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reflexĂľes acerca de uma casa
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
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reflexões acerca de uma casa
TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
Jéssica Silvério Mendonça P O R Maria Cecília Loschiavo
ESCRITO POR ORIENTADO
JUNHO, 2019
em memĂłria de BenĂcio
PARA TODAS AS PESSOAS QUE AMO
Agradeço a todos que, durante esse longo período de aprendizado na universidade, cruzaram meu caminho e me disseram para não desistir. Agradeço aos meus amigos da FAU, da USP e da ETESP, além dos tantos outros que encontrei pela vida. Por todas as risadas e choros, por todo o apoio nas noites viradas para estudar, nos encontros casuais ou mesmo na mesa de bar, vocês fizeram cada momento valer a pena. Em especial, agradeço à Giovana, amiga do coração que sempre que possível me lembra do quão forte eu sou por estar onde eu estou. Agradeço ao meu companheiro Pedro, por todas as palavras de amor, carinho e apoio, além da constante disposição em me ajudar a fazer acontecer. À Cecília, minha orientadora, mais do que agradeço por me acompanhar e me guiar nessa trajetória que me fez crescer como pesquisadora, estudante e como pessoa. Serei eternamente grata pela sua companhia e ajuda, que tanto me fez crescer, e por nunca deixar de acreditar em mim. À minha família, devo a eles tudo o que sou. Esse momento não é meu, é nosso. Obrigada!
conteĂşdo
Introdução
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reflexões da urbanista A lógica do mercado imobiliário
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A lei do Inquilinato e seus efeitos
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O loteamento da periferia e suas questões
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Autoconstrução como solução
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O sonho da casa própria
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Autoconstrução, arquitetura da necessidade
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reflexões da arquiteta
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reflexões da moradora A casa da memória
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A casa lar
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A minha casa
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A casa mãe
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Considerações finais
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Referências Bibliográficas
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introdução
O TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO MARCA O FIM DE UMA TRAJETÓRIA
A trajetória de formação como arquiteto e urbanista revela-se, para muitos dos que a percorrem, como um fator determinante na formação pessoal enquanto indivíduo, influenciando campos da vida que não se restringem ao profissional e tampouco se limitam ao universo da arquitetura. Particularmente, a trajetória que a escola de arquitetura e urbanismo delineou na minha vida foi de extrema importância para minha compreensão de mim mesma, do meu passado e do que eu projeto para o meu futuro. Os primeiros devaneios dedicados à elaboração dessa pesquisa transitaram sobre os mais diversos objetos. Iniciou com a pretensão de um estudo teórico sobre moradias populares, discussão que tantas vezes foi levantada, do meu primeiro ao último ano de curso, e que em todas elas despertaram o meu interesse.
Logo, a ideia de um projeto de arquitetura que cruzasse essa temática - ou mesmo alguma das outras que costumam aguçar os meus ouvidos das tantas que nos foram apresentadas - assumiu o campo de objetivo. Porém, na mesma velocidade em que lá foi parar, também saiu, cedendo o lugar para mais algumas ideias que não duravam o suficiente na posição récem assumida para se tornar mais do que, de fato, uma ideia. Fato é que todo esse percurso confuso não perdeu sua validade no processo de definição desse importante momento da minha graduação - e não só da minha graduação, como fui logo perceber. Toda a indecisão que caracterizou o processo de definição do objeto de estudo da minha pesquisa me serviu para refletir, e foi esse processo de reflexão que me trouxe até aqui.
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Os devaneios que direcionaram esse processo de reflexão, ou melhor definindo o que se tornou, uma auto-reflexão, se resumiam a questionar as particularidades da arquitetura que saltavam aos meus olhos. Foram estes questionamentos que me conduziram à minha própria história, ao interesse em retomar à origem, à primeira arquitetura que me interessou, às primeiras memórias de uma edificação, de uma construção ou de seu processo, a algo que, no universo da arquitetura, eu poderia
definir como base para o momento no qual me encontro. E não foi preciso muito para encontrar essa conexão, pois ela se encontrava facilmente ao meu alcance, na forma da casa onde eu cresci.
introdução
ANTIGO 95B, OU COMO CONHECI A ARQUITETURA
Aqui, sinto a necessidade de discorrer um tanto sobre esse fio condutor de pensamentos que me conduziu até aqui, para que a natureza desse trabalho, que num primeiro momento pode soar genérica e com pouco foco, possua para quem o lê a mesma preciosidade, e explicite a pessoalidade que assumiu para mim. Pensar a casa onde cresci como primeiro objeto arquitetônico com o qual tive contato e pelo qual tive interesse aconteceu em meio a essa necessidade de entender um pouco sobre como surgiu o meu interesse pela arquitetura. E não apenas isso, também entender sobre essas tantas temáticas específicas que me passaram pela cabeça na escolha do tema desse estudo, e que particularmente despertaram meu interesse dentro da escola de arquitetura. Ao primeiro questionamento, atribuí a causa à maneira como essa casa me foi apresentada em minha infância. Explico: A casa que será objeto desse estudo se encontra na avenida Amália Golim Pagnoncelli, hoje numerada como 414 - mas comprada e por muito tempo nomeada como 95b -, no bairro Jardim Rosa de França, na cidade de Guarulhos,
na região metropolitana de São Paulo. No entanto, quando foi adquirida - em parcelas, vale ressaltar - pelo meu avô materno, ela não era muito mais do que um barranco, dentro de um lote, localizado no topo de um morro não tão alto, numa rua sem asfalto de uma região que pouco tinha conexão com a cidade de São Paulo. Ainda assim, estava mais próxima do centro urbano do que a antiga casa da família, que se situava na cidade de São Vicente, de onde migraram as pessoas que, com suas ações, resultaram no momento no qual me encontro. A proximidade do local onde se iniciava o desenvolvimento industrial e onde se concentravam as oportunidades de trabalho foi um fator determinante para que esse lote se tornasse a casa que é hoje. Adquirido pelo meu avô no ano de 1966, passou a ser casa em 1967, quando toda a família se mudou definitivamente. A primeira vez que essa data me foi contada, dei pouca importância. Mais tarde, porém, no meu processo de formação como arquiteta, esse fato ganhou outra conotação por se tratar de um período em que a ocupação das periferias ocorria como processo intrínseco às questões urbanas de São Paulo. Foi a partir daquele ano que
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Fig 1. Andrelino (avô materno) em frente ao lote do Antigo 95b recém adquirido em 1967
introdução
se iniciou uma série de transformações naquele espaço, que antes era barranco, e também naquela região, que antes era pouco mais do que um morro sem asfalto, protagonizadas pela minha família e, posteriormente, também por mim. A arquitetura não veio a mim de uma maneira acadêmica - não havia livros sobre prédios bonitos, muito menos sobre arquitetos famosos, nas estantes daquela casa. Na verdade, sequer havia uma estante. Também não veio por descendência profissional, pelo menos não aquela mais comum, em que pais, tios ou avós transmitem para os seus próximos sua paixão por essa arte. Para mim, a arquitetura chegou como necessidade. De início, para aquela família recém chegada a um lote vazio, a necessidade era de habitar com segurança e também criar um espaço para chamar de lar, responsabilidade que se iniciou com meu avô, executada com o método que mais tarde eu aprenderia ser chamado de autoconstrução. Essa forma de arquitetura se manteve quase que constante nos espaços que minha família habitou, fazendo crescer de dois cômodos e um banheiro para três casas, acolhendo os membros de três braços de uma mesma família e, eventualmente, a mim, já nos
anos 1990. Não posso dizer que houve um dia específico em que notei que arquitetura me interessava, mas aquela constância de sua produção, tanto na casa da minha família, quanto dos meus vizinhos e parentes, também a tornou constante em minhas memórias. São memórias de momentos vividos em comemorações familiares do “dia de encher a laje”, de brincadeiras no canteiro de obras - que também era o quintal para brincar -, ou até mesmo devaneios de criança projetando na imaginação uma mini casa para brincar. Hoje, vejo que são essas memórias que delinearam minha admiração inocente por algo que acabou se tornando tão grande para mim: a arquitetura. Feita essa reflexão, não foi difícil responder ao meu questionamento seguinte, que buscava entender os motivos daqueles interesses específicos durante os meus anos de graduação. E a resposta veio, ao meus olhos, em grande parte relacionada ao que venho discorrendo até então. Da mesma forma como a minha experiência de vida me influenciou a escolher a escola de arquitetura, essa mesma experiência também pode ser o motivo para os meus interesses particulares ao longo
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Fig 2. Fachada do Antigo 95b em 2019
introdução
da graduação. Crescer numa família de classe baixa matriarcal, que possui em sua história a luta por moradia na forma de autoconstrução, participação em programas habitacionais promovidos pelo Estado, e mais algumas tantas características que não são necessárias citar para que se faça entender, são ótimos motivos para querer entender essa história na estrutura social, política e econômica da formação de São Paulo. Não vou mentir e afirmar que esse foi, desde sempre, o motivo para o meu interesse. Mas agora, divagando sobre essa particularidade da minha formação, vejo essa influência e me sinto instigada a melhor investigar essa relação. O que torna esse trabalho precioso e pessoal para mim não é apenas a retomada às minhas origens para uma melhor compreensão do meu eu arquiteta. Isso, por si só, já me parece uma boa maneira de singularizar o momento em que me torno, de fato, arquiteta e urbanista. No entanto, os devaneios que me levaram para esses pensamentos foram os mesmos que me fizeram notar que nada disso estaria sendo escrito se eu não tivesse vivido o que vivi, não tivesse escutado o que escutei ou não tivesse lido o que li, nesses anos de estudo
na escola de arquitetura. O que me atraiu para este momento é especificamente a beleza de ter dado tantos novos significados a um espaço que inicialmente possuía um outro completamente diferente para mim. Olhar para a casa onde eu cresci e observar tantas outras camadas de conteúdo para aquela construção, e não apenas as das minhas boas ou más memórias, foi a mais agradável surpresa de compreender que, de fato, eu estava me tornando uma arquiteta. Tendo isso em mente, estruturei esse trabalho sob três olhares diferentes, mas vindo de um único indivíduo: o olhar da urbanista, o olhar da arquiteta, e o olhar da moradora. Hoje, olhar para esta casa como uma quase arquiteta me permite abordar sua existência sob diferentes aspectos, dentre o quais selecionei esses três que, para mim, formam uma boa combinação de significados para um todo que é tão plural. No primeiro capítulo, faço minhas reflexões como urbanista. Considerado o fato de que a casa se localiza na região metropolitana de São Paulo, o capítulo busca dissertar acerca do processo de urbanização de São Paulo e, principalmente, suas implicações no
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introdução
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modo de habitar das classes populares. O loteamento periférico autoconstruído - denominando como periferia toda região que se desenvolve às margens do centro urbano e industrial da cidade caracteriza-se como uma das modalidades de habitação popular mais comum (REIS FILHO, 1994, p. 35), tendo suas primeiras menções na literatura datadas entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX. Além disso, também fez-se necessário compreender mais a fundo a prática da autoconstrução - que está quase que intrínseca ao lote periférico - e como a sua crescente disseminação e reprodução se encaixam no período socioeconômico em que se tornou cada vez mais usual nas áreas periféricas. A literatura utilizada se baseia quase que integralmente nos escritos dos grupos de pesquisa da FAU1, que em meados da segunda metade do século passado decidiram ir em busca de compreender o que é a periferia. Essas pesquisas deram pontapé para uma série de estudos que se seguiram aos seus, realizados pelos alunos desses pesquisadores, que hoje são meus professores, e que, consequentemente, deram pontapé para o presente trabalho. No segundo capítulo, faço minhas 1 Formado por nomes como Nestor Goulart Reis Filho, Maria Ruth Amaral de Sampaio, Ermínia Maricato, dentre outros.
reflexões como arquiteta. Para tal, uso da experiência obtida nas diferentes atividades de projeto de edifício elaboradas durante a graduação. Aqui, a construção é o objeto de estudo, e o tempo foi o marcador utilizado para dissecar esse objeto. Como é característico de autoconstruções em lotes periféricos, o edifício se faz ao longo do tempo, de acordo com a disponibilidade financeira e/ou crescimento da família. No caso do antigo 95b, ocorreu pelos dois motivos. Assim, o capítulo objetiva desvendar a materialidade do objeto através do tempo, utilizando para tal, além das habilidades obtidas pela formação, as memórias familiares que percorrem os mais de cinquenta anos da relação famíliacasa. No terceiro capítulo, a reflexão é como moradora. Sob uma perspectiva fenomenológica, discorro sobre a minhas relação com a casa. Gaston Bachelard, fenomenólogo que estudou a poesia dos espaços - e também principal referência para o desenvolvimento desse capítulo -, afirma que a casa é é nosso primeiro universo, onde nos enraizamos dia a dia, tornando-a nosso “canto do mundo” (BACHELARD, 2008, p.24). Dito isto, busco esmiuçar o antigo 95b, meu canto
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do mundo, analisando sua essência de espaço habitado sob a perspectiva sensível de quem foi abrigado, de quem viveu a casa em sua realidade e também em sua virtualidade. Através do pensamento e, principalmente, da imaginação abastecida pela própria casa com imagens dispersas
e agrupadas, os valores da realidade são aumentados. São esses valores, ou essa realidade, que essa parte da pesquisa pretende abordar. Finalizo a pesquisa costurando essas três óticas, ou, ao menos, na tentativa de tal ato.
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Fig 3. Jéssica (autora) e Michele (irmã mais velha) brincando em um canteiro de obras em 1998
reflexĂľes da urbanista
A LÓGICA DO MERCADO IMOBILIÁRIO
propriedade imobiliária não estava de todo Do ponto de vista do urbanista, o antigo regulamentada, o passado de monarquia 95b é mais do que uma casa. Aos meus do país e a tardia abolição do regime olhos de urbanista, posso resumi-lo como escravocrata são alguns dos motivos para um edifício que foi autoconstruído em um que, ainda nesse período, não houvesse lote periférico da Região Metropolitana um mercado imobiliário significativo nas de São Paulo. A esse conjunto de cidades brasileiras. Ademais, a manutenção informações conecto alguns outros, da legislação portuguesa do período dentre os quais estão: a formação das monárquico, que corroborava para o periferias, o surgimento do lote periférico extraordinário atraso das atividades do e da autoconstrução enquanto prática setor da construção civil, somada ao disseminada e, talvez o principal deles, a retardo na regularização da atividade lógica do mercado imobiliário. A história empresarial, pouco contribuiu para o do mercado imobiliário é marcada pela certeza de que a desenvolvimento lógica que o orienta “Sendo a cidade uma imensa concentração de do mercado. sempre foi, desde a gente exercendo as mais diferentes atividades, O urbanismo do sua origem, a lógica é lógico que o solo urbano seja disputado por período imperial inúmeros usos. Esta disputa se pauta pelas definitivamente do capital privado. regras do jogo capitalista, que se fundamenta na não era referência Até a segunda propriedade privada do solo, a qual - por isso e só metade do quanto ao por isso - proporciona renda e, em consequência, século XIX, a é assemelhada ao capital.” (SINGER, 1982, p. 21) desenvolvimento
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de cidades. Principalmente perto do fim do século XIX, os centros urbanos já apresentavam um crescimento considerável de habitantes que não condizia com a infraestrutura sanitária, de transporte coletivo e viária existente, criando cenários de de desordem e feiura, nos quais os espaços destinados para as camadas mais pobres eram particularmente afetados. Um primeiro episódio que demonstra ser importante de citar para a compreensão da lógica capitalista que rege o mercado imobiliário é o da promulgação da Lei de Terras. Até esse momento, a posse da terra ocorria por meio de concessões feitas pelas câmaras municipais para quem pudesse pagar os encargos relativos a sua posse, além da construção do edifício em si (REIS FILHO, 1994, p. 7). Publicada em 1850, essa lei assinala o momento em que a terra passa a ser mercantilizada, ou seja, torna-se um produto tudo o que está vinculado a ela, inclusive a moradia. O valor da terra urbana está diretamente associado a sua condição de suporte para a atividade produtiva. O capital imobiliário, segundo Singer (1982, p. 22), é um falso capital, afinal, apesar de se valorizar, o processo não ocorre pela atividade que se realiza em si naquele
espaço, mas pela monopolização do acesso a este, considerada a sua condição de indispensável para a realização da atividade produtiva. Seu valor poderia, é claro, estar também relacionado a possíveis benfeitorias feitas em sua condição de espaço físico, mas não é daí que vem a sua valorização significativa. Como lembra o autor, tal fato é perceptível ao comparar dois terrenos com as mesmas dimensões e benfeitorias em si, mas com localizações e valores diferentes. É essa a principal contribuição que a Lei de Terras implica na lógica do mercado imobiliário: o valor da terra passa a ser relativo à posição em que se encontra no espaço urbano. É nesse momento que, ao adquirir uma terra, o proprietário passa a possuir não apenas um pedaço físico, a matéria terra, mas também uma localização. E a essa localização estão associados diversos outros pedaços de terra, que contribuem para a sua respectiva valorização, ou desvalorização. A infraestrutura urbana, o transporte público existente, a proximidade de praças, parques ou equipamentos públicos de saúde ou lazer, todos esses e mais outros espaços, que também se apoiam na terra, passam a influenciar no seu valor.
reflexões da urbanista
O que pode ser considerada como a primeira crise habitacional é desencadeada tão logo o desenvolvimento urbano das cidades foi associado à economia cafeeira local, no início do século XX. Nesse período, o mercado de trabalho iniciava sua expansão de maneira exponencial, alimentado pela adoção da mão-de-obra assalariada e pela chegada de uma massa de imigrantes que correspondiam aos estímulos por parte do governo para compensar a abolição do regime escravista. É também nesse momento que os primeiros indícios de segregação espacial podem ser identificados. Para uma melhor compreensão, é necessário entender como se estrutura o solo urbano. A cidade brasileira possui como característica do seu desenvolvimento a existência de um centro onde se concentra a oferta de empregos, além dos principais serviços e comércios. Em geral nesses centros encontram-se os órgãos de administração pública, a igreja matriz, os tribunais, o distrito financeiro, os comércios atacadistas ou varejistas, teatros, cinemas, espaços de lazer em geral, estando alguns dos quais localizados apenas nessa região. Mesmo aqueles que existem em outros locais são cada vez mais escassos
na medida em que a distância do centro aumenta. A expansão urbana desenfreada e a concentração de trabalhadores ocasionaram inúmeros problemas, afinal, a infraestrutura das cidades, que já antes disso não respondia à demanda de crescimento populacional, continuava incapaz de responder a esse novo estado. Num contexto em que a terra urbana obedece a lógica do capital, as consequências desse cenário crítico afetavam aos diferentes estratos sociais de maneiras distintas. A apropriação diferenciada dos investimentos públicos mantinha os espaços elitizados livres de deteriorização, enquanto os bairros populares sofriam com péssimas condições de saneamento e infraestrutura, somados ao desinteresse do poder público em solucionar esses problemas. A distância entre a moradia e o centro da cidade pode ser medida em tempo e dinheiro. Disso resulta o gradiente de valores do solo urbano, e também exemplifica como a segregação acontece, afinal, são as populações mais pobres que vão habitar as periferias, onde o solo não é tão caro. Em contrapartida, ficam cada vez mais longe do centro e da concentração de emprego,
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comércio e serviços, segregadas pelo tempo e pelo dinheiro que separam esses espaços (SINGER, 1982, p. 29). Pouco se saberia sobre as primeiras habitações populares de São Paulo, se não fossem as suas péssimas condições sanitárias. Em meio às políticas higienistas do Estado, que junto às elites focavam suas preocupações “em construir uma cidade ‘moderna’, de aparência europeia” (BONDUKI, 1998, p. 21), a situação de precariedade das habitações populares apenas preocupava aos técnicos sanitários quanto ao risco à saúde pública geral. Devido a isso, os registros sanitários da época se caracterizam como a principal fonte de documentações para compreensão de como eram tais moradias. Especificamente sobre o mercado de moradias populares, tem-se que os problemas habitacionais do final do século XIX impulsionaram a iniciativa privada a investir em diversas modalidades de habitações para abrigar as classes sociais de baixa e média renda. E um fator importante para o avanço dessa investigação é o fato de que praticamente todas essas habitações eram moradias de aluguel. Conforme indicam as pesquisas de Bonduki (1990, p. 44-45), embasadas pelo
Fig 4. Valor do solo urbano por m2 na cidade de São Paulo
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de aluguéis, principalmente numa cidade Boletim do Departamento de Indústria e como São Paulo, que apresentava elevado Comércio elaborado na época, no ano de crescimento e dinamismo econômico, o 1920, somente 19,1% das habitações eram qual estimulava a construção de novas ocupadas por proprietários, crescendo habitações constantemente, para suprir a para 23,8% em 1925. Porém, mesmo com enorme procura por moradias ocasionada um crescimento gradativo ao longo da pela rápida expansão. primeira metade do século, a situação não Especificamente pela economia de caráter se alterou muito nesse período, como é agrário-exportadora do mercado cafeeiro, possível notar com a pesquisa IBGE de a cidade de São Paulo contava com um 1940, que ainda indicava apenas 25% dos excedente econômico que se distribuía domicílios da cidade como próprios. entre diversos agentes que participavam da Fato é que na Primeira República o produção e comercialização do café. Esses investimento em moradias de aluguel se agentes acabavam com uma concentração mostrou bastante atrativo. Com o setor de capital pronta imobiliário regulado pelo mercado, não “Desse modo, a existência de excedentes para financiar havia em nenhum econômicos nas mãos de investidores de diversos investimentos controle estatal portes, a restrita capacidade de aplicação no rentáveis, num setor industrial, a expansão e retração cíclica período em que sobre os valores da cafeicultura, a valorização imobiliária e a não haviam dos alugueis, que grande demanda por habitações em São Paulo, muitas opções. A obedeciam a lei os incentivos fiscais e a inexistência de controles da oferta e da estatais dos valores dos aluguéis – tudo isso indústria, apesar procura. Somado tornou o investimento em moradias de aluguel de ser a maior a isto, o direito bastante atraente durante a Primeira República.” beneficiada pelo (BONDUKI, 1998, p. 45). mercado cafeeiro, à propriedade ainda apresentava garantido pela Constituição e pelo Código Civil um processo frágil e instável, por vezes permitiam práticas de despejo, criando ameaçado por crises de superprodução, um cenário bastante promissor para entre outros fatores que limitavam os quem investia propriedades no mercado investimentos no setor.
reflexões da urbanista
A LEI DO INQUILINATO E SEUS EFEITOS
O mercado imobiliário de aluguéis seguiu sem grandes complicações como uma boa fonte de investimento pelas primeiras quatro décadas do século XX, até as primeiras intervenções estatais na regulamentação das relações entre inquilinos e proprietários acontecerem através de uma série de leis do inquilinato. O ano de 1942 marca o congelamento dos aluguéis, além de também ser um marco na história da habitação social, já que com ele a produção rentista de moradias de aluguéis foi desestimulada, transferindo para o Estado e, principalmente, para os próprios trabalhadores, o encargo de produzir suas moradias. A lei do inquilinato “constitui uma das principais causas da transformação nas formas de
Fig 5. Manchetes de jornal dos anos 40
provisão habitacional no Brasil e em São Paulo.” (BONDUKI, 1998, p. 209). Por conta dessa intervenção, a década de 1940 foi marcada por umas das mais graves e dramáticas crises habitacionais da história do Brasil, momento em que o auto-empreendimento na periferia, favelas e assentamentos informais foi uma das principais alternativas de moradia adotada pela classe trabalhadora. A lei do Inquilinato, que oficialmente congelou os aluguéis em 1942, surgiu com suas diferentes facetas para cumprir papeis decisivos na forma como se estruturou o modelo de desenvolvimento brasileiro no período pré-golpe militar de 1964, contribuindo decisivamente para o perfil que hoje possuem as cidades brasileiras.
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O congelamento dos aluguéis, que num proporção muito maior que o salário dos primeiro momento aparentava defender funcionários garantiram um aumento na o inquilino, foi renovado em uma série de taxa de acumulação do capital. leis instituídas de 1942, ano do primeiro A queda do poder de compra dos decreto, até 1964, caracterizadas sempre trabalhadores e uma piora nas condições pelas rígidas restrições aos reajustes dos de vida impulsionadas pela situação de aluguéis e uma aparente defesa contra carestia e inflação elevada podem ser despejos injustificados. No entanto, consideradas um forte motivo para a quando investigada mais a fundo em atitude do Estado de congelar os aluguéis. suas diferentes faces, e considerando Contudo, mesmo que esse cenário ofereça o momento que era marcado pela forte respaldo para a Lei do Inquilinato necessidade de apoio das massas para a como movimento de defesa da classe legitimação do regime, tal intervenção trabalhadora, os dados da época provam aparentava ter objetivos políticos e que, dentre os itens básicos de consumo, os gastos com econômicos mais aprofundados. “Qual era a real intenção do governo ao congelar habitação foram O período que os aluguéis: proteger o inquilino – numa espécie os que possuíram antecedeu o de versão urbana das leis trabalhistas – ou usar menor índice este dispositivo como um instrumento de política de aumento momento discutido econômica para direcionar os investimentos (BONDUKI, 1998, foi marcado por destinados aos setores vitais para o projeto p. 225). Esse fato, uma mudança desenvolvimentista e reduzir os salários dos principalmente, bastante significativa trabalhadores?” (BONDUKI, 1998, p. 218) substancia a no custo de vida investigação de que as intenções que o urbana, resultado sobretudo de um maior Estado tinha com a criação e manutenção financiamento das despesas públicas e pela baixa oferta de mercadorias, consequências do decreto por todo o período em que esteve em vigor iam além da defesa da da Segunda Guerra. As empresas classe trabalhadora. capitalistas foram particularmente Para além da ampliação da base de apoio beneficiadas por esse contexto, afinal, das massas, fundamental para a legitimação os preços dos produtos crescendo numa
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revelou-se como um ótimo mecanismo de um governo de caráter populista, havia para impedir, ou mesmo reduzir, o custo também os motivos econômicos. Era de importância significativa, num contexto de reprodução da força de trabalho desenvolvimentista, concentrar recursos na urbana, afinal, a redução do custo de vida urbana ocasionado pelo congelamento dos montagem do parque industrial brasileiro. aluguéis – mesmo que não correspondesse Para tal, havia a necessidade de frear o aos reais gastos dos trabalhadores que setor imobiliário que concentrava uma gama bastante alta de investidores, devido tinham que lidar com aumentos informais exercidos pelos proprietários – dava a sua alta rentabilidade já explicitada. Ademais, a configuração rentista respaldo para que os reajustes salariais fossem calculados considerando esses adotada pela categoria, que garantia um investimento seguro e boa fonte de renda, valores gastos com habitação. Essa prática afetou a massa trabalhadora gerou um setor social não-produtivo, de maneiras diferentes: por um lado, os que vivia basicamente de rendas, o que também não vinha na direção da proposta inquilinos que não sofreram com abusos informais por parte dos proprietários do governo de inflar o setor industrial conseguiram brasileiro. Havia ainda “Em todas as cidades de maior importância manter o nível a questão da no Brasil está se processando um fenômeno de vida com de escassez de residências [...]: antigamente, tais medidas, redução salarial jornais incluíam páginas de anúncios populares, repassando o que, considerado o oferecendo casas e cômodos para alugar; o preço prejuízo para os desenvolvimento era razoável e ninguém retardava uma mudança industrial como o proprietários. No que precisasse fazer porque [...] não tivesse foco do momento, encontrado um outro teto de acordo com seus entanto, haviam as eliminava um desejos e necessidades. Depois, foram surgindo práticas ilegais de obstáculo social os anúncios de vendas e das incorporações, e cobranças e ações hoje estes superam, nítida e decisivamente, os adotadas pelos para o avanço da “aluga-se”. (O OBSERVADOR ECONÔMICO proprietários para acumulação de E FINANCEIRO, 128, XI set. 1946 apud driblar a lei, que capital pelo setor. A BONDUKI, 1998, p. 247). acarretavam em Lei do Inquilinato
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que esse processo de crescimento despejos ou numa diminuição substancial industrial exigia. de condições de vida dos trabalhadores, além dos recém-chegados na cidade que A Lei do inquilinato marcou um forte desestímulo de investimento no setor se deparavam com um grande déficit na imobiliário e, num contexto em que a oferta de moradias de aluguéis ocasionada pelas intervenções estatais. Foi dessa forma provisão de moradia por parte do Estado era insuficiente para a demanda existente, que se criaram as condições econômicas para o surgimento e a difusão de novas o surgimento de favelas e construções de moradias pelos próprios trabalhadores práticas para a obtenção de moradias de baixo custo, ou custo monetário próximo passou a ser uma prática cada vez mais do nulo (no que diz respeito a obtenção da comum que, a médio prazo, minimizou terra) como se enquadram as construções a crise habitacional ocasionada por essa conjuntura. Bolaffi vai de encontro a esse em favelas ou ocupações em loteamentos argumento ao discorrer sobre o processo particulares. A década de 1940 foi marcada por fortes de constituição das periferias: contradições. Por “O empobrecimento progressivo da população Nesse mesmo um lado, como já marginal a partir de 1930 constitue um fator período, a cidade visto, havia a Lei do importante. Até essa época o trabalhador urbano de São Paulo foi Inquilinato como ainda podia alugar uma habitação em bairros cenário de um como Belém, Mooca ou Bexiga, que eram pobres, um desestímulo aos agressivo processo mas não periféricos. Mas, desde então, a queda investimentos no do salário real e os efeitos contraproducentes de renovação setor imobiliário da ‘lei do inquilinato’ que desestimularam os que consolidou para que ocorresse investimentos em casas populares o obrigaram um novo tipo uma transferência a arranjar-se onde e como pudesse.” (BOLAFFI, de investimento de capital investido 1982, p. 58) imobiliário, de em prol do caráter especulativo, voltado para classes desenvolvimento do setor industrial. No média e elites. Nas palavras de Bonduki entanto, por outro lado, a industrialização (1998, p. 249), “enquanto os trabalhadores exigia condições básicas de sobrevivência sofrem com a falta de moradia, São na cidade para a massa de trabalhadores
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espécie de símbolo de resistência dos Paulo é renovada por novas avenidas inquilinos despejados que se recusavam e ‘embelezada’ por arranha-céus, num a deixar as áreas centrais, somados aos contexto de opulência, especulação recém-chegados que se deparavam com imobiliária e industrialização.” É uma um mercado imobiliário em situação nova contradição que se constitui, afinal, crítica, terrenos baldios e áreas ociosas da apesar das construções de arranha-céus cidade – como as várzeas dos rios Tietê e voltadas para investidores e para as classes Tamanduateí – começaram a ser ocupadas altas que rapidamente se erguiam nas por barracões confeccionados em madeira regiões centrais, a quantidade de edifícios e outros materiais improvisados. A construídos para o mercado de locação crise habitacional, antes bem disfarçada imobiliária só decrescia, agravado pelas pelo progresso que renovava o cenário desapropriações e demolições que visavam paulistano, passou a implantação das novas avenidas “[...] aquela aglomeração de casebres de madeira a dar as caras com chocava os paulistanos que passavam pelo local. o crescimento de planejadas por Na nossa capital não se conhecia a improvisação favelas em diversos Prestes Maia, e da ‘favela’. [...] Não é assim de estranhar que pontos da cidade, também devido aquele conglomerado de tugúrios impressionasse preocupando ao congelamento o paulistano habituado à pobreza encoberta e dos aluguéis, que à miséria recolhida nas saturações de porões e as elites e acarretou numa cortiços do Bexiga e do Brás. Era o índice da falta escancarando a de casa, do descuido em dar um telhado aos mais construção de série de despejos necessitados. Revelava, até um certo ponto, o uma metrópole de pelas mais diversas espírito empreendedor dos seus habitantes. Com contrastes. justificativas. tábuas de caixotes, uns sarrafos e latas velhas Nas primeiras Foi em meio dessa improvisou-se um bairro [...]. E em pleno Centro, crise habitacional no terreno onde o IAPI projetara um soberbo décadas que se que as primeiras conjunto de apartamentos [...] não tardou a seguiram a esse favelas começaram encher-se de casebres. Aquilo pareceu mal. Mas cenário, o método com tamanha falta de casas tudo era possível e utilizado pela a surgir na cidade justificável.” (DIÁRIO POPULAR, 7/11/1946 Prefeitura para lidar de São Paulo. apud BONDUKI, 1998, p. 262). com os processos Como uma
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em lotes periféricos, que existiam em de favelização espalhados pela cidade grande quantidade, foi uma alternativa foi baseado em repressão, reeducação melhor aceita por milhares de assalariados e remoção. Por meio de alojamentos despejados das moradias de aluguel e pelos provisórios construídos em terrenos recém-chegados, apesar do dispêndio destinados a produção habitacional do monetário e grande sacrifício exigido por Estado, mas com acesso a infraestrutura essa prática. básica como água e esgoto, o então prefeito Abraão Ribeiro, pioneiro em tratar A autoconstrução na periferia não soava uma boa escolha, a princípio. A distância das questões habitacionais como questão para as áreas centrais da metrópole, social, criou uma tradição que persiste loteamentos precários, sem infraestrutura até os dias atuais como um etapa do processo de desfavelamento, ordenada pela e transporte não seriam uma alternativa para as massas se houvesse opções assistência social, mas pouco efetiva no melhores, porém, elas não existiam. A âmbito da crise habitacional quando não casa própria autoempreendida asseguraria aliada a outras ações. ao trabalhador uma solução barata de No entanto, por razões urbanísticas, moradia. culturais e econômicas – como a discriminação sofrida por moradores de favela e a repressão e constante ameaça de remoção –, “Falamos da favela. E porque a as favelas não favela é o quarto de despejo de cresceram tanto São Paulo. É que em 1948, quando na cidade de São começaram a demolir as casas térreas Paulo quanto no para construir os edifícios, nós os Rio de Janeiro, pobres que residíamos nas habitações por exemplo. A coletivas fomos despejados e ficamos construção de debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto casas individuais de despejo de uma cidade.” (JESUS, pelos próprios 1961, p. 17) trabalhadores
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O LOTEAMENTO DA PERIFERIA E SUAS QUESTÕES
Como já dito, a autoconstrução nas periferias não se iniciou durante a aplicação da Lei do Inquilinato, embora tenha se difundido nesse momento. Antes disso, era praticada ocasionalmente nos arredores da cidade - principalmente na zona rural -, mas não possuía números significativos e se apresentava como uma alternativa bastante pior se comparada às casas de aluguel. O trabalhador que conseguia adquirir um lote, tinha que conseguir manter a casa alugada enquanto comprava materiais de construção e autoconstruía a outra e, para isso, era necessário trabalhar nas zonas suburbanas. Nas primeiras décadas do século XX, uma infinidade de lotes e arruamentos precários começava a se espalhar pelas zonas suburbanas e rurais de São Paulo, num processo descuidado, em locais sem nenhuma infraestrutura, mas que foram sendo incorporados a malha urbana vagarosamente. O objetivo da criação desses lotes não era a venda para a população, mas sim uma forma de Fig 6. Colagem investimento, aguardando o processo de com foto da valorização imobiliário para que, de fato, escritora Carolina fossem vendidos. A falta de infraestrutura Maria de Jesus no local veio apoiada nesse fato, afinal,
se não havia pretensão de povoamento, a necessidade de infraestrutura não era imediata. Na década de 1920, o processo de aquisição de lotes foi facilitado pela início da venda em prestações. As prestações eram pensadas de modo que o trabalhador de baixa renda tivesse disponibilidade para pagar, ou seja, que fosse compatível com sua renda. No cálculo do valor da prestação, o preço final não é levado em conta, mas sim este valor de uma porcentagem do salário mínimo que, embora com sacrifícios, o trabalhador poderia pagar para a obtenção da casa própria. Dessa maneira, era possível estabelecer o preço final no ato da venda, geralmente variando entre cinco e dez anos. Era comum, nesse processo, ocorrer o atraso de parcelas, que em geral resultavam na perda do lote. No entanto, também era uma prática comum por parte do comprador revender o lote para quitar as prestações atrasadas e não sair de todo prejudicado. Em ambos os casos, o empreendedor recebia um certo lucro, pois mesmo na revenda do lote uma taxa de transferência era cobrada.
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Fig 7. Fotografia aérea da região do bairro Jardim Rosa de França, em Guarulhos, no ano de 1958
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Fig 8. Fotografia aérea da região do bairro Jardim Rosa de França, em Guarulhos, no ano de 2008.
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A abundância de loteamentos se espraiando centro afora expandiu a área urbanizada da cidade de maneira impressionante, fazendo a densidade bruta da cidade de São Paulo cair de 110 habitantes por hectare para 47 habitantes por hectare (BONDUKI, 1998, p. 284). A quantidade de loteamentos abertos ultrapassava com folga a demanda existente por estes, representada pelos trabalhadores, residentes suburbanos em potencial. Somado a isso, a desproporcionalidade na criação dos loteamentos, dispersos desordenadamente, resultou no encarecimento dos serviços públicos de infraestrutura, como os calçamentos e canalizações. O processo de formação dos loteamentos é composto, principalmente, por cinco agentes: o proprietário fundiário, o empreendedor do loteamento (loteador), o corretor, os compradores dos lotes (moradores), e o Estado. O proprietário, basicamente, participa com a concessão da gleba, deixando os demais encargos sob a responsabilidade do loteador, sendo a divisão das aquisições financeiras feita no método 50/50, geralmente. Para os empreendedores, os loteamentos situados em suas glebas eram
“‘loteamento para população baixíssima’, ‘loteamento para população pobre nãopaupérrima’, ‘loteamento tipo popular’ ou ainda ‘loteamento padrão operário’” (BONDUKI; ROLNIK, 1982, p.121). Em outras palavras, a expectativa era captar trabalhadores que se sujeitassem a morar numa região precária e sem infraestruturas, por terem cada vez menos opções nas regiões mais urbanizadas da cidade. Havia ainda a questão do transporte público, que era inexistente até o final das década de 1920. A rede de bondes criada no início do século pouco havia crescido até então, e apenas atendia às zonas mais urbanizadas da cidade. Os trens que alcançavam algumas regiões mais periféricas até possibilitaram alguns núcleos de ocupação, identificados como os primeiros loteamentos, mas que geralmente ocorriam nas proximidades das estações. As operações do auto-bus começaram a ocorrer em meados dos anos 1920, e se caracterizam como essenciais no processo de ocupação das zonas periféricas. A regulamentação feita pela Prefeitura só foi ocorrer em 1934, mas o seu funcionamento ainda permaneceu precário, além de dispendioso. No entanto,
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apesar disso, a operação dos auto-bus foi fundamental no processo de ocupação das periferias, de tal maneira que se tornou usual a associação entre empresas de ônibus e empresas de loteamento (BONDUKI, 1998, p.285). Ao mesmo tempo, a expansão horizontal contribuiu para que os problemas que envolviam a questão dos transportes se tornassem cada vez mais difíceis de serem solucionados. Perto do final da década de 1930, ocorreu ainda uma crise geral no transporte público, iniciada pelo anúncio do abandono do negócio dos bondes por parte da empresa Light, que ocorreria em 1941 com o fim da concessão. Esse fato já vinha sendo antecipado pela falta de investimentos da empresa no setor, que já sentia a concorrência por parte dos ônibus e havia falhado na tentativa de monopolizar o mercado. O serviço de ônibus seguia de maneira desornada e pouco funcional, com veículos circulando de maneira precária, sem horários fixos e itinerários alterando-se constantemente. Os empresários envolvidos só visavam o lucro e pouco se importavam com a situação de precariedade a qual era submetida a população. Segundo Bonduki (1998), um relatório realizado pela Comissão de
Estudos dos Transportes Coletivos de São Paulo em 1943 aponta que cerca de 7% da população do município morava em áreas não atendidas por nenhum tipo de transporte coletivo, e por isso era obrigada a caminhar boa parte do trajeto casatrabalho diariamente. A situação chegou a tal ponto de gravidade que, em 1941, a Prefeitura obrigou a Light a continuar com seus serviços, apesar do anúncio de saída. Em 1947 foi criada a empresa de capital misto CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), que passou a ser responsável por todo o serviço. Era uma tentativa de reformar o sistema de transportes, afinal, sua existência era fundamental no processo de expansão periférica. O CMTC, no entanto, não foi suficiente para o constante processo de crescimento da cidade, consideradas as tarifas baixas que mantinham os recursos para investimentos rasos demais para garantir a prestação de um bom serviço e garantir o monopólio dos transportes coletivos. Com isso, empresas de ônibus coletivos logo passaram a operar nas regiões não servidas pela Companhia, e não tardou para que a Prefeitura aceitasse e reconhecesse essas empresas, o que reduziu progressivamente a participação
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do CMTC nos transportes coletivos. Enquanto isso, a cidade oficial crescia e No que diz respeito ao transporte coletivo passava por melhoramentos, o prefeito no processo de expansão urbano, havia Prestes Maia conduzia o processo de por fim a condição das vias nesses bairros. renovação dos bairros de luxo com toda atenção que não Sem pavimentação "Entre 1940 e 1950, cerca de 100 mil famílias, dirigiu para as e muito menos o mais de meio milhão de pessoas, passaram a periferias, os apoio da Prefeitura morar em casas próprias. A grande maioria em investimentos nas na sua manutenção, loteamentos periféricos, que não estavam mais regiões centrais e era muito comum, desocupados como nos anos 20. Enfrentar e por exemplo, se dominar a periferia passou a ser a tarefa cotidiana a infra-estrutura tornar impossível de centenas de milhares de trabalhadores, que criada para o construíram em silêncio uma cidade muito maior desenvolvimento acessar as zonas que a São Paulo oficial.” (BONDUKI, 1998, industrial só foi periféricas em p.294) possível com o dias de chuva, o abandono das que acarretava em isolamento e, principalmente, aumento do zonas periféricas e com a redução do custo da reprodução da força de trabalho, custo de vida, já que o abastecimento dos ocasionada pelo congelamento dos bairros estava sujeito ao acesso através aluguéis e pelo auto-empreendimento da dessas vias. casa própria por parte dos trabalhadores. Expostas essas questões que dificultavam a vida de quem decidia rumar para Ao contrário da situação dos cortiços e favelas, pouco se sabe das questões sociais a periferia, a instituição de uma rede de transportes coletivos, mesmo que envolvidas entre os que moravam nos loteamentos periféricos nas primeiras precária, foi essencial para a ocupação das periferias. Na década de 1940, com a décadas de ocupação. Eram poucas as Lei do Inquilinato reduzindo a produção referências às casas auto-empreendidas até rentista e ocasionando múltiplos despejos então. Tal fato se dá não pela inexistência e a estigmatização e repressão das favelas, de tais questões, mas provavelmente a ocupação dos loteamentos periféricos pela falta de organização dos poucos moradores dessas regiões, sem experiência passa a acontecer em massa.
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Democráticos e Progressistas (CDPs) de militância reivindicativa com expressão e presença política. Além disso, o período - órgãos de apoio ao partido comunista ditatorial da Era Vargas contribuiu espalhados pelas periferias que visavam fortemente para o refreamento dos debates resolver problemas sociais em suas regiões -, passou a impulsionar as concessionárias políticos e das questões que envolviam de serviços básicos para que chegassem a falta de benfeitorias em uma área significativa da cidade. Com o seu fim em até os bairros mais distantes. O ambicioso plano do prefeito colaborou com sua 1945, houve maior abertura, juntamente com com a liberdade partidária e de eleição como governador do Estado, previu benfeitorias nos bairros mais organização, para que os trabalhadores periféricos pudessem expressar revolta pela populosos de São Paulo e, de fato, obteve resultados excepcionais, além de marcar situação a qual eram submetidos. o início do processo de incorporação dos As denúncias acerca das condições bairros periféricos à cidade legal. Trata-se de precariedade de infraestrutura nas de um momento importante no processo periferias se tornaram cada vez mais numerosas, juntamente com a mobilização de ocupação das periferias, pois configurase como um estímulo, tanto para os por parte dos moradores e apoiadores, tornando “Completava-se assim um ciclo: a primeira franja empreendedores insustentável periférica foi integrada à cidade, sem dúvida quanto para os a situação de em desacordo com os critérios rigorosos de moradores, de urbanização propostos pelos urbanistas. Isto, ocuparem zonas desleixo do poder entretanto, não impediu a implantação das desprovidas de público no que benfeitorias urbanas essenciais. […] Para além de infraestrutura que, dizia respeito às qualquer legalismo, estabeleceu-se na cidade uma áreas periféricas. cedo ou tarde, certeza e uma tradição: quem conseguia comprar Finalmente, em e ocupar um pedaço de terra num loteamento seriam melhoradas 1953, o prefeito qualquer ingressava em um processo que, mais e teriam serviços cedo ou mais tarde, lhe garantiria, com grandes públicos eleito Jânio sacrifícios na sua qualidade de vida, mas a um incorporados. Quadros, que custo reduzido, a propriedade da casa e o acesso a possuía apoio serviços urbanos." (BONDUKI, 1998, p.303) dos Comitês
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Fig 9. Evolução da mancha urbana a partir do centro da cidade de São Paulo
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AUTOCONSTRUÇÃO COMO SOLUÇÃO
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Já no início do século XX, as zonas Bonduki já nos mostraram, para o Estado, periféricas da cidade de São Paulo eram o incentivo de lotear as periferias e da subdividas em lotes padrões, ou “terrenos” prática da autoconstrução permitia manter - como costumam ser chamados no o foco no desenvolvimento industrial e linguajar informal -, demonstrando econômico do país. serem uma forma de investimento O processo de ocupação dos lotes alternativo ao mercado de aluguel, mas periféricos nas margens da cidade ocorreu ainda pouco disseminado. O Estado sem nenhum controle estatal e com pouca demonstrava insatisfação com a situação fiscalização das infrações cometidas por habitacional dos centros urbanos e, parte dos loteadores, como será melhor juntamente às práticas sanitaristas de exposto à frente. Naquela época já existiam despejos e demolições, passou a incentivar leis que regulamentavam o parcelamento a iniciativa privada a se envolver na do solo, no entanto, as irregularidades questão da habitação. A cartada foi bem frequentemente eram toleradas por parte sucedida, e logo foi se criando uma teia de do poder público. O fato é que não era relações entre a administração pública e do interesse do Estado aplicar as devidas investidores privados, em busca de atender infrações, pois era sabido que, em muitos o interesse de ambos os lados envolvidos. casos, sua correção implicaria no aumento Para os loteadores, que normalmente do preço do terreno, e isso tanto refrearia a eram empresários que atuavam ocupação das periferias, quanto interferiria no projeto maior concomitantemente “Assim, a administração pública ‘não só delegava do governo, no em outras áreas, à iniciativa as providências relacionadas à qual as periferias o mercado ocupação do espaço urbano, como manifestava a contribuíam para imobiliário se intenção de ‘segregar’ a população trabalhadora apresentava como em áreas distantes do núcleo central da cidade’, o desenvolvimento uma opção segura o que permitia aos empresários imobiliários econômico do país. de investimento daquela época atuarem livremente conforme Havia ainda um seus interesses.” (SAMPAIO, 1994, p. 19 apud possível interesse financeiro. Como SAMPAIO; PEREIRA, 2003, p. 167) por parte do as pesquisas de
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Estado em manter as irregularidades dos loteamentos periféricos para que, dessa forma, fossem consideradas regiões “nãooficiais”, ou sob administração particular, e não fossem obrigados a investir em infraestrutura e melhoramentos. Como já dito, foi na década de 1940 que o autoempreendimento da casa própria se tornou, de fato, uma alternativa conjunta para os trabalhadores, apesar de já antes disso ser estimulada e praticada por alguns. É nesse momento que o trinômio loteamento periférico, casa própria e autoconstrução caracterizam o que Bonduki (1994) vai chamar de autoempreendimento da moradia popular. A cidade se estendeu para além de limites que não existiam, com lotes descontínuos e desarticulados reproduzidos dia após dia, criando uma malha urbana desconexa. Os lotes eram vendidos a prestações, os empreendedores pouco investiam em infraestrutura e vendiam lotes em zonas rurais como se fossem áreas urbanas. A cidade se expandiu para
além do necessário, muito mais do que era preciso para abrigar a população e os serviços urbanos. Sob o domínio do setor imobiliário privado, a propriedade da terra urbana foi utilizada como reserva de riqueza. A expansão logo alcançou proporções tão grandes que transbordaram as margens da cidade de São Paulo, alcançando os municípios vizinhos. É o que marca o início da Região Metropolitana da cidade de São Paulo, dentro da qual se encontra a cidade de Guarulhos e, consequentemente, o Antigo 95B. O autoempreendimento da casa própria feita pelas classes trabalhadoras, juntamente com a descaracterização do valor da moradia (que ocorre com a dissociação do custo de produção do valor do aluguel, ocasionado pela Lei do Inquilinato), e também a produção de moradias por parte do Estado como uma espécie de serviço social, todos esses se caracterizam como uma desqualificação da produção de moradia como mercadoria. São situações em que o valor da habitação deixa de ser contabilizado, reduzindo ou anulando o seu custo de produção, e isto, consequentemente, acarreta na diluição do custo da força de trabalho e, enfim, na taxa
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investimentos do setor imobiliário de acumulação de capital, possibilitando rentista para o setor industrial, além de o seu investimento no setor industrial. O colaborar para o não reajuste salarial número de habitações construídas pelos dos trabalhadores. Por fim, para a classe trabalhadores na Região Metropolitana trabalhadora, o auto-empreendimento da de São Paulo ultrapassou um milhão, na última metade do século XX. Esse número moradia possibilitou a realização do sonho da casa própria e, apesar de se colocar significa uma quantidade absurda de recursos monetários e em força de trabalho num momento em que não havia outras alternativas, logo se tornou um almejo para que os trabalhadores incorporaram ao as classes mais pobres. processo de produção social, sem nenhum investimento estatal ou do capital privado, que resultou numa contribuição mais do que significativa para o crescimento da economia paulista. A autoconstrução configurou-se “Ao mesmo tempo, o modelo difundiu a como solução para pequena propriedade urbana para ampla camada múltiplos agentes. de trabalhadores de baixa e média renda, propiciando-lhes uma sensação de ascensão Para o Estado, social sem que houvesse redistribuição de renda, permitiu uma elevação dos salários ou comprometimento da maior omissão e acumulação.” (BONDUKI, 1998) distanciamento da questão da habitação popular, se abstendo da tarefa de provedor tanto da moradia, quanto da infraestrutura urbana associada a ela. Para os empresários, permitiu uma nova fonte de investimento para acúmulo de capital. Para a indústria, impulsionou o seu desenvolvimento ao desviar os
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Fig 11. FamĂlia e vizinhos no Antigo 95B no fim dos anos 1960.
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O SONHO DA CASA PRÓPRIA
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Gabriel Bolaffi (1982, p. 43) apresenta uma posição social mais elevada. Para o um ponto bastante interessante no que se trabalhador, objetivamente, a casa própria refere a casa própria ao citar a pesquisa de se constitui como a melhor maneira de Loyd A. Free acerca de aspirações pessoais subsistir em melhores condições num e atitudes políticas da população brasileira. momento em que os salários estão abaixo Segundo o pesquisador, a principal do custo de reprodução da força de aspiração da população urbana brasileira é trabalho. Afinal, ser proprietário de uma a casa própria. moradia não só contribui para o acesso A sociedade urbana capitalista cada vez ao crediário para facilitar a aquisição a mais passa a estimular tanto a classe média outros bens de consumo, como libera o orçamento familiar quanto as classes baixas a criarem “A casa própria auto-empreendida na periferia eliminando o expectativas quanto foi um aspecto básico da inserção do trabalhador aluguel da cesta de no processo de desenvolvimento de São Paulo. despesas. a ascensão social, No período de maior crescimento da economia O processo de e a necessidade do país, ao mesmo tempo em que permitiu uma urbanização de expor essa redução salarial conveniente ao capitalismo implicou no ascensão, ao selvagem brasileiro, ela representou para os mesmo tempo trabalhadores uma perspectiva, mesmo que aumento dos em que ocorre a ilusória, de ascensão social e de estabilidade gastos familiares familiar. E isto não só pela possibilidade de correspondentes queda no poder escapar do aluguel e morar a custo quase nulo aos bens de aquisitivo dessas como, sobretudo, por representar a única consumo coletivo, mesmas classes. A perspectiva de entesouramento, de formação de que cresciam junto casa própria, vista um patrimônio e de obtenção de uma renda extra por essa perspectiva que independesse do trabalho que uma família com a cidade, ao subjetiva, se trabalhadora podia almejar. Por essas razões, mesmo tempo em caracteriza como mais do que por motivos de ordem ideológica, que a produção a aspiração pela casa própria foi tão forte e de moradias a aquisição que generalizada entre os trabalhadores de baixa caminhava no melhor evidencia renda.” (BONDUKI, 1998, p. 307) sentido inverso, a conquista de
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tornando-se cada vez mais escassa pelos diversos fatores já antes mencionados. Com isso, para o trabalhador pressionado pelos crescentes gastos monetários, a obtenção da casa própria se configura como uma maneira eficiente de eliminar os gastos mensais com habitação (BONDUKI; ROLNIK, 1982, p.128). A aquisição garantia, entre as poucas possibilidades existentes, uma segurança pessoal mínima para o trabalhador e sua família, num período em que a previdência social era precária e pouco funcional e que a poupança implicava em muita perda no valor real de um montante, além de possibilitar a estabilidade habitacional. As condições de vida e de progresso para os residentes proprietários da moradia foram muito melhores do que para os que moravam de aluguel, o que contribuiu em muito para o anseio, por parte do trabalhador, em possuir sua moradia. Considerado o fato de que, ao se tornar dono de sua própria casa, o trabalhador pode incorporar recursos de trabalho para remoldar e melhorar permanentemente o espaço físico da moradia, o cotidiano familiar se torna mais pessoal e aconchegante para os habitantes, que se sentem mais livres para intervir no espaço
conforme suas vontades. A casa alugada, ou cedida, exige que a família se adapte ao espaço, seja com seus hábitos, seus costumes, modo de morar ou mesmo seus objetos, restringindo o habitar e o modo de viver no espaço. Com a sua aquisição definitiva, a casa passou a ter novos significados, pois diferente do aluguel que dispensava gastos mensais sem nenhum retorno, o autoempreendimento da casa própria, embora fosse um processo sacrificante, tratava-se de um investimento com a finalidade de constituir um patrimônio. Logo, a casa própria ultrapassou os limites da necessidade imediata de habitar para se tornar um um modo de viver entre os paulistanos, um verdadeiro referencial cultural estruturado do cotidiano de seus habitantes (BONDUKI, 1998, p.261). Juntamente com a casa própria, a aspiração máxima da família trabalhadora era também a boa educação dos filhos, que ocorreria no ambiente familiar, de modo a propiciar condições para um ingresso privilegiado no mercado de trabalho, e assim cultivar o mesmo estilo de vida que os pais, depois de adultos. É interessante notar o caráter conservador e pequenoburguês desse modo de viver ascendente
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entre os trabalhadores, analisada a esfera micropolítica dessa organização da vida privada. O núcleo familiar se restringia ao interior da casa autoempreendida, seguindo uma lógica monogâmica, que reproduzia os valores tradicionais do padrão conservador e pré-urbano de formação familiar. Tal afirmação vai contra a ideia da arquitetura moderna de que a habitação da classe trabalhadora industrial seria um espaço cada vez menos individualizado, onde os espaços públicos e equipamentos coletivos passariam a ter cada vez mais importância em relação ao ambiente doméstico. Eram muitos os motivos que embasavam a idealização da casa própria como objetivo máximo da classe trabalhadora. Havia a questão do custo, da garantia do abrigo permanente, a possibilidade de obtenção de renda extra com a sublocação de espaços dentro do lote, a ideia de possuir um patrimônio de valor alto - muito maior do que a renda do trabalhador assalariado -, a possibilidade de desenhar a casa segundo as vontades do núcleo familiar e de maneira a valorizar aquele bem, acompanhando a situação econômica das família, e também as suas necessidades, como no caso do crescimento do núcleo familiar. Era a possibilidade máxima
de formação de um lar para a vivência cotidiana da família, seguro dos perigos da rua ou do desemprego, e uma garantia para o momento da velhice. Todo o contexto que envolve o autoempreendimento da moradia vai muito além da questão da renda familiar, pois envolve sacrifícios de todos os tipos - desde o esforço físico no processo de construção aos sacrifícios no cotidiano de pequenos prazeres -, capacidade de poupança e bom gerenciamento das contas da família, as boas relações entre amigos e parentes para obtenção de ajuda no processo, a habilidade ao comprar o terreno e os materiais de construção, no contrato de profissionais informais para ajudar na construção, etc. O êxito no processo de autoempreendimento da casa e de suas futuras melhorias é fruto de um conjunto de ações que exige toda uma organização por parte do trabalhador, na sua vida cotidiana e administração financeira, que vai muito além do nível salarial do momento no núcleo familiar. A vivência cotidiana da família periférica se organizou em torno da moradia. Tão arduamente conquistada, ela é o objeto máximo que simboliza a ascensão de um plano social para outro.
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“Eu trabalhava como auxiliar de serviço de limpeza e o salário que eu recebia eu separava uma parte pra comprar material de construção e outra parte pra comer, sobreviver, e foi isso que eu fiz. Aí cada mês eu comprava uma coisinha e ia guardando material. Comprava porta, comprava janela, comprava tijolo, areia, as coisas que dava pra guardar. Aí fui comprando só material que eu podia guardar. Depois, no final, quando eu já tava com todo o material comprado, aí como meu irmão trabalhava de pedreiro, ele que construiu pra mim. No final de semana eu ajudava ele e durante a semana ele trabalhava sozinho. Foi isso que aconteceu. Nos finais de semana eu sempre ajudava ele a carregar tijolo, carregar massa… durante a semana ele trabalhava sozinho. E foi assim que eu acabei fazendo a casa lá de cima. Aí eu fiz um quarto grande, uma cozinha menor e o banheiro, deixei ela prontinha, com laje, tudo feitinho. Mas, pra fazer ela, nesse processo de comprar materiais de pouquinho em pouquinho e vai guardando, eu levei cinco anos pra fazer dois cômodos.” (ARACY, moradora do 95b, 2018)
Fig 12. Aracy (mãe) na porta da sua casa autoconstruída
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Fig. 13, fig. 14 e fig. 15. Notas fiscais de compras de material de construção datadas entre 1985 e 1991
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Fig. 16. Página do diário de obras de Aracy (mãe), com anotações acerca das intervenções no espaço da sua casa
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Fig. 17. Croqui do projeto de reforma de Aracy
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AUTOCONSTRUÇÃO, ARQUITETURA DA NECESSIDADE
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A arquitetura caracterizada como autoconstrução neste trabalho está intrínseca ao ato de autoempreender a casa - que pode não ser própria, afinal, as numerosas casas autoempreendidas em terrenos ocupados também se encaixam nessa definição - é descrita por Maricato (1979, p. 73) como o processo de construção da casa (própria ou não) seja apenas pelos seus moradores, seja pelos moradores auxiliados por parentes, amigos e vizinhos, seja pelos moradores auxiliados por algum profissional (pedreiro, encanador, eletricista) remunerado. Diferente da prática da autoconstrução que era comum em zonas rurais como uma forma de subsistência, o que caracteriza a autoconstrução, objeto de estudo dessa pesquisa, é o fato de estar ligada a forma de construir de uma massa de trabalhadores assalariados, inseridos numa economia urbana industrial que, depois de diversas ações já expostas anteriormente, configurou a prática de autoconstruir como a única alternativa de habitação, ou pelo menos a mais viável dentre as opções, para a classe trabalhadora. Por não possuir recursos para o mercado imobiliário privado e por ser ignorada pelo
Estado, que dirige seus investimentos para as camadas com poder aquisitivo mais alto, resta a classe operária apelar para seus próprios recursos para a obtenção da moradia. Comumente envolta num processo que envolve a solidariedade de amigos, parentes e vizinhos, a casa do trabalhador é erguida aos finais de semana e dias de folga, únicos momentos disponíveis para tal atividade. O “dia de encher a laje”, ou outros momentos em que eram necessários muitos ajudantes, acabavam por se tornar um dia de comemoração, o que pode ser visto como uma maneira de tornar o processo de trabalho não-remunerado mais leve para a classe trabalhadora. Francisco de Oliveira, citado por Maricato (1979, p.76), faz uma importante análise do papel da autoconstrução no contexto capitalista industrial. A habitação que resulta desse processo é fruto do que pode ser chamado de “super-trabalho”, ou em outras palavras, é um trabalho que não é remunerado. Mesmo que o resultado final dessa produção de força de trabalho pertença ao trabalhador, o ato de ser realizado sem um pagamento contribui para o aumento da taxa de exploração
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da força do trabalho, o que acaba por colaborar para uma aparente baixa do custo de reprodução da força de trabalho e, consequentemente, na depressão salarial dos trabalhadores por parte das empresa. Dessa maneira, a grande indústria, eixo principal no processo de acumulação de capital no momento, se torna a grande beneficiada nesse processo em que os setores atrasados suportam a acumulação industrial urbana e sua expansão. Indo mais a fundo na análise da prática da autoconstrução, percebe-se que esta não se limita à construção de habitações, mas a todo o espaço urbano intrínseco à habitação periférica, como caminhos de acesso, pontes, ruas e até mesmo construções mais abrangentes e elaboradas, como igrejas, creches,
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Fig. 18
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escolas primárias, centro comunitários, classes trabalhadoras, compreendida em entre outros (Maricato, 1982, p.79). O uma vasta área subdividida em pequenos assentamento do operariado migrante lotes, em cada qual estão pequenas casas. ou despejado na periferia se faz por seu Muitas vezes, inclusive, existem mais próprio esforço, colaborando com a de uma moradia dentro de cada lote, manutenção da oferta de mão de obra resultado de um processo de construção abundante e barata para o processo de que dura anos e que, após o crescimento industrialização da cidade e sem desviar dos membros da família, estes constroem recursos do orçamento público. no próprio lote a sua residência, e ali Enquanto isso ocorria, foi criado o permanecem. Banco Nacional da Habitação (BNH) em 1964, com o objetivo “de ‘promover a construção e a aquisição da casa própria’, especialmente pelas ‘classes de menor renda’” (BOLAFFI, 1982, “Se a habitação, a chamada infraestrutura urbana, p. 50). No entanto, e os equipamentos constituem mercadorias, se apesar da porção a política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um significativa dos nível abaixo daquele que permitiria a compra recursos voltados desses bens, as necessidades são em grande parte para solucionar o supridas pela prática da autoconstrução ou não déficit habitacional são supridas.” (MARICATO, 1982, p. 82) do país estarem concentrados no órgão, logo se fez notar que o BNH progressivamente se afastou de sua missão de investir em habitações Fig. 19. Uso do populares para destinar os recursos em espaço em lotes habitações de alto e médio custo. periféricos com o A autoconstrução é o que caracteriza a passar dos anos. periferia urbana, espaço da residência das
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que possuem menor custo e que possuem O tempo é um fator bastante importante disponibilidade de compra nos depósitos de se analisar no que diz respeito ao de materiais de construção próximos lote periférico. O caminho percorrido a moradia, de modo a evitar custos de pelo lote periférico é quase sempre o de construções que se arrastam com o tempo, transporte. O bloco de concreto foi progressivamente substituindo os tijolos seja pela disponibilidade financeira do de cerâmica na autoconstrução, por ser núcleo familiar, que nem sempre consegue de menor custo e por seu tamanho maior arcar com as despesas da autoconstrução, facilitar no andamento da obra, que se ou pelo motivo já citado da construção torna mais rápida e necessita de menor de uma nova casa para abrigar um novo quantidade de material. Sua qualidade é das núcleo familiar que se forma a partir do menores dentre os materiais de construção, original. Em geral, a construção começa com dois cômodos, suficientes para abrigar inclusive se comparada ao tijolo de argila, justamente por sua fabricação visar a a família que anseia por deixar o aluguel economia em detrimento da qualidade. ou migrar para as proximidades da região Quanto à técnica utilizada, os critérios urbanizada, e cresce com o passar dos e a rigidez no processo de escolha são anos. semelhantes. Não é possível contar com No que diz respeito a materialidade da autoconstrução, grandes inovações há algumas “ É justamente a população cujas faixas de no processo de características renda são de zero a cinco salários mínimos que autoconstruir, que apela para o processo de autoconstrução para por si só já possui que predominam a obtenção da casa própria, percorrendo um sua tradição prénesse tipo de caminho de muitos anos que vai do cômodo arquitetura, como a definida, afinal, a inicial situado de forma a permitir o seguimento maneira rígida que dos próximos, até o preenchimento quase total ideia de inovar está se estrutura entre do pequeno lote quando é frequente ter mais de atrelada a chance seus componentes. um domicílio no lote, seja de parentes (filhos que de errar, o que casaram, parentes recém-chegados do campo) ou definitivamente Os materiais de cômodos de aluguel.” (MARICATO, 1982, p. não é algo a se construtivos mais 85) considerar com um usuais são aqueles
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fizeram parte da construção da Região orçamento limitado. Metropolitana de São Paulo pelas mãos Com base nesses dados, que claramente da classe trabalhadora, a qual pertecem se estenderiam se analisados mais a fundo, muitos membros da minha família que, é possível definir a autoconstrução, da individualmente e sem muita consciência, maneira como ocorreu e ainda ocorre na participaram desse processo que contribuiu região da Grande São Paulo e em outras significativamente para o desenvolvimento metrópoles brasileiras, como uma forma do setor industrial e de arquitetura “ Então, deixa eu ver se eu lembro, tem que para a forma como que surge da voltar lá atrás! A gente morava em São Vicente, a necessidade maioria [dos irmãos] já tava tudo criado, e aí meu a Grande São Paulo e acontece da pai resolveu comprar um terreno aqui e construir se configura nos maneira como é e mudar pra São Paulo. Pelo que eu sei, ele veio dias atuais. pra cá pra arrumar trabalho, porque o campo possível para a de trabalho era maior. Aí ele vendeu a casa de classe trabalhadora, São Vicente, comprou o terreno aqui e com o consideradas todas dinheiro que ele vendeu lá ele deu entrada aqui as implicações e usou pra construir. Aí foi onde ele construiu resultantes do apenas dois cômodos e a gente veio pra São processo de Paulo. Isso foi em 1967, em agosto de 67. E aí a gente mora aqui desde aquela época, todo mundo urbanização que se criou aqui, ficou adulto, e depois de bem mais configurou a velha que cada uma resolveu construir aqui, existência urbana tanto eu quanto a sua tia, a tia Alzira.” (ARACY, da periferia dessa moradora do 95b, 2018) maneira. Percebo como, por trás daquele lote onde eu cresci e que cresceu comigo, há um contexto tão maior, que não seria possível de ser compreendido sem a formação que possuo hoje. Sob essa perspectiva, o Antigo 95b não é mais apenas um lote, mas um entre muitos que
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Fig. 20. Fachada do Antigo 95b nos anos 1980, durante a construção da segunda casa do lote
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Partindo do pressuposto de que a autoconstrução é uma forma de arquitetura, o capítulo em questão tem como objetivo analisar o Antigo 95b sob o meu ponto de vista de arquiteta, ressaltando tudo aquilo que, ao meus olhos, se destaca nesse método construtivo tão comum às construções brasileiras, mas ainda pouco compreendido no meio acadêmico. Como já foi observado, uma das características mais marcantes dos lotes periféricos autoconstruídos é o fato de que sua forma evoluí vagarosamente com o passar do anos, de acordo com as necessidade da família e/ou suas condições financeiras. Com o Antigo 95b não foi diferente. Sua forma, na verdade, está em constante modificação desde o ano de 1966, quando o lote foi adquirido pelo meu avô materno. O tempo, nesse caso, é o fator mais importante na definição
dessa arquitetura, pois todas as suas características se determinam a partir dele. As páginas a seguir pretendem analisar a materialidade do 95b tendo como eixos de análise o tempo e a sua forma. O método utilizado para esta investigação foi a realização de entrevistas com moradores do local e análise visual do espaço a partir de iconografia recolhida em diferentes épocas da construção.
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A forma arquitetônica do Antigo 95B bambus para a construção do cercado que se iniciou com a Casa dos Fundos, que delimitava a área externa da casa. também pode ser chamada de Primeira O acesso era por meio de uma escada Casa. Foi construída pelo meu avô entre localizada no centro do lote, feita na os anos de 1966 e 1968. própria terra, sem acabamento, da mesma Sua composição é a mais simples, o que forma como metade da área externa da reforça a ideia de que as casas construídas casa também não possuía piso cimentado. no lote periférico no período estudado Devido a inexistência de serviços de água, normalmente se iniciam com poucos esgosto e energia elétrica na época, o cômodos, o suficiente apenas para abrigar consumo de água era feito por meio de um a família e possibilitar a mudança. poço artesanal construído ao lado da casa, No caso do Antigo 95b, a primeira e o esgoto era coletado e conduzido para casa era composta por um quarto, uma uma fossa séptica construída no início do cozinha, que era a entrada principal da lote, próximo ao acesso à rua. casa, e um banheiro, que tinha acesso pela “Meu pai resolveu comprar um terreno aqui e área externa. construir e mudar pra São Paulo. Pelo que eu sei, Alguns dos materiais ele veio pra cá pra arrumar trabalho, porque o campo de trabalho era maior. Aí ele vendeu a casa utilizados para esta de São Vicente, comprou o terreno aqui e com construção foram o dinheiro que ele vendeu lá ele deu entrada aqui os tijolos cerâmicos e usou pra construir. Aí foi onde ele construiu maciços, aplicados nas apenas dois cômodos e a gente veio pra São alvenarias, telhas de Paulo.” (Aracy) barro na cobertura e
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1966-68 a Casa dos Fundos
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Na segunda metade da década de 1970, aproximadamente dez anos após a ocupação do lote, as primeiras melhorias construtivas foram realizadas no Antigo 95b, ainda sob a coordenação do avô. A Casa dos Fundos passou por uma reforma que inseriu o acesso ao banheiro na área interna da casa (através da cozinha), criou uma área de estar externa coberta, e ampliou a área da habitação com a construção de mais um quarto. O material utilizado para as alvenarias continuou sendo o tijolo cerâmico maciço. Já a cobertura do novo quarto - e também a do banheiro, que antes era telhado - foi feita com laje maciça.
Outra grande modificação realizada no lote neste período foi a realização do corte de parte do terreno, criando dois platôs - um no nível da rua e outro três metros para cima, no nível da casa. Um novo material passou a ser utilizado nessa etapa de construções: o bloco de concreto, presente na construção do muro de arrimo, da nova escada de acesso ao pavimento superior e na construção de um pequeno banheiro na área externa inferior. Por fim, foi também nesse período que o bairro recebeu as instalações para água encanada e energia elétrica.
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1976-79
ampliação da Casa dos Fundos
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Foi na primeira metade da década de 1980 que o Antigo 95b se tornou multifamiliar, como é costumeiro ocorrer em lotes periféricos. O platô do nível da rua, formado alguns anos antes com a construção do muro de arrimo, logo se tornou outra habitação com forma muito semelhante à Casa dos Fundos. Também constituída por um quarto, uma cozinha e um banheiro - com acesso pela área externa -, dessa vez a construção da Casa de Baixo foi realizada principalmente por um tio, filho do meu avô. Um novo núcleo familiar derivado do núcleo original saiu da Casa dos Fundos e passou a habitar a Casa de Baixo. Quanto às características construtivas, foi possível notar algumas diferenças, como a preferência pelo bloco de concreto - como já citado anteriormente e discutido por Maricato ( 1982), essa preferência ocorria principalmente pelo custo do material, que
é mais barato se comparado aos tijolos cerâmicos, e também por seu tamanho, que possibilitava uma construção mais rápida e com menor quantidade de materiais, já que possui dimensões maiores se comparado a outros blocos. A solução para a laje nesse momento também foi diferente das anteriores, sendo utilizado dessa vez a laje treliçada. Uma outra pequena modificação realizada no período foi o fechamento da área externa coberta da Casa dos Fundos, o que possibilitou a criação de uma sala, gerando melhorias para o ambiente devido a uma melhor definição de áreas de privacidade e áreas sociais. No entanto, essa alteração na planta acabou por bloquear as aberturas diretas para a área externa da cozinha, o que provavelmente dificultou a ventilação do espaço e criou um ambiente insalubre para permanência.
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1980-85 a Casa de Baixo
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O lote do Antigo 95b foi quase que totalmente ocupado entre o final da década de 1980 e o início dos anos 1990. Primeiramente com a construção da Casa de Cima, realizada por minha mãe com a ajuda de seu irmão. Semelhante às outras conformações iniciais, essa residência também foi construída com um quarto, uma cozinha e um banheiro, com a diferença de que o acesso para o banheiro é dado pela área interna desde o início. O material para sua construção, adquirido ao longo de seis anos - período que foi
necessário para a construção da casa também se diferenciava dos escolhidos anteriormente, já que para as alvenarias foram utilizados tijolos cerâmicos vazados (também chamado de tijolo baiano). Pouco após o término da construção da Casa de Cima, a área direita do piso superior terminou de ser preenchida com a construção do Quartinho, pequeno espaço formado por um quarto e um banheiro, destinado para a matriarca da família. Pode-se considerar esse espaço como um apêndice da Casa dos Fundos.
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1993
Quartinho
1985-91 a Casa de Cima
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ambientes e o desejo de possuir um espaço Embora tenham ocorrido algumas independente das outras casas do Antigo reformas entre o período anterior e este - como o fechamento da área entre o 95b. Os materiais utilizados nesse momento, banheiro e a cozinha na Casa de Baixo, principalmente no acabamento, são de inserindo o acesso para a área interna melhor qualidade que os utilizados nas da casa -, não foram tão significativas de construções anteriores, pois havia um serem abordadas individualmente. O desejo de habitar com mais conforto, desejo de melhorar a estética da casa. Quanto as patologias do ambiente, a além da vontade de ganhar maior independência no que diz respeito às solução adotada se pautou na tentativa e erro. Métodos foram testados até que outras casas do lote levou a Casa de Baixo a uma nova fase do processo de uma solução definitiva foi encontrada. normalmente as tentativas vinham de autoconstrução, na qual ocorre a tentativa sugestões por parte da mão de obra de corrigir erros e soluções inconvenientes advindos do primeiro processo de informal contratada, ou mesmo por conhecidos e vizinhos que lidaram com o construção. mesmo problema. Novamente Eu nunca me arrependi do que eu fiz, não. Achei A nova planta coordenada por que ficou muito bom o serviço que eu fiz. E minha mãe, a desenvolvida pela eu consegui tirar o mofo de uma parede que eu reforma da Casa queria, ainda tem uma parede que eu vou dar Aracy possibilitou de Baixo tinha jeito. Mas desistir, não! Eu me sinto satisfeita por uma solução para três principais ter conseguido fazer já quase todo o meu projeto, grande parte das que eu sentei, desenhei, anotei no papel tudo que suas demandas, demandas: a criação eu queria e já tá quase tudo pronto, então eu fico apesar da de um ambiente feliz de ter conseguido fazer esse projeto. Apesar informalidade com social para que este de eu ficar triste, às vezes, quando eu vejo essa se dissociasse do escuridão... porque eu fechei a casa toda, fechei a a qual a reforma foi quarto, a busca de lavanderia pra deixar ela pra dentro de casa, e lá conduzida. soluções para lidar era o melhor lugar por onde entrava claridade e ventilação. com problemas (Aracy) de umidade nos
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2012-19 Reforma da Casa de Baixo
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O estudo arquitetônico do Antigo 95b possibilitou observar que a autoconstrução em lotes periféricos acontece em fases. A primeira delas, já mencionada, é a fase da necessidade de habitar. É o momento em que o mínimo necessário para sobrevivência é edificado para que a família possa ocupar o espaço assim que possível, se desvencilhando de situações que agravam a ascensão familiar, como se configuram os aluguéis ou residir em regiões distantes do núcleo de desenvolvimento industrial, por exemplo. A segunda fase é a extensão da primeira casa, ocorre alguns anos após a ocupação pela necessidade de tornar o local mais confortável ou porque o núcleo familiar aumentou. A terceira fase acontece quando o núcleo familiar original se desdobra - casamento dos filhos, por exemplo, ou quando ocorre concessão de parte do terreno para parentes - e novas
habitações são construídas no mesmo lote, normalmente seguindo a estrutura da primeira casa - quarto, cozinha e banheiro. Por fim, a quarta fase ocorre anos após essas primeiras, quando a situação financeira da família melhora e permite que melhorias sejam feitas, por exemplo, aplicação de acabamentos de melhor qualidade, reformas que possibilitem um local melhor estruturado do ponto de vista arquitetônico - que adicionem espaços privados e sociais melhor distribuídos -, ou mesmo melhores soluções arquitetônicas para problemas decorrentes de uma construção feita sem muita qualidade técnica, como é o caso de grande parte das habitações autoconstruídas.
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apresentado por Jean-François Lyotard, Feitas as reflexões que vieram a mim que remonta a origem da fenomenologia como urbanista e como arquiteta, passei aos estudos do filósofo Edmund Husserl: a refletir sobre o que o Antigo 95b me apresentaria se eu decidisse observá-lo sob a perspectiva de E, para vasculhar “ […]estudo dos fenômenos, isto é, daquilo que a relação do moradora. Poderia aparece à consciência, daquilo que é dado. Trata- Antigo 95b com dizer que este se de explorar este dado, a própria coisa que se o meu ser, sob capítulo não possui percebe, em que se pensa, de que se fala, evitando essa perspectiva, como protagonista forjar hipóteses, tanto sobre o laço que une o o objeto casa, mas fenômeno com o ser de que é fenômeno, como utilizei dos sim a profundidade sobre o laço que o une com o Eu para quem é escritos de Gaston fenômeno.” (LYOTARD, 1999, p. 10) Bachelard. O autor da relação existente entre esse objeto e faz uma análise ampla e profunda sobre as relações o meu ser, relação que permeia os campos fenomenológicas existentes entre a da realidade e da imaginação. Para tal, consciência e o espaço, e as imagens utilizo do conceito de fenomenologia, que poéticas que surgem dessas relações, busca conhecer a imagem da imaginação em sua essência, em seu sentido mais puro. palavras das quais me utilizo para facilitar a exposição da relação que possuo com De modo a esclarecer este conceito que a minha casa natal, numa tentativa - que se distancia, de diversas formas, de tudo já antecipo ser falha em sua pureza2 - de que já foi exposto até o momento nesta transmitir o que o Antigo 95b é para mim. pesquisa, considero como definição aquele 2
No decorrer do capítulo passo por inúmeras tentativas de palavrear a relação íntima com o Antigo 95b, numa tentativa de justificar um tanto o que esse trabalho é para mim. No entanto, me deparei com uma dificuldade sem tamanho, e acabei por concordar com as palavras de
Bachelard que afirma que “o que comunicamos aos outros não passa de uma orientação para o segredo, sem, contudo, jamais poder dizê-lo objetivamente. O segredo nunca tem uma objetividade total. Nesse caminho, orientamos o onirismo, mas não o concluímos.” (2008, p.32)
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reflexões da moradora
A CASA DA MEMÓRIA
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Não há uma forma simples de explicar - por isso não está ligada ao passado -, o que são e do que se tratam as imagens mas está em si mesma, na sua existência poéticas, porque tais imagens, por si só, são no presente. Em palavras mais simples, carregadas de complexidade e significados. as imagens poéticas aqui analisadas são No entanto, são elas que vão dar forma ao aquelas que representam os valores que esse capítulo se propõe a fazer, que humanos dos espaços vividos, a percepção é tratar da casa através da memória. As do espaço pela imaginação através da sua imagens, que são descritas por Bachelard vivência. Enxergar a poesia que existe no em sua obra, não são causadas por vultos espaço da casa não está relacionado à sua do passado, não possuem significado por beleza, à estética de sua materialidade, estarem ligadas à memória, e menos ainda à sua forma ou geometria, e também devem ser significadas sob uma perspectiva não é aquela exposta de uma maneira psicológica ou da psicanálise, que descritiva ou analítica. Aqui, a pretensão é de compreender incessantemente tentam descrever “Mas quantos problemas conexos se quisermos a origem da os sentimentos da determinar a realidade profunda de cada felicidade que a uma das nuanças de nosso apego a um lugar casa proporciona, imagem, no caso predileto! Para um fenomenólogo, a nuança deve a essência que do psicólogo, ou de ser tomada como um fenômeno psicológico torna o espaço da intelectualizá-la ou estrutural. A nuança não é uma coloração casa tão íntimo e compreendê-la, no superficial suplementar. Portanto, é preciso caso do psicanalista dizer como habitamos o nosso espaço vital de particular, o que a (BACHELARD, acordo com todas as dialéticas da vida, como nos torna única para o enraizamos, dia a dia, num ‘canto do mundo’. indivíduo, a partir 2008, p.8). Devem Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, da complexidade ser vistas da forma como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. de nuances que que são, sob a ótica É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda possui em si, frutos da poesia, através a acepção do termo. Vista intimamente, a mais da sua significação humilde moradia não é bela?” (BACHELARD, do que a realidade poética, que não 2008, p. 24) e a imaginação são capazes de criar possui antecedentes
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acerca de um espaço. conjunto de imagens do presente e do É na imaginação que as imagens são passado, que se interpenetram entre si. produzidas, sejam elas reais ou não. É curioso notar como as lembranças da Por meio dela, podemos acessar o casa possuem tão maior notoriedade no ser passado e o presente, e misturá-los do que as lembranças do mundo exterior. entre si. Incessantemente, a imaginação Vejo isso nas minhas memórias, que se é alimentada por novas imagens que se distanciam do presente cada vez mais quando conectadas configuram como “A imagem poética não está submetida a um ao espaço do 95b. atos poéticos, que impulso. Não é o eco de um passado. É antes o apenas são uma inverso: pela explosão de uma imagem, o passado Essas memórias outra maneira longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em não se caracterizam de enxergar as que profundidade esses ecos vão repercutir como simples e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, lembranças na imagens poéticas, a imagem poética tem um ser próprio, um consciência, mas que lá surgem dinamismo próprio” (BACHELARD, 2008, p. 5) possuem acesso desconectados ao campo do de um passado inconsciente, onde recebem valores de da forma como o definimos, linear e sonho. narrativo. A casa, para quem a vive, abriga a A memória, por outro lado, embora não importante atividade do devaneio, e esteja ligada ao significado da imagem, por isso suas memórias se misturam ao não deixa de participar dessa experiência sonhar. O devaneio constitui o que é o fenomenológica de habitar o espaço. ser humano, desenha os seus valores, Presente na formação das diversas ficam marcados na profundidade do ser. nuances de significado que se relacionam É mais do que o pensamento, vai além ao espaço vivido, a memória vem como da lembrança, mas no espaço da casa, se um complemento da imaginação. Não conecta com todos eles. Bachelard vai além está associada a um momento passado, ao afirmar que o espaço onde se viveu o mas se configura como todo um campo devaneio acaba, por si só, constituindo-se dissociado do tempo, imemorial, ajudando como um novo devaneio (2008, p.26) e, a construir a imagem da casa como um
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por conta disso, as lembranças relacionadas a esse espaço tornam-se imperecíveis para o indivíduo. É através da memória que criamos a relação de identificação entre um espaço e o nosso indivíduo, afinal, ela é a nossa experiência mais consciente do passar do tempo, e a casa, nesse contexto, torna-se suporte - dentre muitos outros que podem existir - para essa experiência. Pode-se concluir, portanto, que as imagens que este capítulo busca tratar vêm ao indivíduo de duas maneiras, que apesar de diferentes não estão dissociadas: chamaremos de imagens instantâneas, ou imagens do presente, as que surgem da simples presença do ser frente às coisas, neste caso, frente ao espaço e tudo aquilo que o compõe; e chamaremos de imagens imemoriais as que estão relacionadas ao tempo - mas não da forma como o imaginamos, sequencial e narrativo, mas de uma maneira particular para cada ser, que se compõem por uma infinidade de memórias justapostas entre si, e que vêm ao indivíduo através das memórias e do devaneio. Quando olho para o canto direito do meu quintal, consigo perceber o que Bachelard descreveu em seu livro. Múltiplas camadas de imagens reais, e ao mesmo tempo,
imagens de sonho, se formam para mim. Há aquela que possui dois tambores, um tanto desalinhados e com as bordas inferiores já sofrendo o processo de oxidação comum aos metais, alinhados à parede do canto direito do quintal do 95b. Sobre os tambores, uma madeira coberta por um tecido de TNT branco com bordas de papel crepom, da mesma cor que os papeis que embrulham as balas de coco, dispostas em uma formato de pirâmide sobre a mesa, constrastando com a parede de cor cinza reboco ao fundo. Nesse mesmo lugar, ocorre também a existência de uma casa em miniatura, local onde eu guardaria todos os meus brinquedos e que possuiria paredes mais rígidas do que aquelas que a cabana de lençóis possuía. Lá, eu poderia receber os meus amigos, ou mesmo deixar de receber aqueles que não quisesse receber. Seria, afinal, um espaço só meu. Em outra imagem, também foi espaço de construção, pois nesse mesmo canto que, por muito tempo, montes de areia, pedra e tijolos ficaram abrigados esperando o momento oportuno para serem novas paredes, talvez até mesmo as da minha casa em miniatura, devo ter chegado a pensar num devaneio qualquer abrigado por aquele lugar.
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A CASA LAR
de característica rural, de modo a Parece importante, antes de tratar da se diferenciar do termo domus, que relação casa-indivíduo, expor alguns representava as habitações de origem pontos sobre as definições gerais de urbana. Uma série de acontecimentos uma casa, mesmo que em um primeiro que, se aqui aprofundados, nos levariam momento, isso pareça uma atividade sem por caminhos não tão pertinentes ao sentido. desenvolvimento deste trabalho -levaram Será possível notar que a simples ideia de a quase extinção das habitações urbanas, definir este objeto logo faz perceber que mantendo-se em alvenaria apenas sua complexidade ultrapassa os parágrafos construções como castelos e igrejas. Logo, que neste trabalho foram dedicados para o termo domus passou a ser associado a explorá-lo. São muitas as denominações atribuídas ao morada religiosa, que abrigava Deus, e para espaço unifamiliar no decorrer do tempo, a a morada humana, fixou-se o termo casa. cabana talvez seja o primeiro deles, seguida A necessidade de se estabelecer num canto do mundo se resolve na forma da casa. por domus, castelos, villas, palazzos, e Para o homem primitivo, abandonar o algumas tantas outras variantes de acordo nomadismo e se estabelecer em um local com o tempo e o espaço. A palavra casa, para desenvolver agricultura, e não só por sua vez, veio para sintetizar a ideia viver de caça, pesca e colheita de frutos, que todas essas outras de alguma forma o implicava na construção de um abrigo. tentaram fazer. A casa vem, de início, pela necessidade A origem do termo casa remonta ao Império Romano, de abrigo e pela “O lar é uma condição complexa que integra necessidade de lugar em que memórias, imagens, passado e presente, sendo um definir um lugar seu conceito complexo de ritos pessoais e rotinas quotidianas como o “seu”, seja era sinônimo da que constitui o reflexo de seus habitantes, aí já mencionada por uma questão incluídos seus sonhos, esperanças e dramas” cabana, associada (MIGUEL, 2002) de territorialidade, principalmente ou identidade, às habitações enraizamento, etc.
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Ao abrigar as relações do plano físico e vivacidade do espaço quando associado a as trocas emotivas dos seus moradores, iluminação. A imagem de uma casa vista de adquire a forma de lar. A palavra lar possui fora ganha vida quando luzes se projetam sua origem etimológica junto a palavra pelas aberturas, pois automaticamente são lareira. Através da lareira, o fogo vai associadas a presença humana. Bachelard ser o principal complemento da cabana também associa o calor ao tratar sobre primitiva, ao redor do qual a família se a casa natal, local onde o ser estaria reúne e se aquece, protegido da “No interior do ser, no ser interior, um calor sendo o elemento hostilidade do acolhe o ser, envolve o ser. […] Quando se sonha que atribui a mundo de fora. com a casa natal, na profundidade extrema do casa a vivacidade O que é definido devaneio, participa-se desse calor primeiro, dessa necessária para como lar nada matéria bem temperada do paraíso material. É nesse ambiente que vivem os seres protetores.” transformá-la num mais é do que o (BACHELARD, 2008, p. 25) lar, da mesma objeto casa como forma que a alma espaço vivido. atribui ao corpo a Não se trata apenas do objeto construído, característica de ser vivo. trata-se de um objeto que deve refletir a A cabana primitiva de Vitrúvio, arquiteto dinâmica das relações que irá abrigar. A pioneiro em investigar as origens do casa é o “invólucro delimitador entre o habitar, tem sua existência relacionada público e o privado, pois nos leva a um à necessidade de proteção do fogo que interior, representando a necessidade de aquece a família, tornando-o, dessa estarmos situados” (MIGUEL, 2002). É maneira, parte da essência do que é dito a partir desse “estar situado” que surge a arquitetura. Para o autor, o fogo estaria relação íntima entre o ser que habita e o intrínseco à existência da cabana primitiva, objeto casa, pois sua configuração nada inaugurando a linha de pensamento que mais é do que resultado dessa relação que a associa o controle do fogo por parte da transforma em algo individual e pessoal. A humanidade à invenção da linguagem e das casa habitada não se descreve meramente artes como algo organizado e praticado em como um objeto, mas sim como uma série sociedade. O fogo também traz a noção de de coisas que incluem desde mobiliários e
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Fig. 21. Homem primitivo se protegendo da chuva, segundo Filarete
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objetos, até cantos, memórias e sensações, de modo que, juntos, identificam um espaço particular. A busca pela compreensão da origem da casa, ou mesmo da casa primitiva, é comum aos arquitetos de todos os tempos, dos primeiros tratados aos estudos modernos. Em seu artigo, Carneiro Miguel (2002) apresenta quase como numa linha do tempo os diferentes discursos acerca desta temática, no decorrer dos anos. Vitrúvio seria o primeiro deles, com sua teoria da cabana primitiva e da relação do fogo com a criação do ambiente casa-lar. O mito da cabana seria retomado “A casa segue sendo o lugar central da existência por diversos humana, o sítio onde a criança aprende a outros estudiosos compreender sua existência no mundo e o lugar de onde o homem parte e regressa” da arquitetura (NORBERG-SCHULZ, 1975 apud MIGUEL, no decorrer dos 2002) séculos, em suas tentativas de discorrer acerca das origens da arquitetura que, para muitos deles, se resume na forma da casa.
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Fig. 22. Night Windows, de Edward Hopper
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A MINHA CASA
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A relação entre o espaço de morar e o indivíduo também pode se descrever como uma relação de profunda intimidade. Há um certo consenso de que explorar a casa de uma pessoa se assemelha a explorar o seu próprio íntimo. Bachelard, mais uma vez, fortalece essa ideia ao afirmar que “a imagem da casa se transforma na topografia de nosso ser íntimo” (BACHELARD, 2008, p. 00). O Antigo 95b não era o lugar mais apropriado para o desenvolvimento de um espaço de intimidade, devo dizer. A casa onde eu cresci possuía três cômodos - o Quarto, a Cozinha e o Banheiro -, de modo que não havia muito espaço para privacidade. No entanto, a imaginação é capaz de criar soluções para os mais complicados problemas, e muito rapidamente foram surgindo cantos na casa onde era possível ter os meus momentos num espaço que era meu. A cama de cima da beliche por muito tempo foi a minha cama, e também por muito tempo foi a minha casa particular dentro do Antigo 95b. Na altura dessa cama, na quina entre uma parede e outra, minha mãe decidiu instalar uma prateleira de madeira. Era a Prateleira da Jéssica.
Neste espaço eu poderia expôr, apoiar ou preservar o que quisesse. Ali ficavam livros, cadernos com anotações pessoais, pequenos cacarecos que eu guardava porque, para o meu eu de então, estariam protegidos ali naquele espaço que era meu. Era uma prateleira, no meu caso, mas poderia se desenhar como qualquer outro objeto: uma gaveta, um armário, a caixa de papelão que se arrasta para baixo da cama. Esses objetos são os que atribuem a nossa vida íntima o modelo de intimidade. A prateleira junto a beliche abrigava uma intimidade que era só minha, o que fazia dela não apenas um objeto, mas um objeto-sujeito que, hoje, faz parte da minha ideia do que é a minha existência atrelada ao Antigo 95b.
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Fig. 23. A prateleira
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A CASA MÃE
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recordei do desfecho da obra fictícia E A casa natal, que para mim se apresenta na o vento levou, de Margaret Mitchell, em forma do 95b, possui a peculiaridade de nos afetar particularmente. Essa casa, que que a personagem, após uma série de desventuras e sucessivas tragédias em sua se constrói como o primeiro mundo do indivíduo, é o espaço que o acolhe, protege vida, apenas quer retornar para a fazenda da sua família onde cresceu, mesmo com o e agasalha. Se fosse um objeto, seria o lugar destruído pela Guerra. berço que antecede o momento de ser atirado ao mundo exterior. É interessante Bachelard afirma que a casa natal será reflexo de todas as sucessivas casas que como o espaço da minha casa natal permanece como meu canto protegido o ser habitará em sua vida, pois ela cria valores de abrigo que muito facilmente, no mundo, mesmo após anos vivendo em um tanto de outras casas. Numa sessão e mesmo sem a nossa percepção, chega a nós pelos mais diversos meio, seja pelo de terapia, após uma longa exposição cheiro que sai de de situações desagradáveis que “Em suma, a casa natal gravou em nós a uma gaveta, que vivi, concluí que hierarquia das diversas funções de habitar. Somos é o mesmo do o diagrama das funções de habitar aquela casa; guarda roupa da sempre repetia e todas as outras não passam de variações de casa da infância, o ato de ir para um tema fundamental. A palavra hábito está ou o sabor da a casa da minha demasiado desgastada para exprimir essa ligação sopa que nos leva mãe, que esta era apaixonada entre o nosso corpo que não esquece a minha forma e a casa inolvidável.” (BACHELARD, 2008, p. 34) ao toque daquela mesa revestida de de recuperação. fórmica texturizada, onde tantas vezes Lá, no meu canto da beliche ou no sofá uma sopa foi apreciada, ou as tantas dividido com o gato e o irmão, as coisas outras sensações que nos chegam das mais sempre ficavam melhores. Nesse mesmo inimagináveis sinestesias. dia, eu e minha terapeuta discutimos sobre É fato que, mesmo após anos habitando como a casa da infância assume o papel de outras casas, nossos gestos genuínos acolhimento do indivíduo, principalmente adquiridos na convivência com aquele em situações de estresse. Na ocasião, me
Fig. 24. Stay at home day, de David Baker
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primeiro espaço permanecem em nós e se repetem nesses novos espaços. Ao retornar para a casa original, facilmente perceberíamos como tudo ainda está vivo em nós, porque “para além das lembranças, a casa natal está fisicamente inserida em nós” (BACHELARD, 2008, p. 33). É nesse lugar que se forma a nossa maneira de habitar. primeiro espaço permanecem em nós e se repetem nesses novos espaços. Ao retornar para a casa original, facilmente perceberíamos como tudo ainda está vivo em nós, porque “para além das lembranças, a casa natal está fisicamente inserida em nós” (BACHELARD, 2008, p. 33). É nesse lugar que se forma a nossa maneira de habitar. Para além disso, a casa natal acompanha o indivíduo ao longo da sua vida, e se transforma junto com ele. Segundo Bachelard, a casa é o instrumento que nos faz confrontar com o cosmo, e por meio dela, conseguimos nos reconhecer, reconhecer a nossa própria identidade, que está guardada nas imagens pessoais que a casa coleciona de cada indivíduo que a habita. As lembranças da casa natal costumam possuir uma intensidade maior justamente porque são lembranças do
próprio indivíduo, da sua construção enquanto pessoa. Essa incrível habilidade de produzir lembranças detalhadas da casa da infância, que tão bem pode ser descrita como a casa inolvidável, pode ser entendida mais a fundo quando tratamos novamente da questão do devaneio. A casa natal é a casa que centraliza nossos sonhos. Seus cantos não guardam apenas objetos ou lembranças de um objeto passado, mas também guardam devaneios, e nesse espaço, cada canto possui uma quantidade de devaneios de um indivíduo. A infância é o momento onde, principalmente, o devaneio se afasta da realidade, e mesmo assim é facilmente aceitável, pois a ideia de infância é maior do que a ideia do que é real. O sonho é indispensável para a manutenção da relação casa-indivíduo, muito mais do que a lembrança. A lembrança de um espaço que sai do inconsciente não parece possuir mais validade que a lembrança que vem de uma imagem fotografada? O plano do devaneio possui uma vivacidade muito maior do que o plano dos fatos, e é desse plano que vem a permanência da infância em nós. Quando um canto abriga uma solidão,
Fig. 25. O mundo mágico da caixa de luz
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principalmente na infância, ele também abriga uma gama de devaneios, e “que privilégio de profundidade há nos devaneios de uma criança!” (BACHELARD, 2008, p. 35). As solidões da infância não devem ser encaradas como momentos tristes ou dignos de pena. Pelo contrário, a criança que sabe usufruir de sua solidão vai dar abertura para o seu inconsciente caminhar livremente nas imagens poéticas que o circundam. É de um momento de solidão que, para mim, nasceu um mundo imaginário. O portal para acessá-lo se encontrava no quadro de luz geral, lá no canto esquerdo do quintal, perto do portão pequeno. Após uma caminhada solitária na calçada, extensão do espaço da casa - e, ouso dizer que seja uma própria parte da casa -, muito rapidamente um mundo secreto se formou em minha mente. Acessei esse mundo mexendo através de alguns botões imaginários no quadro de luz da casa, e por lá fiquei até ouvir alguns gritos de alerta da minha mãe, afinal, mais do que abrigar o meu Mundo Secreto do Quadro de Luz, no mundo real, o quadro de luz não é exatamente o melhor lugar para uma criança brincar. Para o arquiteto, a casa natal acaba por
configurar-se como matéria viva que o acompanha durante toda a sua vida profissional, ao projetar novos espaços. A noção de casa ideal que existe em cada ser nasce dessa primeira experiência arquitetônica de habitar um espaço, e que se condensou pelas memórias que possuem a arquitetura da casa como plano de fundo ou estrutura das imagens criadas pela imaginação. E na imaginação o sentido da primeira casa alcança novos patamares que conduzem ao universo da poesia.
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As ações que envolvem experienciar um espaço ganham novos significados quando vistas do ponto de vista arquitetônico, assim como a experiência arquitetônica de um determinado lugar tem um significado diferente quando, antes de analisá-lo como arquitetura, o significado que possuía para o indivíduo era o advindo da ocupação e do convívio. Observar o Antigo 95b partindo de perspectivas que a Arquitetura me proporcionou fez com que aquele lugar adquirisse um novo grande significado. Esse significado não se limita a sua história dentro da estrutura social e econômica do processo de urbanização da Região Metropolitana de são Paulo. Tão pouco se trata apenas da sua condição enquanto autoconstrução, da maneira como foi construído e como se conforma enquanto arquitetura. Nem mesmo se restringe a todo o lirismo que a minha relação
pessoal com aquele espaço carrega. A complexidade de um espaço ocupado não caberia neste trabalho mesmo que fosse analisado por mais alguns outros tantos pontos de vista, porque o espaço ocupado carrega a mesma complexidade dinâmica que a própria existência que o habita e o circunda. A tentativa desse trabalho de refletir acerca de alguns poucos pontos que para mim pareciam interessantes de compreender e me aprofundar, no que diz respeito à casa onde eu cresci, possibilitou constatar a natureza única da autoconstrução enquanto arquitetura fruto da necessidade - necessidade que é tanto a de habitar quanto a de suprir o que a desigualdade social e desenvolvimento capitalista das cidades e sociedade privam das classes populares. O auto-empreendimento na periferia conta parte da história de toda uma classe social que possibilitou o
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desenvolvimento industrial da sociedade paulistana, através do acúmulo de capital gerado pelo loteamento das periferias pelas mãos do trabalhador. Dentro desse contexto, compreender um tanto mais do processo de autoconstrução usando como base a história do Antigo 95b permitiu constatar com maior propriedade o que tantos autores afirmam ao dissertar sobre como se deu o loteamento das periferias e das características arquitetônicas próprias desse método construtivo. O processo de construção que acompanha a disponibilidade financeira do núcleo familiar (ou mesmo seu crescimento ou desdobramento em outros núcleos proveniente de novas formações familiares) está massivamente presente nos inúmeros lotes que compõem as periferias da RMSP. Nesses espaços, o tempo é um fator importante de análise da materialidade de uma construção, e foi esse o fator base que guiou o estudo arquitetônico do Antigo 95b. Tal estudo permitiu compreender as diferentes fases pelas quais o lote autoconstruído passa e como, apesar de ocorrer de maneira desordenada, as construções edificadas nessas fases
seguem uma lógica que obedece, num primeiro momento, a situação econômica da família e a necessidade primária de habitar - que se nota na escolha dos materiais e na composição simples das primeiras habitações do núcleo familiar - e, posteriormente, a aspiração de morar com uma melhor qualidade. Por fim, enxergar o Antigo 95b de dentro para fora levou à reflexão de como os lugares onde moramos influenciam na maneira individual de enxergar a arquitetura, o que talvez explique o constante interesse que desenvolvi durante a graduação em estudar temas que circundam a sua história. No entanto, para além de um objeto que pode ser estudado e encaixado em teorias políticas e sociais, pareceu importante finalizar este estudo com reflexões acerca do lirismo que envolve habitar um espaço, independente da sua posição no universo da produção arquitetônica. Para além da minha visão de arquiteta e urbanista, aquele espaço foi onde tive a minha primeira noção de espaço, a primeira vontade de habitar um lugar - e mesmo de projetar. Ali, aprendi os importantes conceitos de intimidade, privacidade, proteção, tão significativos no universo da arquitetura, e que se revelam
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mesmo na mais simples arquitetura. Concluo esse trabalho com uma sensação e uma lembrança: No primeiro dia da minha graduação, um veterano me falou que o edifício da FAU seria um dos mais importantes professores de arquitetura que eu teria no curso. Não discordo dessa afirmação, mas agora, alguns anos e amadurecimentos depois, tenho a sensação que o primeiro e mais importante professor na minha trajetória de formação como arquiteta foi o Antigo 95b, e sou muito grata por ter tido a oportunidade de vivenciar essa experiência que me guiou até aqui.
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Figura 4 | Fonte: Blog do Estadão. Disponível em: < http://blog.estadaodados.com/os-maiscompletos-mapas-de-valor-de-imoveis-de-saopaulo/>. Acesso em 01 de maio de 2019. Figura 5| Fonte: Correio Paulistano, 29/8/1942 apud BONDUKI, 1998, p.268) Figura 6 | Fonte: Arte de autoria de Thais Silva (@blackcollage_). Disponível em: < https:// www.instagram.com/p/BxlKkROJrpk/>. Acesso em 21 de maio de 2019. Figura 7 | Fonte: Geoportal. Disponível em: < https://www.geoportal.com.br/ MemoriaPaulista/>. Acesso em 01 de maio de 2019. Figura 8 | Fonte: Geoportal. Disponível em: < https://www.geoportal.com.br/ MemoriaPaulista/>. Acesso em 01 de maio de 2019.
Figura 9 | Fonte: CESAD. Figura 14 | Fonte: CESAD. Figura 19 | Fonte: São Paulo (Estado), 1979 apud BONDUKI, 1998, p.276) Figura 21 | Fonte: Vitruvius. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/03.029/746>. Acesso em 01 de maio de 2019. Figura 22 | Fonte: MoMA. Disponível em: < https://www.moma.org/collection/ works/79270>. Acesso em 10 de maio de 2019. Figura 23 | Fonte: Croqui da autora. Figura 24 | Fonte: Blog pessoal de David Baker. Disponível em: < http:// davidgraemebaker.blogspot.com/>. Acesso em 10 de maio de 2019. Figura 25 | Fonte: Croqui da autora.