem conseguir fixá-lo assim. Ninguém ouviu nenhum barulho de marteladas nem nada parecido, então é provável que os pregos tenham sido fixados com alguma espécie de pistola a ar, daquelas de construção civil. O corte no peito foi feito com uma precisão impressionante. Eu diria que o assassino pode ser um cirurgião, um veterinário ou um estudante de uma dessas áreas. O coração foi arrancado e pisoteado. Isso pode ser uma referência a algum episódio traumático causado pelo juiz no assassino. — É assustador. – disse Thomas. — Fora isso, não sabemos quase nada. – Maria pegou de volta a prancheta com Thomas – O juiz Maurício não possuía muitos inimigos. Ele defendeu quase todos os criminosos que se tem notícia, então todos o queriam por perto. Porém, ele já esteve envolvido em mais de um caso relacionado a você, Rocha. Libertou sete suspeitos de assassinato que você prendeu, além dos assaltantes do banco. É certo esse crime tem alguma coisa a ver com um desses casos. — Nós sabemos exatamente com qual caso a morte do juiz está ligada. — Como você pode ter tanta certeza, Thomas?
— Ora, Maria, isso é óbvio. — Para mim, não parece óbvio. — Ele está certo. – Rocha disse. – Só pode ser isso. A Michelle descobriu quem eu era. Outra pessoa também pode ter descoberto. Além do mais, havia pessoas dentro do banco. Talvez quem tenha feito isso estivesse lá. Talvez tenha me visto. — Pode ser. — Também podem ter sido os assaltantes. Com toda certeza eles prometeram um bom dinheiro ao juiz para que fossem libertos. Afinal, o terceiro assaltante conseguiu fugir com todo o dinheiro do roubo. Pode ser que o juiz tenha pedido mais do que o combinado e eles decidiram acabar com ele. Seu nome foi escondido das declarações à imprensa, mas constava nos laudos oficiais, e o juiz tinha acesso a eles. Ele pode ter contado aos assaltantes. — É uma boa hipótese, Maria. Eu também já havia pensado nisso. Estamos tentando rastrear as últimas ligações do juiz, mas com certeza ele possuía algum aparelho celular descartável que utilizava nessas situações, para falar com seus clientes. — Até pode ter acontecido isso, mas nada explica como eles conseguiram subir aqui sem serem captados pelas câmeras. Mesmo que apenas um deles tenha vindo. Seria impossível sem ajuda de alguém daqui de dentro. Vocês já interrogaram os funcionários do prédio? — Sim. – Thomas respondeu. – O responsável pela segurança, os próprios seguranças, o porteiro, o síndico e alguns morados dos andares inferiores e superiores. Ninguém viu nada. — Eu quero falar com eles também. Alguém vai ter que me explicar como essas câmeras foram falhar exatamente na hora que o criminoso chegou. — Certo. — Mas agora vamos falar com o taxista. Eu não aguento mais ficar aqui. — Tudo bem. Thomas retirou as luvas e as entregou para Maria. Os dois caminharam em direção à porta, desviando das poças de sangue no chão e das malas de ferramentas dos legistas. Nesse instante, Maria correu até eles e tocou no ombro de Rocha, fazendo-o parar e se voltar para ela. — Pedro… Apesar de tudo, é bom ter você de volta. — Obrigado, Maria. — Você sabe que pode contar comigo, né? — Sim, eu sei. — Você sempre pôde. Eu sinto muito se… — Não se preocupe. Não precisa dizer nada.
— Certo. Até mais. — Até.
Capítulo Quatro Thomas e Rocha chegaram ao ponto de táxi exatamente às 10h10min da manhã. Havia pouca gente ali, àquela hora, de maneira que Rocha logo reconheceu o taxista que levara Michelle na noite anterior. Caminharam até ele antes que fugisse. Alguns taxistas não gostam de conversar com policiais. Isso espanta os clientes. — Com licença. Você se lembra dessa mulher? – disse Thomas, quando o alcançaram. Ele havia conseguido uma foto de Michelle na delegacia. Ela já havia sido presa uma vez por perturbação da paz e atentado ao pudor. Nada demais. — Nunca vi. – o taxista respondeu, sem sequer olhar para a foto, já virando-se para o carro. Mas Rocha o impediu antes que ele tocasse a maçaneta. O segurou pela gola da blusa e bateu as suas costas com tanta força na porta do carro que chegou a pensar que havia quebrado o vidro. — Escuta aqui, cara. Ela está morta. E você foi a última pessoa com quem ela foi vista viva. Sendo assim, é nosso principal suspeito. Então, se não quiser passar o resto da vida numa cela, sendo estuprado por todos os criminosos de São Paulo, acho bom começar a me falar tudo que aconteceu. — Certo, certo… tudo bem, eu falo. — Ótimo. – Rocha soltou o taxista. – Pode contar tudo, desde o momento em que ela entrou no táxi até o momento em que saiu. — Primeiro, me dê seu RG. – disse Thomas. Desconfiado, o taxista entregou seu documento de identidade. — Pode ir falando. – disse Rocha. — Ela pediu para que eu a levasse até Higienópolis. Eu só fiz isso. Nós nem conversamos muito. Eu confesso que cantei ela umas duas vezes, mas ela não me deu muita atenção. Eu deixei ela na frente de um prédio bem chique. Ela pagou e eu fui embora. Foi só isso. — Tem certeza? – disse Thomas. — Absoluta. — Ela falou no celular alguma vez? – Rocha perguntou. — Sim… Eu acho que sim. Alguém ligou pra ela. Disse que já estava chegando e desligou. Na frente do prédio tem um monte de câmeras. É só olhar lá. O porteiro também me viu chegando. Ele foi receber a moça lá na frente. — Vamos confirmar essas informações. – disse Rocha. – Enquanto isso, você fica aqui, sossegado. Mas nem pense em sair da cidade. Thomas devolveu o RG para o taxista, que entrou no carro resmungando. Em
seguida se afastaram e caminharam de volta para a viatura. Rocha estava chocado. Ainda não conseguia acreditar que Michelle estava morta. Mas quem tinha feito isso com ela iria pagar. Com certeza. — Acreditou nele? – Thomas perguntou. — Sim. — Eu vou conferir as filmagens novamente. Não me lembro de ter visto nenhuma imagem de câmeras do lado de fora do prédio. — Certo. Vamos voltar para a delegacia. Eu quero ver os arquivos do caso. Tem muita coisa que eu ainda preciso entender. Conforme o delegado Duval supunha, o vídeo do assassinato foi parar na internet. Tornou-se um viral logo que foi postado nas redes sociais. Definitivamente, o povo gostava mesmo de ver a desgraça alheia. Todos os grandes sites exibiram a notícia, inclusive alguns internacionais. As atenções caíram imediatamente sobre ele e seus investigadores. Duval passara a manhã inteira atendendo as mais diversas ligações, desde pessoas que alegavam ter pistas do assassino e até uma oriunda do gabinete da presidência, exigindo uma resolução urgente. Ele achava que não ia conseguir aguentar a pressão. Estava a ponto de explodir e o dia só estavam começando. Mas tudo ao seu alcance já estava sendo feito e ele tinha os melhores homens trabalhando no caso. Rocha estava de volta! Pedro Rocha, o grande policial que resolveu todos os casos que assumiu nos últimos vinte anos. Era hora de confiar nele, como já fizera tantos outras vezes. Pouco antes do meio dia, decidiu ir almoçar. Indo comer mais cedo, antes do horário normal de almoço, evitava filas e, consequentemente, também voltava mais cedo ao trabalho. Em menos de quinze minutos depois de sair, já estava de volta à delegacia. Na verdade, comeu apenas um salgadinho gorduroso e tomou uma lata de refrigerante do carrinho de lanches do outro lado da rua, em frente ao prédio da DHPP. Voltou para sua sala e se afundou no trabalho novamente. Havia muita coisa para ser feita. E ficou tão imerso em suas obrigações que não ouviu quando seu telefone tocou. Aliás, não ouviu nenhuma das oito vezes em que ele tocou. Até que sua secretária entrou pela porta. — Senhor… O telefone não para de tocar. As pessoas querem falar com o senhor. O que eu faço? — Apenas anote os recados. Eu não vou atender a ligação de mais ninguém, hoje. Nem mesmo se o Papa me ligar. — Mas… — Só isso? Muito obrigado. Ah, traga-me um café, por favor. Quando ela saiu, Duval se levantou e coçou os olhos. Depois dobrou o corpo
para trás e para frente, em movimentos lentos. Ouviu suas costas estalando. Precisava se exercitar mais. Thomas e Rocha entraram na sala justamente no momento em que ele se sentava novamente atrás de sua mesa. Ele se alegrou ao vê-los. Tinha esperança de que trouxessem boas notícias, mas viu nos olhos de cada um deles que isso não aconteceria tão cedo. — Como vai o caso? – perguntou, mesmo assim. — Do mesmo jeito que antes. – disse Thomas. – Falamos com o taxista que levou a prostituta para a casa do juiz, mas duvido que ele tenha alguma coisa a ver com o crime. — Entendi. E você, Rocha? Tem algo a acrescentar? — Não. Ainda não sei quase nada sobre esse caso. Preciso me informar mais. — Certo. Não quero pressionar vocês, mas as coisas estão ficando complicadas. Alguém postou o vídeo na internet. Todo mundo já está sabendo do ocorrido. Já tem mais de uma centena de curiosos na frente do prédio, tentando ver se alguma coisa vaza. E na TV, as pessoas só falam disso. Precisamos agir com muito cuidado. A vantagem é que, pelo que sei, o vídeo que os jornais tiveram acesso é menor do que o que ele enviou para cá. Não há nenhuma menção ao seu nome, Rocha. E é imprescindível que continue assim. Caso contrário, essa história se tornará um caos. — Achei que ela já estivesse um caos… – Thomas disse. — Às cinco da tarde, quando todas as provas e os laudos preliminares da perícia já estiverem em minhas mãos, farei uma reunião com todos os responsáveis pelo caso. Preciso de vocês dois lá. — Certo. – Thomas respondeu, com um aceno. — Agora, podem voltar para o trabalho. – Duval disse. Thomas saiu imediatamente, mas Rocha permaneceu na sala. — Duval… Eu gostaria de falar com você em particular por um minuto. — Tem que ser agora, Rocha? Eu tenho muita coisa pra resolver. — Sim, tem que ser agora. — Certo. — Você não vem? – Thomas enfiou a cabeça dentro da sala novamente, ao notar que Rocha não estava seguindo com ele. — Só preciso resolver uma coisa, mas eu te vejo daqui a pouco, garoto. Separe todos os arquivos do caso pra mim, por favor. Também preciso que separe os arquivos de todos os crimes violentos cometidos com armas brancas, solucionados ou não, realizados nos quatro últimos anos. — Tudo bem… – Thomas disse. – Mas não se esqueça de que isso é um favor. Você não é meu chefe.
— O que você quer? – Duval disse, assim que Thomas fechou a porta. — Primeiro, eu quero saber como será daqui pra frente. Eu estou de volta mesmo? É definitivo? Ou você só veio atrás de mim porque sabe que não tem mais ninguém nessa delegacia com capacidade de solucionar esse crime? — Se depender de mim, é definitivo… — Se depender de você? — Exatamente. Eu não sou o único na hierarquia. Tem uma série de pessoas acima de mim. Todas deram o aval para que você voltasse e eu acredito que não mudarão de opinião. Isso, é claro, se você realmente solucionar o crime. — Também quero falar sobre a mulher que foi achada morta junto com o juiz… — A prostituta? O que tem ela? — Ela era minha amiga. – Rocha pareceu muito triste quando falou. — Não me diga... – Duval alisou o bigode. — E antes que fique sabendo disso por outra pessoa, quero te dizer que ela estava comigo, na minha casa, antes de ir para a casa do juiz. Conversamos com o taxista que a levou. — Ela saiu da sua casa e foi direto para lá? — Sim. — Isso complica as coisas. — Eu sei. Mas espero que se lembre do que eu disse. Eu não tenho nenhum envolvimento com esse caso. Eu não sei do que se trata. Eu não fui ameaçado recentemente, não notei ninguém me seguindo e nem nada do tipo. Não sei o que está acontecendo. — Infelizmente, você está completamente envolvido nesse caso. O assassinato dessa moça é só mais uma prova. Não deixe que isso vaze. Não conte para mais ninguém que você a conhecia. — Certo. — Mas tem mais uma coisa estranha, Rocha. Eu preciso que você seja sincero comigo agora. — Sobre o quê? — Você me disse que estava com ela no momento do crime e, como ela está morta, sei que isso era mentira. Onde você estava no momento do crime? — Em casa... — Fale a verdade de uma vez, Rocha. — Certo... Eu estava resolvendo uns assuntos com um... Um traficante. — O quê? — Não é o que parece. Ele tinha ameaçado a Michelle... — Quem é Michelle, homem? – Duval perguntou.
— É a garota que morreu... — Quando você enfia o pé na jaca, você enfia mesmo, hein! – Duval coçou a cabeça freneticamente, como se estivesse tentando se livrar de um inseto que atravessava seu crânio. – Quem é esse traficante e qual a relação dele como essa tal Michelle? — Nenhuma. – Rocha se recuperou da tristeza e voltou para sua posição defensiva – Olha só, Duval, eu só fui conversar com o cara. Tirar satisfações, na verdade. A Michelle nem me pediu pra fazer isso, mas eu estava com medo de que acontecesse alguma coisa. Ela já fumava há algum tempo, mas estava começado a cheirar... Eu tentei fazer ela parar, mas você sabe como é. Ela devia uns trocados para esse cara. — E o que você fez? — Paguei ele. — Conta outra, Rocha. — Tá certo... Eu quebrei ele na porrada primeiro, mas depois eu paguei ele. — Ele ainda está vivo? — Não sei... Mas estava quando o deixei. — Puta que pariu! Por que você fez isso de madrugada? Não podia fazer em outra hora, cacete? — Era a hora que a boca de fumo começava a funcionar. Eu peguei ele antes do resto dos nóias chegarem. — Certo... E você acha que esse cara pode ter alguma ligação com o caso do juiz? — Não, com certeza não. É só um traficante de quinta categoria. Uma hora dessas, ele deve estar lá no Acre, fugindo de mim. — Certo, certo... – o delegado abriu a porta e fez um sinal para a secretária. Imediatamente ela foi buscar café. Depois voltou para dentro da sala, onde o investigador o esperava .– Vamos esquecer essa merda, Rocha. Se te perguntarem, você estava em casa tocando uma e assistindo o Cine Privê. Inventa qualquer merda, mas não fala sobre isso pra ninguém. — Tudo bem. — Agora volta pro trabalho que hoje é seu primeiro dia e você tem que mostrar serviço se quiser continuar no emprego. — Eu preciso de um favor seu, Duval. — Mas é um cacete mesmo! Um favor? E por acaso eu sou um gênio da lâmpada pra sair realizando desejos e fazendo favores pra todo mundo? — É sobre a Michelle. Ela tinha muitos problemas. Morava com a mãe e a velha tem câncer. Ela precisa de remédios caros e agora que ficou sozinha, a coisa só vai
piorar. Eu não posso ajudá-la. Quase não consigo me sustentar. Mas talvez você possa fazer alguma coisa… Ou a sua esposa. Vocês conhecem muita gente. Talvez se vocês conseguirem uma vaga para ela em alguma clínica particular… — É, mas não é tão simples assim... — Eu sei que não, mas talvez você possa dar um jeito. — Tudo bem, Rocha. Eu vou ver o que posso fazer. Mas não hoje. Amanhã. Tenho muito trabalho para terminar agora. Precisa de mais alguma coisa? — Não, não. É só isso. — Certo. Pode ir. — Bem... É... Você sabe, né? Obrigado... Duval não conseguia entender o porquê de Rocha ter tanta dificuldade em agradecer. — Não por isso. Agora, resolva este caso.
Capítulo Cinco Quando Ivo Dirceu Fortunato se formou em Direito, seus pais fizeram uma grande festa. Ele havia superado todas as expectativas. Era a primeira pessoa daquela família a conquistar um diploma universitário e isso enchia todos de orgulho. Ainda mais depois de tudo o que havia acontecido com ele. Ivo, que nunca fora um bom aluno, começou a ter problemas sérios com faltas excessivas e súbitas crises de fúria no primeiro ano do Ensino Médio. Os professores acabaram descobrindo que ele estava usando drogas, e foi assim que começou a batalha de sua família para tentar afastá-lo daquela vida. Batalha essa que durou oito anos e contou com seis internações em clínicas de reabilitação e quase um ano em um sanatório. Quem viu aquele garoto franzino, que quase não se sustentava em pé devido ao estado enfraquecido de seu corpo, jamais imaginaria vê-lo formado, totalmente livre das drogas e das más influências. Havia muitos motivos para comemorar. O que ninguém sabia é o que se passava por trás disso. Um dia, Ivo chegou em casa dizendo que havia se matriculado em um vestibular e que, depois disso, iria cursar Direito. Quando seus pais perguntaram como ele iria pagar a faculdade, respondeu que havia conseguido um emprego como caixa em um supermercado. Nada poderia ser mais irreal do que isso, já que um caixa ganhava muito menos do que o necessário para pagar o curso, mas eles se impressionaram com o quanto ele estava se esforçando. Estavam dispostos a ajuda-lo a pagar as mensalidades e fariam qualquer coisa para vê-lo formado. A verdade, no entanto, era menos romântica. Ivo jamais pisou no dito supermercado. Ao invés disso, estava trabalhando para um velho amigo, o mesmo com quem havia dividido as primeiras pontas de baseados e as primeiras carreiras na época da escola. Enquanto Ivo tomava eletrochoques no sanatório, seu amigo havia alçado voos maiores, crescendo cada vez mais na hierarquia do tráfego. Ele já controlava quatro bocas-de-fumo na região quando Ivo se formou, e foi o seu dinheiro que pagou a faculdade. Em troca, Ivo oferecia todo o suporte legal que seu “comércio” necessitava. Não demorou até que Ivo entendesse que aquele era um ótimo negócio. Logo passou a atender outros clientes, estes com problemas cada vez maiores e com muito mais dinheiro. Tornou-se famoso por nunca perder um único caso. E muito rico também. Pouco a pouco, o orgulho de seus pais foi se transformando em dor, arrependimento e, finalmente, repulsa. Eles nunca mais se viram. Mas Ivo não se importava. Tinha tudo o que precisava e estava muito bem.
Certo dia, recebeu em seu escritório a visita de um homem muito rico e conhecido. O juiz Maurício Medeiros. Daquele encontro surgiu uma grande parceria, que se estendeu por mais de uma década, com ambos fornecendo todo o apoio necessário para que o crime organizado continuasse mais organizado que a própria polícia. E o negócio só parecia prosperar. Mas então, naquela manhã, ele recebeu um e-mail com um link para um vídeo. Não costumava clicar nesse tipo de conteúdo, mas, justo naquele dia, decidiu arriscar. E quase vomitou quando o vídeo começou. Seu cliente mais importante estava sendo dilacerado por um louco vestido de preto. Ivo ficou desesperado. Primeiro, pensou que fosse uma queima de arquivo. Mas quem iria matar o juiz Maurício? Logo ele, que era tão importante para o crime? Somente um policial seria capaz de fazer aquilo. Pensou em contratar um segurança, mas mudou de ideia quando considerou que fazer algo assim poderia ser ainda pior. Poderia gerar suspeitas. Pensou em fugir, sair do país por um tempo, mas tinha clientes e compromissos que não podia cancelar. Alguns julgamentos naquela mesma semana nos quais era imprescindível que ele estivesse presente. Cancelou todas as reuniões do dia e foi para o seu escritório, num dos mais elegantes prédios da Avenida Paulista. Dispensou todos os funcionários, com exceção de Cláudia, sua secretária, que não ficou muito satisfeita com isso. Mas ele precisava dela por perto: estava planejando levá-la para um motel quando conseguisse sair dali. Só assim poderia relaxar. Ela era difícil, mas aquela não seria a primeira vez que eles dormiriam juntos. E, se dependesse dele, também não seria a última. Quando estava prestes a sair, recebeu uma ligação do deputado Queiroz. Era um dos seus melhores clientes. Não poderia ignorá-lo. Decidiu atender. — Eu sei que você quer que eu te livre dessa, deputado, mas você vai ter que me dar um tempo. Você bateu nela de novo? Quantas vezes eu te disse pra não fazer isso? A coisa vai ficar mais difícil agora que o Maurício… Bem, agora que não temos mais ele. Eu já coloquei umas pessoas na rua procurando por ela. Se eu tiver mais alguma informação, te ligo. E vê se não bate em mais ninguém, certo? Até mais. O deputado pareceu reclamar do outro lado da linha. — Tudo bem, deputado. Tudo bem. Eu dou um jeito nisso. Mas agora eu realmente preciso desligar. Tenho um compromisso urgente. Adeus. Ele desligou o celular antes que o deputado pudesse dizer mais alguma coisa. Estava cansado. Só queria beber alguma coisa e relaxar. Caminhou até a escrivaninha e encheu um copo de whisky. Depois voltou até a sua mesa, sentou-se e abriu o navegador de internet. Quando estava prestes a digitar, seu telefone tocou.
— MERDA! Era sua secretária. Pensou em não atender, mas não queria irritá-la, já que ela poderia se negar a sair com ele. — Oi, Cláudia. — Senhor… Tem um homem aqui. Ele quer conversar com o senhor sobre uma herança de família. — Nós estamos fechados. — Eu sei, senhor. Eu disse isso a ele… — Além do mais, você sabe muito bem que eu não atendo casos de herança… — Senhor… – a voz da secretária estava diferente. Ela estava amedrontada, mas Ivo não notou isso –. Eu acho que o senhor deveria atendê-lo. — Por quê? Eu tenho muito trabalho. — Eu sei, doutor Ivo… Mas ele disse que é urgente e que precisa ser o senhor. — Que merda, Cláudia! Manda esse idiota entrar e depois a gente se fala. Desligou o telefone. Quem poderia ser àquela hora? Provavelmente o deputado Queiroz. Ele havia espancado a esposa pela terceira vez e a mulher havia desaparecido. Por isso, estava com medo de que ela fosse até a polícia. Definitivamente, precisava relaxar naquela noite. Depois daquela cena, certamente a secretária estava fora dos seus planos. Voltou-se para o navegador aberto a sua frente e digitou na área de buscas: “Acompanhantes de Luxo em São Paulo”. Clicou no Enter. Enquanto aguardava, ouviu um ruído seco, que veio da recepção. Provavelmente Cláudia havia derrubado alguma coisa. Ela era muito desastrada. Já havia quebrado quatro taças de cristal que ele tinha comprado para servir champanhe aos clientes. Os resultados da pesquisa rapidamente exibiram-se na tela. Alguém bateu na porta. — Entre. Um homem entrou na sala. “Não sei quem é mais idiota. Eu ou esse cara.” Ivo pensou, quando olhou para o homem. — Bom dia, doutor Ivo. – o homem disse. — Nem tão bom assim, meu amigo. – Ivo respondeu, sem tirar os olhos do computador e sem fingir gentileza. Passou o cursor do mouse pelas fotos das modelos nuas até parar em uma que chamou sua atenção. Havia duas garotas abraçadas, uma ruiva e outra loira. Abaixo da foto, os nomes: Paty e Dani. Clicou na imagem. – Sentese. Vamos ver se eu consigo resolver esse seu problema tão urgente. O homem permaneceu parado. — Algum problema? – o advogado perguntou, irritado. A página estava
demorando para carregar e o homem continuava em pé, imóvel. – Vamos fazer o seguinte. Eu vou te indicar para um amigo meu. Ele é especialista em heranças e cobra muito menos do que eu. Isso resolve o problema de todo mundo, já que eu nem sei mesmo como posso te ajudar. Nesse instante, o homem levantou rapidamente uma das mãos, e o gesto brusco fez Ivo desviar os olhos da tela. Imediatamente ele entendeu do que se tratava o ruído seco que ouviu alguns minutos antes na recepção. O homem segurava uma pistola equipada com um silenciador. — Você é a única pessoa que pode me ajudar, advogado. – a voz era fria, quase um sussurro, mas fez Ivo tremer na cadeira. — Cara... Que merda é essa? O que você está fazendo? – ele se levantou lentamente, com as mãos projetadas para frente, como se elas pudessem protege-lo dos disparos. – Você matou a Cláudia? Não houve resposta. — Pelo amor de Deus, o que você quer de mim? Novamente, o silêncio. E então um disparo e um som abafado.
Capítulo Seis Às 17:00h daquele mesmo dia, cerca de 30 policiais, dentre civis e militares, estavam reunidos numa pequena sala de instrução no DHPP. Duval estava sentado na primeira fileira de cadeiras, ao lado de uma mesa na qual havia um projetor e um notebook. Thomas e Rocha estavam ao seu lado, mas a única coisa que parecia importar para o delegado naquele momento era o seu relógio, para o qual ele olhava a todo instante. — Bom… Acho que é hora de começarmos. O delegado se levantou e caminhou até a parede na qual o projetor exibia o logotipo da Polícia Civil. Bateu palmas três vezes para chamar a atenção dos presentes e aguardou até que todos parassem de falar. Encarou cada um deles por alguns segundos antes de iniciar a apresentação. — Boa tarde a todos. Obrigado pela atenção e pela disposição em atender o meu chamado. – ele disse. – Primeiramente, gostaria de agradecer ao Comando da Polícia Militar de São Paulo pela disponibilidade. O trabalho em conjunto entre as duas forças, mais do que nunca, será essencial para a resolução deste homicídio. Um dos militares, um capitão, acenou para ele com a cabeça. — Agora vamos ao caso. – Duval continuou. – Como vocês bem sabem, hoje pela manhã, recebemos um vídeo com detalhes explícitos do assassinato do juiz Maurício Medeiros. Uma versão um pouco mais curta deste mesmo vídeo foi enviada para todos os jornais e sites importantes de São Paulo e, conforme já esperávamos, a reação popular foi dura e direta. Para que isso não se torne um caso de histeria coletiva, o governo está cobrando uma solução urgente para o caso. E, é claro, para que outros malucos não comecem a sair por aí crucificando gente de cabeça para baixo. O caso está sendo comandado por mim, com o apoio do investigador Thomas Moretto e do nosso velho amigo, o investigador Pedro Rocha. O Rocha estava afastado das investigações por problemas pessoais, mas agora está de volta, com ânimo renovado e muita garra para nos ajudar a solucionar esse crime. Rocha preferia não olhar para a plateia à sua frente. Mas, mesmo não o fazendo, sentiu o peso dos olhares sobre ele. Muitos ali conheciam em detalhes o caso do assalto e o culpavam por ter agido sozinho. Além disso, a maioria havia estado na cena do crime da cruz e visto seu nome escrito em toda parte. Era difícil não pensar que ele tinha alguma relação com o fato. Duval também notou a reação dos presentes e, por esse motivo, mudou rapidamente o foco das atenções. — O investigador Thomas tem algumas informações importantes para compartilhar com vocês. Vamos ouvi-lo.
Duval voltou para sua cadeira e Thomas foi até onde ele estava. Conferiu alguns papéis que estavam em sua mão e começou a falar. — Na verdade, não sou eu quem vai falar não. Até agora, nós ainda não tínhamos ido muito longe no caso. Nenhum nome, nenhum suspeito, nenhuma pista… Nada que pudesse, ao menos, nos apontar uma direção. Mas o Rocha passou o dia inteiro procurando relações entre o assassinato do juiz Medeiros e outros crimes e ele tem algumas coisas para nos apresentar. Thomas caminhou até o projetor e o ligou. Uma imagem foi exibida na tela. Um corpo de um homem nu, já em estado avançado de decomposição, com as duas mãos e os dois pés amarrados e algumas marcas estranhas no corpo, como círculos e cruzes. Seu abdome fora cortado, mas todos os órgãos vitais estavam lá dentro. O corpo fora fotografado ao lado de um rio ou lago. Rocha tomou lugar à frente do projetor, mas deixou o campo de visão livre para que os policiais pudessem ver as imagens exibidas. — Esse crime aconteceu há quase dois anos. – disse calmamente, observando a reação dos policiais a sua frente. – O corpo foi achado às margens do Tietê por uma equipe de limpeza ambiental e nunca foi identificado. Sem digitais, nem indícios do motivo do assassinato ou qualquer outra coisa que pudesse nos deixar mais perto do autor. Como não deu em nada, foi arquivado pelo Ministério Público. Ele apertou um botão no pequeno controle remoto que segurava em uma das mãos e uma outra foto surgiu na projeção. Aparentemente, a imagem exibia os corpos de duas mulheres, mas eles estavam tão apodrecidos, ressecados pela ação do tempo, que era impossível dizer o sexo com certeza. Usavam apenas calças velhas e puídas e estavam com as mãos amarradas nas costas, mas os pés estavam soltos. Os dois corpos apresentavam as mesmas características: cortes grosseiros que se estendiam do tórax até o umbigo, além de dezenas de outras escoriações perimortem e postmortem. As vísceras jaziam por toda parte, num raio de dois ou três metros ao redor dos corpos. — Esses corpos foram encontrados um mês depois do anterior, em um galpão abandonado na Zona Sul. – Rocha disse, depois de permitir que os policiais observassem bem a foto. – Tem as mesmas características e, como era de se esperar, não foi solucionado. Não foi encontrada nenhuma digital nem nada que pudesse ajudar na resolução. As vítimas também não foram identificadas e o caso foi arquivado. Quando ele apertou o botão no controle, a imagem no projetor mudou novamente, exibindo duas outras imagens, uma ao lado da outra. Dessa vez, o corpo podia ser identificado como sendo de uma mulher. Na imagem da direita, ela estava deitada de lado, com as pernas dobradas para frente, de forma que os joelhos alcançavam seus seios. Seus braços estavam esticados para baixo, com os pulsos amarrados nos tornozelos. Envolvendo o corpo inteiro, havia outra corda que a mantinha completamente fixa naquela posição, como se fosse uma encomenda grotesca
entregue pelos Correios. Fora completamente despida, mas não havia marcas visíveis de abuso, violência sexual ou tortura. Na imagem da esquerda, as cordas haviam sido cortadas pelo médico legista e o corpo estava estendido na mesa de operações. A visão agora era perturbadora. Sua barriga fora aberta de forma desajeitada, do tórax até pouco acima do umbigo. Quase todos os órgãos internos ainda estavam lá, mas o coração e um rim haviam desaparecido. Um dos seios também havia sido cortado fora. Havia cortes profundos nas coxas, alguns retilíneos e longos, outros em forma de cruz e alguns outros, apenas dois deles, formavam símbolos estranhos. — Este corpo foi encontrado há pouco mais de um ano e meio, dentro de uma lixeira em Itaquera. Igual ao primeiro corpo, não conseguimos nada. Nenhuma pista sequer sobre o assassino e nem sobre a vítima, por isso ela foi declarada como indigente e o caso também foi arquivado. Ele apertou novamente o botão de seu controle remoto. Uma nova imagem foi exibida. Talvez fosse a pior de todas. Não era um corpo, necessariamente, mas o que restava de um. Vários pedaços grosseiramente organizados para lembrarem a anatomia de um ser humano. Muitos policias presentes viraram o rosto diante da cena. — Curiosamente, apesar do estado, este foi o único corpo que conseguimos identificar. Simone dos Santos, 23 anos, moradora de Paraisópolis. Era mais conhecida com Paola enquanto trabalhava, vocês sabem com o quê. Uma de suas amigas de profissão disse que seu último cliente foi um homem alto, branco e boa pinta. Ela entrou no carro dele por volta das 23h horas do dia 7 de janeiro do ano passado. Acharam o corpo três semanas depois disso, dividido em várias lixeiras, no Paraíso. Um mendigo achou o primeiro saco quando revirava o lixo. — Aonde você quer chegar com isso? – um dos policiais militares perguntou, quando ele se preparava para mudar para a próxima imagem. — Eu tenho mais algumas imagens aqui, mas acho que já dá pra vocês entenderem só com essas. – Rocha disse. – Esse cara, o que matou o juiz e nos mandou o vídeo, vem se preparando há muito tempo pra fazer isso. — Você acha mesmo que todos esses crimes estão ligados? — Eu não acho nada. Eu sei. Eles estão mais do que ligados, na verdade. Todos os crimes antes do juiz foram testes. Ele estava aprendendo, ou melhor dizendo, estava desenvolvendo a sua técnica. Escolheu mendigos, prostitutas e drogados para treinar. Pessoas que não fariam falta se desaparecessem. — Como você chegou a essa conclusão? – dessa vez foi Duval quem perguntou, impressionado com as evidências. — É só olhar. Está tudo bem claro. Há um padrão nos vestígios. Mãos e pés amarrados, corpo marcado com cruzes e símbolos aparentemente satânicos, abdome e
tórax abertos… Todos esses crimes aconteceram em curtos intervalos de tempo e pararam completamente há alguns meses. Acredito que ele estivesse praticando antes do seu grande número. Fez isso de forma discreta, para que não fosse descoberto antes de cumprir o que estava planejando. Provavelmente, há mais corpos de sua fase de testes ainda não encontrados. — Como você descobriu isso? – um dos policiais perguntou. – Nós inspecionamos esses casos uma centena de vezes. Isso está muito estranho… — Eu que deveria perguntar como é que vocês não descobriram isso antes, já que estava tão obvio. Só há duas opções possíveis. Ou um de vocês é o assassino e está tentando acobertar tudo, ou vocês são completamente incompetentes. E, conhecendo alguns de vocês como eu conheço, fico com a segunda opção. A confusão começou. Agora Rocha se sentia bem melhor. Estava de volta aos seus tempos de glória. Com um dia de trabalho, havia conseguido muito mais evidências do que todos os policiais daquele lugar. Sentia-se completamente revigorado. Ainda mais por conseguir deixar os policiais a sua frente com o ego ferido. — Não me levem a mal… – ele disse, com um sorriso no rosto. – Vocês não têm culpa por não terem chegado a lugar nenhum, já que incompetência não é crime. Mas agora eu estou de volta, e vou prender esse cara nem que isso seja a última coisa que eu faça na vida. Ele se saiu muito bem até agora, mas isso só aconteceu porque eu não estava aqui. — Só tem uma coisa que você ainda não explicou, Rocha. – disse Edmundo. Rocha estranhou o fato dele ter demorado tanto para se pronunciar, afinal, se havia alguém realmente afetado com as suas palavras, esse alguém era Edmundo. – Por que seu nome está escrito em todas as partes da cena do crime? Não sei por que isso não foi divulgado e também não sei o que você está fazendo de volta aqui, mas não consigo deixar de pensar naquelas inscrições na casa do juiz. O seu nome estava escrito com sangue nas paredes, no chão e até mesmo no teto. Isso sem contar os cortes no corpo do juiz. Eu contei o seu nome marcado na pele dele pelo menos umas trinta vezes. — Isso não vem ao caso agora, Edmundo… – disse Duval. — Vem sim. – Rocha interrompeu. – É bom que algumas coisas fiquem bem claras aqui, já que agora eu estou de volta. E como você mesmo disse, delegado, esse caso tem tudo a ver comigo. Eu ainda não descobri como e nem porque, exatamente, mas sei que está ligado a um incidente que a maior parte de vocês já conhece. Há quatro anos, estive envolvido em uma polêmica relacionada a um assalto num banco. Eu intervi e algumas pessoas acabaram mortas. Os jornalistas me culparam e eu fui tirado das ruas e do DHPP. — Sim, nós já sabemos disso. – disse Edmundo. – Você atirou num dos assaltantes, mas acabou mantando os reféns.
— Da próxima vez que quiser cagar pela boca, se tranque no banheiro e me poupe do cheiro, velhote. – Rocha explodiu diante do olhar assustado de todos. O controle remoto que usava para avançar as imagens transformou-se instantaneamente em um amontoado de pedaços de plásticos, fios e chips destruídos. Fechou a mão tão forte que chegou a se cortar com os pedaços. – Eu não matei nenhum refém. Não me importo com o que você acha e não estou aqui pra provar minha inocência a você. O investigador jogou os pedaços do controle no chão. — Nem a nenhum de vocês. – Rocha varreu a sala com os olhos. Era possível ouvir a respiração de cada um deles. – Estou aqui porque nenhum de vocês é capaz de resolver esse crime. O próprio assassino sabe disso. Ele quer se vingar de mim, porque, graças aos maravilhosos jornalistas dessa cidade, o policial que salvou a vida de quase 100 reféns dentro daquele banco foi considerado um bandido. E os assaltantes foram liberados porque vocês não conseguiram fazer um bom trabalho para mantê-los presos. Ele caminhou até a cadeira onde Edmundo estava sentado. — Eu posso até dizer os próximos passos dele, se você quiser, Matusalém. Ele irá atrás de todas as pessoas envolvidas naquele episódio. Policiais, seguranças, advogados, membros do júri, promotores, assaltantes… E depois de tudo, vira atrás de mim. Só que eu não tenho medo. Vou pegá-lo antes. — Eu… — Vocês vão investigar todos os envolvidos no assalto. – disse Duval, interrompendo Edmundo antes que aquilo se transformasse em pancadaria. – Visitem os familiares dos mortos, os reféns, os repórteres que publicaram matérias sobre o tema na época. Todos que estiverem ligados ao assunto de alguma forma. Eu quero saber tudo sobre eles, desde o maternal até os dias de hoje. Se eles comeram peru na ceia do último natal, eu vou querer saber. Se eles encheram a cara e dançaram pelados em cima da mesa na formatura da faculdade, eu vou querer saber. — Ah, tem mais uma coisa. – Thomas disse. – Quando estiverem interrogando as testemunhas, se lembrem das características do suspeito. Ainda não sabemos quase nada, além do que a prostituta disse, mas já é um bom começo. É um homem alto, branco e boa pinta. — Estão dispensados. – Duval disse. Aos poucos, os policiais foram se levantando e saindo da sala. O clima ainda estava tenso, mas Rocha estava acostumado com isso. Nunca teve muitos amigos na delegacia. Os delegados com quem já havia trabalhado sempre o trataram com respeito, mas não era exatamente porque gostavam dele. A verdade é que ele era um ótimo investigador e sempre chegava ao fim de seus casos. Isso compensava as outras coisas. Ele sempre encontrava o culpado, mesmo que tivesse que passar por cima de todos
para fazer isso. Sempre foi assim e sempre seria assim. — Isso ainda não acabou. – Edmundo sussurrou, enquanto passava por ele. — Eu espero mesmo que não, velhote. – Rocha respondeu.
Capítulo Sete Rocha chegou em casa completamente revigorado. Teria passado a noite na delegacia, mas Duval o obrigou a ir embora, principalmente para evitar novas discussões com os outros policiais. Era melhor deixar a poeira baixar. Ainda assim, ele estava contente. Tudo havia voltado ao normal. Estava de volta ao trabalho de campo e a todos os problemas que ele trazia. Problemas esses que Rocha havia aprendido a amar. Naquela noite, iria dormir como não dormia há muito tempo. Era isso que ele pensava. A realidade caiu na sua cabeça como uma bigorna quando ele se deitou na cama e fechou os olhos. O rosto dela foi a primeira coisa que viu. Rolou de um lado para o outro, mas não conseguiu achar uma posição confortável. A lembrança veio à tona e seu mundo desabou de uma forma que ele nunca imaginou acontecer: Michelle estava morta. Levantou-se e caminhou até o seu velho guarda-roupa ao lado da cama. Abriu uma das portas, a primeira da esquerda para a direita, e contemplou o conteúdo como um colecionador que aprecia o trabalho de um pintor morto há séculos. Era exatamente isso que sentia, como se ela estivesse morta há muito tempo. Dentro do móvel havia algumas roupas de Michelle. Vestidos, camisas, calças, uns dois pares de sapatos e uma lingerie que ele havia comprado. Ela só usava ali, quando estava com ele. E agora, aquilo era tudo que restava dela. “Michelle está morta!” pensava sem parar. Seu corpo foi tomado por uma onda de cansaço assustadora, que parecia dilacerar todos os músculos do corpo. Ainda assim, o sono não vinha. Era como se alguém quisesse torturá-lo, para que ele passasse a noite inteira pensando na mulher incrível que ela era. Uma mulher incrível que havia sido tirada dele para sempre. Na mesinha de cabeceira também havia algumas coisas dela. Um pacote de chicletes, um par de óculos de sol, algumas camisinhas e um papelote de maconha. Ele colocou tudo em uma caixa e guardou no guarda-roupa, junto às roupas. Não teve nem mesmo coragem de se desfazer da maconha. Sobre a mesinha também estava a garrafa de whisky. Rocha passou um pouco de água em um copo, pegou a garrafa e se sentou no sofá. Serviu-se da bebida e tomou todo o conteúdo do copo antes de ligar a TV. Serviu-se mais uma vez e começou a zapear pelos canais, procurando por algo que o fizesse esquecer, nem que fosse apenas por alguns minutos. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Uma foto de Michelle apareceu em um dos canais pelos quais zapeava, fazendo com que parasse imediatamente. Era justamente a foto que ela mais odiava no mundo,
porque dizia estar parecida com o ator Willem Dafoe. É claro que aquilo era um exagero, mas quem gosta da foto 3x4 da identidade? — Aqui é o Luiz Rezende ao vivo pra você, meu amigo! E a próxima notícia é pra fazer a concorrência chorar! Nós conseguimos uma matéria exclusiva! Põe exclusivo aí na tela, pelo amor de Deus, produção, que notícia assim a gente não acha na rua não! Eu tenho uma notícia de última hora sobre o assassinato do juiz Maurício Medeiros! Uma verdadeira bomba que você só encontra aqui no São Paulo Contra o Crime! Daqui a pouco, depois do comercial. Se alguém juntasse todas as coisas que Rocha odiava nesse mundo e as colocasse em uma única pessoa, certamente essa pessoa seria Luiz Rezende. O apresentador era a encarnação mediocridade, da falta de ética e do oportunismo. Trabalhava na TV há anos, pulando de uma emissora para a outra, sempre com programas que se aproveitavam da desgraça alheia para conseguir mais ibope, mas sem nunca atingir o tão sonhado estrelato. Sua sorte mudou quando assumiu, quase que por acaso, o comando do programa São Paulo Contra o Crime. O apresentador original passou por um caso grave de Dengue e precisou ser substituído na última hora. Luiz Rezende assumiu por falta de alguém melhor, mas conseguiu a façanha de triplicar a audiência naquele dia, por causa de seu jeito explosivo, seu sotaque praticamente impossível de identificar a origem e os bordões que criava ao acaso. Tornou-se celebridade do dia para noite e estava disposto a fazer de tudo para se manter naquela posição por muito tempo. Rocha aguentou, ainda que impaciente, os minutos de intervalo comercial que se seguiram. Ele queria saber o que aquele crápula diria sobre Michelle, embora soubesse que isso só aumentaria seu sofrimento. Quando a vinheta do jornal ecoou na sala, quase quebrou o controle remoto. — Atenção, meu amigo, preste atenção no que eu vou te dizer agora. Nós identificamos a mulher que estava com o Juiz Medeiros nas filmagens que recebemos aqui na redação. – ele disse, enquanto caminhava de um lado para o outro no estúdio. – Isso mesmo. E nós vamos dizer quem ela é agora! Preste atenção. Foca aqui em mim, produção, que isso é importante. Bem aqui no meu rosto. – ele fez o sinal com as mãos, indicando onde a câmera deveria focar. — Puta que pariu! Por que você não morre? – Rocha gritou! — Deixe eu te falar, meu amigo... sabe quem era aquela mulher? Uma prostituta! Isso mesmo. Uma prostituta. Parece que o juiz Medeiros gostava de passar seu tempo como prostitutas. É assim que o poder público gasta o nosso dinheiro, meu amigo. Com prostitutas! Nós temos uma foto dela. Uma foto exclusiva! Cadê a foto, produção? Bota essa foto aí na tela, pelo amor de Deus, homem. – a tela se dividiu no meio e a foto de Michele apareceu na metade da direita, enquanto a imagem de Luiz Rezende
permanecia na outra. Rocha só conseguia pensar em uma coisa: Como eles conseguiram aquela foto e aquelas informações? — Sabe o que descobri, meu amigo? – o apresentador voltou a falar. – As investigações apontam para uma possível ligação entre Michelle e o assassino. O mais provável é que tenha sido ela quem trouxe o homicida até o quarto. Segundo uma fonte anônima e exclusiva, Michelle já havia se envolvido com outros criminosos antes, e é provável que sua morte seja uma queima de arquivo. — Que investigações? – Rocha gritou – Quem disse isso? O homem na TV fez o movimento com as mãos novamente para que a câmera focasse em seu rosto, o que foi rapidamente atendido pelo cinegrafista. — Olha o ponto em que nós chegamos, Brasil! Essa prostituta, essa... eu nem sei como chamá-la. Essa filha do Satã também “trabalhava” como repórter em um respeitado jornal impresso de São Paulo! Como isso é possível? Eu nem sei o que dizer! O que eu sei é que tem um psicopata solto na nossa cidade. Um homem que zomba de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificando as pessoas de ponta cabeça e que essa mulher estava envolvida com ele. Eu sei que é forte o que vou dizer, Brasil, mas fico feliz que ela esteja morta e que... Rocha desligou a TV. Estava tão irritado que quase arremessou o controle pela janela. Agora tinha mais um motivo para odiar jornalistas. Porém, o que mais o intrigava eram as informações que aquele homem possuía. Durante o dia, ele havia lido as edições de todos os maiores jornais da cidade para saber até que ponto eles sabiam sobre o crime, mas nenhum deles havia publicado nenhuma informação sobre a identidade de Michelle. Como aquele homem poderia saber disso? A tal fonte anônima que ele citou deveria ser alguém de dentro da polícia. Bebeu mais um pouco de whisky. Às cinco da manhã, quando teve certeza de que não conseguiria dormir, tomou um banho gelado, se vestiu e saiu de casa. Pegou um táxi no ponto próximo ao seu prédio e foi para a delegacia. Michelle precisa ser vingada, e era sua obrigação fazer isso. E ele faria, mesmo que isso custasse sua vida. Quando Rocha chegou à delegacia, o sol já estava prestes a dar as caras. Ainda assim, ele se sentia tomado por uma sombra negra que se alimentava da sua disposição e o levava cada vez mais para baixo. Tentou ir para a sua sala, mas foi impedido pelo atendente noturno. Ainda não havia recebido seu novo distintivo e, como os funcionários daquele turno não o conheciam, acabou tendo de esperar mais de duas horas até que Thomas chegasse, por volta das oito. Isso fez com que tudo ficasse ainda pior. Sua frustração estava a ponto de evoluir para uma raiva desmedida e incontrolável.
Seguiu para sua sala acompanhado de seu novo parceiro, torcendo para que todos que o conhecessem ainda não tivessem chegado. Queria trabalhar e precisava de privacidade. Não estava nem um pouco a fim de iniciar uma nova briga. — Está tudo bem com você, Rocha? – Thomas perguntou enquanto se sentava e ligava seu computador. – Parece bem abatido… quer conversar sobre alguma coisa? — Não. Eu estou muito bem. A falta de trabalho é que me deixa mal. — Sabe… Algumas pessoas costumam falar bastante por aqui. Eu ouvi algumas coisas sobre você. — Que tipo de coisas? — Que você mergulha de cabeça no serviço. Que chega a ficar sem dormir e sem comer quando está trabalhando em algum caso muito importante. Que está solteiro porque sua mulher não aguentou a sua loucura e fugiu levando o seu filho com ela. Que você não os vê há quase quinze anos. E também que você… Thomas parou de falar subitamente. — Que eu o quê? – Rocha estava curioso. — Que você já matou mais gente do que todos os policiais desta delegacia juntos. Rocha olhou para ele por alguns instantes e depois sorriu. Um riso frio e sarcástico. Thomas sentiu um pouco de medo, mas achou melhor continuar sério, seguindo as regras do jogo para que Rocha não se irritasse. — Você já matou alguém, garoto? — Eu? Não. E espero que continue assim. — Vou ser bem sincero com você. Tudo isso que disseram sobre mim é verdade. Eu não gosto de deixar casos inacabados. Eu vou até o fim sempre. Eu investigo, interrogo e prendo os criminosos. E, às vezes, quando não há outra saída, eu atiro e mato. Alguns policiais têm a sorte de se aposentar depois de trinta anos de carreira sem nunca ter disparado a arma. Mas eu não sou um desses policiais, garoto. No meu primeiro caso já havia sangue nas minhas mãos, e eu tenho uma teoria sobre o porquê de tudo isso. Que ouvir? — Sim, com certeza. – Thomas respondeu. — Então me diga uma coisa. Você acredita em Deus? — Não sou religioso, mas acredito em Deus. Por quê? — Eu não acredito nele. Mas eu acredito no diabo. Qualquer pessoa que faça o que eu faço, que tenha visto as coisas que eu vi, tem certeza que o diabo existe. A minha teoria é baseada nisso. Eu acho que sou um instrumento do diabo. — Que coisa horrível de se dizer, Rocha. — Eu sempre sei onde as coisas erradas estão acontecendo. Eu sempre sei onde os bandidos estão escondidos. Meus pés são guiados para lá e eu os mando para a
cadeia. Sou muito bom nisso. — Isso te faz um instrumento de Deus e não do diabo. – Thomas disse. – Você faz o bem. — Talvez… Mas não é isso que eu sinto. Cada vez que estou diante de um assassino, um estuprador, um traficante de merda que destruiu uma família, um policial corrupto que ajuda a manter esse traficante livre… Cada vez que eu vejo esse tipo de gente, eu não sinto vontade de prendê-los. Inconscientemente, Thomas repousou sua mão sobre o coldre do revolver. As palavras de Rocha eram assustadoras. — O que você sente, então? — Sinto vontade de matá-los. Eu imploro para que eles resistam à prisão, para que se movimentem ou façam qualquer coisa que pelo menos sugira que tentarão reagir… Assim eu posso atirar neles e mandá-los para o inferno. — Meu Deus… — Agora você entendeu o que eu quero dizer, garoto? Eu sou um instrumento do demônio. Eu não pedi para ter esse destino, mas é isso o que eu sou. Este é o meu propósito na Terra: manter o inferno cheio de criminosos. Thomas virou-se para o seu computador. Achou melhor não dizer mais nada. Alguma coisa estava muito diferente em Rocha e ele não seria capaz de dizer o que era. Ele parecia muito mais assustador do que no dia anterior. Aquelas coisas que estava dizendo… Talvez estivesse bêbado ou chapado. Era melhor deixá-lo quieto por um tempo. A manhã passou tão rápido que Rocha decidiu não almoçar. Estava completamente sem fome. Pensou no que seu parceiro havia dito e agora tinha certeza de que ele estava certo. Talvez não fosse muito saudável entrar nos casos com tanta intensidade, mas, se ele não fizesse aquilo, ninguém mais faria. Se não descobrisse porque Michelle fora morta, ela seria completamente esquecida. Seria só mais uma manchete de jornal. Quanto mais pensava nisso, mais sentia que estava naquele caso não para prender o assassino, mas sim para vingar a morte de Michelle. Também havia muitos outros motivos pessoais nesse caso. Alguém estava articulando uma grande vingança contra ele. Uma vingança por algo que, na verdade, ele não tinha feito. Precisava se proteger e não deveria confiar em ninguém. Na polícia, é melhor ser temido do que ser amado. O medo traz o respeito. O amor traz a falta dele. Revirou todos os arquivos de crimes solucionados e arquivados que aconteceram depois do incidente do banco. Leu os depoimentos, viu todas as gravações de interrogações com suspeitos e verificou cada um dos laudos dos peritos. Anotou alguns endereços para visitar e começou a montar o perfil psicológico do seu suspeito.
Começou a organizar as anotações em um quadro preso à parede, na esperança de conseguir montar uma linha do tempo fiel aos acontecimentos. Separou todos os crimes que acreditava terem sido cometidos pelo mesmo assassino e se impressionou com a quantidade. — Você está montando o perfil do assassino? – Thomas perguntou. — Sim. — Nós temos um psicólogo forense aqui na DP que pode ajudar com isso... — Não! Isso não é serviço para psicólogos. — E você pode me dizer o porquê? — Psicólogos gostam de tratar assassinos seriais como artistas. Como gênios. Eles criam perfis complexos e cheios de nuances para impressionar a impressa. Assim, quando o assassino é preso por meros investigadores como eu, os próprios psicólogos parecem ser gênios ainda maiores por terem ajudado na prisão. Isso me dá nojo. — Entendo. Rocha não tirava os olhos dos papéis à sua frente. — Bom... Eu vou tomar café. – Thomas disse. – Você quer que eu traga alguma coisa da cantina? — Não. Estou sem fome. — Tem certeza? — Sim. O tempo passou depressa. Por volta das quatro horas da tarde, Thomas entrou na sala com um saco de papel cheio de pães de queijo e um grande copo de café expresso. Deixou tudo em meio aos papéis sobre a mesa de Rocha e caminhou até a sua própria mesa. — O que é isso? – Rocha perguntou. — Você precisa comer. — Eu sei me cuidar, garoto. Não preciso… — Você é um ótimo policial, Rocha. O melhor que eu já conheci. Mas não vai solucionar esse caso se agir assim. Preciso de você inteiro e disposto. Lembre-se de que o caso ainda é meu, e eu juro por Deus que obrigo o delegado Duval a te tirar dele se ao menos sonhar que você não tem condições físicas para me acompanhar. Eu tenho meus modos de fazer isso. Você não tem mais vinte anos. Pela primeira vez, Rocha sentiu simpatia por Thomas. Ele demonstrou liderança e iniciativa, já que precisava de pessoas aptas para ajudá-lo, e fez a coisa certa para obtê-las. Livrou-se do orgulho, abriu o saco e comeu um dos pães de queijo. Sorriu para Thomas e voltou ao trabalho. — Me desculpe por falar sobre isso, mas eu preciso te pergunta uma coisa,
Rocha... – Thomas disse, depois de algum tempo. – Isso está martelando na minha cabeça desde ontem. — Fale logo, garoto. — O que aconteceu entre você e aquele policial militar? Aquele com quem você discutiu ontem? — O Edmundo? — Isso. Eu sempre o vejo aqui na delegacia e sei que ele está na polícia há muito tempo, mas nunca o vi daquele jeito. E, longe de mim fazer fofoca, mas ele perseguiu o Duval a manhã toda quando soube que você voltaria... — Ele é um idiota idoso. — Só isso? — O que mais você quer saber? – Rocha se irritou. — Bem... Eu não sei. Eu só acho que deve ter acontecido alguma coisa bem séria pra vocês terem brigado desse jeito. Ontem, na reunião, não parecia que estávamos diante de dois policiais, e sim de dois lobos famintos. — O Edmundo não é um policial, garoto. Ele é um pedaço velho de merda que usa uma farda. Sabe por que as pessoas odeiam a polícia? Por causa de homens como ele. – Rocha bateu os punhos com força na mesa, fazendo Thomas saltar da cadeira de susto. — Certo... Me desculpe por perguntar. — Quando eu entrei para a polícia, há mais de vinte anos, ele já era militar. No começo, foi até bem amigável comigo. Parecia que queria me ajudar. Mas não demorou até que eu entendesse qual era a dele. Ele só queria me colocar no seu esquema. O Edmundo tinha uma espécie de parceria com alguns traficantes. Sua função, basicamente, era garantir que as bocas nunca sofreriam batidas da polícia. A minha seria garantir que eles nunca seriam incriminados por seus acertos de contas com os devedores. Eu era jovem, mas não era um completo idiota, então é óbvio que disse sim. — O quê? — Ouça a história até o fim, moleque. — Me desculpe. — Não demorou até que o primeiro corpo chegasse até mim. Era minha primeira investigação. Não foi difícil descobrir que a vítima havia sido assassinada por um dos chefes do tráfico. Eu deveria abafar tudo e livrar o cara, mas não fiz isso. Apresentei os culpados e ainda denunciei o Edmundo por envolvimento com o tráfico e corrupção. No começo, ele se fodeu bastante. Foi preso e tudo mais. Só que bandido tem mais direito do que qualquer outra pessoa nesse país, não é mesmo? Logo ele conseguiu fazer um acordo com um pica-grossa do governo, pôde sair da cadeia e voltar para as ruas como se nada tivesse acontecido.
— E ele não foi atrás de você? – Thomas perguntou. — Tantas vezes que eu até perdi a conta. – Rocha respondeu com um sorriso. – Mas eu fiz com que ele se arrependesse disso. Ele tentou me matar algumas vezes, mas contratou uns caras muito ruins de serviço para ajudar. — Esse cara não pode ficar solto por aí! A gente tem que botar ele na cadeia. Por que você não fala com o Duval? — Ele não pode fazer nada. Quantas vezes você acha que nós já conversamos sobre isso? O Edmundo é liso demais. O melhor que eu posso fazer agora é deixar ele pra lá. — Se eu fosse você, tomava mais cuidado, Rocha. Se ele é tão esperto quanto você está dizendo, pode estar tramando alguma coisa. Eu não duvido de que ele vá atrás de algum grupo de extermínio ou até coisa pior! Vamos falar com o Duval outra vez. Não há problema nenhum em ficar assustado e, além do mais, ele... — Eu estou na polícia há mais de vinte anos, garoto. – Rocha interrompeu. – A única coisa que me assusta hoje em dia é café descafeinado. — Duvido que você não sinta medo de morrer. – Thomas disse, como se estivesse desafiando o parceiro. — Eu só tenho medo de duas coisas que podem me matar nesse mundo, garoto: Aranhas e alienígenas. Até onde sei, o Edmundo não é nenhum dos dois. Eu já acabei com sete grupos de extermínio na minha carreira. Acabar com mais um vai ser um grande prazer. — Meu Deus! Sete? Nesse exato momento, Duval entrou na sala. Estava levemente eufórico, mas sua voz parecia cansada. Entrou sem nem ao menos bater, como era de costume, mas não chegou a atravessar o batente. — Achamos mais um corpo... – disse. – Ou melhor, dois corpos.
Capítulo Oito O galpão era muito grande. Foi construído para ser a sede de uma empacotadora de cereais, mas em menos de um ano, a empacotadora faliu. O prédio se tornou uma fábrica de costura para senhoras viúvas que precisavam complementar a aposentadoria, mas isso também não foi para frente. Posteriormente foi alugado por uma transportadora, tornando-se um centro de distribuição de mercadorias, mas a vizinhança não era das melhores, e os assaltos frequentes fizeram com que o centro mudasse de lugar. Agora, depois de anos sem que ninguém quisesse aluga-lo, o galpão não passava de um belo abrigo para ratos e morcegos. E, mais recentemente, o local ideal para desova de corpos. As viaturas se esforçaram para percorrer as apertadas ruas de mão dupla que levavam até aquele lugar desolado. Traficantes gostavam desses ambientes. Uma fuga a pé era fácil para quem já conhecesse o lugar, mas para os policiais, era um verdadeiro labirinto. E as casas, que mais pareciam barracos, embora ali não fosse necessariamente uma favela, se amontoavam em todos os lugares disponíveis. Assim como em qualquer outra cidade grande do Brasil, o espaço era muito importante e não deveria ser desperdiçado e as calçadas eram praticamente inexistentes. Quando Rocha e Thomas chegaram ao galpão, se surpreenderam com a quantidade de policiais e peritos espalhados em busca de vestígios do assassino. Alguns colhiam provas, outros fotografavam o local minunciosamente. Os corpos estavam pregados em uma parede nos fundos do local, bem à vista dos olhos de quem entrasse. Era um homem e uma mulher. Ambos estavam nus, de ponta cabeça e, como era de imaginar, pregados em forma de cruz. Dessa vez, porém, já estavam em um estágio um pouco avançado de decomposição. Um dos peritos disse que estavam ali há pouco mais de uma semana. E as inscrições também estavam presentes. Os mesmos cortes profundos encontrados na pele do juiz eram visíveis ali, mas dessa vez havia algumas diferenças. Na barriga do homem estava escrito PEDRO ROCHA uma única vez. Já, na barriga da mulher, a única palavra visível era VINGANÇA. — No começo da semana, a PM recebeu algumas ligações reclamando sobre um cheiro ruim saindo deste local. – disse Duval. – Vieram aqui, mas não encontraram nada. Hoje eles receberam uma nova ligação alertando que havia dois corpos aqui. Quando chegaram, identificaram o padrão e me chamaram. Rocha viu Maria caminhando até eles, vindo de uma das salas do fundo do
galpão. Carregava consigo alguns sacos com evidências colhidas no local. — As vítimas foram mortas há pelo menos dez dias. – ela disse. – Eu acho que o assassino esperava que eles fossem encontrados antes do juiz, mas, como a polícia não costuma vir muito aqui, o plano deu errado. — E foi por isso que ele matou o juiz na sua própria casa e não em um lugar abandonado. – Rocha concluiu o raciocínio. – Era mais arriscado, mas o corpo seria encontrado com mais facilidade. — Exatamente. – Maria disse. – Mais do que isso, eu acho. Ele quis garantir que o juiz seria encontrado o quanto antes, e foi por isso que enviou os DVDs com os vídeos para a delegacia. — O que você encontrou aqui? – Thomas perguntou. — Outro vídeo, provavelmente. Encontramos um CD preso por uma corda no pescoço do homem. Ele está aqui. Ela entregou o CD para Thomas enquanto Rocha caminhava lentamente até os corpos. Precisava examiná-los de perto, para ver se encontrava alguma coisa. Qualquer coisa capaz de abrir sua mente. Usou a manga da camisa para cobrir o nariz. O cheiro era tão forte que parecia alcançar seu cérebro, causando uma dor forte e aguda. Havia marcas de tiros na cabeça dos dois. Mas, aparentemente, nenhum deles fora torturado. Os cortes na pele também foram feitos depois da morte. Isso podia significar duas coisas: Talvez o assassino ainda estivesse inseguro sobre como cometeria os crimes e, por esse motivo, resolveu praticar mais uma vez e os usou como teste final. Ou talvez, como era mais provável, ele já tivesse começado a sua vingança e eles foram os primeiros da lista, mas ele não os odiava tanto quanto o juiz. Por isso, resolveu simplesmente atirar em suas cabeças para evitar a dor antes de todo o ritual característico. Algum tempo depois, Rocha voltou para onde Thomas, Duval e Maria estavam. O assassino era esperto. Só deixava para trás o que queria que fosse encontrado. Nenhuma digital e nenhuma amostra biológica. Não havia absolutamente nada que pudesse denunciar a sua identidade. Estavam cada vez mais certos de que lidavam com um profissional. — Você acha que foi a mesma pessoa? – Duval perguntou, quando Rocha chegou. — Achei que isso fosse óbvio. – Rocha respondeu. — Você sabe tão bem quanto eu que nada é óbvio quando estamos falando de psicopatas. O assassinato do juiz pode ter sido uma imitação. Pode ter sido alguém que queria sumir com ele e decidiu seguir os mesmos passos deste. Apesar de parecidos, os dois crimes foram bem diferentes. Até onde sabemos, ele não usou armas de fogo nas mortes de ontem. Mas estes dois foram executados com tiros na cabeça…
— Até poderia ser, se tivéssemos achado estes corpos antes, Duval. Como alguém poderia saber do crime antes dele ser divulgado? — Não sei… Uma rede de assassinos, talvez. — Sim. Mas onde eu entro nisso? E faz todo sentido matar o juiz e ligar isso a mim. Mas e esses dois? Eu não faço ideia de quem sejam. — Já estamos tentando descobrir. – Thomas disse. — Eu preciso respirar um pouco de ar puro. – Rocha reclamou. – Esse cheiro está me matando. Ele atravessou o galpão com passos largos. Se ficasse ali mais alguns minutos, acabaria vomitando no chão. Realmente, não estava mais acostumado àquele cheiro. Dessa vez, ele parecia ainda pior. Era como se milhares de agulhas estivessem entrando pelo seu nariz e deslizando em direção ao seu cérebro. Uma dor absurda. Do lado de fora, viu as viaturas e os policiais que mantinham o lugar seguro. Uma faixa de contenção foi colocada de fora a fora, cercando toda a entrada do galpão, para que nenhum dos curiosos entrasse no lugar. Servia também para manter os repórteres longe. E já havia mais de uma dezena deles ali, com suas vans repletas de equipamentos e suas câmeras de alta resolução. Havia até mesmo um helicóptero sobrevoando o local. Um logotipo muito conhecido estampava as laterais da aeronave: SÃO PAULO CONTRA O CRIME . O programa de TV sensacionalista apresentado por Luiz Rezende, um fanático religioso sem nenhum escrúpulo. Rocha sentiu vontade de atirar no helicóptero, mas, mesmo que o fizesse, não teria o resultado desejado. Ele estava alto demais. Do outro lado da faixa de contenção, uma centena de pessoas se amontoava tentando enxergar o que acontecia lá dentro. Alguns sabiam que eles haviam descoberto os corpos, mas outros eram apenas curiosos atraídos pela aglomeração incomum. Brasileiros adoram filas e tumultos. Em meio a todas aquelas pessoas comuns, um homem se destacava. Ao menos para Rocha, que acreditava ser atraído por pessoas suspeitas. Ele usava roupas totalmente pretas e uma blusa de moletom grande e pesada, mesmo com o calor de 32°C. Também escondia a o rosto com a touca da blusa. Era obvio que não queria ser visto, mas era tão imbecil que, ao invés de se misturar, fazia de tudo para chamar a atenção, usando aquelas roupas distintas. Rocha acendeu um cigarro e caminhou em direção ao sujeito, lentamente, para evitar suspeitas. O homem não notou até que o investigador já estivesse perto o suficiente para agarrá-lo. Ainda assim, conseguiu fugir quando Rocha avançou sobre as pessoas e segurou se braço. A gritaria começou imediatamente. Ele se levantou do chão tão rápido quanto pôde e começou a correr atrás do suspeito, que, a essa altura, já dobrava a primeira esquina, tentando fugir. Alguns policiais correram para ajudá-lo,
enquanto outros ficaram para trás, no controle da situação. O suspeito estava em boa forma e era rápido. Deveria ser jovem e era bem alto também. Ou seja, se encaixava nas descrições que eles tinham do assassino. Mas, de duas uma: ou era muito burro ou queria ser preso. De outra forma, não apareceria por ali assim, chamando tanta atenção para si. Rocha o seguiu pela calçada minúscula e por pouco não o perdeu de vista. Atravessou a rua correndo por entre os veículos e quase foi atropelado, mas conseguiu manter o ritmo, com o suspeito a poucos metros de distância. Sentiu uma pontada no coração. Depois de tantos anos de sedentarismo e abusos com o álcool e os cigarros, finalmente o investigador começou a sentir que estava fora de forma. Mas não podia perder aquela chance. Ele estava perto e não podia escapar. Rocha saltou sobre alguns sacos de lixo que o suspeito derrubou enquanto passava e quase torceu o pé ao tocar novamente o chão. A dor aguda no peito se intensificou. Começou a perder o ritmo da corrida. O suspeito deveria conhecer bem aquele lugar. Entrou em um pequeno restaurante e saiu atropelando todos que estavam nas mesas. Empurrou um dos garçons e entrou na cozinha, passando por entre os cozinheiros e as mesas. Derrubou uma fritadeira logo atrás de si, espalhando gordura fervente e pastéis pré-fritos por todo o chão. Totalmente sem fôlego, Rocha entrou no restaurante e seguiu o rastro que ele deixara. Atravessou a cozinha e, por muito pouco, não escorregou na gordura. Diminuiu a velocidade quando avistou o suspeito, que estava tentando escalar sem sucesso um muro enorme, com mais de cinco metros de altura. Tirou a arma do coldre e apontou para ele. — Fique parado aí, seu filho da puta! Você está preso. — Eu não fiz nada… – o homem disse, ainda tentando escalar o muro. — Fique parado ou eu atiro em você. – Rocha disse, tentando recuperar o fôlego. – Você me deixou cansado demais pra raciocinar. Não me irrite mais, moleque, ou você vai se arrepender. O homem desceu do muro e se ajoelhou. Colocou as mãos na cabeça e ficou parado, olhando para o chão. — Que bom que já conhece o procedimento. – Rocha se aproximou e encostou a arma em sua cabeça. – Só que eu esqueci minhas algemas lá na viatura… E não estou a fim de te arrastar até lá, pra você fugir e eu ter que correr outra vez. E se eu atirar em você e ligar pra ambulância? Talvez você chegue vivo ao hospital. — Pelo amor de Deus, senhor… – o suspeito começou a chorar. – Eu não fiz nada… Rocha engatilhou sua pistola. Não atiraria de verdade, mas gostava de saber
mais sobre os suspeitos que investigava. E, como dizia seu pai, não há motivação maior nesse mundo do que o medo da morte. Naquele exato momento, Thomas e mais três policiais chegaram ao local. Abaixaram as armas quando viram que Rocha já havia rendido o suspeito. Mas se assustaram quando viram a cena. Rocha ainda estava com a arma na cabeça do homem ajoelhado. — Salvo pelo gongo, moleque… A sala de interrogatório era um dos lugares que Rocha mais sentiu falta enquanto esteve longe do DHPP. Ali, ele era a Lei Encarnada. Tinha poder sobre o interrogado e podia fazer com ele o que quisesse. Isso, é claro, quando o delegado Duval não estivesse por perto. Ele tinha o péssimo hábito de seguir rigorosamente os regulamentos. Isso sempre atrasava as investigações. O suspeito estava sentado em uma cadeira com os dois pés algemados na mesma. Suas mãos também estavam algemadas nas costas, de uma forma que praticamente qualquer movimento que fizesse lhe causaria muita dor. Aquele, nem de longe, era o procedimento padrão, mas Rocha estava disposto a ir até o fim para obter respostas. Os investigadores entraram na sala algum tempo depois que o suspeito fora colocado ali. Rocha trazia consigo alguns papéis, uma ficha básica do suspeito, com as informações que conseguiu pesquisando nos arquivos da polícia. Thomas trazia apenas um copo de água. — Está com sede? – perguntou, mostrando o copo ao homem. Ele acenou positivamente com a cabeça. – Então me ouça atentamente. Vou soltar as suas mãos e você vai ficar quieto, imóvel, como se ainda estivesse algemado, certo? — Certo… – o homem gaguejou. — Essa não é a primeira vez que você é preso… Você ainda trafica? – Rocha perguntou, enquanto seu parceiro soltava as algemas do suspeito. Depois disso, ele pegou o copo de água e bebeu desesperadamente, como alguém que passou uma semana inteira no deserto. — Não… não é a primeira vez não, doutor. – disse o suspeito. – Mas eu não me envolvo mais com isso não. Nunca mais vendi nada. Eu juro! — Tudo bem. Confirme seu nome. — Alessandro da Silva. — Então vamos ao que interessa, Alessandro. – Rocha puxou uma outra cadeira e se sentou em frente ao suspeito. – O que você fazia na cena de um crime? E por que fugiu? — Eu não fiz nada. Não matei ninguém não, doutor... Eu só estava olhando.
— Sabia que assassinos sempre voltam para a cena do crime? – disse Thomas. — Eu já disse que não matei ninguém. — Mas você fugiu. – disse Rocha. — O doutor me atacou! É claro que eu fugi. — Você é o pior mentiroso que eu já vi em toda a minha vida. Estava de moletom debaixo de um sol extremo. E estava desesperado, olhando para todos os lugares ao mesmo tempo. Estava tentando esconder alguma coisa. O que é? — Eu não estou escondendo nada. Rocha arrastou sua cadeira para mais perto do suspeito e aproximou-se dele o máximo que pôde. Ficou tão perto que chegou ao ponto de poder cochichar em seu ouvido. — Olha… Você se lembra do que eu te disse naquela hora, pouco antes de te prender? Ainda está valendo. Se você não me disser a verdade, vou ser obrigado a te soltar. Mas não posso garantir que você chegará em casa. Essa cidade é muito violenta, sabia? — Eu moro ali perto… – o suspeito disse, tomado pelo medo. Ouvira muitas histórias de pessoas mortas pela polícia por não confessarem o que eles queriam. – Costumo ver coisas estranhas naquele galpão. Ele está abandonado há algum tempo, mas tem sempre alguém lá. O pessoal usa pra fumar e dar uns amassos também. Outro dia, gravaram um filme pornô lá. Foi por isso que eu desci pra olhar. — Olhar o quê? — Sei lá. Achei que estava acontecendo alguma coisa interessante. — E estava. Um assassinato. — Eu juro que não tenho nada a ver com isso. — Nós acreditamos em você, Alessandro. – disse Thomas. – Mas você vai ter que provar isso. — Fui eu quem ligou pra vocês. — Quando? — Hoje. Fui eu quem informou o local dos corpos. Eu senti o cheiro. As outras pessoas também sentiram e não quiseram ligar. Mas eu liguei. — Você viu o que aconteceu com aquelas pessoas? — Já fazia muito tempo que ninguém morria ali. Alguns anos atrás, umas bocas usavam aquele lugar como matadouro. É por isso que o pessoal gosta de ir lá. Tem um clima pesado e sinistro. Pelo menos, é isso que eles dizem. Na semana passada, eu vi um cara entrar lá com mais duas pessoas. Eu segui eles porque achei que ia rolar um pornô, já que tinha uma mulher junto. Me escondi e fiquei vendo de longe. — O que aconteceu? — O cara pegou uma câmera e tirou a roupa deles... Depois fez eles falarem
alguma coisa que eu não entendi. Aí, quando eu pensei que ia começar a sacanagem, ele pegou uma arma e atirou na cabeça deles. Eu fiquei com muito medo, mas não consegui sair. Minhas pernas congelaram. Depois ele pegou uma faca e começou a cortar eles... Foi horrível. — Por que você não ligou para polícia imediatamente? — Eu fiquei com medo. Já vi outros policiais por ali. Ele poderia ser um de vocês. Eu achei que alguém ia acabar descobrindo e avisando vocês, mas ninguém fez isso. Então eu voltei lá. Quando vi que os corpos ainda estavam lá, apodrecendo, achei que era melhor ligar. — Você vai responder por ocultação de cadáver. – Rocha disse. Ele se levantou da cadeira e caminhou em direção à porta. – Mas eu vou investigar melhor essa história. Se houver um furo que seja, vamos conversar novamente, dessa vez em particular. — Ocultação de cadáver? – o homem gritou. – Pelo amor de Deus, doutor, eu não fiz nada! Eu avisei vocês! Os investigadores saíram da sala. Encontraram Duval na sala ao lado, assistindo ao interrogatório pelo vidro especial. Ele estava ainda mais sério do que o comum. Era como se uma aura negra se espalhasse ao seu redor. Rocha sabia exatamente o motivo daquilo: ele havia assistido ao vídeo encontrado na cena do crime. — Vocês acreditam nele? – perguntou, quando Rocha e Thomas entraram na sala. — Ele é um idiota… – Thomas disse. – Mas não parece estar mentindo. — É… Eu também acho que não. Mas investiguem tudo mesmo assim. Ele pode estar encobrindo alguém. Essa história já está indo longe demais. Precisamos acabar com isso logo! Todo mundo está subindo nas minhas costas, como se eu fosse o culpado. — Você já assistiu ao DVD? – Rocha perguntou. — Já. — E? — É melhor que vocês assistam e tirem suas próprias conclusões. Eles caminharam até a sala do delegado, onde o aparelho de DVD já estava posicionado, pronto para reproduzir o vídeo encontrado. Quando todos se sentaram, Duval apertou o “play” no controle remonto. A imagem que surgiu na tela mostrava o galpão onde os corpos foram encontrados. Era óbvio que fora gravado durante a noite, pois não havia luzes entrando pelas frestas nas janelas. A câmera se movimentou de um lado para o outro e depois ficou imóvel. Provavelmente, alguém a colocou em um tripé. O foco foi ajustado e, logo após, um casal se tornou visível. Eles estavam com os braços e as pernas amarradas,
um de costas para o outro, sentados no chão e completamente nus, encostados em um grande pilar de concreto. Mas apenas a mulher estava consciente. O homem estava desmaiado ou morto, e havia muito sangue escorrendo de sua cabeça. Subitamente, uma mão apareceu na lateral da tela portando uma pistola. A mão se posicionou na direção da mulher, que começou a chorar desesperadamente. — Leia. – uma voz visivelmente adulterada por computador ecoou pelo lugar. – Leia agora ou eu atiro na sua cabeça. A mulher olhou para o chão, uma folha de papel fora posicionada próxima aos seus pés. Ela forçou os olhos para conseguir entender o que estava escrito, mas a luz fraca não ajudava muito. O homem com a arma não parecia muito disposto a esperar. Ele a ameaçou de novo, dessa vez, ainda mais irritado. — Este é o início da minha vingança. – a mulher começou a ler. As lágrimas se misturavam com as gotas de sangue que salpicavam seu rosto e o resto de seu corpo. – O mau será banido desta Terra. A injustiça será remediada. É o fim. O traidor será punido. Ela fez uma pausa e, depois de engasgar, iniciou uma crise de choro. O assassino atingiu o ápice de sua irritação. Sua mão desapareceu da tela, mas o som estridente de um disparo ecoou pelo lugar. Provavelmente, ele havia dado um tiro para o alto. Desesperada, a mulher soltou um grito agudo e voltou-se para a folha de papel aos seus pés. — Bem-vindo ao meu mundo, Pedro Rocha. – ela voltou a dizer. – Isto é por você. Seu mal será expurgado da Terra. A partir de agora, três pecadores serão mortos todas as semanas, até que você me encontre e acertemos nossas contas. Eu sou o anjo da morte. Imediatamente, assim que ela terminou de ler, o assassino disparou. A bala atingiu sua cabeça com tanta força que seu corpo arqueou para trás. Ela caiu sobre o homem, derrubando-o para o lado e mostrando para a câmera que ele também já havia sido atingido na cabeça. Lentamente a tela escureceu.
O Assassino da Cruz
Parte Dois
Capítulo Nove Quatro anos antes…
Ivo passou pela revista calmamente. Já estava bem acostumado com aquele procedimento. Costumava dizer que passava mais tempo na cadeia do que os próprios presos. Ainda assim, odiava aquilo. Ele tinha seus padrões. Gostava mais de atender a outros tipos de bandidos. Aqueles que usavam terno e gravata e que, nas raras vezes em que iam presos, desfrutavam de suas penas semiabertas em elegantes mansões. Mas aquele caso era especial. Eles haviam roubado muito dinheiro. Tanto que sua comissão seria maior do que todo o seu faturamento do ano anterior. Valia a pena entrar naquele lugar mais uma vez. O juiz Maurício havia garantido tudo e não tinha motivos para desconfiar dele. Os dois homens estavam sentados lado a lado em uma mesa de madeira, dentro de uma sala particular. Do lado de fora, dois policiais mantinham guarda. Ivo os cumprimentou e apresentou seu crachá. Depois entrou e se sentou do outro lado da mesa, de frente para ambos. O policial trancou a porta atrás deles. — Boa tarde, senhores. – ele disse. – Eu sou o novo advogado de vocês. Me chamo Ivo Dirceu Fortunato, mas prefiro que me chamem de Dr. Fortunato. A partir de agora, trabalharemos duro para resolver esse caso o quanto antes. — Só tem uma coisa que me importa, doutor. – disse um dos homens. Ele tinha uma tatuagem tribal no pescoço que, aparentemente, descia até o seu peito – Quando eu vou sair daqui? — Estou fazendo de tudo para agilizar isso. Mas você sabe como as coisas funcionam… — Eu não sei de nada. — Antes de tudo, eu quero falar sobre a única coisa que me importa. – Ivo inclinou o corpo para frente, aproximou o seu rosto dos homens e cochichou: – Onde está o parceiro de vocês? — Acha que nós vamos dizer assim, idiota? – o outro homem respondeu. Ele era maior, mais forte e tinha a pele muito clara, quase como se fosse albino. Devia vir de alguma família nórdica. – Que garantias você me dá? — A garantia de que vocês são dois idiotas. – Ivo respondeu, se controlando para não esmurrar a mesa. – E seu eu fosse um policial? Vocês acabaram de assumir
que sabem onde ele está. Se eu fosse um milico disfarçado, te descia a porrada agora, até você falar onde o dinheiro está. Os dois bandidos se entreolharam, assustados. — Vocês precisam tomar mais cuidado com o que disserem daqui pra frente. Se querem mesmo sair, precisam fazer exatamente o que eu mandar. Vão falar que foram coagidos a agir e que o companheiro de vocês é que foi o mandante. Precisam dizer que ele fugiu com todo o dinheiro e que vocês não fazem ideia de onde ele está. Depois inventaremos um endereço qualquer e incriminamos qualquer idiota só para a polícia acreditar que vocês estão ajudando. Quando descobrirem o erro, vocês já estarão desfrutando umas férias bem merecidas no Hawaii. — E o que nós fazemos agora? – perguntou o tatuado. — Vocês vão ler atentamente estas instruções. – Ivo retirou dois blocos encadernados de dentro da maleta e entregou um para cada. – O terceiro parágrafo da página 23, o quinto da página 52 e o oitavo da página 107. O resto é só texto inútil. Caso alguém queira saber, digam que são documentos sigilosos sobre a sua confissão, e os policiais deixarão vocês em paz. Nós já estamos cuidando de todo o resto. Daqui a pouco estarão soltos. — Certo. Ivo levantou-se e preparou-se para sair. — E não tentem me enganar, senhores. Eu tenho amigos muito poderosos. *** Dias atuais
A noite já havia caído, mas as luzes estavam apagadas. Ivo começou a recobrar a consciência depois de algumas horas desmaiado. Logo notou que estava sozinho. Tentou se levantar, mas não conseguiu. Suas pernas estavam moles e ele não conseguia se manter de pé. Sua visão também estava completamente turva. E, como se isso não fosse o suficiente, fora algemado pelas duas pernas nos canos de ferro de um móvel da sala de recepção. Arrependia-se amargamente por preferir comprar móveis planejados, ultrarresistentes, e não armários simples, feitos de compensado e pó de serra. Enquanto tentava se levantar, sentiu uma dor lancinante no ombro e então lembrou por completo do que havia acontecido. Cerrou os olhos até conseguir ver o sangue seco envolta do pequeno furo na camisa de seda caríssima. O tiro o havia acertado de raspão no ombro esquerdo, mas foi suficiente para fazê-lo desmaiar por
horas. Sentiu-se um idiota por isso. Tentou chamar por sua secretária, mas a voz não saia de sua boca. Além do mais, ela já deveria estar morta. Em breve, talvez ele também estivesse. Estava quase adormecendo quando ouviu um ruído de chave na porta da frente. Alguém estava voltando. Rezou para que fosse um dos seus funcionários, mas sabia que não era, já que ainda era noite. O invasor não teria tido todo aquele trabalho apenas para atirar em seu ombro e depois ir embora. Ele estava de volta para terminar o que havia começado. Tentou gritar novamente, mas a voz ainda não saia. Logo entendeu do que se tratava. Estava impossibilitado de falar em razão de um simples artifício. Tão simples que chegava a ser engraçado. Silver tape. A mesma silver tape que comprara três dias antes para um de seus capangas dar um susto numa das prostitutas do juiz Maurício. A vida era irônica. O invasor entrou com cuidado. Caminhou até ele retirou a fita de sua boca. Ele começou a gritar, mas recebeu um chute tão forte no estômago que não conseguiu respirar por alguns minutos. — Você não sabe o que está fazendo, seu idiota. – quando o fôlego voltou, começou a falar, mas sem gritar, dessa vez. Não queria levar outro chute. – Eu tenho amigos muito poderosos! O homem o ignorou e caminhou até a mesa de centro da sala. Colocou sobre ela a mochila que carregava. Depois foi até o interruptor, acendeu a luz e só então se sentou numa das elegantes cadeiras posicionadas ao redor da mesa. Ivo fechou os olhos imediatamente, assim que a luz os atingiu como flechas. — Olha… Eu não sei quem você é nem quem te mandou aqui, mas a gente pode conversar. – Ivo disse quando seus olhos se acostumaram com a luz. Achou melhor mudar de estratégia, já que amedrontar o homem, pelo visto, não iria funcionar. – Eu tenho muito dinheiro. Muito dinheiro mesmo. Acho que nós podemos fazer um ótimo acordo. O homem abriu a mochila e tirou de dentro dela uma câmera e um tripé. Os posicionou poucos metros ao seu lado, em um ângulo no qual o advogado ficasse sempre em cena. Voltou para a mesa de centrou e olhou dentro da mochila. Tirou de lá um elegante estojo de couro preto, uma seringa e uma ampola com um liquido rosado. Logo em seguida, encheu a seringa com o conteúdo da ampola. — O que você vai fazer, cara? – Ivo perguntou. O homem não se deu ao trabalho de responder. Caminhou até ele e injetou o todo o conteúdo em seu braço. Depois voltou para a mesa e retirou de dentro da mochila uma blusa de couro negro e um capuz de motoqueiro. Enquanto via o homem se vestir, Ivo sentiu sua cabeça girar, ao mesmo tempo em que sua visão se embaçava cada vez
mais. Quando estava completamente vestido, o homem caminhou até a câmera e apertou a tecla REC. Então abriu o estojo e mostrou seu conteúdo para a lente. Foi até onde Ivo estava e sentou-se ao seu lado, apavorando-o ainda mais. O advogado estava prestes a perder a consciência, mas conseguiu juntar todas as suas forças para uma última tentativa. — Pelo amor de Deus, cara… – o rosto do advogado estava vermelho, banhado em lágrimas. Ele estava completamente desesperado. – Eu tenho família… — Não. Eu sei que você não tem. – o homem respondeu. Ele abriu o terno de Ivo com violência. Puxou sua camisa com muita força, fazendo os botões saltarem pelos ares. Ivo já não conseguia mais reagir. Seu corpo estava paralisado. Um bisturi percorreu a pele com rapidez e precisão, deixando para trás apenas um rastro de sangue, que ia do tórax até o umbigo. — Mas eu tinha, advogado. Eu tinha uma família.
Capítulo Dez Maria Clara era 10 anos mais nova do que Rocha. Quando se conheceram, ela havia acabado de ingressar na polícia, logo após o término do curso de Medicina em uma faculdade pública. Se seus pais biológicos estivessem vivos, teriam ido contra a sua escolha. A polícia pagava muito menos do que um hospital. Mas a culpa dela estar ali, de qualquer forma, era de seus pais também. Eles foram mortos em um assalto quando ela tinha apenas 16 anos. Ela estava na escola quando o crime aconteceu. Estudava no período noturno, pois havia conseguido um emprego durante o dia como garçonete em um fast-food. Viviam em uma casa simples e pequena em Santana, mas grande o suficiente para despertar o interesse dos marginais. Quando ela chegou a casa, viu dois homens saindo em uma caminhonete preta. Achou estranho, mas provavelmente eram amigos de seu pai. Ele conhecia muita gente, já que trabalhava como vendedor em um depósito de materiais de construção. O portão havia sido deixado aberto, algo não muito normal àquela hora da noite. A porta da sala estava aberta também. Isso, definitivamente, não era normal. Correu para dentro de casa e sentiu o mundo cair sobre suas costas. Seu pai e seu irmão estavam na sala, sentados no sofá, mas não havia vida em seus olhos, apenas um brilho frio e assustador. Os tiros foram certeiros. É provável que nem tenham visto o que os atingiu. Sua mãe estava sentada em uma cadeira, com o rosto caído sobre a mesa de jantar da cozinha. Fora atingida pelas costas. Ela ligou para a polícia naquele mesmo instante, desesperada. Mas ainda faltava alguém. Sua irmã mais velha já deveria estar em casa naquela hora. Ela também estudava à noite, mas nunca chegava depois das dez. Correu para o quarto que dividia com ela, já temendo pelo pior. E o pior se concretizou quando entrou no quarto. O lugar estava completamente revirado. Até mesmo o guarda-roupas fora derrubado no chão. Mas o pior detalhe naquela cena terrível era a cama. Sua irmã estava lá, seminua, coberta de sangue. Havia muitas marcas de mordidas e hematomas de tapas e socos por todo o seu corpo. Foi estuprada e morta. A polícia chegou algum tempo depois. Tempo suficiente para que os criminosos desaparecem. Ficou claro para Maria que os policiais não se importavam com ela e nem com a sua família. Simplesmente fizeram o serviço para o qual eram pagos. Eram robôs incapazes de sentir qualquer empatia. Sua família fora destruída e eles sequer ouviram o que ela tinha a dizer. Disseram que estava delirando por causa do trauma. Contou sobre a caminhonete que viu sair de sua casa e forneceu, inclusive, o número da
placa do veículo. Sua memória era quase fotográfica e ela tinha a mania de decorar todos os números de placas de carros que julgasse suspeitos, isso desde que aprendeu a identificar números. O policial que a interrogou não anotou o número. Nem nada que ela havia dito. E, exatamente como ela esperava, no fim das contas, a investigação não deu em nada. Ela tinha certeza de que nunca houve uma investigação de verdade. Talvez os policiais estivessem envolvidos. Talvez os criminosos pagassem para que eles fizessem vista grossa. Havia muitas possibilidades e ela estava disposta a ir fundo em cada uma delas. Como ainda era menor de idade, foi mandada para um lar adotivo, já que não tinha parentes próximos com condições de sustentá-la. No início, foi muito resistente a essa ideia. Mas não havia como ir contra a decisão do juiz. Foi então que, pela primeira vez, uma coisa boa aconteceu com ela. Seus pais adotivos já eram mais velhos. Estavam na casa dos sessenta, mas ainda assim eram altivos e muito diferentes do convencional. Não a trataram como uma coitada ou apenas como uma criança traumatizada, mas como uma grande amiga que precisava de atenção e um pouco de carinho. Ela aprendeu muito com eles. Não demorou muito até que passasse a amá-los com todas as forças, embora jamais deixasse de pensar em seus pais biológicos e seus irmãos nem um único dia sequer. Deu-se tão bem com eles, que continuaram morando juntos até que ela completasse 22 anos. Foram eles que a incentivaram a fazer Medicina. Ela tentou uma faculdade pública e graças à ajuda de seu pai adotivo com os estudos, – ele era um médico aposentado – Maria Clara foi aprovada com louvores. Eles também ficaram ao seu lado quando ela decidiu seguir carreira na polícia. Estava disposta a doar a sua vida para que crimes fossem solucionados e não ignorados, como aconteceu com sua família. E, novamente, seus pais adotivos apoiaram sua decisão. Rocha entrou em sua vida nesse momento. Depois de ser aprovada no concurso e iniciar com perita no DHPP, foi apresentada a ele pelo delegado Duval em sua primeira cena de crime. Ela estava ali apenas para auxiliar o trabalho do perito veterano, mas Rocha estava comandando a investigação e parecia inteiramente absorvido pela sua tarefa. Isso a deixou completamente fascinada. Ele parecia disposto a ir até o fim para resolver aquele crime. Não era como os policiais com os quais ela havia lidado anos antes. Sujeitos gordos, incapazes de correr uma curta distância sem sofrer um infarto e, pior ainda, completamente alheios à situação. Preocupados, talvez, apenas com o dinheiro que os bandidos pagavam para continuarem assim, incompetentes. Pedro Rocha era exatamente o oposto disso. Era alto, forte e concentrado. Além disso, era muito bonito, com aquele jeito de galã de cinema e físico invejável. E o
principal: fazia seu trabalho com uma maestria única. Era uma fortaleza. Para Maria, foi difícil não se imaginar nos braços dele, naquela noite. E nas noites seguintes. Ele resolveu o crime daquele dia. E resolveu todos os outros crimes que apareceram nos próximos dias, fazendo com que a admiração de Maria por ele e por seu trabalho crescessem ainda mais. E, sem que ela notasse, uma chama se acendeu em seu coração. Ela alimentava a chama com longas noites escrevendo em seu diário sobre ele e sobre as suas façanhas. Não tinha coragem de conversar com Rocha fora do serviço, mas, ao menos por enquanto, se contentava em poder vê-lo. Afinal, não sabia nem se ele era casado. Havia uma aliança em sua mão, mas as pessoas comentavam que ele era solteiro. Até o dia em que descobriu que ele havia se separado pouco tempo antes dela entrar para a polícia. Sua mulher havia fugido para longe e levado seu filho com ela. Não aguentou sua obsessão pelo trabalho. Ele era o melhor investigador da polícia, isso era fato. Mas também era o mais assustador deles. Chegava a passar dias sem dormir e sem demonstrar sinais de sono. Não ingeria nada além de café. Era como se tentasse punir seu corpo, obrigando-o a trabalhar até que o crime fosse solucionado. Caso contrário, não seria recompensado com descanso e nem com alimento. Maria contrariou todos os seus princípios, certa vez, e o seguiu quando ele foi embora. Ele caminhou por algumas quadras e logo depois entrou num bar. Sentou-se num balcão e pediu “o de sempre”. O garçom trouxe uma garrafa de cerveja e uma dose pequena de whisky. Ela se sentou ao seu lado e fingiu não notar que ele estava ali. Depois, fingiu uma surpresa ao vê-lo e começou uma conversa. Naquela noite, ele estava muito bem. Havia solucionado um grande crime envolvendo dois policiais corruptos e nada o deixava mais feliz do que limpar a polícia da escória corrupta que se esgueirava por entre as pessoas de bem. — Eu sou uma grande fã do seu trabalho, senhor Rocha… – ela disse, quando as apresentações e os fingimentos terminaram. – É uma honra trabalhar com pessoas tão competentes. — Não diga isso. – ele sorriu. – Eu posso ficar convencido. Além do mais, o crime só é resolvido se o perito for bom. Ela sentiu o rosto corar. — Eu sei que ainda é uma novata, mas eu vejo um futuro brilhante pra você, sabia? – Rocha disse enquanto pedia que o garçom trouxesse outro copo. – E me faça um favor… não me chame de senhor. Me chame de Rocha. — Claro… Rocha. O rosto dela corou ainda mais. Mas sua coragem também se ampliou e ela se sentiu muito mais à vontade para falar sobre o que lhe vinha à mente. A conversa se estendeu por várias horas. Tinham muito mais em comum do que ela imaginava. Desde
gostos musicais até posições políticas, embora ela fosse um pouco mais esperançosa do que ele sobre esse tema. Maria acordou às quatro da manhã, nua, em uma cama desconhecida, em um quarto desconhecido. Olhou para o lado e viu Rocha adormecido. Sua cabeça doía muito e ela sabia exatamente o porquê. Ele era educado demais para tomar uma iniciativa e ela era tímida demais para se oferecer. Decidiu afogar seus medos com álcool, pois seus colegas de faculdade sempre diziam que ela se transformava quando bebia. O plano deu muito certo. Abraçou Rocha e adormeceu novamente ao seu lado. Repetiram aquele programa por mais algumas noites. Tinham que ser discretos, pois o delegado Duval não permitia, em hipótese alguma, que os investigadores se envolvessem com outros membros da polícia daquela mesma delegacia. Embora não fosse um seguidor fiel das regras, Rocha costumava respeitar Duval. Ao menos, na maioria das vezes. E, conforme o tempo passava, as coisas foram se tornando sérias. Sérias o suficiente para que um deles tivesse medo e fugisse. O mais estranho é que esse alguém foi Maria, e não Rocha. Ele estava disposto a seguir em frente e ver onde tudo ia parar. Mas ela não. Sentiu medo. Talvez fossem as lembranças de sua família biológica ou talvez apenas algum receio pelas posições que ocupavam na polícia, mas ela só sentia medo quando imaginava os dois juntos. Medos diversos que se abraçavam e dançavam para ela em seus sonhos. Medo da morte, medo da vida, medo da tristeza, medo da felicidade, medo de ficar só, medo de ser abandonada e, principalmente, medo de abandonar. Não houve uma conversa formal. Ela não teve tempo de explicar o turbilhão que se passava em sua cabeça. Um dia ele ficou diferente. Não a esperou para ir embora. Não apareceu no bar. Não ligou durante a noite. Não desejou “bom dia” na manhã seguinte. Não falou com ela no laboratório. A relação dos dois se tornou tão profissional que, quem os visse de fora, jamais diria que aquelas eram as mesmas pessoas que, semanas antes, passavam a noite inteira bebendo e se divertindo pelas noites de São Paulo. Ela mesma não conseguia acreditar que aquele era o mesmo homem para quem se entregara de corpo e alma por tantas noites, tomada pela completa paixão e pela loucura. Ele nunca mais foi o mesmo. E o tempo passou. Dias, semanas, meses e anos. Ela não sabia se havia fugido por medo ou por amor, mas sabia que nunca mais teria Pedro Rocha em sua vida. E lamentava muito por isso. Tentou uma reaproximação uma vez ou outra, mas não conseguiu chegar a lugar nenhum. Isso não a fez desistir, porém. Estava disposta a reconquistá-lo e faria tudo que fosse preciso para isso.
Esperou o momento exato. Esperou muito, mas ele não veio. Um banco foi assaltado quando Rocha estava dentro dele. A situação ficou tensa e ele agiu. Tudo deu errado. Algumas pessoas morreram e ele foi responsabilizado. O melhor investigador de São Paulo foi tirado das ruas e mandado para outra delegacia, para fazer serviços internos. Ela não podia fazer nada para ajudá-lo. E, de fato, não fez nada. Maria se sentou no balcão e pediu uma cerveja quando o barman se aproximou. Ela se lembrava dele, mesmo que não o visse há muito tempo. Mas como o homem ficou em silêncio, achou melhor fazer o mesmo. — Faz muito tempo, Maria. – ele disse, contrariando seus pensamentos. — É verdade, Jorge. Faz muito tempo. Achei que nem se lembrasse de mim. — Eu nunca esqueço um rosto. – ele colocou a garrafa de cerveja e o copo sobre o balcão, diante dela. – Por que você sumiu? Achou um lugar melhor pra frequentar? — Jamais! – ela respondeu, com um sorriso. – O Diplomata ainda é o melhor bar de São Paulo. Ninguém faz um espetinho melhor que o seu. — É claro que não! Mas por que você sumiu? — Eu tive que fazer isso. — Às vezes a gente tem que sumir. Eu sei como é. — Nem me fale... — Eu conheço alguém que sentiu a sua falta. — Sério? Quem? — Ele está chegando. — O de sempre, Jorge. – Rocha se sentou na cadeira ao lado de Maria. No mesmo lugar onde se sentara nos últimos 25 anos. – E me vê uns gatos também, porque eu estou morrendo de fome. — Claro, Rocha. – o barman o serviu uma dose de Jack Daniel’s e depois colocou um copo de cerveja sobre o balcão. – A Maria já pediu a cerveja. Seja cavalheiro e divida com ela. Ele os deixou e foi para a cozinha. — Oi, Rocha. — Maria... – Rocha bebeu o whisky de uma só vez. — Eu senti falta daqui. Senti falta do Jorge e dos espetinhos dele. — Os melhores de São Paulo. — É... Um silêncio constrangedor tomou conta do lugar por alguns segundos, até que Rocha decidiu falar. — O que você está fazendo aqui? — Eu senti a sua falta. – ela respondeu.
— Sei... — É verdade! Eu quis te ver todos os dias nos últimos cinco anos, Rocha. Só Deus sabe como eu senti a sua falta. — Você fugiu de mim bem antes disso, Maria. — Não... Você não entende. Eu não sei por que fiz aquelas coisas, na verdade. Eu era só uma novata saindo com um cara mais velho. Eu ainda não estava pronta para as coisas como elas estavam acontecendo. Você precisa entender... — Você já me disse isso antes e eu já entendi. Nunca te culpei. Eu só te dei o espaço que você queria. O que mais quer de mim? — Você se afastou de mim! – Maria falou mais alto do que gostaria e algumas pessoas que estavam perto olharam para eles. – Começou a me ignorar completamente, como se eu nem existisse. — Olha... Eu venho aqui pra esquecer os meus problemas, Maria. Esse é o meu santuário. Se você veio aqui pra caçar confusão, é melhor ir embora. — Rocha... Ele encheu o copo de cerveja e passou a beber lentamente, como se apreciasse cada gota que sorvia. — Certo. Eu não vou estragar a sua diversão. — Não estou aqui pra me divertir. Estou aqui pra esquecer. Se eu quisesse me divertir, não estaríamos tendo essa conversa. — Que seja. Eu vou embora. Diga ao Jorge que eu disse tchau. – ela abriu a carteira, tirou uma nota de dez reais e a deixou sobre o balcão. Olhou para Rocha, esperando que ele dissesse mais alguma coisa, mas como isso não aconteceu, saiu em direção à estação de metrô. O barman apareceu alguns minutos depois com uma tigela cheia de farinha de mandioca e um prato com quatro espetinhos de carne. — Não me diga que ela já foi... – ele disse, colocando a comida no balcão em frente ao investigador. — Então eu não digo. — Que pena. Eu gosto dela. — Pode pegar pra você. — Está na hora de chutar essa bola, Rocha. Sair da reserva, driblar todo mundo e marcar o gol. Não dá pra vencer o jogo parado. — Você sabe que eu odeio futebol. — E eu sou vegetariano, mas faço o... — “O melhor espetinho de São Paulo”... – Rocha o interrompeu. – Eu sei disso. — O que eu estou tentando te dizer, Rocha, é que a vida é feita de superações.
Você tem que deixar os medos para trás e seguir em frente. — Essa sua filosofia de boteco é péssima, sabia? — Mas ela funciona. E você sabe disso. — Sim. Você tem razão. — Sempre, meu amigo. Sempre.
Capítulo Onze Rocha chegou atrasado. Fez isso de propósito, com a intensão de irritar o psicólogo. Sabia que ele levantaria mil teorias malucas sobre esse atraso, então pensou que poderia usar isso para tentar coagir Duval a acabar com aquela besteira. O delegado sabia que Rocha nunca chegava na hora certa em lugar nenhum e isso não fazia dele um doente mental. Estava na polícia há mais de vinte anos. Mais do que nunca, sabia que estava completamente apto para o trabalho de campo e não precisava de um médico de loucos para atestar isso. A secretária sorriu docemente quando ele se apresentou e isso o deixou na defensiva. Vivia em São Paulo e não estava acostumado com cortesias. Sentou-se numa poltrona mais confortável do que parecia ser à primeira vista e analisou o local. Esperava ver alguma cena inusitada, gritaria, pessoas amarradas com camisas de força ou qualquer outra maluquice de alguém que estivesse com a loucura em dia, mas se decepcionou ao notar que os outros pacientes eram pessoas – aparentemente – normais. Jovens de classe média, homens de terno e maleta, controlados pela ansiedade, e algumas senhoras elegantes, porém tristes. Exatamente sete minutos depois de se sentar, ouviu a secretária chamando seu nome. Caminhou ao lado dela até uma porta grande e bonita, que possuía detalhes complexos entalhados na madeira, totalmente sem sentido para ele. A mulher bateu duas vezes e abriu. Definitivamente, o consultório era bem diferente do que Rocha estava esperando. Na sua ideia, tirada de filmes de terror dos anos quarenta, seria recebido por um homem de meia idade calvo e sinistro, usando óculos redondos e vestindo um jaleco branco, em uma sala cinzenta e fria, completamente aterrorizante, sem quadros nem janelas. Ao contrário disso, a claridade cegou seus olhos quando passou pela porta. A parede que dava de frente para a entrada era totalmente feita de vidro e exibia uma visão maravilhosa do centro de São Paulo. Em pé, de frente para ele, havia uma bela mulher, usando um terno elegante e, porque não dizer, mais sensual do que deveria. Ela tinha a pele cor de jambo, os cabelos armados e encaracolados até a altura dos ombros e cheirava a jasmim. Rocha permaneceu hipnotizado por alguns segundos, antes de lembrar o que estava fazendo ali. — Bom dia investigador. – ela disse. Sua voz era como uma música esperançosa depois de um dia inteiro de tristeza e sofrimento. – Eu me chamo Muriel Santana. Rocha demorou para levantar a mão, talvez pelo encanto que sentiu pela mulher,
talvez pela estranheza do que acabara de ouvir. — Cadê o psicólogo? – Foi o que conseguiu dizer. — A psicóloga, investigador. – ela sorriu. – Sente-se aqui, por favor. Muriel mostrou o assento e depois contornou a mesa de vidro onde havia apenas um monitor, um teclado, um mouse e um pequeno bloco de anotações. Sentou-se numa cadeira muito mais confortável do que a destinada a Rocha e, logo em seguida, cruzou as pernas. Por entre as placas de vidro do móvel elegante, os olhos do investigador foram magicamente atraídos pelas coxas bem torneadas da psicóloga, enquanto ela encenava aquele gesto cinematográfico de dar inveja até mesmo na Sharon Stone. — É com você que eu vou falar? – Rocha perguntou, se sentando na cadeira, depois de se recuperar do choque inicial provocado pela mulher. — Sim. Rocha cruzou os braços. — Isso te incomoda de alguma forma? — Psicólogos me incomodam de todas as formas que você possa imaginar. – ele estava voltando ao normal. — Por quê? — Em primeiro lugar, porque vocês querem saber o porquê de tudo que falamos. Em segundo lugar, porque eu não sou louco. E em terceiro lugar, porque eu prefiro conversar com pessoas que dão mais atenção a coisas reais, e não a quem tenta justificar todas as merdas do mundo com traumas de infância e distúrbios imaginários. As pessoas são ruins e ponto. — Um ótimo argumento, eu admito. — Então eu posso ir embora? Ela gargalhou. — Não, ainda não, investigador. Mas eu gostei de você. Você é bem sincero e essa é uma grande qualidade. Vai tornar as nossas conversas muito mais... interessantes. — Eu sei que você quer muito conversar e deve ganhar uma nota preta pra fazer isso, mas eu não posso ficar. – Rocha disse. – Tem um maluco, e esse sim é maluco de verdade, solto por aí, matando as pessoas e pregando elas nas paredes. Ninguém além de mim é capaz de acabar com isso. — Quanta confiança. – ela se inclinou na direção de Rocha. – Ou seria um pouco de pretensão da sua parte? — Pretensão? – Rocha apertou os braços cruzados contra o corpo. – Era só o que me faltava. Ouvir isso de uma mulher que brinca de adivinhar o que se passa na cabeça dos outros. — Você não gosta de mulheres, investigador? — O quê?
— Parece muito mais incomodado com o fato de estar sendo avaliado por uma mulher do que pela própria avaliação. – ela disse, inclinando-se ainda mais na direção de Rocha. Ao mesmo tempo, o investigador arqueou-se para trás, como um animal acuado. – Isso pode significar muitas coisas. Desde o simples machismo até uma infância difícil e controlada por uma figura feminina muito forte. — Ah, é claro. – ele riu, desviando os olhos dos dela. – Essa é a justificativa dos psicólogos para todos os psicopatas do mundo: uma infância difícil. — Até onde sei, você não é um psicopata, investigador. E se eu tivesse que apostar, diria que o seu medo de mulheres está mais ligado a algo como homossexualismo ou travestimos enrustido... — O quê? – Rocha se levantou como se a cadeira estivesse pegando fogo .– Está me chamando de boiola? Eu já quebrei a cara de muita gente por menos do que isso, mulher! — Eu não duvido. Você parece mesmo ser um grande exemplo de masculinidade. — Pode apostar que sim. — Por favor, sente-se, investigador. – ela disse, se levantando também, com um sorriso amigável – Peço mil desculpas pela falta de respeito. Rocha se sentou e voltou a cruzar os braços. Não queria olhar diretamente para os olhos da médica, por isso se concentrou em um dos quadros na parede à sua esquerda. Tentou identificar as figuras coloridas, mas elas eram complexas demais. Deveria ser alguma daquelas porcarias de arte moderna que valiam milhões, mas que não significavam nada. Uma criança de quatro anos seria capaz de desenhar algo mais bonito. — Gosta de arte? – ela perguntou, notando sua atenção na imagem. — De arte, sim. Agora disso aí... — Não acha que meus quadros sejam arte? — São rabiscos. — O que é arte pra você então, investigador? Gosta de algum pintor? — Lancelot. — Como? — Lancelot. É o nome do pintor. — Não conheço. — Se um dia descer do pedestal e passar pela Barra Funda, você vai ver as pinturas dele em vários prédios. — Um pichador? – ela pareceu interessada. – Achei que eles fossem criminosos, não artistas. E você, como policial, deveria prender os criminosos. — Existe uma diferença muito grande entre pichação e grafite, moça. – Rocha
respondeu, olhando para ela por alguns segundos, depois voltando-se para o quadro. – Até eu sei disso e você também deveria saber. O Lancelot faz grafite e as pessoas pagam pra ele fazer isso. — Claro. — Além do mais, eu já o prendi. Ele aprendeu a lição. — E de música? Você gosta de música também, investigador? — Você poderia parar de me chamar de investigador, pelo amor de Deus? Meu nome é Rocha. Todo mundo me chama de Rocha. — Certo, Rocha. Você gosta de música? — Sim. Todo mundo gosta de música. — Do que você gosta? – ela parecia bem interessada no assunto. — De muita coisa. — Certo. Vou dizer o nome de alguns artistas e você me diz se gosta. Tudo bem? — Tanto faz. — Caetano Veloso. — Lixo. — Zezé de Camargo e Luciano. — Mais lixo ainda. — Vivaldi. — Nunca ouvi falar, mas com um nome de fresco desse, deve ser um lixo também. — MC Guimê... Rocha lançou um olhar incrédulo para a psicóloga. Ela controlou o riso. — Certo, Rocha. Me diz o que você gosta de ouvir. — O que isso tem a ver com a minha permanência na polícia? – ele perguntou. – O que importa o estilo de música que eu ouço? Se você quiser, pode escrever aí que eu gosto de funk. Isso não me importa. O que me importa e continuar fazendo meu trabalho. — Tudo bem, então. Já que você quer ir direto ao ponto, vamos falar sobre os seus impulsos violentos. – ela abriu o caderno que estava sobre a mesa e procurou alguma coisa em meio às dezenas de anotações. Rocha se ajeitou na cadeira. — Impulsos violentos? – ele disse. – Eu sou um amor de pessoa. — Sério? – ela sorriu. – Pois não é isso que os fatos dizem? — Fatos? Que merda de fatos são esses? Mostre-me esses fatos. — Claro, vamos aos fatos, investigador. Quero dizer, Rocha. – a psicóloga respondeu, mantendo o sorriso. – No seu último ano como investigador de campo, antes do incidente do assalto ao banco, você foi acusado por quase todos os promotores públicos de São Paulo. Eu tenho aqui a lista com algumas das principais acusações.
Rocha revirou os olhos. — Você foi acusado de bater em quatro suspeitos até deixá-los inconscientes, de quebrar a perna de um taxista, de quebrar todos os dedos de um músico em uma boate, de invadir um quarto de hotel onde estavam hospedados dois vereadores e espancá-los, de prender um homem por trinta e sete horas em uma cela de interrogatório, sem água, sem comida e sem nenhuma prova e também de... — Isso é tudo idiotice. – Rocha interrompeu. – Todas essas pessoas eram criminosas e eu provei isso. — O músico que você quebrou os dedos também? — Ele errou um solo do B.B. King, meu Deus do céu! Existe algum crime pior do que esse? Se existe, ainda não ouvi falar. — Viu como o seu gosto musical importa para o meu trabalho, Rocha. — Está certo, eu gosto de blues. Agora você já sabe. — O taxista disse que você não queria pagar a corrida. – a psicóloga disse, olhando suas anotações. – Você não acha que isso é injusto? — Eu estava atrás de um suspeito! – Rocha respondeu. – Eu já havia me identificado como policial e tinha dito que um suspeito estava fugindo. Não tinha tempo pra abrir a carteira e procurar dinheiro. — Mas você teve tempo para quebrar a perna do taxista. — Eu só dei um chute para que ele saísse da minha frente. Não tenho culpa se o cara era feito de vidro. – Rocha respondeu, franzindo o cenho. – Além do mais, aquele idiota fez o meliante escapar. Eu só consegui achar ele três semanas depois. — Aí você quebrou o pulso dele também, não é? — Também foi sem querer. Eu só estava colocando as algemas nele. — Você pode justificar todos os seus atos, Rocha? — Eu seria um maluco se não pudesse, não é? — É o que você acha? — Por que você não responde nenhuma pergunta, mulher? – Rocha descruzou os braços e colocou as mãos sobre os joelhos. – Eu já estou ficando bem irritado com isso tudo. — A minha função é fazer perguntas e a sua é responder. — Não, doutora. A minha função é impedir que os verdadeiros malucos fiquem longe de pessoas de bem, como a senhora. A minha função é fazer o trabalho sujo. — Me fale mais sobre isso então, Rocha. – ela disse, completamente interessada. — Quer saber de uma coisa? Você está certa, doutora. – Rocha disse, ficando de pé e olhando diretamente nos olhos da psicóloga. – Eu sou muito agressivo. Muito mais agressivo do que todos os homens que você conhece juntos. Eu não espero que atirem
em mim. Eu atiro antes. E eu também sei que faço muitas coisas idiotas. Mas são essas coisas idiotas que me mantém vivo. E também são essas coisas idiotas que ajudam pessoas de bem, como a senhora, a se livrarem de pessoas ainda piores do que eu. Eu só sei fazer isso da minha vida. Se por algum motivo eu sair da polícia, toda a minha vida vai ficar de ponta cabeça. E, quando a gente chega numa certa idade, já não consegue mais mudar quem se é. Cavalo velho não aprende marcha, como meu pai dizia. Então, eu vou ser um cara com muito tempo extra pra continuar fazendo coisas idiotas, só que eu já não vou saber quem essas coisas idiotas favorecerão. — Então você está dizendo que... — Estou dizendo que essa idiotice acabou por hoje. – Rocha caminhou até a porta e saiu sem olhar para trás. Muriel ficou em silêncio por alguns instantes. Pela primeira vez desde que havia se tornado psicóloga forense, sentia-se confusa. Mas não entregaria os pontos. Não até saber que segredos o investigador Pedro Rocha escondia. *** O médico legista puxou o tecido branco que escondia o corpo de uma das vítimas que estava sobre a mesa. A pele da mulher estava muito pálida e agora, depois de limpa, as marcas de cortes eram mais visíveis. Rocha, Thomas e Duval observavam tudo com atenção. — O nome dela é Milena Emanuel. – disse o legista, lendo a ficha que tinha nas mãos, presa em uma prancheta de madeira. – Ela era natural do Paraná, mas morava aqui há quase vinte anos. Trabalhava como instrutora de autoescola. Trinta e nove anos de idade, casada, dois filhos. Nenhuma passagem pela polícia. O médico contornou o corpo e os investigadores o seguiram, em silêncio e completamente atentos ao que ele dizia. — O assassino não retirou o coração dela, como no caso do juiz, mas eu tenho certeza de que ele tentou. – continuou mostrando um grande corte entre os seios da vítima. – Não conseguiu romper a caixa torácica, provavelmente devido aos poucos equipamentos que dispunha. Creio que ele pesquisou mais sobre o tema. Talvez seja um estudante de medicina, ou alguém muito próximo de um… — Já consideramos essa possibilidade. – disse Duval. — Entendo… – disse o legista. Ele apontou para uma das marcas deixadas no corpo, próxima ao nome de Rocha. – Esses sinais foram feitos com mais de um objeto. Alguns foram feitos com bisturis, outros, eu suponho, foram feitos com uma faca de serra, pois, como podem ver, danificaram muito a epiderme. Alguns dos mais profundos ultrapassaram a hipoderme. A faca provavelmente causaria mais dor, mas como a vítima já estava morta quando os ferimentos foram causados, não entendo o objetivo.
Porém, o mais impressionante deles é esse aqui. Ele caminhou até os pés da mulher. Retirou o tecido e ergueu um deles para mostrar a sola. A boca de cada um dos investigadores se abriu ao mesmo tempo. O legista tentou não rir daquilo, mas não conseguiu. Disfarçou uma tosse. Na parte de baixo do calcanhar da mulher morta havia apenas algumas letras e números, aparentemente sem sentido. YN6YAN — Esta marca foi feita com fogo. – o legista disse, depois de alguns segundos. – Provavelmente com metal incandescente, como os materiais usados em fazendas para marcar bois. — E o que isso significa? – Thomas perguntou. — Não sou criptógrafo. — Havia marcas iguais ou semelhantes no outro corpo? – Rocha perguntou. — Sim. Quando eu descobri esta, decidi olhar nos outros dois corpos – o legista respondeu – Elas estão lá, tanto no pé deste último homem quanto no do juiz, mas cada uma delas é diferente da outra. Veja só. Ele caminhou até o outro corpo, que se encontrava numa mesa ao lado. Ergueu o pano que cobria as pernas do morto e mostrou a marca similar, feita com fogo na parte de baixo do calcanhar. GQQGBNFAQ — Vamos precisar da ajuda de algum especialista em códigos… – disse Rocha. – Um criptografo ou qualquer merda parecida. Tem alguém assim na polícia, Duval? — Isso é Brasil, Rocha. – Duval respondeu. – Se a gente não tem nem armas que prestam, vamos ter criptógrafo? — Puta que pariu… — Olha, eu conheço um cara que talvez possa ajudar. – o médico legista disse. – Ele não é um criptógrafo, por assim dizer, mas tem grande conhecimento sobre o assunto. O médico pegou um pedaço de papel da sua prancheta e anotou alguma coisa nele. Depois o entregou para Rocha. Havia um nome e o endereço de uma universidade. — Vou enviar todos os laudos para vocês assim que terminar de examinar o outro corpo. – Disse, logo em seguida. – Até lá vocês já terão falado com meu amigo. — Certo. – disse Duval. – Eu terei uma coletiva de impressa daqui a vinte minutos. Não falarei sobre as mensagens por enquanto, mas pelo menos não estarei
mentindo quando disser que temos novas pistas. Vou mandar alguém pra falar com os familiares das vítimas. Duval saiu em direção a sua sala. Rocha fotografou as marcas com seu próprio celular. Depois pediu para ver o corpo do juiz Maurício. Precisava das três inscrições, pois era provável que elas se completassem, de alguma forma. Nos pés dele, viu a seguinte palavra: NAQENFLN Guardou o celular no bolso e saiu com Thomas em direção à universidade. Iria se encontrar com o homem de quem o legista falara. O professor Giam Rocatelli recebeu os dois detetives na biblioteca do Instituto de Matemática e Estatística da USP. Rocha, que jamais havia entrado em uma faculdade como aluno, se sentia perdido naquele lugar. Mas Thomas estava em casa. Passara muitos anos enfurnado em uma biblioteca como aquela algum tempo antes. O lugar trazia boas lembranças. A biblioteca era dividida entre o térreo e o primeiro andar. No térreo localizamse os livros circulantes e de referência e uma coleção inestimável de obras raras e especiais. O salão de leitura abrigava 88 usuários, mas também havia 03 salas especiais para estudo em grupo dos alunos de graduação e 06 salas para estudo individual, destinadas aos alunos de pós-graduação. No 1º andar encontram-se o acervo de periódicos, as mesas de estudo e a Diretoria da Biblioteca. — Professor Rocatelli? – Rocha disse, ao ver o homem magro sentado em uma das mesas de estudo. Ele era a única alma viva ali, mas, ainda assim, parecia um fantasma, totalmente absorvido pela tela de um notebook. Seus longos cabelos castanhos estavam presos num rabo de cavalo mal feito no alto da cabeça. Vestia um terno azul e velho. Levantou-se quando viu os investigadores parados atrás da tela do computador. — Oh, me desculpem o desleixo. – disse, estendendo a mão para Rocha. – Vocês devem ser os policiais que me ligaram mais cedo, não é? Por favor, sentem-se. — Obrigado, professor. Eu me chamo Rocha e esse é o meu parceiro Thomas. O doutor Celso que nos mandou. Ele disse que o senhor poderia nos ajudar em um assunto muito específico. — E o que seria? — Criptologia. – disse Thomas. – Precisamos que nos ajude com uma mensagem que recebemos. — Oh, sim, sim… – ele parecia muito empolgado. – Preciso dizer que não sou
um profissional da área, mas acumulei alguns conhecimentos ao longo dos anos. Criptologia me fascina! Deixe-me ver a mensagem, por favor. Rocha mostrou as fotos em seu celular. O professor as olhou por algum tempo. Girou o celular em todos os ângulos imagináveis sem tirar o olho da tela nem por um segundo. Contou as letras e números e os anotou em um moleskine. Também fez algumas contas de cabeça e anotou os resultados no pequeno caderno. — E então, professor? – disse Rocha, um pouco impaciente. – O que pode nos dizer sobre isso? — Códigos, de uma forma geral, não são difíceis de serem quebrados, isso quando sabemos para onde estamos indo. Mas se achar no mar de possibilidades é que é o grande desafio, sempre. Este código é confuso, mas tem algumas referências claras. De início, achei que era a Cifra de César, mas não conseguir achar um padrão. Acredito que o mais provável é que seja uma versão variada do Quadrado de Trimethius ou da Cifra ADFGX. — Se você não começar a usar palavras que eu conheça, professor, juro que bato na sua cabeça com um dicionário! – Rocha disse, totalmente impaciente. — Vou tentar explicar… A Cifra de César, como o nome sugere, foi criada pelo imperador romano Julius César e é muito simples. Consiste em trocar a letra original pela letra que se encontra 3 posições a frente, seguindo a ordem alfabética. Assim a letra A se torna D. O seu nome, por exemplo, seria escrito assim: URFKD – R:U O:R C:F H:K A:D — Poderia ser uma versão variada, utilizando números em meio às letras, mas os padrões menos complexos não funcionaram. Não posso descartar essa possibilidade de início, mas acho pouco provável que seja mesmo este o caso. Rocha analisou o papel a sua frente, no qual o professor havia escrito o seu nome. Sentiu-se um idiota por nunca ter ouvido falar naquelas coisas. Precisa assistir mais TV. Ou mantê-la mais tempo desligada, talvez. — A segunda opção, e esta é mais lógica, é o Quadrado de Trimethius. Este sistema de criptografia foi criado por Johannes Trimethius no período da Renascença, e é reconhecido como o primeiro código polialfabético, ou seja, um código que possui mais de um alfabeto em sua estrutura de codificação. Ele parece ser muito complexo, pois usa 26 alfabetos, mas a estrutura é simples. Primeiro, formamos um quadro com 26 linhas e 26 colunas. Na primeira linha, escrevendo uma letra em cada coluna, inserimos o alfabeto puro, do A ao Z. Na linha de baixo, repetimos o alfabeto, mas começamos da segunda letra, o B, e terminamos no A. Na terceira linha, repetimos o processo, dessa vez começando do C e terminando no B. E seguimos assim até a linha 26, onde
começaremos no Z e terminaremos no Y. Enquanto falava, o professor montava a tabela no caderno a sua frente. Rocha acompanhava tudo sem entender nada. 1|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z| 2|B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A | 3|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B| 4|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C| 5|E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D | 6|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E| 7|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F| 8|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G| 9|I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H | 10|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I| 11 | K | L | M | N | O | P | Q | R | S | T | U | V | W | X| Y | Z | A | B | C | D | E | F | G| H | I | J | 12|L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K | 13|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L| 14|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M| 15|O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N | 16|P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O | 17|Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P | 18|R|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q | 19|S|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R| 20|T|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S| 21|U |V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T| 22|V |W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U | 23|W|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V | 24|X|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W| 25|Y |Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X| 26|Z|A |B|C|D |E|F|G|H |I|J |K |L|M|N |O |P |Q |R|S|T|U |V |W|X|Y |
— Para usar esse sistema, pegamos a primeira linha para ser a guia e usamos as linhas abaixo sucessivamente, mas sempre em comparação com a primeira linha. Nesse caso, o seu nome seria: SQFLF. — Eu estou completamente perdido… – Thomas sussurrou para Rocha. — Nem me fale. — E por fim temos a cifra ADFGX. Essa é a mais complicada de todas. Na verdade, é virtualmente impossível de ser decifrada, a menos que o criptógrafo possua
a palavra chave. Foi criada na Alemanha com base em um outro sistema chamado Quadrado de Polybius. A utilização é semelhante ao jogo infantil Batalha Naval, mas ao invés de números e letras, temos apenas as letras ADFGX para as colunas e as linhas. Depois de codificada a mensagem, uma palavra chave é escolhida e as letra são organizadas em colunas. Se a palavra chave tiver cinco letras, a mensagem deve ser organizada em cinco colunas. O passo final é embaralhar as letras da palavra chave, geralmente colocando-as em ordem alfabética, fazendo com que as colunas abaixo delas também sejam embaralhadas. Dessa forma, é impossível desvendar este código sem o conhecimento da palavra chave. — Olha, professor Rocatelli… – Rocha disse, imediatamente após o professor terminar de falar. – Minha cabeça começou a doer. Eu não entendi absolutamente nada do que você disse. O professor não escondeu o riso. — Mas eu preciso que você decifre essa mensagem. A vida de muita gente depende disso. — Não é bem assim que a coisa funciona. Eu preciso de tempo. Preciso analisar com muita calma essa mensagem. Também preciso saber o contexto em que elas estão inseridas, pois isso é muito importante. — Você assiste TV, professor? – disse Thomas. — Bom… Às vezes. — Se você olhou para a TV nos últimos dois dias, você sabe em que contexto essas mensagens estão inseridas. — O Assassino da Cruz mandou isso? – ele pareceu assustado. Sabia que se tratava de um assassinato, afinal, quem o recomendou foi seu primo Celso, que era médico legista. Mas não imaginou que seria algo tão grande quanto o caso do juiz assassinado. — Assassino da Cruz? – disse Rocha, surpreso. — É assim que estão chamando ele nos jornais. – Thomas disse. Ele sabia que seu companheiro era alheio aos meios de comunicação e por isso entendia a sua surpresa. Havia se esquecido de contar-lhe sobre o apelido que os programas de TV deram para o serial killer que eles estavam investigando. — Não é um nome muito original. – Rocha sorriu. — Não. Com certeza não é. — Certo, professor. Você vai ter algum tempo para tentar decifrar o código com essas maluquices que você mostrou. Também preciso que visite seu amigo no IML. Há algumas marcas nos corpos que não conseguimos identificar, mas que talvez façam algum sentido para você. — Eu tenho uma aula em 10 minutos e realmente não posso faltar. Mas irei à
delegacia assim que for possível. — Obrigado, por enquanto. – disse Rocha, cumprimentando o professor e já virando as costas em busca da saída mais rápida dali. Não odiava livros, mas todo aquele conteúdo reunido em um só lugar fazia sua cabeça doer. Para ele, era um grande desperdício, já que a maioria daqueles livros nunca seria aberta sequer uma vez enquanto aquela biblioteca existisse. Rocha se orgulhava de seguir à risca a Teoria do Sótão, que, ironicamente, conhecera em um livro. Sir Arthur Conan Doyle, criador do detetive Sherlock Holmes, apresentou a teoria no livro “Um Estudo em Vermelho” – um dos únicos lidos por Rocha – para justificar porque o detetive fazia questão de ignorar tudo que julgasse futilidade, como o fato de que a Terra girava em torno do Sol. “O cérebro de um homem é, originalmente, como um sótão vazio, sendo necessário armazenar nele os objetos que escolhermos. Um tolo entope o sótão com todo tipo de bobagem que encontra. Assim, o conhecimento que realmente pode lhe ser útil fica fora por falta de espaço ou, na melhor das hipóteses, se mistura com outras coisas, de modo que é difícil acessá-lo.” Uma biblioteca daquele tamanho enchia muitos sótão-cérebros de futilidades, já que quase tudo que se aprende em faculdades não serve para nada além de ocupar espaço, segundo a mentalidade de Rocha. A vida real é muito diferente dos livros. Para o bem e para o mal. De volta à delegacia, eles passaram o resto da tarde e metade da noite lendo os relatórios dos policiais e ouvindo dos mesmos o que as famílias das vítimas tinham a dizer sobre os crimes. Mas não havia um único relato sequer que pudesse ajudar nas investigações. Ao menos, era isso que eles imaginavam.
Capítulo Doze Roseli não gostava de sair tarde do serviço. Sua única filha, uma encantadora garotinha de três anos, ainda era muito nova e costumava fazer birra quando era obrigada a passar a noite com a tia, mas não havia nada que pudesse ser feito para mudar aquilo. Pelo menos, não por enquanto. Ela sustentava a família praticamente sozinha, com um salário que já seria apertado se fosse sozinha. Sendo assim, só havia duas opções: ou caía de cabeça no trabalho e fazia muitas horas-extras ou deixava sua filha e sua irmã passarem fome. Em dias como aquele, lembrava-se de que tinha muito que agradecer a sua irmã. Não seria capaz de levar aquela vida sem ela. E é claro que só o agradecimento não era suficiente. Também precisava pagá-la, pois enquanto ela bancava a baba, deixava de arranjar um emprego formal. Não era obrigada a fazer isso. Gostava muito de sua sobrinha, mas também precisava comer. E esse era o acordo. Uma sempre ajudava a outra. — Nós vamos comer uma pizza, Rose. – disse uma mulher. A última a se levantar, logo após um grupo de sete pessoas sair. Algumas luzes do escritório já haviam sido apagadas e todas as baias estavam vazias, exceto pela de Roseli. Um zelador do turno da noite já começava a limpar o piso, imerso na música de seus fones de ouvido. – Quer ir também? — Não, Fabi. Obrigada. Eu preciso terminar algumas coisas. – Roseli respondeu. Preferiu omitir o fato de que o único dinheiro que tinha na carteira era o que usaria para pegar o metrô para casa. — Tá bom… Mas não fique até muito tarde. E, se puder, passe lá depois. Vamos no mesmo lugar de sempre. E o Weslei vai estar lá, sabia? Roseli riu. Há semanas que a amiga tentava empurrar para ela o carinha novo da contabilidade. Mas, a verdade é que ele não fazia o tipo dela. Em nenhum aspecto. — Pode deixar. Se der tempo, eu vou. – mentiu. Voltou-se para a tela do computador enquanto a amiga caminhava em direção à porta. Tinha alguns relatórios para adiantar e, se conseguisse fazer isso ainda naquela noite, poderia descansar por pouco mais de uma hora no dia seguinte, no horário de almoço, sem a obrigação de fazer mais horas-extras. Seus olhos estavam pesados. Ela lutava arduamente contra a vontade de ir embora dormir, mas sempre que pensava nisso, a imagem de sua filha lhe vinha à mente. Já havia feito muitas coisas erradas na vida e estava na hora de mudar isso. Trabalhar honestamente e merecer o dinheiro que ganhava.
Ainda assim, naquele momento, só havia uma coisa maior que a sua motivação: o cansaço. Foi por isso que ele venceu. Seus olhos se fecharam e sua cabeça começou a tombar em direção ao teclado. As suas costas carregavam muitas e muitas noites de sono atrasado. De repente, despertou. Ouviu um barulho seco. Um som que não conseguiu identificar, mas alto o suficiente para tirá-la de seu sono sem sonhos. Coçou os olhos e olhou para trás. O faxineiro ainda limpava o chão, dançando de forma cômica ao som da batida da música em seus fones de ouvido. Ela sorriu e voltou a olhar para a tela, tentando trabalhar. Minutos depois, estava cochilando novamente. E foi acordada da mesma forma. O barulho seco pareceu bem mais alto dessa vez e ela notou que havia dormido por mais tempo. Seu pescoço estava doendo devido à posição incômoda e, por isso, ela movimentou a cabeça de um lado para o outro, repetidas vezes, provocando estalos rápidos e, embora não parecesse, extremamente relaxantes. Olhou para trás. O zelador não estava mais lá, mas o som de sua enceradeira ainda podia ser ouvido ao longe. Ela tentou encontrá-lo com os olhos, sem sucesso. Não gostava disso. Só se sentia segura se soubesse exatamente onde as pessoas estavam. Uma característica bem típica de quem tem muitas contas a acertar. O cobrador pode chegar a qualquer momento, de qualquer lado, e é preciso estar preparado para escapar dele. Tentou esquecer isso e focar no trabalho. Coçou os olhos e olhou para a tela. E foi nesse momento que sentiu uma pontada forte no coração. Havia um único arquivo aberto no seu computador. Um documento de texto com uma frase escrita em negrito: “EU SEI QUEM VOCÊ É”. Seus olhos se encheram de lágrimas e os piores pensamentos passaram por sua cabeça. Ouviu o barulho seco novamente, e exatamente no momento em que foi olhar para trás para ver do que se tratava, um homem saiu das sombras e acertou sua cabeça com muita força. A última coisa que Roseli viu antes de desmaiar foi o zelador puxando-a pelas pernas. Para onde ele a levaria, ela não fazia ideia. — O que vocês têm para mim, Rocha? – Duval perguntou, entrando na sala na manhã seguinte. Ele trazia um copo de café com leite e um saco de bolachas doces em formato de rosquinha na mão. Tinha olheiras enormes. — Descobrimos a relação entre as vítimas. – Rocha respondeu. – Esses dois últimos, os que achamos no galpão, faziam parte do júri no julgamento dos assaltantes. Eles condenaram os bandidos, mas deram a menor pena e, como todos nós sabemos, eles praticamente não ficaram na prisão. É uma vingança. Duval. Agora não tenho mais dúvida. É uma vingança contra todos que tiveram algum envolvimento no fato.
— Então é óbvio que é algum familiar. — Foi o que a gente pensou também, chefe. – Thomas disse. – Mas não conseguimos nenhuma prova. Não há nenhum parente próximo às vítimas com capacidade física ou intelectual para executar esses crimes. O pessoal conversou com tudo mundo. — Eles deixaram alguém passar. — Com certeza – disse Rocha. – Não há outra explicação lógica. — Olha, eu preciso que vocês tenham uma coisa em mente. – Duval disse, com a expressão séria. – Esse caso precisa ser resolvido com a máxima urgência. Se mais algum vídeo for enviado para o jornal, a cabeça de todo mundo vai rolar. – O governador está comendo o meu rabo porque os federais estão querendo assumir o caso. Eles acham que não temos capacidade para resolvê-lo. — Mas que merda… — Eles estão falando muito sobre você, Rocha. Estão achando estranho que, justo agora, o seu nome esteja sendo citado. Se os federais assumirem, você se tornará o principal suspeito. — Mas não existe nenhuma prova que o incrimine, chefe. — Quantas vezes eu vou ter que lembrar vocês que estamos no Brasil? – Duval disse, saindo da sala. – Desde quando a Federal precisa de provas para prender alguém? Eles só precisam da ordem de algum político. Rocha ficou em silêncio por alguns momentos enquanto via o delegado seguir por entre as mesas em direção a sua sala. Sentou-se numa cadeira e voltou a ler os relatórios dos policiais. — Acharemos esse cara, Rocha. — Eu não tenho dúvidas sobre isso. — Não se preocupe… — Acha que eu estou preocupado? Essa não é a primeira vez que me acusam de um crime, moleque. A diferença entre eu e cada um de vocês é que eu não paro. Eu nunca paro. E eu também não vou parar dessa vez. Não antes de dar um tiro na cabeça desse desgraçado. — Não antes de “prender” ele. – Thomas disse, apanhando uma das pastas na mesa do companheiro e levando para a sua. – Acho melhor prender o Assassino da Cruz. Se você o matar, nunca poderá provar completamente a sua inocência. — Você ouviu o que o delegado disse, garoto. Estamos no Brasil. Não é só a Federal que não precisa de prova. Rocha se levantou e vestiu o casaco que estava pendurado na sua cadeira. Pegou um maço de cigarros e um isqueiro da gaveta da mesa e os colocou no bolso da calça. — Deixe esses papéis aí. Precisamos sair.
— E aonde vamos? — Ver o seu Assassino da Cruz. O escritório ficava no 18º andar. O prédio funcionava como matriz de uma das maiores empreiteiras do Brasil, a C&S Empreendimentos. Um total de 1.683 funcionários trabalhavam ali, e Roseli Nogueira era só mais uma entre tantos outros que recebiam seu ordenado no fim do mês. Quando Rocha e Thomas chegaram, todos os procedimentos iniciais da investigação já haviam sido realizados. Maria Clara estava supervisionando o trabalho de outros dois peritos. Essa era uma das vantagens de casos daquele tamanho: na esperança de solucionar o crime o quanto antes, o Estado disponibilizava muito mais pessoas do que em uma investigação rotineira. A cena do crime, salvo alguns detalhes, era exatamente idêntica às outras duas. A mulher fora pregada na parede de ponta cabeça e em forma de cruz. Seu corpo estava todo marcado com cortes profundos, feitos depois da morte. Sua caixa torácica estava aberta e seu coração havia sido arrancado. E o nome PEDRO ROCHA também estava lá, escrito em várias partes do corpo. — Eu já estou ficando acostumado com esses lugares, Rocha. – Thomas disse. — Pois eu não. – Rocha falou enquanto observava uma das manchas de sangue na parede. – Tantas mortes... Eu odeio assassinos em série. Preciso parar esse maluco. Eles caminharam até Maria. Ela estava com uma prancheta na mão e uma expressão muito séria no rosto. Ao seu lado havia outra perita, esta carregava uma câmera digital presa por uma alça em seu ombro direito. Enquanto Maria anotava tudo que o outro perito dizia, sua companheira fotograva cada mínimo detalhe do lugar. Isso era fundamental para perpetuar a cena do crime e preservar a investigação. — Mais uma… – ela disse, quando os investigadores chegaram perto. – Quer que eu diga ou prefere adivinhar quem ela era? — Ela teve algum envolvimento com o assalto? – Thomas perguntou. — Era jurada. – disse Rocha. — Exato. Roseli Nogueira, 28 anos, tinha uma filha de 3. Foi júri popular no caso do assalto e em outros dois casos, todos com o juiz Maurício Medeiros. Trabalhava aqui há dois anos e cuidava da área de digitalização e arquivamento de documentos. Ela tinha uma… — Acharam algum DVD? – Rocha interrompeu. — Não… Não para nós, ao menos. — Como assim? — O vídeo dela já está na internet. — Puta que pariu!
— Rocha… – Maria parecia um pouco menos séria. – Nós estamos mais perto, agora. Ele cometeu um erro. — Que erro? – Thomas perguntou. — Ele foi filmado entrando no prédio. — Diabo! Onde está esse vídeo? – Rocha pareceu despertar repentinamente de um sono profundo ao ouvir essa frase. — Nós enviamos para o Duval mais cedo. As câmeras de segurança foram desligadas antes de ele entrar, mas uma delas foi esquecida e gravou quase tudo. Não dá para identificar o rosto, mas ele estava sem o capuz e usava um uniforme de zelador… — Tem certeza de que era ele? — Sim. – ela respondeu. – O porte físico assemelha-se muito com o das outras filmagens. Estamos trabalhando com a equipe da empreiteira para identificar o suspeito. É provável que ele tenha arrumado o emprego aqui como faixada, para ficar mais perto dela. — Talvez… — Quem achou o corpo? – Thomas perguntou. — O faxineiro da manhã. Ele está ali, caso queria perguntar algo. – ela apontou para um homem que falava com dois policiais militares. Depois apontou para uma mulher, a alguns metros de distância, que estava sentada em uma das baias, esfregando as mãos nos ombros e nos braços, como se estivesse com frio. – Aquela mulher foi a última que viu a vítima com vida. Ela já foi interrogada, mas se quiser falar com ela... — Eu quero. – Rocha disse. Antes que seu parceiro pudesse confrontá-lo, deixou todos ali e caminhou em direção à mulher. — Com licença, senhora. Investigador Rocha. – ele mostrou o distintivo preso na carteira – Preciso fazer umas perguntas. — Sim… Claro. — Você era amiga da vítima? — Sim... Eu acho que sim. Ela era bem reservada, mas nós saímos juntas algumas vezes. — Você sabe se ela tinha algum inimigo ou alguém que pudesse querer machucála? Aqui no trabalho, na família, algum namorado ciumento… — Não, eu acho que não. — Tem certeza? — Bem… Teve um cara que veio aqui há pouco tempo. Eles discutiram, mas ela saiu antes que a gente entendesse o que estava acontecendo. Ele deve ter deixado o nome na recepção. Ninguém entra sem deixar o nome. — Você se lembra de que dia foi?
— Sim, claro. Foi na sexta passada. Eu me lembro bem porque nessa mesma data ia ter show do David Guetta, e a Rose ia com a gente. Mas ela ficou muito magoada e acabou não indo. Rocha anotou a data num pequeno bloco de anotações. — Você sabe o nome desse cara? — Acho que era João. Foi isso que eu a ouvi dizendo. Rocha também anotou essa informação. — Tem mais alguma coisa que queira dizer? — Ele era bem estranho… Eu achei bem esquisito que a Rose se envolvesse com gente assim. Parecia aqueles drogados que a gente vê na TV. Nem sei como deixaram ele entrar. — Obrigado. Você foi muito útil. Rocha voltou até o local onde Maria estava. Ela colocava uma pequena plaquinha amarela dobrada em forma de triângulo – com o número 19 escrito – ao lado de uma mancha de sangue no chão. Depois disso, traçou um círculo de giz em volta do objeto e do vestígio. A outra perita fotografou tudo com cuidado. — Tenho um suspeito. – disse, ao se aproximar delas. — É quente? — Talvez. Nesse exato momento, o celular de Rocha tocou. Ele atendeu imediatamente ao ver que era o delegado Duval. Ele parecia eufórico. Talvez estivesse correndo pouco antes de fazer aquela ligação. — Alô? — Oi, Rocha. Quer ouvir as novidades? — O quê? — Nós pegamos ele! — Como assim? — Você já sabe do vídeo da câmera de segurança, né? — Sim. — Então. Identificamos o cara do vídeo. Acabei de prendê-lo. Venha para a delegacia agora. Vou interrogá-lo. Rocha desligou o telefone. Suas mãos estavam tremendo. Seus olhos exalavam ódio. — O que aconteceu? – Maria perguntou. — Eles prenderam o cara. — Meu Deus… É sério? — Isso é o que nós vamos ver. Continuem com o trabalho. Ele caminhou em direção à porta. Passou propositalmente pelo local onde
Thomas interrogava o faxineiro para chamar sua atenção. — Moleque? Temos que voltar pra DP. Rocha tomou a chave da viatura de Thomas. Preferiu dirigir dessa vez. Estava ansioso para chegar à delegacia e encarar o tal Assassino da Cruz, mas havia um turbilhão de sentimentos em sua cabeça. Sentia-se, acima de tudo, frustrado por deixar que outra pessoa o encontrasse. Dirigiu em alta velocidade e não disse uma única palavra ao seu companheiro. Chegaram em poucos minutos, isso depois de Rocha furar uma série de sinais vermelhos e quase bater o carro algumas vezes. Largou a viatura aberta e com a chave na ignição. Por sorte, Thomas estava ali para trancá-la e devolver a chave ao funcionário que cuidava dos veículos. Duval estava do lado de fora da sala de interrogatório, acompanhado por Edmundo e outros três policiais militares, que olharam para Rocha cheios de orgulho de si próprios, como se esfregassem em sua cara o fato de o Assassino da Cruz ter sido preso por eles. Apenas o delegado não parecia feliz com aquela situação. — Ah, finalmente. – disse Duval. — Cadê ele? — Está ali. Eu já falei com ele, mas parece que… Rocha não esperou que a frase fosse concluída. Entrou na sala e bateu a porta atrás de si. Um único homem estava sentado de frente para uma mesa larga e sólida. Ele parecia amedrontado, mas a primeira coisa que um policial aprende é que não se pode confiar nas aparências. Elas escondem os lobos em meio aos cordeiros. — Pelo amor de Deus… – o homem disse, imediatamente após ver Rocha. – Eu não fiz nada. Preciso sair daqui. — Por que você matou aquelas pessoas? — Eu não matei ninguém. — Não minta pra mim, seu filho da puta! Quem é você e por que matou aquelas pessoas? — Eu não matei ninguém. — Você era a única pessoa com a vítima ontem. Se não a matou, com certeza você viu alguma coisa. — Eu não fui trabalhar ontem. – o homem disse. – Eu já expliquei isso pro outro cara. Alguém me ligou e disse que a minha escala de serviço tinha mudado. Que tinha um cara devendo um dia e, como minhas férias estavam atrasadas, era para eu ficar em casa até o fim da semana. — Que historinha… — É verdade! Eu juro por Deus…
— Deus não existe. – Rocha esmurrou a mesa com tanta força que o homem quase caiu da cadeira. – Mas o demônio existe, e ele está na sua frente. Diga! Por que você matou aquelas pessoas. Nenhuma palavra saía da boca do homem. Ele apenas chorava. Uma figura patética envolta nas sombras, tentando fugir das algemas e morrendo de medo do homem enorme e furioso em sua frente. Rocha parecia fora de si, rosnando e babando feito um cão. Alguns minutos depois, diante do silêncio do suspeito, Rocha finalmente perdeu a cabeça. Ergueu um dos pés e chutou a mesa com todas as suas forças, de frente, com a sola da bota. Ela avançou sobre o homem amedrontado e atingiu seu abdome com muita pressão. Sua cadeira virou de costas e ele caiu, batendo a cabeça no chão. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, Rocha já estava sobre ele, esmurrando seu rosto. Nessa hora, Duval e Thomas interviram. O suspeito, aparentemente, não tinha dinheiro para pagar um advogado, mas se o defensor público chegasse e visse aquela cena, as coisas ficariam bem ruins. Ou pior, se algum repórter soubesse aquilo, a reputação da polícia iria para o espaço. — Você está maluco, Rocha? – Duval arrancou o investigador de cima do suspeito com uma força impensável para alguém da sua idade. Rocha não respondeu. Arrumou o casaco e saiu da sala sem dizer uma única palavra. O delegado o seguiu. Não ia deixar que ele saísse assim, sem dar satisfações. — Não foi ele. – Rocha disse, quando Duval o alcançou no corredor. — Como assim? — Não foi ele. É simples até pra você. — Pois para mim não parece nada simples. Ele era zelador na empreiteira e era única pessoa que estava junto à vítima naquela hora. — Não foi ele. – Rocha disse, com mais ênfase. — Você pode me explicar? — A pessoa que matou e crucificou aquelas pessoas é forte. Forte o suficiente para segurar aquela mesa. — Ele foi surpreendido. Nem você teria segurado. — O objetivo dele é me matar, mas esse cara na sala teve muitas oportunidades e não fez isso. Quando saltei sobre ele, poderia ter me atingido. Deixei suas mãos livres e na direção da minha arma. Se fosse o assassino, não teria perdido essa oportunidade. — Você fez o quê? — Esse cara não é o assassino. Ele te enganou. — Olha, Rocha…
— Onde vocês o prenderam? — Na casa dele. O pessoal da empreiteira passou os dados do zelador de ontem à noite, o que aparece nas filmagens da câmera de segurança. Ele estava de folga hoje. — E vocês foram lá em prenderam ele? Simples assim? — É claro. — Porra, Duval! Que merda. Estamos lidando com um cara que invadiu um dos prédios mais seguros de São Paulo sem ser visto. Acha que ele simplesmente esqueceria uma câmera ligada? Que cometeria o crime e depois iria para casa dormir? Que ninguém suspeitaria dele, a única pessoa presente no local junto com a vítima? E acha que ele seria pego assim, em sua casa, de cueca? — Bem… – Duval começou a dizer. Thomas finalmente chegou onde eles estavam, depois de ajudar o suspeito a se recompor. — É muita sorte dele que a câmera tenha filmado tudo, menos o seu rosto. Assim, qualquer um que se parece com ele poderia ser preso em seu lugar, já que estão todos querendo que prendamos alguém. A verdade é que isso foi só um jogo e aquele idiota ali na sala foi um peão. Você caiu como um pato, Duval. — Eu ainda sou seu chefe, Rocha. Lembre-se disso… — Então eu vou voltar para o meu serviço, chefe. Porque se for deixar para vocês resolverem esse crime… Rocha andou alguns passos, depois parou e se virou pra Duval novamente. — Ah, eu esqueci de perguntar uma coisa, chefe. Quem foi que encontrou o suspeito e efetuou a prisão? — Por que isso importa? — Pra mim, isso é fundamental. — Foi o Edmundo... — É claro! – Rocha gritou, erguendo as mãos para o alto. – Quem mais poderia ser? Qual é o seu problema, Duval? Esqueceu como se conduz uma investigação, depois que eu saí daqui? — Me respeite, pelo amor de Deus, Rocha! – o delegado se irritou. — Eu não consigo acreditar nisso! – Rocha disse. — A pista era boa. Eu mesmo verifiquei e autorizei a prisão. — A pista era boa? As imagens não mostram porra nenhuma! Até você poderia ser preso por se parecer com o cara nas filmagens. — O Edmundo faz parte dessa investigação e você sabe muito bem que essa ordem não vem de mim. — É, eu sei, mas você pode fazer os seus esquemas burocráticos e mandar ele para o Polo Norte, quem sabe ele possa investigar os pinguins de lá. — Em primeiro lugar, não existem pinguins no Polo Norte. E em segundo lugar,
eu não faço esquemas, Rocha. Eu sou delegado e resolvo crimes. — O que eu quero dizer é que você tem que dar um jeito nisso, Duval. O Edmundo é um bandido do pior tipo que existe, daqueles que se escondem atrás de uma farda. Eu até arriscaria dizer que ele está trabalhando com esse maluco que estamos tentando prender. Ou até pior... Talvez ele seja o assassino. Motivos para querer acabar comigo ele tem até de sobra. — Essa é uma acusação muito séria, Rocha. – Duval disse. – E eu preciso de muito mais do que a sua opinião pessoal para levá-la a sério e tirar o Edmundo do caso. — É claro que precisa... Mas eu só tenho uma coisa pra te dizer: Enquanto aquele velhote fizer parte desta investigação, nós não chegaremos a lugar nenhum. — Você é o Pedro Rocha! – Duval disse, com sarcasmo – O grande fodão da Civil. Você sempre chega a algum lugar, não é? Nesse momento, o celular de Rocha tocou. Depois de verificar o número, ele atendeu. — Alô? Ah, professor. Estou bem, obrigado. O que descobriu sobre os códigos? Ótimo! Pode vir aqui agora? Maravilha! Estou esperando. — Quem era? – Duval perguntou, intrigado. Rocha o ignorou e caminhou em direção à sua sala. Thomas o seguiu, calado. – O que você vai fazer, Rocha? — O que vocês nunca conseguiriam fazer sem mim. Vou solucionar esse crime.
Capítulo Treze — Não se esqueçam de que será hoje. – Edmundo Varini disse, enquanto enchia mais um copo americano de cerveja gelada. Os dois homens de farda sentados no balcão apenas o olhavam, sem beber nada. – Eu quero que ele se lembre dessa noite para sempre. — Por que a gente não quebra ele de uma vez? – um dos outros policiais sugeriu. – Faz tempo que esse cara só traz problemas pra gente. — Não, hoje não. – Edmundo respondeu. – Eu quero que ele fique vivo para ver o que ainda vai acontecer. Eu quero que ele veja tudo que os jornais ainda falarão sobre aquela vadia. Só depois disso que é que eu vou atirar na cabeça dele. — Você não acha melhor ficar em casa... – disse o outro policial. Ele era muito mais alto e musculoso que o primeiro – Alguém pode te ver lá e se isso acontecer, nós teremos sérios problemas. — Não se preocupe com isso, Natan. – Edmundo disse. – Ninguém vai me ver. Escute, você só precisa se preocupar com a sua parte nessa história, porque eu sei me virar muito bem. Vamos voltar para a delegacia agora, eu ainda preciso despachar umas mercadorias. Os três homens saíram do bar e entraram na viatura. Natan assumiu a direção e Edmundo sentou-se no banco do carona. Há muito tempo que aquela cena se repetia. O nome completo de Natan era Natanael de Souza e ele deveria estar morto. Muitos anos atrás, quando Edmundo era apenas um soldado raso envolvido em maracutaias e golpes menores, um grande traficante assumiu o comando do tráfico de cocaína na capital paulista. Muitos policias foram designados para detê-lo, mas a verdade era que ele conseguia comprar a todos e nada se resolvia. Nessa época e diante de toda a situação, o Estado designou um jovem delegado vindo de fora, do Sul, para assumir as investigações. Seu nome era Emanuel de Souza. O novo delegado foi implacável. Mandou muitas pessoas para a cadeia, a maioria delas, policiais que estavam acobertando o tal traficante. Mas, quando se faz a coisa certa em relação ao tráfico, é preciso ter ciência do preço. E Emanuel, embora fosse muito esperto, não fazia ideia de onde estava se metendo. Os dias se passaram e, como sempre acontece, os criminosos foram soltos. Então a vingança começou a ser tramada. Na primeira sexta-feira do mês, o jovem delegado sacou seu pagamento e correu para casa. Trabalhou o dia inteiro pensando na noite, pois iria sair com sua família.
Eles iriam jantar em uma pizzaria nova, que um amigo seu havia aberto, mas isso nunca chegou a acontecer. Enquanto abria o portão, uma motocicleta com dois homens parou em frente à sua casa. O homem na garupa estava armado com uma submetralhadora e Emanuel não teve tempo de reagir. Quando os tiros começaram, o jovem Natanael, que tinha apenas quatro anos, saiu correndo de dentro de casa para se encontrar com o pai, que jazia morto numa poça de sangue. O garoto só não foi morto também porque o piloto da moto impediu que seu companheiro atirasse. O que o garoto nunca soube é que aquele piloto era Edmundo. Talvez tenha sido movido pelo remorso momentâneo ou por alguma dignidade que ainda possuía naqueles dias, mas o policial militar corrupto se sentiu mal pela situação da criança sem pai. Fez tudo o que podia para ajudar a jovem viúva e seu filho com a desculpa de que a Polícia sempre ajuda seus membros. Com todo esse contato, com o passar dos anos, o garoto foi criando em Edmundo a imagem de um novo pai. Isso o fez querer seguir os seus passos, tanto ingressando na polícia quanto se tornando parte dos esquemas de corrupção, pouco tempo depois. Depois do treinamento militar, o jovem Natan passou de um garoto franzino a um grande e musculoso policial, assumindo a função de guarda-costas pessoal de Edmundo. Eles se tornaram inseparáveis. Era praticamente impossível se encontrar com um sem que o outro estivesse ao seu lado. E, dessa forma, não era de se estranhar que Rocha odiasse Natan com a mesma intensidade com que odiava Edmundo. Mas o que o investigador não sabia é que ainda teria muitos outros motivos para abominar a existência daqueles dois homens. *** Quando Thomas entrou na sala, Rocha já estava sentado em sua cadeira, recostado e acendendo um cigarro. Ele deixou a fumaça intoxicar seus próprios pulmões por alguns segundos, antes de soltá-la no ar para intoxicar os pulmões alheios. Depois abaixou a cabeça e esfregou os olhos. Tentava pensar com clareza. Thomas não queria se envolver, mas estava chocado com o que havia presenciado. Ele sabia que Rocha era uma pessoa difícil de lidar e que o respeito à hierarquia nunca foi sua maior qualidade, mas aquilo havia passado dos limites. — O que foi aquela cena, Rocha? – decidiu questionar, finalmente. — Foi exatamente o que você viu. — Rocha… Eu sei que… — Você não sabe de porra nenhuma. Você é só um moleque idiota querendo brincar de polícia e ladrão. Até agora, você não fez nada de útil nessa investigação e eu
nem te cobrei por isso. Mas não me atrapalhe, porque eu tenho muito trabalho pra fazer. Se a opinião do meu superior não me importa, por que acha que a sua importaria? Thomas abaixou a cabeça. Não conseguiu pensar numa boa resposta para aquela pergunta. Acendeu um cigarro e ligou o computador. Procurou pelo vídeo do último assassinato que, como era de se esperar, já havia se tornado notícia em vários sites. — Você já viu o vídeo? Rocha caminhou até ele e ficou ao seu lado, em pé, olhando fixamente para o monitor. Não havia nenhuma novidade, de fato, exceto por um detalhe importante. Como de costume, a mulher foi morta e seu coração foi arrancado. Mas o assassino filmou uma pequena cena logo depois, mostrando a mulher crucificada na parede e alguns detalhes das inscrições em seu corpo, incluindo a mais intrigante delas. PEDRO ROCHA. E as manchetes de todos os sites que exibiam o vídeo, tanto no Brasil quanto no exterior, eram as mesmas: QUEM É PEDRO ROCHA? Até aquele momento, os jornais ainda não haviam feito a ligação entre os crimes e o assalto ao banco, mas agora isso era apenas uma questão de tempo. E quando isso acontecesse, quando alguém descobrisse que Pedro Rocha era um investigador da polícia, tudo se transformaria num inferno. Todos o culpariam por aquelas mortes. — A gente precisa dar um jeito nisso! – Thomas disse. — Jura? — Eu estou falando sério, Rocha. – Thomas parecia muito preocupado. – Você tem ideia do que vai acontecer quando as pessoas descobrirem que essa investigação está sendo conduzida pelo mesmo Pedro Rocha a quem o Assassino da Cruz se refere? … Cara, isso vai dar merda. O delegado vai ter que te tirar do caso. Isso se ele não tiver que te prender. A imprensa vai cair em cima da gente. — Olha minha cara de preocupação. – Rocha caminhou até o quadro branco na parede em que estava montando o perfil do assassino. Observou as fotos das vítimas por alguns segundos, depois voltou a falar. – Eu vou pegar esse cara, garoto. Custe o que custar. Nem que eu tenha que ir pra cadeia junto com ele. — Eu sei disso. — Além do mais, isso é só o início. – um sorriso sinistro apareceu nos lábios de Rocha. – Lembra o que a mulher disse no outro vídeo? Ele vai matar três por semana. Ainda temos mais dois corpos para encontrar nos próximos três dias. — Você não parece muito abalado… — Vou ser bem sincero com você, moleque. Por mim, eu esperava que ele matasse todos esses vermes. Eles também têm que pagar… — E você não? — Eu fiz o que era certo. Os caras iam matar a desgraçada da velha. Eu salvei
ela! — Como você tem tanta certeza que seus tiros não acertaram algum dos reféns? — Porque eu não erro nunca, porra! – Rocha se sentiu ofendido com o comentário. Sempre gostou de se gabar por sua mira apurada, mas era óbvio que Thomas não conhecia a sua fama. — Entendo… — Não, não entende não. Você não estava lá. Você não viu o que eu vi. Eu não saio por aí bancando o herói. Não sou esse tipo de policial. Mas também não olho para o outro lado quando vejo alguma merda acontecendo. Você sabe o que teria acontecido se eles tivessem matado algum refém e eu não tivesse agido? Exatamente a mesma coisa que aconteceu. Eu teria me fodido. Essa é a vida. — Talvez não seja… — É claro que é. — A gente sempre tem uma saída. — Me diga o que você teria feito então? Qual seria a sua saída? — Eu… – Thomas não sabia bem o que responder. Buscava algo que justificasse se esconder e deixar o assalto acontecer, mas não encontrava. Ainda assim, continuava achando a atitude de Rocha completamente errada. Pela primeira vez na sua vida, estava em conflito sobre esse caso. Já passara noites acordado pensando nisso, mas aquela era a primeira vez que considerava estar errado sobre sua opinião. A porta da sala se abriu e dois homens entraram. Era o delegado Duval, acompanhado por alguém que Rocha já estava esperando. O professor Giam Rocatelli. Eles se sentaram nas duas cadeiras em frente à mesa de Rocha. — Espero que me faça muito feliz agora, professor. – Rocha disse, depois dos devidos cumprimentos. — Talvez… – o professor estava sério. – De certo modo, consegui fazer o que você me pediu. Eu decifrei o código. — Ótimo! — Eu já estava no caminho certo desde o início, caso queiram saber. O assassino usou uma mistura de dois dos sistemas cifrados aos quais eu me referi no nosso encontro anterior. O Quadrado de Trimethius e a Cifra de César. A parte mais difícil foi descobrir o padrão original das letras, pois elas poderiam ser organizadas de diversas formas dentro do diagrama de substituição. Eu usei uma análise de frequência para identificar o padrão. Por mais que isso pareça complexo, na verdade não é. Nas línguas latinas, as letras têm frequências de usos muito diferentes, sendo umas mais comuns e outras menos. Vogais, por exemplo, estão em praticamente todas as palavras. Identificando as vogais, o processo já fica 50% mais simples. Por exemplo: As letras “a” e “e” são muito mais comuns do que todas as outras letras do nosso alfabeto. O
primeiro passo foi identificá-las para poder montar o diagrama de substituição. E foi nesse momento, meus amigos, que a sorte decidiu nos ajudar. O professor fez uma longa pausa dramática. Rocha estava à flor da pele, mas achou melhor não interromper o raciocínio do homem. Sabia que, de qualquer forma, não conseguiria entender a explicação mesmo. — Quanto mais bagunçados são as letras e os números dentro do diagrama, pior é para identificá-los. Mas então eu olhei para a minha estante e vi o Cohen. — Cohen? – Rocha perguntou. – Que merda é essa? — John Francis Cohen, um dos maiores criptógrafos do nosso tempo. Ele publicou, dentre muitos outros trabalhos, um ótimo livro chamado O Código da Vida. Eu tenho uma edição autografada, por sinal. Bem… Eu folheei o livro procurando uma luz nos capítulos em que ele falava sobre Cifras de Substituição. Até que me deparei com isso… O professor colocou uma folha de papel no centro da mesa, virada para Rocha. Havia um quadrado desenhado nela, dividido por seis linhas e seis colunas. Dentro de cada uma das subdivisões havia uma letra ou um número, aparentemente, completamente fora de ordem. Todos pareciam perdidos e ele saboreou aquilo por um momento. — Esse é o diagrama que o Assassino da Cruz usou. Um método de substituição proposto por Cohen para ser mais eficaz que a Cifra de César, mas sem a necessidade de uma chave além do diagrama. Ele usa uma sequência lógica, agrupando os números de quatro em quatro, da parte de fora para a parte de dentro do quadrado. Dessa forma, é praticamente impossível chegar à solução sem este diagrama. — Certo… – disse Duval. – Mas como isso funciona? — A letra ou número da linha de cima sempre corresponde à letra ou número da linha de baixo, sucessivamente e até a última linha. Assim, se quisermos escrever um “A”, no lugar disso colocaremos um “Y”. E se quisermos escrever um “Y”, no lugar dele colocaremos um “7”. Esse padrão deve ser seguido até o fim. — E para usar a última linha? – Rocha estava completamente intrigado com a tabela a sua frente. — É simples. Se precisar usar um “D”, por exemplo, você voltará para a primeira linha e usará o “A”. Dessa forma o ciclo se fecha com perfeição. — Meus parabéns, professor. – disse Duval. – O senhor foi incrível. — E o que as mensagens dizem, então? — Ah, claro. Elas estão aqui. – o professor colocou outra folha de papel sobre a primeira, com a tabela. Nela havia três pequenas frases escritas em letras de forma, uma abaixo da outra.
YN6YAN AOLADO GQQGBNFAQ SEESCONDE NAQENFLN ODEMONIO — Creio que a frase correta seja: “O Demônio se esconde ao lado”. – disse o professor, reescrevendo a frase na mesma folha. Rocha anotou a frase em sua caderneta e fotografou a tabela com seu celular. Ela poderia ser útil mais tarde. Depois analisou o texto com mais atenção. Aquelas palavras diziam algo muito importante. — No que está pensando, Rocha? – Duval disse. — Em nada. – Rocha respondeu, algum tempo depois, sentindo os olhos interrogativos de Duval sobre a sua cabeça. – Nada especial. — Uma coisa é certa, policiais. – o professor disse. – A pessoa que cometeu esses crimes certamente possui uma edição de O Código da Vida em casa. Acho pouco provável que seja um profundo conhecedor do tema, caso contrário teria utilizado códigos mais complexos. — Ou talvez ele duvide da nossa capacidade de decifrar as mensagens, por isso escolheu esse sistema... Que de simples não tem nada, ao menos pra mim. – Thomas disse. — Faz sentido... – o professor disse. — Se ele deixou uma mensagem, é claro que quer que ela seja recebida e entendida. Mas ele gosta de se vangloriar. – Duval disse – Não iria entregá-la de bandeja. — É claro… – disse o professor, levemente sem jeito. – Bom... Eu fiz a minha parte. Vocês precisam de mim para mais alguma coisa? — Na verdade, eu preciso sim, professor. – Rocha disse. – Preciso que me acompanhe até o necrotério para ver os corpos. — Corpos? Ah, meu Deus... — Isso te incomoda? — Um pouco, para ser bem sincero… — Não se preocupe, professor. São sacos de carne podre. Nada além disso. — Que coisa horrível de se dizer. – o professor pareceu se ofender com a afirmação do investigador.
— No fim do jogo, todos acabamos assim, meu amigo. Sacos de carne podre… Rocha e o professor seguiram para o IML, enquanto Duval caminhava para a sua sala. Thomas permaneceu na sala em que estavam antes. Ele também tinha muito trabalho para fazer e não podia se dar ao luxo de qualquer distração. A noite seria longa. O professor Giam não disfarçou a felicidade ao encontrar seu primo Celso quando eles chegaram ao IML. Pelo que se podia notar, eles não se viam há muito tempo, apesar de parecerem bem próximos. Abraçaram-se rapidamente e logo já estavam perguntando sobre as mães e pais um do outro. Rocha se sentiu incomodado, e demostrou isso com um pigarro forte e insistente. — Poderia mostrar os corpos ao professor, doutor Celso? — Com certeza. Todos eles? — Sim. O legista dobrou parte da lona que cobria totalmente os corpos armazenados sobre largas mesas de ferro, deixando à mostra seus rostos e parte da caixa torácica. Havia quatro corpos, cada um em uma situação pior que a do outro. Ainda que já estivessem limpos e esterilizados, vê-los causaria nojo até no homem mais forte. O professor cobriu a boca com as mãos. — Meu Deus… — Cada corpo possui marcas muito peculiares, professor. Preciso que as analise e me diga se as conhece. – Rocha disse, enquanto acendia um cigarro – Posso fumar aqui, doutor? — Poder, na verdade, não pode. Mas eu aposto que eles não se importarão. – o legista apontou para os corpos com a cabeça. — Certo. – Rocha disse – Professor, todos foram encontrados presos à parede, como se houvessem sido crucificados. Com certeza o assassino está querendo nos dizer alguma coisa. — Novamente, eu gostaria de lembrar que esta não é a minha área, especificamente. Não sou especialista em… — Você sabe mais sobre símbolos do que qualquer um nessa delegacia, professor. Isso, no momento, já é mais do que o suficiente. Só preciso que aponte uma direção. Nada mais. — Por que o seu nome foi escrito nos corpos, investigador? — Ainda estamos investigando. Espero que nos ajude com isso também, pois temos algumas suspeitas. Mas, no momento, preciso que analise os outros símbolos. Qualquer coisa que possa parecer familiar. — Embora essa não seja a sua origem histórica, cruzes invertidas sempre são
relacionadas com atos de satanismo e magia negra. É difícil acreditar que esse não seria o caso. Mas… — Mas o que? — O seu nome… Ele me sugere outra coisa. Rocha não disse nada. Apenas esperou que o professor completasse seu raciocínio. — O primeiro Papa. – o professor disse, finalmente. — Como? – Rocha indagou. — Simão, o apóstolo de Jesus Cristo. Ele é considerado o primeiro Papa da Igreja Católica Romana, pelas tradições antigas. — Eu não sou uma pessoa muito religiosa, professor. O que isso tem a ver com o caso? — Simão, assim como Jesus, foi crucificado por Roma. Mas ele não se achava digno de ter a mesma morte que o Messias, por isso rogou que os soldados o crucificassem de ponta cabeça, para que sua morte fosse diferente e menos gloriosa que a de Jesus. Os soldados o atenderam e a cruz invertida, desde então, passou a ser um símbolo católico. Esse símbolo foi muito usado por padres e monges nos primeiros séculos da dominação cristã. Com o tempo, como sempre acontece, o símbolo foi corrompido, assim como o pentagrama, e atribuíram significados satânicos a ele, unicamente por ser o oposto da cruz de Jesus. Olhe isso. O professor tirou seu celular do bolso, clicou no ícone da internet e digitou alguma coisa. Alguns segundos depois, muitas imagens apareceram na tela. Ele escolheu uma e clicou. A figura de um homem surgiu na tela. O homem estava de ponta cabeça, sendo segurado por mais outros três homens que prendiam seus pés no alto. Um deles tinha um martelo e alguns pregos na mão. O homem de ponta cabeça estava sendo crucificado. — Esse quadro foi pintado há mais de quinhentos anos por Guido Reni, um pintor barroco italiano. Retrata a crucificação de Simão. Há outro quadro também famoso, pintado por Michelangelo Caravaggio. Olhe só. – ele voltou a digitar no buscador do celular e mais imagens surgiram. Clicou em uma muito semelhante à primeira. Três homens erguiam uma cruz e nela havia outro homem, esse mais velho, preso pelas mãos e pelos pés por enormes cravos de metal. — Mas… — Simão nunca foi o mais fiel dos discípulos. – disse o professor, guardando o celular no bolso. Estava com os olhos distantes, sem brilho. Seu rosto parecia envolto em uma sombra, como se estivesse sozinho na sala. – Ele tinha uma queda por dinheiro e, por esse motivo, chegou a ser repreendido por Jesus em público, algumas vezes. Alguns historiadores também dizem que ele era preguiçoso, avarento e um pouco
violento. Quando os soldados prenderam o Messias no Getsêmani, Simão foi o único que interviu. Ele cortou com uma espada a orelha de um dos soldados, chamado Malco, que depois foi curado por Jesus. — Mas que diabos isso tem a ver comigo? — Simão não é o nome pelo qual ele ficou mais conhecido. As pessoas se acostumaram a chamá-lo pelo nome com o qual Jesus o batizou. Pedro. Rocha sentiu uma leve pontada no peito. — “Tu és Pedro e sobre esta pedra eu construirei a minha Igreja” . – o legista disse, num tom soturno. — Exatamente. – o professor respondeu. — Então ele está reencenando um trecho da Bíblia? – Rocha perguntou. — Não. A crucificação de Pedro não é narrada na Bíblia. Na verdade, não podemos nem dizer se ela aconteceu mesmo, mas é assim que a Igreja Católica vê este fato. E se eu tivesse que apostar minhas fichas, diria que o Assassino da Cruz está mantando essas pessoas para atingir você, Rocha. O professor caminhou até um dos corpos e o analisou bem de perto. Tentou identificar as marcas feitas sobre a pele morta e azulada. Se aquele fosse um dia comum, jamais teria feito isso sem vomitar, mas estava tão empolgado com a teoria que estava se formando em sua cabeça que seus medos desapareceram quase que por completo. — E o que significa isso? – Rocha perguntou, apontando para um dos símbolos que o professor analisava. — Este é o símbolo do Papado. – o professor respondeu. – Duas chaves cruzadas abaixo de uma coroa. Mais uma referência a São Pedro. Temos cruzes, círculos, cruzes sobre círculos, um triângulo, que pode representar a Santíssima Trindade. Também temos algo que lembra um peixe, aqui. São Pedro era pescador antes de virar discípulo e o peixe é um forte símbolo da fé cristã. — Certo. Mas o que tudo isso quer dizer, exatamente? — Isso só você pode responder, Rocha. – disse o professor. – Por que alguém mataria para chamar a sua atenção? Pelo que eu consigo notar, estes… O professor parou bruscamente, enquanto passava os olhos sobre o corpo da mulher. Em meio aos cortes ele reconheceu outro símbolo que havia passado despercebido em sua primeira análise. Tudo indicava que ninguém havia notado aquilo também. Ele se aproximou do local tentando ver melhor. — O que houve, professor? Ele não respondeu a pergunta de Rocha. Apenas correu até os outros corpos e checou, um por um, no mesmo lugar onde encontrou a marca no primeiro. Estava certo. Havia feito uma grande descoberta.
— O senhor não vai acreditar no que eu acabei de descobrir! — Diga de uma vez. – disse Rocha, impaciente. — Eu sei exatamente quantas pessoas o Assassino da Cruz vai matar. – O professor respondeu, disfarçando o sorriso de satisfação. Aquilo não era apropriado para aquele momento. — Como pode saber disso? – Rocha perguntou, intrigado. — O Assassino da Cruz me contou. — Seja direto, professor? Eu não tenho tempo para esse tipo de brincadeira… — Desculpe, mas não pude resistir. Aprendi isso com a literatura, Rocha. A dramaticidade sempre me acompanhou. Mas eu vou te explicar. Olhe isso. Eles caminharam até os corpos mais antigos. — Estes foram os primeiros mortos, não é mesmo? – Rocha assentiu com a cabeça. – Então… Olhe aqui, logo abaixo do seio da moça. O que você vê? — Sei lá… Uma cruz? — Não. É um “X”. E este risco do lado esquerdo não é só um corte. É um “I”. Isso é um numeral romano, policial. IX, ou o número 9. Pelo que sei, quando essa mulher foi morta, o homem que vocês acharam com ela já havia sido morto. Olhe aqui. No mesmo lugar, no corpo dele, há apenas o “X”. Ou seja, o número 10. — Puta que pariu… — É uma contagem regressiva. Rocha correu até o corpo do juiz. Logo abaixo do mamilo esquerdo ele encontrou o símbolo. Um “VIII” quase perdido em meio aos outros sinais. E no último corpo, o da mulher morta na empreiteira, também havia uma marca: VII. Eles eram as vítimas número 7 e 8. — Ele vai matar 10 pessoas… – Rocha disse. — Exatamente. — Você é um gênio, Giam. – o legista disse, sem esconder o orgulho do primo. — Ótimo trabalho, professor! – disse Rocha, caminhando até a porta. – O senhor está sendo muito útil para a investigação. Peço que transcreva tudo o que me explicou para que seja arquivado. O doutor Celso pode te ajudar com isso. Eu agradeço se puder procurar mais pistas nos corpos. Se encontrar algo, me avise imediatamente. — Com certeza. – o professor respondeu, ainda absorvido em meio àqueles símbolos, mas o investigador já havia saído. Rocha estava de pé em frente ao quadro na parede quando Thomas entrou. Ele parecia completamente compenetrado em seu trabalho, mas isso não o impediu de notar que seu parceiro havia entrado. Se aproximou um pouco mais do quadro e olhou bem de perto as fotos coladas com fita adesiva. As imagens dos últimos corpos já estavam lá,
na linha do tempo dos assassinatos. Quem olhasse o quadro de longe, veria que as imagens e os textos formavam um desenho que lembrava muito uma árvore genealógica, que terminava em um grande ponto de interrogação no topo. Abaixo do caractere havia uma única frase: Assassino da Cruz. — Eu tenho uma coisa que você pode querer ver, Rocha. – Thomas disse, se aproximando com uma pasta cheia de documentos. – Consegui uma lista dos principais suspeitos. Todos os parentes, amigos e conhecidos das vítimas com condições de cometer esse crime estão aqui. Isso vai nos ajudar a identificar um suspeito. — Você está atrasado, garoto. Eu já tenho essa lista. A minha é ainda melhor, na verdade, porque está organizada de acordo com as melhores ligações com o perfil do assassino. — Você terminou de montar o perfil? — Mas é claro. – Rocha respondeu, os olhos ainda fixos no quadro. – Assassinos seriais são quase todos iguais. Não é difícil montar o perfil nesses casos. — Bem... Eu não concordo com você. — Foda-se. – Rocha apanhou uma das fotos do quadro e a rasgou em vários pedaços. — Pode me mostrar o perfil então? – Thomas perguntou, enquanto Rocha jogava os pedaços da foto na cesta de lixo ao lado da mesa. — O homem que estamos procurando está no auge de sua forma física, mas isso não nos dá muitas informações sobre sua idade. O que sei é que ele é forte o suficiente para erguer mais de oitenta quilos acima dos ombros sem muito esforço. Também tem habilidade de sobra para segurar todo esse peso por um bom tempo, já que as fixações dos corpos foram feitas com um finca-pinos industrial, que é uma máquina pesada e de difícil manuseio. Isso poderia sugerir que ele está agindo em dupla, mas, considerando suas motivações, eu acho isso pouco provável. Os sentimentos que o forçam a agir são o ódio, a culpa e, é claro, o amor. É muito provável que ele se sinta culpado pela morte de algum dos reféns. — Ou algum dos assaltantes. — Com certeza não. – Rocha disse, acendendo um cigarro. – Eu aposto mais em algo como amor de pai e filho, neto e avô ou até mesmo entre irmãos. Os assaltantes não compartilhavam esses sentimentos entre si. Talvez nem se conhecessem antes do crime. — Como você pode saber disso? — Eu já cruzei as informações dos perfis com os nomes na lista de reféns e separei três suspeitos em especial. Um deles é o assassino. Eu tenho certeza disso. — Vamos atrás deles, então! – Thomas disse.
— Não. Eu preciso que você me faça um favor. — Está falando sério? – Thomas não conseguia nem imaginar o que Rocha poderia lhe pedir. O investigador não costumava pedir favores a ninguém. — É claro. — Bem... Do que você precisa? — O professor ainda está lá no necrotério, tentando encontrar mais evidências nos corpos. Ele descobriu algumas coisas muito interessantes, mas acho que ainda encontrará mais. Eu preciso que você fale com ele agora e monte um relatório. Depois, reporte tudo ao Duval. — Certo… – Thomas disse, decepcionado. Rocha só queria fugir da burocracia – Mas você também não vai querer saber? — Sim, mas isso pode ficar para mais tarde. Ainda tenho que considerar alguns pontos. — Tudo bem. Se precisar de mim... – desconfiado, Thomas saiu da sala e caminhou até o local onde o professor e o legista trabalhavam. — Obrigado, garoto. Rocha esperou que Thomas saísse da sala para ir até sua mesa e conferir suas anotações. Pegou a pasta na qual estavam descritos os dados dos seus principais suspeitos e também saiu. Esse era um tipo de trabalho que ele preferia fazer sozinho.
Capítulo Quatorze Enquanto se servia, Rocha olhava para o rosto da mulher. Ela parecia ser a pessoa mais triste do mundo. As bolsas de pele abaixo de seus olhos e as olheiras permanentes só contribuíam com essa ideia, embora ela insistisse em esconder esses sinais com um pouco de maquiagem. O investigador colocou duas colheres de açúcar na xícara de café e, enquanto mexia o líquido, se ajeitou no sofá, recostando-se confortavelmente numa almofada. — O café está ótimo. – Rocha mentiu após bebericar o conteúdo da xícara. Havia colocado açúcar demais. — Obrigada, policial. Meu marido gostava muito de café. Eu acabei me acostumando a fazer e agora sempre tem um pouco aqui em casa. — Entendo… Eu sei que é difícil falar sobre isso agora, dona Amélia, mas é muito importante para a investigação. — É sobre esses crimes que estão aparecendo na TV toda hora, não é mesmo? — Sim, é exatamente sobre isso. — O senhor sabe que meu marido e meu filho foram mortos por aquele policial do banco, não sabe? Deus vai me castigar pelo que eu vou dizer, mas eu fico feliz pelo que essa pessoa está fazendo… – lágrimas escorreram de seus olhos. Rocha pensou em chegar mais perto e colocar a mão em seu ombro para acalmá-la, mas achou que seria errado fazer aquilo. Ela achava que o policial dentro do banco havia acabado com sua família e, embora ele tivesse certeza de que a mulher estava errada, o policial, no fim das contas, era ele. Não parecia correto confortá-la. – O que se faz aqui, se paga aqui. — Eu entendo o seu sofrimento… — Ninguém entende… Dói na alma. Rocha entendia sim. Michelle era a única pessoa com quem ele se importava e agora ela estava morta. Ele sabia muito bem o que era sentir dor na alma. Novamente, achou melhor não fazer nem dizer nada. Apenas acenou com a cabeça. — A senhora estava no banco naquele dia? — Não… Eu estava em casa. Pedi para o Augusto, o meu marido, que passasse no banco e pegasse um dinheiro. Eu precisava pagar uma conta. Ele quis levar nosso filho com ele e eu deixei… Não deveria ter deixado. Eu estava com dor nas pernas, por isso pedi que ele fosse. Eu é que deveria ter morrido e não ele. — A senhora sabe como eles foram mortos? — O policial atirou neles. O Augusto ficou na frente, mas a bala atravessou a barriga dele e acertou na cabeça do Ricardo… Cinco centímetros acima e meu filho
ainda estaria aqui, vivo. Aí estava o primeiro fator que tanto a mulher quanto a imprensa haviam desconsiderado. Rocha estava armado com uma simples pistola. Do local onde ele estava, com aquela linha de tiro, o projétil nunca teria atravessado dois corpos. Mas os assaltantes usavam fuzis, submetralhadoras e metralhadoras de alto calibre. Certamente o pai e o filho haviam sido mortos por eles. Qualquer exame de balística provaria isso. — Eles ficaram no chão por horas, jogados, como se fossem dois cachorros mortos na rua… Até a hora que a polícia levou os corpos para o IML. — A senhora tem outro filho, não é mesmo? — Sim, um mais velho. O Luciano. — Qual a idade dos seus filhos na época do crime? – Rocha perguntou. — O Ricardo tinha só onze anos e o Luciano tinha dezoito. — Entendi. O Luciano não estava lá, na hora do assalto? — Não, graças a Deus. Ele estava trabalhando. Ele trabalhava como motorista naquela época, mas estava estudando para entrar para o Exército. Esse era o seu maior sonho. Ele entrou em depressão, mas nem assim parou com os estudos. Era muito batalhador, sabe? Eu pensei que ia conseguir consolar ele, mas a verdade é que foi ele quem me consolou ao longo dos anos. Rocha colocou a xícara vazia na mesa de centro e retirou um bloco de notas do casaco. Passou a anotar os detalhes que julgava serem mais importantes. Filho raivoso. Motorista. — Ele conseguiu entrar para o Exército, graças a Deus, porque eu sei que foi isso que salvou ele. Era um ótimo soldado… – a mulher novamente começa a chorar. – Ah, meu Deus, por quê? Ele era um menino tão bom… — A senhora pode me dizer o que aconteceu com seu filho Luciano, dona Amélia? – Rocha perguntou, enquanto escrevia “habilidades militares” no bloco de notas. — Ele morreu… – ela respondeu, tentando enxugar as lágrimas com o avental. – Foi há dois anos, num acidente de transito horrível. O carro pegou fogo. — Eu sinto muito. — Mesmo assim, ele ainda cuidou de mim. – ela disse, trocando levemente o choro pelo orgulho, mas com os olhos ainda úmidos e vermelhos. – Me deixou um seguro de vida muito bom. Deixou tudo certinho e eu não tive nenhum problema. A pensão do Augusto também me ajuda, mas é o dinheiro do Luciano que me sustenta. Acho que é alguma coisa dos militares, mas eu nunca entendi muito bem. Rocha sorriu piedosamente e fez uma nova anotação no bloco de notas.
Filho raivoso. Motorista. Habilidades militares. Tinha muito dinheiro. Piloto de fuga? Aquela história era estranha, mas não queria falar sobre isso naquele momento. Apesar do que as pessoas diziam sobre ele, não era uma rocha de verdade, por assim dizer. Respeitava o sentimento das pessoas. Ao menos daquelas que mereciam ser respeitadas. — O senhor iria gostar dele, sabia? – ela voltou a dizer, fazendo as insistentes pontadas no peito de Rocha voltarem com força total. Mas dessa vez ele sabia o motivo. Remorso. — A senhora acha? – ele sorriu. — Sim. Com certeza. Ele também era forte, tanto por dentro quanto por fora. Era uma fortaleza para mim. E era muito honesto. Sabia que quando ele era criança, sonhava em ser policial? — Sério? — Sim! Deixa eu te mostrar uma foto. – ela caminhou até a estante que ficava atrás do sofá em que Rocha estava sentado. Trouxe com ela um porta-retratos dourado e muito elegante e o entregou para o investigador. Havia a foto de uma criança sorridente vestindo uma farda azul mais parecida com a da polícia americana, com quepe e tudo mais, do que com os uniformes das polícias brasileiras. Provavelmente era uma daquelas fotos escolares que os fotógrafos faziam sem avisar e que os pais nunca conseguiam deixar de comprar. — Ele era uma criança adorável. – disse Rocha. Ele analisava a foto com cuidado. Algo na foto chamava muito a sua atenção, embora ele não soubesse exatamente o que. — Era sim. Um menino de ouro. — A senhora tem mais fotos dele? Fotos dele mais velho? — Tenho algumas mais recentes no quarto dele. O senhor gostaria de ver? — Se for possível. — Claro. Eu mantenho exatamente como ele deixou. Não tenho coragem de me desfazer das coisas dele. É como se um dia ele fosse voltar. O senhor não vai entender… Novamente, Rocha entendia. Eles entraram no quarto. Não havia nada que chamasse a atenção logo de imediato. Tratava-se de um quarto comum de um jovem estudioso de classe média. Alguns pôsteres de bandas de rock nas paredes, muitos livros em uma estante e em
algumas prateleiras espalhadas pelo quarto, um computador desktop em uma mesa, junto de mais livros e apostilas. Do lado direito do quarto havia um beliche e do lado esquerdo havia uma grande janela que dava para a rua. No chão havia um tapete camuflado. O gosto pelos temas militares, ao que tudo indicava, vinha de muito tempo. — Olha a última foto que ele tirou. – dona Amélia levou Rocha até a parede ao lado do beliche. Havia um grande quadro com uma foto de um jovem sorridente, ele vestia uma farda de passeio e uma boina. Abaixo da foto, a inscrição: “Cabo Luciano Alvarenga”. A sensação estranha invadiu Rocha novamente. — Posso tirar uma foto do quadro? – ele perguntou, mostrando o celular para a mulher. De início, ela achou a pergunta estranha, mas, sem nem saber por que, acabou concordado com a cabeça. Ele fotografou o quadro e guardou o celular no bolso. Nesse instante, a campainha tocou. Por um segundo, a mulher ficou sem saber o que fazer. Ninguém nunca havia ficado sozinho naquele quarto depois que seu filho morreu. Mas, estranhamente, ela havia confiado em Rocha. Insistiu que ele aguardasse ali enquanto ela atendia o chamado. O investigador andou pelo quarto por alguns minutos, observando todos os detalhes. Analisou atentamente os quadros e os pôsteres na parede, depois os action figures de super-heróis e as revistas em quadrinhos na mesa ao lado do computador. Então, caminhou até as prateleiras de livros. Nunca havia ouvido falar na maioria daqueles títulos, que iam de livros infanto-juvenis modernos até clássicos do século XVII, como o Paraíso Perdido de John Milton. Rocha analisou atentamente cada um deles. Até que um grupo de livros chamou a sua atenção. Eram os três últimos da prateleira mais alta. Criptografia para Iniciantes – Salahoddin Shokranian O Livro dos Códigos – Simon Singh O Código da Vida – John Francis Cohen — Puta que pariu! – Rocha não conseguiu manter as palavras em seu pensamento. Retirou um lenço do bolso e esticou a mão até o livro de Cohen. O pegou com todo cuidado para evitar que suas digitais ficassem nele. Quando ia abri-lo, ouviu passos. A mulher estava voltando para o quarto. Sem saber o que fazer, enfiou o livro dentro do casaco e o prendeu com a calça, como costumava fazer com sua arma antes de comprar o coldre. — Desculpe a demora, policial… – disse a mulher, entrando novamente no quarto. – Era o pessoal do correio. Você sabe como eles são. Tive que assinar dez guias só para receber uma encomenda que minha irmã me mandou do Mato Grosso.
— Eu sei bem como é. — O senhor quer ver mais alguma coisa? — Não, não. Na verdade, já estou indo embora. Já tenho tudo que eu precisava. A senhora me ajudou muito mesmo. Rocha apertou a mão da mulher, que sorriu de uma forma sincera. Embora já passasse dos cinquenta anos, ela ainda conservava uma considerável beleza física. Provavelmente, estava solteira por opção. Nem todos conseguem superar a dor de tantas mortes. Eles caminharam até a porta da sala, que dava para a rua onde Rocha estacionara a viatura. Ele não via a hora de chegar até lá, pois havia esquecido seu maço de cigarros no porta-luvas. Sabia que esse vício, mais cedo o mais tarde, acabaria matando-o, mas preferia correr o risco. — Novamente, muito obrigado pela ajuda. – ele disse. — Estou às ordens. Espero que consigam prender o assassino. – a mulher disse. — Certamente nós iremos. — E que todos que fizeram mal, paguem por isso… – ela completou – Nós sofremos tanto. Minha família foi destruída. Eu fiquei sozinha aqui. É horrível. – algumas lágrimas voltaram a rolar de seus olhos. – Me desculpe, investigador, mas eu preciso entrar. Não gosto que as pessoas me vejam assim. Ela fechou a porta e Rocha caminhou até o carro. Entrou, tirou o livro do casaco e o jogou no banco do carona, acendeu um cigarro e deu uma enorme tragada. Consumiu metade do cigarro com aquele fôlego. Estava precisando disso. — Eu te peguei… – sussurrou enquanto ligava o carro. Acelerou e voltou para a DHPP. Precisava devolver a viatura. A noite estava chegando e ele tinha um velório para ir.
Capítulo Quinze Rocha passou no Diplomata antes de pegar um táxi para o cemitério. Ele se conhecia muito bem, a ponto de saber que não poderia chegar lá de cara limpa. Precisava anestesiar seus sentimentos. Embora não gostasse de externa-los, quando isso acontecia, suas reações tendiam a ser muito exageradas. O problema é que as doses altas de álcool também afetavam o seu raciocínio e sua capacidade de observação. Foi por isso que ele não notou que estava sendo seguindo enquanto caminhava até o ponto de táxi. Atravessou uma avenida para cortar caminho pelo meio de uma praça repleta de árvores. A escuridão era intensa, já que quase todas as luzes estavam quebradas, e nem mesmo os moradores de rua tinha coragem de se arriscar a dormir ali. Ele acendeu um cigarro e continuou o caminho, desviando como podia dos buracos no pavimento. Já estava enxergando os postes da avenida em frente, quando viu uma sombra que parou justamente na sua frente. — Não está tão escuro assim. – o investigador disse, tragando a fumaça para os pulmões. – E mesmo que estivesse, eu consigo sentir o cheiro da sua fralda geriátrica, Edmundo. — Sempre tão engraçadinho... – o policial militar também acendeu um cigarro e Rocha conseguiu ver seu rosto. Também conseguiu notar que ele não estava usando a farda, embora estivesse de serviço naquele horário. Esse não era um bom sinal. — Já é um pouco tarde para alguém tão velho estar na rua, sabia? – Rocha disse. – Ainda mais aqui, onde não tem muita luz. Cuidado pra não cair e quebrar a bacia... — Você acha que eu não ouvi aquela sua conversa com o Duval? – Edmundo interrompeu. – Então você me quer fora do caso, não é? — Eu já tenho muita gente pra me atrapalhar. Não preciso de você também. — O Duval falou com o meu comandante, sabia disso? — Não. E não me importo. — Ele me mandou ficar longe de você. — Que bom. Por que não começa a seguir essa ordem agora mesmo e cai fora? Tenho um compromisso. — É, eu estou sabendo. Vai ver a sua amiga puta, não é? A Michelle... — Eu acho bom você calar essa sua boca imunda agora, Edmundo. – Rocha gritou. Finalmente o policial militar conseguiu tirá-lo do sério. – Eu não gosto de bater em gente velha, mas isso não vai me impedir de quebrar todos os seus dentes! – Rocha cuspia as palavras. Estava tomado pelo ódio.
— Eu sei que não. O que vai te impedir é outra coisa. – Edmundo disse. Nesse instante, dois homens surpreenderam Rocha, segurando seus braços para trás. Ele tentou se desvencilhar, mas quanto mais se mexia, mais dor sentia. Era como se seus braços estivessem a ponto de serem quebrados. — Isso é bem típico de você, Edmundo! – o investigador disse, finalmente parando de lutar. – Não dá conta sozinho e precisa chamar os amiguinhos para... Rocha não conseguiu terminar a frase. Edmundo acertou-lhe um soco tão forte no rosto que ele quase perdeu a consciência. Não podia acreditar que alguém tão velho pudesse ter tanta força. Mas as agressões não pararam por aí. Outros três socos vieram em sequência, revezando as mãos e os lados do rosto. — Ah, faz muito tempo que eu queria fazer isso. – o policial militar disse, erguendo os braços como se fosse um boxeador após vencer uma luta. — Não vai ser tão fácil assim, velhote... – Rocha disse, depois cuspiu um pouco de sangue no chão. Os dois homens ainda seguravam seus braços. Mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Edmundo avançou sobre ele esmurrando seu rosto com fúria. Bateu tanto que chegou a se cansar, só parou quando ouviu um estalo opaco, que não vinha do rosto de Rocha, e sim de um de seus dedos, cujo os ossos haviam acabado de trincar. — Isso é tudo? – Rocha disse com um sorriso cínico, os dentes vermelhos e encharcados de sangue, assim como todo o resto de seu rosto. – Eu esperava mais. — Como? – Edmundo não conseguia acreditar que ele ainda estivesse consciente depois de todos aqueles golpes. – Eu não sei qual é o seu problema, Rocha. Mas pode apostar que eu vou tirar esse sorriso da sua cara e vai ser agora. Rocha ouviu o estalido metálico. Seu agressor havia sacado uma arma. O investigador não conseguia acreditar que Edmundo teria coragem de fazer aquilo ali, numa praça pública, onde qualquer um poderia passar e ver. Mas, considerando quem era, isso até fazia sentido. Edmundo se aproximou com a pistola empunhada. Não atiraria de longe para não correr o risco de acertar um de seus companheiros. Rocha sabia que aquela era a hora de agir. Com um movimento rápido, ele girou o corpo, fazendo com que os homens que o seguravam perdessem o equilíbrio. Eles não esperavam que Rocha ainda tivesse forças para uma reação eficiente, por isso haviam afrouxado as mãos. O homem que segurava seu braço direito caiu sobre Edmundo, fazendo com que ele derrubasse a arma no chão. Seria impossível achá-la naquela escuridão. Em seguida, o investigador segurou o segundo homem pela nuca puxou sua cabeça para baixo enquanto erguia sua própria perna direta. O choque entre o joelho de Rocha e o rosto do homem foi tão grande que o investigador quase caiu e o homem
atingido desmaiou imediatamente. Logo em seguida, Rocha saltou sobre o primeiro homem, que ainda tentava sair de cima de Edmundo, e bateu sua cabeça no chão duas vezes, fazendo-o perder os sentidos. O investigador se levantou com dificuldade e procurou o maço de cigarros no bolso interno do casaco. Achou apenas o isqueiro. Abriu a tampa e girou o gatilho, fazendo uma longa chama dourada aparecer e dançar no ar. O vulto de Edmundo tornouse visível. Ele tateava o chão, provavelmente tentando encontrar a pistola. Rocha caminhou até ele e chutou seu estômago. — Você é um pedaço de merda mesmo, velhote! – ele disse, depois de chutar o homem no chão por mais três vezes. – Precisa aprender a se colocar no seu lugar. – chutou mais duas vezes. Caminhou um pouco com o isqueiro apontado para o chão, até que finalmente achou seu maço de cigarros. Eles estavam amaçados e havia alguns respingos de sangue, mas isso não o impediu de sacar um e acendê-lo. Depois disso, voltou até o policial militar, que ainda se contorcia de dor no chão. Abaixou-se bem próximo a ele. — Sabe o que me impede de te matar agora, Edmundo? – disse. – Sabe por que eu não estouro a sua cabeça agora mesmo? Edmundo tossiu. Sua boca estava cheia de sangue. — Porque isso vai atrapalhar a minha investigação. – Rocha voltou a dizer. – E porque eu não quero que você morra agora. Eu ainda quero te fazer sofrer muito, seu filho da puta! Eu quero ver a sua cara enquanto eu atiro nas suas pernas e nos seus braços. Eu quero que você implore pela vida antes de eu meter uma bala bem no meio da sua cabeça. Rocha se levantou com dificuldade. Suas costas estavam doendo. — Como você mesmo disse, velhote, isso ainda não acabou. – Rocha usou toda a força que ainda tinha para acertar um novo chute, dessa vez no rosto de Edmundo, que desmaiou no mesmo instante. Ele procurou um banheiro ou um bebedouro na praça, mas não conseguiu encontrar. Então avistou um hotel do outro lado da avenida. Checou os bolsos para ver se sua carteira ainda estava lá e após confirmar, fez o possível para desviar dos carros e chegar até o estabelecimento. O atendente do hotel ficou horrorizado quando viu Rocha entrar pela porta, com o rosto coberto de sangue. Quase o expulsou e só não fez isso porque o investigador era duas vezes maior que ele. E também porque Rocha apresentou seu distintivo e ameaçou prendê-lo. Pediu um quarto para que pudesse tomar banho. O investigador se sentiu em casa quando entrou quarto e aspirou o cheiro penetrante de mofo e naftalina. No lugar não havia nada além de uma cama de solteiro,
uma mesinha velha com uma cadeira, um guarda-roupas vazio e um frigobar com duas garrafas de água mineral. Rocha tratou de secar uma delas. Foi até o banheiro e, depois de lavar o rosto, notou que a sua situação estava bem melhor do que imaginara. Havia mais sangue das mãos de Edmundo do que de seus próprios ferimentos, que se resumiam a um corte no supercílio, algumas feridas na gengiva e um ou outro corte também dentro da boca, causados pelo impacto contra os dentes. Também havia ralado uma das mãos quando caiu no chão, mas isso não era nada demais. O atendente havia sido gentil a ponto de levar até seu quarto um pequeno kit de primeiros socorros, muito provavelmente pelo medo de acabar sendo preso. Rocha colocou um curativo na sobrancelha e passou um pouco de antisséptico na mão. Sua camisa estava encharcada pelo sangue que escorreu de seu rosto e ele não conseguiu limpá-la por completo. Mas, para sua sorte, seu casaco não havia sujado tanto, já que era bem escuro e nunca esteve limpo de verdade, por assim dizer. Tudo que ele fez foi fechar o zíper do casaco até próximo do pescoço, escondendo a camiseta manchada e os indícios da luta. Limpou o sangue nos sapatos e na calça e, alguns minutos depois, estava de volta à recepção do hotel. — Obrigado pela ajuda. – ele disse ao homem, que quase não o reconheceu sem todo aquele sangue em seu rosto. Devolveu o kit e pegou a carteira do bolso da calça. – Agora preciso que me peça um taxi. Estou atrasado. — Certo. – o homem disse, já pegando o telefone. — Quanto eu te devo? – Rocha abriu a carteira. — Não se preocupe com isso, senhor policial. — Quanto eu te devo? – Rocha insistiu, dessa vez com mais intensidade na voz. — A noite custa quarenta, mas como o senhor só tomou banho, pode ser... — Toma cinquenta. E não fale sobre isso com ninguém. — Certo... — Agora ligue pro táxi. *** Havia mais gente do que Rocha imaginava na capela mortuária. Não que isso significasse muito, mas acreditava que não haveria ninguém além da mãe e sua enfermeira e mais duas ou três amigas. Na verdade, havia umas vinte ou trinta pessoas. Colegas de trabalho do jornal, provavelmente. Talvez tivessem vindo por respeito, mas o mais provável é que quisessem especular, ainda mais depois de tudo que os jornais estavam dizendo sobre ela. O corpo de Michelle havia sido liberado pelo legista no dia anterior e, como a
sua família resumia-se a sua mãe doente, Rocha decidiu se responsabilizar por todos os preparativos necessários para o velório e a cremação. Pagou a funerária com seu próprio dinheiro. Não tinha economias para uma cerimônia de luxo, mas era o suficiente para se despedir dela com a dignidade merecida. A mãe se chamava Rosa Aparecida Siqueira. Embora o tempo não tivesse sido muito generoso com ela, os traços da filha eram claramente visíveis em seus olhos e em seus lábios. Deveria ter sido uma mulher muito bonita. Agora, aos 53 anos, mais parecia ter 90. Fraca a ponto de não conseguir andar, era sempre acompanhada por uma enfermeira, que empurrava sua cadeira de rodas para todos os lugares onde ela insistia em ir. Era Michelle quem pagava o salário da enfermeira com muito sacrifício, à custa de seus dois empregos. Agora, com o ocorrido, o destino seria cruel com dona Rosa. Provavelmente seria mandada para uma clínica de repouso pública, onde seria espancada pelas enfermeiras e pelos médicos mal-humorados e pagos. Seria esquecida até que morresse sem que ninguém soubesse. É claro que Rocha não deixaria que isso acontecesse. O investigador recorreu ao delegado Duval, que mostrou quão grande era sua influência. Conseguiu uma vaga em uma conceituada instituição, com todas as despesas custeadas pelo Estado até o – provavelmente próximo – fim de sua vida. Na verdade, quem havia se encarregado de conseguir a vaga era a doutora Celma, a esposa de Duval. Ela conseguiu muita fama como cardiologista ao longo dos anos por salvar a vida de alguns artistas que costumavam abusar dos prazeres da vida. Por esse motivo, sua palavra abria portas em quase todas as áreas da Saúde em São Paulo. Rocha sabia que tinha uma dívida eterna com Duval e sua esposa e ele a honraria para sempre. O investigador abaixou-se em frente da cadeira de rodas de Rosa e segurou suas mãos. As beijou com ternura, embora ela não parecesse estar ciente do que estava acontecendo. Muito provavelmente, nem sabia que sua filha estava naquele caixão poucos metros à sua frente. Talvez fossem os remédios, já que ela parecia completamente sedada. Ou talvez fosse mesmo a profunda dor. Rocha não sabia qual das duas hipóteses era a pior. Levantou-se e caminhou até o caixão. Lá estava sua amiga e amante. Os olhos fechados, como se estivesse apenas dormindo, como tantas vezes fizera em sua cama. Sua pele estava um pouco mais clara do que o normal. A palidez da morte aliada às várias camadas de maquiagem para esconder as marcas da violência. Seu corpo, mergulhado em crisântemos amarelos e brancos milimétricamente organizados, mais parecia uma estátua de mármore. Rocha não conseguiu segurar as lágrimas. Elas deslizavam pelo seu rosto e caiam do seu queixo como relâmpagos numa noite de tempestade. Mas ele permanecia imóvel.
O murmúrio na sala se tornou audível quando ele se abaixou e beijou a testa de Michelle. O mesmo frio de antes, na cena do crime, tomou conta de seu corpo. E o toque de seus lábios na pele morta fez sua alma congelar. Alguns dos presentes sacaram seus celulares e fotografaram o beijo. Eles queriam saber quem era aquele homem e, como os jornais já havia noticiado sobre a vida dupla de Michelle, a suposição mais comum era a de que Rocha seria um cliente apaixonado. O que não deixava de ser verdade, de qualquer forma. Mas paixão era uma palavra muito vaga e não fazia jus ao que ele realmente sentia. Talvez a melhor palavra fosse amor, e aquela era uma péssima hora para se dar conta disso. Ele não conseguia parar de chorar. Permaneceu ao lado do caixão por mais algum tempo, os olhos fixos no rosto dela. Era a última vez que a veria e não conseguia imaginar uma dor pior. Nem mesmo quando sua mulher desaparecera, anos atrás, levando com ela seu único filho. Naquela época, ele não sofreu tanto assim. Sabia que seu casamento estava em ruínas e que ela iria embora algum dia. Estava preparado para isso. Com Michelle foi diferente. Alguém simplesmente a arrancou dele sem nenhum aviso, de forma inesperada. E era por isso que essa era uma dor muito pior. Exatamente à meia noite, o caixão foi lacrado e levado para a câmara fria, uma sala com isolamento térmico, onde o corpo de Michelle ficaria por 24 horas. Depois desse tempo, ela seria colocada em um forno a uma temperatura de 1200º C, até que todas as células de seu corpo se evaporassem, restando apenas os óxidos de cálcio que formavam seus ossos. A urna com as cinzas seria entregue no dia seguinte. Rocha não conseguiu dormir. Aquilo já estava se tornando um hábito, fazendo com que dois pensamentos transitassem insistentemente em sua cabeça. O primeiro era que estava exigindo demais de si mesmo. Precisava descansar um pouco, aliviar o estresse, visitar um puteiro ou qualquer coisa parecida. O segundo era que estava mesmo voltando aos velhos tempos. À época em que entrava de cabeça nos casos e dormia menos de 10 horas por semana, mantendo uma alimentação rica em cafeína e gorduras trans. Dessa vez, porém, ele podia tentar se justificar. Havia acabado de sair do velório da mulher que amava e isso acabaria com qualquer um. Não conseguia deixar de pensar que ela havia sido a última amiga que ele teria em toda a sua vida. Subitamente, levantou-se da cama e abriu todas as gavetas dos armários do micro apartamento. Revirou os móveis como se sua vida dependesse do que ele queria achar. E, se fosse o caso, estaria a salvo. A foto estava na segunda gaveta da mesinha de cabeceira. Michelle estava com cara de sono, os cabelos totalmente embaraçados. Rocha,
com alguns quilos a mais de gordura, estava sorrindo – se é que aquilo podia ser chamado de sorriso. Um cigarro pela metade no canto da boca e uma das mãos em volta do ombro de Michelle. Eles estavam deitados na cama. Rocha se lembrava de muito bem daquele momento. Michelle havia recebido uma polaroide como pagamento de um dos clientes. Gritou com ele dizendo que precisava de dinheiro, mas eles já haviam transado e o cara não tinha nada na carteira. Ou pegava a câmera ou saia sem nada. Rocha não disfarçou o riso enquanto ela contava aquilo, indignada com a cara de pau do cliente. Ex-cliente, a partir daquele dia. — Se ele não tinha dinheiro, por que me chamou? – Ela disse, fazendo bico. — Talvez achasse que você levava jeito para a fotografia. Eles riram, enquanto Rocha desabotoava sua blusa. Algum tempo depois, eles estavam na cama, tomados pelo êxtase. Ela finalmente se sentia bem. Não estava ali pelo dinheiro, mas pela companhia dele. Pela conversa, o calor do corpo, as risadas. E talvez, por que não dizer, pelo amor. Quando ela desabou sobre o peito de Rocha, totalmente exausta, ele esticou o braço até a mesa de cabeceira e pegou a câmera que estava lá. Investigou minunciosamente o aparelho por alguns segundos, tentando entender seu funcionamento. Então a ergueu sobre eles e apertou o botão vermelho. O flash os cegou e Michelle protestou, pedindo que ele deixasse aquilo onde estava. O pedaço de papel quadrado saiu da parte frontal do aparelho. Rocha retirou e sacudiu. Não sabia para que, mas as pessoas sempre faziam aquilo nos filmes, então deveria ser importante. Lentamente, a imagem se formou. O casal descabelado deitado, Michelle quase nua e Rocha quase sorrindo. O investigador voltou para o mundo real. Enquanto olhava a foto, uma lembrança engraçada passou pela sua mente. Havia tirado aquela foto há mais de dois anos, quando o termo selfie, se referindo a autorretratos feitos pelo próprio fotógrafo, com a câmera apontada para seu rosto, ainda não havia sido criado. Riu porque, algumas semanas antes, havia lido em algum lugar que era moda entre os jovens postar na internet selfies feitas durante ou logo após o sexo. Fotos como aquela, que ele tinha nas mãos. “Nós prevemos o futuro, Michelle”, pensou. Achou sua carteira soterrada em meio à pilha de latas de cerveja que consumiu naquela noite, logo após chegar do velório. A esfregou na calça para limpar o líquido que havia respingado e depois a abriu para guardar a foto numa das divisões de plástico, junto com seus velhos documentos pessoais. A partir de agora, isso era o máximo que teria dela. Trocou o esparadrapo da sobrancelha e depois deitou-se na cama. Pegou um dos livros que estavam sobre ela. O Código da Vida. Folheou algumas páginas com
atenção, mas as letras miúdas pareciam dançar na sua frente. Desistiu da leitura. Colocou os livros no chão, tirou a calça e fechou os olhos. Mas, por mais que tentasse, não conseguiu dormir. *** — Bom dia, Rocha. – a psicóloga disse. Ela estava ainda mais linda aquele dia e Rocha não conseguiu deixar de pensar em como aquele corpo deveria ser fenomenal sem roupa. – Está mais calmo hoje? — Eu sou a pessoa mais calma desse mundo, doutora. – ele se sentou e cruzou os braços. – O problema é que as pessoas adoram me tirar do sério. — Você quer falar sobre isso? — Não. — Claro... Quer falar sobre alguma coisa? — Não. — Nem sobre a Michelle? — Como você sabe sobre a Michelle? – Rocha sentiu uma pontada no peito. Descruzou os braços e colocou as mãos sobre a mesa de vidro. — O delegado Duval me passou todas as informações disponíveis sobre você, Rocha, e isso é algo muito importante. A morte de um ente querido pode trazer sérias consequências para a nossa vida. — Isso não aconteceu comigo. – Rocha disse, voltando a cruzar os braços. – A minha vida já era uma merda antes de eu conhecer ela. Só voltou a ser como era. — E quando você estava com ela? Como era a sua vida naquela época? – Muriel disse. Ela parecia muito interessada no que Rocha tinha a dizer. — Eu gostava de estar com ela. – Rocha respondeu. Não queria dizer, mas algo fazia as palavras saírem. A lembrança de Michelle afetava muito as suas atitudes. – Ela me fazia muito bem. Despertava o que havia de bom em mim... Coisas que eu nem sabia que existiam. — Como você se sente sobre a morte dela? — Como eu deveria me sentir? Eu quero pegar o filho da puta que fez isso com ela e mandar ele pro inferno. Pode apostar que eu vou pegar ele, doutora! — Esse mesmo filho da puta, como você diz, matou várias outras pessoas, não é mesmo? Você também quer vingá-las, ou isso se limita a Michelle? — O quê? — Se ele não a tivesse matado, você o estaria procurando com esse mesmo empenho? Se ela tivesse sido morta por outra pessoa, por exemplo, quem você estaria procurando agora? O Assassino da Cruz ou o assassino da Michelle?
— Eu estaria procurando quem o delegado Duval me mandasse procurar, doutora. – Rocha respondeu, completamente irritado. – Eu sou um policial e faço o que os meus superiores me mandam fazer. — Sim, eu tenho certeza disso. – ela se inclinou na direção do investigador e ele sentiu o coração acelerar. A presença daquela mulher o intimidava muito e ele não conseguia entender o motivo. Claro que a minissaia e o decote extremamente generoso deveriam ter algo a ver. – Isso é o que eu gostaria de ouvir, Rocha. Mas, seja sincero comigo. Quem você estaria procurando? — O Assassino da Cruz matou a Michelle, doutora. – Rocha disse e sua voz soou mais agressiva do que ele gostaria. Ainda assim, não recuou. – Essa é a verdade e também é a única coisa que importa. Eu vou caçá-lo e vou prendê-lo, nem que eu tenha que morrer pra fazer isso. — Você persegue todos os criminosos com essa mesma garra ou o Assassino da Cruz é especial para você? — Pelo amor de Deus, doutora. – Rocha disse, incrédulo. – Ele matou a Michelle! É claro que têm mais coisas em jogo nesse caso. Só que isso não quer dizer que eu não sou capaz de separar as coisas. — Em situações normais, você seria afastado desse caso, já que existe uma ligação entre você em uma das vítimas... — Em situações normais, eu não precisaria ser chamado, doutora. – Rocha olhou diretamente para os olhos da psicóloga pela primeira vez naquele dia. – Eu não sou um policial normal. Eu sou o melhor policial que a senhora terá o prazer de conhecer, porque eu não desisto e não fracasso nunca. Se esta fosse só mais uma situação normal, eu ainda estaria atrás de uma mesa naquela delegacia de merda. Eu fui chamado porque ninguém além de mim tem capacidade de resolver esse crime e porque, antes do galo cantar três vezes, a cabeça do Assassino da Cruz vai estar em uma bandeja na minha sala. — Entendo. A psicóloga se ajeitou na cadeira e Rocha fez o possível para disfarçar seus olhares para as curvas dela. É claro que não conseguiu ser tão discreto quanto esperava. — Você está se relacionando com alguém nesse momento, Rocha? – a psicóloga perguntou, depois de anotar algumas coisas em sua caderneta. — Só com a Lucille. — Lucille? Rocha abriu o casaco e mostrou a pistola presa no coldre. — Ah, entendo. B.B. King, não é? — Isso aí.
— Eu me refiro a um relacionamento íntimo. – ela disse. – Alguma mulher especial? Ou talvez algum homem? — Você está maluca? – Rocha respondeu, indignado. – Eu já te disse que gosto é de mulher, doutora! — É, eu notei. – ela olhou para baixo, como se apontasse para os próprios seios com os olhos. Rocha engoliu a seco. — Você não está sendo muito profissional, doutora. — Sério? Esclareça. — Essa sua roupa e esse seu jeito... Isso não é forma de atender seus pacientes. — E a roupa interfere no exercício da atividade? — Bem... — Você não está usando uniforme. — Eu sou civil, doutora. — Eu sei, mas todos os outros policiais da delegacia usam a camisa preta com o brasão da polícia. Além disso, eles mantêm o distintivo a mostra. Rocha riu. — Eu não quero tomar um tiro nas costas. Prefiro a discrição. Meu distintivo está aqui, caso eu precise esfregá-lo na cara de alguém. – Rocha retirou a carteira do bolso do casaco e mostrou para a psicóloga. – O meu trabalho exige discrição. Já o seu, pelo visto, exige justamente o contrário. A psicóloga anotou alguma coisa no caderno, mas Rocha não conseguiu ler. — Vamos esquecer as roupas por um tempo. – ela disse, quando terminou de escrever. — Eu já esqueci. — Vamos falar sobre a Sandra e o Miguel então. Rocha paralisou. Definitivamente, não esperava ouvir aqueles nomes. — O que você sabe sobre eles? – o investigador perguntou, desconfiado. — O mesmo que você, pelo jeito, Rocha. – ela respondeu. – Você foi casado com Sandra dos Santos por oito anos, e nesse período vocês tiveram um filho chamado Miguel dos Santos Rocha. Há pouco mais de dez anos, vocês se separaram e a Sandra desapareceu por completo, levando seu filho com ela. Até onde eu e o delegado Duval sabemos, vocês não tiveram mais nenhum contato desde então. — É isso aí. – Rocha disse, com desdém. – O amor é mesmo lindo, não é? — Sem dúvidas. Como você se sente em relação a isso? — Não faz diferença. Não me dou muito bem com relacionamentos duradouros. — Por que o casamento não deu certo? — Pergunte para ela. Não fui eu quem foi embora. — Será que o seu comportamento violento tem alguma coisa a ver com isso?
— Por mais que não me falte vontade às vezes, doutora, se tem uma coisa que eu nunca fiz na vida foi bater em mulher. Meu pai me ensinou que só filhos da puta fazem isso. Foi por isso que eu derrubei ele de cima da escada na última vez que ele tentou bater na minha mãe. – Rocha disse, seco e um pouco agressivo. – A Sandra foi embora porque esperava viver uma vida que eu jamais poderia dar, então acabou se frustrando. Eu não sou um príncipe encantado num cavalo branco. Estou mais para um ogro num pântano. — Entendo. — Entende o cacete. — Você não sente saudade do seu filho? — Ele já tem 22 anos e nunca veio atrás de mim. Nem deve se lembrar de que tem pai. Por que eu deveria sentir falta dele? — Mas você também nunca foi atrás dele. — Doutora... – Rocha sentiu um aperto no peito. Na verdade, havia procurado seu filho e sua esposa durante anos, indo em delegacias e necrotérios de todo o estado e usando todos os seus contatos para ver se conseguia alguma informação. Como nunca conseguia chegar em algum lugar, decidiu deixá-los em paz. Talvez a vida deles ficasse melhor sem ele. Pensou em falar sobre isso com a psicóloga, mas logo mudou de ideia. – Você tem razão. Eu sou um péssimo pai. — Não foi isso que eu disse. — Mas é a verdade. — A sua esposa foi embora. – a psicóloga disse, com um tom de voz misericordioso e um sorriso sincero. – A culpa não é só sua. Foi ela quem te deixou. — Mas fui eu quem deixou que ela fosse. Eu não fiz absolutamente nada pra impedir. Só abri uma lata de cerveja e fiquei sentado no sofá assistindo à TV enquanto ela arrumava as malas. Eu não dei adeus ao meu filho. Eu quase não me lembro do rosto dele... — Isso ainda te incomoda? — Não. – Rocha mentiu. — Você nunca pensou em... — Doutora, eu gostaria de encerrar essa conversa por aqui. – Rocha interrompeu, encenando uma educação que não costumava usar. – Isso não tem nada a ver com o meu comportamento. Não consigo entender como algo que aconteceu há mais de quinze anos pode interferir no meu comportamento de hoje. — Pode interferir de muitas formas, na verdade. — Vamos encerrar por hoje. — Sou eu que digo isso, Rocha. — Não hoje, doutora. Eu tenho uma pista quente. Não posso perder tempo aqui.
Você já tem muita coisa pra se divertir. *** — Estamos investigando aquele suspeito de quem você falou, Rocha. – foi a primeira coisa que Duval disse quando entrou na sala de Rocha e Thomas, trazendo consigo sua costumeira xícara de café. — Quem? O tal do João? – as olheiras de Rocha eram assustadoras. — Esse mesmo. Ele foi visto rondando o prédio da empreiteira alguns dias atrás, mas eu tenho minhas dúvidas sobre as afirmações de que eles eram namorados. Ao que parece, ele é traficante, então o mais provável é que a vítima estivesse devendo para a boca. Daí o porquê das ameaças de morte. O pessoal está tentando levantar mais informações sobre ele. Logo teremos o nome completo e o endereço. — Eu não acredito que esse cara seja o Assassino da Cruz… – Thomas disse. — Não, claro que não. – Rocha interrompeu. – O assassino é esperto demais para isso. Não deixaria nada passar assim. — Então é perda de tempo ir atrás dele. — Pode até ser, Thomas. – Duval disse. – Mas esse cara pode saber de alguma coisa. Quem sabe a vítima tenha dito alguma coisa. Eu quero falar com ele. — Certo. – Rocha disse. — Agora me diz uma coisa, Rocha. – Duval chegou mais perto do investigador. – O que aconteceu com você? Que curativo é esse? — Trombei numa árvore da praça, ontem a noite. — Ah, sim. Com certeza foi isso. – o delegado zombou. – Fala logo a verdade, Pedro Rocha! O cabo Edmundo e outros dois policiais estão de licença porque, supostamente, foram rendidos e espancados por quinze criminosos durante uma ronda, ontem à noite. Eu tenho sérias dúvidas sobre essa versão. Será que eles também trombaram com algumas árvores? Você sabe de alguma coisa sobre isso? — Absolutamente nada. – Rocha olhava fixamente pra o quadro com as fotos. — Sei... — Eu só espero que você olhe por onde anda da próxima vez... – Duval disse. – Conheço vários caras que foram para cova de tanto bater a cara em árvores. — Você é quem manda, chefe. Nesse momento, um outro investigador entrou na sala, escancarando a porta com um ruído desnecessariamente alto. — Achamos, chefe! – ele disse. ***
— Como eu vou saber quem é ele, Edmundo? – disse o homem no celular. — Você vai saber. Ele é muito grande e parece que nunca dormiu na vida... – Edmundo sentia uma dor terrível na mandíbula a cada palavra pronunciada. Uma de suas costelas estava quebrada e ele não conseguia nem se mexer sem desejar a morte. Segurar o telefone no ouvido era um sacríficio – Ele precisa morrer hoje, mas qualquer um que você matar junto é lucro. Nenhum daqueles filhos da puta merece viver. — Certo. – o homem respondeu. — Ele vai estar com um moleque junto. – Edmundo disse. – É o parceiro dele. Este você pode só aleijar. O moleque ainda pode virar um dos nossos. — Certo. Mas você tem certeza que eles vão vir aqui? — É claro que eu tenho. – Edmundo respondeu. – Avisa teu patrão aí que a barra vai esquentar. O povo na delegacia me passou essa fita, que eles vão subir o morro com o GOE, com helicóptero e tudo que é caralho. Vocês vão ter que dar um jeito de segurar a barra por aí. — E por que você não vai vir? — Eu estou com uns problemas pessoais. – Edmundo sentiu uma dor aguda no peito. – Mas mesmo assim, vou estar aqui, dando apoio em tudo. — Certo. — Não se esqueça do que eu pedi. O nome dele é Rocha e ele não pode sobreviver a esse ataque. — Pode confiar em mim, chefe. Esse Rocha já tá morto e não sabe. – o homem disse, antes de desligar o telefone. *** O Grupo de Operações Especiais, ou GOE, como era mais conhecido, existia desde o começo da década de 1990. Naquela época, o crime estava mandando nas ruas. O estado de pânico era tão grande e o número de assassinatos e roubos – principalmente a bancos – era tão assustador, que a criação de uma força policial especializada foi praticamente obrigatória. E quando eles entraram em atividade, ajudaram a limpar as ruas de São Paulo tão bem que o Estado decidiu mantê-los, mesmo depois que o pandemônio fora controlado. Com isso, as tarefas antigas se mantiveram e muitas novas foram acrescentadas. A partir de então, passou a ser função do GOE auxiliar os investigadores a cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão. Também ficaram responsáveis pelas escoltas e pelas remoções de criminosos de alta periculosidade que estivessem
presos nas carceragens da Polícia Civil, isso enquanto não fossem transferidos para alguma penitenciária. Quando alguma crise acontecia, como rebeliões em presídios, sequestros ou roubos com a necessidade de resgate de reféns, distúrbios ou protestos civis violentos e qualquer coisa do gênero, também era certo que o GOE seria chamado para ajudar. O policias do GOE, embora fossem civis, recebiam um treinamento especial, a fim de torná-los aptos para as mais variadas missões que executavam. Utilizavam armamentos pesados e muito diferentes das tradicionais pistolas Taurus PT100, que eram padrão entre os demais policiais civis. Tinham à sua disposição toda uma gama de fuzis, indo do AR15 até o AK47, além destes, também tinham submetralhadoras, como a Beretta M12 e diversos modelos de pistolas, das Taurus até as Glocks. Em sua grande maioria, eram homens honestos, de muita atitude e de pouco papo. Era por isso que Rocha se identificava tanto com eles. Havia feito uns poucos e bons amigos dentro do GOE, mas, embora tivesse pensado muito nisso quando era mais jovem, nunca teve coragem de entrar para aquela equipe. Era um homem de ação, é claro, mas não gostava muito daquela hierarquia semelhante aos métodos militares, nos quais o subalterno recebe as ordens e as executa cegamente, sem hesitar nem questionar. Gostava de estar no controle da situação, mesmo quando Duval estava por perto, dando opiniões e cuspindo ordens que ele sentia certo prazer em ignorar. — Vamos repassar as informações. – disse o delegado Duval, virando-se para trás, com o rádio posicionado perto da boca. Ele estava no banco do carona de uma das três viaturas da Polícia Civil que atravessavam as ruas em alta velocidade. Outras quatro viaturas do GOE os acompanhavam de perto. Naquele mesmo carro, um Mitsubishi Pajero preto, além de Duval e do motorista, estavam Rocha e outros dois policiais. Thomas estava na viatura que vinha logo atrás deles. Todos os carros estavam ouvindo a voz do delegado pelo rádio. – O suspeito se chama João Aguiar, tem 29 anos e quatro passagens pela polícia: tráfico, agressão, tentativa de homicídio e tentativa de estupro. É considerado perigoso e, muito provavelmente, estará armado. Há alguns boatos de que ele comanda algumas bocas na região do Capão Redondo, então esperamos encontrá-lo por lá. Certamente haverá confronto. — Certo. – respondeu o comandante do GOE. — O suspeito é branco, tem cerca de 1,70m e os dois braços cobertos por tatuagens. Da última vez que foi visto, usava uma barba comprida, mas é provável que não esteja mais assim. — É importante dizer que a sobrevivência do suspeito é imprescindível. – Rocha disse, assim que Duval terminou de falar. – Morto, ele é completamente inútil para nossa investigação. Não nos façam perder a viagem.
— Exatamente. – disse Duval. – Esperamos uma reação pesada, já que invadiremos uma boca, mas o meliante precisa ser interrogado. Prioridade máxima nesse ponto. — E quanto aos demais meliantes, senhor? – A voz do comandante do GOE soou chiada pelo rádio. – O que devemos fazer caso haja mais elementos com o suspeito? — Manda pra vala. – Rocha respondeu antes que Duval pudesse dizer alguma coisa. – Quanto menos lixo na rua, melhor. — Senhor? – o comandante não estava certo sobre a ordem. — Você ouviu. – Disse Duval. Eles cruzavam a cidade como sombras raivosas em meio ao tráfego parado e lento, típico da capital. Ultrapassavam sinais vermelhos e, às vezes, seguiam pela contramão, fazendo com que os demais carros recuassem e se afastassem. Aquela atitude era necessária, pois sempre que a polícia saía na captura de algum bandido, o mesmo acabava sabendo que seria preso e fugia antes. Havia muitas batatas podres no DHPP, que se aproveitavam dos problemas da corporação para conseguir alguns trocados vendendo informações para o crime. Era por isso que tinham que ser rápidos. Para surpreender os suspeitos antes que eles fossem avisados e conseguissem desaparecer. Os rojões começaram a estourar no céu quando os carros chegaram a menos de mil metros do objetivo e, nesse momento, o movimento na rua desapareceu. Todos os moradores se trancaram em suas casas e os comerciantes fecharam suas lojas. Os primeiros disparos vieram logo em seguida. Tiros para o alto. Um aviso para quem se aproximava de que seriam recebidos com violência. Uma última chance de desistir. “Nem fodendo!” Rocha pensou. As viaturas, que haviam se separado quando chegaram ao quarteirão final, pararam dos dois lados da rua, impedindo que qualquer carro passasse por ali. Os policiais começaram a descer, atentos, as armas em punhos. Uma rajada de metralhadora atingiu um dos carros e então a guerra começou. Rocha se escondeu atrás de uma caçamba de entulhos e tentou encontrar um bom alvo. Não queria desperdiçar nenhum dos poucos carregadores de munição que tinha. Quando se analisa o poderio do tráfico, não é raro compará-lo com os terroristas árabes. A mesma sede de sangue é vista no olhar dos terroristas e dos traficantes. O mesmo fanatismo, ainda que por causas diferentes. O mesmo ódio pelos inimigos. A única coisa diferente entre eles é que, em se tratando de armamento, os terroristas e seus inimigos lutam de igual para igual. E, no Brasil, os traficantes têm mais armas do que o Exército e todas as polícias juntas. Os traficantes se abrigavam como podiam, dentro do bar que usavam como fachada para a boca ou atrás de carros e motos parados na rua. Usavam fuzis de uso
restritos às Forças Armadas, como o FAL, o M16 e o AR15. Mas tinham uma desvantagem crucial: o treinamento. Cada policial do GOE valia por dez marginais. Depois de cinco minutos de tiroteio, já havia uma dúzia de corpos nas dependências da boca, todos de traficantes. Nenhum dos policiais havia sido atingido. Um helicóptero Pelicano do Departamento Estadual de Investigações Criminais – o DEIC – sobrevoava o local, fazendo o reconhecimento dos criminosos que estavam tentando fugir pelos fundos, pelos quintais das casas vizinhas. Enquanto tentava desviar dos tiros, Rocha viu algo quase fez seu coração parar. Dois traficantes estavam trazendo de dentro do bar uma metralhadora .50. Eles planejavam derrubar o helicóptero e, com aquele poder de fogo, seriam capazes de fazer isso. O investigador contornou a caçamba, tentando conseguir uma visão mais clara. Enquanto se arrastava para a nova posição, viu Duval e Thomas agachados, tentando se esquivar dos tiros. Seu parceiro parecia desesperado e ele não se sentiu mal por rir disso. Sabia que um bom susto era bom para fazer com que nos lembrássemos que ainda estamos vivos. Quando conseguiu chegar ao outro lado da caçamba, posicionou-se da melhor forma que pôde. A visão era clara, mas havia três homens em volta da .50, garantindo sua segurança. Deveria acertá-los com rapidez e precisão. Se errasse um único tiro que fosse, o sobrevivente se apossaria da arma e tornaria o investigador seu alvo primário. Não conseguia pensar em nada pior, já que os projéteis daquele calibre atravessariam a caçamba como se ela fosse papel. Há alguns metros dali, no terraço de um prédio em construção, um homem se esgueirou por entre as lajotas e os vergalhões. Procurou um lugar protegido e deitou no chão, posicionando o rifle que carregava em cima de alguns tijolos, com o auxílio de um pequeno tripé. Olhou pela luneta e viu a confusão lá embaixo. Tinha uma visão muito clara da rua, mas seria difícil acertar, considerando o fato de que não sabia quem era seu alvo. O helicóptero Pelicano agora estava muito perto dali e ele precisava ter muito cuidado para atirar no momento exato, se não quisesse ser visto pelos policiais. Percorreu toda a extensão da rua, olhando para cada um dos policiais que não usavam o uniforme do GOE. A única coisa que sabia sobre seu alvo era o fato dele ser investigador da Civil, ter aparência de que não dormia há muito tempo e estar acompanhado de um parceiro jovem. Já estava quase entrando em desespero quando viu uma pessoa que se encaixava na descrição. Um homem grande e velho, abrigado ao lado de outros mais jovens, ambos investigadores da Polícia Civil. Prendeu a respiração e se preparou para atirar. Apertou o gatilho. O delegado Duval sentiu o ombro arder. Um disparo o atingiu de raspão.
Abaixou-se e começou a procurar quem poderia tê-lo atingido, já que estava abrigado atrás de um carro. Foi nesse momento que avistou o prédio em construção ao longe. Chamou pelos policiais no helicóptero e disse que suspeitava de um atirador escondido. Thomas estava apavorado. Aquela era a primeira vez que ele participava de uma troca de tiros e isso o impedia de pensar com clareza. Ele lutava para se manter de pé, sem conseguir fixar a mira em nenhum dos criminosos. Os tiros acertavam o local onde ele estava, vindos de todos os lados, estilhaçando os vidros e perfurando a lataria dos veículos. E quando viu que Duval havia sido atingido, desesperou-se ainda mais, pois começou a pensar que aquele não era um lugar seguro. Se preparou para correr para trás da caçamba onde Rocha estava. A distância não era muito longa, mas o caminho se dava por um trecho desprotegido. Ali ele poderia ser facilmente alvejado, tanto pelos traficantes quanto pelo atirador no prédio. Quando o delegado viu o que ele estava fazendo, tentou impedi-lo, mas já era tarde. Ele já estava no meio do caminho. O atirador no terraço não estava disposto a desperdiçar aquela oportunidade. Prendeu a respiração novamente, mirou e apertou o gatilho. Thomas desabou. O atirador comemorou sozinho por alguns instantes, sem se dar conta do que estava acontecendo ao seu redor. Seu segundo tiro fez com que fosse avistado pelos policiais no helicóptero. Antes mesmo que pudesse pensar em fugir, o atirador já estava morto. Duval conseguiu arrastar Thomas de volta para trás do carro, antes que ele fosse atingido novamente pelos traficantes. Ele ainda estava respirando, mas precisava de atendimento médico urgente. Rocha voltou-se novamente para os traficantes com a metralhadora. Eles já estavam atirando no helicóptero, tentando derrubá-lo. Se fossem espertos de verdade, estariam usando aquela arma para atirar nos policiais. Teriam vencido o combate facilmente se tivessem feito isso. Mas, graças a Deus, o Diabo só contrata idiotas. Rocha atirou três vezes. Os três caíram imediatamente, um por cima do outro. Os outros criminosos ficaram desnorteados e esse foi o ponto de virada. Alguns abandonaram suas armas e começaram a fugir. Outros deitaram no chão, gritando. Alguns dos homens do GOE saíram de trás de seus abrigos e renderam os haviam ficado, enquanto outros correram atrás dos que haviam fugido. Thomas e um outro policial, que também havia sido atingido, foram levados diretamente para o hospital, mas Duval se recusou a ir. O tiro havia acertado seu braço de raspão e, por esse motivo, ele insistia que estava muito bem. A verdade é que as altas doses de adrenalina em seu corpo o impediam de sentir dor.
Quando todos os tiros já haviam cessado e os traficantes sobreviventes já estavam algemados, Rocha passou a procurar pelo homem que motivara toda aquela ação. Decepcionou-se ao constatar que ele não estava entre os mortos, feridos e capturados. Mas não havia motivo para se irritar. Se ele tivesse fugido com os outros, com toda certeza seria capturado pelos homens do GOE. Guardou a arma no coldre e sorriu. Havia mandado alguns daqueles marginais direto para o inferno e essa era uma ótima forma de se começar o dia. — Tinha um atirador num prédio. – Duval disse. – Você viu? — Não. Onde? — Ali. – Duval apontou para o lugar. – Ele me acertou e eu estou achando que também foi ele quem derrubou o Thomas. — Você sabe quem era o cara? — Não faço ideia. Se for um dos traficantes, isso prova que eles já sabiam que estávamos vindo. — E você tem alguma dúvida disso? — Não, mas... Se ele sabiam, por que ficaram aqui? — Talvez porque são uns idiotas. Vai saber. O rádio com o qual Duval se comunicava com os homens do GOE começou a chiar e ele se afastou. Rocha seguiu até os policiais que revistavam o bar. Lá dentro, eles encontraram muitas outras armas. Fuzis, pistolas, uma metralhadora .30 e algumas granadas. Também havia drogas, é claro. Todos os tipos, para todos os gostos. Maconha, cocaína, crack, LSD, ecstasy, lança perfume, além de alguns quilos de pasta base, balanças de precisão e toda a parafernália utilizada na fabricação e no refinamento de coca. — Pegaram o cara, Rocha! – disse Duval, correndo até onde o investigador estava. Ele revirava algumas caixas em uma prateleira de metal no laboratório improvisado da boca. – Alcançaram ele lá no topo da rua. Parece que ele tomou um tiro na perna, mas não foi nada grave. Estão levando para o hospital e, assim que sair de lá, ele vai direto pra DP. — Esse tipo de lixo nem deveria ir para o hospital… – disse um dos policiais que ajudava Rocha a revistar o local. — Ele é filho de alguém, não é? – Rocha disse, com um sorriso sarcástico. — Está sentimental hoje? – Duval perguntou. Ele não respondeu, apenas sorriu. Retirou um maço de cigarros do bolso interno do casaco e verificou que havia apenas mais um. Acendeu e tragou com prazer, caminhando lentamente até a porta. — Vou esperar lá fora. – disse enquanto saía do laboratório, que ficava nos fundos do bar, sendo que o único acesso se dava por ele. Enquanto caminhava, correu
os olhos por todo o lugar. Mesmo sendo apenas uma fachada para a boca-de-fumo, o lugar provavelmente também funcionava como um bar e por isso havia prateleiras com bebidas e cigarros nas paredes atrás do balcão. Rocha caminhou até o local onde os cigarros estavam guardados, dentro de um compartimento de vidro trancado. Abriu todas as gavetas até encontrar o molho de chaves que abria o compartimento e pegou dois maços de Marlboro vermelho. Guardou os maços no bolso e abriu a carteira. Retirou uma nota de 20 e a jogou dentro da gaveta do caixa. — Pode ficar com o troco. – disse, para ninguém.
O Assassino da Cruz
Parte Um
Capítulo Dezesseis Quatro anos antes...
— Cara, vai por mim. Vai dar tudo certo. Assaltar um banco é tão fácil que eu nem sei por que mais gente não faz isso. – disse um dos homens. Ele colocava uma AK47 em uma das caixas. Lá dentro já estavam algumas pistolas e munição o suficiente para invadir a Normandia. Havia outras 4 caixas como aquela. — E se a polícia chegar? O que a gente faz? – perguntou outro homem. Eram seis, no total, reunidos em um velho barraco numa das maiores favelas da capital paulista. Do lado de fora do barraco havia um pequeno caminhão adesivado com o logotipo de uma empresa de transportes. Mas ele não pertencia a tal empresa. Era roubado. Sua aparência fora modificada. Havia também uma van escolar estacionada do outro lado da rua. — Eu já expliquei isso. A gente pega alguns reféns e pronto. Sai de boa. Eles não vão deixar a gente matar os caras. Depois é só vir pra cá que eles não virão atrás. — Eu não sei… — Quer desistir agora? Porra, depois de quase um ano? — Não… Eu tô dentro. Mas é foda. — Foda é ter que aguentar você. Agora vamos. Quanto mais tarde, mais gente vai ter lá dentro. Um dos homens saiu primeiro e se dirigiu ao banco do motorista da van. Ligou o motor e partiu. Alguns minutos depois, os outros cinco homens saíram do barraco. Estavam vestidos com uniformes da transportadora e carregavam caixas de papelão em carrinhos de entrega. Um deles abriu o baú do caminhão e entrou. Enquanto os outros passavam as caixas, ele as organizava lá dentro com muito cuidado. Quando todas as caixas estavam guardadas, mais dois homens entraram no baú. Eles ficaram lá dentro enquanto os outros dois que ainda estavam no chão fecharam as portas com cadeados. Os dois entraram na cabine, ligaram o motor e partiram na mesma direção para onde a van havia seguido alguns minutos antes. Eles estavam prestes a assaltar um dos maiores bancos privados do Brasil. O assalto fora muito bem planejado. Dez meses de preparação antes de realmente concretizar o fato. Não podia ser qualquer banco. Precisavam de um que
se encaixasse em todos os aspectos do plano, ou seria impossível entrar sem chamar a atenção. Nem todos os bancos possuíam portas blindadas. Tendo isso em mente, podiam simplesmente chegar atirando nas portas e entrar. Mas era perigoso. Muita gente podia acabar morta. E sempre havia o risco de a porta ser blindada. Subornar os guardas também era uma boa opção, mas quanto mais pessoas envolvidas, mas risco de dar errado. A ideia veio quando dois deles estavam dentro de um dos bancos sondados, estudando as câmeras e as movimentações dos seguranças. Dois homens pararam em frente à porta giratória, um mais velho e um mais novo, de cabelos compridos. Eles traziam um carrinho de entrega com três ou quatro caixas de produtos de limpeza. O guarda não perguntou nada. Apenas abriu a porta e deixou que eles entrassem. Nada de perguntas, nada de revistas ou inspeção nas caixas. Os homens entraram, entregaram suas caixas nos fundos da agência e saíram. Simples assim. Naquela mesma hora, a ideia inteira se formou. À noite, os cinco homens se reuniram em uma lanchonete e um deles apresentou o plano. O assalto seria dividido em quatro etapas simples. Primeira Etapa: Escolher o banco. Eles precisavam de um banco específico, longe de delegacias, longe de grandes movimentações e com um trânsito não muito intenso, para que a fuga não fosse dificultada. Mas não podia ser pequeno, pois a quantia no cofre precisava ser alta o suficiente para o roubo valer a pena. Segunda Etapa: A transportadora. Dois deles precisavam conseguir trabalho em uma transportadora que fizesse entregas para aquele banco. Os guardas precisavam conhecê-los e confiar neles. Terceira Etapa: Explodir os caixas eletrônicos. Eles precisavam provocar uma pequena explosão na área dos caixas eletrônicos. Não roubariam nada, mas tudo seria feito para parecer um assalto. O único objetivo era forçar o banco a entrar em reformas, para que as entregas se tornassem mais constantes. Os materiais de construção seriam entregues por depósitos, mas outros, como computadores, bobinas e
até mesmo os novos caixas eletrônicos seriam entregues pela transportadora. Quarta Etapa: O assalto. Eles precisavam encher as caixas normais de entrega da transportadora com as armas pesadas que usariam no crime. Assim, ao passarem pelos guardas nas portas, poderiam rendê-los com facilidade. O plano parecia perfeito. E, de fato, era. Também precisariam de um bom motorista de fuga, que conhecesse bem a área e que tivesse experiência com esse tipo de serviço. Isso não era um problema, pois um deles já tinha alguém ideal para o trabalho. Ele se chamava Luciano Alvarenga e era dos bons. Transportava algumas crianças para escolas como fachada, o que era melhor ainda, pois tinha uma van que poderiam usar para fugir sem serem vistos. Afinal, não poderiam fugir num caminhão lerdo e espaçoso. Chegaram ao banco um pouco depois da hora prevista, pois o trânsito estava mais intenso do que o normal. A van escolar já estava a postos. Estacionada na quadra de cima. Exatamente na hora marcada, ela contornaria a agência e iria para os fundos, por onde eles sairiam com o dinheiro, se tudo corresse bem. Pararam o caminhão na rua lateral do banco e abriram o baú. Descarregaram as caixas em quatro carrinhos de entrega, um para cada um deles. O outro homem, Breno Henrique Nogueira, ou o Líder, como eles o chamavam, carregava apenas uma prancheta com as informações da suposta entrega. Ele também era o único que já estava armado com uma pistola escondida na parte de trás do cós da calça. Seria sua tarefa render o primeiro guarda. Entraram no banco e se dirigiram até a porta giratória. Os guardas reconheceram o Líder. Um deles caminhou até a porta ao lado, aberta apenas para pessoas em cadeiras de rodas, cardíacos com marca-passos e, é claro, entregadores. Ele a abriu com um sorriso. — Caramba, quanta coisa! — Pois é. – disse o Líder. – Eu é que não ia trazer tudo isso sozinho. Esses caras estavam lá no depósito sem fazer nada. Botei eles para trabalhar. — Está certo. – o guarda gargalhou. — Onde posso deixar? Têm produtos de limpeza, bobinas e algumas porcas e parafusos. As caixas estão muito pesadas. — Certo. Pode pôr lá fundo mesmo. Quando o pessoal precisar, eles buscam.
— Beleza. Os homens entraram pela porta e começaram a empurrar os carrinhos em direção à pequena entrada na lateral dos Caixas de Atendimento. O banco estava mais cheio do que o normal, o que seria um problema. Mas eles já estavam lá dentro. Não havia como recuar. — Ah, esqueci de um detalhe. – disse o Líder, voltando-se para o guarda que acabava de trancar a porta, após todos passarem. – Será que algum de vocês poderia nos ajudar? Eu estou com um problema sério nas costas e algumas dessas caixas estão muito pesadas mesmo. A gente precisou de oito caras para pôr em cima do caminhão. O guarda pareceu vacilar por alguns segundos. Mas acenou positivamente com a cabeça. — Eu vou com vocês. Havia poucas coisas que Rocha odiava mais do que bancos. Ainda assim, naquele dia, não podia evitar. Havia acontecido algo com a sua conta bancária e o seu salário não constava como depositado. Por mais que amasse o trabalho, não estava disposto a trabalhar de graça. O jeito era enfrentar a fila e conversar com o gerente. Depois de duas horas na fila, e com algumas pessoas ainda à sua frente, não pode controlar a vontade de ir ao banheiro. Pediu que a senhora atrás dele guardasse o seu lugar e saiu à procura de um lugar onde pudesse se aliviar. Não sabia se era pelo desespero ou pela falta de sinalização, mas só conseguiu achar o banheiro masculino dez minutos depois. Passou muito menos tempo do que isso lá dentro. Porém, quando saiu do banheiro e passou a caminhar de volta para a fila, viu que tudo havia mudado. Ao seguir pelo corredor, viu um homem com roupa de entregador erguendo um fuzil. Algumas pessoas gritaram. Outros quatro homens armados apareceram, um deles segurando um dos guardas, com uma arma encostada em sua cabeça. Rocha pensou rápido. Um dos homens estava vindo em sua direção, então ele se abaixou e esgueirou-se até o banheiro. Pensou em entrar em um dos cubículos individuais, mas era óbvio que seria facilmente encontrado ali. Então se escondeu em um lugar ainda mais óbvio. Atrás da porta da entrada, que criava um pequeno vão suficiente apenas para um homem. Deu certo. O homem armado entrou no banheiro e revistou cada um dos cubículos. Não encontrou ninguém. Se admirou no espelho por um segundo e saiu em direção ao banheiro das mulheres, que ficava ao lado. Saiu de lá poucos minutos depois carregando uma mulher pelos cabelos, enquanto ela gritava e tentava erguer a saia,
que estava na altura dos joelhos. Só então Rocha saiu de seu esconderijo. Sacou a arma e rastejou pelo corredor, tentando enxergar melhor o que estava acontecendo. Cinco homens, todos usando uniformes de uma transportadora e portando fuzis e metralhadoras de altos calibres, caminhavam por entre os reféns. Os funcionários e os clientes do banco estavam ajoelhados no chão, com as mãos na cabeça e os olhos cheios d’água. Depois de alguns segundos de observação, Rocha voltou para o banheiro e ligou para Duval. — Alô? — Duval… É o Rocha. — Você ainda está no banco? Estou precisando de você aqui agora! Temos que falar com o cara do… — Cala a boca! – Rocha disse. Embora estivesse sussurrando, seu tom de voz mais parecia um grito. – Eu ainda estou aqui… E a coisa tá feia. — Olha… — O banco está sendo assaltado. — O quê? — Tem cinco caras. Eles têm AK47, AR15 e tudo quanto é arma. Renderam todo mundo. — Você está falando sério? — É claro, porra! — Onde você está? — Me escondi no banheiro. Estou com minha arma, mas acho que não é uma boa ideia agir. — Não faça nada! Vou mandar uma equipe. Fique escondido e me mantenha informado. Rocha desligou o celular e voltou para o corredor. Levantou um pouco mais a cabeça para tentar enxergar melhor o que estava acontecendo. Um dos homens pegava as carteiras, joias, celulares e todos os pertences dos clientes e dos funcionários. Um outro acompanhava os caixas enquanto eles tiravam todo o dinheiro de suas gavetas e o colocavam em um saco. Um outro vigiava os reféns. Os outros dois haviam desaparecido. Dois guardas também haviam sumido, mas Rocha sabia onde eles estavam: esvaziando o cofre principal. Alguns minutos depois, o chão estremeceu, fazendo os reféns gritarem. Eles haviam explodido o cofre. A partir de agora, tinham menos de cinco minutos até que a polícia chegasse. E, conforme Rocha notou, estavam completamente preparados para isso. Os outros dois homens retornaram sem os guardas em menos de um minuto, carregando alguns sacos enormes nos carrinhos de entrega. Só não estavam preparados para o que veio logo em seguida.
Luzes vermelhas e azuis invadiram o local, vindas das paredes de vidro que davam para a rua. Sirenes e apitos explodiram no ar com ruídos ensurdecedores. E, pela primeira vez, os homens pareceram desesperados. — Puta que pariu! – disse um deles. — Como eles já chegaram? – perguntou o outro. — A gente tem que sair! – disse novamente o primeiro. — Peguem um refém. – falou, então, um outro. O Líder. Rocha viu um dos homens arrastando uma senhora pelos cabelos até o Líder. Justamente a mulher para quem ele pedira que guardasse seu lugar antes de ir ao banheiro. Ele a colocou de joelhos e encostou o fuzil na sua nuca. — Vocês estão cercados. – ouviu-se a voz vinda do megafone do lado de fora. – Entreguem os reféns e conversaremos em segurança. — Pro inferno! – gritou um dos homens. Rocha respirou fundo. Ele travava uma batalha interna. Se agisse, poderia pôr em risco a segurança dos reféns. Se não fizesse nada, também estaria pondo em risco a segurança deles. Enquanto pensava, sentiu uma vibração em seu bolso. Era Duval ligando em seu celular. — Como as coisas estão aí dentro? — Tá foda. – Rocha cochichou. – Eles colocaram uma arma na cabeça de uma das reféns. Eu acho que vão atirar. — Vamos ligar para eles agora. Me informe sobre tudo que fizerem aí dentro. — Certo. Exatamente nesse momento, um dos telefones fixos tocou, quebrando o silêncio assustador que se instaurara dentro do lugar. Os homens se entreolharam, sem saber o que fazer. — Atendam o telefone. – disse novamente a voz no megafone. – Vamos conversar. Após um gesto de confirmação do Líder, um dos homens correu até o telefone sem fio no balcão dos gerentes de contas e o atendeu. — Alô. — Alô. É você que está no comando aí dentro? Não houve resposta. — Precisamos falar com o homem no comando, por favor… Para a segurança de todos. Ele levou o telefone até o Líder. — Nós queremos que vocês caiam fora agora! – disse ele, imediatamente após encostar o telefone no ouvido. - Vamos sair em paz, numa boa. — Com quem eu falo?
— Não importa. Eu estou no comando. — Nós não podemos sair… — Olha só. É o seguinte: Se vocês não saírem, nós mataremos um refém a cada cinco minutos, tá entendendo? Rocha ouviu uma voz em seu celular. — Quem está falando agora? — Parece ser mesmo o líder deles, Duval. – Rocha respondeu. – Ele está com uma arma apontada para a cabeça de uma mulher. Acho que vai atirar nela mesmo. — Certo. — Precisamos que nos ajude, antes de sairmos. – disse a voz no telefone do assaltante. – Como uma prova de boa-fé. Libere alguns reféns. — Nem fodendo. Vocês vão cair fora agora, ou eu vou matar todo mundo, começando com essa vadia aqui! – o Líder sacudiu a cabeça da mulher pelos cabelos violentamente, fazendo com que ela chorasse. Depois colocou o telefone próximo a sua boca, para que o negociador com quem falava pudesse ouvi-la. – Você ouviu? — Sim… Do lado de fora, mais e mais policiais se aglomeravam em meio a uma centena de curiosos que já estavam no local. Uma fita de contenção foi presa nos arredores da saída, para impedir que alguém invadisse o local. Os chefes de polícia ali presentes travavam batalhas épicas, conversando com uma série de pessoas para saber como deveriam agir, desde o Secretário de Segurança Pública, passando pelo o prefeito da cidade e finalizando com o governador do Estado. A ordem era unânime: “Não abandonem o local”. — Rocha… Ouça bem. Não vamos atender às exigências deles. Preciso que você fique atento a todos os movimentos e me diga imediatamente o que eles vão fazer. — Certo. — Ele ainda está com a arma na cabeça da refém? — Sim. Parece furioso… E ele estava furioso. Sabia que a exigência não seria acatada e pensava numa forma de sair daquela situação. Não tinha ideia de como a polícia havia chegado tão rápido, mas começou a suspeitar que algum dos funcionários tivesse disparado algum tipo de alarme. — Você ainda está aí? – disse a voz no telefone. — Sim, doutor. — Nós iremos fazer o que estão pedindo… Mas, como eu te disse, precisamos de uma prova de que não irão machucar os reféns. Preciso que solte alguns deles. — Não. Eu já disse que não.
— Nós precisamos trabalhar juntos. Eu preciso que me ajude se quiser que eu te ajude. O Líder afastou o celular do ouvido. Pensou por alguns segundos e depois tirou um celular do bolso. Digitou alguma coisa e então voltou a guardá-lo. Chamou um de seus companheiros e cochichou alguma coisa em seu ouvido. Ele e um outro homem apanharam dois dos carrinhos com os sacos de dinheiro e desapareceram em um corredor. Depois voltaram, buscaram os outros dois carrinhos e os levaram para o mesmo lugar. — O negócio vai ser assim, doutor. – disse o Líder, voltando o telefone ao ouvido. – Eu vou matar um refém agora e mais um a cada cinco minutos, até que vocês saiam e nos deixem em paz. — Olha… Você precisa contribuir. Solte um refém, ao menos. O Líder desligou o telefone e o jogou longe. Um dos homens se posicionou onde ele estava, com o fuzil apontado para a cabeça da mulher. O Líder caminhou em direção à porta, enquanto os outros continham os reféns. — Duval… Eles vão matar a mulher! — Tem certeza disso? O homem se posicionou para atirar. A mulher começou a chorar. — Sim! Eu vou fazer alguma coisa. — Não! Não faça nada. — Mas ela vai morrer! — Não faça nada, Rocha! Em um milésimo de segundo, Rocha viu o homem prender a respiração. Seu dedo acariciava o gatilho, como se ele desejasse muito fazer aquilo, embora a expressão em seu rosto dissesse outra coisa. Os reféns estavam gritando e os assaltantes gritavam ainda mais alto. O Líder caminhava em direção ao corredor para onde os homens havia levado os carrinhos com o dinheiro. De repente, um disparo. O sague espirrou para todos os lados, vindo de um buraco na cabeça de uma pessoa. Um corpo caiu. Mas não era o corpo da mulher e sim do assaltante. Rocha atirou antes. A polícia invadiu exatamente nesse momento e a troca de tiros começou. Rocha rolou para baixo de uma mesa e atirou mais duas vezes enquanto os policiais tentavam parar os assaltantes. Mas, o que ele não notou, ao menos não naquele momento, era que havia apenas quatro deles ali. O Líder correu para o corredor exatamente no momento em que ouviu o disparo de Rocha. Do lado de fora, atirou em cinco policiais que estavam entrando por ali, ao mesmo tempo que uma van escolar estacionava. Carregou os sacos de dinheiro na van e entrou. Antes mesmo que um dos policiais feridos pudesse chamar
mais unidades para o local, eles já haviam desaparecido, se misturando aos carros nas ruas movimentadas. Na invasão da polícia, mais um assaltante acabou sendo morto, assim como mais três reféns: um pai de família e seu filho, atingidos pelo mesmo disparo; e um idoso, que morreu de parada cardíaca após ser baleado de raspão no ombro. Nenhum dos tiros que mataram os reféns partiram da arma de Rocha. Ainda assim, ele foi responsabilizado por tudo e sua vida desabou. O Líder e o motorista fugiram com mais de 150 milhões de reais e nunca foram encontrados. Os outros dois assaltantes foram soltos menos de um ano depois de condenados e a vida seguiu seu rumo.
Capítulo Dezessete Sede do DHPP - Dias atuais
— Você já sabe como as coisas funcionam por aqui, não é mesmo? – Duval disse. O homem sentado à sua frente tinha os braços algemados no encosto da cadeira. Uma das pernas de sua calça jeans havia sido cortada até a altura do joelho pelo médico no hospital, isso para que os curativos fossem colocados ao redor do membro baleado. — Sim. Eu conheço muito bem, seu delega. – ele respondeu. Um sorriso irônico era visível em seu rosto. — Você deu muito trabalho pra gente, sabia? — Não me diga... — Eu tenho dois homens no hospital e se alguma coisa acontecer com eles… — Vocês mataram quase todos os meus homens. Acho que a gente tá empatado nessa, doutor. — Ah, claro. — Eu sei que tem alguma coisa acontecendo, seu delega, senão vocês não teriam ido atrás de mim. Tem alguma coisa a ver com a Rose, né? Com ela e com o cara de quem tá todo mundo falando. — Você é esperto. – disse Rocha, com ironia. O investigador estava atrás da cadeira na qual o criminoso estava algemado. Ele retirou da jaqueta um dos maços de cigarro que havia comprado na boca de fumo, acendeu um e, enquanto tragava, contornou o suspeito, seguindo na direção de Duval. Nesse exato momento, sua bota 44 deslizou no ar, atingindo em cheio a perna baleada do suspeito, justamente onde estavam os curativos. Não foi um tropeço ou um chute fraco e sem intenção. Na verdade, Rocha usou tanta força que sentiu seus próprios dedos estalarem. O homem na cadeira urrou enquanto se contorcia de dor. — Meu Deus! – ele tentava se abaixar para tocar a perna que latejava, mas suas mãos ainda estavam algemadas. — Sim, eu sou, mas pode me chamar de Rocha. — Minha perna… Está doendo! — Que bom. — Eu preciso de… De um médico. — Eu vou dizer do que você precisa. – Rocha se aproximou do suspeito. Ficou tão próximo que conseguia ouvir sua respiração. – Você precisa me dizer alguma coisa
importante. Alguma coisa que faça essa operação valer muito a pena, porque se isso não acontecer... Amanhã os jornais anunciarão que nós encontraremos o corpo de um traficantezinho de merda chamado João Aguiar dentro do Tietê. Você entendeu? — Sim. – o homem respondeu, alguns segundos depois. — Ótimo. Isso facilita as coisas. — Qual o seu envolvimento com Roseli Nogueira? – Duval perguntou. — Nenhum, xará… — Rocha? Pode dar mais um incentivo? — Não, não… Fica de boa! Eu falo. — Estou ouvindo. — Eu conheci ela numa boate, um tempo atrás. Ela tava meio pirada, dizendo que tinha um cara atrás dela ou alguma coisa assim, fraga? Disse que o cara tava vigiando ela. Então eu paguei uma bebida e depois levei ela pra casa… — Que cavalheiro! — Por aquele rabo eu faria qualquer coisa. Cê tá ligado, né delega? — Certamente. – Duval puxou uma cadeira e também se sentou – Continue. — Eu achei que ela era nóia, então era melhor não contrariar. Levei ela pra casa e deixei ela ainda mais louca. Porra, pensei que o nariz dela ia cair. Que menina louca. Mas valeu a pena. Ela arrasava. Vocês sabem como é… — Isso não está ajudando muito… – disse Rocha, se aproximando um pouco mais dele, e fazendo com que tremesse. — No outro dia, ela ainda falava do cara. Que ele tava seguindo ela e que ía dar uns pipoco em nóis dois. Eu levei ela embora, mas a louca apareceu na boate de noite. Veio falar comigo pra pedir ajuda. Disse que queria sobreviver e que se eu não ajudasse, o cara, o homem invisível perseguidor, ia matar ela. Eu coloquei uns caras pra seguir ela… Pra ver se era verdade ou se era só pira mesmo. — Por que se importou? – Rocha perguntou. — Eu já disse. O rabo dela era incrível. — Sei. — O que os seus homens descobriram? – Duval disse. — Nada. Eu nunca mais vi eles. — Como assim? — Eles sumiram, delega. Como se nunca tivessem existido. Tipo aquelas coisas de abdução de ET, fraga? Aí, uma noite, quando eu tava chegando em casa, tinha um cara me esperando. Ele matou todo mundo que tava lá. Eu pensei que fosse alguém de outra quebrada querendo me derrubar, mas o cara era bom demais. Parecia um desses caras do cinema, sabe? Tipo um ninja! Ele matou todo mundo! Eu ia curtir pra cacete se ele trabalhasse pra mim…
— E como você ficou vivo? — Ele disse que só queria me dar um recado. Falou que era pra eu me afastar da Rose. Disse que se eu não ficasse longe... Ele ia matar eu e ela. O cara tinha matado meus melhores comparsas. Eu não quis contrariar. — Mas você foi atrás dela. – disse Duval. — Só fui dizer pra ela fugir, já que eu não podia mais proteger ela. — E ela ficou com raiva. – Rocha perguntou. — Ela pirou. Me chamou de covarde. Disse que era pra eu sumir da vida dela. Porra! Eu ajudei aquela vadia e ela ainda me tratou daquele jeito. — As mulheres são assim mesmo. – Duval disse. — Nem me fala. – Rocha respondeu. — Como era o indivíduo? Esse que matou os seus homens? — Ele era forte pra caralho… Mas eu não vi o rosto dele. Estava com uma máscara, tipo aquelas de ninja, sabe? Não parecia ser muito velho não. Tinha voz de moleque. — Mascara de ninja? – Duval não acreditava no que estava ouvindo. — Eu vi os vídeos na internet. Eu vi o que ele fez com a Rose e vi o nome que ele escreveu. Pedro Rocha. É você, não é? Ele quer se vingar de você por alguma coisa. Rocha não respondeu. — Eu sentiria pena de você… – disse o suspeito – Se você não fosse tão filho da puta quanto ele. Eu já vi esse cara agir e tenho certeza que ninguém vai conseguir pegar ele. Ele vai vir atrás de você. — Mas primeiro, ele vai atrás de você. – Rocha interrompeu. — De mim? Tá maluco, truta? E por que ele viria atrás de mim? — Ele te mandou ficar longe dela, mas você ainda voltou no prédio pra mandar ela fugir. A gente sabe disso e, com certeza, ele sabe também. O suspeito congelou. Sua pele ficou pálida quase que instantaneamente. Ele sentiu uma onda de choque varrer o seu corpo. — Você me faz um favor? – Rocha disse. – Quando ele estiver abrindo sua barriga e tirando tudo que tem lá dentro, mande lembranças minhas. — Certo, certo… Rocha? – Duval se levantou, acenou para o investigador e os dois saíram da sala. Quando fechou a porta atrás de si, o delegado voltou a falar. – E aí? Acreditou nele? — Ele falou a verdade. — Porra, Rocha, quem é esse cara? Como ele pode fazer isso e passar despercebido? — Ele foi treinado para isso.
— O que você quer dizer? — O nosso Assassino da Cruz foi, ou talvez ainda seja, um militar. Talvez seja um ex-fuzileiro da Marinha. Ele tem treinamentos específicos, como manuseio de armas de fogo e armas brancas, técnicas de camuflagem, conhecimentos de códigos e muito mais. — Você tem alguém em mente? — Sim. Mas tem um problema. — Qual? — Meu suspeito morreu há dois anos. — Você está falando sério? — Você precisa abrir sua mente, Duval. Olhar as coisas com outros olhos. — De que merda você está falando? — O que dizem sobre o Elvis? Antes que o delegado pudesse responder, seu celular tocou. Ele olhou o identificador e viu que se tratava da central. Atendeu rapidamente. — Duval falando. Do outro lado da linha, uma voz feminina falava rapidamente. — Certo. Estamos indo imediatamente. Desligou o celular e olhou para Rocha. — Depois você me fala sobre essas suas teorias malucas, Rocha. Acharam mais dois corpos.
Capítulo Dezoito Embora a prioridade fosse visitar a cena do crime, Duval decidiu passar no hospital para ver Thomas antes de seguir. Rocha não gostou muito disso, mas teve que aceitar. Eles seguiram direto para a UTI, onde o jovem investigador ainda repousava. Ao que tudo indicava, sua situação era bem delicada. — Inicialmente, o projétil atingiu de raspão o úmero esquerdo, mas acabou atravessando-o e, depois de penetrar nas costelas, finalmente ficou alojado no pulmão esquerdo. – o médico dizia, enquanto checava os batimentos de Thomas. Uma enfermeira aplicava uma injeção no tubo do seu soro. – Nós já retiramos todos os estilhaços e sua situação deu uma leve estabilizada, mas ele ainda não está completamente fora de perigo. — Entendo. – disse Duval. – O que podemos fazer por ele? — No momento, apenas rezar, se forem religiosos. Ele perdeu muito sangue e precisou passar por uma transfusão. Depois que sair da UTI, ficará sob observação por alguns dias, até que tenhamos certeza de que está bem para voltar para casa. Rocha olhou para Thomas. Ele estava coberto por tubos de soro e aparelhos que ajudavam seu corpo a continuar vivo. Ao menos havia uma coisa boa naquela situação toda: Agora ele estava livre para conduzir aquela investigação da forma como achasse melhor, sem ter um novato na sua cola. — Eu estive pensando numa coisa, Rocha. – Duval disse enquanto eles caminhavam no estacionamento do hospital em direção da viatura. – Precisamos garantir que mais ninguém morra. E vou colocar as próximas possíveis vítimas sob proteção. — Que possíveis vítimas? – Rocha perguntou. — Todas as pessoas que tiveram algum tipo de envolvimento ou contato com os assaltantes. Ele já matou quatro membros do júri. E com certeza planeja matar todos. — Não, não. Você não pode fazer isso. — E por que não? — Simplesmente porque se você colocar os jurados sob proteção, nós não vamos conseguir pegar esse cara nunca. — Do que você está falando? Se o traficante que prendemos não for mesmo o Assassino da Cruz e se o verdadeiro culpado ainda estiver por aí, ele vai matar todos os que tiverem algum envolvimento com o caso! – o delegado disse, incrédulo. – Você consegue sobreviver com essa culpa? — É claro que o traficante não é o assassino. Não precisa ser um gênio para
saber disso. E sobre os outros membros do júri, eu só digo uma coisa: Fodam-se eles! Nós ainda não temos nada sólido e só vamos conseguir progredir nessa investigação se eles continuarem morrendo. — Você está ouvindo o que está dizendo? Quer que eu deixe esse maluco matar mais pessoas inocentes? — Inocentes? – Rocha riu. – Cai na real, Duval. Eles são tão culpados quanto qualquer um. Eles absolveram aqueles assaltantes. — Eu sei que você não lamenta pela morte deles, Rocha. Sei muito bem disso. Mas, ainda assim, eles são cidadãos e merecem proteção. Como acha que eu ia me sentir se mais um deles morresse quando eu podia ter impedido? — Do mesmo jeito que você vai se sentir quando o Assassino da Cruz desaparecer e a sua reputação for pra lama por não ter sido capaz de prendê-lo. Rocha tocou na ferida. Duval abriu a porta da viatura e se sentou no banco do motorista. Levou a chave até a ignição, mas demorou algum tempo para girá-la. Todas as possibilidades passavam pela sua cabeça e, embora ele não quisesse admitir, sabia que o investigador sentado ao seu lado estava completamente certo. — Tudo bem. Eu vou fazer como você está dizendo. Não vou colocá-los sob proteção, mas vou mandar policiais disfarçados para vigiá-los. — Desde que não seja o Edmundo e a gangue dele... – Rocha interrompeu. — Tenha em mente que se algum deles morrer, a responsabilidade vai ser toda sua, Rocha. – Duval disse. – Estarei com minha consciência completamente limpa. — Não se preocupe com isso. Os jornais já estão fazendo a ligação das mortes com o assalto e, em pouco tempo, as próprias vítimas começarão a fugir. Isso vai nos dar mais tempo. — Isso que você disse não faz o menor sentido, Rocha. — Acredite em mim, Duval. Nós estamos muito mais perto do Assassino da Cruz do que você imagina. Duval enfim girou a chave e ligou o motor. Engatou a ré e saiu com a viatura. Enquanto seguiam para fora do estacionamento, nem ele e nem Rocha notaram, mas havia alguém ali que os vigiava de perto. Um homem alto e forte, escondido atrás do volante de um utilitário preto de vidros escuros, estacionado dois carros atrás da vaga na qual eles estavam. Ele os estava seguindo desde que abandonam a delegacia naquela manhã. E continuaria seguindo pelo resto do dia. *** Os corpos foram encontrados em um motel por uma camareira. Ao mesmo tempo em que entrava no quarto e observava a rotineira bagunça, Rocha já procurava por
Maria Clara. Ele ignorou os dois corpos pregados de cabeça para baixo na parede, um homem e uma mulher, e seguiu até o local onde a perita estava. Duval, ao contrário, seguiu até os corpos para conversar com o perito que os analisava. — Qual a ligação deles com o roubo ao banco? – Rocha perguntou. Maria analisava algumas manchas de sangue no tapete. — Oi para você também. — Eu estou com pressa, Maria. — Certo, mister simpatia... – ela olhou as fichas presas na sua prancheta. – O homem se chamava Ivo Dirceu Fortunato. Ele estava desaparecido há alguns dias. A secretária foi encontrada morta com um tiro na cabeça no escritório dele, na Paulista. A mulher era bancária e se chamava Paula Moraes. Foi vista viva pela última vez há dois dias, pela filha e... — Eu só pedi as ligações com o assalto. – o investigador a interrompeu. — Ele era o advogado de defesa dos assaltantes e ela fazia parte do júri. Duval foi até onde eles estavam. — Mais alguma coisa que eu deva saber? – Rocha perguntou. – Algo de diferente? — Até agora, nada. – Maria disse. — E as marcas no corpo? Há números no pé também? — Sim. Como nos outros corpos. — E quando eles foram mortos? — Há dois dias, provavelmente. A atendente disse que eles chegaram juntos em um carro, na noite de anteontem. Pediram um quarto e ficaram lá por muito tempo. Ontem pediram um almoço e depois disso, não deram mais sinal de vida. Como não pediram mais nada por mais de 24h, a atendente resolveu ligar no quarto. Ninguém atendeu. Hoje pela manhã eles resolveram arrombar a porta e encontraram os corpos. — E de quem é o carro na garagem? – Perguntou o delegado. — Do advogado. — As câmeras de segurança não mostram nada? — Já foram mandadas para a análise. — Provavelmente foi o Assassino quem chegou dirigindo. – Rocha disse, passando o olho pelo local. – O advogado já deveria estar morto dentro do carro, jogado no banco de trás ou no porta-malas. Se a mulher ainda estivesse viva, ela deve ter sido sedada ou nocauteada. Quem a visse assim, pensaria que estava dormindo. — Mas como ele saiu se o carro ficou aqui? – Maria disse. – Eles não deixam ninguém sair a pé. — Essa é a questão. – disse Rocha, caminhando pelo quarto. – Se ele saísse de carro, a atendente teria mandado alguém até o quarto para verificar o que havia sido
consumido e ele seria descoberto, então ele precisava sair de outra forma... Ele poderia ter pulado os muros, mas as câmeras de segurança captariam, e ele não cometeria esse erro. Dentro dos quartos não há câmeras, não é? — Eu espero que não. Isso é um motel. – Maria disse. — É verdade. Você disse que eles pediram um almoço ontem, não é? — Exato. — Eu preciso falar com a pessoa que trouxe o almoço. — Certo. Alguns minutos se passaram. Rocha ainda estava caminhando pela cena do crime quando um policial militar entrou no quarto acompanhado de uma mulher jovem e bonita. Ela era loira e não deveria ter mais do que 19 ou 20 anos. Quando viu os corpos, virou o rosto para o outro lado, assustada. — Foi você quem trouxe a comida aqui para o quarto ontem? – Rocha perguntou, chegando até ela. — Não, não... Eu só falei com o homem no telefone. Quem trouxe foi o Thiago… — E cadê esse Thiago? — Eu não sei. Ele está de folga hoje. – ela tentava não olhar para os corpos, mas uma força invisível levava seus olhos para lá. – Ele ficou com raiva quando os clientes pediram o almoço, porque ele já havia trabalhado 12 horas seguidas e seu turno já havia acabado. Mas o rapaz do outro turno ainda não tinha chegado, então ele não podia ir embora. Mas eu me lembro de que ele trouxe a comida aqui e foi embora mesmo assim. Nem se despediu de mim. — Eu suponho que o Thiago usasse um uniforme como esse seu? — Sim. São as normas dos novos donos. — Você viu quando ele estava saindo? — Sim. — Tem certeza que era ele? — Sim… — Certeza absoluta? — Bem… Ele parecia um pouco mais alto, para falar a verdade. Mas eu olhei bem rápido, quando ele estava saindo. Eu acho que era ele sim. Quem mais seria? — Senhoras e senhores, preciso que olhem aqui! – Rocha ergueu as mãos para que todos os policiais prestassem atenção no que ele dizia. – A situação acabou de mudar. Há mais um corpo nesse quarto e nós precisamos encontrá-lo. Ele está nu, talvez de cueca. O primeiro nome da vítima é Thiago, caso isso importe. — O que? – a moça ficou ainda mais desesperada. – O Thiago está morto? — Muito obrigado pela sua cooperação. – Rocha virou-se para o policial ao lado da moça. – Pode levá-la para a delegacia. Precisarei interrogá-la novamente
quando o corpo for encontrado. Enquanto o policial se afastava segurando a funcionária do motel pelo braço, Duval e Maria se aproximaram de Rocha. Ele abria freneticamente as portas dos armários na pequena cozinha. — No que você está pensando, Rocha? – disse Duval. – Como pode saber que tem mais um corpo aqui? — Foi assim que ele saiu. – Rocha respondeu, fechando a última porta que abriu. – Ele pediu um almoço unicamente para se apoderar do uniforme do funcionário. Todos os motéis têm passagens por entre os quartos, que os funcionários usam para levar comida e para inspecionar o ambiente quando os clientes saem. Ele matou o funcionário, vestiu o uniforme e foi embora. Se esse Thiago tinha algum veículo, o Assassino deve ter fugido com ele. Precisamos expedir um mandato de busca. Verificar o documento pra saber se o veículo foi encontrado em algum lugar. — Mas não há mais nenhum corpo aqui. – disse Maria. – Se houvesse, com certeza nós já teríamos achado. — Encontramos! – um dos policiais gritou. — O que você dizia, Maria? As camas de motel costumam ser diferentes das camas normais. Geralmente, são construídas de concreto e fixadas diretamente no chão, para que resistam as mais loucas fantasias dos clientes. Quando o estrato é colocado, surge um vão entre o chão e o colchão, fechado por todos os lados. O corpo estava nesse vão, completamente nu e com marcas claras de estrangulamento. — Tenho que admitir… – Maria disse, enquanto analisava o corpo. – Você estava certo. — Quase sempre estou, Maria. — Alguém teria achado, mais cedo ou mais tarde. – Duval disse, como se quisesse baixar o ânimo de Rocha. — Com certeza, mas não teria sido você. – Rocha respondeu, com um sorriso. – Eu preciso que você fotografe as marcas e os sinais e me mande, Maria. Vou falar com o professor. Talvez ele encontre mais alguma pista importante. *** No dia seguinte, o professor Rocatelli apareceu bem cedo na delegacia. Ele havia traduzido as mensagens gravadas nos últimos corpos encontrados, conforme Rocha pedira, e estava ansioso para contar suas descobertas aos investigadores. A primeira mensagem dizia:
F3EQSNG IW:C1 NÚMEROS 35:19 — É um versículo bíblico. – Ele disse ao observar a expressão confusa de Rocha. – Fala de vingança. Diz: “O vingador da vítima matará o assassino; quando o encontrar o matará”. — Muito original… — A segunda é muito parecida com a primeira. F3EQSNG IW:DX/D10 NÚMEROS 35:26/27 — O segundo texto diz: “Se, contudo, o acusado sair dos limites da cidade de refúgio para onde fugiu e o vingador da vítima o encontrar fora da cidade, ele poderá matar o acusado sem ser culpado de assassinato”. E terminamos assim: F3EQSNG IW:IC NÚMEROS 35:31 — “Não aceitem resgate pela vida de um assassino; ele merece morrer. Certamente terá que ser executado”. — Isso parece um monte de besteira pra mim. – Rocha disse. — Mas parece ser muito importante para o assassino. – o professor disse. – Ele teve muito trabalho para procurar essas referências, desenvolver os códigos e tudo mais. Acho que não seria muito sábio simplesmente ignorar esses fatos. — Um homem morto crucificado na parede é um fato, professor. Isso aqui que você está me mostrando é apenas papel. E eu não serei vencido por papel. — Certo... Espero que reconheça que, a minha parte, eu fiz. — Com toda certeza nós reconhecemos, professor. – Duval interviu. – E nem sabemos como agradecê-lo por isso. — Prenda esse psicopata, delegado. Essa é a melhor forma de agradecer.
Capítulo Dezenove — O que você faria da vida se não fosse policial? – a psicóloga perguntou. Rocha permanecia imóvel na sua frente, como sempre fazia em todas as outras sessões. Não dizia uma única palavra até que ela finalmente conseguisse convence-lo a se abrir. O que quase nunca acontecia. De fato, aquele era o paciente mais difícil que Muriel já havia atendido. — Eu seria um vendedor. – ele respondeu, para a surpresa da psicóloga. – Um ótimo vendedor, na verdade. Sempre ouço as pessoas dizerem que eu sou um cara muito carismático. — Vamos falar sério, Rocha. – Muriel sorriu, delicadamente. — Eu não sei, doutora. Meu pai era marceneiro. Talvez eu seguisse por esse rumo também. Era isso que ele queria. — Você nunca teve nenhum sonho? Veterinário, jogador de futebol, astronauta... — Eu queria ser músico, mas meu pai disse que isso era idiotice. Coisa de drogado e boiola. — E você aprendeu a tocar algum instrumento? — Só um, doutora, mas já faz tempo que não preciso tocar sozinho. – Rocha sorriu com o canto dos lábios. Muriel demorou um pouco para entender o que ele estava dizendo. — Que bom para você. – apesar da vergonha, ela também sorriu. – Você falou do seu pai... Eu gostaria de entender essa sua relação com ele. — Meu pai é um maldito filho da puta que não merece o ar que respira. — Por que você diz isso? — Ele espancava a minha mãe todos os dias, doutora. Todos os dias! Batia nela na minha frente e ria quando eu tentava impedir. Me trancava no banheiro e me obrigava a ouvir enquanto ele batia ainda mais forte nela. Levava um monte de vadias para dentro de casa e batia na minha mãe quando ela chegava mais cedo e pegava ele se divertindo. — E o que aconteceu com ele? — Eu resolvi o problema. — Como? — Ele subiu no telhado para consertar a antena da televisão e mandou a minha mãe ficar na sala para avisar se o sinal estava melhorando. Mas ele não conseguia ouvir o que ela falava, porque já tinha batido tanto na cara dela que a voz nem saia mais. – Rocha fechava as mãos com tanta força enquanto falava, que a psicóloga chegou
a ouvir os dedos dele estalando. – Então ele ficou furioso. Começou a descer do telhado pela escada, dizendo que ia quebrar todos os dentes dela. Eu não ia aguentar isso. Fui até a escada e a empurrei. — O que aconteceu com ele? — Ele caiu de costas em cima de uma pilha de tijolos e quebrou as costas. — Meu Deus... — Ele nunca mais encostou a mão em ninguém, doutora. – Rocha disse. – E minha mãe nunca mais falou comigo. As pessoas são idiotas. Eu fiz isso por ela, mas, pelo jeito, ela queria continuar tomando porrada na cara. — Sua mãe ainda está viva? — Não. Ela morreu um ano depois e eu fui morar com a minha tia. — E seu pai? — Sim. Ele está bem vivo num asilo e, se o demônio quiser, ainda vai continuar vivo por muitos anos. — Eu não entendo... — Eu quero que ele sofra até o último segundo. — Ah, sim. Como isso influenciou a sua vida? — Vou te dar uma dica, doutora. Escreve assim no meu relatório: “O comportamento agressivo do investigador Pedro Rocha se deve a uma infância traumática.” – Rocha disse, fazendo aspas com os dedos das mãos. – Durantes as investigações, eu sempre recebo relatórios de psicólogos que justificam toda a maldade do mundo com infâncias traumáticas, pais ausentes, pobreza e outras desculpas. — A maldade do mundo vem de onde, então, investigador? — Da safadeza. – Rocha respondeu. – As pessoas escolhem o que fazem. Eu não derrubei o meu pai movido por um impulso de raiva ou algo assim. Eu planejei a morte dele por meses e aquela foi a melhor oportunidade que eu tive. O universo foi bondoso comigo, e ele acabou tetraplégico ao invés de simplesmente morrer. — Então isso quer dizer que, mesmo que seu pai fosse um grande cavalheiro, gentil e amável com a sua mãe, ainda assim você tentaria mata-lo? – a psicóloga perguntou. — Eu não disse isso. — O que você disse então? — Que as pessoas são más porque escolhem. Se fosse um homem de verdade, provavelmente eu não teria derrubado ele da escada, mas isso não faria de mim a miss simpatia. Você se lembra daquela menina que matou os pais um tempo atrás, doutora? A notícia ficou nos jornais por muitos meses. — A Suzane von Richthofen? — Essa mesma. Eu dei uma ajuda no caso dela. O que você acha que motivou
aquelas mortes? Uma infância difícil? Pobreza? Racismo? – Rocha aguardou até a que psicóloga dissesse alguma coisa, mas como não houve resposta, voltou a falar. – Foi pura maldade. Ela era branca, rica, educada. Então qual o porquê? Simples. Ela também era uma baita de uma vadia e matou os pais sem nenhum motivo algum. Não era por dinheiro, por que eles davam tudo que ela queria. — Mas o fato dela ser rica e ter tudo que queria não prova que ela tinha atenção, carinho ou mesmo afeto, vindo por parte dos pais. – Muriel disse. — O quê? — Relacionamentos não são alimentados apenas com dinheiro ou bens materiais, Rocha. Talvez ela se sentisse só ou traída por eles... — Você está de brincadeira, doutora? – Rocha exclamou, erguendo as mãos. – E isso justifica matar os pais? — Um erro de um músico é justificativa para quebrar todos os dedos dele? — Não tem nada a ver uma coisa com a outra. – Rocha cruzou os braços. — Você também tentou matar o seu pai, Rocha. O que isso quer dizer? — Meu pai é o maior filho da puta que esse mundo já viu, doutora. Matá-lo teria sido um favor para a humanidade. — Certo. Então me diga como você justifica essas suas atitudes. Você é mau por natureza também? — Sim, doutora, com toda certeza. Mas eu sou diferente. Sou aquele tipo de mal necessário, como uma infecção bem dolorida antes da ferida cicatrizar. — É uma boa analogia. Muito convincente. Rocha deu um sorriso discreto. — Eu seria um ótimo vendedor, doutora. *** Os dias foram se arrastando lentamente. O traficante que eles haviam prendido alguns dias antes fora enviado para uma unidade de segurança máxima da Penitenciária de Presidente Venceslau e a mídia começou a perder o interesse pelo assunto. A maior parte da imprensa realmente acreditou que o traficante era o Assassino da Cruz, sendo que pouquíssimos jornais ainda insistiam que ele era só um bode expiatório. Rocha se sentia aliviado com isso. O que o preocupava de verdade era o fato de que mais nenhum corpo foi achado nas duas semanas que se sucederam à prisão. O assassino havia prometido três assassinatos por semana, mas sumiu completamente do mapa naqueles dias, e isso deixava o investigador eufórico. — O que você me diz sobre isso, Rocha? – Duval perguntou. – Será que prendemos mesmo o cara certo?
— Eu duvido. – Rocha respondeu. – Isso deve ser só mais um jogo pra nos fazer de idiotas. Ele está usando essa prisão pra nos iludir. Ou talvez os corpos já estejam por aí, só esperando que nós os encontremos. — Eu não sei… Já se passaram duas semanas. — Há assassinos em série que esperam anos entre um crime e o outro, Duval, e você sabe muito bem disso. Não devemos nos precipitar. — Claro que não. Nem para um lado e nem para o outro. Mas se você realmente acha que o João Aguiar não é o culpado, é bom que encontre o verdadeiro Assassino da Cruz. O prazo final da investigação já está chegando e o Ministério Público vai nos obrigar a encerrar o caso. Para o governo, quanto antes esse caso sumir do mapa, melhor vai ser. Rocha não respondeu. Sabia muito bem que aquilo era verdade. O Brasil possui um sistema de investigação criminal bem peculiar. Primeiro pelo fato de possuir várias instituições policiais independentes, diferente da maioria dos países americanos e europeus, onde a força policial é unificada. Nas terras tupiniquins, dependendo da ocorrência, o cidadão terá que recorrer à Polícia Federal, à Polícia Rodoviária, à Polícia Ferroviária, à Polícia Militar ou à Polícia Civil. E aí vem a grande dúvida: como saber qual é a certa para cada caso? Quando a ocorrência em questão é um homicídio, geralmente cabe à Polícia Civil investigar. Se o autor do crime não for preso em flagrante, os delegados e investigadores terão 30 dias para solucionar a trama e apontar um culpado. Após esse prazo, o inquérito é encaminhado ao Ministério Público, que, em alguns casos, pode conceder mais 90 dias para a continuidade da investigação, caso o crime não tenha sido solucionado. Em outras ocasiões, como falta de provas, falta de testemunhas ou laudos periciais incompletos ou imprecisos, o inquérito é arquivado... E o criminoso sai impune. Era isso que aconteceria se Rocha não prendesse o verdadeiro assassino. O Estado declararia o traficante como o autor dos crimes para que a população se acalmasse e o verdadeiro culpado desapareceria. Para os olhos do povo, a justiça teria sido feita. Para os olhos de Rocha, a merda teria sido feita. Como era de costume, o investigador se trancou em seu mundo particular. Essa era a única forma de dar cabo naquele mistério. Ele sentia que aquilo já havia consumido tempo demais da sua vida. Alguns dias depois, Edmundo voltou a trabalhar. Ele e os outros dois policiais que atacaram Rocha haviam tirado vinte dias de licença até que os seus ferimentos se curassem, mas preferiram voltar um pouco antes desse tempo. Rocha não ficou muito feliz com isso, mas no estado em que ele andava, nada mais parecia abalá-lo. Só pensava em encontrar o assassino e mandá-lo para a cadeia antes que enlouquecesse.
Porém, como se os deuses estivessem com vontade de aprontar, foi Edmundo que trouxe as notícias tão aguardadas. — Encontramos mais um corpo. – ele disse a Duval, pelo telefone. — Onde? – o delegado quase engasgou com o café. — Num galpão abandonado aqui na Barra Funda. — Certo. Daqui a pouco estaremos aí. Me passe o endereço. Duval e Rocha seguiram para a cena do crime imediatamente. Rocha jamais diria isso, mas estava com as esperanças renovadas. Não conseguiu avançar muito na investigação porque não havia mais provas e nem fatos para considerar. Mas o novo corpo poderia trazer respostas para algumas dúvidas que estavam explodindo em sua cabeça. A principal delas: Por que o assassino desapareceu por tanto tempo? A vítima era uma mulher. Ela estava nua, pregada na parede como todas as vítimas anteriores, o corpo exibindo os mesmos cortes e as mesmas marcas que os investigadores e peritos já estavam acostumados a ver. — Você já tem a identidade? – Rocha perguntou quando se aproximou de Maria. Ela colhia algumas amostras de saliva da vítima. — Não. Não encontramos nenhum dos documentos. Parece que, dessa vez, ele decidiu dificultar as coisas. – a perita respondeu. – E têm outras coisas estranhas também. Um dos braços da vítima está quebrado e isso não me parece proposital. Eu diria que ele foi descuidado enquanto a pregava. — Ele não é descuidado. – Rocha anotou as informações no seu bloco de notas. – Se fosse, já estaria preso. — Eu sei disso, mas esses são os fatos. Nenhum dos outros corpos tinha ossos quebrados e isso já é bem estranho. E ainda tem mais. Eu acho que ela foi estuprada antes de ser morta. — O quê? – dessa vez foi Duval quem disse. — Isso, com toda certeza, não combina com o que ele tem feito até agora. – Rocha disse – Por que ele faria isso com ela? — Talvez porque ele seja um psicopata. — Psicopatia e loucura são coisas bem diferentes, Maria. – Duval disse. — Olha, eu ainda não posso provar isso. Preciso de exames mais completos, mas eu apostaria meu salário que essa mulher sofreu algum tipo de agressão sexual antes de ser morta. Há hematomas localizados na região da genitália que condizem com estupro. E olhem essas marcas aqui no pescoço. Ela foi asfixiada, mas isso não causou sua morte. Eu acho que ela resistiu ao estupro e foi agredida por isso. A morte só aconteceu algum tempo depois. Nós encontramos este CD junto ao corpo e talvez as imagens possam revelar alguma coisa sobre este fato. – A perita retirou um CD que estava preso na sua prancheta junto com as demais anotações e o entregou a Duval.
— Acha que pode ser um imitador, Rocha? – o delegado disse, analisando o CD. — Não. Mas também não acho que essa mulher foi morta pela mesma pessoa que matou as anteriores. Mas isso não quer dizer que os assassinatos não estejam ligados. Talvez o Assassino da Cruz tenha contratado alguém para ajudá-lo. — Pode ter sido um disfarce, também. – Maria disse. – Talvez um estuprador tenha matado sua vítima acidentalmente e, na hora do desespero, decidiu criar essa cena toda para ligar o crime ao Assassino da Cruz. — É uma boa suposição, mas alguns detalhes a desmerecem. A mulher foi presa na parede com a mesma ferramenta que o assassino original usa. Tudo indica que ele preparou um vídeo do crime também, e esses fatos provam que ele cometeu o assassinato com premeditação. Eu apostaria na ideia de “um novo assassino trabalhando com o primeiro”. — Espero que você esteja enganado, Rocha. – Duval disse. — É, eu também, Duval. Mas o problema é que eu sempre sei das coisas. — Ah, claro... – o delegado disse. – Acho que não temos mais nada para ver aqui. Pode mandar o corpo para o IML, Maria. — Certo. — Eu vou falar com o professor Rocatelli. – Rocha disse. – Vou pedir que ele nos encontre para analisar o corpo. Talvez ache alguma coisa que nos ajude, como uma mensagem do assassino. *** — O que você anda fazendo da vida, Rocha? – Duval perguntou. A viatura seguia em direção à DHPP e era o delegado quem dirigia. Com ele, o investigador não conseguia argumentar sobre quem assumiria o volante. — Que tipo de pergunta é essa? — Sei lá... Só curiosidade mesmo. – Duval respondeu, um pouco encabulado. – Antigamente, a gente saia para beber de vez em quando, mas faz muitos anos que não fazemos isso. Então fiquei curioso para saber como você tem passado seu tempo livre. — Do mesmo jeito que antes. De vez em quando eu passo no Jorge pra tomar uma ou duas doses de veneno e comer uns gatos, mas ultimamente tenho ido direto para casa todos os dias. Eu preciso de paz pra pensar. — Sei como é. – o delegado disse. – A única coisa que eu tenho feito é ler. Não coloco álcool na boca há tanto tempo que nem lembro mais do gosto. — Que vida triste. — Um bom livro é tudo que eu preciso para me esquecer de todos os problemas, Rocha. Você deveria experimentar também.
— Eu não tenho tempo para ler. — Claro que tem. É só querer. Eu estou lendo um livro chamado 1984. — Eu já vi o filme. Pra que perder tempo com o livro? — Ora, que pensamento idiota. — Esse livro só fez mal para o mundo. Se não fosse ele, não teríamos esses programas inúteis, como aquele tal de Big Brother. — Isso que você disse não faz o menor sentido, Rocha. O livro fala de uma sociedade que domina as pessoas pelo medo. Cada indivíduo tem uma TV em casa, que na verdade é uma câmera, e todos são vigiados 24 horas por dia. Isso faz muito sentido, se pensarmos que é isso que a internet faz com a gente hoje em dia. — Que papo é esse, Duval? Você anda falando demais com essa molecada. Eu não tenho nem TV a cabo em casa, que dirá internet. Nem sei como isso funciona. — Mas você é um Neandertal, Rocha. O mundo mudou. Além do mais, o livro tem muitos outros detalhes que... — Espera! É isso! – Rocha exclamou. – Eu tive uma ideia! — Ideia? — Eu preciso falar com alguém da computação forense. Ainda tem alguém na DHPP que trabalhe nessa área? Eu preciso do melhor. — Claro que sim... Tem o Ricardo. Mas pra que você precisa dele? — Pra analisar as câmeras da cena do crime. — Não tinha nenhuma câmera na cena do crime, Rocha. — Não necessariamente lá, mas como você mesmo disse, a internet fica nos vigiando 24 horas por dia. Se conseguirmos mapear o caminho que ele percorreu até o local pelas câmeras de segurança, com certeza encontraremos alguma pista. — Isso vai levar semanas e é provável que não cheguemos a lugar nenhum. Além do mais, com certeza ele estava em algum veículo. Como saberemos qual? — Ele carrega muitos equipamentos, então não estará em um carro pequeno e isso já limitará a busca. Além do mais, o que temos a perder? Você tem alguma ideia melhor? — Não... Tudo bem, eu vou falar com ele.
Capítulo Vinte O resultado dos exames ficou pronto e a violência sexual foi confirmada. Isso fez a cabeça de Rocha doer muito. Aquilo era algo que, definitivamente, não combinava com as ações do Assassino da Cruz até aquele momento. Ele agia por vingança e não por prazer próprio. Dessa forma, um estupro seria a última coisa a se esperar dele. Por outro lado, todas as características do assassinato eram idênticas às anteriores. Se, de fato, ele tivesse sido cometido por outra pessoa, certamente era por alguém que conhecia a cena do crime em detalhes. Alguém que já havia estado presente em uma delas e não por um imitador que havia apenas visto as fotos nos jornais ou na internet. O CD encontrado também possuía um vídeo, mas este estava muito mais escuro do que o normal e com uma qualidade muito baixa. Era praticamente impossível ver qualquer coisa que pudesse identificar o assassino. Na semana seguinte, outro corpo foi encontrado. Ele apresentava as mesmas características do anterior, mas dessa vez, pertencia a um homem. Rocha tinha certeza de que ele fora morto pela mesma pessoa da semana anterior e isso se confirmou quando eles viram as filmagens, pois o vídeo também era muito escuro e tremido, como se tivesse sido filmado com um celular. Os vídeos do Assassino da Cruz eram filmados com uma câmera profissional. As câmeras de segurança também não ajudaram muito, mas o perito conseguiu identificar três carros que estavam próximos ao local dos dois crimes nas horas estimadas das mortes. As placas foram analisadas com muito cuidado pelo perito e ele conseguiu encontrar a proprietária de um dos carros. Ele pertencia a uma professora que lecionava numa escola próxima ao local do primeiro crime e morava próximo ao local do segundo. As placas dos outros dois carros não foram identificadas no sistema e isso podia significar que eles eram roubados ou clonados. Rocha teve certeza de que um deles pertencia ao assassino. Maria conseguiu identificar as vítimas, mas não achou nenhuma ligação entre elas e o assalto ao banco. Isso gerou uma série de novas teorias, como a ideia de que o Assassino da Cruz estava acertando contas com outras pessoas além de Rocha. Mas ainda havia membros do júri que ele deveria tentar atacar antes de partir para outros casos. E, além disso, Rocha jamais havia visto aquelas pessoas antes. Por que seu nome estaria escrito naquelas cenas também? Os novos fatos só faziam a cabeça do investigador doer cada vez mais. Era como se aquela dor já fizesse parte do seu ser. Saiu mais cedo e foi até o Diplomata.
Bebeu tanto quanto podia pagar, depois voltou para casa de metrô. Deixou a arma na mesinha ao lado da cama e se dirigiu até a cozinha. Encheu um copo de whisky e ligou a TV. Precisava de um banho, mas sabia que isso poderia esperar. A única coisa que importava naquele momento era se sentar, tirar os sapatos e relaxar. E foi isso que ele fez. Não conseguia dormir direito desde a morte de Michelle, então as únicas opções em casa eram beber e dormir. Pensou na psicóloga enquanto sentia o liquido amargo descer pela garganta seca. Aquele corpo moreno. Aquele sorriso. Aqueles peitos. Como alguém poderia ser tão atraente daquele jeito? E o mais assustador: O que havia nela que o fazia querer falar? Quando eles conversavam, ele queria contar o que se passava em sua cabeça. Isso jamais havia acontecido antes. Ou melhor... Isso só tinha acontecido uma vez. Por um minuto, sentiu como se estivesse traindo Michelle. Ela havia acabado de morrer e ele já estava se interessando por outra mulher. Sentiu-se um monstro. Esfregou os olhos e caminhou até o sofá. Era melhor esquecer aquilo tudo. Pensar em algo inútil e desligar o cérebro. Escolheu a melhor forma que existia de se fazer isso. A programação dos canais abertos feria seus olhos, mas ele não tinha grana e nem interesse em TV a cabo. Zapeou de um canal para o outro enquanto bebericava o whisky. Novela, reality show, novela, venda de produtos, mais novela. Parou em um documentário em um canal educativo. Não que gostasse de documentários ou coisas educativas, mas a bela imagem na tela chamou sua atenção: Um tigre espreitava um cervo que pastava tranquilo, alheio ao grande perigo que o cercava. O tigre se abaixou e rastejou na grama. Seus movimentos eram precisos e ágeis, embora fossem delicados ao ponto de não provocarem um único ruído sequer. O cervo continuava a pastar e Rocha bebia mais um gole. O tigre estava cada vez mais perto. Um último olhar para a presa enquanto ela ainda estava viva. O felino tencionou as patas traseiras e se preparou para o bote. Rocha não viu quando o cervo caiu morto com o pescoço dilacerado pelas presas do tigre. Naquele instante, a porta de seu apartamento foi arrombada com um ruído ensurdecedor e ele se jogou para trás do sofá buscando um local para se esconder. Um homem musculoso usando roupas completamente pretas e uma touca de motoqueiro deslizou para dentro da casa portando uma glock .40 com um silenciador. Se ele queria discrição, o barulho dos tiros seria o menor dos seus problemas, depois de ter destruído a porta daquele jeito. Os únicos focos de luz que clareavam o apartamento naquele momento vinham da TV de tubo de 21 polegadas e das janelas entreabertas, projetando sombras macabras nas paredes, que dançavam a luz da lua. Mas o breu dava a Rocha uma grande vantagem, já que ele conhecia muito bem o local. Enquanto o invasor o procurava do
lado errado do sofá, ele teve tempo de rolar pelo chão e surpreendê-lo, forçando sua mão contra a parede e fazendo a arma cair e desaparecer momentaneamente nas sombras. Os dois se atracaram numa violenta luta. Rocha recebeu uma joelhada no estômago, mas conseguiu descontar com um forte murro no lado direito do rosto do invasor, que perdeu o equilíbrio e caiu sobre a mesa da cozinha. Quando estava de costas sobre o móvel, o homem ergueu os pés e acertou Rocha no tórax, fazendo com que ele caísse por cima do sofá, rolando novamente para o outro lado. Quando o investigador se colocou de pé, o homem de capuz já estava caminhando em sua direção, portando uma faca engordurada que achara sobre a pilha de louças na pia. Rocha conseguiu desviar das duas primeiras investidas, mas a terceira atingiu seu braço, provocando um corte profundo seguido de uma dor aguda. O lado bom foi que isso o permitiu segurar o braço do invasor e dobrá-lo para trás, fazendo com que a faca fosse solta. E ele não parou de dobrar o pulso do homem enquanto não ouviu um estalo seco e sentiu os ossos se quebrando. O invasor acertou mais um chute no estômago de Rocha, fazendo com que ele caísse sobre a TV. A tela do aparelho se despedaçou quando uma de suas quinas tocou o chão. Ao mesmo tempo, ao cair sobre os pedaços do eletrodoméstico, o investigador sentiu algo gelado machucando as suas costas. Levou a mão até o local e achou a glock. Levantou-se tão rápido quanto conseguiu, mas o homem já havia saído pela porta destruída. O seguiu até a entrada das escadas, mas achou melhor voltar para seu apartamento. Àquela altura, já havia muitas pessoas saindo no corredor para ver do que se tratava toda aquela confusão. Entrou na casa e ligou para o delegado Duval. A polícia realizou uma extensa busca no apartamento e nos arredores do prédio, mas não encontrou nada. O homem de capuz desapareceu sem deixar nenhum vestígio além da pistola. Era como se ele nunca houvesse existido. Embora Duval tenha recomendado que Rocha passasse a noite em algum hotel, o investigador decidiu ficar em casa. Acreditava que o invasor não voltaria naquela noite e, mesmo que voltasse, estava preparado para topar de frente com ele novamente. Pegou um copo vazio de extrato de tomate do armário e o encheu de whisky. Encostou a cabeça no vidro da janela do quarto e contemplou a cidade lá embaixo, como fizera da última vez em que Michelle dormiu ali. O mesmo sentimento passava pela sua cabeça. — Um dia eu acabo pulando daqui. Passou tanto tempo ali que nem reparou que o sol já estava começando a clarear a escuridão. Só reparou que o dia já havia raiado quando foi encher novamente o copo, pois a garrava de whisky barato já estava vazia. Lavou o rosto e ligou para um
carpinteiro. Esperou pacientemente enquanto ele tentava consertar o estrago causado na porta. Não tinha dinheiro para uma porta nova, então teria que se contentar com uma bela gambiarra. Algumas madeiras pregadas sobre as rachaduras, um pedaço de uma chapa de MDF no buraco maior e duas dobradiças novas. Por sorte, a maçaneta não foi danificada e a conta fechou em exatos 30 reais – e mais 10 por atender tão cedo e chegar tão rápido. Só então foi para a delegacia. Como não estava disposto a passar duas horas dentro de um ônibus, caminhou até o ponto e pegou um táxi. Se não tivesse bebido tanto, teria notado que o taxista que o levou para a delegacia foi o mesmo que levou Michelle para a casa do juiz Maurício algumas semanas antes. Mas o taxista o reconheceu e não abriu a boca por um instante sequer durante o trajeto. Nas proximidades da DP, o trânsito se tornou intenso. Rocha entendeu o motivo quando o táxi foi parado por um policial militar que controlava o fluxo de carros. Uma faixa de isolamento fora colocada na frente da delegacia e centenas de pessoas se amontoavam ali tentando ver o que se passava lá dentro. Havia muitos carros da imprensa estacionados em locais impróprios, atrapalhando ainda mais o trânsito, afoitos por uma exclusiva que, certamente, não viria de nenhum dos policiais. Rocha desceu do carro e pagou a corrida. O taxista nem contou o dinheiro. Agradeceu com um aceno e desapareceu em meio à confusão de carros e pessoas. Rocha se aproximou do PM colocando no pescoço o distintivo preso por uma cordinha preta. — O que aconteceu aqui? — Bom dia, Rocha. – o policial respondeu. – Você não assiste TV não? — A minha está no conserto. — Ah, claro… Algum maluco passou por aqui ontem de noite num carro preto e atirou para todos os lados. Ele também jogou uma granada ali. – o policial apontou para um carro semidestruído, cercado por faixas de contenção e rodeado por peritos. — Alguém da gangue do traficante que prendemos? — Ainda não sabemos. Ele atirou e sumiu. — Certo. Obrigado. – Rocha acendeu um cigarro enquanto passava por baixo da faixa de contenção e seguia em direção à porta da delegacia. — O delegado Duval está te procurando. – o policial disse. — Obrigado. Rocha não precisou caminhar muito. Duval e outros três policiais desciam as escadas em direção ao estacionamento. — Ah, até que enfim! – ele disse ao ver o investigador. – Venha comigo. Temos que ir agora! Vocês podem ficar.
Os policiais se entreolharam e voltaram para a delegacia. — O que aconteceu? — Você estava certo. — Sempre estou. – Rocha respondeu. — O verdadeiro Assassino da Cruz ainda está por aí. – o delegado assumiu a direção do veículo e Rocha sentou no banco do carona. – Achamos mais quatro corpos e estes são dele, com toda certeza. Ele decidiu recuperar o tempo perdido. — Quem são as vítimas? — Os últimos membros do júri popular. Três homens e uma mulher. – Duval desviou dos curiosos e saiu pelo caminho apontado pelos PMs que cuidavam da delegacia. – Eu te falei, Rocha. Ele matou todo mundo! Você me convenceu a deixá-los fora de proteção e agora eles estão mortos. Rocha não respondeu. — Diz alguma coisa, merda! — Você não vai gostar do que eu tenho a dizer. — Ah, claro. Você não se importa com nenhum deles. Mas ele mandou mais um belo vídeo para os jornais, caso queira saber. Um vídeo extremamente detalhado, mostrando cada parte do ritual maluco que ele usa. E citou seu nome várias vezes. Eu te disse que o peso dessas mortes estaria nas suas costas, cara. Espero que possa lidar com isso, porque a imprensa já sabe quem é você. Eu tive que desligar meu telefone porque ele estava tocando mais do que celular de puta. Está difícil aguentar essa corja. Rocha finalizou o cigarro com mais dois ou três tragos e acendeu outro. Ofereceu um para o delegado, mas ele recusou. — MERDA! – Duval socou o volante com as duas mãos fechadas enquanto parava em um sinal vermelho. – Tudo o que tinha para acontecer, aconteceu ontem. O cara fica um século sumido e depois decide tacar fogo na cidade de uma vez só. — Aquilo na frente da delegacia… — Foi ele também. — Como você sabe? — Porque já está na internet. O vídeo, como eu te disse, era muito detalhista. Começava com ele matando as vítimas ontem à tarde e terminava com o ataque à delegacia, que aconteceu ontem à noite, enquanto eu voltava da sua casa. — Não… Não pode ter sido assim. — Como não? — Ele me atacou ontem à noite e eu quebrei ele na porrada. Como poderia ter chegado à delegacia tão rápido e com pique pra fazer tudo isso? — Talvez você esteja certo sobre o que disse antes. Ele deve ter algum comparsa ajudando nas tarefas.
— Pode ser... — Ou talvez tenha sido um imitador. – Duval disse. – Não podemos descartar a possibilidade de que o cara que atacou a sua casa seja só um maluco revoltado. — Pode ser. Ou talvez ele tenha contratado alguém pra fazer esse serviço. O vídeo mostra bem o Assassino? É o mesmo cara dos outros vídeos ou é igual aos da semana passada? — Não, não. É bem diferente. Com certeza é o assassino original. A voz foi modificada no computador como nos outros. O estilo é exatamente igual. Se não foi ele, foi alguém que o conhece muito bem. Ou então ele é onipresente, porque mais um lugar foi atacado poucos minutos depois da delegacia. — Que lugar? – Rocha quase se engasgou com a fumaça na garganta. — O lugar para onde estamos indo. — Não estamos indo para a cena do crime? — Não. Eu já fui lá mais cedo e não quero ver aquilo nunca mais na minha vida. Ele simplesmente dilacerou as pessoas. Crucificou dois e cortou os outros dois em pedaços. Eu já vomitei até as tripas hoje. Meu Deus… — Para onde estamos indo. — Para o hospital ver o Thomas. *** — Como você está? – Duval perguntou quando eles entraram no quarto. Thomas estava sentado com as costas no encosto da cama, assistindo a um programa de TV. Como era de se esperar, a pessoa na tela falava sobre Assassino da Cruz. — Vivo. – ele respondeu. – Já é o bastante. — Se fosse mais esperto, nem estaria aí… — Obrigado pela dica, Rocha. É bom te ver também. — Ainda bem que você está melhor. Nos deixou preocupado. — Talvez eu não seja tão fraco quanto o Rocha pensa. É preciso mais do que um tiro para me derrubar de uma vez. — E você viu quem te acertou aquele dia, moleque, lá na favela? — Como ele poderia, Rocha? Tinha tiro para tudo que é lado. Os caras estavam atirando até de .50. E a gente lá no meio, de pistolinha. Thomas e Duval riram. Rocha os ignorou e caminhou até a mesa ao lado da cama, na qual havia algumas flores e muitos cartões desejando que ele se recuperasse logo. Um deles de Maria Clara, Rocha notou pela assinatura. Também havia alguns potes de vidro com doces e balas. Ele os abriu e comeu alguns. — Estão bons? – Thomas perguntou. – Ainda não experimentei nenhum.
— Melhor impossível. – Rocha respondeu, sem esconder o sarcasmo. – Espero que consiga andar logo para poder alcançar. Duval lançou um olhar de desaprovação para Rocha, que fez questão de ignorálo e retirar mais alguns doces do pote. — O que foi que aconteceu aqui ontem? – disse o delegado. — Estou tentando entender até agora… – Thomas disse, enquanto se ajeitava na cama – Eu acordei de madrugada, com uma dor de cabeça terrível. Demorou algum tempo até que eu me lembrasse de tudo e entendesse o que estava acontecendo. Chamei a enfermeira várias vezes, só que ninguém apareceu. Então eu me levantei e tentei caminhar até a mesa, porque eu estava morto de fome, mas acabei caindo sobre ela e derrubando tudo. Foi nessa hora que ele apareceu. Pensei que era um médico ou um enfermeiro, mas médicos usam branco e não preto. — Sério? – Rocha debochou. Thomas ignorou o comentário. — Eu vi a arma brilhando na mão dele e me toquei que teria que agir rápido se quisesse sobreviver. Joguei o prato de sopa que havia caído no chão na cara dele e rolei para perto da porta. Eu consegui derrubá-lo e nós trocamos dois ou três socos. Tentei tirar a máscara que ele estava usando, mas o homem me empurrou e saiu do quarto. Eu não tive forças para segui-lo. — E a arma? – disse Rocha. – Ele a levou? — Sim, eu acho que sim. Ninguém achou nada no quarto. — Ele matou três enfermeiras e o policial que estava vigiando a porta. – disse Duval – Também atirou no zelador, mas ele conseguiu sobreviver. O problema é que não viu nada, nem de onde o tiro veio. — Você tem muita sorte, garoto. — E você também, Rocha. – Thomas respondeu. – Fiquei sabendo que ele também fez uma visitinha na sua casa ontem. — Como você sabe? — A Maria Clara passou aqui mais cedo e... — O indivíduo que te atacou e o que me atacou são pessoas diferentes. – disse Rocha, impedindo que Thomas terminasse a frase. – Ele não poderia ter estado em tantos lugares assim, em tão pouco tempo. — Como você explica? — É muito simples. Ele arrumou um cúmplice. — Isso vai complicar as coisas. – Duval disse. — Muito pelo contrário. Vai facilitar. — Não vejo como. — O nosso Assassino da Cruz está intimamente motivado a concluir essa onda
de crimes. Tudo faz muito sentido na cabeça dele. Ele se sente como um deus enquanto espalha sua vingança sobre aqueles a que julga impuros. Thomas riu. — Mas o cúmplice não teria essas mesmas motivações. Provavelmente, ele foi coagido a participar. Talvez seja alguém que tenha algum envolvimento, mas que… – Rocha parou subitamente. O intervalo não durou mais do que dois ou três segundos, mas foi tempo o suficiente para que muitas coisas passassem pela sua cabeça. — Rocha? – Duval disse. — Oh… Acho que eu bebi demais ontem à noite. Está tudo rodando. Merda. — O que você estava dizendo? — Não era nada importante. Acho que o whisky finalmente alcançou meu cérebro. Vou tomar um ar. – ele caminhou até a janela. — Certo… — Vocês acharam mais corpos, né? – Thomas apontou para a TV enquanto tentava se arrumar na cama. Havia uma mangueira de soro presa em sua veia e um grande curativo, visível através da sua camisa branca de hospital, cobrindo boa parte do seu ombro. — Já são nove desde que você veio para cá. – Duval respondeu. — Cacete! — Eram ligadas ao assalto também? — Sete deles sim. O advogado dos assaltantes e todos os membros do júri popular. Ele matou todos. Mas também achamos dois corpos que são uma incógnita. — Talvez tenha sido esse cúmplice dele, que está se aproveitando da técnica do seu chefe para resolver seus próprios problemas. – Thomas disse. — É possível. – Duval confirmou. — Mas tem um fato pior. – Thomas disse, como se tivesse acabado de perceber algo muito importante. – Se ele já matou o juiz, o advogado e todos os membros do júri, temos um problema muito sério nas mãos. Ele pode desaparecer agora. — Esse é o meu medo. Ele matou todos os envolvidos… — É claro que ele ainda não matou todos. – Rocha disse, sem se virar para eles. Observava os carros apressados cruzando a rua, alheios a tudo além dos seus vidros fechados. Acendeu mais um cigarro e só então se virou para dentro do quarto. Os dois homens o observavam com atenção. – Eu ainda estou vivo. O silêncio tomou conta do lugar por algum tempo. Tempo o suficiente para que Rocha terminasse aquele cigarro e acendesse outro logo em seguida. — Isso é um hospital, Rocha. – Duval disse – Você podia controlar um pouco esse seu vício, pelo menos aqui. — Aqui só tem moribundo mesmo. Quem já está na beira da morte não se
importa em engolir mais um pouco de fumaça. – Rocha respondeu, tragando profundamente. – Não é mesmo, garoto? Thomas não soube o que dizer. — Bem… É isso, Thomas. – Duval disse, tentando mudar o rumo da conversa. – Nós só viemos aqui para ver como você estava. Precisamos voltar para a delegacia. Aquilo está um caos. Tem repórteres até no telhado, estão tentando ver como estão as coisas lá dentro. — Claro. Obrigado pela visita. Eu espero voltar para lá logo. — Você vai. Vou deixar mais alguns homens aqui, para assegurar que não vai acontecer mais nada. E, se precisar de alguma coisa, me ligue imediatamente. — Pode deixar. Muito obrigado. — A gente se vê logo, moleque. – Rocha disse, enquanto saia da sala. — Assim espero. – Thomas respondeu.
Capítulo Vinte e Um Quando Duval entrou na sala de Rocha, se assustou com a cena que presenciou. O investigador estava ajoelhado no chão, quase encoberto por uma pilha de papéis velhos que ele havia retirado de uma dezena de caixas. E as caixas também estavam espalhadas pelo cômodo, algumas no chão, outras jogadas sobre a mesa. — O que você está procurando? — Isso! – Rocha ergueu uma folha datilografada amarelada, ao mesmo tempo em que se levantava. Varreu as caixas da sua mesa com a mão e se sentou. Ligou a pequena luminária e se concentrou na leitura das letras miúdas na folha. — E que merda é essa? – Duval perguntou. — Eu sei quem é o cúmplice do Assassino da Cruz. – Rocha disse. — O quê? – o delegado se surpreendeu. – Quem? — Breno Henrique Nogueira… Mas nas ruas ele é conhecido como Líder. — Líder? Quem é esse cara, pelo amor de Deus? — Foi ele quem planejou o assalto ao banco. O único que se deu bem nessa história, porque ele conseguiu fugir com toda a grana, enquanto seus cúmplices ou morreram ou foram pro xadrez. — Como você sabe que é ele? — Eu tenho uma suposição sobre essa história… — Então por que não me conta? Eu sou o chefe, sabia? — Olha… Certo, eu vou falar, mas preciso que você fique calado sobre isso. Eu preciso confirmar algumas coisas e se você der qualquer bola fora, tudo vai pra merda. — Quando eu entrei para polícia você ainda cheirava a mijo, Rocha. – Duval pareceu profundamente irritado. – Acha que precisa me dizer isso? — De qualquer forma, eu acho que o Assassino era o piloto de fuga dos assaltantes no dia do roubo. — E quem é esse piloto? — Luciano Alvarenga. – Rocha passou uma folha para Duval, nela havia impressa a foto tirada com o celular do investigador na casa da mãe de Luciano. – Por uma grande ironia do destino, ele era filho de uma das vítimas do assalto. — O quê? — Exatamente. E isso explica muita coisa. Ele enlouqueceu. Se sente culpado por ter envolvimento na morte do pai e do irmão, mas não quer arder no inferno sozinho. — Espera… Eu já vi a ficha desse cara. Na época nós falamos com ele. Mas
isso que você está dizendo não faz muito sentido. Pelo que eu sei, ele morreu há uns dois anos num acidente horrível de carro. — Sim, ele morreu. Mas deixou para a mãe um seguro de vida mais caro que o salário de um deputado. Sabe como ele conseguiu isso? Com a grana do assalto. Ou você acha que um cabo do Exército ganha tanta grana assim? – Rocha apontou para a parte no relatório em que estava especificado o valor da pensão. Duval coçou a testa. – Definitivamente não! – disse. — Ele deu bandeira, Duval! Calculou tudo, mas se esqueceu desse detalhe, porque a mãe já havia sofrido demais. Queria que ela vivesse bem em seus últimos dias. — Tá, mas e o acidente? — Eu não consigo pensar em nada mais suspeito do que isso, se quer saber. O cara havia trabalhado como motorista de transporte escolar por vários anos e não tinha nenhuma multa de trânsito sequer. Aí, um dia, do nada, ele bate de frente com um caminhão? Não faz sentido. O motorista do caminhão disse que ele seguia na contramão e em alta velocidade, como se quisesse morrer. O pai e o irmão dele tinham morrido algum tempo atrás então, obviamente, ele era um possível suicida. Ao menos foi isso que os seus investigadores da época pensaram. Bando de idiotas! Duval fechou a cara. — O corpo não foi reconhecido, porque o carro pegou fogo e ele acabou carbonizado. Por algum motivo, nenhum teste de DNA foi realizado. Então, cientificamente falando, não há nenhuma prova nesse mundo que afirme com toda certeza que Luciano Alvarenga está morto! — Certo… Vamos supor que o que você diz seja verdade. Como ele conseguiu convencer esse tal de Líder a ajudá-lo agora, tanto tempo depois? — Com um currículo desses, quem não conseguiria? – Rocha respondeu. – Ele invadiu lugares extremamente seguros sem ser visto e matou pessoas de formas terríveis. Os vídeos estão na internet para qualquer um ver, mas talvez não sejam direcionados para o público, especificamente. São para seus companheiros de profissão. Ele está mostrando do que é capaz. — Meu Deus… — Além disso, eu sempre acreditei que o tal Líder tenha financiado o advogado dos criminosos. Eles nunca disseram uma única palavra sobre onde estava o dinheiro ou sobre quem ficou com ele. Mas é óbvio que eles sabem, afinal, se tivessem sido traídos, teriam aberto o bico logo no começo, você não concorda? — Mas o Assassino matou o juiz, o advogado e todos os membros do júri popular… Ou seja, todas as pessoas que ajudaram os criminosos, seus aliados, a saírem ilesos disso tudo.
— A aliança entre eles acabou exatamente no momento em que o pai e o irmão do Luciano foram mortos. Ele não sabia quem era o verdadeiro culpado, porque estava lá fora, esperando no carro. Quando o julgamento acabou, ficou claro que a justiça não foi feita. Os assaltantes não ficaram muito tempo presos, mas o policial que interrompeu o assalto sequer foi julgado. E, com toda certeza, os reféns foram mortos por um desses dois lados. Ou foi o policial ou foram os assaltantes. Se nenhum dos dois lados é punido, então as vítimas não são vingadas. E isso torna todos culpados. O juiz, os jurados, o advogado, os assaltantes… E eu, é claro. — Puta que pariu… Há quanto tempo você está escondendo essas informações de mim, Rocha? — Isso não importa. — Claro que importa. – Duval urrou. – Eu sou o chefe dessa delegacia. Você não pode esconder nada de mim. — Eu não podia confiar em ninguém, Duval. — Eu te trouxe de volta, Rocha. Eu sou a única pessoa no mundo em quem você pode confiar cegamente. Eu sempre fiquei do seu lado. Eu sou quem sempre te defende aqui dentro dessa delegacia. — É exatamente por isso que eu não podia te contar nada, Duval. – Rocha disse. – Não queria te colocar em perigo. — Como assim? — Eu tenho uma teoria sobre esses últimos crimes também. Acho que sei quem está por trás deles. — Quem, pelo amor de Deus? — O Edmundo. — Ah, Rocha... — Eu estou falando sério. – Rocha disse, batendo a mão na mesa. – Eu chequei todas as informações, Duval. Foi ele e aqueles caras que andam com ele. Eu não tinha me tocado disso até ontem, quando fui atacado. Eu sei quem invadiu minha casa. — Não vai me dizer que foi o Edmundo? — Claro que não. Aquele velho não aguenta nem o próprio peso. Foi o Natanael. Nós já brigamos antes e eu reconheço os caras com quem brigo. — Então você está me dizendo que o Edmundo e o Natanael estão ligados ao Assassino da Cruz? – Duval perguntou, completamente horrorizado. — Não, com certeza não. – Rocha respondeu. – O que eu estou te dizendo é que eles se aproveitaram dessa situação. O perito que analisou as câmeras conseguiu mapear o caminho dos carros e eu consegui ver o Natanael dentro de um deles em um semáforo. — Por que eu não fui informado sobre isso?
— Você está sendo informado agora. Além do mais, isso não prova nada. Mas, depois que a Maria identificou as vítimas, eu passei um pente fino na vida deles e achei umas coisas bem interessantes. Eles não têm absolutamente nenhuma ligação com o assalto ao banco. Mas, em compensação, a mulher era cafetã em uma boate de luxo no centro e o cara era traficante de crack. O Edmundo tinha contas a acertar com os dois. — Rocha... Você tem noção do que está dizendo? — É claro. – Rocha respondeu. Ele estava muito irritado. – O que estou dizendo é que eu estava certo desde o começo sobre esse velhote, Duval. Ele não vale nada! — Isso não é possível – o delegado não conseguia acreditar no que ouvia. — Ele viu a oportunidade e agiu. Sabia que o Assassino da Cruz estava sumido, então decidiu se aproveitar disso para se livrar dos seus inimigos. E ele usou o Natanael para realizar os crimes. — Mesmo que isso seja verdade, nós nunca conseguiremos provar. – Duval disse. — Na verdade, conseguiremos sim. – Rocha respondeu. – Lembra que a Maria disse que a vítima foi estuprada... — Puta que pariu! — Só precisamos de uma amostra do DNA deles. — Eu vou providenciar isso agora! — Não, Duval. – Rocha o interrompeu. – Agora não. No momento, precisamos nos focar em encontrar o Líder. Ele vai nos levar ao verdadeiro Assassino da Cruz e é só isso que importa. — Mas se o Edmundo for mesmo culpado por essas duas mortes, temos que mandá-lo para a cadeia. – o delegado disse. – Ele não pode ficar impune. — E não ficará. Mas podemos deixá-lo para depois. Um assassino de cada vez. — Certo, certo... – Duval disse. – Talvez você esteja certo. Mas eu só não entendi uma coisa nisso tudo: você tem ideia de como faremos para encontrar esse tal de Líder? — Na verdade, eu tenho sim. Duval aguardou que Rocha dissesse mais alguma coisa, porém, o investigador ficou em silencio, absorvendo a fumaça dos últimos milímetros do seu cigarro, como se ouvisse uma música que ninguém mais além dele pudesse contemplar. Terminou o cigarro e acendeu outro na própria bituca. — Vai me dizer como, pelo amor de Deus? – o delegado gritou, quando sua paciência se esgotou por completo. — Claro. Mas não agora. Quer almoçar comigo? Sei de um lugar que vende uma picanha ótima. Eu pago.
*** O garçom acompanhou Duval e Rocha até uma mesa bem iluminada, em frente à vitrine do restaurante. Todas as mesas estavam cheias, mas os clientes conversavam discretamente, como é comum em locais elitizados como aquele. Um slow blues tocava ao fundo e isso era uma das coisas que Rocha mais gostava naquele lugar. — Gostaria de beber o mesmo de sempre, senhor Rocha? – perguntou o garçom, quando eles já estavam bem acomodados. — Não, hoje não. Estou de serviço. Me traga uma Coca-Cola bem gelada, por favor. Com limão e gelo, se não for pedir muito. — Com certeza. E para o senhor? — Apenas água sem gás, obrigado. – Duval respondeu. O garçom saiu e deixou os dois sozinhos. — Não quero parecer rude, Rocha, mas tem alguma coisa estranha aqui. Esse não é nem de longe o tipo de lugar que eu esperaria te encontrar… Além do mais, deve ser muito caro. — Pode apostar que é caro! – Rocha respondeu com um largo sorriso. – Mas você está certo. Eu realmente não frequentaria esse tipo de lugar algum tempo atrás. Todos esses ricos com seus gestos falsos e essa mania de grandeza… Isso me dá nojo. Mas, como eu te disse, a picanha daqui é ótima e faz valer a pena. — Não me faça de idiota, Rocha. Nem eu tenho dinheiro para almoçar aqui. E, pelo que o garçom disse, você vem aqui com frequência. Ele sabe até o seu nome! Nesse momento, o garçom retornou com as bebidas que eles haviam pedido e dois cardápios. Serviu as bebidas, deixou os cardápios sobre a mesa e saiu tão rápido quanto chegou. — Nós nos conhecemos há quanto tempo, Duval? — O quê? Sei lá. Uns vinte anos? — Vinte e um anos. — E daí? — Em todos esses anos que nos conhecemos, você já me viu tirando vantagem de alguma situação? – Rocha encheu o copo com o refrigerante, depois mexeu o liquido com o dedo indicador. Antes de voltar a falar, lambeu a ponta do dedo. – Já viu eu me beneficiar de forma ilícita e permitir que algum meliante saísse ileso de um crime que ele certamente cometeu? Nem que seja uma única vez, você já me viu fazer isso? — É claro que não. Se tivesse visto, você não trabalharia mais comigo. — Certo. Então eu espero que fique bem claro que o que eu vou te contar agora vai te chocar. — Desembucha de uma vez.
— Durante todo o meu tempo na polícia, só houve um crime que eu não consegui solucionar… — A família morta no réveillon. — Exatamente. Cinco mortes inexplicáveis e três suspeitos. — E o que isso tem a ver com esse restaurante? — Tudo, meu amigo. Rocha começou a ler o cardápio enquanto Duval o encarava, atônito. Ele estava preocupado com o rumo daquela conversa. — Sabe por que eu não consegui solucionar aquele crime? — Porque ele era impossível de ser solucionado. — É claro que não. Todos os crimes podem ser solucionados. Nenhum criminoso é tão esperto assim. — E então? — Não houve nenhum crime. Ao menos, nenhum crime contra a vida de ninguém. — De que merda você está falando, Rocha? Seja direto, pelo amor de Deus. — O dono desse restaurante é Antônio Battaglia, como você deve saber. O homem que morreu naquele dia, junto com toda a sua família, chamava-se Reinaldo Duarte. E a questão principal é que os dois são a mesma pessoa. — O quê? — Eu solucionei o crime em menos de três horas de investigação. Tinha tantas pontas soltas que até mesmo o Thomas teria conseguido solucionar. Tudo foi uma grande armação. A festa de fim de ano, as mortes, era tudo falso. Nenhum dos vizinhos foi convidado para a festa como ocorrera nos anos anteriores. Nenhum familiar estava presente também. Todos que estavam na tal festa naquele dia estavam lá por um único motivo: simular um assassinato. — Eu não estou entendendo… — O filho mais jovem foi o motivo principal. Ele tinha uma doença rara, um tipo de câncer, eu acho. Mesmo que possuíssem muito dinheiro, o tratamento era extremamente complexo e mais caro do que eles seriam capazes de pagar. Mas havia uma carta na manga: um seguro de vida familiar e milionário. Se um deles morresse, a família receberia uma quantia exorbitante. Mas se todos morressem, um montante ainda maior seria doado para uma ONG nova que ajudava pessoas com a tal doença. Duval bebeu toda a água que o garçom trouxe e fez sinal para que ele trouxesse mais uma garrafinha. — Essa ONG, eu descobri só depois de algum tempo, era uma empresa fantasma e foi fundada por um italiano, um tal de Antônio Battaglia. O dono desse restaurante. — Deixa eu ver se entendi… Eles usaram todo o dinheiro que tinham para simular um assassinato, para que então o dinheiro fosse doado para uma ONG que
pertencia a eles mesmos. Pegaram o dinheiro e depois fugiram para o exterior? — Para realizar o tratamento do menino. — Que história maluca. — O professor de química, o tal amante da mulher, na verdade, era parte do plano. Ele ajudou roubando cinco corpos de indigentes de uma faculdade e os levando para a casa. O legista recebeu uns trocados para dizer que eram eles e que não havia nada de incomum nos corpos. Eles contrataram várias pessoas para participar da festa falsa, para que todos pudessem testemunhar o assassinato. — Isso não faz sentido. — Claro que faz. Teria sido perfeito se eles não tivessem cometido um grande erro. Não tiveram coragem de culpar ninguém. Não queriam que um inocente fosse para a cadeia por matá-los, já que eles continuariam vivos. — Então criaram a história da morte na hora dos fogos. — Exato. Mas isso chamou mais atenção do que eles queriam e deixou muitas perguntas no ar. — E você descobriu tudo. — Nessas horas, a única coisa a se fazer é seguir a trilha de dinheiro, meu amigo. O maconheiro, namorado da menina, me levou ao professor de química. O professor me levou aos corpos e ao preparador de corpos da funerária. Este cara me levou ao legista. O legista me levou a um advogado. E o advogado, depois de um nariz quebrado, me levou até o aeroporto de Guarulhos. Eu os encontrei lá, fugindo para os Estados Unidos. — E por que você não os prendeu? — Bom… O garçom chegou trazendo a água de Duval. — Vocês já escolheram? – ele perguntou. — Para mim, pode trazer o de sempre, Giovani. – Rocha disse, com um sorriso. – Ah! Dessa vez, lembre-se de pedir pro Louis caprichar na pimenta, certo? — Eu quero o mesmo que ele, seja lá o que for que ele tenha pedido. – Duval disse. – Mas sem tanta pimenta, por favor. — Ótima escolha, senhores. – o garçom agradeceu e saiu. — Se eu os tivesse prendido, Duval, esse garçom que nos atendeu estaria morto. — Ele é o filho doente? — Sim… — Entendo. Mas isso foi errado, Rocha. Você sabe que… — Não me venha com lição de moral. Eu sei o que fiz e não me arrependo. O garoto recebeu o tratamento e se curou. Teve uma nova chance, coisa que eu mesmo não tive quando tinha a idade dele. Depois eles voltaram para o Brasil e ajudaram muitas
pessoas. Ajudam até hoje. Todos os anos, fazem doações gigantescas para o tratamento de vários tipos de câncer. Eu não faria isso de novo, Duval. Nunca mais deixei um culpado livre. Mas não me arrependo de tê-los deixado partir e de ter arquivado o caso. Até porque eles me deixam comer de graça aqui. Aproveite para experimentar tudo que tiver vontade, hoje. Duval riu discretamente e depois ficou em silêncio. Muitas coisas passaram pela sua cabeça. Então a imagem dos assassinatos retornou e ele voltou a falar. — Por que você decidiu me contar isso agora? E o que isso tem a ver com toda a história do Assassino do Cruz? — Lembra quando eu disse que a filha do casal tinha um envolvimento com um maconherinho de merda e que ele era um dos suspeitos dos assassinatos? — Sim. — Ele se chamava Breno Henrique Nogueira. — Puta merda! – Duval disse, um pouco mais alto do que gostaria. — Pois é. Ele trabalhou aqui por algum tempo, mas foi demitido quando o pegaram fumando maconha no vestiário. Isso foi alguns anos antes do assalto, mas, pelo que sei, ele ainda continuou saindo com a filha. Estamos aqui para falar com ela. — O almoço estava ótimo, Bianca. – o investigador disse quando ele e Duval chegaram ao caixa. Uma mulher muito bonita os recebeu. Ela deveria ter pouco mais de trinta anos, vestia um uniforme preto e tinha um lenço vermelho e branco segurando os cabelos. — Que bom que gostou, senhor Rocha. Para nós, é uma honra recebê-lo. O senhor e seu amigo também. – ela sorriu para Duval, que retribui o cumprimento. — Quanto eu te devo? Ela sorriu. — O senhor sabe que não deve nada. — Eu sei, mas é muito bom ouvir isso. – Rocha simulou que estava saindo, mas voltou, como quem esquece alguma coisa importante. – Ah, eu preciso de um favor seu. — Pois não? — Você se lembra daquele seu antigo namorado, o Breno? O semblante da mulher mudou imediatamente. O sorriso desapareceu e deu lugar a uma expressão séria. Duval enxergou uma pitada de medo em seus olhos. — Eu não sei se devo falar dele, senhor Rocha. O senhor sabe que... — Eu preciso falar com ele. – Rocha disse – E é urgente. — O que aconteceu? — Nada. É um assunto particular. — Senhor Rocha… – ela começou a se desesperar. – Por favor, o que ele fez? O
senhor vai… Vai... — Fique calma, Bianca. Eu vou o quê? — Vamos conversar em outro lugar. Bianca enxugou as lágrimas e pediu que outro funcionário ficasse no caixa em seu lugar. Os três então seguiram para os fundos. Saíram do prédio e se depararam com uma pequena clareira, um local para onde os funcionários do restaurante costumavam ir para respirar ar puro em seus momentos de descanso. Rocha e Duval permaneceram de pé, mas Bianca se sentou na escada de dava acesso à cozinha. Imediatamente após se sentar, ela voltou a chorar. — Quando foi a última vez que você falou com o Breno? — Há dois dias. – ela respondeu. – Ele apareceu lá em casa. Parecia desesperado. Disse que tinha alguém atrás dele e que tinha a ver com esses assassinatos da TV. — O que mais ele disse? — Que ele ia desaparecer, mas que precisaria fazer alguma coisa antes. Uma coisa muito ruim. — Você sabe o que era? — Não. — O que você sabe sobre o Assassino da Cruz? – Duval perguntou. — Nada… Quer dizer, só o que a TV fala. Eu também vi os vídeos na internet. Vi o nome… — Nome? — O seu nome... Pedro Rocha. – ela respondeu. – O Assassino da Cruz escreveu esse nome nos corpos. Eu pensei que era uma assinatura. Quando vi o senhor aqui, hoje, confesso que pensei que estivesse vindo para me matar. — Por que diabos eu te mataria? — Porque o Breno disse que… – ela parou de repente. — Disse o quê? – Rocha perguntou. — Disse que se não aparecesse em 24 horas, era para eu considerar que ele estava morto. Que o Assassino da Cruz o tinha matado. — Eu não sou o Assassino da Cruz, caso queira saber. – Rocha disse. – Aquilo não é uma assinatura. É uma ameaça. Ele quer me matar também. Ela não respondeu. — E nesse momento, eu preciso que você me ajude, Bianca. Que me diga alguma coisa. Qualquer coisa que possa nos ajudar a encontrar esse assassino. — Eu não sei nada... — Você sabe que pode confiar em mim. Eu já te ajudei. Ajudei o seu irmão. — Mas eu não sei de nada…
Rocha ia insistir mais uma vez, mas Duval o segurou. A mulher havia desabado. Chorava compulsivamente, a cabeça no meio dos joelhos, cobrindo os olhos com as mãos. — Certo. – Rocha se abaixou em frente a ela e tocou seu ombro direito. – Eu não vou te incomodar mais, Bianca. Eu sei que você está com medo. Mas espero que saiba que pode confiar em mim. Eu confiei em vocês, naquele dia, no aeroporto. Não sou o Assassino da Cruz, mas vou até o fim para prendê-lo. Eles saíram do restaurante e voltaram para a delegacia.
Capítulo Vinte e Dois Thomas recebeu alta do hospital naquela mesma noite. Pegou um táxi e foi direto para a delegacia, onde Rocha e Duval ainda trabalhavam. Rocha estava tentando construir uma linha do tempo com as informações que já havia conseguido sobre Breno, mas não estava tendo muito progresso. Duval usava sua rede de informantes para tentar encontrá-lo, mas tudo que conseguiu foi o que já sabia: que dois dias antes ele fora visto com uma garota que trabalhava em um restaurante grã-fino. Passaram a noite inteira em claro, lendo e relendo papéis e montando teorias. Ainda assim, não haviam chegado a lugar nenhum quando os primeiros raios de sol tocaram as janelas da sala. Thomas ainda andava com um pouco de dificuldade, mas estava ansioso para voltar a trabalhar. Foi por isso que, quando o telefone da sala tocou, por volta das nove horas da manhã, ele foi o único dos três que se dispôs a levantar, caminhar até lá e atendê-lo. — Rocha… É para você. – disse, logo em seguida. — Diz que eu morri. — Acho que é importante… — Porra, moleque. Acabou de chegar e já está me irritando? — É uma tal de Bianca Battaglia. Ela disse que tem uma informação muito importante para você. — Puta que pariu! – Rocha saltou da cadeira. – Me dá esse telefone agora! Os homens do GOE estavam a postos, esperando a ordem de Duval. Rocha, que quase sempre demonstrava uma ansiedade incontrolável, agora parecia tomado pela calmaria, o que soava estranho para o delegado. Era como se ele soubesse exatamente o que iriam encontrar lá dentro. Um dos policiais já estava no portão com um longo alicate. Ele cortou o cadeado como se fosse feito de papel. Imediatamente sinalizou seu feito e os demais homens caminharam rapidamente até ele. Atravessaram a rua tão rápido que nem os vizinhos curiosos conseguiram vê-los. Entraram no quintal ainda mais rápidos e silenciosos. Não havia cachorros no local e isso era sempre algo a se comemorar. O grupo se dividiu em quatro partes. Cada uma seguiu para um lado da casa, guardando portas, janelas e quaisquer outras possíveis saídas. Rocha, Duval e Thomas, acompanhados de outros quatro policiais, entraram pela varanda da sala e seguiram pela porta principal.
Eles pararam em frente à porta e abriram espaço para um dos policiais que carregava um pequeno cilindro preto preso por duas alças. Embora não tivesse mais do que 70cm, o aríete era forte o suficiente para derrubar 10 portas como aquela se sobrepostas. Em poucos segundos a porta estava escancarada, ainda que isso tenha provocado um grande barulho. Rocha foi o primeiro a entrar. Com a pistola em punhos, não disse uma só palavra. Duval gritava o suficiente por eles dois, dando ordens para que todos que estivessem ali dentro se rendessem. Mas, aparentemente, não havia ninguém. Revistaram todos os cômodos com muita calma. Não acharam nada suspeito, além de uma grande faca escondida embaixo do travesseiro no quarto de dormir. Certamente não era a faca utilizada nos crimes. O Assassino da Cruz usava bisturis em um estojo de cirurgião, como os vídeos mostravam. Ainda assim, Duval fez com que a faca fosse mandada para a perícia. — Tem mais um quarto aqui! – disse um dos policiais, de repente. A porta estava atrás do guarda-roupas em uma espécie de quarto de visitas, que mais parecia um depósito de coisas inúteis, como bicicletas sem rodas, computadores velhos, sacos de roupas desbotadas, colchões manchados e com as molas estragadas, além de muitas outras bugigangas. As teias de aranha e o pó cinzento acrescentavam um ar ainda mais fúnebre ao ambiente, que por si só já era assustador. Sem muita dificuldade, três homens arrastaram o guarda-roupas para outra parede. Ao contrário do que se esperaria da parte de trás de um móvel como aquele, a parede naquela área da sala parecia ser a mais limpa. De fato, a porta estava sendo escondida e não ignorada, como poderia parecer. Alguém a usava com frequência. O policial com o aríete foi chamado novamente. Quando a porta se escancarou e a luz entrou no ambiente, ficou claro que aquele lugar não era uma espécie de quarto secreto, como nos filmes de terror e mistério. Era apenas um simples quarto de dormir cuja porta deveria ser no corredor. Alguém havia modificado a planta original da casa, levando a porta para o outro quarto. Assim, ela ficava escondida da vista de todos, camuflando completamente o tal quarto. Mas tudo ficou bem claro no momento em que eles entraram na sala secreta. Bianca havia dito que Breno costumava dormir naquela casa algumas vezes por semana, mas que ela pertencia a um amigo dele. Esse amigo, sem sombra de dúvidas, era o Assassino da Cruz. Havia centenas de fotos presas nas paredes e nos poucos móveis, com círculos feitos com caneta vermelha, anotações manuais e sinais estranhos, como os encontrados nas vítimas. Também havia esquemas de câmeras de segurança, plantas baixas de prédios, horários de funcionamento das empresas onde as vítimas trabalhavam e muitas informações que haviam facilitado os crimes.
Numa das paredes, logo abaixo do que parecia ser uma janela, mas que agora estava coberta por tijolos e concreto recente, havia uma mesa larga de madeira, por cima dela estavam alguns papéis, uma luminária e a maior descoberta que eles fizeram: um estojo de couro com dezenas de bisturis. — Puta que pariu! – disse Duval, erguendo o estojo para vê-lo mais de perto. – É esse! Eu tenho certeza! Rocha checou alguns dos papéis sobre a mesa. Havia perfis psicológicos extremamente complexos de todas as vítimas. Também havia listas com os prós e os contras sobre as mortes de cada uma delas. Aparentemente, ele havia ponderado particularmente sobre as mortes daquelas pessoas, talvez para se certificar de que elas deveriam morrer. Em todo caso, as conclusões sempre tendiam para o lado da culpa, provando que todas as vítimas mereciam morrer. Talvez o Assassino precisasse daquilo para conseguir dormir à noite. Ele precisava acreditar que, ainda que não parecesse, estava fazendo a coisa certa. Enquanto todos estavam em volta de Duval, distraídos pela descoberta do estojo, Rocha teve tempo de enfiar no bolso da jaqueta um pequeno caderno de anotações aparentemente muito velho, que também estava sobre a mesa. O objeto tinha uma capa vermelha de couro e parecia ser algum tipo de diário pessoal, pelo pouco que ele conseguiu folhear antes de guardá-lo. Precisava disfarçar. Se Duval apenas suspeitasse que ele estava roubando provas, enfrentaria sérios problemas. Mas por que roubar? Por que não compartilhar aquela informação com Duval e Thomas? Simplesmente porque o Assassino da Cruz não estava ali e nunca mais voltaria para aquele lugar. Ele sabia que a polícia encontraria aquela casa e preparou todo o cenário para que isso acontecesse. Rocha sabia disso e estava ciente de que apenas ele seria capaz de encontrá-lo. Afinal, era exatamente isso que ele queria. Manteve o caderno consigo pelo dia todo, sem dizer uma única palavra aos seus companheiros. Os peritos chegaram algum tempo depois e passaram o resto do dia ali, investigando minunciosamente todos os cômodos da casa, especialmente o quarto secreto. Rocha e Duval conversaram com alguns vizinhos enquanto Thomas auxiliava Maria Clara e sua equipe. Os vizinhos, como sempre, não sabiam de nada, exceto que o homem que morava na casa era muito quieto e solitário. Nunca interagia com ninguém e nem se envolvia nos assuntos do bairro. Ninguém nunca suspeitou de nada, afinal, toda vizinhança tem seus moradores antissociais. Também disseram que ele não era visto há algumas semanas e que todos achavam que estava viajando a negócios, pois parecia ter um emprego que exigia que passasse muito tempo longe de casa. Duval foi o primeiro a voltar para a delegacia. A informação da descoberta da
casa havia vazado, provavelmente através de algum vizinho, e os carros da imprensa já estavam entupindo o lugar. Se havia uma mínima chance de prender o Assassino ali, ela havia desaparecido por completo. De qualquer forma, aquela agitação não ajudaria em nada e foi por isso que ele preferiu voltar. Já tinha muito material para a investigação nas mãos. Rocha e Thomas foram logo em seguida. Eles também queriam fugir dos repórteres que insistiam em cercá-los de microfones e gravadores, apesar das suas constantes ameaças, porém, até chegarem na viatura, tiveram que cruzar um verdadeiro mar de flashs e vozes exaltadas. No meio da confusão, Rocha perdeu o controle e destruiu o celular de um deles. Tomou de sua mão e o jogou no chão, movido pela fúria momentânea. O aparelho destruído, um modelo de luxo fabricado na china, por descuido, ousou acertar seu rosto enquanto a “horda de hienas” – como o investigador os chamava – tentava arrancar dele qualquer declaração, por menor que fosse. Mas nem isso parou a horda. Os investigadores entraram na viatura e saíram às pressas, desviando dos repórteres que chegavam ao ponto de praticamente se jogar sobre o carro. Thomas ficou feliz por estar dirigindo, pois sabia que Rocha teria atropelado alguns deles sem o menor remorso. Logo estavam longe daquele lugar e daquela agitação, parados atrás da costumeira fila de carros do trânsito de São Paulo. Mas estariam longe daqueles repórteres só por algum tempo. Afinal, era óbvio que os jornais, portais de internet e redes de TV também enviariam seus repórteres para a delegacia. Eles já deveriam estar lá, de câmeras a postos, esperando, como hienas em busca de carniça. — Alguns policiais acham que, um dia, o assassino que eles procurarão serei eu. – disse Rocha, de repente. – Você já deve ter ouvido algo do tipo. — Acho que sim. – Thomas respondeu. – Mas por que diz isso agora? — Talvez eles estejam certos. — O que você quer dizer? — Eu não sou um santo. Nunca matei um homem que não tenha merecido morrer, mas não sou um cavaleiro dourado como o Duval. Não me escondo atrás do escudo da justiça. — Eu não estou entendendo onde você está querendo chegar, Rocha. — Repórteres, garoto. Um dia eu vou acabar matando um repórter. — Ah, claro. Eu também tenho vontade de matá-los. — Eu já passei da fase da vontade. – Rocha acendeu um cigarro. — Que papo é esse? – Thomas pareceu assustado. — Eu já arquitetei planos. Já cheguei a seguir um ou dois deles algumas vezes. — Cara, que história é essa? O que você fez? — O fato é que eu nunca consegui fazer nada além de seguir. Por mais que eu os
odeie, por mais que aplauda de pé quando um árabe maluco decide cortar a cabeça de algum desses jornalistas em rede nacional, eu mesmo não consigo fazer o mesmo como as hienas daqui. Eu não sei o porquê. — Eu sei. – Thomas disse. – Apesar de ficar o tempo todo tentando ser, você não é esse demônio que as pessoas veem quando te olham. — Você já sentiu essa vontade, garoto? — Eu… — Essa vontade incontrolável de matar? Você sabe como eu me sinto? — Eu acho que sim. — Você sabe. — Olha, Rocha… Eu sei que não somos amigos. Ainda assim, vou te dar um conselho de amigo. Não saia dizendo essas coisas por aí. Aquela garota, a sua amiga que acharam na casa do juiz, ela era jornalista. O seu nome está ligado nesse caso até o pescoço. As pessoas já estão suspeitando de você. Quanto menos você falar, melhor vai ser. Rocha não respondeu. Terminou o cigarro e acendeu outro. — Você viu o Edmundo? – ele perguntou, algum tempo depois. — Não. Desde ontem que eu não sei onde ele está, na verdade. Deve estar roubando alguém por aí, não é mesmo? – Thomas riu. — Ou pregando algum corpo na parede. — O Edmundo? – a frase de Rocha pegou Thomas de surpresa. – Acha que ele pode ser o Assassino da Cruz? — Não. Com certeza não. – Rocha respondeu. – Mas ele está envolvido, e eu vou ter que dar uma lição nele. — Envolvido? Como assim? — Eu tenho certeza de que ele andou cometendo uns crimes nesses últimos dias. Ele e aquele Natanael, que anda sempre junto dele. Eles encenaram tudo para que os crimes se parecessem com os do Assassino da Cruz. Mas o professor Rocatelli analisou os corpos e ele tem certeza que eles não foram mortos pela mesma pessoa que matou as vítimas anteriores. Não há códigos nos pés nem os numerais no peito. — Mas o que te faz pensar que foi o Edmundo? — Muita coisa, garoto. — Da pra ser mais especifico? Não houve resposta. Vendo que Rocha não falaria mais nada, Thomas achou melhor ficar em silêncio também. Quando chegaram à delegacia, ele devolveu a chave da viatura e foi direto para sua sala, onde eles voltariam para as investigações. Rocha foi ao banheiro primeiro. Antes de qualquer coisa, precisava de privacidade para conferir o caderno de anotações que roubara da cena do crime. A curiosidade estava à
flor da pele. Algum tempo depois, Rocha entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Caminhou até a mesa de Thomas e jogou o caderno sobre ela. — Garoto… Precisamos conversar. — Que merda é essa? – Thomas exclamou. — Eu roubei da casa do suspeito. — Você fez o quê? — Ele vai matar as últimas vítimas hoje à noite. Está escrito aí. Ele sabia que eu encontraria este caderno antes de todo mundo e foi por isso que deixou lá. Foi por isso que deixou o estojo também. Era uma distração. Ele quer me encontrar. — Você roubou uma prova da casa? — Vamos nos focar no que é importante. Ele deixou esse caderno de propósito. — Cara... O Duval vai comer o nosso rabo se ele souber que você roubou essa prova. A gente precisa falar com ele agora. — Pro diabo o Duval! – Rocha disse. – Eu que vou resolver isso. — Certo. É você quem sabe. – Thomas pegou o caderno e folheou algumas das páginas por alguns minutos, antes de se virar para o investigador ao seu lado. – Sou eu ou isso não faz o menor sentido? — É claro que faz sentido. – Rocha se ofendeu. – Ele vai matar os assaltantes hoje, incluindo o Breno, e quer que eu esteja lá para presenciar. Eles destruíram a minha vida e a dele no mesmo dia, então isso é quase como um ato de caridade para com a minha alma. Mas, depois de matá-los, com certeza ele vai querer me matar também. — O que você pretender fazer? — Encontrá-lo, é claro. — Você ficou louco? — Pelo contrário. Nunca estive tão são em toda a minha vida. E eu estou esperando por isso há muito tempo. — Ele diz onde vai ser? — Sim. Numa fábrica de costura, na zona sul. — Nós precisamos avisar o Duval. Chamar o GOE e… — NÃO. Eu vou sozinho… A não ser que queira ir comigo. — O Duval vai nos matar. — Você se importa? Thomas sorriu. — Mas você tem certeza disso? – ele finalmente perguntou, alguns segundos depois.
— Tanto quanto 2 mais 2 são 5. – Rocha respondeu. — Ótimo! Então vamos lá. — Certo. – Rocha disse – Mas eu preciso ir a outro lugar primeiro.
Capítulo Vinte e Três Rocha entrou apressado na clínica. A recepcionista se assustou ao vê-lo, mas, ainda assim, foi gentil como sempre. O investigador insistiu que precisava ver a doutora Muriel e, depois de alguns minutos de negociação, finalmente foi levado até ela. — A nossa consulta deveria ser daqui a três dias, Rocha. — Eu não sei se eu tenho mais três dias, doutora. — O que você quer dizer com isso? — Eu sou policial. – Rocha respondeu, sentando-se na cadeira. – Você sabe como é. Todo policial tem vida curta. — Meu Deus, o que você está dizendo? – a psicóloga ficou preocupada. — Doutora, não se preocupe com nada. Eu só vim aqui porque preciso te dizer umas coisas. Mas, na verdade, eu nem sei bem como dizer... – Rocha olhou para o quadro na parede, como se buscasse as palavras certas. — Rocha? — Eu odeio psicólogos. Sempre odiei. Desde que minha tia começou a me levar para aquelas sessões demoradas em que eu tinha que ouvir um monte de asneiras, mesmo sendo a única pessoa sã de verdade na família. — Você já fez terapia antes? — Eu frequento consultórios há mais tempo do que você, doutora. Ela não soube o que dizer. — Mas não é isso que eu quero dizer. – Rocha gaguejou e Muriel tirou os óculos. – Eu só quero que você entenda uma coisa... eu não costumo ser delicado com as pessoas e nem me importo com o jeito que elas me tratam. Também não costumo pedir nada. Se as coisas vêm até mim, eu as aceito. Mas, se elas não vêm, isso quer dizer que não eram pra mim. — Eu ainda não entendi aonde você quer chegar, Rocha... — Eu não sou um psicopata. Eu passo tanto tempo com eles que, às vezes, as pessoas pensam que eu sou um deles. Mas não é verdade. — Eu sei disso, Rocha. – a psicóloga disse. – Só precisei de uma conversa para notar que havia muito mais em você do que as pessoas conseguem ver. Rocha não esperava ouvir isso. — Mas o que você queria me dizer? – ela perguntou. Rocha havia paralisado. — Eu não sei como dizer essas coisas... Não sei mais. Estou no meio de uma investigação difícil. Uma das mais difíceis da minha vida, com tantas coisas em jogo que eu nem posso te dizer. Mas, como tudo nessa vida, uma hora ela vai acabar. Eu só
queria saber se eu posso... Se eu posso te ligar quando isso tudo acabar. — Rocha... Eu sou sua terapeuta. Você pode me ligar sempre que precisar conversar. — Não é disso que eu estou falando e você sabe, doutora. — Eu sei. – Muriel coçou os olhos. — Certo. Já entendi. — Não... – ela colocou os óculos novamente. – Eu não sei o que está se passando pela sua cabeça, Rocha. — Eu nunca me abri com ninguém em toda a minha vida. – ele disse. Embora tentasse manter a aparência de homem forte e inatingível, sua cabeça estava tomada por um turbilhão de sentimentos. – Nunca falei sobre meu pai, nem sobre meu filho ou a Sandra com ninguém. Esses assuntos eu guardo aqui dentro. São meus e eu não divido. Mas sempre que estou aqui, eu quero dividir eles com você. E eu nem sei o porquê. — Esse é o meu trabalho, Rocha. – Muriel disse, escolhendo bem as palavras para não parecer rude. – Eu entendo o que você está sentindo, mas eu só... — Certo, doutora. Vamos parar por aqui. – Rocha se levantou, interrompendo a psicóloga. – Foi um grande erro ter vindo aqui. Eu tenho muito trabalho. — Não, Rocha, espere... – Muriel também se levantou. Nessa hora, Rocha notou que ela estava ainda mais linda do que nos outros dias. Usava um blazer preto e muito elegante por cima de uma camisa amarela que, como era de costume, possuía um decote muito generoso. Também usava uma saia curta fazendo par com o blazer. A pele morena era um convite irrecusável. – Eu ainda não respondi a pergunta. Rocha aguardou em silêncio. Depois se lembrou do embrulho que trazia no bolso interno do casaco. O pegou e colocou sobre a mesa. — Eu trouxe um presente. — Um presente? — Vai te ajudar a me entender. — Fiquei curiosa. Ela pegou o embrulho e rasgou o papel de presente. Era um CD. — The Best of B.B. King. – Muriel leu na capa. — Desculpe pelo incômodo, doutora. – enquanto ela lia o nome das músicas no encarte do CD, Rocha caminhou até a porta. – Você ainda tem muitos outros doentes pra curar. Não vou te atrapalhar mais. — Rocha... – Muriel pegou um de seus cartões de visita e escreveu alguma coisa no verso. Depois disso, contornou a mesa e foi até a porta, onde o investigador se preparava para sair. – Você ainda não ouviu a minha resposta. Conforme ela se aproximava, o coração de Rocha acelerava. Quando estava tão perto a ponto de ouvir a respiração do investigador, Muriel
parou e olhou em seus olhos. Ele estava apavorado e ela se divertiu com isso. Abriu seu casaco com delicadeza e colocou o cartão no bolso da camisa. Depois ficou na ponta dos pés e beijou os seus lábios de leve. — Eu não sou mais sua terapeuta. – cochichou em seu ouvido. Rocha demorou para voltar à realidade. A psicóloga voltou para sua mesa como se nada tivesse acontecido e se sentou. — Eu... — Vou mandar meu parecer sobre você para o delegado Duval, Rocha. – ela sorriu. – Talvez você seja mesmo um mal necessário. — Eu... — O meu telefone particular está no cartão, mas tem uma condição para que você me ligue. – ela disse, colocando o CD dentro da bolsa que estava sobre a mesa. — Qual? – Rocha estava voltando à realidade. — Só me ligue quando tudo estiver acabado. Tudo mesmo. — Certo. – Rocha saiu da sala. Muriel sorriu para si mesma. *** O caderno continha todos os planejamentos para os crimes. Era onde ele, de fato, arquitetava todos os detalhes. Seria uma prova importantíssima para a polícia. Poderia, inclusive, ajudar a identificar o verdadeiro Assassino da Cruz, com análises de DNA e outros tipos de perícia. Até mesmo a análise da caligrafia do criminoso poderia ajudar a encontrá-lo. Mas Rocha preferiu ficar com ele. O investigador fez isso porque sabia que tudo acabaria naquela noite. A verdade é que não importava qual seria o final derradeiro, já que, antes do nascer do sol, um dos dois estaria morto. Em poucas horas ele estaria cara-a-cara com o Assassino da Cruz. Se tudo desse errado e o assassino se saísse vitorioso no embate, Rocha acabaria morto e ninguém jamais saberia a identidade real do criminoso. Esse era o preço a ser pago e ele aceitaria de bom grado. Não acreditava em destino, mas sabia que, de alguma forma, estava predestinado a seguir por aquele caminho. Thomas pegou as chaves de um carro civil, sem identificação da polícia. Um Renault Clio preto, que não levantaria muitas suspeitas e que ficaria bem escondido durante a noite. Estacionaram o carro uma quadra acima do local onde o caderno marcava que seria o crime. Era longe o bastante para não despertar suspeitas, mas perto o suficiente para que pudessem ver tudo que estava acontecendo. Chegaram muito antes do horário marcado e passaram praticamente a tarde
inteira ali, a base de fast foods, muitos cigarros e algumas latas de refrigerante. Nesse tempo, Rocha planejou mentalmente uma série de rotas de fuga, para o caso de alguma coisa dar errado. O local era muito grande e sombrio, talvez algum tipo de fábrica abandonada. Ao mesmo tempo, os arredores eram desertos, já que não havia nem uma casa por perto. O lugar era exclusivamente comercial. A rua era pouco movimentada, mas poucos metros acima, havia uma avenida perpendicular muito agitada, onde havia alguns bares. A porta que parecia ser a entrada principal da fábrica era bem próxima da esquina e, conforme o dia foi escurecendo, ficou evidente que alguns dos postes elétricos daquela região estavam com as luzes queimadas. Isso dificultava as coisas. Quando a noite finalmente caiu, Thomas avistou um carro que se aproximava lentamente do local. Rocha havia tirado alguns minutos para descansar, depois de muita insistência do seu parceiro, e agora havia sido dominado por um sono atrasado e completamente atribulado. — Rocha! – Thomas disse, enquanto o sacodia. – Olha ali. Era um utilitário. Um imponente Toyota SW4, que parou em frente à entrada da fábrica. Alguns segundos depois, um homem desceu dele. Embora estivesse longe, pela sua silhueta, parecia ser um homem forte e saudável, em plena forma física. Ele acendeu um cigarro e o fumou por completo. Rocha sabia que ele estava disfarçando, se certificando de que não havia ninguém por perto. Quando acabou o cigarro, contornou o carro e abriu o porta-malas. Retirou de lá um grande saco preto e o levou para dentro da fábrica. Voltou alguns minutos depois e retirou outro saco semelhante do mesmo local. E então voltou para fora novamente, dessa vez para alarmar o carro e fumar mais um cigarro. Parecia esperar alguém que não chegava nunca. Quando o cigarro acabou, jogou a bituca na rua e entrou no galpão, fechando as portas logo atrás de si. — Vamos. – Rocha disse. Eles desceram do carro e correram até o galpão. Não podiam simplesmente escancarar as portas e entrar. O homem poderia estar do outro lado, esperando com uma arma até que alguém entrasse e ele pudesse metralhá-lo. Decidiram procurar uma entrada alternativa, como uma porta de serviço ou alguma coisa parecida. E não demorou muito até que Thomas achasse uma entrada ideal. Rocha entrou primeiro. Era uma entrada/saída para funcionários, que, provavelmente, levaria até um vestiário ou uma cantina. Logo na entrada, havia um velho cartão-ponto do tipo analógico, que não era usado há muitos e muitos anos. O investigador seguiu por um corredor escuro, em direção a uma vaga luz que reluzia fraca, muito à frente. Passou por algumas portas com inscrições que não conseguiu ler, embora acreditasse que fossem almoxarifados, despensas, banheiros e coisas do
gênero. Quando chegou na sala ao fim do corredor, o local onde havia visto a luz antes, Rocha percebeu que ela não vinha necessariamente dali, e sim de um outro cômodo, este muito maior. O cômodo iluminado ficava ao lado e deveria ser o local onde, de fato, funcionava a fábrica. Ele abriu a porta com cuidado e entrou agachado. Depois a segurou por alguns segundos para que Thomas pudesse entrar. Foi nesse momento que notou que estava sozinho. Voltou alguns passos pelo corredor, mas Thomas não estava lá. Havia ficado para trás, ou se perdido em algum lugar na escuridão. Não poderia esperar. A porta que dava acesso ao salão iluminado estava entreaberta. Rocha se agachou e olhou por ela. O homem que havia entrado antes estava lá, abrindo um dos sacos que ele descarregara do utilitário. Rocha estava certo em sua suposição. Eram pessoas que estavam dentro deles. Não podia dizer se estavam vivas ou mortas, mas, com toda certeza, eram pessoas. Depois de livrá-las dos sacos, o homem as algemou nos pés de uma das máquinas de costura parafusadas no chão. Isso serviu para confirmar que aquelas pessoas ainda estavam vivas, afinal, ninguém precisaria algemar cadáveres. O homem colocou as mãos no joelho para descansar assim que terminou o serviço. Rocha sabia que aquela era a hora de agir. Levantou-se e invadiu a sala com todo cuidado. Se esgueirou por entre as sombras, abaixado, mas com uma visão clara o suficiente para enxergar todos os atos do suspeito. — Parado! Polícia! – disse, quando teve certeza que o homem não estava portando nenhum tipo arma. O homem se assustou. Levou alguns segundos até que finalmente erguesse as mãos. Ele parecia muito cansado, mas era forte e robusto. Aquele homem, com toda certeza, poderia ser o Assassino da Cruz. — Coloque as mãos na cabeça e fique de joelhos. O homem sorriu. — Foi difícil me achar, não é mesmo, Rocha? — Nem tanto, na verdade. – Rocha respondeu. — Ah, não me venha com essa… – o homem sorriu. – Eu te conheço. Sei bem como você trabalha. Se pudesse, teria me prendido antes. Mas eu sou muito mais esperto do que a maioria dos criminosos com os quais você já lidou. — Não dê tanto mérito a si mesmo. – Rocha disse. Ele mantinha a arma firme, apontada para o criminoso. – O que me impediu de te prender antes não foi sua inteligência ou qualquer coisa parecida. Você sabe muito bem disso. — Não, não sei. Pode me dizer o que foi? — Você não é quem eu estou procurando. Eu sei que você não é o Assassino da
Cruz. O sorriso no rosto do homem desapareceu. — Você é só mais um idiota no meu caminho. – Rocha disse. – E se não me der as respostas que eu quero ouvir, vai ser só mais idiota morto no meu caminho. Onde está o Assassino da Cruz? — Você está diante dele. – o homem disse. — Eu sei disso... Mas não é você! — Ora! Como você pode dizer... — Eu sei bem quem você é. Acha que eu me esqueceria dessa sua cara? Eu também estava lá, Breno... Ou prefere que eu te chame de Líder? — Parabéns! – o homem bateu palmas. – Você se lembra de mim! — Sim. E dos seus dois amigos também. – Rocha apontou com o queixo para os homens algemados. — Foi dramático, não é mesmo? – o homem voltou a sorrir. – Você perdeu tudo que tinha. Ninguém se esqueceria do meu rosto mesmo. — Eu já te disse, cara. Não dê tanto mérito a si mesmo. Você é só um idiota e eu não vivo de passado. O que aconteceu não fez a menor diferença. Assim como não fará diferença quando eu botar uma bala no meio da sua cabeça. — Como pode dizer isso? – o sorriso novamente desapareceu, dando lugar a ira. – Eu tirei tudo de você, mas comigo não aconteceu nada. Eu fique livre e com toda a grana. O assalto saiu exatamente como eu planejei. — Não exatamente. Metade de seus amigos foram mortos e a outra metade foi presa. — E quem liga? Eu teria matado todos eles depois. — Mas você não matou o motorista. O homem titubeou. — Ele… — Esse foi seu erro. — Cale a boca! — Você não sabia do que ele era capaz, não é? Mas precisava dele para fugir, por isso deixou que ele vivesse. Só não esperava que ele iria reaparecer dois anos depois e transformar a sua vida em um inferno. Eu sei de tudo. — Rocha! Você está bem? – Thomas apareceu atrás do homem, do outro lado da sala. Sua arma apontada para a cabeça do suspeito. — Claro. Nunca estive melhor. — Você conseguiu. Pegou ele. — É… Com certeza. Alguns segundos de silêncio se passaram. Segundos que pareciam uma
eternidade. Rocha podia ouvir seu próprio coração bater. Mas sua mão se matinha firme, imóvel com uma rocha, por assim dizer; a arma apontada para a cabeça do suspeito. De repente, a sua mão se movimentou. A pistola já não estava mais apontada para o Líder e sim para Thomas. — Como você conseguiu enganar todo mundo, Luciano? – disse, finalmente. Thomas pareceu surpreso, por um pequeno instante. Depois sorriu. Abaixou a arma e a guardou em seu coldre, embora Rocha continuasse mirando nele. Parecia satisfeito. — Eu sabia que você ia descobrir. — Não foi tão difícil, na verdade. Eu sabia que tinha algo errado com você desde o primeiro momento que te vi. — Eu não duvido. Você é esperto. — Quem me colocou no caminho certo foi a sua mãe. — Eu imaginei. – Thomas disse. – Eu sabia que você acabaria falando com ela, mais cedo ou mais tarde. — Estava tudo lá, no seu quarto. Os livros, os códigos... Um garoto perfeito demais com um segredo muito bem escondido. Um piloto de fuga. O seguro que você deixou para sua mãe era muito maior do que o de um general e você era só um simples cabo do Exército. Como um garoto de classe média podia ter tanto dinheiro assim? — Parabéns. – Thomas sorriu. – Mas me diga uma coisa… Como descobriu que era eu? — Seus olhos. — Como? — Quando eu vi a foto que a sua mãe mostrou, aquela de quando você era criança, os olhos me chamaram a atenção. Eu já os tinha visto antes. Então ela me mostrou uma foto mais recente e eu tive certeza na hora, mesmo com todas as plásticas que você deve ter feito. Os olhos nunca mentem. — Estou impressionado. — Eu sei que está. — Mas isso não foi suficiente, não é mesmo? — Não, claro que não. Mas aí aquele tiro veio bem a calhar. Você ficou fora das ruas e o Assassino simplesmente desapareceu. Até o mais idiota dos policiais teria entendido isso. — Ou não. – Thomas disse. – Ninguém desconfiou de nada. Ninguém além de você, é claro. — Quando você acordou, foi direto atrás do Breno. Não sei como conseguiu encontrá-lo, já que é óbvio que vocês não se viam há um bom tempo.
— Esse idiota viajou para a Colômbia e cheirou todo o dinheiro do assalto. – Thomas disse, olhando para o homem em pé entre eles. – Nem sei como ainda está vivo. Hoje em dia, ele tem menos dinheiro que você. — Então está muito fodido mesmo. – Rocha riu. — E não é? – Thomas também riu. – Ele me conhece, Rocha. Sabe do que eu sou capaz. E eu precisava que ele me ajudasse porque o tempo era curto e eu sabia que você já estava começando a desconfiar de mim. Ele atacou a delegacia enquanto eu fui atrás dos canalhas que ainda estavam faltando. — Como você conseguiu sair do hospital? — Não faz nem ideia? — Suborno. — É claro. — Chamei uma vadia e paguei uma das enfermeiras para garantir que ninguém me incomodaria por quatro horas. Tempo mais do que suficiente para matar todos os que estavam faltando. — Enquanto isso, o seu capanga tocava o terror lá na frente da DHPP. — Exatamente. – Thomas disse. – Você é bem esperto, Rocha. Descobriu muita coisa mesmo. Mas por que você não contou para o Duval? Ele teria acreditado em você. Rocha não respondeu. — Ah, é claro. Você queria que eu terminasse o serviço. Queria que eu matasse todos os outros. Só então ia querer me pegar com as suas próprias mãos, não é mesmo? — Eu já te disse muitas vezes, garoto. Não sou um santo. — É claro que não. Está longe disso. Você quer vingança tanto quanto eu. Você desejou matar todas aquelas pessoas tanto quanto eu desejei. Mas não teve coragem. — Coragem. Acha que foi isso que me impediu? — É claro que... Rocha interrompeu a frase de Thomas com um disparo. O tiro acertou exatamente o meio da cabeça do homem que estava entre eles. O Líder ainda permaneceu um ou dois segundos de pé antes de cair de joelhos e desfalecer para a direita. Uma poça de sangue se expandiu, avançando cada vez mais em direção aos dois homens. — Nunca precisei de coragem para matar alguém. Nunca. O que me difere de você é outra coisa, garoto. Uma coisa que você nunca vai ser capaz de entender. Thomas estava pálido. Ele realmente não esperava por aquilo. Ainda assim, não conseguia disfarçar o riso cínico no canto da boca. Era como se Rocha o tivesse poupado de algo que ele teria que fazer mais tarde. — Realmente… Eu estava enganado sobre você.
— O assunto agora não sou eu. – Rocha também abaixou a arma, mas não a guardou no coldre. – Quero saber de você. Me conte tudo. — Por que eu deveria? — Porque é exatamente por isso que estamos aqui. — Esperto como sempre. – ele deu alguns passos e puxou uma cadeira que ficava ao lado de uma das mesas de costura. – Se importa que eu me sente? Rocha acenou negativamente. — Obrigado. Bom, você já sabe quem eu sou e o que eu fazia. Também sabe que esse nobre senhor que você acabou de matar me contratou para dirigir o carro de fuga de um assalto há quatro anos... — Quero que diga algo que eu não sei. — Eu não sabia que meu pai e meu irmão estavam lá. – Thomas disse, ignorando a interrupção de Rocha. – Como eu ia imaginar? Também não sabia você estaria lá. Quando cheguei em casa, minha mãe estava saindo desesperada, indo para a delegacia. É impossível dizer como eu me senti. Era minha culpa. Eles tinham morrido por minha culpa. Eu sabia disso, mas não queria acreditar. Queria culpar outra pessoa. — E então os jornais te ajudaram nisso e disseram quem era o culpado. – Rocha disse. — Exatamente. Eles não disseram o seu nome, mas falaram que havia um policial lá dentro e que ele tinha matado os reféns tentando acertar os assaltantes. E quando nós estávamos fugindo, ele me disse que alguém havia atirado antes do seu pessoal. – Thomas apontou para o corpo do Líder no chão. – Eu tinha alguém para culpar. — É isso que a gente procura, não é mesmo? — Com certeza. Eu precisava de alguém para culpar. De alguém para fazer pagar por tudo. Não foi fácil descobrir seu nome, se quer saber. Ainda que a polícia seja podre, alguns policiais são bem leais. Eu precisava ser um de vocês se quisesse saber de tudo. Mas eu não queria que minha mãe soubesse que eu fazia parte daquilo. Ela precisava me ver com um bom filho e a única forma de fazer isso era desaparecendo. Peguei metade da minha parte no assalto e fiz um belo seguro de vida, com a minha mãe sendo a única beneficiária. Esperei pacientemente pelo prazo de carência e só então simulei o acidente. Tive que pagar para um cara do IML forjar as provas dizendo que eu havia adormecido no volante. No fim deu tudo certo e minha mãe recebeu o dinheiro. Ela precisava mais do que eu. — Um gesto nobre, vindo de um assassino. — Obrigado. – Thomas sorriu. — Como você conseguiu entrar para a polícia? — Isso foi simples. Eu não tinha tempo para fazer um concurso e passar por
todas essas burocracias brasileiras. Nessa hora, a outra parte do dinheiro foi muito útil. Alguns subornos, alguns contatos com um ou outro deputado e algumas cirurgias plásticas depois e o cabo Luciano Alvarenga havia se transformado no Investigador Thomas Moretto. Um novato na polícia, mas com alguns casos resolvidos e um futuro brilhante pela frente. — Muito interessante. Agora só faltava me encontrar. — Exatamente. E eu ainda não tinha ideia de como ia fazer isso, mas precisava descobrir quem era você. Só depois que te matasse é que eu pensaria em como seria a minha vida a partir dali. Rocha também puxou uma cadeira e se sentou. A história estava ficando muito interessante. Porém, ele continuava com a arma na mão. Não ousaria guardá-la. — Sabe quem me contou sobre você? — O Duval. — Na mosca! Ele se sentia culpado. Não sei por que, mas ele achava que você não merecia ter sido afastado do DHPP. Não foi muito difícil fazer com que ele falasse o seu nome, na verdade. Te encontrar, depois disso, foi mais fácil ainda. Eu te segui algumas vezes. Revirei aquela lixeira que você chama de casa. Fui nos bordéis que você frequentava… Até provei aquela puta por quem você se apaixonou. Ela era boa. Como era o nome mesmo? Marcela… Manuela… Ah! Michelle. Isso. Michelle. Rocha quase ergueu a arma e atirou, mas manteve-se firme. Seus olhos se encheram de ódio. — Aliás... Me desculpe por tê-la matado, mas foi preciso. Você sabe como é. Eu não podia deixar testemunhas. Mas sou muito grato a ela, preciso dizer. Só consegui entrar no prédio por causa dela. Aquele juiz idiota tinha um acordo com os seguranças, sabia? Quando as putas chegavam, eles desligavam todas as câmeras. A mulher dele não poderia ter provas que ele já tinha fodido todas as putas de São Paulo. É hilário, não acha? A sua medida de segurança facilitou a sua morte. Foi muito divertido. — Por que você não me matou na primeira oportunidade? Podia ter simplesmente atirado e acabado com tudo. — Eu ia fazer isso mesmo. Mas depois me toquei que seria fácil demais. Você merecia algo especial. E eu não queria só te matar. Eu queria te destruir, por dentro e por fora. Rocha sorriu, ainda que seus olhos transbordassem de ódio. — Eu sou uma pessoa muito religiosa, sabia? Leio a Bíblia todas as noites, antes de dormir. Admiro os métodos cruéis do Nosso Senhor Todo Poderoso . Ele sabe ser dramático. — E como. — Pois é. A ideia veio Dele.
A expressão de Rocha fez com que Thomas sorrisse. — Não se preocupe, eu não sou maluco. Eu não acho que falo diretamente com Deus, se foi isso que pensou. A ideia veio Dele, mas indiretamente. Você sabia que Simão Pedro era o mais desprezível dos apóstolos? Gostava de resolver tudo com violência. Ele cortou a orelha de um cara quando Jesus estava sendo preso. E sabe o que Jesus disse para ele? — “Quem vive pela espada, pela espada morrerá”. – Rocha disse. – Eu lembro de tudo que o professor disse. — Ah, é verdade. Ele foi bem útil. E, falando do Simão Pedro, ele não te lembra alguém? Sua mãe não escolheu seu nome ao acaso, Pedro Rocha. Com certeza não. Pedro não era digno de morrer como o mestre. Ele foi crucificado de ponta cabeça. Quando eu soube disso, as ideias afloraram na minha cabeça. — Mas por que você não fez isso comigo logo de uma vez? Por que matou todas essas pessoas antes? Você não queria que… Rocha parou a frase no meio. — Agora você entendeu tudo, não é mesmo? – Thomas não conseguia conter o riso. — Na verdade, não foi você quem matou aquelas pessoas. – Rocha disse. — Não. — Fui eu. — Exatamente. Depois de matar esses últimos três, você confessou para mim o seu plano de vingança terrivelmente arquitetado. – Thomas disse, saboreando cada palavra que saía da sua própria boca. – Você escreveu seu nome nas cenas do crime porque queria voltar para as ruas. Você armou tudo isso com muito cuidado. — E você teve que me matar, porque eu não me rendi quando você tentou me prender. Thomas aplaudiu lentamente. — Eu estou muito emocionado, Rocha. Seu raciocínio é impressionante. Aquele livro que você roubou do meu quarto quando visitou a minha mãe será uma ótima prova. Eu sei que ele está na sua casa, já que eu nunca o vi na delegacia. Rocha ficou em silêncio, enquanto Thomas aproveitava aquele momento. Era sua glória. Ele havia esperado por aquilo. Contava os dias desde que a primeira ideia do plano passou pela sua mente. Agora, finalmente, o culpado pela morte de seu pai e seu irmão iria pagar. — É incrível como as pessoas são... – Rocha disse, então. – Quando elas se prendem a uma ideia, um motivo para a vida... Se agarram com tanta força que nada mais importa. Nem mesmo a razão, a lógica... Ou a verdade. — Foda-se a verdade. Eles terão certeza de que você matou essas pessoas e é
isso que importa. — Claro. Não tenho dúvidas. Mas, e você? — Do que você está falando? — Não fui eu quem matou seu pai e seu irmão. Você sabe muito bem disso. Não importa o que aconteça. Não importa quantas pessoas você acuse, quantas pessoas você mate. No fundo, você sabe quem matou eles… Rocha virou o jogo. O sorriso de Thomas se esfarelou. — Cale a boca… — Você matou eles. — CALE A BOCA! — VOCÊ. MATOU. ELES. Thomas se levantou e chutou a cadeira com uma força amplificada pela ira. Ela rodopiou no ar e acertou os homens algemados aos pés da máquina, fazendo com que eles despertassem, assustados. Pela primeira vez, Rocha notou que suas bocas estavam lacradas com um adesivo silver tape e que havia sangue em suas roupas e em seus cabelos. Haviam sido atingidos com alguma coisa pesada na cabeça. Eles começaram a se agitar, desesperados, a mente finalmente entendendo onde estavam e o que estava acontecendo. Thomas esfregava os olhos compulsivamente, como se tentasse impedir que lágrimas saíssem deles. Os gemidos abafados dos homens só serviam para irritá-lo ainda mais. — Ah! Calem a boca todos vocês! Antes que Rocha pudesse fazer qualquer coisa, Thomas retirou a arma do coldre e atirou nos homens. Dois tiros certeiros, bem no centro da testa de cada um deles. Seus corpos voltaram à posição inicial de quando estavam desmaiados. Ao mesmo tempo em que Rocha erguia novamente sua arma, Thomas mirou em sua cabeça, mas não atirou. — Você matou eles. – Thomas disse. — Não. Foi você. – Rocha respondeu. – Você é o Assassino. Você matou eles e matou aquelas pessoas no banco, também. Você matou seu pai. E depois, você matou seu irmão. — NÃO! — Se não tivessem assaltado o banco, eles ainda estariam vivos. Você os matou por dinheiro. — Não! Não… Eles não deveriam estar lá. — Mas estavam. E você deixou que eles morressem. — NÃO! FOI VOCÊ! — Pode tentar se enganar. Mas, no fundo, você sabe… Thomas atirou. Rocha largou a arma e caiu de joelhos quando sentiu sua carne sendo dilacerada pelo metal veloz e incandescente. Seu coração acelerou e ele sentiu
uma estranha sensação de formigamento no braço. O sangue quente alcançou sua mão poucos segundos depois. O tiro havia acertado seu ombro direito. — Está sentido isso? – Thomas gritou, enquanto avançava na direção de Rocha. Ele mantinha a arma na direção do investigador, segurando-a com as duas mãos. – Isso se chama dor, seu filho da puta! — Ah, garoto… – Rocha se levantou lentamente, cobrindo o ombro atingido com a mão esquerda. – Você é muito inocente. Isso está longe de ser dor de verdade. Eu convivi com a dor durante toda a minha vida… — Eu vou te matar! Vou destruir a sua vida. Todo mundo vai saber quem é você… O monstro que você é. E eu vou recomeçar a minha vida muito longe daqui. Rocha gargalhou. — Eu tenho que admitir que você pensou em quase tudo. — Eu pensei em tudo! — Não. Faltou um detalhe. — Do que você está falando? — Acha mesmo que eu sou tão idiota a ponto de vir aqui sozinho? — Thomas… Abaixe a arma. – uma voz ecoou no ar, ao mesmo tempo em que passos eram ouvidos. Thomas se virou para trás a tempo o suficiente de ver Duval e outros policiais saírem das sombras. Eles estavam com as armas em punho. — Não! – Thomas gritou. – Você não pode… — Nós sabemos de tudo, Thomas. – Duval disse. – Não faça nenhuma idiotice. — Não pode ser... — O Rocha me contou tudo logo que voltamos da casa que encontramos hoje… – disse Duval. – Da sua casa. — Não, não, não… NÃO! – Thomas parecia descontrolado, apontando a arma para cada um deles, um de cada vez, sem saber exatamente em quem firmar. – Não era pra ser assim! — Simplesmente se entregue, garoto. – disse Rocha – O jogo já acabou e você perdeu. — Cale a boca! Não acabou nada! Só acaba quando eu disser que acabou. — Acabou sim. – Duval disse. – Você confessou os crimes na frente de todos. Além do mais, uma das enfermeiras do hospital sobreviveu. Ela disse que ninguém invadiu o seu quarto. Que foi você quem a atacou. Thomas estava coberto de suor. Ele caminhou lentamente até a máquina onde os dois homens mortos estavam algemados. A arma ainda dançava no ar, fixando em todos os policiais e, ao mesmo tempo, em nenhum. — Então é assim que vai acabar? – disse, quando sentiu suas costas tocando no metal gelado da máquina. – Eu abaixo a arma e passo o resto da vida apodrecendo na
cadeia? — Na melhor das hipóteses, sim. – disse Rocha, sem esconder o sorriso. – Mas trinta anos passam bem rápido... Thomas sorriu de volta. Abaixou a arma lentamente. Suas pernas se flexionaram, como se um grande peso tivesse sido colocado sobre suas costas. Ele abaixou a cabeça, enquanto os policiais de Duval avançavam lentamente, as armas e as algemas preparadas. — NÃO! – ele gritou, de repente, fazendo todos pararem. – Eu não vou te dar esse prazer. Thomas levantou a arma tão rápido quanto podia. Rocha se preparou para se jogar no chão, mas não foi preciso. Não era ele que Thomas pretendia acertar. A arma cortou o ar com um assovio e pousou em sua própria boca, que ainda pronunciava as últimas sílabas da palavra “prazer”. O gatilho foi puxado e um som opaco tomou conta do lugar. Uma massa pastosa de sangue, cérebro e ossos explodiu em todas as direções, tingindo as máquinas de costura e o chão. Thomas Moretto – ou Luciano Alvarenga – desabou sobre os outros três corpos, formando uma grotesca montanha da morte, coberta de vermelho e de culpa. Duval correu até Rocha. — Você está bem? — Nem fodendo. — Ótimo, então. – o delegado disse. – Isso é para você aprender a nunca mais esconder as coisas de mim. — Se eu tivesse te contado, você teria estragado tudo. — Ah, claro. — Porra, eu achei que você ia entrar quando ele atirou em mim. Ele podia ter me matado! — Eu fiz o que você pediu. – Duval riu. – Só entrei quando você me chamou. O delegado segurou os braços de Rocha enquanto ele se esforçava para ficar de pé. O sangue ainda jorrava de seu ferimento no ombro. — Que merda... – o investigador disse, guardando a arma no coldre e acendendo um cigarro. – Eu até gostava do garoto. Ele teria sido um bom policial. — É bem a sua cara dizer isso de um assassino, Rocha! — É a verdade. — Eu preciso de uma boa dose de whisky depois dessa. E de férias. De férias muito longas. — Só quando tudo acabar, Duval. — E ainda não acabou? — Ainda falta um.
*** — Você não vai poder ficar escondido aqui pra sempre, Edmundo. – o homem disse, abrindo uma lata de cerveja e entregando as outras duas para Edmundo e Natan, que estavam sentados a sua frente. – Daqui a pouco os canas vão te achar, e se você se foder, eu vou me foder junto. — Relaxa, Rato. Ninguém sabe que eu estou aqui. – Edmundo respondeu. – Eu só preciso me esconder por um tempo, até que a poeira abaixe de vez. — Mas que merda você fez? — Eu fiz o que era preciso e ninguém tinha desconfiado. Mas aquele desgraçado... — O tal do Rocha? — E quem mais seria? Eu preciso meter uma bala na cabeça daquele filho da puta. — Tô sabendo que você já tentou fazer isso várias vezes e, no fim, foi ele quem te fodeu... — A situação vai mudar logo, Rato. Eu e o Natan vamos desaparecer por um tempo. Acho que vamos para o Rio esfriar a cabeça e comer umas gostosas. Só até eles se esquecerem da gente. Depois eu volto e corto todas essas pontas soltas. — Você assistiu ao jornal hoje? – Rato perguntou. — Não. — Prenderam o cara lá... — Que cara lá, porra? — O tal do Assassino da Cruz. – Rato disse – Parece que pegaram o cara certo, agora. — E quem era? – Natan perguntou. — Não disseram o nome, mas parece que ele foi pra vala também. — Muito conveniente. – Edmundo disse. — O tal do Rocha é linha dura pra caralho, né? Ele não brinca não. Eu conheço um truta que já se fodeu bonito não mão dele. O cara faz qualquer um mijar nas calças. — Chupa o pau dele então, seu viado! – Edmundo gritou, amassando a lata de cerveja e deixando o liquido gelado cair por entre os dedos. – Tá apaixonado por ele, é? — Só tô dizendo, meu... – Rato disse. — Eu não tenho medo dele. — Então por que você tá fugindo? — Eu não estou fugindo, porra. – Edmundo respondeu. Ele ficou muito irritado
com o comentário. – Só estou dando um tempo. Todo mundo sabe que, pra avançar, às vezes é preciso recuar um pouco. Ver o quadro todo. — Tá bom... Só sei que eu não ia querer esse cara na minha cola. – Rato disse, enquanto usava os dedos para enrolar uma pequena quantidade de erva em um pequeno cilindro feito de papel de seda. — Pode até ser, Rato. – Edmundo abriu a caixa de isopor que estava no chão entre eles e tirou dela uma outra lata de cerveja. – Mas quando ele souber da surpresa que eu preparei pra ele, até o grande Pedro Rocha vai tremer na base. — E que surpresa é essa? — Você vai ver, meu amigo. Você vai ver.
Capítulo Vinte e Quatro Pedro Rocha nunca tinha entrado no mar. Ainda que houvesse belas praias próximas a capital paulista, que ele poderia visitar em qualquer dia de folga, a mera possibilidade de se ver num lugar como aquele já enchia seu coração de desespero. Seu irmão mais velho havia morrido afogado numa excursão escolar no Guarujá, quando Rocha ainda tinha sete anos. Desde aquele dia, criou uma aversão tão grande a praias que nunca ousou sequer se aproximar da areia. Enquanto caminhava cada vez mais para dentro do mar, com a água fria penetrando na malha de sua calça jeans escura e congelando suas pernas, Rocha quebrava aquela promessa. As poucas pessoas por perto olhavam curiosas para o homem completamente vestido, de casaco e botas, que adentrava cada vez mais no mar, como se fosse um prisioneiro prestes a ser executado. Era isso que ela queria e era por isso que ele estava ali, enfrentando todos os seus medos. Não sabia nadar e suas pernas pareciam prestes a paralisar. Se as ondas fortes o puxassem para o fundo, o mundo poderia dar adeus ao investigador Pedro Rocha. Mas as ondas estavam calmas, como se respeitassem profundamente aquele homem e o que ele estava prestes a fazer. Quando a água alcançou a altura de seu peito, ele parou; as mãos para cima, tentando impedir que o objeto que segurava fosse atingido pelas ondas. — Acabou, Michelle. – disse, tropeçando nas palavras. O medo estava dando espaço à tristeza. – Eu peguei ele. Peguei ele pra você. Ficou em silêncio por alguns segundos, como se aguardasse uma resposta. Qualquer coisa que pudesse aliviar a dor indescritível que sentia no peito. Mas a resposta não veio e a dor tornou-se ainda mais lancinante. O som das ondas era a única coisa que parecia trazer algum conforto para sua mente. — Eu teria morrido por você. Eu teria… Nunca fui bom com palavras, você sabe. Sou ainda pior com relacionamentos. Mas eu queria que a gente tivesse dado certo, Michelle. Queria ter passado mais tempo com você… Agora tudo acabou. Ele pensou em enxugar as gotas de lágrima que começaram a rolar de seus olhos, mas chegou à conclusão de que não havia necessidade. Não importava mais. — Eu não sei como as coisas serão daqui pra frente, mas sei que nunca vou te esquecer. Nunca vou encontrar uma mulher que me faça sentir o que você faz… O que você fazia. Olha… Eu só quero dizer que espero que você fique bem, onde quer que esteja. Que tenha achado um lugar melhor. Um lugar tão bom quanto você merecia. Eu sei que nunca nos veremos outra vez. Nem mesmo quando eu morrer, porque, se o céu
existe, eu não serei bem-vindo nele. Mas… Eu te prometo que, enquanto eu viver, vou pensar em você. Enquanto eu viver vou… Te amar. As lágrimas inundaram seu rosto. Com muita dificuldade, ele abriu a urna que carregava e olhou o seu conteúdo. Aquilo era tudo que restava dela. Tudo que restava da mulher que ele amava. Sacudiu as mãos e o vento lançou as cinzas no ar. Elas rodopiaram como pássaros, livres e selvagens e desapareceram na imensidão do céu. — Adeus, Michelle. Eu te amo. O investigador chegou ao hotel completamente encharcado, deixando um rastro de água por onde passava. O gerente pensou em reclamar, mas achou melhor ficar quieto. Aquele homem era assustador. Ainda mais agora. Rocha tomou um banho quente e demorado e só saiu debaixo da água quando começou a se sentir completamente relaxado. Foi até o bar e bebeu três doses de whisky. Comeu qualquer coisa gordurosa antes de voltar para seu quarto. Queria trabalhar, mas Duval o obrigou a tirar uma semana de folga antes de voltar para a delegacia. Ele dizia que Rocha estava com a cabeça muito cheia e que poderia fazer alguma besteira se não se esquecesse um pouco de seus problemas. O investigador achava aquilo uma grande idiotice, mas como precisava jogar as cinzas de Michelle no mar, decidiu aceitar a imposição do delegado. Dormiu pouco e foi acordado muito cedo, antes do nascer do sol, com o som escandaloso do celular. Uma nova mensagem havia acabado de chegar. Rocha pegou o aparelho e clicou em abrir. Fim das férias. Temos um novo caso. Venha para a DP agora. É urgente! Ass: Duval. Colocou o celular na mesa de cabeceira e sorriu. Estava de volta. Alguns minutos depois, desceu para a recepção para entregar a chave e pagar as diárias. Enquanto procurava o dinheiro na carteira, encontrou um pequeno cartão de visitas. Era branco e tinha alguns números riscados no verso. Logo abaixo dos números, havia um nome. Muriel Santana. Pegou o celular, discou os números e ligou. Aquele era o momento certo para aquela ligação. Estava tudo acabado.
FIM
O Assassino da Cruz
Notas do Autor Assassino da Cruz foi o projeto mais difícil com o qual já trabalhei. Inegavelmente, também foi o mais prazeroso, afinal, acima de tudo ele é o resultado de muitos anos consumindo vorazmente todos os romances, filmes e séries de temática policial que eu via pela frente. Desde que comecei a escrever com o objetivo de viver da escrita, há mais de dez anos, eu quis contar essa história. Mas ela só começou a ganhar vida em meados de 2013, quando vi um concurso de roteiros para novas séries de TV. Como a ideia já estava bem fundamentada na minha cabeça, esbocei a história e comecei a trabalhar na personalidade dos protagonistas. Pedro Rocha ainda não tinha um nome próprio nessa época, embora eu já soubesse desde o início que seu sobrenome seria esse: Rocha. Ele transmite muitas ideias que não poderiam ser alcançadas com um outro nome qualquer, como Silva ou Moraes. Em sua essência, Rocha é um homem forte e inatingível, tanto física quanto mentalmente, e eu queria que essa sensação estivesse presente em seu nome. As pessoas que o conhecessem pensariam nele como alguém ríspido, difícil de ser compreendido e, acima de tudo, difícil de ferir. Uma pessoa impenetrável. Impenetrável como uma Rocha ou uma... Pedra. É, a redundância é boa, às vezes. Após vencer a barreira do nome, segui para sua personalidade e essa, definitivamente, foi a parte mais difícil. Muitos escritores – como eu já fiz muitas vezes – tendem a usar suas próprias experiências e ideais como base inicial para forjar a personalidade de seus personagens. Mas o Rocha é absolutamente diferente de mim. Diferente de uma forma que não dava só para escreve-lo fazendo exatamente o oposto do que eu faria. Ele é bem mais complexo do que isso. Eu tive que entrar de cabeça na sua mente e analisar com muita atenção todos os detalhes da sua psique. Por muitas vezes eu penei para entender como ele realmente se comportaria e determinadas situações. Enquanto eu sou introspectivo, calmo e até mesmo covarde, Rocha é exatamente o oposto. Corpulento e rude, decidido e valente, é o tipo de homem que não leva desaforo para casa. Que não vira a cabeça quando vê alguma coisa que não concorda. Se algo der errado, com certeza você iria preferir que ele estivesse ao seu lado ao invés de mim e eu não tiro a sua razão. Mas a maior característica do Rocha, pra mim, é a sua moral. Ainda que não pareça numa primeira análise, ele é um homem cheio de valores. Uma pessoa totalmente comprometida com a justiça e que jamais colocaria seus gostos e vontades
acima da lei. Alguém que prefere morrer a viver sem honra, mesmo que sua noção de honra também possa soar bem distorcida. Penso nele como um samurai do século XXI e isso sempre me ajudou a entendelo melhor. Rocha é incorruptível. Jamais faria algo se não acreditasse que aquilo é coisa certa a fazer. Em seus mais de vinte anos na Polícia Civil do Estado de São Paulo, nunca se envolveu em nenhum esquema ilícito. Ele se orgulha disso. E eu, como um bom pai que sou, também me orgulho. Já o delegado Duval, embora compartilhe dos mesmos ideais do investigador Rocha, ele sabe que, às vezes, é necessário ceder ao mal em nome de um bem maior. Ele sabe que a política rege o mundo e que para viver em meio aos macacos, é preciso saber dançar como eles. Acho que minha personalidade se parece mais com a dele, embora isso não me deixe totalmente satisfeito. Mas não podemos esquecer que ele é um bom homem. Ficou do lado do Rocha quando as coisas deram errado e provou o seu valor e a sua amizade muitas vezes. Bem, voltando a história, eu pretendia escrever uma série de dez capítulos de uma hora para participar do concurso promovido pela NET (chamado NETLAB), que escolheria novas séries para serem produzidas por alguns canais de TV a cabo. Trabalhei arduamente nisso, mas não foi suficiente. Acabei perdendo o prazo para inscrever o projeto e esse balde de água fria fez como que todo o trabalho fosse completamente abandonado. Anos depois, no final de 2015, enquanto revirava algumas pastas perdidas no computador, eis que me deparo com um documento de texto chamado ROCHA-EP01. Eu li o arquivo com muita atenção e me surpreendi com o que encontrei. O texto estava bom! Geralmente, costumo odiar o que escrevo, algum tempo depois, mas dessa vez foi bem diferente. E esse foi o gatilho que me fez voltar a trabalhar no projeto, que agora não seria mais uma série de TV e sim um livro. O título foi algo que me assustou, nos primeiros testes. Eu queria que o nome do personagem fosse destacado, então pensei em A ROCHA. Era perfeito, pois transformaria o nome do personagem num adjetivo, falando do investigador ao mesmo tempo em que mostrava suas características. Aquelas mesmas que eu descrevi anteriormente. Mas logo os problemas vieram. Primeiro eu me lembrei que havia um filme dirigido pelo Michael Bay e estrelado pelos grandes Sean Connery, Nicolas Cage e Ed Harris, que tinha exatamente o mesmo título em português. O segundo problema veio quando eu li o nome em voz alta... Não sei se você conhece – espero profundamente que não –, mas existe um gênero musical de qualidade extremamente duvidosa chamado... Adivinhe só: arrocha. Era só nisso que eu conseguia pensar quando olhava o título. Música ruim. Tive que descartar o nome. Ainda mais porque Rocha é um fã ardoroso do B.B. King. Usar
aquele título seria uma grande ofensa para ele. Então surgiu a ideia de usar um título e um subtítulo, como em “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, “O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel” ou “Bellini e a Esfinge”. Assim surgiu “Pedro Rocha e o Assassino da Cruz”, mas este título me pareceu grande demais. Por fim, decidi usar a mesma fórmula dos livros do Sherlock Holmes e mantive apenas “O Assassino da Cruz”. Só então fiquei satisfeito com a forma como ele soava. De todos os gêneros aos quais já me aventurei como escritor, o suspense policial é de longe o mais complexo. Não se trata apenas de contar uma história. Tratase de contar uma história incrível de uma forma incrível, ainda com a missão de surpreender o leitor a cada página, fazendo-o crer que a resposta está em um lugar quando, na verdade, ela está em outro. É claro que eu sei que todos os outros gêneros também têm essa missão, mas nos romances policiais, ela fica mais acentuada. E é justamente por esse motivo que existem tão poucos bons escritores do estilo, mas aqueles que se destacam, geralmente alcançam o status de gênios. É o caso de sir Arthur Conan Doyle e Edgard Allan Poe – os meus escritores favoritos no gênero –, como também de Agatha Christie, Patricia Highsmith, Raymond Chandler, Sophie Hannah, Harlan Coben (embora seus livros não sejam necessariamente policiais) e até mesmo dos brasileiros Tony Bellotto, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Patrícia Melo. Foi por isso que senti muito medo quando comecei a escrever O Assassino da Cruz. Medo de passar vergonha, é claro. Medo do fracasso, de soar infantil, de não concluir meus objetivos... Medo de não conseguir expressar tudo que o protagonista da trama me dizia nas centenas de noites que passei em claro, matutando sobre a trama. Se consegui me sair bem nessa empreitada, só você poderá dizer, amigo leitor. Mas não posso negar que me diverti muito. E não pretendo parar por aqui. Rocha já está cotado para pelo menos mais dois romances longos, além de uma dezena de contos que venho esboçando e que distribuirei gratuitamente no meu site. Espero que você continue me acompanhando nessa aventura.
Agradecimentos A jornada de escrever – e tornar realidade os devaneios do coração – realmente não é fácil. Aqueles que, como eu, se dedicam a esta profissão, sabem o quão penoso é transportar para o papel ou disco rígido, via pena ou teclado, um pensamento que, ao mais suave e desatento piscar de olhos, some sem deixar vestígios de que um dia existiu. Como era de se esperar, o número de pessoas a quem quero agradecer é muito maior do que esta curta página me permite. E como sempre tenho feito nos últimos anos, começo essa dedicatória de forma incomum: agradeço primeiramente a mim. Passei muitos dias preocupado com os detalhes, com os fatos, com a veracidade, com a amarração das centenas de pontas soltas. Enfim, com tudo que causa dor de cabeça em quem se propõem a escrever. Em várias situações abandonei o projeto, mas a vontade de ver o trabalho finalizado falou alto e eu sempre desengavetava os escritos dias depois de abandoná-los. Dessa forma, depois de tantas provações, acho que mereço meus próprios préstimos pelo trabalho pronto e assim eu o faço. Obrigado, Matheus Prado. Em segundo lugar, agradeço a minha esposa, amante, leitora beta e melhor amiga, Talita Galbiati. Se não fosse por ela, não sei onde teria chegado. Ou melhor, eu sei: em lugar nenhum. Você me mantém no caminho certo. Eu te amo muito, minha pequena. Se existe uma pessoa que fez a diferença no processo de finalização deste livro, essa pessoa foi a Taimy Vanini. Ela que, inicialmente, faria apenas a correção gramatical, acabou por realizar um ótimo trabalho de orientação e copidesque. Ela viu muitas pontas soltas que eu havia deixado passar e contribuiu de uma forma inexplicável. Não sei o que seria deste pobre livro sem você, Taimy. Muito obrigado. Agradeço ao meu pai, Valmir Prado, o homem mais incrível que já conheci, pela ótima influencia que ele exerceu sobre mim. Se não fossem aquelas centenas de gibis e livros guardados no baú, eu jamais teria desenvolvido o gosto pela leitura. Ah, obrigado por me mostrar o Mato Grosso inteiro no seu caminhão. Foram dias inesquecíveis que eu pretendo reviver em breve. Agradeço também a minha mãe, por sempre acreditar em mim. Por falar dos meus livros para todo mundo e por incentivar e alimentar o meu vício pela leitura. Mais da metade dos meus livros foram presentes dela. Agradeço também ao Adilson, pela dedicação e presteza a qual, com certeza absoluta, eu não mereço. Agradeço aos meus irmãos, Rodrigo e Giovana, pelas brincadeiras e pela
felicidade infinita. Metade do que eu sou hoje vem da infância incrível que passamos juntos. Vocês são as pessoas que eu mais amo nesse mundo. Agradeço ao Alisson Aguiar, o Alim, por ter me apresentado O Senhor dos Anéis e pela amizade sem fronteiras. Se não fosse você, eu jamais teria escrito uma única palavra. Eu gostaria muito que nos encontrássemos com mais frequência. Agradeço a minha amiga e também escritora Maria Netta, que há tantos anos me acompanha nessa jornada, sempre me dando bons conselhos e me incentivando a continuar. Agradeço aos meus sogros, Maria e José (Seu Zeca) pela ajuda inestimável em todos os momentos difíceis. E pelos almoços maravilhosos, também. E, é claro, por permitirem que eu levasse a filha de vocês para milhares de quilômetros de distância. Agradeço ao Weslei Morais e a Angelita Villa por serem as primeiras pessoas a lerem este livro. Eles foram responsáveis por me fazer acreditar que alguém poderia se interessar pelas coisas que eu escrevia e comprovaram que o Rocha era tão interessante quanto eu imaginava. Agradeço a toda a minha família, tios, tias, primos, primas, avós e amigos por sempre me incentivarem a seguir meus sonhos e por acreditarem em mim. Isso é muito importante. E agradeço também a você, leitor, por ter adquirido este livro. Foram muitos anos desde as primeiras linhas desta obra e não há felicidade maior do que vê-lo assim, pronto e sendo lido. Espero que continue me acompanhando nessa jornada.
Sobre o Autor O desejo de se tornar escritor sempre esteve presente na vida de MATHEUS PRADO, mesmo quando ele era novo demais para entender isso. Sempre fora apaixonado por livros e em pouco tempo, as histórias que lia já não eram capazes de distraí-lo. Ele queria contar suas próprias histórias e foi assim que tudo começou. Matheus nasceu no dia 12 de Fevereiro de 1989 na cidade de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, mas aos 11 anos, mudou-se para Umuarama, no Paraná, onde residiu boa parte de sua vida. Em 2014 mudou-se para Sinop, no Mato Grosso, onde vive até hoje. Cursou a faculdade de Maketing, mas achou chatíssima e por isso, desistiu do curso. É proprietário de uma agencia de Ilustração e Design Gráfico chamada MAORI CRIAÇÃO, especializada em design editorial. Aos 13 anos, iniciou sua jornada pelo mundo da escrita. Seu primeiro livro foi um romance de Fantasia Medieval inspirado em histórias como “O Senhor dos Anéis” e “O Rei Arthur”. Depois de centenas de modificações e melhorias, este livro se tornou o que hoje conhecemos como “Sangue na Água” e, muito em breve, ele será publicado. No ano de 2008, enquanto prestava o serviço militar obrigatório, descobriu sua paixão. As histórias da Segunda Guerra Mundial. Foi nessa mesma época que descobriu que seu tio-avô, Diogo, lutara em tal guerra, sendo participante da Força Expedicionária Brasileira, a FEB. Sentiu-se profundamente atraído por tal história e não conseguiu descansar até passá-la para o papel. Assim surgiu seu primeiro romance, “Os Últimos Heróis”, que conta em detalhes a participação de seu tio-avô na guerra. Além disso tudo, adora Rock de todos os tipos e atua como guitarrista sideman e freelancer em algumas bandas. O que mais odeia no mundo é a moda, porque, na verdade, ele se veste muito mal. As coisas que mais gosta no mundo são: assistir filmes com sua esposa Talita Galbiati, escrever e comer pizza fria. Ou os três ao mesmo tempo!
Se vocĂŞ quiser saber mais sobre Matheus Prado e suas obras, em especial o investigador Rocha, acesse o site: www.policialrocha.com.br
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